Nesta terça-feira, 21, a 1ª turma do STF condenou, por maioria, os réus do núcleo 4 da tentativa de golpe de Estado. As penas vão de 7 anos a 17 anos de reclusão.
O grupo, composto por sete acusados, foi denunciado pela PGR por disseminar notícias falsas sobre as urnas eletrônicas e promover ataques a instituições e autoridades.
Os ministros, com exceção de Fux, condenaram seis réus - Ailton Barros, Ângelo Denicoli, Giancarlo Rodrigues, Marcelo Bormevet, Guilherme Almeida e Reginaldo Abreu - pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Em relação a Carlos César Moretzsohn Rocha, presidente do Instituto Voto Legal, embora tenha sido considerado parte da engrenagem de desinformação, os ministros reconheceram dúvida quanto ao dolo em atos posteriores, absolvendo-o parcialmente e o condenando apenas com relação aos crimes de organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Veja o placar:
Confira as penas:
Além das penas privativas de liberdade, a 1ª turma do STF fixou a condenação ao pagamento de indenização de R$ 30 milhões, a ser adimplida solidariamente pelos réus, em favor do fundo previsto no art. 13 da lei da ação civil pública (lei 7.347/85).
Os ministros também determinaram a inelegibilidade de todos os condenados pelo prazo de oito anos após o cumprimento da pena, nos termos da legislação eleitoral.
Outra sanção imposta foi a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo eventualmente ocupado pelos réus. No caso de Marcelo Bormevet, agente da Polícia Federal, a decisão implica perda automática do cargo público.
Por fim, o colegiado decidiu que, com o trânsito em julgado, deverá ser oficiado o STM - Superior Tribunal Militar para que analise a perda da patente dos réus Ailton Barros, Ângelo Denicoli, Giancarlo Rodrigues, Guilherme Almeida e Reginaldo Abreu.
Voto do relator
O ministro Alexandre de Moraes rejeitou todas as preliminares levantadas pelas defesas - entre elas alegações de incompetência do STF, cerceamento de defesa, violação ao juiz natural e prova ilícita - e considerou a instrução regular.
Segundo o relator, as questões já haviam sido enfrentadas em decisões anteriores, e não surgiram fatos novos capazes de alterar a compreensão do Tribunal.
No mérito, Moraes situou o julgamento no contexto da organização criminosa armada reconhecida na AP 2.668, que, segundo S. Exa., utilizou estruturas estatais para tentar subverter o resultado eleitoral e impedir a posse do governo legitimamente eleito. O chamado núcleo 4, ora analisado, teria atuado na difusão de desinformação e na execução de etapas específicas do plano golpista.
O relator descreveu cinco frentes de atuação:
- Ailton Moraes Barros – elaboração e apresentação de minuta de golpe a comandantes das Forças Armadas e coordenação de ataques virtuais contra chefes militares;
- Ângelo Denicoli – montagem de estrutura paralela de inteligência e disseminação de conteúdos falsos sobre as urnas eletrônicas;
- Giancarlo Rodrigues e Marcelo Bormevet – uso irregular de sistemas da ABIN ("ABIN paralela") para monitorar autoridades e difundir desinformação;
- Guilherme Almeida – difusão de live sobre suposta fraude e estímulo a mobilizações e bloqueios após as eleições;
- Reginaldo Abreu – manipulação do relatório das Forças Armadas sobre o sistema eletrônico e preparação de “gabinete de crise” a ser instalado após o golpe.
Em relação a Carlos César Moretzsohn Rocha, presidente do Instituto Voto Legal, Moraes o apontou como responsável pela produção e divulgação de laudo falso que embasou pedido do PL para anular urnas do segundo turno de 2022. Considerou-o parte da engrenagem de desinformação, mas reconheceu dúvida quanto ao dolo nos atos posteriores, absolvendo-o parcialmente.
O ministro condenou seis réus - Ailton Barros, Ângelo Denicoli, Giancarlo Rodrigues, Marcelo Bormevet, Guilherme Almeida e Reginaldo Abreu - pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Já Carlos César Rocha foi condenado apenas por organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, e absolvido dos demais crimes por aplicação do in dubio pro reo.
Moraes ainda propôs o envio de cópias a PET 12.100 para possível reabertura de investigação sobre o presidente do PL, Valdemar Costa Neto.
Divergência
Ministro Luiz Fux apresentou voto no qual propôs a declaração de incompetência da 1ª turma do STF para processar e julgar os réus e, subsidiariamente, a absolvição de todos os acusados por ausência de provas, atipicidade das condutas e falta de atos executórios concretos.
Logo na abertura, Fux retomou uma reflexão sobre o papel do julgador e a necessidade de rever entendimentos à luz do tempo e das garantias constitucionais.
Disse que o magistrado deve ter a coragem de corrigir equívocos e não de "pactuar com o próprio erro". Afirmou que o tempo permite dissipar "as brumas da paixão" e que o juiz não pode confundir rigor com precipitação.
Preliminares
O ministro reafirmou o entendimento de que o STF é incompetente para julgar réus sem foro por prerrogativa de função, conforme o art. 80 do CPP e o art. 5º, LV, da CF.
A seu ver, os autos deveriam ser remetidos à 1ª instância, assegurando o duplo grau de jurisdição previsto no Pacto de San José da Costa Rica. Caso houvesse autoridade com foro, a competência seria do plenário, e não da turma, pois a emenda regimental 59/23, que ampliou a competência das turmas, é posterior aos fatos narrados.
Fux propôs, portanto, a nulidade de todos os atos decisórios, inclusive o recebimento da denúncia, por violação ao princípio do juiz natural.
Mérito
No mérito, o ministro reafirmou as premissas teóricas já delineadas no julgamento da AP 2.668. Os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M), segundo S. Exa., exigem atos executórios imediatos - dotados de perigo concreto ao bem jurídico tutelado - praticados com violência ou grave ameaça.
A simples cogitação de golpe, a discussão política ou os atos preparatórios, disse, não configuram tentativa. Também rejeitou interpretações elásticas que equiparem discursos, críticas ou postagens em redes sociais a atos executórios.
Para Fux, a denúncia não descreve qualquer ato concreto de abolição ou tomada de poder, mas apenas conversas privadas e manifestações genéricas, sem potencial lesivo.
Ângelo Denicoli e Reginaldo Vieira de Abreu
Ao analisar o núcleo ligado à minuta sobre as urnas eletrônicas e ao relatório das Forças Armadas, Fux afirmou que a acusação extrapolou o que estava narrado na denúncia e se apoiou em documentos aos quais as defesas não tiveram acesso, violando o devido processo legal.
Segundo o ministro, Ângelo Denicoli apenas compartilhou informações obtidas no site do TSE, sugerindo que fossem analisadas por órgãos técnicos como o ITA e o IPEA - o que demonstraria, ao contrário, uma busca pela verdade e não adesão a golpe.
Criminalizar o direito de petição ou a fiscalização civil do sistema eleitoral, advertiu, fragiliza a legitimidade do processo e inibe a transparência democrática.
Quanto ao coronel Reginaldo Vieira de Abreu, Fux observou que a denúncia lhe atribui uma "tentativa da tentativa", por supostamente tentar interferir em relatório das Forças Armadas que poderia gerar comoção pública favorável à ruptura institucional.
"Tudo permanece no campo do hipotético", afirmou, acrescentando que as provas mostram apenas críticas pessoais e conversas privadas, sem qualquer relação com violência ou ato executório.
O ministro também destacou inconsistências técnicas na acusação sobre a minuta de gabinete de crise, apontando divergências nos metadados do arquivo e ausência de indícios de que o documento tenha sido levado a qualquer autoridade.
Carlos César Rocha
Sobre o presidente do Instituto Voto Legal, Carlos César Moretzsohn Rocha, Fux sustentou que a atuação do engenheiro e de sua equipe - ao elaborar relatório técnico sobre urnas - não configura crime, mas exercício legítimo do direito de petição e de fiscalização eleitoral.
Lembrou que o TSE, em 2014, diante de auditoria semelhante requerida por outro candidato presidencial, tratou o pedido com naturalidade institucional, reconhecendo que questionamentos técnicos reforçam a transparência. "Criminalizar a apresentação de uma demanda ao Judiciário é desempoderar o cidadão", declarou.
Segundo o ministro, a denúncia reconhece que o relatório não teve qualquer influência pública e que o próprio Valdemar Costa Neto, presidente do PL, declarou à PF não conhecer Denicoli nem saber de sua participação em qualquer documento. Para Fux, não há nenhum desdobramento causal entre a representação eleitoral e qualquer tentativa de ruptura democrática.
Giancarlo Rodrigues e Marcelo Bormevet
Ao examinar as imputações relativas à chamada "ABIN paralela", ministro Luiz Fux afirmou que o MP não comprovou qualquer vínculo direto entre Giancarlo Gomes Rodrigues, subtenente do Exército cedido à ABIN, e Marcelo Araújo Bormevet, agente da PF, com atos executórios de crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Segundo a acusação, ambos teriam utilizado indevidamente sistemas de inteligência - como o FirstMile - para monitorar adversários e produzir conteúdos desinformativos voltados a desestabilizar instituições.
Para Fux, contudo, os autos revelam um vazio probatório absoluto: as supostas consultas ocorreram antes do recorte temporal da denúncia (meados de 2021 a 8/1/23) e não há indício de uso do sistema durante o período relevante, já que o First Mile deixou de ser utilizado pela ABIN em maio de 2021.
O ministro frisou que a denúncia não demonstrou estabilidade, permanência nem propósito criminoso comum entre os dois, requisitos indispensáveis à caracterização da organização criminosa prevista na lei 12.850/13. Tampouco se provou o emprego de armas ou a ciência dos demais integrantes, inviabilizando a incidência da majorante armada.
Fux reconheceu que poderiam existir desvios funcionais ou condutas administrativas irregulares, mas que tais fatos não configuram crimes de golpe de Estado ou abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Destacou, ainda, que as comunicações e consultas mencionadas pela PGR não guardam nexo causal com qualquer ato de violência ou grave ameaça, sendo insuficientes para sustentar a materialidade penal exigida.
Assim, concluiu que os elementos reunidos se restringem a interações funcionais descontextualizadas e a conversas privadas, o que não permite imputar crimes graves.
Diante disso, votou pela absolvição de Giancarlo Rodrigues e Marcelo Bormevet de todas as acusações, por ausência de ato executório e atipicidade das condutas.
Ailton Moraes Barros
Por fim, ao examinar a imputação contra Ailton Gonçalves Moraes Barros, acusado de pressionar comandantes das Forças Armadas, Fux analisou depoimentos de Mauro Cid, Braga Netto, Batista Júnior e Freire Gomes. Todos negaram ter recebido mensagens, pressões ou ameaças do réu.
As supostas postagens atribuídas a Barros, segundo Fux, não contêm incitação à violência, mas expressões de opinião política, desprovidas de idoneidade para caracterizar crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Conclusão
Após afastar a materialidade, o nexo causal e o dolo nos atos imputados, o ministro absolveu todos os réus - Ângelo Denicoli, Reginaldo Vieira de Abreu, Carlos César Rocha, Guilherme Marques de Almeida, Giancarlo Gomes Rodrigues, Marcelo Araújo Bormevet e Ailton Moraes Barros - das acusações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, por atipicidade, ausência de ato executório e insuficiência probatória.
Ao final, reafirmou que que a responsabilidade penal exige prova além de dúvida razoável.
Voto de Cármen Lúcia
Ao acompanhar o relator Alexandre de Moraes, ministra Cármen Lúcia apresentou um voto denso e histórico sobre a ameaça representada pela desinformação e pela manipulação institucional.
Para a ministra, o caso revelou a existência concreta de uma organização criminosa estruturada, estável e hierarquizada, voltada a minar a confiança social nas instituições democráticas e preparar o terreno para a ruptura institucional.
Logo no início, Cármen Lúcia recordou o decano Celso de Mello, que na AP 470 destacara a gravidade da formação de grupos delinquentes "encastelados no poder".
Citando trechos do voto, afirmou que a integridade da paz pública é incompatível com a ação de grupos que buscam controlar o Estado por métodos inconstitucionais.
Para a ministra, o conjunto probatório dos autos demonstrou que os réus atuaram de forma concatenada, consciente e permanente, na tentativa de sustentar um projeto político que não aceitava as linhas da Constituição.
A ministra ressaltou que o Direito Penal brasileiro pune a tentativa de golpe, porque a consumação implicaria o desaparecimento da própria ordem jurídica capaz de puni-la.
Citou Napoleão Bonaparte para ilustrar a diferença entre o êxito e o fracasso de empreitadas autoritárias.
Segundo a ministra, exigir a consumação do golpe para reconhecer o crime seria transformar o Direito em cúmplice do autoritarismo, pois quem vence um golpe não se submete à lei.
Cármen Lúcia também enfatizou o papel da desinformação como instrumento de corrosão democrática. Para S. Exa., os réus integraram um projeto articulado de ataques virtuais, manipulação de dados e fabricação de falsos relatórios com o objetivo de enfraquecer a confiança pública nas urnas e nas instituições.
A ministra classificou o uso de estruturas do Estado, como a ABIN, em operações paralelas de espionagem e disseminação de falsidades, como um desvio inaceitável e uma inversão da finalidade pública da inteligência nacional.
Segundo S. Exa., a aparente desordem que marcava a atuação do grupo era organização disfarçada de bagunça, mecanismo típico de quem tenta ocultar práticas ilícitas por trás do caos.
Cármen Lúcia rejeitou a alegação de atipicidade ou ausência de dolo. Para a ministra, o que se verificou foi a prática consciente e reiterada de atos destinados a abalar o Estado Democrático de Direito, com emprego de violência, grave ameaça e instrumentalização da mentira.
Por fim, acompanhou integralmente o relator e o ministro Cristiano Zanin, reconhecendo a procedência da denúncia contra seis réus pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Quanto ao réu Carlos César Moretzsohn Rocha, também entendeu pela parcial procedência, votando pela condenação apenas pelos crimes de organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado de Direito.
Voto de Flávio Dino
Ao acompanhar o relator Alexandre de Moraes, ministro Flávio Dino enfatisou o enfrentamento jurídico da desinformação e da responsabilização penal pelos crimes tentados de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Para o ministro, os fatos julgados não configuram o "golpe clássico", com tanques nas ruas, mas representam um "golpe de novo tipo", marcado pela erosão democrática, pela deslegitimação das instituições e pelo uso sistemático da mentira como método político.
O ministro fez referências teóricas sobre a natureza dos chamados "crimes de empreitada", lembrando que, nesses tipos penais, o núcleo do tipo é o verbo "tentar". Assim, não se exige resultado naturalístico para a configuração do delito, pois o crime se consuma pela execução voltada ao fim ilícito.
Dino também reforçou a definição legal de organização criminosa, afastando teses que exigiriam formalidades inexistentes. A permanência, segundo o ministro, não depende de duração longa, mas da prática reiterada de atos ilícitos com finalidade comum - como verificado nos autos.
O ponto central do voto foi o nexo causal entre a desinformação e os atos de 8 de janeiro. Dino afirmou que a tentativa de golpe não nasceu no dia 8, mas foi resultado direto da crença construída por mentiras e manipulações digitais. Citando o art. 13 do Código Penal, o ministro sustentou que há relação de causa e efeito entre as campanhas de fake news e os ataques às sedes dos três Poderes.
Ao tratar da valoração probatória, o ministro destacou que o conjunto de provas não pode ser fragmentado. Para Dino, as provas indiciárias e documentais, somadas à colaboração premiada e às mensagens eletrônicas, formam "um mosaico coerente" que comprova a existência da organização criminosa e a relação entre desinformação e tentativa de golpe.
Flávio Dino votou por acompanhar integralmente o relator nas preliminares e no mérito, reconhecendo a prática dos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado, nos termos da denúncia.
- Processo: AP 2.694