Os princípios do CDC e os direitos básicos do consumidor - O mínimo existencial: Segunda parte
quinta-feira, 6 de março de 2025
Atualizado em 5 de março de 2025 11:22
Hoje continuo no exame do previsto nos incisos XI e XII, com a segunda parte da análise do conceito de mínimo existencial:
"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;
XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;"
No artigo anterior, terminamos dizendo que, com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional.
Com efeito, o art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) dispõe, verbis:
"1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços so-ciais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social".
Posteriormente, em 1966, a ONU editou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que assegurou como norma internacional a proteção contra a fome1 e, também, a educação como um direito social básico2.
A ideia de um mínimo existencial garantido a todos os seres humanos é base de uma civilização que evolui. A realidade em todos os lugares do mundo mostra que há muito a realizar nessa direção, mas podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, os textos legais estão bem-posicionados. Trata-se, na verdade, da tentativa de garantir ao ser humano um "mínimo vital" de qualidade de vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no meio social em que vive.
Esse mínimo existencial tem, portanto, relação direta com a dignidade de pessoa humana e, também, com o próprio Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, ele está contemplado na Constituição Federal, gerando um dever ao Estado para sua implementação concreta.
No atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana3.
É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira:
"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana".
E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. E, para tratar do assunto, o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo usou a expressão "mínimo vital"4.
Diz o professor que, para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que, por sua vez, está atrelado ao caput do art. 225.
Tais normas dispõem:
"Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas.
Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade?
A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa.
Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre.
Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem.
Retorno, agora, às normas introduzidas expressamente no CDC a respeito do tema.
Como se trata de evitar o superendividamento, visando garantir o mínimo existencial, as situações concretas de cada consumidor exigirão um exame detalhado e cauteloso dos fatos que envolveram, envolvem e/ou envolverão ele e seu credor ou credores. Digo isso porque haverá situações em que, apesar de dívidas, limites existenciais, problemas pessoais e sociais etc., o consumidor somente poderá (ou poderia) modificar sua situação para melhor obtendo empréstimo. Muitas vezes, somente fazendo dívidas, a pessoa consegue sair da situação ruim em que se encontra.
É verdade que o decreto 11.150/22 cuidou do refinanciamento de dívidas e dos novos empréstimos, desde que preservado o mínimo existencial. É o que está estabelecido no art. 5º:
"A preservação ou o não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput do art. 3º não será considerado impedimento para a concessão de operação de crédito que tenha como objetivo substituir outra operação ou operações anteriormente contratadas, desde que se preste a melhorar as condições do consumidor.
§ 1º O disposto no caput se aplica à substituição das operações contratadas:
I - na mesma instituição financeira; ou
II - em outras instituições financeiras.
§ 2º As contratações em outras instituições financeiras de que trata o inciso II do § 1º ocorrerão exclusivamente por meio da sistemática da portabilidade de crédito regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional".
Mas ainda é pouco, pois existem milhares de pessoas que não conseguem sair da difícil situação financeira em que se encontram apenas e tão somente repactuando suas dívidas. Seria preciso que o Estado agisse diretamente, oferecendo ajuda e subsídios capazes, não só de preservar o mínimo existencial, como também algum tipo de incremento de renda ou novo empréstimo subsidiado.
1 Art. 11, parágrafo 2º: "§ 2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios".
2 Art. 13, parágrafo 1º: "§ 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz".
3 Consultar a respeito, o meu Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.
4 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, passim.