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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sintomas e reflexões

Eu devo confessar que não sou do tipo pessimista. Aliás, acredito que, sabendo olhar a gente consegue encontrar algo de bom. Mas, que o Brasil é um grande desafio a essa tentativa de encontro, ah! isso é mesmo. Não é de agora, claro, e infelizmente. Trata-se de uma espécie de destino insólito que tem origens muito antigas e enraizadas em nossa estrutura patrimonialista. Mas, com a implantação da democracia e das garantias de liberdades aos indivíduos, esperar-se-ia que ao menos as leis editadas fossem cumpridas por todos: Estado e pessoas. Dedico-me, neste espaço, a cuidar em larga medida do consumidor. Permito-me, no entanto, algumas digressões mais amplas, especialmente porque na sociedade capitalista o cidadão se confunde com o consumidor. Aliás, no nosso sistema, o consumidor foi elevado à figura constitucional. Nosso texto fala de pessoa física, pessoa jurídica e também de consumidor expressamente. Não quero tratar das mazelas de que tanto cuidam os meios de comunicação (e também as redes sociais). Vou partir de uma específica matéria para apontar alguns sintomas que, pelo que parece, acabam dando sustentação a tanto abuso neste nosso querido país. Li que as cantoras sertanejas Simone e Simaria tiveram seu show encerrado pela polícia, na madrugada do último sábado, 29, em Miami, na Flórida (EUA). A apresentação acontecia no River Yacht Club, quando o som foi desligado pela polícia 15 minutos antes do horário previsto para o final do show, que era 2h. O fato teria deixado o público que lotou o local revoltado e tanto as redes sociais como os principais veículos de comunicação no país deram destaque à notícia. O que aconteceu de fato? Um vizinho reclamou do barulho, pois queria exercer seu legítimo direito de dormir1. Chamou a polícia local, os policiais cumpriram sua função e puseram ordem na casa: desligaram o som! Ou seja, cumpriram a lei! Lei que garante o silêncio, como temos também entre nós2. Esse fato me fez lembrar um outro narrado por uma aluna em sala de aula. Ela havia ido aos Estados Unidos da América com os pais. Precisando fazer um telefonema, seu pai parou o veículo numa rua em frente a uma loja para poder usar um telefone público. Quando fazia a ligação, uma pessoa que trabalhava na loja saiu e, dirigindo-se à ele, disse que não poderia ficar com o veículo ali e apontou para a placa de proibido parar, que estava bem em frente. O pai fingiu que não ouviu, mas a moça passou a falar em seu ouvido, atrapalhando a ligação. Ele acabou desistindo e foi embora. Minha aluna estava indignada. Disse: "Que absurdo. O que ela tinha a ver com aquilo? Ela nem era da polícia de trânsito!". Houve certo debate na sala, pois muitos concordaram com a aluna. Mas, nem todos. Afinal, é somente a polícia que pode fazer cumprir a lei? Lembro-me de alguém ter feito uma analogia falando: "Se numa praça pública é proibido pisar no gramado e alguém pisa, os demais devem ficar quietos?" Sem querer fazer estatística a partir de situações particulares, gostaria de continuar nessa toada pensando em sintomas. A lei vale para todos ou não? E quem deve cuidar de seu cumprimento, apenas as autoridades? Vivemos num país em que se fala que há leis que pegam e leis que não pegam. Pode isso? Onde residiria o problema? Seria na educação? Não posso falar em termos estatísticos, mas há sintomas que nos fazem pensar. Meu amigo Outrem Ego vive reclamando da má educação dos vizinhos de seu prédio. "Há pessoas que simplesmente entram no elevador e se recusam a dar bom dia ou boa noite" diz ele. E ele também me contou o seguinte: foi a uma reunião na escola de sua filha. Era geral, no anfiteatro, com todos os pais. Marcada para as 19 horas, ele chegou 18:40 e havia uma fila para entrar. Numa mesa, era pedida identificação e entregue um material para leitura. A fila era grande, com umas vinte pessoas. Todos iam para o mesmo lugar e na mesma reunião. De repente, surgiu um pai, viu a fila e, devagarzinho, foi lá na frente da mesa. Ficou parado ao lado e, alguns segundos depois, furou a fila e entrou no anfiteatro. Meu amigo apenas olhou e sentiu um aperto no peito. Pensou: "Não vai dar certo... Este país está perdido". Acho que ele exagerou na generalização, mas que é mais um sintoma é. Ele disse que nem ficou tão espantado quando, naquele mesmo dia, ao comentar o assunto com um outro pai de aluno, este lhe contou algo muito, muito pior. Disse ele que, numa festa de quinze anos, na casa de um garoto, foi servida cerveja aos presentes, incluindo os adolescentes. Pode isso? Ah, isso não pode. Mas, daí o sintoma aponta para uma doença maior.Meu amigo, que viaja muito, diz que não é incomum que, na sala de espera para o embarque, com poucos lugares e muitos passageiros, alguns deles sentem numa cadeira e coloquem sua bagagem de mão na cadeira ao lado, ocupando o lugar que estava vago em detrimento dos que chegam e não têm onde sentar. Ou, no exemplo do barulho, com o que iniciei este artigo: muitos não se preocupam em ouvir som alto ou fazer festas ruidosas até tarde, incomodando os vizinhos. Há mesmo pessoas que agem como se a lei somente valesse para os outros. Algumas normas não funcionam para elas próprias, só para terceiros. Trata-se de um individualismo que gera um isolacionismo, útil para os detentores do poder. Como eu disse, não gosto de generalizar, mas são sintomas que nos fazem pensar. __________ 1 Brazil News. 2 Já escrevi mais de uma vez sobre o tema do Direito ao sossego por aqui.
quinta-feira, 6 de julho de 2017

Seres humanos existem ou não para o Estado?

O filme "Eu, Daniel Blake" tem muitas virtudes e, além de ser emocionante, humano e cativante, impressiona por uma série de fatores. Um deles chama muito a atenção: o filme passa-se nos dias atuais na Inglaterra, na cidade de Newcastle1. Assistindo ao filme, uma pergunta fica martelando: é isso mesmo? Na toda poderosa e rica Inglaterra, um cidadão britânico é tratado pelas autoridades como se nem existisse? A estupidez da burocracia dos comandos normativos e informatizados consegue mesmo fazer com que os funcionários públicos robotizados ignorem que à sua frente são pessoas reais que se apresentam? E os setores de atendimento tanto pessoal quanto via telefone são piores ainda, não só no tempo de espera, como na ausência de respostas e soluções satisfatórias. Ele, Daniel Blake, um carpinteiro de Newcastle, sofre um infarto e fica impedido de voltar ao trabalho, mas ao tentar receber seu auxílio-desemprego junto ao governo, recebe a resposta de uma funcionária incompetente de uma empresa terceirizada, de que deve voltar a trabalhar. Isso, apesar dos laudos médicos proibirem-no de fazê-lo. A película mostra um Estado cínico que finge oferecer benefícios a quem precisa e a quem tem direito por ter contribuído a vida toda como trabalhador, mas que não se importa muito com pessoas reais como Blake, que se nega a cumprir determinações burocráticas e esdrúxulas. E, pior, tudo está informatizado, mas nem todos os cidadãos sabem como se dirigir ao Estado via web, um dos problemas adicionais do personagem. Aliás, os funcionários públicos do atendimento são muito parecidos com os próprios computadores, que não conhecem regras que não sejam as que foram programadas previamente. No filme, a exceção são os funcionários que distribuem cesta básica, talvez porque comida é ainda... comida e pessoas com fome são ainda... pessoas. Mas anoto que a fila para receber a cesta era infernal... Esse roteiro lembra algum país que o leitor conhece? A Inglaterra ficou assim mesmo? Pobre por lá é também um estorvo? A parceria entre o público e o privado tem sempre que produzir coisas ruins? Em entrevista ao El Pais, o Diretor afirmou: "As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista"2. De fato, é isso que o filme nos mostra. Há, é verdade, pessoas que se incomodam, além dos funcionários públicos desumanos, mas quem vence é o sistema com seus funcionários-robôs insensíveis. Um mal do capitalismo? Da Europa? Do mundo? Deixarei o Brasil de lado. Já sabemos muito das coisas ruins que existem por aqui. Penso que as empresas podem construir relações afetivas e bons atendimentos apesar do capitalismo selvagem e agressivo e também que o Estado pode melhorar na sua relação com as pessoas. Mas isso somente ocorre se as pessoas forem tratadas como seres humanos e por seres humanos que compreendam que as interações devem ser humanas! Regras são bem-vindas, mas, como já dizia Aristóteles há cerca de 2.400 anos, como uma das características da lei é sua generalidade, ela não pode prever todas as particularidades das situações do dia a dia. O aplicador, quer seja um juiz ou um funcionário público, tem que estar atento às situações e, por isso, deve agir com bom senso. A Justiça do caso concreto (isto é, a equidade) é uma virtude importante do aplicador da lei que, com prudência, consegue encontrar um modo de sanar a lacuna natural do sistema legal abstrato. Infelizmente, talvez a estupidez seja uma característica mais comum que a compreensão e a decisão sábia, justa. E, às vezes, seria preciso tão pouco. Fico ainda na Europa. Cito um caso de menor importância, mas que ainda assim simboliza o mesmo problema, guardadas as devidas proporções: A esposa de meu amigo Outrem Ego foi admoestada por um policial de trânsito em Lisboa. Nada grave, mas conto assim mesmo. Tentava ela estacionar numa rua, mas havia passado a placa que estava na calçada e não sabia, ao certo, se podia ou não. Quando manobrava avistou um Policial de Trânsito. Abriu a janela e perguntou: "Olá, bom dia. Por favor, pode me informar se posso parar o veículo aqui?". Recebeu, de volta, uma cara feia e a seguir uma pergunta de forma estúpida: "Tu tens carta de condução?" Ela disse: "Sim". "E o que aprendeste na escola de condução? Não sabes ler placas? Venha, saia do veículo agora". Ela obedeceu. O Policial a levou alguns metros para trás e mostrou uma placa e disse rispidamente: "Vá! Diga, o que aquela placa ali quer dizer?". E apontou para a placa de proibido estacionar. Não bastava dizer que era proibido? Claro que os exemplos se multiplicam pelo mundo afora e nem preciso ilustrar com os casos brasileiros, pois o leitor sabe muito bem que os serviços públicos por aqui são muito ruins e os privados também (ainda que nos privados haja ilhas de excelência, embora a preços altos). Mas, chama a atenção que, em pleno século XXI, nós ainda não conseguimos serviços públicos e privados adequados oferecidos por pessoas educadas. A má educação é mato! E, como o filme mostrou, desculpando-me pelo trocadilho e pelo spoiler, também mata! __________ 1 Do Diretor Ken Loach e que venceu a Palma de Ouro em Cannes em 2016. 2 Conferir em Carta Capital.
Como o leitor deve ter visto, pois foi amplamente divulgado, entre os dias 8 e 13 de junho passados, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo (Procon-SP) executou uma fiscalização em restaurantes da cidade de São Paulo. Em 7 deles, as equipes encontraram produtos vencidos. Parece pouco, não é? Só que não: o número de restaurantes fiscalizados foi de apenas 23! Ora, são praticamente 30% dos avaliados. E todos restaurantes de primeira linha1. Além do problema com os produtos vencidos, outros 6 restaurantes mantinham na cozinha produtos abertos sem informação da data de abertura, infringindo determinação da vigilância sanitária2. E entre os que apresentaram problemas com a validade, 2 também foram flagrados quanto a essa mesma irregularidade. Muito bem, as autuações foram feitas e as defesas serão apresentadas. Eventuais multas somente serão impostas após o exame das defesas. Mas, como disse meu amigo Outrem Ego, quando leu as matérias publicadas nos jornais: "A julgar pelas falas dos responsáveis pelos estabelecimentos, a alternativa que nós temos é comer em casa mesmo". Ele se referia a alguns depoimentos. Cito: Ao jornal Estado, a proprietária de um dos restaurantes contestou o resultado da fiscalização dizendo: "Estou aqui há 15 anos e nunca recebi uma autuação desse gênero. Sabemos que não somos perfeitos, que há falhas, que tudo deveria estar etiquetado, mas uma coisa muito distinta é dizer que servíamos comida imprópria para consumo. Era uma comida que daria para o meu filho, sem dúvidas"3. E continuou: "Posso falar com muita segurança que zelamos pelo que servimos. A fiscalização coloca em jogo todo o cuidado e carinho que temos", completou. Ela se disse "entristecida" com a operação. "Como cidadã, me entristece ver o meu dinheiro aplicado nisso, sabendo que há outros problemas mais graves para serem tratados". Outros estabelecimentos deram algumas desculpas, mas admitiram em parte as falhas. E um deles também disse: "os produtos fora da validade encontrados não seriam preparados para os clientes. Eles tinham sido deixados por um representante que queria apresentar seu produto e foram doados, ainda dentro do prazo de validade, aos funcionários, que se esqueceram de levar para casa. Temos uma nutricionista que visita a casa diariamente e preza pela qualidade de todos os ingredientes servidos aos nossos clientes4." Muito bem, caro leitor, a pergunta que faço é a seguinte: como consumidores que somos e que nos vemos obrigados a almoçar, jantar, lanchar fora de casa a trabalho ou lazer, sozinhos ou acompanhados de amigos e familiares (o que inclui idosos e crianças), podemos ficar tranquilos em relação à qualidade dos produtos que ingerimos? Como também disse meu amigo: "Minha mulher e eu tomamos um cuidado enorme com produtos guardados em casa e só os consumimos e os entregamos a nossos filhos se estiverem dentro do prazo de validade. Aliás, não é exatamente para isso que servem os prazos de validade?" Sem dúvida. Mas, o caso mostra que é bem capaz que estejamos pagando mais caro para ingerir produtos vencidos. Esse assunto sempre vem à tona quando envolve esse tipo de fiscalização. Porém, o que realmente preocupa e que eu gostaria de colocar, é o dos números. São Paulo tem milhares de restaurantes. Não sei se a amostragem feita a partir da fiscalização do Procon serve como elemento estatístico, mas pode dar uma ideia. Se 30% dos restaurantes estão irregulares, então, a quantidade de produtos que podem causar mal à saúde vendidos diariamente apenas na capital paulista é extraordinária. Sem qualquer pretensão numérica e apenas fazendo um jogo, pode-se dizer que um consumidor comum acaba ingerindo produtos fora do prazo de validade em 3 de cada 10 restaurantes visitados. É muito! Caberia não só ao Procon, mas também aos demais órgãos de vigilância sanitária exercer a fiscalização com muito mais constância para que possamos saber quais os estabelecimentos confiáveis. O que assusta a mim como consumidor e que, penso, deve assustar o leitor, é o fato irretorquível de que existem restaurantes que nos entregam produtos deteriorados. Isso é inadmissível! Não há qualquer desculpa possível! E, por fim, para ficar com uma posição que eu entendo ser fundamental: poder-se-ia fiscalizar todos para punir os infratores e também para tornar público o nome dos estabelecimentos que cumprem todas as regras de higiene, segurança, e de guarda e manuseio dos alimentos. Seria um bom quadro para examinarmos via internet antes de marcarmos para jantar com nossos amigos e familiares5. __________ 1 No site do Procon há detalhes do trabalho realizado. 2 Ver nota anterior e a seguinte reportagem. 3 Ver nota anterior. 4 Ver nota anterior. 5 No site do Procon (ver nota 1 acima) estão os nomes de todos os estabelecimentos visitados, inclusive os aprovados. Falta, como disse, visitar muitos mais!
quinta-feira, 8 de junho de 2017

O automóvel é um produto fora da lei?

Vivemos um momento de conflitos e indefinições no que diz respeito às garantias e direitos estabelecidos não só no Brasil, como em vários outros países. É uma época em que as opiniões estão em toda parte, divididas ou unificadas, muitas delas contraditórias em relação às outras, embora tratem do mesmo objeto. Bem, não serei eu a engrossar esse caldo um pouco indigesto. Mas, gostaria de retornar a um tema que gera um certo embate e que tem relação direta com mercado de consumo e leis de proteção ao consumidor. Isso, naturalmente, como um convite à reflexão de um assunto um pouco fora da política (falo "um pouco fora" porque numa sociedade democrática falar de leis, em algum sentido, é também falar de política). Cuidarei dos veículos automotores e do excesso de velocidade e o farei pela via do direito do consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal: levarei em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação. Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade etc., como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso. A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para tráfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (Grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 Km por hora e mais). São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi? (Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos. mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infrigirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!). Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade. No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados. Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos: "§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação." "§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas: a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60km/hora ou 70km/hora etc e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando a 100km/hora e causa acidente; b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120km/hora, o motorista trafega a 150km/hora, 180km/hora ou mais. Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente? Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, a 100km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam. O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado, evidentemente) trafega a mais de 120km/hora, a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos? Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente. Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas. São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.
Meu amigo Outrem Ego trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, no início da década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo; também de massa, portanto, e no qual se incluem dívidas de cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Das várias coisas que ele contou, uma sobre cartões de crédito é bastante interessante. "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente, pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc." Meu amigo prosseguiu: "O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto'." Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos de dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos de colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura. Estaremos no topo da pirâmide." É isso! Atualmente, já se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir mais 4, 5, 6 ou mais cartões. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos; permite compra sem dinheiro, enquanto este está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de dinheiro etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques, etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões são muito elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra e não de financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições à prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
Está difícil tratar de qualquer assunto que não seja algo ligado a delações, a manifestações, à corrupção, à crise política enfim. Mas, apesar de tudo, as pessoas continuam a viver suas vidas com as dificuldades inerentes e com mais ou menos perspectivas de que as coisas melhorem. Como nesses últimos dois dias, vi que está sendo anunciado, por publicidade massiva, que aproxima-se mais um "Feirão da Casa Própria" promovido pela Caixa Econômica Federal (CEF), resolvi voltar a esse assunto, que já tive oportunidade de aqui tratar. Também aqui nesta coluna, afirmei que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem: a esperança de, passando um creme, ficar com a pele mais bonita ou mais saudável; de, usando um novo xampu, ficar com os cabelos mais sedosos; a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita ou de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; pagar prêmios de seguros para garantir o próprio futuro e, também, o da família; poupar de forma adequada para conseguir chegar nesse futuro e ter tempo ainda de gozar a vida etc etc. O mercado oferece o futuro de uma vida melhor. E, sabemos que o consumidor tem pressa. Aliás, foi o próprio mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a prazo, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem que entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel -- criadas e continuam pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável... Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. O consumidor, desprotegido, é transparente, fácil presa desse tipo de iniciativa. Por ocasião de uma dessas promoções de venda de imóveis, meu amigo Outrem disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu preciso comprar uma gravata e vou te comprar uma bolsa. Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". É mesmo desanimador. O chamado "Feirão da Casa Própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF gasta milhões de reais em anúncios espalhados na mídia, num tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, é fato conhecido que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, feira livre, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, esse tipo de operação rouba mercado dos advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista que, como já disse, deve intervir em contratos de compra e venda desse tipo. É uma pena. O capitalismo é selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor - vítima frágil do modelo - jogado a própria sorte, apresenta-se cada vez mais desesperado, correndo atrás do futuro de bem-estar decorrente da aquisição de produtos e serviços que não chega (quero dizer, pelo menos não chega para muitos milhões de consumidores).
quinta-feira, 18 de maio de 2017

O WhatsApp e o Código de Defesa do Consumidor

No início deste mês de maio, o serviço do WhatsApp ficou fora do ar por bastante tempo e em vários lugares do mundo, gerando pânico de abandono e sentimento de falta de alternativa. Por causa da repercussão, foram publicadas algumas matérias cuidando de eventuais prejuízos, inclusive com opiniões jurídicas a respeito do tema. Li que se aplicariam ao caso as regras do Código de Defesa do Consumidor. Mas, como se diz na linguagem whatsappiana, sqn. Explico. Há muito tempo que se sabe que os serviços de telefonia são essenciais. E, claramente, o serviço do WhatsApp também se tornou um. E com uma vantagem: é de graça! E o fato de ser gratuito garantiu que a comunicação possa ser feita por milhões de pessoas que jamais poderiam fazê-lo pelo sistema tradicional de telefonia paga. Trata-se de um serviço privado com benefícios públicos que nunca o Estado propiciou. É pura e tão somente algo positivo, útil e essencial. A questão colocada diz respeito à hipótese de incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor na relação existente entre os usuários e o serviço. Como antecipei acima, alguns correram para afirmar a aplicação, o que geraria certos direitos, especialmente por causa da responsabilidade civil prevista na lei consumerista, que é objetiva (independe de apuração de culpa, portanto). Mas, não é o que está na lei. Com efeito, o § 2º do art. 3º do CDC, ao regular os serviços, assim dispõe: "Art. 3º ... § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." (grifei) Os serviços de caráter trabalhista estão excluídos e também os sem remuneração. Temos, pois, que compreender o sentido de "remuneração" lá inserido, o que exige alguns cuidados. Antes de mais nada, consigne-se que praticamente nada é gratuito no mercado de consumo. Tudo tem, na pior das hipóteses, um custo1, e este acaba, direta ou indiretamente, sendo repassado ao consumidor. Assim, se, por exemplo, um restaurante não cobra pelo cafezinho, por certo seu custo já está embutido no preço cobrado pelos demais produtos. Logo, quando a lei fala em "remuneração" não está necessariamente se referindo ao preço cobrado. Deve-se entender o aspecto "remuneração" no sentido estrito de qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou indireto. É preciso algum tipo de organização para entender o alcance da norma. Para estar diante de um serviço prestado sem remuneração, será necessário que, de fato, o prestador do serviço não tenha, de maneira alguma, se ressarcido de seus custos diretamente do consumidor ou que, em função da natureza da prestação do serviço, não tenha, nem indiretamente, cobrado o preço ou coberto os custos. Por exemplo, o médico que atenda uma pessoa que está passando mal na rua e nada cobre por isso, enquadra-se na hipótese legal de não recebimento de remuneração. Já o estacionamento de um shopping, no qual não se cobre pela guarda do veículo, disfarça o custo, que é cobrado de forma embutida e indireta no preço das mercadorias. Por isso é que se pode e se deve classificar remuneração como repasse de custos direta ou indiretamente cobrados. No que respeita à cobrança indireta, inclusive, destaque-se que ela pode nem estar ligada ao consumidor beneficiário da suposta "gratuidade": no caso do cafezinho grátis, pode-se entender que seu custo está embutido na refeição haurida pelo próprio consumidor que dele se beneficiou, mas no do estacionamento grátis no shopping, o beneficiário pode não adquirir qualquer produto e, ainda assim, tem-se que falar em custo. Neste caso, é outro consumidor que paga, ou melhor, são todos os outros consumidores que compram algo que pagam. Vamos ampliar o exemplo do médico. Suponhamos que se trate de uma consulta gratuita e de atendimento numa clínica privada pertencente ao médico. Certamente haverá custos envolvidos, mas desde que nada seja cobrado direta ou indiretamente do consumidor atendido, o serviço será puro sem remuneração. É assim, num outro exemplo, que sempre funcionaram os serviços da tevê aberta. O consumidor nada paga para assistir e elas se remuneram pela publicidade (aliás, se remuneram muito bem). Mas, o serviço é direta e indiretamente gratuito. É exatamente a hipótese do serviço de WhatsApp: ele é diretamente gratuito e também indiretamente, porque não é pago por nenhum usuário. Ainda que, eventualmente, o serviço possa aferir alguma renda com terceiros por intermédio de publicidade, continuará sendo gratuito para o usuário. Penso, pois, que se trata de serviço sem remuneração. Logo, não incide o CDC na relação estabelecida. __________ 1 O mínimo de custo seria ao menos a perda do tempo ou de oportunidade.
quinta-feira, 4 de maio de 2017

Pós-verdade, democracia e consumo

Todo ano, a Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford, na Inglaterra, elege uma palavra como a principal do ano para a língua inglesa. No ano passado, foi escolhido o substantivo "pós-verdade" ("post-truth"). E a própria instituição definiu o termo como um substantivo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. Notícias falsas, boatos e mentiras sempre existiram, mas, em tempos de redes sociais, a proliferação ganhou contornos extraordinários. De todo modo, esse fenômeno da pós-verdade aponta um aspecto humano específico: as pessoas acreditam naquilo em que querem acreditar. Deve ter sido sempre assim, mas agora veio à tona: a opinião é mais importante que os fatos. Não refiro aquele tipo de opinião dirigida, mal-intencionada, falsificadora e manipuladora. Esta, apesar de falsa, é, se posso dizer, consciente. O problema é a opinião "sincera" que contradiz a realidade. Claro que sempre se pode argumentar com Nietzche, afirmando que tanto faz porque "não há fatos, apenas interpretações ou versões". A questão é simples: as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Para o consumidor, isso é um problema e gera ilusões, e para o cidadão também. Tomemos alguns fatos recentes. No dia 28, houve ou não greve geral? Greve houve, mas geral? Certamente, o leitor encontrou opiniões nos dois sentidos. E houve vandalismo? Bem, as imagens parecem ter deixado claro que sim. Vimos barricadas, pneus queimados, trancamento de vias. Ou não? É, eu sei que em matéria de política, fica parecido com as paixões do futebol: a mesma bola que um torcedor viu que entrou no gol, o do time adversário tem certeza que não passou da linha... E nas questões de consumo? Aqui o campo é muito amplo. Vejamos a recente decisão judicial que liberou as companhias aéreas para a cobrança de bagagens. Pelas regras até então vigentes, os passageiros tinham o direito de despachar itens com até 23 quilos em voos nacionais e dois volumes de 32 quilos cada um em viagens internacionais sem pagar taxas extras. Segundo a ANAC, a medida de liberação do peso das bagagens gerará concorrência entre as companhias áreas, barateando o preço das passagens. Quem acredita? Pode até ser, mas para tanto é necessário que haja concorrência. Quando mais de uma empresa opera o mesmo trajeto, é possível, mas somente se a demanda for abaixo da oferta. O pior é que, em vários trajetos nacionais e internacionais, os voos são oferecidos por apenas uma empresa. Ou seja: não há concorrência! Por que ela iria baixar o preço mesmo?1 E a agência reguladora disse que a medida é importante porque é assim que funciona nos demais países. É mesmo? Vou repetir o que já disse mais de uma vez: não é porque algo é praticado em outros países que deve ser aqui implantado. Nem sempre é o melhor para o consumidor. E este é um bom exemplo disso. Nosso modelo é favorável aos viajantes. Mas, troco de assunto ainda no campo do capitalismo: há anúncios enganosos? Sem dúvida. Há ofertas sedutoras e que induzem ao consumo? Também. Do ponto de vista legal, o primeiro é diferente do segundo. Consumidor enganado pode desfazer o negócio, pedir indenização, etc.. Mas, aquele que apenas aceita uma oferta sedutora, não. Este está mais para o exercício de uma pós-verdade que de uma manipulação. Lembro um exemplo conhecido: o da oferta de crédito facilitado. O consumidor se endivida por conta própria. Compra produtos de que não precisa. Gasta em supérfluos. Faz porque quer. E acredita no que quer acreditar. (Estou, naturalmente, excluindo os casos de necessidade, nos quais o consumidor é levado ao endividamento por situações extremas: doenças, acidentes, desemprego, etc.) E, claro, nas redes sociais há de tudo. A partir delas, muitas pessoas fazem suas escolhas não necessariamente porque o que ouvem, leem ou assistem traz alguma verdade objetiva estampada, mas porque dentro delas bate com um sentimento ou uma ideia preconcebida. Se a opinião já está formada, o que está fora no mundo dos fatos deve se amoldar à essa opinião e não o contrário. É esse o mundo da pós-verdade, repleto de subjetivismos que pode ser perigoso tanto individual quanto coletivamente. __________ 1 No meu artigo de 16/3/2017 dou vários exemplos de trajetos operados por uma única empresa aérea.
quinta-feira, 27 de abril de 2017

Cobrança, abuso e liberdade

Meu amigo Outrem Ego contou a seguinte história: João da Silva perdeu o emprego e, com o valor da indenização e do FGTS, tentou empreender. Mas não deu certo. Seu pequeno negócio naufragou e ele ainda ficou com dívidas em dois bancos. Chateado, andava à procura de novo emprego enquanto sofria o assédio dos cobradores. Seu irmão, José da Silva, um executivo bem colocado, tentava arrumar-lhe alguma coisa. Porém, João andava tão cabisbaixo, que bastava chegar nas entrevistas para ser rejeitado. Visando dar algum ânimo ao irmão, José propôs fazerem os dois juntos uma viagem ao exterior por alguns dias. Iriam à Portugal visitar parentes. Quem sabe, isso fizesse bem. No entanto, João não podia ir, pois seu passaporte fora tomado pela Justiça a pedido do banco credor. Perguntou meu amigo: "É mesmo possível isto? Qual o crime que ele cometeu?" *** Antes de cuidar do assunto trazido por meu amigo, como vou tratar de devedores, quero, desde logo, deixar consignado que existe mais de um tipo deles. Há os atingidos pelo desemprego; há os iludidos pelas ofertas do sistema financeiro capitalista; há os que padecem das finanças por problemas de saúde e doença; há os simplesmente desorganizados, enfim, muitos tipos podem ser designados. E, claro, há os caloteiros recalcitrantes, os picaretas armadores de esquemas, etc. Para fins da análise deste artigo, importa saber que o devedor não é considerado criminoso apenas pelo fato de sê-lo. Convido, pois, o leitor a esta reflexão. Uma das boas novidades trazidas para o sistema jurídico nacional pelo Código de Defesa do Consumidor, com vigência a partir de 11 de março de 1991, foi o da proibição da cobrança abusiva, inclusive, tipificando-a como crime1. As histórias de abusos eram tantas que sempre se usa o exemplo da banda de música tocando na porta de um devedor para constrange-lo. Foi, sem dúvida, um avanço democrático, que já havia começado em 1990, com a edição da lei 8009/90, que fixou a impenhorabilidade do bem de família2. E o novo CPC traz uma lista de bens impenhoráveis, ainda que com algumas modificações e exceções, que não cabe aqui comentar, mas que deixa patente o elemento de garantias que o sistema oferece ao devedor. Não se pode penhorar, por exemplo, o salário até o montante de 50 salários mínimos mensais, o dinheiro depositado na poupança até 40 salários mínimos, os instrumentos necessários ao exercício da profissão etc. (Conforme estabelecido nos arts. 832 e 833 do NCPC). Um ponto de destaque: ser devedor não é ser criminoso. Aliás, em tempos de capitalismo massificado com crédito fácil para compras nem sempre necessárias, tornar-se devedor é lugar comum. Já que toquei no assunto do crime, é sempre bom colocar para que não se esqueça que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXIX). Trago esse tema e essas normas em função do questionamento de meu amigo e também porque, em mais de uma decisão judicial, foi aplicada uma pena não prevista expressamente em lei ao devedor. A mais recente, foi indicada neste rotativo Migalhas3: a pedido do credor, o magistrado determinou a apreensão do passaporte do devedor, para evitar que ele possa viajar ao exterior. Repito: trata-se da aplicação de uma pena não prevista em lei. Não há no sistema jurídico nacional a hipótese de aplicação de ofício pelo Juiz de sanções punitivas atípicas. E, do mesmo modo, se a pretensão era coercitiva, faltou proporcionalidade e razoabilidade. Veja-se que na mesma decisão, está escrito que "não se trata de impedir a pessoa de ir e vir, porque esse direito persiste, mas de impedir a pessoa de viajar ao exterior até que efetue o pagamento da dívida..." Ora, há impedimento sim, pois a pessoa atingida fica prisioneira do território brasileiro. E se um amigo, um filho, uma mãe, um pai, resolvem levar esse devedor para o exterior, custeando a viagem, não podem? E mais: e se esse devedor, que tentou a vida no Brasil, mas não deu certo, tanto que se afundou em dívidas, quiser tentar uma nova vida num país estrangeiro? Não pode? Aliás, como fizeram centenas de imigrantes que aqui chegaram. Qual será a saída para esse devedor? Fugir e pedir asilo político? A lei, certamente, assegura que se possa tomar o dinheiro e alguns bens do devedor para que a dívida seja liquidada, mas mesmo quanto aos bens há limites, como visto acima. Ora, tolher a liberdade do devedor é muito grave. Numa sociedade democrática, a liberdade é um dos maiores bens que o cidadão possui. Para que ela possa ser suprimida, somente por expressa e típica definição legal. Ademais, se a lei garante que nem mesmo certos bens (bem de família, por exemplo,) e mesmo valores monetários (investimento na poupança, salário) podem ser tomados pelo Poder Judiciário para o pagamento de dívidas, por muito mais força de razão não se pode tolher a liberdade do devedor, nem lhe retirar certos direitos constitucionais e legais, como o de possuir passaporte. Pode-se até criticar o legislador e o sistema jurídico, dizendo que ele protege demais o devedor, mas não é o magistrado quem pode decidir sobre isto. Cabe apenas ao legislador. E, como muito bem disse o desembargador Marcos Ramos, da 30ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao anular uma decisão que determinava a apreensão do passaporte e da carteira de habilitação de um devedor: "Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal, que em seu art. 5º, XV, consagra o direito de ir e vir. Ademais, o art. 8º, do CPC/2015, também preceitua que ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz não atentará apenas para a eficiência do processo, mas também aos fins sociais e às exigências do bem comum, devendo ainda resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade. Por tais motivos, concedo a liminar pleiteada"4. Será que voltaremos a tempos ancestrais, no qual o devedor, pagava com seu trabalho duas dívidas? Ele tornar-se-ia escravo de seu credor? Como disse meu amigo: "Desse modo, retroagiríamos para o período em que a cobrança era abusiva, chantagista e violadora da vida pessoal dos devedores e de forma piorada. É possível imaginar as cartas e avisos de cobrança: 'Pague sua dívida, sob pena de negativação nos órgãos de proteção ao crédito e tomada de medidas judiciais com a apreensão de seu passaporte e sua carteira de habilitação'". Claro que, para tanto, ter-se-ia que mudar a Constituição Federal e a lei ordinária. Mas, que essas decisões ainda que isoladas assustam, isso sim. __________ 1 Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa. 2 Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. 3 Justiça determina apreensão de passaporte em razão de dívida não quitada. 4 Habeas Corpus Processo 2183713-85.2016.8.26.0000 Relator: DES. MARCOS RAMOS, decisão de 9-9-2016.
Nunca se voou tanto. Nunca os consumidores deixaram tantos milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos distribuídos para os acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão e mais benefícios aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados... Opa! É melhor parar por aqui porque na frase anterior nem tudo é verdadeiro, isto é, o último trecho é falso. Por aqui parece que a ANAC é uma das que acredita que o último trecho é verdadeiro... Com tanto dinheiro ganho seria de esperar mais benefícios distribuídos aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados. Infelizmente, por incrível que pareça, está acontecendo o oposto: quanto mais ganham as cias aéreas piores ficam os seus serviços. É o novo sistema do século XXI: o capitalismo de ponta cabeça. Recentemente, graças a uma filmagem feita por um passageiro, o mundo todo pode ver como age uma dessas empresas aéreas, no episódio protagonizado pelos representantes da United Airlines com a ajuda da polícia norte-americana. Noticiou-se que, por causa de overbooking, os funcionários da United sortearam alguns passageiros que deveriam deixar a aeronave (não deve ser a verdade, pois os passageiros já estavam acomodados na aeronave; o problema de overbooking se dá no embarque...). Muito bem. Um dos sorteados, um médico, recusou-se a sair, dizendo que precisava estar na cidade de Louisville na manhã do dia seguinte para fazer atendimento em um hospital1. Arrastado por policiais e retirado à força, o homem se feriu e ficou com o rosto ensanguentado. (Assista ao vídeo aqui). Após o incidente, em nota, o CEO da United Airlines, Oscar Munoz, pediu desculpas dizendo o seguinte: "Esse é um evento entristecedor para nós aqui na United. Eu peço desculpas por ter que reacomodar esses clientes. Nosso time está se movendo com senso de urgência para trabalhar com as autoridades e conduzir nossa própria avaliação sobre o que ocorreu. Também estamos contatando esse passageiro para falar diretamente com ele e encaminhar e resolver essa situação2." Acontece que a nota era falsa. Num e-mail interno vazado para a imprensa ele elogia a atitude dos funcionários, dizendo que estes agiram de maneira correta3. Daí, o CEO trouxe a público um novo pedido de desculpas. Eu não vou gastar este espaço nem tomar o tempo do leitor para referir essa segunda nota, que não tem nenhuma credibilidade. O evento com o passageiro é terrível, mas o vazamento do e-mail interno é mais ainda, pois deixa claro como as coisas se passam em empresas que não respeitam seus clientes, o que acontece, geralmente, nos casos em que elas não precisam respeitar. O sistema capitalista mundial (quero dizer, ocidental) até fins dos anos oitenta do século passado se orgulhava do primor com que tratava seus clientes. As companhias aéreas davam bons exemplos, assim como operadoras de cartões de crédito e bancos e várias outras grandes empresas dos setores massificados. Havia competição séria e luta severa por fatias do mercado consumidor. Por isso, parte do lucro - às vezes grande parte - era investido na busca da satisfação dos clientes não só para o atingimento da fidelização como para a conquista dos novos. Os consumidores eram bem tratados e até mesmo bajulados. Com o surgimento das junções de empresas, fusões, aquisições etc. criou-se oligopólios e enormes grupos que atuam em conjunto dominando todo ou quase todo o mercado de sua área de atuação. Além disso, com a administração dessas gigantescas corporações cada vez mais "financeira" que produtiva, a preocupação com a qualidade se esvaiu. O capitalismo mudou: o consumidor se tornou apenas um número (ou um nome num painel, num banco de dados ou algo semelhante) que pode gerar um certa receita monetária, mas cujos direitos, interesses e necessidades não têm tanta importância. Os consumidores são tratados como marionetes, que hipnotizados, devem obedecer ao comando do marketing e da publicidade. É feito de tudo para que eles acreditem nas fantasias veiculadas. Anúncios publicitários mentem, gerentes de bancos mentem, recepcionistas de empresas de planos de saúde mentem, atendentes em aeroportos mentem etc. (uma longa lista). É fato que as mentiras, às vezes, fazem parte do sistema engendrado pelos chefes e patrões, mas nem por isso deixam de ser mentiras e muita conversa pra boi dormir. O overbooking e todos os benefícios excluídos do atual serviço prestado pelas companhias aéreas são uma clara demonstração desse novo modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Os atuais administradores não estão preocupados com seus clientes, especialmente nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha. A qualidade cai, mas gera alguma economia financeira que, na escala, representa maior faturamento e com isso surge o desprezo ao consumidor. A esperança são os empresários que contrários à esse modelo, passaram a respeitar os consumidores. Mas em alguns setores, em que não há competitividade - como se dá em parte no setor aéreo - fica mais difícil uma mudança. __________ 1 Passageiro é retirado à força de voo com overbooking. 2 Passageiro é retirado à força de voo com overbooking. 3 Após despencar na bolsa, CEO da United se desculpa novamente.
Ésquilo, o famoso dramaturgo da Grécia antiga, disse que "na guerra, a verdade é a primeira vítima". Adaptando a frase para a sociedade de consumo, podemos dizer que em matéria de comunicação, quando surge um problema, a informação verdadeira é a primeira, a segunda e todas as demais vítimas. Adaptando melhor ainda, podemos ver que, de fato, a vítima é o consumidor, que não só não sabe bem o que está acontecendo como fica confuso sobre o que fazer, como agir, etc. Peguemos o setor aéreo (que, ao contrário do que pretende a ANAC, não precisa de proteção, pois sabe muito bem o que quer e como fazer). Basta surgir um atraso, para que a desinformação grasse no aeroporto ou, simplesmente, não seja fornecida. Claro que, se surgir um pane aérea em pleno voo e o piloto tiver que fazer um pouso não programado, nem sempre vale a pena contar tudo para os passageiros. Mas, neste caso, a situação de segurança assim o exige. Já em solo, para atraso e cancelamentos, não há qualquer motivo para não se contar a verdade. Não é incomum, aliás, atrasos propositais para cancelamento de voos com poucos passageiros e seu agrupamento em outro voo da mesma companhia aérea em outro horário. Aqui, naturalmente, a verdade já morreu. Vejamos agora a questão da carne, recentemente tornada um escândalo de proporções mundiais a partir do Brasil. O dr. Drauzio Varella assim escreveu: "'Doutor, o senhor viu que esses caras colocam papelão e ácido ascórbico na salsicha', disse o taxista que me trouxe de Cumbica. Há quatro dias, fora do país, eu estava a par do teor das declarações feitas por um delegado da Polícia Federal, mas desconhecia as repercussões populares da denúncia. Consegui explicar que o ácido ascórbico não era uma substância corrosiva, mas a prosaica vitamina C. Quanto ao papelão nos embutidos, minha descrença não foi suficiente para convencê-lo". E, realmente, um alarme por se ter falado que havia vitamina C nas carnes? E quanto ao papelão? Circula pela internet um vídeo que mostra um consumidor abrindo um embutido de carne e dentro dele encontra uma embalagem do próprio produto triturado junto. Trata-se de um produto de uma grande indústria. Pergunto, isso pode acontecer? Poder, pode, mas em produções industriais desse nível a hipótese é de falha rara e excepcional do maquinário ou sabotagem (às vezes de algum empregado). É evidente que o produtor jamais faria algo assim de propósito. É vício típico do produto feito em escala industrial, massificado e reproduzido na série. Não é à toa que o Código de Defesa do Consumidor diz que, nesses casos, a responsabilidade do fabricante é objetiva. Quanto à verdade da informação sobre o risco à saúde, retorno ao artigo do dr. Drauzio Varella. Diz ele: "No caso da carne, a queda imediata nas vendas aconteceu sem que ninguém se dignasse a fazer a pergunta mais elementar numa situação como essa: 'Alguém ficou doente?' 'Alguém engasgou com o papelão ou teve o esôfago corroído pelo ácido ascórbico?'' Se uma pessoa ao menos tivesse se intoxicado ou perdido a vida, a Polícia Federal teria mantido em sigilo a investigação por dois anos, sem agir para evitar outras vítimas?"2 Paradoxalmente, numa época em que a informação brota de forma viral por todos os poros da comunicação (mais digital que analógica), está difícil identificar a informação que é verdadeira. E o consumidor, ressabiado, muitas vezes fica paralisado esperando o tempo passar e sem saber o que fazer. __________  1 Carne enfraquecida. 2 Mesmo local.
quinta-feira, 30 de março de 2017

À procura da inteligência

Meu amigo Outrem Ego propôs que pensássemos se havia mesmo inteligência nesta nossa sociedade capitalista e democrática. Ele disse: "Com tanto desenvolvimento das comunicações e com tanto avanço na tecnologia de ponta, que conectou bilhões de pessoas, nós acabamos por acreditar que há alguma inteligência por aí. Mas há mesmo? Para o mal, parece que sim". Bem, o que posso dizer é que, por aquilo que eu penso, a resposta depende do ponto de vista. Nenhum de nós parece inteligente o suficiente para compreender tudo o que se passa. Porém, isso não impede que pensemos em alguns aspectos. Vejamos a democracia. Em países com democracias consolidadas de forma secular, o último ano deu exemplos de equívocos na sua formatação e na maneira da população participar. Peguemos o Brexit. Tendo em vista a catástrofe que foi o resultado do referendo/plebiscito1 no Reino Unido, que resultou na saída da União Europeia, pergunto: com tanta gente cuidando do mesmo assunto, com tantos pensadores ingleses, escoceses, europeus, etc., como é que foram organizar um plebiscito, cujo resultado seria tão importante, com a possibilidade de que a decisão pudesse se dar com tão pequena margem de votos e sem levar em consideração a participação percentual dos votantes em relação à população? E ainda por cima num turno só? Dos 46,5 milhões de eleitores, apenas compareceram às urnas 72,2% (33,5 milhões). Desses, 51,9% votaram pela saída do bloco europeu e 48,1% pela permanência. Feitas as contas, o resultado é que apenas 17,4 milhões de eleitores ou seja, 37,47% do total, votaram a favor da saída. "Ampla" minoria, portanto (e ainda por cima, segundo pesquisas, foram os mais velhos que votaram, deixando essa herança para os mais jovens). Nos Estados Unidos da América do Norte, Donald Trump foi eleito, mas quem recebeu mais votos foi Hillary Clinton. A candidata democrata teve mais de 2 milhões de votos acima do que o candidato republicano: 64,2 milhões contra 62,22. Isso tudo é esquisito mesmo. Temos aviões supersônicos, espaçonaves que frequentam planetas distantes, bombas nucleares espetaculares (e perigosíssimas), mas não conseguimos combater simples mosquitos que picam e matam as pessoas (Sei que não é tão fácil combater esses "bichinhos". É que estou apresentando pontos de vista). Como disse meu amigo: "Os automóveis podem rodar facilmente a 200, 250, 300 km por hora. Mas, é proibido andar a mais de 120". Sim, são os paradoxos colocados ao consumidor. Houve avanços. Você leitor, deve lembrar que, antigamente, era permitido fumar dentro dos aviões. Mas, claro, apenas em parte das poltronas. Por exemplo, da de número 20 até a número 40. Nas demais, não podia. Só esqueciam de dizer para a fumaça que ela ficasse alojada nos mesmos compartimentos... Era o mesmo em restaurantes... E o irmão de meu amigo, que é engenheiro, teve sua carteira de habilitação suspensa por ter furado o rodízio algumas vezes no período de um ano. Chateado, cumpriu o ritual exigido para poder dirigir novamente. Quando foi ao posto do Detran, gostou do que viu: tudo se deu de forma organizada e rápida. Mas, não é que o funcionário fez com que ele escrevesse um texto a mão, a partir de um ditado? Ele perguntou: "Para quê isso?". "Para provar que o senhor saber ler e escrever". "Mas eu sou engenheiro. E, na verdade, tenho carteira de habilitação há 20 anos". Não adiantou, teve que escrever o ditado. Paradoxos, incoerência, falta de bom senso. Se olharmos bem, encontraremos muitos exemplos em todo lado. É um bom exercício de observação. Com tanta coisa ruim pelo mundo afora - e, claro, muito piores do que esses aspectos acima -, realmente, podemos ficar em dúvida sobre a inteligência humana. __________ 1 Estou usando os termos de forma indiscriminada, embora haja alguma diferença entre eles: como se sabe, o plebiscito é utilizado para consulta sobre tema que esteja numa fase anterior à elaboração de alguma lei proposta pelo governo ou parlamento. Referendo é uma consulta popular, no qual a população se manifesta sobre uma lei ou ato constituído, ou seja, é uma votação convocada para ratificar ou rejeitar o que já existe. 2 EUA: Contagem de votos fechada. Hillary Clinton com mais dois milhões que Trump.
quinta-feira, 16 de março de 2017

O peso do consumidor e as estripulias da ANAC

Meu amigo Outrem Ego veio com esta: "Do jeito como as coisas estão correndo, brevemente este será o diálogo que se travará num balcão de companhia aérea para o despacho de embarque: - Bom dia! Por favor, seu ticket...Vai viajar para onde? - Eu e minha esposa vamos para Paris. Eis nossos tickets. - Muito bem, Sr. João, pode subir na balança... Ah, o senhor pesa 90 quilos. Então, não tem direito a franquia de bagagem... Agora, a senhora dona Clara, pode subir. Sim, 60 quilos. A senhora tem direito a uma mala com vinte quilos. Dona Clara, então, virou-se para o marido e falou: - Viu João, como vale a pena fazer regime!" Meu amigo propôs uma discussão. Disse: "Uma família viajando junta, digamos, um casal e dois adolescentes com 13 e 14 anos, pesa (em regra) muito menos que quatro adultos, mas paga o mesmo preço das passagens. Se é o peso o que importa, deveria pagar menos ou ter mais franquia de quilos nas bagagens". Parece justo, mas é deste modo que as pessoas devem ser consideradas? Muitas empresas - aquelas que prestam um mau atendimento - já consideram o consumidor apenas um número. Com esse andar da carruagem, o consumidor será considerado literalmente um peso (E para aquelas outras empresas que prestam um péssimo atendimento no pós-venda, o consumidor é considerado um estorvo!). Agora o fato da odiosa discriminação: a própria natureza determinaria quanto vale uma pessoa dependendo da altura, do peso dos ossos, da condição de saúde etc.! E não é que a ANAC conseguiu estragar algo que havia de bom no mercado brasileiro relativamente às bagagens nas viagens aéreas. Vou repetir o que já disse mais de uma vez: não é porque algo é praticado em outros países que deve ser aqui implantado. Nem sempre é o melhor para o consumidor. E este é um bom exemplo disso. Nosso modelo é favorável aos viajantes. Pelas regras vigentes até o dia 14 deste mês de março, os passageiros têm o direito de despachar itens com até 23 quilos em voos nacionais e dois volumes de 32 quilos cada um em viagens internacionais sem pagar taxas extras1. Segundo a agência reguladora, a medida de liberação do peso das bagagens gerará concorrência entre as companhias áreas, barateando o preço das passagens. Pode ser, mas para tanto é necessário que haja concorrência. Quando mais de uma empresa opera o mesmo trajeto, é possível, mas somente se a demanda for abaixo da oferta. O pior é que, em vários trajetos nacionais e internacionais, os voos são oferecidos por apenas uma empresa. Ou seja: não há concorrência! Por que ela iria baixar o preço mesmo? Dou alguns exemplos: (estou fazendo "de cabeça", mas não devo errar muito): a) para Lisboa diretamente, somente a TAP (e recentemente a AZUL, que é do mesmo grupo) é que operam: b) Para Roma, a Alitalia: c) para Atlanta, a Delta; d) Dallas, a American Airlines; etc. Isso tanto é verdade que a TAP já anunciou no último dia 9 a redução do número de malas e dos pesos. Mas, claro, sem qualquer diminuição do preço de suas passagens... Indagada pela Revista Veja a respeito a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal em São Paulo contra as novas medidas, a ANAC, em nota, disse que não comenta casos em tramitação e que "fez 28 reuniões com instituições representativas da sociedade, entre as quais entidades de defesa do consumidor; seis reuniões com parlamentares federais; três audiências no Senado; seis reuniões intergovernamentais; uma consulta pública em 2014; e duas audiências públicas, uma em 2013 e outra em 2016, para finalizar o texto das novas regras - que recebeu mais de 1.500 sugestões da sociedade"2. Espanta o número de sugestões com um resultado, ao menos no ponto das bagagens, tão controverso. Atualmente, as companhias aéreas cobram para reservar assentos, colocam preços diferentes dependendo do local da poltrona na mesma classe econômica, cobram por alimentos, impõem altas multas para remarcação de voos, enfim, sabe-se lá onde isso irá parar. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Eis um slogan das futuras propagandas das companhias aéreas: 'Consumidor: vale quanto pesa. Vale mais quem pesa menos'." __________ 1 Enquanto escrevia este artigo, foi concedida liminar nos autos da ACP promovida pelo MP Federal de São Paulo suspendendo a medida da ANAC.   2 Ministério Público entra na Justiça contra cobrança por bagagens (revista Veja).
quinta-feira, 9 de março de 2017

A esperança como produto de consumo

No artigo anterior, cuidei da felicidade como produto de consumo. Hoje, falo da esperança. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Há muito a ser dito a respeito disso, mas pensemos num elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição, alimentam, de fato, a frustração do consumidor, que sonha mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa - vã - de apaziguar sua alma. Além disso, como esse consumidor - já frustrado ou que ainda se frustrará - é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que, de frustração em frustração, o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de ("jogos de azar"): loterias, cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios, etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência, obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita; ou a de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como disse acima, o consumidor tem pressa. E nunca teve tanta como nos dias que correm. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o Dia das Mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao Dia das Mães do ano seguinte, quando, então, tem de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto: Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar?".
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A felicidade como produto de consumo

Nunca é demais retornar ao tema da felicidade, algo que, como já referi, o mercado oferece abertamente. Nos anúncios publicitários, por exemplo: "Pão de açúcar, lugar de gente feliz" . Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia Feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu!" etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas cintas e roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Se nós fossemos capazes de conseguir olhar por trás dos bens adquiridos, para além dos serviços, por debaixo das embalagens, para dentro da química dos alimentos e dos cosméticos, se pudéssemos ver realmente como as coisas são, numa espécie de raio X mágico que enxergasse o espírito dos produtos e dos serviços, certamente encontraríamos um anjo (!) sorridente que nos entregaria a chave da porta de entrada da cidade feliz; um lugar onde poderíamos, afinal, respirar sossegados e em paz, essa que talvez seja a irmã da felicidade. Mas, será que esse anjo existe? Ou se trata de mais uma ilusão oferecida pelo mercado? O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Como já demonstrei em vários artigos meus aqui publicados, o modelo de produção acabou se imiscuindo em praticamente todas as esferas sociais, afetando relações pessoais, de emprego e sociais das mais gerais, o sistema educacional, os esportes etc. e também a própria relação dos indivíduos entre si. Pergunto: será que o que se esconde por detrás dessa enorme profusão de produtos e serviços é uma promessa de encontro da felicidade? Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? É possível ilustrar esse processo de oferta e também o quanto os fornecedores conhecem a alma do consumidor com vários exemplos, mas ficarei apenas com um, que aqui já citei e que é muito peculiar: o dos videntes, médiuns, leitores de búzios etc., que prometem resolver, dentre outros, os problemas amorosos dos consumidores-consulentes. Fazendo uma pesquisa, descobri uma série de anúncios desse tipo de serviço em jornais e revistas. Caro leitor, veja esse publicado numa revista: "Amor perdido. Trago de volta quem você ama, melhor que era antes". E há muitos casos de oferta para o encontro do amor verdadeiro, para a salvação do casamento etc. Se essas ofertas existem é sinal de que há um público consumidor interessado nelas. Isso demonstra que, realmente, o mercado conhece profundamente o consumidor em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, sonhos etc. Mostra, também, que por trás das ofertas - não só nestas como em muitas outras - existe uma promessa de encontro da felicidade. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens, consultas em videntes etc., mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-la.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A vida privada, a intimidade, o segredo e o sigilo

Já tratei deste assunto aqui nesta coluna e num texto bem longo, dividido em quatro partes. Mas, tendo em vista o debate surgido nos últimos dias a respeito do tema por conta do episódio que envolveu um hacker e a primeira dama Marcela Temer, resolvi apresentar alguns dos aspectos envolvidos para a reflexão dos leitores, focado no segredo e no sigilo. Segue. O segredo Um dos componentes do direito à intimidade é o segredo. O segredo é também um direito subjetivo. Quem não os tem? Ele está por todos os lados, inclusive, como direito não só da pessoa física como da jurídica e se apresenta de vários modos. Há, claro, o segredo humano, a base de todos os demais, este que cada um dos indivíduos tem, independentemente de origem ou idade: mesmo crianças, que ainda não compreendem bem as relações de comunicação, mantêm segredos. Com efeito, o ser humano guarda segredos desde cedo, numa tenra idade. As crianças e adolescentes têm os seus e, claro, os adultos em profusão. Podem ser inocentes ou terríveis. A revelação de um segredo pode não ter qualquer consequência, como pode ser devastadora. O fato é que as pessoas, como regra, os respeitam. Guardar segredo não tem, por exemplo, relação com amor, fidelidade ou confiança. Os filhos podem manter muitos segredos resguardados dos pais e estes daqueles, sem que a relação de amor e confiança entre eles se abale um centímetro. O mesmo pode ser dar na situação amorosa dos casais: manter segredos não implica traições (a não ser, claro, que a traição seja o segredo...). Enfim, é pacífico que as pessoas guardam segredos individualmente ou em duplas, grupos, amigos, parentes etc., como é pacífico que eles devem ser respeitados. Muitos dos segredos individuais são repartidos entre amigos e parentes. Por ser de interesse mútuo ou por não suportar guarda-lo sozinho, a pessoa o divide com alguém de sua confiança (e aqui começa a morar o perigo...). Há também segredos de ordem profissional: o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, um direito (do confidente e do profissional - psicólogo, psiquiatra, médico, advogado, padre etc. ) e uma obrigação, pois o profissional não pode dele abrir mão, mesmo que a pedido do juiz num processo instaurado. Há segredos que são comerciais e industriais e ninguém duvida que eles não podem ser revelados. Eles traduzem-se nas fórmulas, práticas, procedimentos e instrumentos de negócios, no design, padrões etc. São também as informações confidenciais. Esses segredos podem pertencer a pessoa física ou a pessoa jurídica e estão salvaguardados da bisbilhotice alheia, limitados que estão no círculo concêntrico da intimidade. Segredo e sigilo Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências. Enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Na sequência, abordarei algumas delas, mas desde logo anoto que é consensual que esse tipo de sigilo deve ser resguardado, não podendo ninguém violá-los. Aliás, não parece que exista alguém defendendo suas violações. Interesse público e segredo A chave para a resolução de alguns dos problemas existentes é a da busca do interesse público. A divulgação de informações deve ter por suporte esse interesse. Porém, existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público. Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem se tornar públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o Ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado. Sigilo profissional O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar) etc. No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF). E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79. De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa". Sigilo bancário O sigilo bancário é decorrente da garantia da inviolabilidade da vida privada e da intimidade tanto das pessoas físicas como das pessoas jurídicas, garantida no art. 5º, inciso X da CF. Ele está ligado à comunicação privada feita pelos clientes com as instituições financeiras. Daí que esse direito ao segredo dos dados existentes na instituição financeira decorre de dois direitos fundamentais: o do direito à vida privada e intimidade e o do dever de sigilo profissional, conforme visto no item anterior, eis que o banqueiro ou administrador está de posse dos dados em função de sua atividade profissional. Além disso, A lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001 estabelece para as instituições financeiras o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. Sigilo fiscal O segredo aqui diz respeito às informações fiscais prestadas pelos contribuintes à Fazenda Pública. É sigilo que se impõe também pela garantia de vida privada e intimidade das pessoas físicas e jurídicas (Conf. inciso X do art. 5º da CF). Há, pois, proibição de divulgação dos dados registrados, eis que as informações fornecidas pelo contribuinte ao Estado diretamente ou a seus agentes são de foro íntimo, uma vez que envolvem não só seus dados cadastrais como uma detalhada descrição do patrimônio, suas receitas, seus ganhos e suas perdas, seus investimentos etc. O Código Tributário Nacional, por sua vez, impõe o sigilo: "Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades". E o Código Penal dispõe: "Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito." Sigilo de correspondência e das telecomunicações O sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é direito fundamental, garantido no inciso XII do art. 5º da CF: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" Veja-se que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual. A CF abre exceção apenas na decretação do Estado de Sítio (art. 139, III). E o Código Penal estipula: "Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa". Sigilo de domicílio, segredos comerciais, industriais etc. Há, ainda, uma série de situações protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, tais como a inviolabilidade do domicílio, os segredos industriais e de comércio, de marca, de projetos etc., como acima já apresentei. Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a violação do segredo da empresa pelo empregado. Enfim, há vários outros sigilos impostos, mas penso que o que já referi é suficiente para demonstrar que não é tudo que pode ser levado a conhecimento do público, independentemente do fato pertencer ao campo do público ou do privado. Além disso, como visto, em algumas situações o interesse público impõe o segredo.
No dia 27 de janeiro passado, fez quatro anos da tragédia da boate Kiss na cidade de Santa Maria, que matou 242 pessoas e deixou outras doentes e com sequelas até hoje. Como sempre acontece, logo após a desgraça, autoridades e políticos vieram a público para dizer que tudo mudaria, novas normas seriam aprovadas e que algo assim não voltaria a acontecer. Mas o noticiário da imprensa dos últimos dias demonstrou que, de fato, pouca coisa mudou. No máximo, o que se viu foram alguns donos de boates mais preocupados com segurança - especialmente em relação ao fogo. Lei nenhuma foi alterada ou promulgada. Como já tive oportunidade de referir, um modo de proteger os frequentadores desse tipo de estabelecimento é fazendo algumas alterações no Código de Defesa do Consumidor - CDC. Isso porque as normas atualmente vigentes não dão conta de protegê-los. Um dos grandes problemas da questão, é o da aglomeração de pessoas e da dificuldade de deixar o local de forma rápida e segura. Enquanto for permitido o uso de comandas e o controle na saída somente após o pagamento do consumo, de nada irá adiantar uma fiscalização prévia contra incêndios. No dia de funcionamento regular, continuará havendo uma única saída ou mesmo mais de uma; todavia, sempre bloqueada, aguardando os pagamentos pelos usuários-consumidores. Lembro que, no evento de Santa Maria, ficou demonstrado que se as normas já existentes tivessem sido cumpridas, a tragédia poderia ter sido evitada, mas desde que a saída fosse facilitada. Não sei dizer se em todo lugar existe esse tipo de restrição na saída. No entanto, é evidente que a dificuldade imposta para a saída que coloca os consumidores em filas estreitas, está ligada ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente. E há, ainda, uma outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local? No caso da boate Kiss, as reportagens apresentaram na época do acidente o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação. E o lugar estava em chamas! Realmente, as filas enfrentadas por consumidores para sair de muitas boates são terríveis e tomam muito tempo. E, infelizmente, as regras vigentes do CDC não impedem o uso das comandas e a multiplicação perigosa das filas. Por isso, insisto que é o caso de se aprovar uma norma que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de novos incisos no art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas. Desse modo, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física1. Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas. Em função disso, apresento mais uma vez minha sugestão: a da introdução de um outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento pelo próprio consumidor. Eis, pois, abaixo minha proposta que, penso, tem tudo de benéfica aos consumidores e não prejudica os negócios e interesses dos empresários do setor. Lembro que a alteração pode ser feita pelo Legislativo ou pela presidência da República, por intermédio de Medida Provisória. ***** Eis minha proposta: Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o "caput" do art. 39) Art. 1º - O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º: Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: XIV - Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc. XV - Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar. XVI - Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Parágrafo 2º - A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto. Parágrafo 3º - Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como "Times new roman". __________ 1 Seria um reforço ao próprio Código Penal, que define o crime de perigo nesses termos: "Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais".
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Por uma cidade de São Paulo linda e inspiradora

Assisti na tevê há cerca de dois dias um debate sobre as pichações na cidade de São Paulo. Ouvi com espanto um arquiteto e urbanista defende-las e dizendo que se tratava de uma forma de expressão política de pessoas que viviam na periferia da cidade. E que, então, a prefeitura não devia se preocupar com a limpeza, mas com a "inclusão" dos vândalos (confesso que, realmente, não consegui entender o que ele quis dizer com a inclusão desse tipo de pessoa). Porém, o destino não estava ao lado do urbanista. Logo na madrugada do dia seguinte (25 de janeiro) um pichador foi preso ao pintar um monumento de bronze em frente à Catedral da Sé, no centro da cidade. Quem era o pichador? Morador da periferia? Não. Trata-se do filho de um embaixador, que reside numa casa de luxo no Real Park1. A liberdade de expressão é uma garantia constitucional, mas chega a ser surpreendente o que se ouve em função dela. Nós que somos da área jurídica, acabamos sofrendo murros no estômago advindos de certas falas. Como é que alguém pode ser a favor de pichações? Tanto de prédios públicos quanto privados? Aquelas letras e rabiscos servem apenas para destruir o patrimônio de terceiros ou dos bens públicos e para deixar a cidade feia, suja. Anoto que não estou fazendo nenhuma consideração a respeito das pinturas feitas recentemente em paredes pela prefeitura que, ao que dizem, apagaram algumas obras, pois não tenho elementos para tanto. E, naturalmente, sou a favor dos murais, das pinturas artísticas e do grafitismo que estão espalhados pela cidade. Pichação é outra coisa: é pura e tão somente uma violação de propriedade alheia. Ademais, para fazer algum tipo de intervenção política é preciso seguir as regras, sem vilipêndio de patrimônio alheio e comunicando alguma coisa, transmitindo algum pensamento. Mas deixo o feio de lado - já há coisa ruim demais nos noticiários - para falar de coisas boas: São Paulo é uma cidade maravilhosa; tem os melhores serviços do país e que estão dentre os melhores do mundo; seus restaurantes só têm competidores em grandes metrópoles; a Cultura por aqui é excepcional; os centros de compras são incríveis; temos os melhores hospitais e temos universidades de ponta; e mais um longo etc. de qualidades. Sei que há outras cidades brasileiras belas e exemplares e que os brasileiros são mesmo batalhadores e trabalhadores. Mas, deixemos consignado em homenagem aos 463 anos da Capital Paulista: a população paulistana é trabalhadora de causar inspiração e inveja em todos os lugares do mundo e São Paulo é a locomotiva da nação. Em 2004, em homenagem aos 450 anos da cidade, publiquei um livro que está esgotado: "Aconteceu em Sampa". Lá coloquei algumas poesias em homenagem à nossa querida Sampa. Transcrevo a primeira delas aqui: Nosso amor Você dança com estranhosBriga com os amigosAquele bêbado cospe na sua esquinaVocê parece que nem liga, menina Que que há?O que você tem?Tá doente?Sente falta de alguém? Tá certo que está idosaMas, és bela e formosa Eu sei que às vezes se cansaNão, você não é mais criança Um dia a tempestadeN'outro a bonançaVai, vai minha cidadePerdoa quem te cansa Perdoa quem te sujaVocê, que é pura esperançaDo dia de amanhãSurgir verdeSair dos becos da amarguraDeixar pra lá a rua escuraE dar água a quem tem sede Vem, aquece quem te humilhaAbraça teus pernetasVocê, que sempre partilhaTeus leitos, tuas sarjetas Há os que se orgulham de tiHá os que te maltratamAcima de tudo, caia em siPois há os que te idolatram Seja plenaSeja belaSeja forte, serenaVerde-amarelaSeja infinita na janela,Olhes dentro, vai, tire a tampaVeja como te amam, Sampa __________________ 1 - Acesse aqui.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O comportamento social entre dois mundos

Este início de ano no Brasil está sendo tão surreal (ou, talvez, apenas e tão somente "real"?) que não há como não tentar pensar um pouco no assunto. É verdade que muito material foi publicado e está disponível, embora as alternativas de solução para os problemas não sejam tão claras. Um dos aspectos que chamam a atenção é o do comportamento das pessoas, não só da ira daqueles que pedem mais sangue como  o de uma espécie de apatia que atinge uma outra parte. É sobre esse último aspecto do comportamento social que trago alguns pontos para nossa reflexão. Meu amigo Outrem Ego perguntou: "Diante da barbárie, o que fazer? O que dizer?" e disse que estava espantado com as reações: "A imagem de cabeças humanas sendo arrumadas em fileiras como se fossem vasos deveria chocar tanto que seria capaz de gerar uma comoção ou uma paralisia. Mas, não. O limite do possível ou do inacreditável esticou-se a tal ponto que parece que nada mais choca verdadeiramente". Ele observou que as pessoas reagem com ferocidade ou apatia, pois a vida continua e as alternativas de ação não são muito amplas nem conhecidas. Muitos pontos podem ser abordados. Vejamos aquele que envolve as comunicações dos dias que correm. Na sociedade capitalista contemporânea da imagem televisiva e do marketing de massas, tudo foi edulcorado com uma plasticidade que acabou por camuflar a realidade. Os fatos reais na época da comunicação global são percebidos quase que "literalmente" como virtuais. E também quase tudo se massificou, homogenizou-se e banalizou-se. Acostumamo-nos com a morte diária de pessoas por crimes que parecem impossíveis de ser evitados, por acidentes de trânsito causados por irresponsáveis, com a corrupção em amplos setores da sociedade,  a começar pelo poder político, com guerras sem fim no mundo afora, com imagens de atrocidades múltiplas, com a imigração em massa dos refugiados de guerra, com catástrofes climáticas em todos os lugares do globo, com adultos mendigando comida e dinheiro nas esquinas, com crianças abandonadas vivendo em sarjetas, com problemas de desemprego, miséria etc. Por outro lado, afora o noticiário escandaloso ou das tragédias humanas e ambientais, a mídia televisiva, ao mesmo tempo (e de forma paradoxal), mostra-nos uma realidade diferente. A publicidade, que a mantém, apresenta sem parar um mundo perfeito, com homens e mulheres lindos, produtos e serviços perfeitos, sonhos possíveis de serem realizados. Podemos frequentar as melhores escolas, os melhores restaurantes, os melhores estabelecimentos comerciais, os melhores shopping centers; podemos também ter contas nos melhores bancos, que nos propiciam as menores taxas de juros nos empréstimos, os maiores rendimentos nas aplicações, o melhor atendimento pessoal etc. Aliás, "todos" são os melhores, de tal modo que não há maus fornecedores. No mundo ideal da propaganda comercial (e também da propaganda política), tudo funciona. Vivemos, pois, entre dois mundos: o real, que nos atordoa com sua dura violência diária e o ideal, que nos oferece a esperança de uma vida melhor. E o que se observa em boa parte dos indivíduos é um enorme desânimo, uma espécie de letargia imposta pela impossibilidade de, de um lado, entender o mundo e, de outro, um "não saber o que fazer" para nele atuar visando à sua transformação para melhorá-lo. E, conforme dito por meu amigo, como, apesar de tudo, a vida continua, observando as pessoas divertindo-se em passeios, parques, teatros, restaurantes e lojas, parece que elas fazem o que querem. Consomem e são felizes, especialmente aqueles que detêm poder aquisitivo. Mas, há mazelas: olhando-se de perto algumas pessoas, descobre-se, muitas vezes, uma exagerada individualidade egoística, uma solidão, um afastamento entre as pessoas; há um crescimento enorme da intolerância; um endurecimento dos corações; um aumento do desprezo e um certo pouco-caso, como se nada fosse "conosco" ("não é comigo" e "não tenho nada a ver com isso"). Estabelece-se, assim, o também paradoxo da esperança prometida, sentida em conjunto com a esperança perdida. Queremos ser felizes, mas como só podemos realizar essa felicidade pela via do mercado, nos frustramos, pois a verdade é que, comprar, cada vez mais, bens materiais não preencherá o vazio de nossas almas. Quem procura felicidade no mercado morrerá frustrado. Trava-se uma luta surda e, às vezes, nem tão surda pelo emprego, pelo cargo, pela posse de objetos. Será mesmo que, como se diz, nesta sociedade do espetáculo tudo se assemelha? Confundimos o mundo das imagens televisivas e cinematográficas com as do mundo real? A violência das telas é apenas a continuidade da violência da vida concreta? Após olhar cabeças (humanas e reais) rolando, basta desligar a tevê ou o iphone e ir jantar? Ou dormir? Aliás, por falar em dormir, durma-se com um barulho desses.
No último dia 9, faleceu, aos 91 anos, Zygmunt Bauman, um dos maiores pensadores contemporâneos, que foi capaz de fazer uma leitura especial e profunda do comportamento das pessoas na sociedade dos séculos XX e XXI. Em homenagem ao grande professor polonês, radicado na Inglaterra, republico um artigo aqui apresentado em 9/4/15. Segue abaixo. *** Da modernidade líquida para a vida gasosa. Meu amigo Outrem Ego viu que eu citei o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na coluna da semana passada e, como conhece o trabalho por ele publicado, disse-me que andava com saudade das coisas sólidas de antigamente, que, aliás, não são tão antigas assim. No final do ano passado ele já reclamara do fechamento das locadoras de vídeos, que praticamente não mais existem: "Um dos passeios mais gostosos de fazer era ir sozinho ou com um amigo, o namorado, a namorada, o marido a esposa, os filhos ou até mesmo toda a família a uma locadora de vídeos para escolher um filme ou mais, para depois assistir em casa. Era agradável, lúdico, instrutivo. E interativo. Encontrávamos outras pessoas, trocávamos experiências e opiniões sobre os filmes já vistos, dávamos dicas e, diante de uma enorme quantidade de opções, escolhíamos com carinho e sem pressa". "Pressa", disse eu na oportunidade, "Essa pressa que, de tão rápida, tão fugaz, nos consome sem que percebamos..." Voltando ao sociólogo, meu amigo lembrou da questão da calma, do tempo de curtir a vida de maneira mais lenta: "Bateu uma nostalgia", disse e depois contou o seguinte: "Sabem, tornamo-nos uma sociedade de fotógrafos. Todo mundo tira foto o tempo todo de tudo, sem parar e, rapidamente... Sou de um tempo em que isso era muito diferente, gostoso, interessante e sólido - para usar a teoria do sociólogo. E, olha, amigo, esse tempo não vai muito longe. É de apenas mais ou menos uns trinta anos...". Ele fechou os olhos, como que retornando no tempo, e depois prosseguiu: "Lembro muito bem da primeira vez que minha mulher e eu fomos à Europa. Foi na década de oitenta. Um dos apetrechos mais importantes para levarmos na mala (de mão) era uma máquina fotográfica. E, naturalmente, junto dela alguns rolinhos de filmes contendo doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses. Naquela viagem levamos dois rolos de cada. (Aliás, não era barato). Então, fazendo as contas, poderíamos tirar... Cento e quarenta e quatro fotos. Veja bem, viajamos quase trinta dias e podíamos tirar apenas um pouco mais de cem fotos, cerca de quatro ou cinco fotos por dia". "Isso gerava uma responsabilidade: nós tínhamos que escolher o lugar para bater, deveríamos saber se valia a pena tirar naquele momento do dia ou da noite (com flash que se acoplava na máquina); teríamos que decidir se tirávamos de uma igreja ou de um museu etc. E não só: precisávamos caprichar para não cortar parte da paisagem e quando pedíamos para alguém tirar nossa foto juntos, torcíamos para que ele não cortasse nossas cabeças" "A viagem enriquecia-se com as próprias fotos que exigia nossa concentração e gerava desde logo uma emoção. E quando voltávamos, então?""Lembro bem dessa primeira viagem e também de outras posteriores da mesma época. Levei os rolos à loja para fazer a revelação, que demorava alguns dias. Ficávamos na expectativa: será que saíram todas? Algumas ficaram escuras, opacas, tremidas? Será que queimaram? Afinal, cortaram ou não nossas cabeças?" "Era algo que nos deixava um pouco tensos é verdade, mas não era desagradável, especialmente porque na maior parte das vezes as fotos saiam bem" "E, claro, como iríamos aguardar algum tempo para ver as fotos e elas eram tão importantes, pois refletiam a viagem, os lugares conhecidos, as experiência vividas, nós convidávamos parentes e amigos para irem em casa ver. Depois, colocávamos tudo num álbum que, de vez em quando, folheávamos" "Mas, hoje, os jovens nem sabem o que é isso. E a experiência da foto é efêmera e momentânea. Numa viagem de uma semana, a pessoa tira quinhentas fotos ou mais. Bate várias do mesmo lugar e da mesma pose. Tira, olha uma vez e nunca mais vê. Numa simples festa de aniversário em casa, as pessoas tiram centenas de fotos, muitas idênticas e cometem o mesmo pecado: olham uma vez, exatamente logo após tirar. Depois, esquecem. Sei que há pessoas que guardam algumas, mas é muito pouco em termos de experiência" "Ah, sei, esqueci das redes sociais... Tira-se a foto, posta-se na rede e ela vai ser vista... Muitas de si mesmo! As redes estão repletas de fotos sem história, apenas do imediato... A solidez se foi meu caro amigo!" Tive que concordar com ele, eu que tenho a mesma experiência de fotos de uma época que se foi. E vejo-me obrigado a retornar a Zygmunt Bauman, que se tornou famoso em grande medida por apresentar ao público o seu conceito de "estado líquido" da sociedade contemporânea. Em obras como Modernidade Líquida (2000), Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2003) Vida líquida (2005), Medo líquido(2006) e Tempos líquidos: viver na idade da incerteza (2007), ele mostra a vida num tempo de incertezas, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza, algo do passado. O autor mostra que nesta nossa sociedade moderna, isto é, líquida, as condições de atuação das pessoas - leia-se: de consumidores - mudam antes que suas formas se consolidem. Nada é feito para durar. Vingou uma espécie de vida temporária, vivida em condições de incerteza constante. De fato, na vida cotidiana percebe-se uma espécie de ânsia por devorar, suprimir, trocar, extinguir, modificar incessantemente. Tudo se fragmenta e se altera. Aquele friozinho na barriga para saber se uma foto tirada com tanto carinho saiu ou não, foi substituída por uma ansiedade que torna tudo imediato, que devora nossa paciência, nossa capacidade de espera. Meu amigo lembrou do micro-ondas: "É prático e quase todo mundo conhece, sabe usar e usa de fato. Pergunto: você já se pegou ansioso aguardando que passasse os dois minutos programados para aquecer alguma coisa? Não é incomum que nós marquemos um minuto e desliguemos alguns segundos antes. Será que nós perdemos a capacidade de esperar um minuto que seja?" Tive de concordar mais uma vez. Caro leitor, tentando ir além do que disse o pensador polonês, arrisco dizer que a sociedade capitalista chegou a, digamos, um estágio gasoso. Nem mais líquida é. A liquidez apesar de fluída, ainda é palpável. E o líquido de algum modo se amolda, como faz o rio que abraça suas margens, que toma a forma do objeto em que está, ainda que possa ser derramado e escorrer. A água se nos escapa por dentre os dedos, mas ainda podemos retê-la na pia, na banheira, no copo. Esse nosso estado atual parece gasoso, parece evaporar e desaparecer no ar atmosférico que com ele se confunde. Talvez forme imagens no céu, como nuvens que desenham animais ou plantas. Mas, essas imagens estão distante, são fugidias e logo desaparecem. É isso? Então, pergunto: por que há de ser tudo imediato, virtual e on line? Porque é que estamos correndo tanto? Tudo que temos é ilusório, passageiro? Talvez precisemos parar para pensar num novo modelo de curtir a vida. Num novo modo de sermos felizes. Num passo mais lento, com mais calma e mais concretamente.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva

A questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva vem sendo discutida há muitos anos. No âmbito do Poder Judiciário, o entendimento era oscilante sobre o tema: ora aceitava a abrangência nacional, ora a restringia. A dúvida estabelecida a respeito da abrangência da coisa julgada na ação coletiva surgiu a partir da inusitada modificação do texto do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP - lei 7.347, de 24/7/85) que, a partir de setembro de 1997, passou a ter a seguinte redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova". Essa modificação legal, se aplicada, restringiria os efeitos da sentença coletiva aos limites territoriais do Tribunal que proferiu a sentença. Ou seja, uma decisão dada por um juiz no Estado de São Paulo, só valeria nesse Estado. Mas, no último dia 30 de novembro, foi publicada uma decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definiu que a sentença de uma ação civil pública (ACP) tem abrangência nacional e não pode ser limitada ao Estado onde o processo foi julgado. Essa decisão atendeu a um recurso apresentado pelo Idec em uma ação sobre financiamento habitacional, que envolve as principais instituições financeiras do país1. Como já tive oportunidade de referir, a questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva tem relação direta com a extensão do dano: se este é nacional, a amplitude também é. Não teria nenhum sentido que, por exemplo, consumidores paulistas não sejam violados, mas se permita que o mesmo ato abusivo atinja consumidores de outros Estados-membros2. Os que pensam diferente argumentam que seria "inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeitos sobre todo o território nacional". Mas, a meu ver, sem qualquer razão. Todos sabem que, por exemplo, mesmo a sentença de falência de uma empresa (grande ou pequena, não importa), proferida numa pequena cidade do interior do país, faz efeito em todo o território nacional. E mais: se uma indústria de medicamentos com sede numa pequena cidade comercializa remédio que gera a morte de pessoas, todos esperam que a sentença proferida pelo Juiz naquela pequena localidade possa impedir a comercialização em todo o país. Não teria sentido algum salvar a vida das pessoas numa cidade ou Estado e permitir conscientemente a morte de outras nos demais lugares. Isso feriria o princípio da racionalidade e da razoabilidade do sistema jurídico constitucional e, no caso, o superprincípio da dignidade da pessoa humana. A verdade é que, como bem decidiu o STJ, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública não tem como vingar no sistema jurídico constitucional brasileiro, uma vez que está em plena contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, ele contradiz a própria estrutura da LACP, enquanto o Código de Defesa do Consumidor é firme, claro e coerente ao dizer que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo o território nacional, gerando conteúdo formal adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator da decisão. __________ 1 Decisão.   2 Ver, por exemplo, meu Comentários a Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 8ª.edição, 2015, pág. 987 e segs.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O comércio eletrônico e o Direito do Consumidor

Eu aproveito o embalo da última edição da Black Friday, para cuidar do comércio eletrônico, meio que certamente foi muito utilizado pelos consumidores para fazer as compras. Não tratarei de fraudes, pois os veículos de comunicação se encarregaram do assunto, assim como os órgãos públicos e as entidades privadas de defesa do consumidor. Aponto a seguir, para lembrar, as regras vigentes do CDC para as operações via web e também as do Decreto Presidencial que regulamentou o comércio eletrônico. O comércio eletrônico Com efeito, o decreto 7.962, de 15 de março de 2013, fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. Direitos básicos que já estavam fixados no CDC O art. 1º do Decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via Internet: a)  O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b)  O atendimento facilitado ao consumidor; e c)  O respeito ao direito de arrependimento. São determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. De todo modo, ajuda a fixar as determinações. A oferta eletrônica O art. 2º do Decreto determina que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Garantia de atendimento facilitado ao consumidor O decreto determina que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Não nos esqueçamos da regra do § 4º do art. 54 do CDC, que determina que as cláusulas que implicarem limitação do direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, e que o art. 46 diz que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato  Desistência do negócio: prazo de 7 dias O CDC estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor. A intenção da lei é proteger o consumidor nesse tipo de transação para evitar compras por impulso ou efetuadas sob forte influência da publicidade ou do pessoal do telemarketing sem que o produto esteja sendo visto de perto ou o serviço possa ser testado. Esse prazo garantido pela lei é de sete dias e chama-se prazo de reflexão. Se nesses sete dias o consumidor se arrepender da compra, pode desistir pura e simplesmente. O arrependimento não precisa ser justificado. Não é preciso dar qualquer satisfação. Basta desistir. A contagem do prazo dos sete dias inicia-se quando do recebimento do produto. Existem fornecedores que oferecem prazos maiores de arrependimento: dez, quinze e até trinta dias. Nesses casos, o prazo de reflexão fica automaticamente ampliado, conforme for a oferta. E, visando dar eficácia ao contido no art. 49, o decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo Decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º).  Forma de pagamento não interfere no prazo A forma de pagamento não tem nenhuma implicação com o direito de arrependimento. Não importa como o pagamento do preço será feito: à vista ou parcelado com cartão de crédito; a prazo através de boletos ou avisos bancários; por intermédio de cheque contra a entrega da mercadoria; no caixa do posto dos correios; após a prestação de serviço ou mensalmente, trimensalmente etc. Em todos esses casos ou em qualquer outro, a desistência se operará da mesma maneira.  Devolução do que foi pago Feita a desistência, qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Por fim, lembro que a norma diz que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º); e que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º).
Já tive oportunidade de lembrar que candidatos em eleições seguem o modelo típico da sociedade capitalista: são pensados e produzidos do mesmo modo que os produtos que os consumidores encontram nas prateleiras de supermercados e lojas de shopping centers. E o candidato é apresentado ao eleitor dentro da lógica da oferta e da publicidade à disposição dos partidos. Aliás, as campanhas contratam os melhores publicitários para montar a propaganda. Até a embalagem é bem estudada: cortes de cabelo, roupas, maquiagem, postura etc., tudo é muito bem arquitetado. E o que sai de dentro da embalagem? As falas. São planejadas, discutidas, ensaiadas, muito antes de serem pronunciadas, de tal modo que possam atingir os ouvidos, corações e mentes do público alvo (o eleitor). Assim, pronto o produto (candidato), ele é entregue ao mercado de consumo (público alvo, imprensa, organismos institucionais etc.) como algo a ser comprado num dia certo, o das eleições. São produtos caros, como se sabe. Por exemplo, a campanha da candidata democrata Hillary Clinton recebeu cerca de US$ 687 milhões (ou R$ 2,2 bilhões). No caso do candidato republicano, Donald Trump, sua campanha levantou cerca de US$ 307 milhões (R$ 982 milhões)1. Esse enorme montante foi gasto para promover os "produtos" candidatos. É mesmo possível comparar empresas com partidos políticos no que diz respeito a seus produtos. O modo como a oferta é feita, como disse, segue modelos muito parecidos até no que diz respeito à maquiagem das informações. Se bem que, devemos admitir, os empresários mentem muito menos que os políticos. Para sorte dos consumidores e do mercado, as promessas que envolvem os produtos e os serviços são muito mais sinceras que as promessas de campanhas. Para produtos e serviços, o Código de Defesa do Consumidor - e várias leis em outros lugares também - proíbe a publicidade enganosa e a abusiva. Quem sabe não ajudasse o eleitor a existência de uma lei similar para as campanhas políticas... Mas quero mostrar um paradoxo no caso da eleição presidencial norte-americana. Pelo que se percebe do noticiário, existe uma enorme torcida para que o presidente eleito, Donald Trump, desminta algumas de suas propostas de campanha. Ou seja, há uma esperança - um tanto estranha - de que ele tenha agido exatamente como os demais candidatos tradicionais e, no exercício do poder, deixe de cumprir o que prometeu. "Tomara que ele tenha mentido", é o pensamento que está por detrás dessa expectativa. Ou, como disse nosso ministro das Relações Exteriores, José Serra, a respeito: "Treino é treino, jogo é jogo"2. E, nas análises já feitas sobre a derrota da candidata democrata, uma indicação é a de que muitos americanos simplesmente deixaram de votar, isto é, não "compraram" os produtos que estavam sendo oferecidos, o que teria favorecido ao candidato republicano. Esse fenômeno também apareceu nas recentes eleições municipais no Brasil: o índice de abstenção e de votos nulos foi altíssimo, a mostrar o desinteresse dos eleitores. De fato, se o eleitor (ou o consumidor) não acredita na oferta nem gosta do produto, deixam de votar (ou comprar). A diferença nesse aspecto, no entanto, é que, quando o consumidor não compra um produto, este fica na prateleira e pode dar prejuízos para o fornecedor. Mas, quando o eleitor deixa de votar, o resultado pode surpreender, como se viu nas eleições presidenciais americanas, com consequências imprevisíveis para a sociedade. __________ 1 Quanto custam as eleições nos EUA e como elas se comparam com outros países.   2 'Treino é treino, jogo é jogo', diz Serra sobre eleição de Trump nos EUA.
quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Invasões, bom senso e democracia

Hoje fujo um pouco do tema do consumidor. Falarei de invasões (se bem que, se quisesse, eu poderia abordar a "invasão" como produto de consumo, na medida em que seus agentes seguem a ideia de organização unilateral, da oferta e da publicidade, com cartazes, slogans, etc., modelos típicos do capitalismo contemporâneo). Mas, sem entrar propriamente no mérito das invasões e ocupações especialmente nas escolas, falo delas a partir de uma invasão da qual participei como testemunha nos tempos da ditadura. Com efeito, no dia 22 de setembro de 1977, o prédio sede da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), na Rua Monte Alegre, nas Perdizes, foi invadido por policiais militares e também civis, chefiados pelo então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o coronel Erasmo Dias. Naquela ocasião organizava-se na PUC um encontro nacional dos estudantes visando restabelecer a UNE - União Nacional dos Estudantes, que estava proibida pelo regime militar. Durante a invasão, os policiais atacaram estudantes e professores com cassetetes e bombas de gás. Vários estudantes foram feridos, pisoteados e queimados. Quase mil estudantes foram presos e conduzidos em ônibus da prefeitura para o Batalhão Tobias de Aguiar e também para o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social. Na manhã seguinte, o então cardeal-arcebispo e Grão-Chanceler da PUC/SP, Dom Paulo Evaristo Arns, ao saber dos fatos, fez uma manifestação que se tornou famosa: "Na PUC, só se entra prestando exame vestibular. E para ajudar o povo, não para destruir as coisas". Eu estava lá. Cursava o 3º ano do curso de Direito. Dez anos depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1987, estudantes e professores organizaram no campus uma comemoração para lembrar dos difíceis momentos da ditadura e do dia da invasão. "Comemorar para não esquecer e para que não se repetisse jamais", era o que se dizia. Eu estava lá. Era um jovem professor de Direito. Dava aulas de Introdução ao Estudo do Direito para os alunos do 1º ano. Logo que cheguei e desci pela rampa que se inicia na rua Monte Alegre, dando acesso aos prédios, li numa faixa estendida algo como "Professor, não dê aulas hoje. Libere os alunos para participarem do evento que lembrará a invasão executada pela ditadura!" Pensei comigo mesmo: "Ok. Vou dispensar meus alunos". Fui até a sala de aulas e esperei que eles chegassem. Quando todos lá estavam eu disse que iria dispensá-los da aula para que eles pudessem participar do evento. Mas, disse também: "Se vocês quiserem, antes de irem à reunião, podemos falar aqui mesmo na sala, sobre a invasão e sobre o clima reinante naqueles dias, pois eu sou testemunha do que ocorreu. Sou um dos alunos que estavam na PUC naquele dia". Os alunos, então, concordaram que nós iríamos conversar um pouco sobre o assunto e depois eles seriam dispensados. Passados uns dez, quinze minutos, enquanto nós conversávamos, ouvimos vozes exaltadas no corredor em frente a porta da sala. Eram estudantes que estavam passando de sala em sala para descobrir "traidores" que estariam dando aulas. Um deles, o mais exaltado gritava "invade, invade. Vamos acabar com a aula desse professor fascista". O "professor fascista" era eu, que estava conversando com meus alunos exatamente sobre a invasão e os acontecimentos daquele período. Falávamos sobre o modo de ação dos invasores, que não pediram licença, que chutaram portas, gritaram, bateram, espancaram... Os estudantes do corredor pararam em frente a porta e a chutaram algumas vezes; aumentaram os gritos, mas dentre eles se podia ouvir um "comandante" que dizia "invade a sala, invade a sala!". Meus alunos e eu ouvíamos atônitos. Quando pensávamos no que fazer, um estudante que estava na frente abriu a porta e a empurrou com força. Ele olhou para mim e disse "fascista" e invadiu a sala seguido de mais alguns. Eu, por impulso o empurrei, porque ele invadira a sala. Ele foi para trás, ficou sob o batente da porta e disse para mim: "Vai pra assembleia seu idiota. Vocês estão aí à toa furando nossa paralisação". Eu respondi: "Nós estávamos discutindo invasões, tal qual esta aqui". Eles nos xingaram novamente e acabaram indo embora pelos corredores para "caçarem mais furadores da paralisação e fascistas". Alguns minutos depois nós deixamos a sala. Guardadas, naturalmente, as devidas proporções, o modo truculento e preconceituoso dos estudantes que nos xingaram, chutaram a porta e invadiram a sala, lembrou o modo como a invasão da PUC fora feita. Eles nos julgaram e condenaram, sem saber o que fazíamos, não pediram licença para entrar na sala e foram embora sem terem nos ouvido. Faltou apenas a violência, graças a Deus! Mas sempre pensei que a violência estava latente e poderia ter ocorrido. Deixo, pois, essas linhas para a reflexão do leitor e confesso que resolvi escrever este artigo após ler uma matéria que tratava das recentes ocupações de escolas, na qual foi descrita uma verdadeira invasão. Transcrevo, assim, para terminar um trecho dessa matéria: "'Não foi uma ocupação, foi uma invasão', criticou o aluno de Direito Gustavo Dal Cortino. 'Estávamos em aula, quando chegaram pessoas mascaradas, com atitude agressiva. Fomos obrigados a sair em fila indiana. E, já do lado de fora, chamados de fascistas, quando foram eles quem nos impediram o direito de ir e vir. Nos chamaram de playboys, sem sequer nos conhecer. Eu vim da escola pública, ando de ônibus. Eles ocuparam o prédio antes que pudéssemos votar qual nossa posição', completou"1. __________   1 Alunos ocupam prédio da UFPR; professores fazem cordão para evitar conflito.
No artigo de hoje, avalio alguns aspectos da ação de obrigação de fazer e não fazer no CDC. Com efeito, o art. 84 da lei consumerista regulou a medida nos seguintes termos: "Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2º A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do Código de Processo Civil1). § 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu. § 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial". Tutela específica ou providências que assegurem o resultado prático equivalente A lei permite que, ao invés da tutela específica requerida, o magistrado determine providências que possam assegurar o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Vale dizer, se a tutela específica requerida não puder ser concedida por impossibilidade do meio ou desaparecimento do bem pretendido, pode o juiz criar as condições que tenham o mesmo efeito real ao do adimplemento. Assim, por exemplo, se a ação foi proposta para impedir que determinado patrocinador veicule publicidade enganosa (obrigação de não fazer) e se descobre que o patrocinador está se ocultando para evitar a citação ou a intimação, pode, ou melhor, deve o magistrado, para cumprir a pretensão legal, intimar os veículos de comunicação proibindo-os de veicularem o anúncio enganoso. Com isso o juiz terá obtido o resultado praticado equivalente e eficiente. Veja-se que o § 5º expressamente permite que o juiz determine as medidas necessárias, quaisquer que sejam elas. O conteúdo do dispositivo é meramente exemplificativo, o que fica claro pelo esquema da proposição, que diz "medidas necessárias", ou seja, toda e qualquer medida que for necessária e "tais como", isto é, exemplificativamente, busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas e desfazimento de obra. Liminar A lei expressamente permite a concessão de medida liminar (§ 3º do art. 84), impondo a presença de dois requisitos: a) ser o fundamento da demanda relevante; e b) haver justificado receio de ineficácia do provimento final. A conjuntiva e do texto legal obriga a que ambos os requisitos estejam presentes para que a liminar seja concedida. Fundamento relevante É possível compreender o sentido de "fundamento relevante" comparando-o com o mais conhecido fumus boni iuris, a chamada "fumaça do bom direito". De fato, o que se pode entender por fundamento relevante da demanda? Ora, aquilo que o autor da ação narrar ao juiz como plausível, fundado em direito que foi, está ou pode ser violado e comprovar de início. Assim, por exemplo, se o autor da ação diz que foi negativado no Serviço de Proteção ao Crédito por dívida quitada, e faz prova juntando documento com a inicial, tem-se claro que a anotação é indevida e, portanto, o fundamento da demanda é relevante (dir-se-ia que há fumus boni iuris). Acontece o mesmo para a concessão preventiva da liminar, visando impor obrigação de não fazer: se o autor anexa correspondência do réu demonstrando na inicial que ele, autor, está sendo cobrado por dívida paga e que está sofrendo ameaça de negativação no Serviço de Proteção ao Crédito, o fundamento da demanda é relevante. Ineficácia do provimento final O sentido de ineficácia é - só pode ser - o de menos eficácia do que teria a decisão se não fosse concedida liminarmente. A norma não está querendo dizer ineficácia total da ação decisória, porque, claro, se depois de três anos o juiz determinar que seja retirado o nome do autor-consumidor do cadastro do Serviço de Proteção ao Crédito, a decisão terá eficácia, só que tão tardia que o dano já se terá produzido. Daí que o sentido de "receio de ineficácia do provimento final" tem mesmo o sentido amplo de retardamento da eficácia, permissão de alongamento do tempo do dano e assim por diante. O que a lei pretende é que o simples receio de diminuição da eficácia do provimento final seja, desde logo, motivo suficiente (somado ao fundamento relevante) para a concessão da medida liminar. Momento da concessão da liminar A lei permite que a concessão da liminar se produza em dois momentos: no despacho inicial ou após justificação prévia, citado o réu. Isso significa que, se no caso concreto, após exame da inicial, restar justo receio de que o fundamento da demanda, apesar de relevante, não esteja adequadamente demonstrado, o juiz deve ouvir o réu, antes de decidir pela concessão ou não da liminar. Vejamos um exemplo. Digamos que o autor da ação tenha uma dívida com um banco e alegue que está sofrendo cobrança indevida em função da aplicação de uma cláusula do contrato que é abusiva, mas informe ao juiz que não tem cópia do contrato. É natural que, nesse caso, o juiz mande citar o réu, determinando que ele traga aos autos a cópia do instrumento, e só depois do contrato juntado aos autos e ouvido o banco, decida o pedido liminar. Dependendo do contexto, pode o magistrado conceder a liminar e, em seguida, ouvir o réu. Posteriormente, a partir da ouvida do réu e do exame de outras provas, pode revogar a liminar. "Astreinte" O § 4º do art. 84 permite que o magistrado fixe multa diária para que o réu cumpra a determinação. Perdas e danos E o § 1º do art. 84 disciplina a possibilidade de apuração de perdas e danos. Note-se uma peculiaridade: a norma se utiliza de duas disjuntivas ou ("se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático"), e como ela liga uma prerrogativa (opção do autor) a duas impossibilidades de resultado efetivo, tem-se que, de fato, trata-se de apenas uma disjuntiva, no caso, excludente. Expliquemos. A disjuntiva é: a) opção do autor ou b) impossibilidade da obtenção da tutela específica ou da obtenção do resultado prático correspondente. É que as duas hipóteses de "b" são semelhantes e indiferentes entre si: basta que se possa obter uma para excluir a outra. Se a tutela específica for obtida, está resolvida a pendenga; ou se o resultado prático correspondente for atingido também. Já o caso da letra "a", exclui os da letra "b", porque opção do autor, é típico exercício de direito subjetivo conferido pela lei: é o próprio § 1º que confere ao titular a possibilidade do exercício da prerrogativa de, ao invés de pleitear o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, requerer desde logo a apuração de perdas e danos. Ou seja, a hipótese da letra "a" (opção do autor) exclui as hipóteses da letra "b" (impossibilidade da tutela específica ou obtenção do resultado prático correspondente), que entre si não se excluem. Assim, se o autor não pleitear desde logo a apuração das perdas e danos, o magistrado determinará a apuração de perdas e danos somente se for impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. __________ 1 A referência é ao Código de Processo Civil de 1973, revogado, o que em nada afeta o prescrito na norma.
quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A questão do consumidor colecionador

Hoje retorno a um assunto de que aqui já tratei, que me foi sugerido por meu amigo Outrem e que me parece bem atual. Com efeito, meu amigo contou que, certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava". Pois bem. Conta meu amigo que, lá chegando, foram convidados para ir ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, mostrou-as dando ênfase em vários rótulos. O. Ego animou-se. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, ele perguntou ao amigo que o acompanhava: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "É só para ver. Não para beber". Outrem Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando meu amigo narrou o ocorrido, disse: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!". Querido leitor, devo confessar que essa história fez-me lembrar de um artigo que eu li há muitos anos numa revista de avião e que teve forte impacto em mim. Era um pequeno texto desses que pedem que nós reflitamos sobre algo em nossas vidas e que, talvez, por falta de tempo, nós acabamos não dando tanta importância ou mesmo porque aceitamos sem querer as coisas como elas são, como elas se apresentam ou como são impostas, determinadas pelas circunstâncias sociais, etc. O texto dizia mais ou menos o seguinte. O escritor contava a estória de um homem, casado, que entrara no quarto do casal e abrira a gaveta da cômoda onde sua mulher guardava a lingerie. Ele remexeu nas peças, olhou no meio e por baixo e acabou encontrando uma caixinha, que estava embrulhada com papel de presente. Intrigado, a examinou, franziu a testa, forçou os olhos, pensou e após lembrar de algo disse para si mesmo: "Ah! É aquele bracelete de ouro que eu dei para ela há três anos. Ela gostou tanto que guardou dentro da caixinha, embrulhada com o mesmo papel que a moça da joalheria usou. Ela gostou tanto e teve tanto cuidado que nunca usou". Depois, desembrulhou o presente, abriu a caixa, pegou o bracelete e disse: "Hoje ela irá usar!". Dai, dirigiu-se à sala onde estavam outras pessoas, foi até o caixão onde jazia o corpo de sua mulher morta e colocou o bracelete em seu pulso. Depois disso, o autor do artigo perguntava ao leitor se ele tinha em casa alguma coisa comprada e nunca usada. Ele dizia que as coisas que nós possuímos, independentemente de preço ou valor, só faziam algum sentido se nós as usássemos, se déssemos a ela uma finalidade, uma utilidade. Ele perguntava se o leitor tinha em casa um faqueiro nunca usado, guardado dentro da própria caixa feita pelo fabricante, se tinha peças de porcelana mantidas num armário para um dia serem usadas num jantar nunca oferecido, se tinha roupas dentro do armário que não mais usava nem iria usar ou que nunca usara, etc. Ainda recordo da sensação que tive ao ler o artigo. Caiu-me uma ficha e eu lembrei que havia adquirido um faqueiro há muito tempo e que ele estava guardado dentro da caixa. Tomei a decisão na mesma hora. Assim que cheguei em casa, separei todos os talheres que eu tinha em uso, mas que já eram antigos (foi por isso que eu comprara o faqueiro). Dei de presente a quem precisava e coloquei em uso o faqueiro novinho, retirado de dentro da caixa. Esse artigo me tocou e eu depois fui, criticamente, me vigiando para deixar de ter em casa produtos nunca usados, o que eu faço até hoje, mas que, claro, não interessa referir. O que eu pretendo contando essas histórias é colocar a questão como reflexão nesta nossa sociedade capitalista, na qual muitos nada têm e também muitos esbanjam sobras ou colecionam objetos que não serão utilizados. Já houve quem chamasse a nossa sociedade de sociedade de colecionadores. Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Colecionam-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, colecionam-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Colecionam-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!), etc. Claro que isso é problema de cada um. Quem pode acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao que o autor disse no artigo. Muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, dvds, cds ela certamente poderá utilizá-los (sei que dvds e cds estão em fase de extinção, mas quem os têm pode usá-los). Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Penso que, realmente, vale mesmo a pena tê-lo ali por perto. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. É isso! Apenas uma exposição sobre uma questão que, talvez, permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo.
Como é sabido, a lei 12.414, de 9 de junho de 2011 introduziu no sistema jurídico consumerista o chamado cadastro positivo, para disciplinar a formação e consulta a bancos de dados que contenham informações dos pagamentos dos consumidores (pessoas físicas e jurídicas e entes despersonalizados1) para formar um histórico de crédito individual. A norma definiu uma série de itens fundamentais para o funcionamento e entendimento do cadastro, a saber: o banco de dados, o gestor, o cadastrado, a fonte, o consulente, a anotação, o histórico de crédito, e as informações a serem arquivadas. Os bancos de dados podem armazenar informações de adimplemento do consumidor cadastrado visando formar o histórico de crédito dele. A regra estabeleceu as características das informações, que são basicamente as mesmas que estão dispostas no § 1º do art. 43 do CDC. Elas devem ser objetivas, claras, verdadeiras e de fácil compreensão e hão de possibilitar a feitura da avaliação da situação econômica do cadastrado. Visando dar consistência às regras estabelecidas, a lei fixou a obrigação do gestor de, quando solicitado, fornecer ao cadastrado: a) todas as informações sobre ele constantes de seus arquivos, no momento da solicitação; b) a indicação das fontes relativas às informações de que trata a letra anterior, incluindo endereço e telefone para contato; c) a indicação dos gestores de bancos de dados com os quais as informações foram compartilhadas; d) a indicação de todos os consulentes que tiveram acesso a qualquer informação sobre ele nos 6 (seis) meses anteriores à solicitação; e e) uma cópia de texto contendo sumário dos seus direitos, definidos em lei ou em normas infralegais pertinentes à sua relação com bancos de dados, bem como a lista dos órgãos governamentais aos quais poderá ele recorrer, caso considere que esses direitos foram infringidos. Além disso, proíbe expressamente que o gestor estabeleça política, crie regras ou realize operações que impeçam, limitem ou dificultem o acesso do cadastrado às informações arquivadas. Diz também a lei que as informações disponibilizadas nos bancos de dados somente poderão ser utilizadas para a realização de análise de risco de crédito do cadastrado, para subsidiar a concessão ou extensão de crédito e a realização de venda a prazo ou, ainda, outras transações comerciais e empresariais que impliquem risco financeiro ao consulente. Por fim, diz que cabe ao gestor manter sistemas seguros de consulta por telefone ou por meio eletrônico, para dar aos consulentes as informações de adimplemento do cadastrado. Quanto à fonte, estão fixadas uma série de obrigações. A fonte deve: a) manter os registros adequados para demonstrar que a pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado autorizou o envio e a anotação de informações em bancos de dados; b) comunicar os gestores de bancos de dados acerca de eventual exclusão ou revogação de autorização do cadastrado; c) verificar e confirmar, ou corrigir, em prazo não superior a 2 (dois) dias úteis, informação impugnada, sempre que solicitado por gestor de banco de dados ou diretamente pelo cadastrado; d) atualizar e corrigir informações enviadas aos gestores, em prazo não superior a 7 (sete) dias; e) manter os registros adequados para verificar informações enviadas aos gestores; e f) fornecer informações sobre o cadastrado, em bases não discriminatórias, a todos os gestores que as solicitarem, no mesmo formato e contendo as mesmas informações fornecidas a outros bancos de dados. Além disso, a lei proíbe expressamente que a fonte estabeleça política, regras ou realize operações que impeçam, limitem ou dificultem a transmissão a banco de dados de informações de cadastrados que tenham autorizado a anotação de seus dados. Sobre o compartilhamento das informações arquivadas, o mesmo só é permitido se autorizado expressamente pelo cadastrado, por meio de assinatura em instrumento específico ou em cláusula apartada. O gestor que receber informações por meio de compartilhamento equipara-se ao outro gestor, isto é, ao que anotou originariamente a informação, inclusive quanto à responsabilidade, que é, no caso, solidária por eventuais prejuízos causados e ao dever de receber e processar impugnações e realizar retificações. Já o gestor originário é responsável por manter atualizados os dados cadastrais nos demais bancos de dados, bem como por informar a solicitação de cancelamento do cadastro, sem quaisquer ônus para o cadastrado. O cancelamento do cadastro feito pelo gestor originário implica o cancelamento do cadastro em todos os bancos de dados que compartilharam informações. Desse modo, todos os bancos de dados ficam obrigados a proceder, individualmente, ao respectivo cancelamento. O gestor deve assegurar a identificação da pessoa que promover qualquer inscrição ou atualização de dados relacionados com o cadastrado, registrando a data desta ocorrência, bem como a identificação exata da fonte, do nome do agente que a efetuou e do equipamento ou terminal a partir do qual foi processada a ocorrência. É proibido ao gestor exigir exclusividade das fontes. Ademais, anoto que, desde que autorizados pelo cadastrado, os prestadores de serviços continuados de água, esgoto, eletricidade, gás e telecomunicações, dentre outros, poderão fornecer aos bancos de dados, informação sobre o adimplemento de suas obrigações financeiras. No entanto, ficou vedada, expressamente, a anotação de informação sobre serviço de telefonia móvel na modalidade pós-paga. E, quando solicitado pelo cliente, as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil fornecerão aos bancos de dados indicados as informações relativas às suas operações de crédito. Essas informações somente podem compreender o histórico das operações de empréstimo e de financiamento realizadas. Por fim, anoto que o banco de dados, a fonte e o consulente são responsáveis objetiva e solidariamente pelos danos materiais e morais que causarem ao cadastrado. __________ 1 O legislador esqueceu do ente despersonalizado, mas, evidentemente, ele também tem os mesmos direitos à proteção legal.
quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O dia das crianças e o mercado de consumo

Em função da proximidade do dia das crianças, volto ao tema que aqui já abordei. Nos anos vinte do século passado, o deputado Federal Galdino do Valle Filho teve a ideia de homenagear as crianças, criando um dia para elas. A ideia vingou e, por intermédio do decreto 4867, de 5 de novembro de 1924, o presidente Arthur Bernardes oficializou o dia 12 de outubro como o Dia das Crianças. Todavia, a data ficou esquecida por muitos anos. Mas, veja, meu caro leitor, que significativo: em 1960 a fábrica de brinquedos Estrela fez uma promoção conjunta com a Johnson & Johnson para lançar a "Semana do Bebê Robusto" e, com isso, aumentar suas vendas. A estratégia de marketing deu certo. Logo depois, outras empresas lançaram-se no mesmo projeto, divulgando a semana da criança para aumentar suas vendas e, no ano seguinte, os fabricantes fizeram renascer a data do antigo decreto e o dia 12 de outubro passou a ser comemorado como o Dia das Crianças, isto é, o dia em que as crianças ganham presentes. E, claro, a semana em que o mercado de produtos para crianças fatura alto. Vai-se, portanto, comemorando esse dia comprando e dando produtos para as crianças. Certamente, neste ano, apesar da crise, não será diferente com vendas de tudo quanto é brinquedo e muita bugiganga. Espero que coisas úteis sejam oferecidas. Aproveito, então, a data para propor uma reflexão sobre o tema de um Dia para a criança. Na verdade, a ONU reconhece o dia 20 de novembro como o Dia Universal (ou Mundial) das Crianças, pois foi nessa data do ano de 1959 que foi publicada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. E, embora essa data seja também sempre lembrada entre nós, é o dia 12 de outubro que conta, pelo menos em termos de compras. Pensemos nisso. Dia 12 de outubro é feriado nacional desde 1980, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira oficial do Brasil. E, como no dia 15 de outubro se comemora o Dia do Professor, acabou-se juntando uma data n'outra, e nesta nossa terra de Macunaíma, criou-se a Semana do Saco Cheio: foram os estudantes universitários que, por volta dos anos oitenta do século passado, inventaram mais uma semana para enforcar aulas. E não é que pegou? Atualmente, essa semana fica sem aulas em muitos colégios e universidades. Já faz parte do calendário escolar. Mais um filão para o mercado: dia de presentes, precedido de semana de compras; feriado, semana sem aulas, pacotes de viagens, hotéis, turismo enfim. O capitalismo agradece. Mas, retorno às crianças. Com efeito, cabe aos pais decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. O primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar a adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). Veja-se esse exemplo: algumas lojas vendem sapatos com salto alto para meninas de seis, cinco anos ou menos. Algo que devia literalmente ser proibido, não só porque faz mal para o corpo (como toda mulher sabe) como porque cria uma imagem adulta na criança, algo ridículo de se ver. Mas, quem compra o tal sapato? É um adulto. Aliás, existe toda uma enorme gama de produtos para meninas muito pequenas em idade, para que elas reproduzam a imagem das mulheres (suas mães ou outras mulheres), o que lhes rouba a já tão curta infância. Bem, isso em relação à qualidade. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e esta, às vezes, tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos logo se desinteressem da maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. É preciso, pois, aproveitar a data para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. Assim, a criança pode aprender a valorizar o que ganha (como o adulto aprende a duras penas).
Há muito tempo que, nas sociedades democráticas, os candidatos e partidos adotaram os modelos capitalistas de comunicação, fazendo ofertas e publicidades muito parecidas com as dos empresários. Aliás, os publicitários do setor cuidam e apresentam seus clientes, os candidatos, como típicos produtos. Alguns chegam a "elaborar" esse produto do início ao fim com formato próprio e, inclusive, embalagem adequada, com composição de "ingredientes", isto é, com apresentação do conteúdo e finalidade de função. Há de tudo. Por exemplo, vários candidatos são repaginados, atualizados e apresentados com atualizados cortes de cabelo, roupas modernas, inéditas formas de apresentação e novas falas envolvendo novas promessas. Pena que ainda não tenhamos, como faz o Código de Defesa do Consumidor, um sistema legal que proíba a oferta e a publicidade enganosa ou abusiva. "Faz parte do jogo", dirão alguns; "é assim mesmo a democracia", dirão outros. E, pelo que penso, esses dois grupos e todos os demais têm razão. Essa é a democracia que conhecemos. É época de eleições? Vamos ao show business, então. É época do espetáculo! Isso é tão verdadeiro que, daqui a pouco, (daqui a pouco mesmo, pois estou escrevendo este artigo às 19h do dia 26 de setembro), na maior democracia do mundo, será feito o primeiro debate entre os dois principais candidatos à presidência dos Estados Unidos da América: Hillary Clinton e Donald Trump. Caro leitor, não é um pouco assustador que uma figura como Trump, com propostas esquisitas, possa ser candidato com chances de assumir o comando da maior potência econômica e bélica do planeta? Como diria meu amigo Outrem Ego, "a eleição para presidente dos Estados Unidos é tão importante que deveria haver um modo de todos os habitantes da terra votarem"! Pois bem. Sei que eleições são importantes para o sistema democrático. Isso é o óbvio ululante. Mas, como as experiências nos vários países demonstram, os cidadãos não precisam necessariamente votar para viver numa sociedade democrática. Há outros meios de usufruir do regime democrático e também de colaborar com a sociedade ou de pressionar os governantes direta e indiretamente sem ter que ir às urnas. Falo, naturalmente, do atrasado modelo de obrigatoriedade do voto (E já que citei os EUA, consigno que não é porque o voto é facultativo por lá que surgem candidatos esquisitos e estranhos como o citado empresário. Ele estaria por lá ainda que o voto fosse obrigatório). E dentre as várias desvantagens que a obrigatoriedade trás, uma delas é a de gerar a ilusão de que basta ir às urnas a cada dois ou quatro anos para que tudo possa caminhar positivamente no país. Isso está longe de ser verdade. Penso que, ao contrário do que dizem, o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Para se ter uma ideia, uma pesquisa divulgada na revista científica "Pesquisa FAPESP" (Estudos Eleitorais Brasileiros, 2014) mostra que, em 2002, cerca de dois meses após as eleições, mais de 26% dos eleitores não se lembravam mais em quem haviam votado nos cargos de deputado estadual/Federal; em 2006, este número pulou para mais de 43%; em 2010, ficou superior a 33%; e, em 2014, voltou para a casa dos mais de 40%1. Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota, como, por exemplo, tirar passaporte. Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e à participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo. Adicionalmente, com o voto facultativo, talvez, tivéssemos uma mudança na qualidade de nossos candidatos e também no modo de sua apresentação. O leitor já deve ter se deparado com as situações esdrúxulas existentes, mas de todo modo, deixo aqui uma indicação: (este é apenas um vídeo; há vários no youtube e em todas as eleições). Que tal nos alinharmos com os países mais desenvolvidos? Veja esses dados que já aqui reproduzi antes: De todos os países do mundo, apenas 28 ainda adotam esse modelo, sendo 12 na América Latina e 7 na América do Sul2. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever3. __________  1 Fonte: Estadão. 2 Fonte: Milton Ribeiro. 3 Fonte: Folha de S. Paulo.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (conf.arts. 12, 13 e 14). E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade), tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base. Na semana passada comecei a examinar o tema e termino no artigo de hoje. 5. O CDC controla o resultado da produção Como disse anteriormente, há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Por isso, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). São o produto e o serviço que causam diretamente o dano ao consumidor e não o fornecedor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. 6. A receita e o patrimônio devem arcar com os prejuízos É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado viciados/defeituosos. Vejamos um exemplo numérico, usando o mesmo cálculo que fiz no item 4 (do artigo publicado na semana passada): vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente produtos em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com problemas. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores, não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. 7. Ausência de culpa E ainda existe um outro reforço dessa justificativa e que formatará por completo o quadro qualificado, que obrigou a que o sistema normativo adotasse a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores estragados, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não podem ser considerados, como regra, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que, o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, não age com culpa. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática anterior do vetusto Código Civil (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de ressarcir-se dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço. Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levava ao insucesso, pois ele não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes - por incrível que possa parecer - o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou um serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano. É extraordinário, mas esse sistema teve vigência até 10 de março de 1991, em flagrante injustiça e inversão lógica e natural das coisas. 8. O fato do produto e do serviço e o acidente de consumo Registro, por fim, e apenas corroborando tudo o que foi dito, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente"; comer algum alimento e depois sofrer intoxicação por bactéria que lá estava gera, da mesma maneira, dano, mas ainda assim não se assemelha propriamente a acidente. De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões, etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrido. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o consumidor equiparado e seus familiares.