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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
"O mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores", diz o escritor mexicano Nobel de Literatura, Octávio Paz. Como tenho mostrado muito o problema da ética no mercado - ou melhor da falta dela - hoje falarei de preços, mas de um ponto de vista das pessoas mais carentes. A sociedade capitalista vive uma tremenda crise. O planeta está sendo destruído pelo sistema de exploração das reservas naturais por ela inventado. Com o modelo de fusões abertamente implantado a partir do final do século XX, milhões de pessoas perderam empregos no mundo todo. Até os Estados Unidos da América, a nação mais poderosa do mundo, assiste a um forte empobrecimento de parte de sua população, algo que não se via desde os anos trinta do século XX, após a quebra da bolsa de Nova York. Na Europa, os países estão à beira da falência e o desemprego é brutal. Os governos estão todos envolvidos e perdidos no meio da crise: Afinal onde está o progresso prometido? O fim da pobreza? Da miséria? Os empregos? Ora, se vivemos numa sociedade de consumidores, há de haver trabalhadores. Caso contrário, como gastar para consumir? Claro, há o endividamento, outra doença, mas ele não é ilimitado no tempo e, mais cedo ou mais tarde, faz o consumo decair, além de gerar outras mazelas sociais. Esse modelo de produção e consumo é enganoso até a medula: Promete, promete, mas, na realidade, cumpre pouco do que prometeu. Naturalmente, há muitos defensores do modelo: Geralmente, os que estão em posição privilegiada e com capacidade de comando.No artigo de hoje, quero trazer para reflexão um aspecto pouco comentado: o do poder relativo do dinheiro na relação com o preço dos produtos e serviços, especialmente os de primeira necessidade e/ou essenciais.Falemos primeiramente dos privilegiados - porque precisaremos deles para entender a questão relativa - e a incrível e distorcida distribuição de renda existente nos países capitalistas. No mês passado a Revista Forbes publicou novamente sua famosa lista dos bilionários. Nela, o brasileiro Eike Batista despencou de sua alta posição anterior. No ano passado ele era o 7º mais rico do planeta. Agora é "apenas" o 100º. Sua fortuna está avaliada em 10,6 bilhões de dólares. Ele deixou de ser o brasileiro mais rico. Este posto ficou com Jorge Paulo Lemann, que aparece atualmente no posto de nº 33, dono de empresas como Ambev e Burger King e com uma fortuna estimada em 15,8 bilhões de dólares.Michael Sandel faz um comentário sobre os americanos mais ricos que frequentam as listas da Forbes1. O primeiro na lista de 2008 era Bill Gates, com uma fortuna estimada em 57 bilhões de dólares (Na deste ano ele está em segundo lugar. O topo é ocupado pelo mexicano Carlos Slim, dono da Claro, dentre outras empresas, mas Bill Gates já está com 67 bilhões de dólares). Sandel mostra que 1% dos americanos mais ricos (o ápice da pirâmide capitalista) detém mais de um terço das riquezas do país. Se descermos um pouco do cume da montanha e ficarmos com os 10% mais ricos, veremos que eles representam 42% de toda a renda e 71% de toda a riqueza2.Em escala mundial, diz Ignácio Ramonet, as 225 maiores fortunas do mundo representam um total de mais de um trilhão de euros ou o equivalente a renda anual de 47% das pessoas mais pobres (isto é, cerca de três bilhões de pessoas). É realmente impressionante a proporção: pessoas que caberiam numa sala de cinema detém uma renda anual superior a mais de três bilhões de seres humanos3.Ramonet também mostra que, em função das fusões e concentrações, algumas grandes empresas detém receita maior que o PIB de robustos países. Por exemplo, a receita da General Motors é superior ao PIB da Dinamarca, a da Exxon Mobil supera o PIB da Áustria4. Mas, deixe-me voltar ao chão, à dura realidade dos assalariados e consumidores de baixa renda. Pergunto: qual o peso do preço das coisas no bolso dessas e demais pessoas? Um pão doce sendo vendido a R$2,00 numa padaria significa que esses dois reais têm o mesmo "valor" para todos os compradores? Ou, dizendo de outro modo: Aparentemente, um produto de consumo oferecido no mercado tem um preço "objetivo". Parece que a quantidade de moeda nele estampada - no exemplo, dois reais - é "absoluta", vale de "per si" - pão doce igual a R$2,00 - e afeta a todos os consumidores que o queiram adquirir do mesmo modo. No entanto, não é bem assim.Os preços estampados nos produtos e serviços são "relativos". O mesmo produto com certo preço fixado pesa de forma diferente no bolso de cada consumidor com poder aquisitivo diferente. O preço, antes de ser objetivo e absoluto, tem peso relativo para a pessoa que o adquire (ou, por isso mesmo, para aquela que não o pode adquirir). Examinemos alguns exemplos.Peguemos um pãozinho francês. Ele custa em média R$0,60. Agora, pensemos no empresário Eike Batista, frequentador das listas da Forbes. Quando ele adquire um pãozinho desses, seu preço para ele (logo, relativo) é não só irrisório: é insignificante; um sem sentido; um inexistente. Se ele comprar seis pãezinhos para comer com o filho Thor e a namorada no café da manhã (dois para cada um), a insignificância continuará. E eles estarão bem alimentados.Agora, pensemos em José da Silva, cujo salário é de apenas R$1.200,00 por mês. Quando ele compra seis pãezinhos para ele, sua mulher e seu filho comerem certamente o preço pago terá peso considerável em seu orçamento doméstico. Lembre-se que ele tem apenas R$40,00 por dia para gastar com tudo o que necessita. Somente os R$3,60 gastos nos pãezinhos representam 9% dessa importância diária. Apenas os pãezinhos! Afora leite, açúcar, café, água, energia elétrica e um longo etc. de produtos e serviços essenciais, que, para quem está no topo da pirâmide é irrelevante. Não só no topo, abaixo também: Para uma boa parcela de abastados, esses produtos e serviços básicos de consumo têm muito pouco peso.Se colocarmos entre José da Silva e Eike Batista toda a gama de pessoas com poderes aquisitivos diferentes, veremos que, na escala decrescente, quando mais perto de José, mais pesa o preço dos produtos essenciais e, subindo, quanto mais perto de Eike, menos importância ou nenhuma importância tem o preço. Basta ampliar o exemplo do pãozinho para os demais produtos necessários diariamente com higiene e alimentação para ver como o "preço", apesar de ser "fixo", estampado em cada produto pesa no bolso das pessoas e varia com a posição dela nessa pirâmide imaginária. (Aliás, a situação pode ser bem pior que a de José: Há milhões de pessoas que têm uma renda menor que a dele ou, simplesmente, não têm renda alguma). Essa hipótese de relatividade do preço vale para todos os produtos e serviços necessários e essenciais para a manutenção de mínimo de uma vida digna. Os serviços públicos essenciais, por exemplo. O preço estipulado, em sua grande maioria, é o mesmo para os vários tipos de bolsos. São ainda poucos os casos de gratuidade. Ora, serviços de energia elétrica, abastecimento de água e esgoto, transporte, telefonia, etc. pesam muito para alguns e quase nada para outros. É profundamente injusto algumas pessoas ficarem sem o fornecimento de água ou energia elétrica porque não conseguem pagar contas de pequenos valores (É também ilegal, conforme já mostrei nesta coluna). Veja-se que o preço relativo desses serviços essenciais oprime alguns e fazem cócegas em outros. Gera uma sociedade realmente muito injusta. O problema da distribuição de renda não é só, pois, de ganhos totais ou "per capita" e sim de quanto cada preço pesa no bolso das pessoas de baixa renda.Algumas vezes, parece que essa relatividade é levada em consideração. Veja-se, por exemplo, a divulgação de índices de inflação feita neste mês de abril pela Fundação Getúlio Vargas5. Os percentuais publicados mostram que, para o público de baixa renda (que para a pesquisa são as famílias com renda de até 2,5 salários mínimos - R$1.695,00) a inflação foi de 6,94% nos últimos doze meses. E a inflação para a média dos brasileiros, no mesmo período, ficou em 6,04%. É maior para os de baixa renda, mas a diferença não é tão grande. Já a inflação em relação aos preços dos alimentos ficou em 13,94% para os de baixa renda e 12,29% para a média dos brasileiros.Ora, índices têm sempre uma tendência a enganar porque feitos por média e, no caso, como adicional, não leva em consideração o peso relativo do poder aquisitivo de cada pessoa. Para cuidar de renda per capita, meu amigo Outrem Ego costuma dizer o seguinte: "Se saímos para jantar, você e eu e, no restaurante, eu como dois frangos e você não come nenhum, então, em média comemos um frango cada um. Mas, eu estarei explodindo de tanta comida e você estará passando fome". Ou, dizendo de outro modo, a média desconsidera a realidade concreta de cada pessoa e até grupo de pessoas, gerando uma ilusão em relação à renda e, naquilo que interessa nesta análise, ao poder aquisitivo de cada um na relação com o preço das coisas, especialmente os produtos e serviços essenciais. De fato, se uma pessoa ganha R$15.000.000,00 por ano e mil pessoas ganhem R$14.400,00 por ano cada uma, em média todos ganham R$24.500,00 anuais. Mas, na realidade, o primeiro nadará em dinheiro sem preocupação com o preço das coisas e os demais continuarão fazendo contas e se apertando para conseguir comer dois pãezinhos por dia no seu orçamento diário de R$40,00 (Ou R$1.200,00 por mês). __________1No livro "Justiça - o que é fazer a coisa certa". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. ed., 2012, pág. 77 e segs.2Idem, ibidem, pág. 773No livro "Guerras do século XXI - novo temores e novas ameaças". Petrópolis: RJ, 2003, págs. 13 e 14. Os dados são de antes da crise mundial de 2008, mas pode-se aceitar que os dados não tenham se alterado tão drasticamente. Basta ver que Bill Gates em 2008 tinha uma fortuna estimada em 57 bilhões de dólares e atualmente a mesma está em 67 bilhões.4Idem, ibidem, pág. 16.5Minha fonte é o Jornal O Estado de São Paulo de 1/4/2013, pág. B1.
quinta-feira, 4 de abril de 2013

Os direitos do consumidor idoso

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) já foi acusado de ser "excessivamente protecionista". Pergunto: alguém seria contra uma lei que protegesse o menor de idade? Ou um deficiente? Ou, então, contra uma lei que desse alguns privilégios à mulher grávida? Ora, o mesmo se dá com o consumidor: A lei reconhece que ele necessita de proteção. Aliás, a proteção estabelecida no CDC advém de comandos constitucionais: O inciso XXXII do art. 5º diz que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e o art. 48 do Ato das disposições constitucionais transitórias estabeleceu que o "Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição" deveria "elaborar o código de defesa do consumidor". Daí, a lei 8078/90 nada mais fez do que reconhecer o óbvio da sociedade capitalista: O consumidor é vulnerável e, por causa disso, precisa de amparo. Ademais, o CDC reconhece que, dentre os consumidores, há alguns que são ainda mais vulneráveis, exigindo maior proteção, como se pode ver do inciso IV do art. 39 ou do parágrafo 2º do art. 37. Muito bem. Hoje cuido de consumidores que têm essa proteção especial. Falo dos idosos. Os consumidores, como eu disse, são protegidos pelas regras do CDC (lei 8078/90) e os idosos pelo Estatuto do Idoso (EI: lei 10.741/03). Na sequência, apresento, com fundamento nesses dois diplomas legais, alguns direitos dos consumidores idosos. O idoso consumidorEm primeiro lugar, lembro que, por força de expressa disposição legal, o consumidor é considerado vulnerável porque, no mercado de consumo, ele é apenas aquele que atua no polo final, sem ter condições de saber como os produtos e serviços são fabricados e oferecidos, quais são suas reais condições de operacionalidade, funcionamento, qualidade; se as informações fornecidas são verdadeiras ou não; se, inclusive, ele precisa mesmo adquirir determinado produto ou serviço, etc. Enfim, o consumidor é aquele que age, digamos assim, passivamente no mercado de consumo, na medida em que ele não determina nem conhece os modos de produção, os meios de distribuição e sequer decide pela criação deste ou daquele produto ou serviço. Assim, independentemente de sua idade, o consumidor precisa mesmo de proteção legal.Além disso, como adiantei, o CDC já havia dado especial proteção a certos tipos de consumidores, protegendo-os mais fortemente que os demais no capítulo das práticas comerciais. Lá, especificamente no artigo 39, estabeleceu que é "vedado ao fornecedor prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social" (inciso IV). De modo que, o idoso-consumidor já tinha proteção legal especial nas relações de consumo. É verdade que, com o EI, de pronto, estabeleceu-se novo marco de idade para a caracterização do idoso, o que ampliou o leque de proteção. Idosa, por definição legal, é toda pessoa que tiver idade igual ou superior a 60(sessenta) anos (art. 1º, EI). Prioridade no atendimentoO EI garante o direito à prioridade, buscando assegurar ao idoso atendimento preferencial numa série de serviços públicos e privados. Aliás, atender pessoas idosas discriminando-a positivamente sempre foi uma exigência da concreta aplicação do princípio da isonomia do texto constitucional. Para dar atendimento preferencial - qualquer que fosse, e indistintamente de ser público ou privado - bastava, em primeiro lugar, ser educado - como se faz oferecendo o lugar no ônibus - ou exigindo os direitos garantidos na Constituição Federal. Esse tratamento diferenciado como obrigatório, claro, é um reforço àquilo que já existia. Mas, o que preocupa é o fato de que, mais uma vez se coloca na lei algo que o próprio Estado não respeita nem tenta aplicar concretamente. Veja, a título de exemplo, o que regularmente ocorre, infelizmente, com os milhares de aposentados (maiores de 60 anos!) que fazem filas diariamente em frente aos postos do INSS pelo Brasil afora; eles ficam várias horas por dia debaixo de sol e chuva, muitos passam mal, desmaiam, adoecem; centenas têm mais de setenta e até oitenta anos; outros fazem filas nos postos de saúde e hospitais públicos etc. Ora, como é que se aplicará a lei que dá proteção ao idoso se o Poder Público - e suas autarquias - é o primeiro a não cumpri-la? Faço questão de colocar aqui esse comentário, pois para dar prioridade ao idoso, o Poder Público jamais precisou de lei ordinária: bastava cumprir o comando constitucional. Planos de saúde O EI regra alguns direitos que o idoso goza no que diz respeito à proteção à sua saúde. Ressalto, nesse ponto, um dos aspectos mais importantes, o de que ficou proibida a cobrança de valores diferenciados ao idoso pelos Planos de Saúde. A discriminação em função da idade ficou vedada (§ 3º do art. 15). Assim, com o estabelecimento dessa norma, ficou simplesmente proibido o aumento da contraprestação pecuniária dos usuários-idosos dos planos privados de assistência à saúde. Descontos em ingressos O consumidor-idoso tem direito a 50% (cinquenta por cento) de desconto nos ingressos para toda e qualquer atividade de diversões públicas, tais como eventos esportivos, culturais, artísticos e de lazer (art. 23, EI). Desse modo, cinemas, teatros, estádios de futebol etc. somente poderão cobrar metade do valor de face dos ingressos. A lei nada fala a respeito da qualidade dos assentos nos locais em que os serviços de diversões e culturais estão sendo oferecidos e todos sabem que muitos deles cobram preços diferentes em função da localização: arquibancada, geral, numerada nos estádios de futebol; galeria, plateia, balcão, camarote nos teatros, etc. A interpretação que se deve dar ao texto é, evidentemente, que cabe ao consumidor-idoso escolher o assento e pagar metade do preço, independentemente de sua localização. Para exigir o desconto, basta que o consumidor-idoso apresente qualquer documento que comprove sua idade. As normas do capítulo no qual está inserido esse direito nada dizem a respeito, mas por analogia com o § 1º do art. 39 (que cuida do transporte), entendo que é o máximo que o fornecedor pode exigir. Serviços de transporte No que respeita aos transportes públicos, o EI fixa uma série de direitos: a) aos consumidores-idosos usuários dos serviços de transporte coletivo urbano e semi-urbano é assegurada: a1) a gratuidade. Essa regra vale para os idosos com idade igual ou superior a 65(sessenta e cinco) anos e estão excluídos da garantia os serviços de transporte seletivos ou especiais prestados simultaneamente aos regulares; a2) as empresas de transporte coletivo deverão reservar 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados; b) no transporte interestadual: b1) fica assegurada a reserva de 2 vagas gratuitas por veículo para os idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos; b2) sempre que o número de idosos interessados numa viagem especifica exceder as duas vagas reservadas, os demais (que perceberem até dois salários-mínimos) terão direito ao desconto de 50% no preço da passagem. O artigo 41 garante aos idosos 5% de vagas "em estacionamentos públicos e privados", que deverão "ser posicionadas de forma a garantir comodidade" na sua utilização, mas remete a regulamentação à lei local, o que dificulta sua implementação. Já o art. 42 garante prioridade no embarque em todo o sistema de transporte coletivo, de modo que os prestadores de serviços em geral deverão cumprir tal regra tanto nas rodoviárias, como nos portos e aeroportos. A propósito, anote-se que nos embarques feitos em aeroportos, as companhias aéreas têm de dar preferência aos idosos juntamente com pessoas com crianças de colo e deficientes.Aponto, e repito, que, para o idoso ter acesso a todos esses benefícios, basta que demonstre a idade mediante a apresentação de qualquer documento pessoal (§ 1º, art. 39, EI).Internação do idoso As entidades de atendimento do idoso, quer sejam governamentais ou privadas, estão sujeitas à inscrição de seus programas junto aos órgãos competentes existentes: Vigilância Sanitária e Conselho Municipal da Pessoa idosa e, na falta deste, no Conselho Estadual ou Nacional da pessoa idosa (Parágrafo único do art. 48). A oferta dos serviços feitas por essas entidades está regulada pelo CDC (art. 30 e seguintes), assim como o contrato a ser firmado deve obedecer ao comando da lei de proteção ao consumidor (arts. 46 e seguintes), mas o EI, no seu artigo 50, regrou especificamente o mínimo no que respeita a oferta e contratação. Obrigou a que seja feito contrato escrito; determinou a oferta de uma série de itens no que diz respeito à qualidade dos serviços oferecidos (incisos II a XVII), dentre os quais se destacam a necessidade de criar espaço para o recebimento de visitas (inciso VII), a obrigação de fornecer atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer (inciso IX), o dever de manter arquivo atualizado com todas as informações referentes a cada idoso individualmente, tais como data de ingresso na entidade, nome do idoso e de seu responsável, com endereço atualizado, relação de seus pertences - cujo recibo tem de ser oferecido na entrada, conforme inciso XIV --, valores cobrados a título de preço e contribuições, assim como suas alterações e todos os demais dados que envolvam o idoso (inciso XV).Conclusão Estão aí, pois, alguns direitos estabelecidos em lei a favor do consumidor-idoso. Resta a esperança de que algum dia, em nosso país, os idosos possam mesmo ser respeitados com ou sem lei!
Todo ano é a mesma história, com crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes, etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Veja um resumo incompleto das barbaridades deste início de ano: Na USP calouros foram recebidos com banho de lama e tinta; na UFRGS os novos alunos do curso de engenharia civil foram obrigados a segurar uma cabeça de porco enquanto respondiam perguntas indiscretas e sobre eles eram lançados vísceras de peixe e ovos podres; na UFMG os veteranos estudantes de Direito pintaram o corpo de uma caloura com tinta preta, a acorrentaram e nela colocaram um cartaz escrito: "Caloura Chica da Silva"; na mesma escola, um novato foi pintado com tinta vermelha e amarrado a uma pilastra, enrolado por uma faixa de plástico utilizada para isolamento de acessos. À frente dele, os veteranos fizeram uma saudação nazista. Nos dois casos, fotos foram tiradas e distribuídas via internet e redes sociais; na Escola Politécnica da USP, foi implantada uma gincana machista, que agrediu e humilhou as calouras e, no campus de São Carlos, alguns veteranos ficaram pelados para hostilizar alunas que faziam manifestação contra o machismo e abuso dos trotes; no Rio Grande do Sul, uma estudante de apenas 14 anos, que não tinha qualquer relação com as manifestações, teve a visão comprometida ao ser atingida por um ovo lançado, etc. Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Veja o que disse um veterano a respeito dos trotes racista e nazista feitos na UFMG: "Acompanho o trote desde que entrei aqui. O trote da nossa faculdade, todos os alunos aceitam. Não tem violência (sic). Não acho que foi racista (sic!). É normal. O trote não tem violência física e psicológica. É para os alunos se enturmarem. O que houve foi uma descontextualização (referindo-se aqui a divulgação das fotos"1. É a própria confissão dos delitos! Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. Uma possível explicação para a aquiescência dos calouros com as violações está em que, desde muito cedo, é incutida neles, enquanto estudantes, a necessidade de evoluírem até atingirem uma espécie de ápice com o ingresso na faculdade (e, claro, seu término). O gargalo do vestibular exerce uma pressão tão grande que não é raro que eles se sacrifiquem além de suas forças para ultrapassá-lo, acabando por adoecer. De algum modo, essa forma de imposição adiciona-se ao já existente ingrediente da passagem do jovem (ou adolescente) para o mundo adulto com todas suas semelhanças com a jornada do herói. Esta, como diz Joseph Campbell, é mais profunda do que qualquer rebeldia e vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade. Para o famoso mitólogo, a façanha do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Daí, essa pessoa parte numa jornada que ultrapassa o usual para recuperar o que tinha sido perdido ou, então, - como é o caso - para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se um círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual e de uma evolução, na qual o jovem passa de uma posição de imaturidade psicológica para uma nova forma, adulta. É como se ele morresse e nascesse novamente. Trata-se de uma batalha, de uma luta para atingir um outro patamar de vida2. Nas antigas sociedades os rituais de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Essa transição pode ser de um padrão social ou sexual para outro (uma mudança para um patamar superior). Ritualmente, reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. E, assim como no nascimento, o rito de passagem exige esforço e sacrifício. Esses ritos podem, inclusive, ter caráter religioso, como, por exemplo, no batismo. Os rituais das "cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino"3. Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas muito intensas, que provocam uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo. Adicione-se que a independência é conquistada quando o jovem se desprende da dependência dos pais. O primeiro passo para a independência é a oposição à ordem vigente e todo herói começa como um rebelde. Nas sociedades da antiguidade, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, além de representarem uma transição particular para o indivíduo, significavam igualmente sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto, um cunho individual e também coletivo. Pois bem. O trote universitário tem todas as características de um ritual de passagem, no qual estão presentes os elementos característicos da transposição, da mudança de patamar, da entrada numa comunidade de nível superior, algo atingido com muito sacrifício e o ingresso representa a vitória do herói sobre os obstáculos. Esses elementos talvez sejam um dos grandes problemas para que se possa eliminar o abominável trote universitário. E pior: nessa mazela brasileira, ao que tudo indica, esse ritual do trote não nasceu de nenhuma necessidade instintiva ou ancestral que fosse capaz de lavar a alma dos calouros para que eles entrassem puros no templo universitário. A tradição é muito mais "pobre" e acabou vingando por um vício, um defeito de povos de países colonizados e explorados: o da imitação, como já tive oportunidade de relatar nesta coluna e que repito a seguir. Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: Os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!). Em Portugal, há relatos de trotes violentos no século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980 um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.). O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens ingressam na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. E pior: o mercado de consumo vem ano após ano reforçando a figura do calouro violado como se ele assim não fosse. O modelo é, infelizmente, realçado no imaginário do estudante pré-universitário pela publicidade de cursinhos e faculdades, que sempre mostram calouros felizes e violados (no mais das vezes com os cabelos raspados e pintados). Assim, o sistema capitalista vai colaborando para a manutenção das violações. Nunca é demais lembrar que aquilo que é repetido nos meios de comunicação como uma normalidade e que depois é confirmado pelos fatos públicos com naturalidade, acaba aparecendo como um comportamento correto e dentro da legalidade. Esse comportamento incutido pelo mercado funciona como violência simbólica. Como demonstra o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade, etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida4. Vê-se, pois, que no caso dos trotes ilegais, há uma junção de violência física, psicológica e também simbólica. Tudo muito lamentável. Por fim, para não deixar passar em branco, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Poe isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. __________ 1In: Portal Terra - 19/3/2013. 2O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, pág. 131 e seguintes. 3Idem, ibidem, pág. 147. 4O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
No meu artigo de hoje, apresento alguns pontos para reflexão a respeito do tempo, o nosso tempo privado e de sua perda. Meu amigo Outrem Ego um dia desses reclamava de sua ida ao dentista. Ele teve que tratar um canal e disse "Fazia anos que não ia ao dentista ou, como se diz agora, endodontista. (É assim que meu dentista se apresenta: É mole?). Era tudo muito moderno. Ele envolveu meu dente em uma espécie de máscara de borracha que tampou minha boca e parte de meu rosto. Minha boca ficou aberta sem que eu pudesse evitar. Aliás, bem aberta. Depois isolou o maldito - o dente, quero dizer. Fiquei lá, imóvel, com os apetrechos cirúrgicos colocados; o dente ali meio solitário sem contato com a gengiva, a língua, etc. Daí, com uma espécie de câmera, ele foi com umas agulhinhas até o local da infecção, cutucou, remexeu e resolveu tudo. Tudo muito moderno, como disse. Mas, algo não mudou: o sofrimento. Não doía, mas eu sofri profundamente. Impotente, passivo e não podendo sequer mexer a língua. Tava difícil de respirar. Demorou muito tempo. Parecia que não ia acabar nunca. Mas quer saber? Qual não foi minha surpresa, quando após o serviço acabar eu perceber que se passara apenas cinquenta minutos. Eu pensava que estava lá há horas". Não há nenhuma novidade na descrição feita por meu amigo. Esse é um tipo de tempo, subjetivo. Todos sabem que uma hora de amor dura muito pouco, e ao contrário de meia hora na cadeira do dentista. Ou, como disse, brincando, Einstein: "Você entende a relatividade quando vê que uma hora com a sua namorada parece um minuto e um minuto sentado num formigueiro parece uma hora". O tempo subjetivo, de todo modo, tem muita importância para o mercado. Por exemplo, nas diversões públicas, como um filme no cinema. Para que o espectador aguente um filme de quatro horas, ele há de ser muito bom. E isso acontece mesmo. Quantos filmes não assistimos com duas, três até quatro horas que "acabaram depressa"? Ou que ficamos torcendo para não acabar? E o inverso é verdadeiro: há filmes que depois de vinte, trinta minutos de exposição nos fazem mexer na cadeira sem parar ou que nos faz levantar e ir embora do cinema. Aliás, é comum que as pessoas descubram que o filme é ruim ou chato exatamente porque "percebem a poltrona". Em filmes bons, a cadeira passa despercebida. Há também um tempo sagrado, o tempo das festas periódicas, por exemplo. O "Tempo sagrado é indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o tempo sagrado 'não flui" que não constitui uma 'duração' irreversível. É um tempo ontológico por excelência... A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado - o mesmo que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século... Em outras palavras, reencontra-se na festa a 'primeira aparição do Tempo sagrado', tal qual ela se efetuou 'ab origine"1. O outro tempo é o profano, este nosso do dia a dia da vida social e política, de certo modo privado de religiosidade ou ao menos de significação religiosa2. O mercado de consumo apoderou-se também desses dois. Há muito a dizer sobre isso, mas coloco para o que interessa aqui que, simultaneamente, o mercado, de um lado, digamos assim, "rouba" significação do tempo sagrado (pelos menos os das festas periódicas) transformando as oferendas rituais em meros presentes adquiridos repetida e indefinidamente todo ano, pagos à vista ou em prestações e baseado na mera materialidade do produto. E, de outro lado, confere um aspecto "religioso" ou "sagrado" ao próprio mercado, criando templos de consumo, como os shoppings centers, ou tomando os rituais das festas e inserindo-as em várias diversões públicas, como nas competições esportivas. O tempo profano, que nunca se repete, pode ser medido. Ele "passa" ou, como dizem os filósofos, ele "dura". E, exatamente porque passa ou dura, ele se perde. Uma vez vivido, não volta mais. É o nosso tempo de relógio; uma duração que experienciamos no presente a cada segundo, a cada instante e que se perde na imensidão do passado também a todo momento. O futuro vai chegando, passando pelo presente e se perdendo no passado. Essa experiência do presente, essa duração nunca mais retorna. Daí que esse nosso tempo pode ser medido e perdido. Esse tempo, isto é, essa duração tem um custo, tem um preço e ademais tem um valor. O salário do trabalhador é medido em parte pelo tempo dedicado à prestação do serviço, o que se converte em custo para o empregador. Daí que a busca de eficiência e aumento de produtividade tem relação direta com a passagem do tempo. Quanto mais produtivo é o trabalhador no mesmo espaço de tempo, menos custo para o empregador na relação com o resultado do trabalho: a mercadoria produzida ou o serviço prestado ao consumidor. Por isso, o salário pode também ser majorado na relação com a produtividade no tempo. O trabalhador é também um consumidor (e há, claro, muitos consumidores não trabalhadores). O tempo para o consumidor tem um valor. Valor objetivo de troca do valor de seu próprio tempo, pois enquanto consome ou o gasta para consumir, perde-o para exercer outras atividades que não de consumo (embora, cada vez mais a maior parte de suas atividades como pessoas possam ser traduzidas como de consumo; ações de consumo). Valor subjetivo: o que ele quer fazer com seu tempo, é problema dele. Só a ele diz respeito. É direito pessoal, privado e da esfera de sua intimidade; é uma prerrogativa que lhe pertence. Mas, tanto no papel de trabalhador como no de consumidor, cada vez mais a sociedade "produz" perda de tempo. Há um tempo "roubado"3 pela sociedade, um tempo sem qualquer utilidade objetiva. Olhando-se a sociedade atual, percebe-se que o capitalismo é um "ladrão de tempo". "Ladrão" de vida, portanto. Esse roubo se verifica tanto em relação ao inevitável trabalho (na maior parte, sem função lúdica e/ou prazer; apenas de troca de tempo e força de trabalho por salário) como do tempo reservado ao consumo. Isso envolve, em alguns lugares específicos, como o das grandes cidades, o roubo do tempo feito pela ineficiência dos serviços públicos como, por exemplo, o de transportes. Os congestionamentos são verdadeiros ladrões sem quaisquer escrúpulos. Essa perda é irreversível. O dia, as horas, os minutos passaram; não voltam mais. Não há como recuperá-los. Mas, essa perda de tempo não é muito consciente em várias situações. E, ademais, é preciso impedir que as pessoas tomem consciência dela. São vidas roubadas, jogadas fora impunemente. Não é bom que essas perdas aflorem na consciência, para que as pessoas não descubram sua própria inutilidade nesse desgaste insano e irreversível. É conhecido o mito de Sísifo, um rei de Corinto. Por ter contado que avistara uma enorme águia carregando em suas garras uma jovem, sequestrada a mando de Zeus, foi por este condenado a ficar eternamente rolando montanha acima uma rocha que sempre caia antes de chegar ao cume. Perda de tempo total. Lendo-se a obra homônima de Camus, "O Mito de Sísifo", vê-se que o problema do pobre coitado rei não estava exatamente na subida da montanha. De algum modo, ao fazer o esforço para empurrar a pedra morro acima, pode-se imaginar Sísifo vivo ou pelo menos sentindo-se assim, usando seus músculos, percebendo o esforço empreendido, suando, enfim, vivendo com alguma utilidade (mesmo que fosse apenas no ato de empurrar a pedra). O problema dava-se na volta: Quando a pedra rolava morro abaixo, Sísifo a observava e, enquanto descia, tinha tempo para pensar. Tinha tempo para refletir sobre sua própria condição e sobre sua prisão. Pode-se, pois, dizer que, no dia seguinte ele teria de, novamente, empurrar a rocha para cima e, antes do cume, ela rolaria de volta; e no dia seguinte e seguinte, indefinidamente. Ele podia assim sentir-se inútil. Ele poderia perceber que nada valia. Essa consciência era seu verdadeiro drama. E, para citar novamente, Einstein: "Fazendo a mesma coisa dia após dia, não há como se esperar resultados diferentes". Aquilo que se passou a intitular de "consumismo" (a necessidade e o desejo de comprar incessantemente) assume, em parte, o papel de bloquear a consciência dessa perda. O modelo do mercado atual criou uma "urgência para o consumo". Há uma necessidade, uma imposição para que o tempo que reste após aquele gasto no trabalho (e/ou nos estudos) seja utilizado no consumo; seja literalmente consumido. É uma oferta de prazer, na verdade. O consumo como prazer. Oferece-se um prazer no imediato e, talvez, porque não se consiga preencher a alma do consumidor, este continue na busca incessante desse prazer imerso no consumismo irrefreado. Não se busca mais um consumo como um finalidade de descanso ou sossego; com um resultado que alivie o peso da existência. Há uma espécie de pressa insana e por demais exagerada. Pressa para se chegar aos lugares, pressa para se trocar de roupas, de sapatos e até de automóveis. Muita pressa para se chegar nos mesmos locais. Ou, como diz a antropóloga Alexandra Morais Pereira, na sociedade contemporânea, o ritmo da vida alterou-se. Busca-se ao máximo possível uma espécie de prazer ligada ao consumismo, numa maratona diária. "O dia não é mais de sol a sol mas, de 86.400 segundos... A urgência no consumo, como fonte de prazer, é deste modo cada vez maior"4. O sistema de consumo veloz se impõe como uma perspectiva necessária de consumo, numa espécie de círculo que aprisiona o consumidor: Este tem de consumir porque é isto que alimenta sua vida e como esta não pode ser preenchida satisfatoriamente com produtos e serviços, então a saída, é consumir mais. Tudo numa velocidade cada vez maior. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até as lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: É oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. E esse tipo de pacote é um grande sucesso. E, como disse, nessa urgência, é importante não deixar o consumidor perceber o tempo passar. Há um case de um supermercado do Estado americano de Connecticut que é elogiado por prestar um ótimo serviço ao consumidor e que usa a seguinte tática: Quando as filas nos caixas passam de três pessoas, seus funcionários começam a distribuir doces, balas, chocolates e outras guloseimas para quem espera e aproveitam para fazer pesquisa sobre os produtos. Desse modo, o tempo passa mais facilmente. A ideia é tornar agradável a espera inevitável. Na verdade, a questão das filas é realmente um problema sério em todo o mundo (eu, inclusive, por isso já abordei aqui nesta coluna a questão dos fura-filas). A fila é uma das mais evidentes ladras de tempo. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Um dia desses tive de ir à uma agência de um banco oficial. Quando entrei, vi que havia um monte de cadeiras arrumadas em fileiras diante dos caixas. Havia muita gente sentada. Desisti e voltei no dia seguinte. Levei um livro e fiquei sentado lendo enquanto aguardava. Realmente, não é uma boa notícia entrar numa agência bancária e ver cadeiras alinhadas em frente aos caixas!". Apesar de tudo, cada vez mais as pessoas começam a se dar conta do tempo perdido em suas vidas por culpa dos terceiros e do funcionamento da sociedade como um todo. Não é à toa que alguns serviços públicos tem o nome de "Poupa-tempo". E, no mercado de consumo, como a perda de tempo muitas vezes é por demais exagerada, os consumidores passaram a reclamar e até a propor ações judiciais pleiteando indenização pelos danos causados. Do ponto de vista jurídico, esse tempo perdido, roubado na esfera do direito do consumidor, pode realmente gerar indenizações. De fato, há muitas situações de perda efetiva de tempo em matéria de relações jurídicas de consumo. As filas reais de muitos serviços que já referi em bancos, hospitais, aeroportos (e aqui não só filas, como também os atrasos, os cancelamentos, as perdas de conexões e situações similares), etc. e as filas virtuais nos serviços de atendimento telefônicos em geral, quer seja para reclamar ou cancelar uma compra, são prova dessa perda. O consumidor também gasta muito de seu tempo para obter resultado adequado de seus direitos violados, como, por exemplo, no serviços de assistência técnica e nos consertos em geral ou quando fica aguardando o retorno de serviços essenciais de energia elétrica ou distribuição de água, interrompidos pelos mais variados motivos, etc. A doutrina jurídica defende esse direito à indenização em função do tempo desperdiçado por culpa do fornecedor, como se pode verificar no texto de Pablo Stolze, "Responsabilidade Civil pela perda de tempo" e na obra por ele citada de Marcos Dessaune, "Desvio produtivo do consumidor - O prejuízo do tempo desperdiçado"5. Do mesmo modo, a jurisprudência já tem se manifestado sobre o assunto, conforme se pode ver de Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, citado no artigo referido de Pablo Stolze, e que fixou indenização por dano moral em função da perda do tempo livre do consumidor6. Para terminar, quero frisar que, naturalmente, como o tempo privado pertence à própria pessoa, esta pode desperdiçá-lo caso queira. É direito seu. A questão, portanto, não é a perda do tempo em si, mas seu "roubo" por terceiros. Coloco assim esse importante tema do tempo e de sua perda para reflexão. Do modo como a sociedade caminha, o que se percebe é que cada vez mais há, como disse acima, uma perda de tempo e, logo, de vida; a sociedade atual "rouba" vida das pessoas. __________1Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 60. 2Idem, ibidem, p. 59. 3Usarei o verbo "roubar" em seu sentido leigo, não jurídico. 4O nu e a publicidade audiovisual. Lisboa: Pergaminho, 1997. P. 60. 5São Paulo: RT, 2011, apud Pablo Stolze, texto citado. 6Acórdão da lavra do Desembargador Luiz Fernando de Carvalho, 3ª. Câmara Cível, julgamento de 13/4/2011.
Nesse dia 15 de março é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia do mês de março de 1962 que o então Presidente americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, dentre estes, o direito a segurança, informação e escolha e o direito de ser ouvido, tema que já abordei nesta coluna. Aproveito a data para fazer uma abordagem de nossa lei de proteção ao consumidor, a lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Pretendo apresentar algumas de suas virtudes e também os defeitos que, depois de mais de 22 anos de vigência, acabaram-se verificando, o que está por exigir uma reforma. O Código de Defesa do Consumidor - algumas virtudes Inicio fazendo um elogio ao CDC. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que o fez nascer, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas. Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc. tudo isso é regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Aliás, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra, como querem alguns. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente ajudou em muito o crescimento do mercado. O Código de Defesa do Consumidor - alguns defeitos Muito bem. Acontece que nem tudo o que se esperava dele acabou acontecendo. O CDC é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ele inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de maneira a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ele fez e faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando nulas ou inválidas no todo ou em parte as cláusulas contratuais e/ou práticas comerciais que desrespeitem seus princípios e regras. Qual o problema, então? O principal problema está em que nesses mais de 22 anos de vigência, os elementos gerais e principiológicos não conseguiram suprimir abusos sempre praticados, além de novos que surgiram. O que era para ser uma virtude, veio, pois, mostrar-se como um defeito em várias hipóteses. E para quem ainda tinha alguma dúvida, a ficha caiu recentemente no terrível episódio da cidade de Santa Maria. O CDC não foi capaz de proteger os consumidores, pois não tem elementos que permitam o controle real e efetivo de algumas atividades, assim como não consegue garantir a segurança dos consumidores em certos estabelecimentos. A tragédia da boate Kiss é, até agora, a maior, pior e mais triste prova desse defeito. Tomarei, pois, esse caso traumatizante para demonstrar a necessidade de que se faça uma reforma no CDC, deixando-o menos principiológico - sem abolir, claro, os princípios que lá estão - para torná-lo mais eficaz e capaz de regular especialmente certas situações concretas muito relevantes. Segurança abstrata, insegurança concreta Já foi dito inúmeras vezes que o CDC contém regras que garantem os direitos fundamentais do consumidor, dentre os quais a proteção a vida, saúde e segurança, conforme pode-se ver do inciso I do artigo 6º, do "caput" do artigo 8º e do "caput" do artigo 10. Há os que defendem que isso basta para dar guarida ao consumidor. Eu também já pensei assim mas, como disse acima, tenho agora plena certeza de que é hora de mudar. Para que, realmente, nossa lei de proteção ao consumidor cumpra sua missão, é necessário que ele regre situações específicas - as mais amplas, naturalmente - conhecidas e que conseguiram ficar esses anos todos à margem da lei e passaram imunes a seus efeitos. Repito: as normas atualmente existentes no CDC não são capazes de oferecer a segurança que se espera para muitas hipóteses e para o caso referido. Quem teria coragem de dizer para as famílias dos 241 jovens mortos na boate Kiss que no Brasil existe uma lei que garante a segurança dos frequentares de boates e clubes noturnos? Eis a realidade: A norma, como está escrita, simplesmente não funciona para garantir a segurança dos frequentadores de boates, clubes e estabelecimentos similares. Como eu tenho dito: É melhor um legislador que fale muito - escreva muito - mas que deixe claro o sentido da norma jurídica assim como sua incidência e eficácia, que um que fale pouco e deixe muitas dúvidas, com isso impedindo que a lei seja "de fato" aplicada. Por isso, penso que aprimorar a lei, ampliando claramente seu âmbito de ação e especificando que certos abusos não podem ser praticados é o que a sociedade espera.
quinta-feira, 7 de março de 2013

O poder empresarial na sociedade de consumo

Há muitas teorias sobre o funcionamento e o exercício do poder. Poder real, efetivo, de fato e não apenas formal. Ou, em outros termos, poder de quem realmente manda e não de quem parece que manda. E é comum usar-se a expressão "o poder do mercado" para referir o mercado capitalista. Nesse caso, estar-se-ia falando do poder dos fornecedores sobre o consumidor e sobre mercado em si. A história mostra que ele existe mesmo, sendo capaz de fazer coisas boas e más; coisas belas e sujas. Basta ficar com a crise financeira de 2008/2009 para apontar um exemplo de coisa suja feita no mercado dominado por administradores inescrupulosos e jogadores de todo tipo. Pessoas que detinham o poder para fazê-lo. E o poder dessas pessoas e desses bancos e demais instituições financeiras era tamanho, que em outubro de 2008, o governo americano forneceu 700 bilhões de dólares para socorrê-las1. Os administradores dessas instituições haviam criado uma situação tal que não permitia que eles falissem. O controle por eles exercido e a maneira como eles se envolveram em amplos aspectos da vida econômica e social impedia, como impediu, sua quebra, pois esta afetaria todo o sistema financeiro, econômico, produtivo e social. Eles conseguiram tornar-se "grandes demais para falir"2. Mas, esse comando exercido por esses administradores e banqueiros estava garantido de que modo? Era consubstanciado no quê, propriamente? Não faço a pergunta pensando nos aspectos econômicos, financeiros ou produtivos. Faço-a sob a perspectiva do poder. Como é que eles fizeram o que fizeram, escaparam ilesos (e muitos deles milionários)? Como esse enorme poder no mercado tornou-se possível? Há, naturalmente, muitas explicações e que envolvem os produtos oferecidos, os aspectos da desregulamentação do sistema financeiro americano, os empréstimos de alto risco, a questão dos subprimes, o (super) endividamento dos consumidores etc. Mas, isso não me interessa aqui. Gostaria de abordar o aspecto menos visível, o do poder existente e como ele se tornou e se torna possível no mercado de consumo. (Estou usando o exemplo da crise financeira de 2008/2009 apenas para mostrar, desde logo, que os empresários exercem forte poder na sociedade). Dentre as várias possibilidades de análise existentes, apresentarei alguns aspectos teóricos que envolvem a estrutura do poder, para que possamos refletir a respeito. Farei algumas escolhas, conforme mostro a seguir. O escritor de nacionalidade turca Elias Canetti em seu livro "Massa e Poder"3conta a parábola do gato e do rato. Do que ele diz, pode-se extrair mais ou menos o seguinte. Um gato segura um rato na boca. Pergunta: Isso é expressão de poder? A resposta é negativa. A imagem mostra uma expressão de força e não de poder. Tanto o gato quanto o rato estão presos a mesma força física. O rato, é verdade, nada poder fazer, mas o gato também não, pois se abrir a boca, o rato foge. Daí que a força que aparentemente é superior no gato, do modo como está sendo exercida, o paralisa. Trata-se de uma relação estagnada, sem movimento: O que falta é liberdade de ação; dos dois lados. Sem liberdade, verifica-se apenas a força bruta. Nada mais. Mas, eis que o gato solta o rato numa sala vazia e fica parado na porta. Surge o poder. Este aparece exatamente quando a força é ocultada e a liberdade permitida. O gato não perdeu sua força, apenas a guardou. O rato ganhou liberdade. Liberdade para se locomover num certo território e tempo para viver. Espaço e passagem de tempo. Claro que não há, no exemplo, muita liberdade, nem muito poder. O gato manda um pouco e o rato pode pouco, pois, se tentar sair da sala, cai na boca do gato e o poder do gato se esvai quando pega o rato na boca. Mas, o exemplo permite uma reflexão importante: Só existe poder, se aquele que obedece puder não obedecer. Isto é, só existe poder se aquele que obedece tem liberdade para obedecer ou não. Passemos para um outro exemplo. Um homem aponta uma arma para outro homem, que levanta os braços. Essa atitude de levantar os braços é sinal de obediência. Logo, a relação é de poder - ainda que pequeno, próximo da força física. Ela é de poder porque, com base nos elementos teóricos, aquele para quem a arma está sendo apontada pode ou não levantar a mão. Ele tem liberdade de ação para isso. Como ele levanta, há exercício de poder. Friso: Para existir poder, quem obedece deve pelo menos ter a liberdade de uma ação para não obedecer. No caso, levantar os braços ou não. Mas, esse homem com a arma manda que o outro ande na direção de um prédio. Ele, então, obedece e anda (Podia andar ou não, mas anda. São as duas opções). Depois, o homem armado diz para o outro entrar no prédio e no elevador. Ele obedece de novo (Podia não obedecer, mas obedece). O armado manda o desarmado apertar o botão do 30º andar. Ele novamente obedece. No entanto, quando chegam no 30º andar e dirigem-se até a sacada, o homem armado diz ao desarmado: "Vá até o parapeito e salte". Nesse instante o poder do homem armado se esvai. É que ele retira uma das alternativas do homem desarmado. Ele obedecia porque não queria morrer ("Levante os braços ou leve um tiro"; "Entre no elevador ou leve um tiro"). Acontece que, no parapeito do 30º andar a ordem é "Leve um tiro ou morra saltando". Não há mais alternativa. O poder acabou e a força surgiu. Só há força, sem alternativa de obediência (isto é, sem um mínimo de liberdade que é uma ação para desobedecer). No exemplo dado, tudo indica que o homem desarmado irá lutar com o homem armado. É a única chance que ele tem. Já não há mais motivo para obedecer. Podem-se fazer muitas ilações apenas a partir desses dois exemplos e da teoria de que deve existir um mínimo de liberdade para, de outro lado, existir um mínimo de poder. Uma delas: Se aquele que vai obedecer tem muita liberdade para não obedecer (isto é, muitas opções) , mas ainda assim obedece, então o poder de quem manda é muito grande. Ou seja, o poder cresce na medida em que a liberdade daquele que obedece também cresce. Muita liberdade para desobediência com obediência significa, pois, um grande poder. Pode-se, por isso, afirmar que, nas democracias nas quais se verifica ampla liberdade de ação por parte dos subordinados (ou, propriamente, cidadãos), que obedecem aos comandos legais, o poder é magistral. Pode-se também afirmar que, com base na liberdade para desobedecer, obedecendo, o poder de quem exerce é legítimo. Logo, do ponto de vista político, a democracia enquanto regime gera um enorme poder: Quanto mais os cidadãos são livres, mais poder tem o ocupante do cargo estatal; e legítimo. (O inverso parece ser verdadeiro: quanto mais força exerce o detentor do cargo estatal - por exemplo, numa ditadura - menos poder ele tem; e ilegítimo; por isso acaba usando a força física a toda hora). Outra ilação: O poder quando é grande mesmo não se utiliza da força, a não ser em situações especiais e não rotineiras. Ou, dizendo em outros termos, a força de quem detém um poder de verdade, forte, enorme, deve ser ocultada. Aquele que usa demais a força para conseguir obediência perde em legitimidade e também em poder. Veja-se o comando exercido por um pai ou uma mãe sobre o filho. Quanto menos força for usada mais poder e legitimidade haverá. Se um pai apenas fala e o filho obedece, seu poder é enorme. Mas, se para obter obediência ele castiga o filho, o tranca em casa, limitas suas ações, proíbe quase tudo, isto é, se exerce força física, então tem pouco poder. Se ele fala emitindo um comando e não consegue resposta (obediência), então terá sempre de recorrer à força física. Logo, vê-se a figura de um pai ou mãe fracos. No mesmo exemplo, mas com uma variável: Se um pai, para obter aquiescência do filho tem de mandar, depois ameaçar, depois chantagear ou dar um prêmio para conseguir obediência, seu poder também se esvai. Aliás, se o pai só consegue obediência do filho dando alguma coisa em troca, então quem tem poder é o filho e não o pai. Dá para ver, por exemplo, o poder que teria alguém que, sem arma em punho, mandasse que o outro levantasse as mãos e esse outro obedecesse. O mesmo se daria com o professor que simplesmente mandasse e os alunos obedecem sem pestanejar. Um professor que pudesse entregar as provas para os alunos e dissesse: "Não colem. Vou ao banheiro e já volto". Depois saísse da sala e ao retornar ninguém tivesse colado, realmente, teria muito poder. (Há muitas nuances em todos os casos que estou trazendo e que permitem mais ampla abordagem. Por exemplo, o Professor pode ter mais ou menos poder, dependendo da instituição a que ele pertença, pois esta pode já inspirar confiança nos alunos e daí comando e obediência. Do mesmo modo, a relação pai e filho não tem apenas aqueles estritos limites; há muito mais; há amor, carinho e proteção, por exemplo. Extraí apenas certos pontos para fincar a análise em alguns aspectos relevantes para nossa reflexão neste limitado espaço do artigo). Dos fatos apresentados, outra ilação pode ser retirada: A relação de poder implica confiança. Quem tem poder de verdade manda e confia na obediência e quem obedece confia em quem manda. Aliás, é por isso que se diz que os filhos precisam de limites; necessitam que os pais imponham certos parâmetros de ação. Em certo sentido, os filhos pedem o comando, pois isto lhes dá segurança. Daí que confiança e poder geram segurança dos dois lados. Quem tem poder é seguro da obediência que receberá. Um namorado inseguro é aquele que tem ciúme, que vigia a namorada, que pergunta a toda hora onde ela está, sem nenhuma garantia de obediência (na hipótese, de fidelidade). A confiança nesse caso se esvairá. Um pai que confia no filho, não fica perguntando toda hora o que ele faz ou fez. Mas, sabe que, se ele fizer algo importante ou considerado errado, chegará em casa e contará para ele. Destarte, os aspectos teóricos explicam que aquele que tem poder age com inteligência e conhecimento. Ele sabe muito bem quais são as possiblidades de ação do outro (daquele que vai obedecer ou não) e por ter essa sapiência sabe também quais são seus próprios limites: Há coisas que ele nunca pode pedir nem mandar. Ou, em outros termos, quem detém o conhecimento detém o poder. Um professor, para conseguir muita obediência, tem de saber que há certas coisas que ele jamais pode pedir que seus alunos façam. Tem de saber que suas ordens devem ser, num alto de grau de probabilidade, possível de serem obedecidas. De nada adianta ele mandar que seus alunos leiam e estudem um livro de mil páginas num único dia, pois não será obedecido (Esse exemplo-limite serve apenas para mostrar como deve ser feito o planejamento da ordem: Quando mais fácil ela for de ser obedecida, melhor). O mesmo se dá com um pai e uma mãe. Pergunto: quem tem poder? O pai que rejeita a filha grávida do namorado indesejado por ele ou o pai que aceita essa filha de braços abertos, a acolhe e cuida dela em casa? O primeiro não tem poder algum, até porque perderá a própria filha que irá embora. O segundo sim. Este conseguirá obediência de filha grata pela recepção (ainda que, em algum canto, ele chore calado...). É esse saber, portanto, que dá base à ação. Examinando-se tudo o quanto acima descrevi a respeito da teoria, o que mais chama a atenção, parece-me, é exatamente o fato de que o conhecimento pode levar ao controle, ao exercício de um enorme poder. No que respeita ao mercado, os administradores bem formados e bem informados já de há muito tempo desenvolveram alta tecnologia de arquivamento de dados que envolvem não só os consumidores como seus concorrentes - quando estes existem. Esses dados, bem coletados e bem estudados, permitem a tomada de decisão para os caminhos que a empresa deve tomar visando conquistar sua fatia de mercado (market share) inicialmente, para fazê-lo crescer ou para consolidá-lo. Isso se faz, certamente, conhecendo muito bem os consumidores, os concorrentes e também a si mesmo: Seus produtos, seus serviços e a comunicação a ser feita a partir desse saber. Note-se que as estratégias de marketing desenvolvem em larga medida a ideia de segurança (na marca, no produto, no serviço, na qualidade, no atendimento etc.), buscando firmar uma base de confiança (na empresa e em seus produtos e serviços). O poder de uma empresa no mercado, portanto, está em larga medida ligada a capacidade que ela tem de se conhecer a si mesma (seus produtos, seus serviços, seus métodos de comunicação, de administração etc.), de conhecer profundamente os consumidores de seu público alvo (seus hábitos, seus desejos, suas necessidades etc.) e ao mercado como um todo. Tanto no passado, como no presente e projetando perspectivas para o futuro (Como deve fazer um bom político ou um bom pai). Esse tipo de tecnologia do conhecimento e da informação é um caminho na direção do poder no mercado, do controle das ações dos consumidores, dos concorrentes e também dos demais atores políticos e sociais que existem na sociedade. __________ 1Ver a respeito desse assunto, por exemplo, Michael J. Sandel, Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. Ed., 2012, p. 21. 2Idem, ibidem, mesma pág. 3São Paulo: Cia das letras, 1995, p. 281 e segs.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O consumidor fake e o mercado pirata

N'outro dia meu amigo Outrem Ego, antes de me fazer uma pergunta, contou que assistiu a um filme, desses seriados policiais da tevê, que narrava um caso interessante (Infelizmente, não lembrava o nome da série). Era a história de um empresário que queria porque queria que seu filho seguisse-o na carreira; que pudesse um dia tomar conta das empresas. Mas, o filho gostava de arte e desejava ser pintor. Assim, contra a vontade do pai, passou a se dedicar a pintura. O pai tinha muito dinheiro e uma casa maravilhosa decorada lindamente por arquitetos de primeira linha. Tinha, inclusive, penduradas nas paredes, pinturas à óleo originais e valiosíssimas. O filme cuida do dia em que o pai descobre que o filho havia furtado e vendido os tais quadros, embolsando uma fortuna. Mas, a ironia era que o filho havia copiado as obras e as havia colocado no lugar das originais. O pai, durante meses, jamais se deu conta disso. Quando o filho foi preso, disse para o pai: "Que diferença faz para você? Há meses que você olha para os quadros nas paredes e não vê que são cópias. Pouco importa quem pintou, o que vale é que você pensa que foi o pintor original. Mas, você estava vendo meus quadros!". Daí, meu amigo perguntou: "Se você aprecia uma pintura e, de algum modo, ela faz bem a seu espírito, que diferença faz saber se ela é original ou cópia? Aliás, depois que você a admirou, se encantou com ela e se emocionou, que adianta alguém dizer que ela não era original?". Conta-se que, certa vez, foi encomendado a um grande jurista brasileiro um parecer a respeito de um importante caso. Feito o trabalho, o cliente dirigiu-se ao escritório do jurista para retirá-lo. Mas, ao chegar, resolveu reclamar do preço cobrado. Disse que estava muito caro. O parecerista não se fez de rogado. Disse: "Está bem, farei de graça". Depois, rasgou a ultima folha, retirando sua assinatura e entregou para o cliente. "Pronto", disse, "Agora já pode leva-lo". "Mas, agora não vale nada", reclamou o cliente. "Pois, é!", respondeu o jurista. Esta é do famoso pintor espanhol Pablo Picasso. Dizem que, certa vez, ele, de regresso ao Castelo de Vauvenargues no sul da França, onde morava, encontrou o local sem mantimentos. Não havia comida, vinhos, etc. Chamou o capataz e pediu-lhe que fizesse as compras, mas este disse que não havia dinheiro em casa e nem talão de cheques. Picasso, então disse: "Não tem problema". Desenhou uma pomba numa folha de papel. Assinou e disse: "Pague com isto!". Meu caro leitor, pergunto: Quanto vale uma assinatura? E um original? Aliás, o que é mesmo um original? Por exemplo, os próprios pintores descobriram um bom filão com as reproduções de suas obras, numeradas ou não. O mercado capitalista é expert em dar preços às coisas e tem também a habilidade de supervalorizar algumas delas. Às vezes, a valorização tem relação com a demanda: muita demanda e pouca oferta gera preço alto, como acontece na bolsa de valores e nos preços das commodities em geral. Em outras vezes, o preço é ditado pela autoridade de quem produz o bem. Os exemplos acima do parecerista e de Picasso ilustram bem esse aspecto. Essa autoridade nasce do próprio mercado, que a reconhece numa espécie de círculo fechado: quem tem autoridade (e mais valor) em determinado assunto a detém porque é reconhecido pelo mercado e o mercado, por sua vez, dá mais valor a quem tem autoridade. Nas artes, nem sempre isso ocorre em vida, para azar de alguns artistas. Fiquemos apenas com o exemplo de Van Gogh, que se suicidou aos 37 anos (em 1890) e vendeu em vida um único quadro por apenas 400 francos. E que, a partir de uma exposição feita em Paris em 1901, começou a ficar famosíssimo. A pintura intitulada "Retrato do Doutor Gachet" (Gachet foi o médico que cuidou de Van Gogh nos últimos tempos de sua vida) foi vendida no século passado por oitenta e dois milhões e quinhentos mil dólares!. Mas, esse tema do preço das coisas e das pessoas (e também seus valores), trato em outra oportunidade. Hoje quero questionar essa questão do original e do falso. Por que o consumidor paga para ter algo copiado? Compra um produto fake, como se diz, consciente de que ele não é original. Diferente, pois, do pai do início deste artigo, que admirava as obras copiadas na parede de sua casa, sem saber que se tratava de falsificação. Meu amigo Outrem Ego, me disse que tem gente que usa relógio rolex falso porque é mais fácil de entregar para o ladrão... Ele protesta: "Mas, então, pergunto, se é para ser roubado, para que usá-lo? Por que não usar um relógio qualquer sem marca? Ou nenhum, como faço eu?". O mercado combate ferozmente todo tipo de pirataria. Melhor dizendo, não é exatamente o "mercado" que combate, mas os proprietários das licenças e das marcas registradas. Mesmo assim, a pirataria resiste; de fato existe um "mercado pirata". Esse tipo de demanda é criada em parte pelo próprio dono do produto de grife, que o promove como algo raro e/ou caro a ser cobiçado. Como o preço fixado não é barato, acaba tendo de concorrer com os falsificadores que atuam na clandestinidade vendendo a preços mais acessíveis. Então, podemos dizer que grande parte desses consumidores que adquirem os produtos falsificados o fazem, em primeiro lugar, porque reconhecem uma autoridade na marca e, em segundo lugar, porque o preço permite. Do que se pode concluir que, se o produto "de marca" não fosse caro, o consumidor compraria o original. Eu já cuidei nesta coluna da questão desse tipo de uso. De fato, o consumidor, quando adquire um produto de grife, o faz porque de algum modo ele lhe gera uma distinção social. Passa a ser olhado (nesta nossa sociedade de alta exposição ao olhar) pelos demais como possuidor de uma identidade (que ele valoriza). A grife também permite que ele frequente certos locais e grupos, que se apresentam do mesmo modo. Daí que, às vezes, acreditando nessa forma de distinção e não podendo adquirir o original, ele se contenta com a cópia. Mas, claro, a torcida é a de que a cópia seja conhecida apenas dele. O consumidor não irá pendurar um relógio rolex falso no braço e sair dizendo "é falso". Ele usará para mostrar e para que as demais pessoas o enxerguem como usando um verdadeiro. O mesmo se diga em relação a qualquer outro tipo de produto de marca: bolsas, sapatos, canetas, objetos de vestuário, etc. É o mercado, portanto, que cria e oferece tanto o produto original como o falso (embora o próprio consumidor consiga, evidentemente, em alguns casos, produzir a cópia para seu uso). Aliás, o mercado, sempre inovador, lançou recentemente mais produtos "falsos", com uma pequena diferença. Eles são "falsos originais", se é que se pode assim defini-los. Vejam, primeiramente, essa oferta que existe nos Estados Unidos da América. Trata-se de um serviço intitulado "Crowds on Demand", que promete algumas horas ou dias de "vida de celebridade" ao consumidor. Lembra um pouco um serviço que existe tanto no Brasil como em outros lugares, que é o da contratação de "celebridades" para que estas frequentem festas de casamentos, de batizados, de aniversário, de empresários, encontros políticos etc. A diferença é que, no caso, a "celebridade" é o consumidor. É uma celebridade falsa, mas será que faz muita diferença? Veja como funciona. Extraí o material do site da empresa. A oferta do site diz mais ou menos isso: "Você já sonhou em ter uma multidão te adorando e celebrando seu nome, proclamando que você é um campeão e cantando elogios pelas ruas? Para a maioria de nós, isso é apenas uma fantasia. Agora, a experiência antes reservada apenas para presidentes e celebridades está à venda. 'Multidões à Demanda' pode organizar qualquer grupo, pequeno ou grande, em menos de uma semana". "Experimente o serviço que o renomado Clube de Viagem de Shanghai proclamou a melhor experiência de luxo do mundo". O site diz que a empresa, com sede em Los Angeles, tem operações em São Francisco, Las Vegas e Washington D.C.. E que a tal multidão é formada por "atores treinados, cuja maioria apareceu em programas de televisão e filmes". E completa: "então se você quiser usar nosso serviço só para se divertir ou para algum trabalho, temos tudo para exceder suas expectativas". Além disso, diz o site, o serviço é oferecido não só em inglês como em outras línguas, com pessoal "fluente em chinês (mandarim), francês, alemão e espanhol". Esse serviço (e também outras situações de produto ou serviço falsos) lembrou-me uma máxima dita ao final do bom e assustador filme baseado na obra de Patricia Higsmith, O Talentoso Ripley (refilmagem do filme francês "O sol por testemunha"), no qual o personagem central rouba a identidade de outra pessoa para viver em seu lugar. Diz ele: "Prefiro ser um falso alguém do que um ninguém verdadeiro". Claro que não é preciso que o produto ou o serviço sejam falsos para que o elemento psicológico apareça: há consumidores que compram caros produtos originais para parecerem o que não são; muitos se endividando para tanto. E há mais nesse mercado do falso-original: Há um site que oferece namoradas falsas para os homens que querem fazer ciúmes para as ex-namoradas ou para aqueles que não gostam de ser classificados como "solteirão" no Facebook. Trata-se de um serviço lançado no Brasil, o NamoroFake, que pode ser acessado. Os preços fixados no site são: a) R$99,00 por 30 dias para uma namorada virtual ficar postando como namorada verdadeira no perfil do Facebook do cliente; b) R$39,00 para ter uma namorada falsa por sete dias; c) R$19,00 por uma ex-namorada por sete dias; e d) apenas R$10,00 por uma "ficante" por três dias. Por enquanto, o serviço é oferecido apenas para os homens. O site explica como funciona o serviço: "Namoro Fake oferece um serviço que permite o homem contratar uma mulher real para se passar por sua namorada de mentira na rede social com grau de afinidade e período determinado. Quem está contratando terá que definir os posts e comentários que a namorada fake irá escrever no seu perfil". E, para evitar confusões, o site deixa claro o seguinte: "Nota: Os perfis são de mulheres reais e não são falsos. Não somos uma agência de acompanhantes. Não estamos oferecendo-lhe serviços de namoradas verdadeiras. POR FAVOR NÃO confunda nosso serviço para qualquer fim de natureza sexual". É isso. O mercado, muito criativo, não cessa de fazer ofertas falsas ou verdadeiras de produtos e serviços originais ou copiados. Parece tudo uma questão de gosto, mas isso, como se diz, não se discute.
Quando o Papa Bento XVI foi pela primeira vez aos Estados Unidos, a procura por entradas para assistir às missas que ele rezaria em estádios de Nova York e Washington foi muito superior à oferta de assentos. As entradas eram gratuitas e estavam sendo distribuídas pelas dioceses e paróquias católicas. Foi inevitável o surgimento dos cambistas. Ingressos vendidos via internet chegavam a custar duzentos dólares. Os representantes da Igreja Católica protestaram contra a venda dos ingressos, sob o argumento de que não se pode pagar por um sacramento. Esse tipo de conduta desvirtuaria o espírito da oferenda, comprometendo a ordem religiosa. Não se poderia, segundo os críticos, transformar a missa e a própria presença do Papa numa mercadoria ou num serviço como outro qualquer. Quem já foi a parques de diversão sabe que é básico esperar nas filas dos brinquedos. Em dias de muita demanda, nas atrações mais concorridas, a espera é enorme e cansativa. Mas, nos Estados Unidos, a Universal Studios Hollywood e outros parques passaram a oferecer um fura-fila. Por cerca do dobro do preço regular, eles vendem passes que levam os clientes à frente da fila. Na Universal, a oferta do fura fila tinha o preço de cento e quarenta e nove dólares de forma bem clara: "Pule para a FRENTE em todos os passeios, shows e atrações". A questão das filas coloca, evidentemente, um problema de ordem ética. A base de sua existência é democrática e mantem o parâmetro moral e jurídico da isonomia. A fila nasceu da convivência social e de sua lógica material impositiva; ela formou-se de forma planejada ou espontânea e vingou, representando concretamente o princípio da igualdade: quem chega antes tem direito de ficar na frente. As filas são bem conhecidas nos pontos de ônibus, nas bilheterias de metrô, nos caixas dos bares nos teatros, nos supermercados, no atendimento do INSS, nos hospitais públicos e também privados, etc. Todavia, como se sabe, para se obter concretamente a igualdade, é preciso tratar os desiguais com desigualdade, isto é, existem situações legítimas de furar a fila, tais como o caso de idosos, deficientes, pessoas com crianças de colo etc. Nesses casos não só não se está violando o princípio da igualdade como, de fato, quem está na fila não se incomoda de dar sua vez. E mesmo sem ter uma situação pessoal especial, podem acontecer algumas exceções plenamente justificáveis: Numa fila de banheiro, por exemplo, não haveria nenhum problema em alguém poder entrar antes porque que está numa situação desesperadora. Naturalmente, há filas de vários tipos. Por isso, pergunto: Será que a questão ética que envolve cambistas e ofertas fura-fila varia de acordo com o tipo de produto ou serviço oferecido? Dependendo do que esteja sendo oferecido, é correto violar o tradicional e democrático sistema de filas? O modo de furar a fila, então, pode ser válido em alguns casos e em outros não? É compreensível que os consumidores e as autoridades não gostem dos cambistas e queiram impedir suas ações. Os cambistas, na verdade, furam a fila antes delas surgirem, pois se antecipam aos consumidores adquirindo os ingressos - com ou sem a anuência dos promotores do evento. Mas, o mercado, aos poucos, como mostra o exemplo dos parques acima narrado, foi criando seus sistemas de fura-fila muito parecidos com o dos cambistas. Lembro-me que quando Titanic, o filme de James Cameron, estreou em São Paulo, no final dos anos noventa, formaram-se nas portas dos cinemas filas imensas. As pessoas esperavam por mais de uma sessão para poder assistir ao filme. Mas, uma operadora de cartões de crédito oferecia a seus clientes o direito de furar a fila, desde que o ingresso fosse dela adquirido (Prática que se tornou regular). Note-se que, apesar da aparente rejeição geral sobre os modos de furar a fila, isso acontece abertamente à vista de todos em alguns casos, sem que se conheça qualquer reclamação. Por exemplo, em alguns aeroportos pelo mundo afora, existe uma entrada intitulada "green line" que permite que passageiros especiais furem a fila da inspeção de bagagem. E também nesse setor, como se sabe, nos embarques aéreos os portadores de tickets da "classe" executiva e primeira "classe" entram na frente dos demais da "classe" econômica e quem porta cartões especiais das companhias áreas também tem esse direito. Na saída, os da primeira classe e executiva também desembarcam primeiro. E, claro, eles sentam em poltronas confortáveis e espaçosas, comem deliciosas refeições regadas a bons vinhos etc. Vai se objetar que eles pagam muito mais por isso. É verdade. Mas, se é uma questão de preço apenas, retornamos aos cambistas e as pessoas que estão dispostas e podem pagar mais caro que as demais. Pensemos em mais um exemplo, os planos de saúde: dependendo do plano, o consumidor terá um melhor ou pior atendimento. Não há igualdade de condições. O que há é distinção de preço. E quem não pode pagar, fica com o serviço do Estado, conhecida e infelizmente de pior qualidade. Numa sociedade democrática, as pessoas não deveriam estar na mesma posição de igualdade? Imaginemos o dia das eleições: Seria possível que alguém pagasse um ingresso para votar na frente dos demais? Daria para se inventar um método que permitisse um fura fila para o voto? Talvez... Os bancos, cada vez mais, têm salas, gerentes e caixas especiais para clientes especiais, isto é, para aqueles que rendem mais dinheiro. Os clientes fiéis de certos restaurantes, normalmente recebem tratamentos privilegiados, inclusive, conseguindo mesas quando o restaurante está lotado e há fila de espera. É compreensível que o empresário queira privilegiar seus melhores clientes. O chamado sistema de fidelização faz exatamente isso. O que ocorre é que, nos casos de venda de ingressos mais caros apenas para permitir que os abonados furem literalmente a fila, fica transparente a violação ao princípio da igualdade. Veja-se o rodízio de carros na cidade de São Paulo. Ele apenas vale para aqueles menos endinheirados que só podem possuir um veículo. Para quem pode ter dois, três ou mais veículos, o rodízio nada significa. (A propósito, como diria meu amigo Outrem Ego, "Esse negócio do rodízio parece coisa inventada pelas indústrias de veículos, pois de uma hora para outra milhares de pessoas passaram a adquirir mais de um automóvel, aumentando consideravelmente a frota existente"). Essa questão dos fura-fila ilustra bem uma das estratégias de controle do mercado pelos fornecedores: quando o produto ou o serviço é escasso e a demanda é alta (nos casos de shows, jogos e demais espetáculos) acontecem duas coisas: o preço sobe (ou nasce alto), mas como não há como fazê-lo ir além de um certo patamar (sob pena de aniquilamento de demanda), então surge a segunda: os consumidores são lançados à própria sorte e uns contra os outros. Naturalmente, essa situação gera a formação de filas. Quanto maior a demanda (e a ansiedade, a expectativa, ou o fascínio pelos artistas, por exemplo) mais cedo a fila começa. Não é incomum, que adolescentes acampem dois ou três dias antes de um evento na porta de estádios para poder comprar ingressos de seus ídolos musicais. São filas incríveis, longas, anti-higiênicas etc., mas digamos assim, formam-se por "livre e espontânea vontade (!)". Infelizmente, no Brasil, às vezes, esse tipo de fila se forma com mais de um dia de antecedência para que as pessoas possam ser atendidas por um médico do serviço público de saúde. Há também filas desse tipo para assistir jogos de futebol e outras atrações e de vários outros temas: concursos públicos, empregos privados, vestibulares, etc. Com eu disse, o empresário sabe desse interesse - e, claro, o fomenta. Daí, quando não pode mais subir o preço, começa a tirar vantagem da luta existente entre os consumidores. Estes, abandonados a si mesmos, lutam pelo direito de adquirir ingressos. Às vezes, como se fosse a aquisição da passagem para o último voo de saída do planeta que está em vias de explodir. Chama a atenção o fato de que os cambistas e demais tipos de atravessadores apresentaram os elementos para que os fornecedores pudessem imitá-los. Assim, esse conhecido passa-moleque vai vingando como estratégia de faturamento, fundada em larga medida na complacência dos consumidores que vão aceitando o fato como natural. Afinal, o ato de furar a fila vai se tornando banal e assim consegue passar despercebido. __________ 1Conf. Michael J. Sandel, "O que o dinheiro não compra". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.40. 2Ibidem, p.22. 3Ibidem, p. 23
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Crônica de várias mortes anunciadas - de novo!

Crônica de várias mortes anunciadas - de novo! Se eu quisesse, poderia deixar pronto um artigo escrito para todo início de ano cuidando das enchentes, dos desmoronamentos, das pessoas mortas e feridas e do abandono posterior das ruas, cidades e pessoas, enfim do descaso das autoridades para com a população. Repetir sempre a mesma ladainha é - com o perdão da expressão - chover no molhado. Mas, que alternativa tenho eu? Isto é, que alternativa temos todos nós que, de alguma maneira, nos preocupamos com o direito das pessoas? Só não publiquei este artigo há duas semanas atrás porque aconteceu aquela outra tragédia de Santa Maria, uma nova crônica de mortes anunciadas, aliás como ficou claro nas várias reportagens que foram feitas mostrando a situação de perigo que atinge os frequentadores das boates, assim como os riscos envolvidos. Mas, como disse, sou obrigado a vir nesta coluna mais uma vez falar dessa tragédia anunciada (a das inundações, deslizamentos de terras, mortes de pessoas etc.), que infelizmente não apresenta nenhuma perspectiva de deixar de acontecer novamente nos próximos anos. Um outro dado, bastante assustador, chama a atenção: aos poucos e até bem rapidamente, as desgraças desse tipo deixam o noticiário e como, coincidentemente, sempre no início do ano nós temos o Carnaval, as mortes desaparecem e quando muito ganham uma notinha de rodapé aqui e acolá, substituídas que são por corpos nus, suados, por beijos oferecidos e clicados, por muita fantasia, cerveja e um longo etc. de alegria. Aos parentes das vítimas, vai sobrando um certo abandono jornalístico, largados à sua própria condição solitária de dor e, posteriormente, contar, talvez, com uma nota ou outra sobre o resultado das investigações e a respeito do andamento das ações judiciais de indenização. É que a vida continua, como dizem. Em Santa Maria são já 239 mortos, afora os feridos. Nos deslizamentos de terra provocados pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011, foram mais de 900 os mortos, mais de 400 desaparecidos, mais de 8.700 pessoas perderam suas moradias e ficaram desabrigados, e mais de 20.700 ficaram desalojados, morando na casa de amigos e familiares. E neste início de ano, a mesma situação dramática se repetiu em dezenas de localidades brasileiras atingindo centenas de pessoas. Por isso, então, volto ao tema desse longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão e outros danos materiais As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitadas de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso, dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A responsabilidade civil na tragédia da boate Kiss

Continuo hoje a tratar de questões envolvendo a incrível tragédia ocorrida na cidade de Santa Maria, desta feita cuidando das que envolvem a responsabilidade civil e o direito das vítimas e seus familiares. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva do estabelecimento comercial O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (nos artigos 12, 13 e 14). E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade), tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Desse modo, embora no caso em exame tudo indique a culpa dos donos do estabelecimento comercial, lembro que para fins de indenização na órbita civil, em matéria de relação de consumo, não há necessidade de sua apuração. Basta a demonstração do nexo de causalidade e dos danos. E, no que respeita às excludentes, também nada há que possa favorecer os donos da boate. Culpa exclusiva do consumidor não se verifica e nem do terceiro. Lembro que, para fins de rompimento do nexo de causalidade, a ação do terceiro precisa ser aquela que não faz parte da relação jurídica de consumo. No caso, ainda que se possa demonstrar que o incêndio tenha se iniciado por culpa de um ou mais componentes da banda que se apresentava no palco, esse fato não se enquadra na hipótese legal. Os membros da banda eram parceiros solidários do estabelecimento comercial na prestação dos serviços. A atração era uma das componentes do serviço, como do mesmo modo era a venda de bebidas e comidas, o acesso e uso dos banheiros, o atendimento na entrada e na saída, etc. Responsabilidade civil objetiva da Prefeitura e do Estado-membro A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local, etc. No acidente da boate Kiss, como tudo indica nos noticiários, é flagrante a omissão do Poder Público, não só do Estado-membro por conta da ação do Corpo de Bombeiros, assim como da falha de fiscalização dos agentes públicos municipais. Pelo que se pôde apurar até agora - conforme informado pela imprensa - o estabelecimento chegou a receber aprovação do Corpo de Bombeiros para funcionar daquele modo: com uma única porta de entrada/saída e estreita (sem porta de emergências), o que era insuficiente para sua capacidade, com extintores de incêndio em número menor que o adequado etc. A Prefeitura concedera alvará de funcionamento também naqueles moldes e ainda que se argumente que o documento estava vencido, isso é mais uma prova da omissão, pois ela deveria checar as condições do local tão logo vencido o prazo. Aliás, antes que possam argumentar que o ente público não responde em caso de omissão - equívoco doutrinário recorrente - lembro que o Supremo Tribunal Federal já assentou esse tipo de responsabilidade, inclusive, num acidente semelhante ocorrido numa casa de shows em Belo Horizonte, no ano de 2001, conforme mostrou este poderoso rotativo Migalhas na última sexta-feira, dia 1º de fevereiro. Pensão e outros danos materiais As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitados de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funera,l etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso, dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor. PS.: Abaixo-assinado para tentar impedir novas ocorrências como a da boate Kiss. Na semana passada, eu dei início a um abaixo-assinado para pleitear aos Deputados e Senadores que apresentem projeto de lei para modificar o CDC e também a Excelentíssima Presidenta da República, Dilma Rousseff, que pode fazer a alteração via Medida Provisória. A proposta de mudança está abaixo e já conta com centenas de assinaturas. Se você gostar e concordar com a iniciativa, peço que firme o abaixo assinado - clique aqui. Eis minha proposta: Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o "caput" do art. 39) Art. 1º - O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º: Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: XIV - Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc. XV - Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar. XVI - Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Parágrafo 2º - A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto. Parágrafo 3º - Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como "Times New Roman".
Eu já havia escrito minha primeira coluna do ano quando aconteceu a tragédia de Santa Maria. Eu escrevera sobre a - infelizmente - regular e repetitiva tragédia anunciada de fim/início de ano que com as chuvas, inundações, desabamentos etc. atinge vários municípios e pessoas todos os anos, sem que se faça muita coisa para evita-los. Fica para a próxima vez, pois ocorreu essa outra catástrofe que, por sua vez, sempre esteve latentemente preparada para eclodir em algum lugar do país pelas boates, clubes e similares que funcionam sem condições de segurança e sem a fiscalização adequada. Era apenas questão de tempo. E veio de forma terrível, atingindo jovens que tinham uma vida inteira pela frente. Tentarei cuidar de alguns aspectos jurídicos, de alguns fatos e farei uma proposta, que, penso, poderia evitar esse tipo de acontecimento. Muito está se falando sobre o alvará vencido. Mas, faço duas indagações: 1. Será que na época em que o alvará estava vigorando - coisa de alguns meses atrás - as condições da boate eram diferentes da atual? Antes de Agosto de 2012 - que é a data que, segundo dizem, venceu o documento - a porta de entrada e saída era mais larga? Havia melhor ventilação? Havia porta de emergência e sinalizada? Será que, logo após o vencimento do alvará, os donos da boate correram para fechar saídas de emergência, diminuíram a largura da porta de entrada/saída, fecharam os sistemas de ventilação? A quem estamos querendo enganar? Tudo leva a crer que o alvará foi concedido para a boate nas condições em que ela operava realmente, como mostraram os veículos de comunicação: uma única porta de entrada/saída de apenas dois metros de largura; sem saídas de emergência, sem janelas, sem ventilação, enfim, um absurdo total. 2. E se o alvará venceu, por que no dia seguinte os funcionários da prefeitura não foram ao local para lacrar o estabelecimento? Ou, ao menos, vistoria-lo novamente e checar os sistemas de segurança? Esses são alguns dos fatos. Vamos a outros bastante conhecidos. Deixarei meu amigo Walter Ego, chocado e indignado com o ocorrido, falar: "Todos sabem que o que determina o controle de entrada e saída nos serviços de casas noturnas - bares, restaurantes, boates, etc. - é o faturamento. As saídas são estreitas - e que muitas vezes é a porta de entrada, como na boate Kiss - para obrigar os consumidores a se comportarem "adequadamente" em fila para pagarem pelo consumo. Aliás, é bastante desconfortável e às vezes até constrangedor ter de sair desses locais, com o afunilamento proposital efetuado. Dependendo do horário, perde-se muito tempo para deixar o estabelecimento mesmo sem qualquer ocorrência anormal. Portas de emergência simples de manusear? Ora, os donos trancafiam todos lá dentro e só os deixam sair após o pagamento da dívida. Portas de saída de emergência fáceis de abrir seria um perigo, pois poderiam facilitar a fuga de devedores. Essas portas só funcionam mesmo nos eventos em que os consumidores pagam pelo ingresso na entrada. Daí sim, se eles quiserem ir embora, podem ir por qualquer saída". Não sei dizer se em todo lugar é assim, como diz meu amigo, mas esse fato da dificuldade de sair que coloca os consumidores em filas estreitas está, evidentemente, ligado ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente. Mas, há ainda outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local? No caso da boate Kiss, reportagens apresentaram o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação! A mim, esse modelo de controle sempre pareceu abusivo, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor. Embora não conste expressamente do rol do artigo 39, ela está inserida na hipótese do "caput" ("dentre outras práticas abusivas"). E, de fato, os tais cartões de consumo são mesmo abusivos e por dois motivos: a) têm como função não permitir que o consumidor descubra quanto já consumiu - e já gastou; logo é uma espécie de engodo que pretende que o cliente fique sem saber quanto gasta, que consuma muitas vezes mais do que pode pagar ou desejaria pagar: b) impedem que o consumidor saia do estabelecimento quando ele bem entender, violando seu direito de ir e vir. As filas enfrentadas por ele para sair de muitas boates são infernais e tomam muito tempo. (Já houve muitos casos de retenção do consumidor porque ele perdeu o cartão de consumo). Penso que é o caso de se aprovar uma lei que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método esdrúxulo e abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de um novo inciso no art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas. Com isso, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física. Lembro que o próprio Código Penal define o crime de perigo nesses termos: "Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais". Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas. Por isso, apresento também mais uma sugestão de introdução de outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento. Aliás, anoto que é importante que o próprio consumidor denuncie os estabelecimentos infratores, exercendo seu direito. Por isso, é necessária a colocação do cartaz e, claro, com o telefone à mostra, o consumidor poderá fazer reclamação não só da lotação, mas também da falta de segurança. Está na hora de inverter a lógica do ganho a qualquer preço em detrimento da qualidade de vida e da segurança das pessoas, pela lógica da responsabilidade ética. Segue abaixo minha sugestão de alteração da lei e, para não me alongar demais deixarei para a próxima semana a apresentação das questões que envolvem a responsabilidade civil. Adianto apenas o óbvio: trata-se de responsabilidade civil objetiva regulada pelo CDC. Desse modo, o estabelecimento comercial é responsável por indenizar vítimas e familiares. Além disso, no caso, por aquilo que se pode extrair das reportagens efetuadas, há responsabilidade solidária da prefeitura, responsável pela concessão do alvará e pela fiscalização (e na sua ausência, responsabilidade objetiva por omissão) e também do Corpo de Bombeiros (no caso, responsabilidade do Governo Estadual). Antes de apresentar minha proposta, faço outra a você, leitor. Eu já dei início a um abaixo-assinado para pleitear aos deputados e senadores que apresentem projeto de lei para modificar o CDC e também a Excelentíssima presidenta da República, Dilma Rousseff, que pode fazer a alteração via Medida Provisória. Se você gostar e concordar com a iniciativa, peço que assine o abaixo assinado - clique aqui. Eis minha proposta: Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o "caput" do art. 39) Art. 1º - O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º: Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: XIV - Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc. XV - Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar. XVI - Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Parágrafo 2º - A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto. Parágrafo 3º - Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XIV, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como "Times new roman".
Este é um artigo que tenho publicado nesta época do ano para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento etc envolvendo os presentes das crianças para o Natal que se avizinha. Na correria natural de fim de ano, é comum esquecer-se de alguma coisa. Ademais a compra é compulsória e emocional. Por isso, penso que vale a pena relembrar algumas dicas que podem envolver as dificuldades para a escolha, a necessidade de testar brinquedos, os problemas das trocas etc. Pesquisando preços Em primeiro lugar e como sempre, lembro que não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Nem se deve deixar levar pela aparência inicial ou pela boa conversa do vendedor. Vale pesquisar e não comprar por impulso. Os preços variam muito de loja para loja e as diferenças de preços entre os estabelecimentos podem ser muito grandes. Mas, não se deve fazer pesquisa num só local. Por exemplo, numa rua ou num único shopping center. É que os lojistas também fazem cotações. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes. Vale a pena andar um pouco mais e, naturalmente, pesquisar também na internet e pelo telefone. E, pechinchar pode ser um bom negócio. Vale aproveitar a chance e exercer esse direito básico do consumidor, que é pechinchar, pedir desconto, negociar com o vendedor. As condições para troca Antes de prosseguir, sou obrigado a fazer uma observação sobre uma matéria publicada na semana passada num grande portal e que orientava os consumidores sobre seus direitos. Foi dito que os comerciantes que aceitam trocar produtos de vestuários por causa de numeração ou de presentes o fazem por mera cortesia, sem obrigação. Mas, não é bem assim. De fato, fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetido não é obrigação do comerciante. Contudo, se ele propõe a troca, tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. Trata-se de oferta e esta vincula o ofertante, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor. Essa oferta de troca torna-se, inclusive, típica obrigação contratual. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como as citadas peças de vestuário, podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Algumas lojas, porém, impõem algumas condições inconvenientes como, por exemplo, não efetuá-las aos sábados, o que é abusivo. Isso porque não tem fundamento legal e do ponto de vista contratual a exigência é exagerada. Não tem sentido impor o dia para a troca. O que se admite é a fixação de um prazo máximo para fazê-la. Há ainda alguns outros problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota de compra e venda ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, a saída é guardar a nota fiscal e, se necessário, usá-la. Anoto que, atualmente, muitas lojas se modernizaram e entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., procedimento que deveria ser adotado por todas as lojas. Outro aspecto que deve ser levado em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta foi removida. Para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja retirada até que o presente seja experimentado e aprovado. De todo modo, com ou sem etiqueta, o comprador não perde o direito à troca, pois é mais uma exigência é abusiva. Cabe reclamar num órgão de defesa do consumidor. Vícios nos brinquedos Não se pode esquecer de perguntar se a loja faz troca do brinquedo e em quais condições. Alguns comerciantes negam-se a fazer troca de brinquedos que apresentem problemas de funcionamento (vícios), limitando-se a mandar o consumidor para a assistência técnica. Assim, para evitar transtornos, vale perguntar antes de comprar se o estabelecimento faz troca em caso de vícios (o que, aliás, é sua obrigação legal) e decidir se vale a pena comprar lá. Testando o brinquedo É importante testar o brinquedo na loja, inclusive os eletrônicos. Não se pode esquecer que, apesar de se poder trocar ou consertar posteriormente o brinquedo com defeito, a criança que ganhou o presente - às vezes tão esperado - já se frustrou. É verdade, que nessa época do ano, com as lojas cheias é mais difícil fazer os testes, mas vale a pena insistir assim mesmo. Se não der por algum motivo justo, então a saída é testar o brinquedo logo que chegar em casa. Idade adequada É preciso atenção com a questão da adequação do brinquedo à idade das crianças. Brinquedos muito sofisticados e caros nem sempre satisfazem. Alguns são complicados; outros fazem tudo sozinhos e a criança só fica olhando. Além de ser bom que a criança participe ativamente do uso do brinquedo, é necessário que ele possibilite a utilização do raciocínio e da imaginação. No caso de jogos, há que se checar a idade para a qual os fabricantes os indicam. Segurança é fundamental É necessário um cuidado especial com certos produtos, o que vale para todas as crianças e especialmente para os bebês: não se deve adquirir objetos pontiagudos ou cortantes, nem os que tenham cordões que o bebê possa enrolar no pescoço; da mesma forma não se deve adquirir pequenos objetos que as crianças possam engolir; e o mesmo cuidado deve-se ter com sacos plásticos, por causa de sufocamento. Os materiais devem ser laváveis e as tintas e demais componentes devem ser atóxicas e não descascarem. É bom lembrar: apesar da responsabilidade dos fabricantes, são os pais que devem, em primeiro lugar, estar atentos para o que adquirem. Os pais são diretamente responsáveis por checar os brinquedos que estão na posse de seus filhos. É fundamental examinar mesmo depois da compra, direta e detalhadamente o brinquedo, verificar se não há peças que podem se soltar, pedaços pequenos que as crianças podem colocar na boca, se não há partes pontiagudas etc. É importante, também, checar os brinquedos que as crianças ganham de presente, inclusive, aqueles distribuídos nas festas dos amigos das escolas (conselho que vale para todas as festas das quais as crianças participam). Não é incomum que nessas festas sejam dados brindes de má qualidade que podem causar danos. Além disso, os pais devem fiscalizar a qualidade dos brinquedos mesmo depois de usados pelas crianças. Os brinquedos, com o desgaste, podem acabar gerando os mesmo problemas que produtos novos mal feitos. Esse tipo de vigilância constante deve sempre ser exercido pelos pais. Propaganda enganosa É preciso cuidado com propagandas enganosas. Contudo, não se deve esquecer que muitas propagandas de brinquedos são dirigidas às crianças e não ao adulto. Por isso, para avaliar esse tipo de publicidade é preciso levar também em consideração a visão que a própria criança tem - ou teria - ao ver o anúncio. De qualquer forma, há que se avaliar com calma e comparar o produto real com o oferecido no anúncio publicitário. Em relação às embalagens, é bom saber que, às vezes, a enganosidade pode estar nas fotos e informações nelas contidas. Nem sempre a apresentação corresponde ao produto real. Certificado de garantia e manuais Se o produto tiver garantia do fabricante, o certificado deve estar junto do mesmo. E, os brinquedos, jogos e outros produtos que devem ser instalados e usados mediante instruções devem ter manuais claros, escritos em português. Não se deve instalar ou utilizar o produto antes de ler, entender e seguir à risca as disposições trazidas pelo fabricante. Roupas Não se pode esquecer que as crianças crescem rapidamente, bem como mudam de hábitos, desejos e necessidades com a mesma velocidade. Assim, vale a pena levar em conta tais fatos para adquirir, por exemplo, roupas, comprando-as sempre um pouco folgadas e nunca em quantidades exageradas. Livros Uma dica importante: dar livros é fundamental, também levando em consideração a idade da criança. O mercado está repleto de excelentes livros para todas as idades e alguns são bem baratos. É um presente de total utilidade. Pode-se, claro, dar outros presentes, mas um livro junto deles nunca deve faltar.
Os estilistas, nos dias que correm, devem estar criando os modelos de roupas que homens e mulheres usarão nos próximos anos: As gravatas masculinas com seus tamanhos, desenhos, tipos de tecidos e cores; os sapatos desses mesmos homens; os ternos com seus novos cortes, se com um, dois ou três botões, etc. As camisas, suas cores e colarinhos e todo o resto. Quanto às mulheres, o mesmo: saias, tailleurs, vestidos, blusas, sapatos e seus saltos, altos, baixos, finos, grossos, as bolsas e seus modelos, os acessórios, centenas deles de variadas funções, qualidades, materiais etc, etc., aliás, um longo etc. E tudo isso varia de acordo com o tipo de público: executivos, estudantes, advogados, médicos, esportistas, etc. Dá para resistir? Será possível continuar, por exemplo, usando roupas que se usavam nos anos setenta do século XX? Mais de uma vez, em sala de aula, perguntei a meus alunos se eu, como especialista em Direito do Consumidor e estudioso do comportamento deste na sociedade de consumo, não poderia simplesmente me vestir como fazia nos anos setenta ou oitenta do século passado. Será que eu poderia chegar numa sala de aula ou aparecer para uma palestra em que era esperado para falar de Direito do Consumidor, vestido como antigamente? Qual seria o impacto, por exemplo, se eu entrasse na sala com um cabelo longo até o fim de minhas costas (como os roqueiros usavam nos anos setenta); se estivesse vestindo uma calça social muito alta, acima do umbigo, como nos anos cinquenta, uma camisa azul clara ou rosa com colarinho longo quase até embaixo dos braços como se chegou a usar no século passado, suspensórios nas calças e uma gravata larga e bem curtinha que não atingisse o mesmo umbigo já citado? Ah! e com meias brancas num sapato preto (qualquer que fosse o modelo de sapato). Eu poderia chegar assim trajado? Digamos que eu fosse vestido desse jeito para tentar mostrar que não me enquadro no sistema de consumo impositivo. Daria certo? Penso que não. Em primeiro lugar, as pessoas pensariam que eu estava tentando roubar o lugar do Tiririca (nosso nobre deputado Federal) e, em seguida, prestariam mais atenção às minhas vestimentas que às minhas palavras e, quem sabe, alguns até nem me ouvissem mais. Examinemos o caso dos candidatos a um emprego numa empresa. Para aquele ou aquela que vai procurar uma vaga e se submete a uma entrevista, o conselho básico que sempre se dá é que ele ou ela apresentem-se trajados como se espera que devam se apresentar no setor de interesse. Ternos sóbrios e gravatas idem para os homens e tailleurs, do mesmo modo sóbrios, são indicados para as mulheres. Mas, não é só. Há muitas especificidades. Veja o que diz a consultora de moda Olga Cardoso Pinto e que envolve o modo de se portar, além dos trajes: "... a atitude e a imagem pessoal também são fatores de avaliação. Importante: - Tente conhecer a empresa à qual vai à entrevista, atualmente não é difícil, na internet pode encontrar informação sobre a empresa ou instituição. - Saiba se existe um 'dress code', assim conhecerá a forma de se vestir para a entrevista... O que vestir? Ao conhecer antecipadamente qual é a empresa e se existe um 'dress code' ou não, já terá mais facilidade em selecionar o que vestir... As empresas podem exigir aos seus funcionários que usem terno e gravata, caso dos homens, as senhoras tailleur de saia, e até as cores do vestuário... São de excluir: jeans desbotados ou rasgados; calçado gasto e sujo; roupas demasiado justas ou transparentes; decotes e camisolas curtas e cavados; chinelos; cabelo desalinhado e sujo; maquilhagem, perfume e bijuteria em excesso'". (Como o endereço é de Portugal, eu adaptei algumas palavras). Naturalmente, não há novidade nisso de sabermos nos apresentar em certos locais. É algo que aprendemos vivendo em sociedade, na educação formal e na informal, em casa, nas festas, nos locais de trabalho, nas escolas, nas cerimônias, assistindo à televisão, etc. Indo a uma cerimônia de casamento ou a um funeral, como regra geral, sabemos o que vestir e como lá nos comportarmos. Não há, portanto, algum mal nisso. Antes de prosseguir, faço uma indagação pontual relativa ao exercício de nossa liberdade ou a falta dela, no que diz respeito ao uso das vestimentas e o comportamento atrelado a esse uso. Pergunto: Nesse aspecto, podemos nos afirmar pessoas livres na medida em que não somos nós que escolhemos o corte de cabelo ou mesmo sua cor ou, então, a gravata que teremos de usar? Se é a moda que impõe o comprimento e a cor de meu cabelo ou a cor de minha camisa e seu colarinho, como é que posso me dizer livre para escolher? Se vem de fora a determinação para o consumidor, então, ele não parece poder ser livre. E, realmente, pelo menos para procurar emprego, se o candidato quiser ter uma chance, deve saber se vestir e se comportar. Mas, do mesmo modo também um advogado ou uma advogada ou um político no exercício de sua profissão. Pergunto: Será que o só fato de alguém se vestir do modo como o mercado impõe é uma prova da falta de sua liberdade? Voltemos a meu exemplo da aula. Eu poderia ir vestido como o palhaço Tiririca? Aliás, ele mesmo veste-se adequadamente na posição de deputado. Você já reparou? Penso que eu devesse - e deva - me apresentar do modo como normalmente um professor da área jurídica se apresenta. Essa atitude de enquadramento no modelo, por si só, não é capaz de infringir minha liberdade. Esse fato, embora copiado ou inspirado no padrão que vem de fora, não significa a perda de minha condição livre, desde que seja consciente. Explico: o que me faz livre ou não, não é a escolha do traje, mas o motivo da escolha. Se faço essa escolha consciente de que ela serve para um melhor desempenho na minha atividade, então mantenho-me livre, pois sou eu que controlo as circunstâncias externas ou invés de ser por elas controlado. Decido livremente colocar um terno e uma gravata de acordo com o padrão, porque sei que a plateia prestará atenção ao que eu falo e não no que eu estou vestindo. Realmente, se surjo no palco vestido de acordo com o modelo esperado, minhas roupas passam despercebidas e, imediatamente, as pessoas podem me ouvir. Podem prestar atenção em minha fala. Vestido como se fosse um palhaço ou algo parecido, teria de dar muitas explicações antes de iniciar. Claro que é possível, também, demonstrar resistência aos acontecimentos exteriores, às imposições do mercado e manter uma forte independência em relação ao modelo. Muitos fazem isso. Porém, mesmo não agindo assim, posso manter a independência em relação às imposições externas e faço isso tomando consciência da determinação exterior e decidindo segui-la ou não, mas assumindo o comando. Uso a vestimenta, mas sei que o faço apenas para poder agir livremente dominando as circunstâncias e não o contrário, sendo por elas controlado. De qualquer maneira, é inexorável: temos de nos vestir e nos portar do modo como se espera que nos apresentemos e nos comportemos. Daí que, o mercado, sempre antenado, de há muito tempo tem se aproveitado dessa situação. Veja que, nesse contexto do uso das vestimentas, independentemente dele se dar de forma condicionada (externamente) ou livre e decidida (internamente), o que se constata no mercado de consumo é sua utilização como instrumento de publicidade. Cada vez mais, o consumidor que veste certas roupas e porta certos adornos e acessórios acaba funcionando como uma espécie de outdoor ambulante. A imagem daquelas pessoas que ficavam nas ruas com anúncios sanduíches é bem ilustrativa: Uma cartaz na frente e outro atrás, ambos enfiados pela cabeça da pessoa-outdoor parada ou andando pelas ruas anunciando compra de ouro, joias, venda de títulos e outras coisas. E, ainda hoje, há pessoas-anúncios paradas nas esquinas segurando cartazes que oferecem a venda de imóveis. O mercado faz algo parecido e já há muito tempo utiliza o próprio consumidor para fazer seus anúncios (e de graça!). São as roupas de grife com seus símbolos bem evidentes nas camisetas e camisas, nos tênis, nas bolsas das mulheres, nas valises dos homens, nas carteiras; são os relógios reluzentes e suas marcas salientes ou as canetas cheias de glamour etc. A chamada roupa de marca ou de grife é a demonstração de uma estratégia de marketing que utiliza o consumidor como outdoor e, repito, sem lhe pagar nada. Ao contrário, cobrando mais caro por isso! Algumas estratégias de marketing estão firmadas nos brindes: são bonés, canetas, camisetas e outros produtos oferecidos com as cores, desenhos, nomes e marcas de produtos e serviços para que o consumidor os utilize e mostre. E, não parou por aí: houve uma "evolução" do negócio. Por exemplo, hoje, há lojas da Coca-Cola: o consumidor pode comprar peças de roupas nas cores e desenhos do famoso refrigerante. Embora seja difícil entender porque alguém faria isso, não é tão distante de outros produtos marcados. Não é, por exemplo, diferente dos torcedores que vestem a camisa do Banco do Brasil para torcer pelo time de vôlei. Os clubes de futebol, por sua vez, profissionalizados e devidamente ajustados pelos marqueteiros, também investiram no segmento com a vantagem de que tinham - como têm - o consumidor-torcedor como aliado. Agora é bastante comum encontrar pelas ruas, pelos shoppings, pessoas vestidas com camisas de clubes de futebol ainda que não haja disputa em andamento. A camisa do time tornou-se vestuário regular. É natural que o consumidor queira estar parecido com as demais pessoas de seu grupo social. E, conforme acima narrei, quase ninguém escapa de se apresentar da maneira como se espera ele deva se apresentar - meu exemplo do professor de direito dando aula - e, tendo em vista os modos de controle do mercado, é difícil ser diferente. Parece que uma característica contemporânea dos consumidores - ao menos no que diz respeito à aparência, isto é ao modo como ele se apresenta socialmente - é essa da semelhança. O diferente é raro. E, embora possa ser feita uma análise dos elementos internos - vontade, opção ou falta dela, decisão, ideologia, sentimento, paixão, etc. - para o mercado fabricante de vestuário em geral, o que vale é o uso público da marca. Não importa o motivo do porque o consumidor veste uma roupa de seu time querido ou uma bolsa de grife, um tênis cheio de expressão comercial. Pode ser para se identificar com seu grupo de torcedores ou de amigos; para se sentir pertencendo a um tipo de consumidores; para manter a conduta profissional ou, apenas, porque a roupa estava em liquidação e era barata, etc. Ademais, como expus, usando ou não certo tipo de vestimenta, até mesmo a liberdade de escolha está salva: quando ela existe e é fruto de uma decisão consciente. Efetivamente, nada disso importa: o que vale é que, cada vez mais, o consumidor passa pelas ruas, avenidas e corredores de shoppings fazendo propaganda gratuita dos fabricantes.
quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Entre a superstição e a incompetência

Quem já foi aos Estados Unidos da América ou mesmo quem nunca lá esteve, mas prestou atenção nos filmes americanos, sabe que uma parte da população tem problemas com o uso do número 13. Há hotéis que não têm o apartamento com esse número; prédios nos quais do 12º andar passa-se diretamente para o 14º andar (aliás, como consta dos elevadores); em algumas companhias aéreas há aeronaves que não têm a fileira 13: da fileira 12 passa-se para a 14, etc. Sem querer me alongar nesse tema, do que pude apurar, a explicação mais aceita para essa superstição envolve o cristianismo: Como na última ceia Jesus Cristo estava junto com os seus apóstolos, eram 13 as pessoas presentes. (E a sexta-feira 13 ficou famosa e assustadora porque Jesus morreu em uma sexta-feira - a Sexta-Feira da Paixão). Daí que as pessoas associaram o número 13 a algo ruim, trágico, ligado à morte, algo bastante forte na sexta-feira 13. A ironia envolvendo o temor dos americanos ligado ao 13 está em que na sua própria formação o número aparece: Os EUA nasceram de 13 Colônias; a bandeira americana tem 13 listras, que representam essas 13 colônias e, gostando ou não do fato, parece que o número 13 persegue os americanos. Na nota de um dólar, por exemplo, há uma série de coincidências envolvendo-o. No verso da nota, a pirâmide tem 13 camadas; na frente da águia, há um escudo com 13 listras verticais; essa águia segura 13 folhas de oliveira na pata direita e 13 flechas na esquerda. Além disso, o círculo sobre sua cabeça é formado por 13 estrelas. Anoto, ademais, que, para os supersticiosos, deve ser um inferno quando chega o dia 13 do mês, ou quando ele ou seus filhos comemoram o 13º aniversário de vida ou, ainda, o 13º ano do aniversário de casamento, etc. (se fosse no Brasil, alguns supersticiosos teriam dificuldade em receber o décimo terceiro salário...) A superstição com os números não envolve apenas o 13 (que alguns, a contrário senso, dizem ser número da sorte, como o velho lobo Zagalo faz) e também não somente os Estados Unidos; na Argentina e outros países, há também prédios sem o 13º andar. No Japão, por exemplo, o problema é com o número 4. Por causa de sua pronúncia (shi) ser a mesma da palavra morte (shi), é comum encontrar edificações que não possuem o quarto andar. Outro costume comum é o de não dar lembrancinhas ou presentinhos compostos por quatro unidades ou quatro peças. Além do número quatro, por lá também os números 9, 42 e 420 são discriminados. E como se sabe, o bastante conhecido 666 é evitado por ser considerado o número da besta, etc. Mas, você leitor deve estar se perguntando por que estou cuidando desse tema. E a resposta é que o faço para contar uma ocorrência - que descobri ser corriqueira - envolvendo o número 13 e as companhias aéreas. Vou narrar um incrível caso que está acontecendo regularmente no Brasil envolvendo a Companhia Aérea Gol. Dessa vez, a vítima foi uma querida amiga minha e seus dois filhos menores. Eles foram, no último feriado sanduíche, de São Paulo para a Bahia. Ela adquiriu as passagens para o voo das seis horas da manhã do dia 14 de novembro p.p.: Gol G3 1922. Mas, deixarei ela mesma contar o ocorrido. "Como o voo era às seis da manhã, as crianças e eu praticamente não dormimos. Acordamos às três da madrugada, pegamos as malas e antes das quatro saímos para o aeroporto. Lá chegando enfrentamos as filas de sempre, mas conseguimos fazer o check-in. A atendente me entregou o ticket, avisando que não estávamos, as crianças e eu, juntinhos, mas ficaríamos na mesma fileira, a de número treze". "Fomos uns dos primeiros a entrar na aeronave. Fomos caminhando para encontrar nossos lugares: fileira dez, onze, doze e de repente, apareceu a fileira quatorze. Olhei de novo e chequei. Não havia a fileira treze. Olhei bem para os tickets: estava escrito treze, mas não existia a fileira. Talvez eu devesse ter sentando com as crianças na fileira quatorze que, logicamente, correspondia a treze. Mas ao invés disso, retornei ao começo do avião para reclamar". "Passados alguns instantes, apareceu um comissário mal humorado que disse simplesmente o seguinte: 'Olha, nessa aeronave não há a fileira treze e está tudo lotado. A senhora terá de desembarcar'". "As crianças e eu estávamos muito cansados. Eu havia planejado a viagem há muito tempo e meus filhos a aguardavam com ansiedade. Eu, como consumidora que sou, havia comprado e pago as passagens também há muito tempo. Cumprira todo o procedimento. Os funcionários da companhia aérea do balcão nos haviam embarcado e entregue os tickets. Então, fiquei furiosa. Disse ao comissário: daqui eu não saio. Pode arrumar um lugar para mim neste mesmo avião. Estou com os tickets para ficar nesta aeronave e com meus dois filhos pequenos!". "Ele, muito grossamente, respondeu: 'Se a senhora não sair vou chamar a polícia'. Daí, eu mais brava ainda - pois estava coberta de razão - disse quase aos berros: Pois chame! Chame já! Meus filhos pequenos e eu acordamos muito cedo. Eu estou aqui com eles prontos para seguir viagem. Nossas malas estão nesta aeronave. Eu vou chamar a imprensa, a rede Globo, a Record e eles virão filmar a polícia prendendo duas crianças e uma mãe com os tickets de embarque na mão com os números de poltronas que não existem!". "O comissário deu as costas e saiu. Eu comecei a bater palmas para as pessoas olharem para mim e quando consegui a atenção de todos expliquei o que estava acontecendo. Não obtive solidariedade de ninguém, apenas olhares estranhos que ocultavam um pensamento relativo a minha pessoa: eles pareciam pensar que eu era louca". "Não sei o que eles fizeram. Depois de uns dez minutos, o comissário voltou e ele e a aeromoça nos colocaram em outros três assentos e acabamos voando". Não é incrível, leitor? Que o dono da companhia aérea ou seus administradores sejam supersticiosos e queiram eliminar a fileira 13 das aeronaves vá lá. Porém, vender os assentos da fileira que não existe é pura e inacreditável incompetência. Por que será que eles não conseguem fazer o link entre a aeronave e o balcão de check in? Como é que pode, nesses nossos dias de alta tecnologia, acontecer uma dessintonia como esta? Chega a assustar que essas pessoas estejam administrando um negócio tão relevante e de risco como o transporte aéreo! Comentei com nosso amigo comum Outrem Ego, que logo disparou: "É o overbooking da besta". Realmente, se o overbooking é já uma espécie de estelionato porque a companhia aérea vende o mesmo assento para mais de um consumidor, vender assentos que sequer existem por causa de um número é ainda mais tenebroso. E quer saber mais: a ocorrência com minha amiga não foi única. Veja o que ela contou: "Quando estávamos no ar, a aeromoça veio conversar comigo. Pediu desculpas pelo ocorrido e confessou que ela e os demais estavam cansados do problema que acontecia quase todo dia por causa das aeronaves sem a fileira treze. Muitos passageiros acabavam sendo colocados para fora". Estou quase fazendo como minha amiga e gritando: "Alô Anac, cadê você que nada vê?". É caso de se fazer uma campanha para que os consumidores não aceitem no balcão de embarque ou na reserva feita pela agência de viagens um assento na fileira número treze dos voos da Gol. E, claro, que na reserva ou check in que o próprio consumidor faça pela internet que ele tome o mesmo cuidado. Para terminar, lembro que todas essas pessoas que não puderam embarcar pela falta da fileira treze - comprada, paga, aceita, com malas despachadas, etc. - têm direito a pleitear indenização por danos morais, no qual há de se realçar o aspecto punitivo. Quem sabe assim, um dia, seus administradores consigam somar dois com dois e chegar a quatro (bem, se for no Japão... Não).
Lendo o último e excelente livro de Michael Moore, "Adoro Problemas"1, dentre tantos casos narrados para nosso aprendizado e deleite, deparei-me com uma história que me intrigou (Veja bem: por mais que pensemos na questão da sociedade capitalista e saibamos das múltiplas enganações perpetradas pelos fornecedores, há sempre algo a aprender). Eis o fato trazido, com muito humor, pelo autor: Disse ele que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha:. "Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2. "Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa - ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza"3. Depois, espantado, o cineasta americano pergunta: "Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?"4. E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor veja o que encontrei. Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"5, apresentam um panorama que permite uma análise. Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras: "O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães"6. No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes, etc., que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas. "Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'"7. As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando - e conseguindo - influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães. Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis: "No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos"8. Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia. Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente, etc. É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então, a indústria desenvolveu seu plano estratégico. Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestrastes convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares, etc. Para edulcorar o novo conhecimento que está surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas? E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos? Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível. Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas. Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social - os confessionais - etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado. Para concluir, anoto que, no Brasil, a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno. __________ 1São Paulo: Lua de Papel, 2011. 2Ibidem, p. 40. 3Idem, p. 41. 4Idem, mesma pág. 5Cadernos ESP - Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, nº 1, Julho-Dezembro - 2005. 6Ibidem, fl. 1. 7Ibidem, fl. 5. 8Ibidem, fl. 6.
Está em andamento desde julho deste ano o curso "O Poder Judiciário e a Copa do Mundo de 2014" promovido pela Escola Paulista da Magistratura. Ele prossegue até março de 2013 com várias palestras programadas envolvendo os temas de interesse para a realização da Copa do Mundo de 2014, tais como o exame das políticas públicas para o evento, a questão da segurança pública, o trato dos turistas, a resolução dos conflitos pelo Poder Judiciário, os direitos e deveres dos consumidores torcedores etc. No dia 27 de agosto p.p., eu tive oportunidade de proferir uma das palestras tratando dos direitos do consumidor torcedor e da aplicação das normas constitucionais de interesse, da Lei Geral da Copa, do Estatuto do Torcedor e do Código de Defesa do Consumidor. Eu ainda voltarei ao assunto aqui nesta coluna, mas, hoje, quero trazer um tema para nossa reflexão, com a seguinte pergunta: Tem o consumidor torcedor direito de pagar para assistir os jogos de futebol que sejam disputados e decididos de forma verdadeira? Tem ele direito a que as pelejas tenham resultados justos? Isto é, que quando o gol é feito em impedimento seja anulado, que as faltas sejam corretamente marcadas, que o gol feito com a mão não seja convalidado? Trago esse assunto à baila, em função da polêmica dos últimos dias envolvendo o gol de mão anulado pelo árbitro Francisco Carlos Nascimento. Como é de conhecimento geral, falo do caso envolvendo o jogo entre o Palmeiras e o Internacional de Porto Alegre. O placar estava 2 a 1 para o Inter quando o jogador Barcos do Palmeiras fez um gol com a mão. O árbitro, num primeiro momento, assinalou o gol, mas voltou atrás após alguns minutos, atendendo orientação, segundo consta, do quarto árbitro Jean Pierre Gonçalves. Este teria sido alertado pelo delegado da partida. Mas, a acusação é a de que o gol somente foi anulado por informações de terceiro ou uso de tecnologia - o que é proibido na questão. Independentemente do resultado da polêmica - que aqui neste espaço não importa - quero voltar ao assunto da Justiça e da verdade nos jogos de futebol e do incrível atraso desse esporte no uso da tecnologia. Aliás, sempre que esse tipo de discussão surge, pergunta-se: Por que será que a Fifa insiste em manter-se na pré-história tecnológica? No caso do jogo citado, ninguém duvida que o gol foi de mão. Logo, ele não deveria valer de modo algum. No entanto, pelas regras vigentes não só ele pode valer, como se pode até lutar para que ele valha, ainda que todo mundo veja clara e abertamente que foi feito com a mão! Como já tive oportunidade de tratar aqui nessas linhas, a Fifa - a dona do negócio futebol - é uma enorme corporação multimilionária, que se utiliza dos mais modernos métodos existentes no mercado para promover seus eventos, lançando mão do que existe de mais avançado em termos de tecnologia: de venda, de distribuição, de marketing, de transmissão dos jogos etc. Todavia, paradoxalmente, mantém em funcionamento um esporte no qual vigem regras antigas que não são submetidas ao mais simples elemento da tecnologia como, por exemplo, o uso de câmaras e "tira-teimas" para a aferição de infrações e gols. Algo que pode ser feito sem muito transtorno ao espetáculo. Por que será? Uma teoria conhecida, e que também aqui já referi, diz que a não modernização do jogo de futebol nada tem a ver com seu movimento e com o espetáculo, mas sim com a perda do poder de manipulação. Afinal, se não se puder mais dar gols impedidos, anular gols legítimos, expulsar jogadores indesejados etc., perder-se-á uma boa maneira de interferir nos resultados. Mas, como a Fifa é a dona soberana do espetáculo, quem pode reclamar? Talvez os consumidores torcedores. Quem sabe um dia eles se cansem e resolvam formar um movimento visando fazer com que a verdade e a Justiça finalmente cheguem via tecnologia aos estádios de futebol. Oscar Wilde diz, com sua conhecida ironia, que "é só quando ao recusar pagarmos nossas faturas que podemos assegurar nossa sobrevivência na memória das classes comerciantes". Parafraseando-o, podemos dizer que será apenas quando os torcedores deixarem de ir aos estádios e também desligarem os aparelhos de tevê na hora dos jogos que conseguirão ver vencerem os times que merecem vencer por sua competência e garra. Isso é direito do consumidor torcedor. Ele deve poder garantir para si e para o time que ama e para o qual torce, gastando seu tempo e seu dinheiro, que os jogos sejam limpos e que ganhe o melhor, sem interferência espúria de quem quer que seja e sem manipulação dos resultados com marcação de infrações inexistentes, validação de gols feitos fora da regra etc. Naturalmente, a implementação de tecnologia no jogo de futebol não deverá ser capaz de atrapalhar o espetáculo. O árbitro continuará a exercer suas funções junto com seus auxiliares, mas apenas tirar-se-á dele o poder imperial. Não se pode esquecer de que ele é humano e como tal pode errar ou, pior, agir de má fé. Lembro, como disse anteriormente, que a questão é que, no fundo, o princípio vigente no futebol não é o da busca da verdade, mas apenas e tão somente o da autoridade do árbitro. Este, intocável em suas decisões dentro do gramado, transforma sangue em água; areia em ouro. É um mágico. Capaz de mudar o real. Ou uma espécie de ditador nomeado e aceito. Quando vieram os vídeos, com os tira-teimas e repetições, pensava-se que as coisas mudariam, porque o árbitro teria contra si o fato real para demonstrar seu erro, mas nada mudou. Permanece o regime autoritário de permitir que o árbitro modifique o real a seu bel prazer, doa a quem doer. E, olhe que, em tempos atuais, isso pode significar muitos milhões de reais ou dólares, porque a mudança de um único resultado pode impedir ou levar um time à final de um campeonato importante; ou a um torneio importante, valorizar ou depreciar clubes, técnicos e jogadores etc. É, de fato, muito poder concentrado com alto grau de permissividade. De minha parte, repito: espero que haja, algum dia, pressão suficiente da opinião pública, especialmente dos consumidores torcedores, para que o futebol passe a ser um jogo mais real e honesto. A tecnologia ajudará, sem tirar a graça do espetáculo.
É lugar comum o conselho que os pais dão a seus filhos menores: "Nunca fale com estranhos!". Essa máxima, aliás, é universal e reconhecida como conselho necessário aos pequenos. No entanto, paradoxalmente, muitos pais deixam todos os dias que estranhos falem com seus filhos, crianças e adolescentes. Não só falem como também os assediem e tentem seduzi-los com promessas de aventuras e alegrias várias. Explico. Os menores, todos os dias, estão sujeitos aos anúncios publicitários, especialmente da tevê, mas também de outros veículos como a internet, as revistas etc. Os responsáveis por produzirem esses anúncios, por planejarem as ofertas, por bolarem promessas atraentes, são pessoas desconhecidas. Aliás, desconhecidas também dos adultos. Essas pessoas estranhas, com intenções mais ou menos ocultas, contam estórias e apresentam uma série de fantasias para tentar convencer os pequenos a se interessarem por seus produtos e serviços e, com isso, pressionarem os pais a adquiri-los. Retornando ao início, pergunto: por que é que os pais não gostam que seus filhos falem com estranhos? Ora, porque desconfiam que algo ruim pode acontecer, têm medo que esse desconhecido tenha más intenções, que possa causar danos aos filhos etc. Os pais sabem que, mesmo sorrindo ou estando bem vestido, o estranho pode estar escondendo algo maléfico por detrás da aparência. Pois bem. Muitos desses desconhecidos, que entram livremente em casa via televisão ou pelos outros meios para falar com as crianças e adolescentes, apresentam-se exatamente assim, travestidos de heróis, portando-se como amigos ou falando pela boca de personagens conhecidos e queridos. Quem são eles? São pessoas desconhecidas, mas bem formadas: universitários, técnicos, marqueteiros, publicitários, que estudam horas a fio e que planejam o melhor modo de ataque. Da mesma maneira que um estranho numa esquina, bem vestido, sorrindo e oferecendo guloseimas, eles podem causar muitos danos aos pequenos ainda que surjam assim virtualmente. Claro que os eventuais danos são de diversas ordens, mas hoje realço aqueles relativos à saúde dos pequenos, especialmente porque acabamos de assistir a mais um (incrível!) dia do Haloween no Brasil. São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Eu já tive oportunidade de, nesta coluna, falar de um filme dirigido por Estela Renner intitulado "Criança a alma do negócio", no qual ela mostra como a publicidade dirigida aos pequenos pode ser maléfica. Pois agora, a mesma diretora acaba de lançar um novo documentário cuidando de um grave problema que atinge crianças e adolescentes no mundo inteiro: o da obesidade infantil. O documentário é uma contundente denúncia contra a indústria de alimentos e suas táticas para viciar e manipular os consumidores, com foco na "nutrição" das crianças e adolescentes. Ele foi apresentado na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e entra em cartaz em novembro próximo, com pré-estreia no dia 12. A obesidade é uma pandemia. Atinge crianças e adolescentes em todas as partes do mundo. É responsável por várias doenças e muitas mortes. A apresentação das cenas mostra uma série de problemas criados pelo mercado e, certamente, os pais de pequenos devem assistir a esse documentário. Dentre as diversas questões de que o filme trata, como essa dos estranhos que conversam com as crianças, refiro, na sequência, mais três para nossa reflexão. Um dos especialistas ouvidos, o Chef Jamie Oliver, lembra que, quando ele era criança a ida ao McDonald's era uma espécie de festa; uma atração especial. Um momento único. A comida não era boa, mas não afetava o organismo porque não fazia parte do cotidiano alimentar. Um outro ponto crucial apresentado por Estela Renner no problema da obesidade e má alimentação nutricional diz respeito ao preço das porcarias. Elas são muito baratas! Por exemplo, um pacote de bolacha recheada, que muito engorda e pouco alimenta, custa menos que uma fruta ou duas. Ademais, com a quantidade de açúcares, sais e conservantes que os produtos têm em sua composição, o consumidor acaba perdendo o paladar e não consegue dar importância às frutas e legumes, naturalmente de sabores mais delicados. E uma especialista ouvida no documentário chamou a atenção para algo que passa despercebido: muitas das coisas que se aprendem na escola, diz ela, não são utilizadas pelas crianças todo dia. Porém, elas se alimentam todos os dias (ou pelo menos deveriam) e, por isso, seria preciso apresentar a elas uma educação alimentar, para que elas aprendessem o que faz bem e o que não faz. Mas, não é o que se vê. Ao contrário, as cantinas das escolas estão repletas de guloseimas recheadas de gorduras vazias e excesso de açúcar, frituras e outras porcarias repletas de calorias e de baixo valor nutritivo. Aliás, já passou da hora de se legislar nacionalmente para regular a venda de produtos nessas cantinas. O Estado de Mato Grosso, por exemplo, tem uma boa lei desde 13/07/07 (Lei Estadual nº 8.681), cujo artigo 2º tem a seguinte redação: "Art. 2º É vedada a comercialização, nas cantinas das unidades escolares que atendam a educação infantil e básica, dos seguintes alimentos: I - bebidas alcoólicas; II - refrigerantes; III - balas, pirulitos, gomas de mascar e afins; IV - alimentos industrializados com teores elevados de gorduras saturadas, gorduras trans e sal; V - salgados fritos; VI - alimentos que contenham nutrientes comprovadamente prejudiciais à saúde, nos termos do regulamento. Parágrafo único. As cantinas deverão fornecer ou colocar à disposição dos alunos, no mínimo, dois tipos de frutas sazonais." No Estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa chegou a aprovar no ano de 2009, por unanimidade, projeto de lei semelhante, mas o mesmo foi vetado pelo então Governador José Serra. Esse tipo de lei sempre gera a grita de fabricantes e comerciantes, alguns dizendo que seria hipocrisia vetar a venda nos estabelecimentos escolares, enquanto os mesmos produtos continuam sendo vendidos livremente no mercado. Para quem não percebe o sofisma da argumentação, transcrevo o depoimento da endocrinologista pediátrica Dra. Soraya Cristina Sant'Ana, que me parece suficiente para esclarecer alguns dos pontos principais da questão. Diz ela: "Minhas crianças vivem esta batalha diariamente, pois muitas realizam consultas periódicas por obesidade, diabetes, colesterol ou triglicérides elevados. E não há nada mais frustrante do que nos depararmos com piora da obesidade e dos exames, após o empenho de toda família pela melhora da saúde da criança; e depois de uma conversa minuciosa, descobrirmos que apesar de todo esforço da família, a criança não melhorou porque continuou comendo guloseimas escondido na escola. Ou então ouvir o choro de um garoto de 9 anos que chega a ser torturado com as guloseimas que seus amigos compram na cantina, ele conta que os outros meninos sabem que ele não pode comer guloseimas, então, de propósito eles compram e ficam passando os doces em seu nariz, para provocá-lo. Então, eu sei sim o quanto esta batalha contra a má alimentação é árdua e só está começando. E que, se não houver o apoio das escolas, dificilmente atingiremos o sucesso!!" ("in": https://drasorayasantana.site.med.br/index.asp?PageName=Lei-20das-20cantinas-20das-20escolas) Para terminar, anoto que, atualmente, inclusive, algumas escolas oferecem gratuitamente balas, pirulitos e até sorvetes para seus alunos. Um verdadeiro absurdo feito para viciar. Cabe aos pais ficar atentos e reclamar. As crianças e adolescentes, vítimas desse processo industrial pernicioso, se pudessem e soubessem, agradeceriam.
Numa propaganda recente da Natura, aparece uma personagem fazendo uma enquete pelas ruas. Ela entrevista as pessoas, perguntando "É mito ou verdade?". Num dos anúncios, ela diz mais ou menos isso: "Se você usar sempre o mesmo perfume, com o tempo, você acaba deixando de perceber o cheiro, porque se acostuma com ele. É mito ou verdade?". A última edição da revista Agitação, editada pelo CIEE (106-julho/agosto de 2012), traz estampada uma matéria de capa que diz o seguinte: "Mitos e verdades na caça a novos talentos". São apenas dois exemplos de como a sociedade contemporânea acabou transformando o substantivo mito no adjetivo falso. Aliás, mito tornou-se sinônimo de algo não verdadeiro, o que acabou gerando a falsa ideia (essa sim) de que não só aquilo que é mito não existe como não tem função. E a realidade do mito mostra algo muito diferente. Com efeito, os filósofos, semiólogos e linguistas dizem que, ao contrário do que usualmente se pensa, o mito é uma realidade. Ele apresenta algo muito concreto e vivo. Aliás, é mais do que isso: o mito é uma fala real, que conta uma história sagrada e que apresenta um modelo exemplar. "O mito é uma fala"1, afirma Roland Barthes. Naturalmente, como diz o semiólogo francês, não é uma fala qualquer. Trata-se de um sistema de comunicação, de uma mensagem. E, como mensagem, pode ser representada por um texto escrito ou oral, assim como por imagens. Desse modo, "a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isto pode servir de suporte a fala mítica"2. E se, de fato, Barthes tiver razão, como penso que tem, o mito, ao contrário de significar uma falsidade, expressa algo verdadeiro, ainda que as pessoas possam não perceber. Aliás, esse caráter de oculto do mito talvez seja uma de suas características mais marcantes nas sociedades contemporâneas. Para compreender o que quero dizer, cito o filósofo romeno Mircea Eliade. Buscando definir o mito, ele explica que este conta uma história sagrada. O mito "relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas de Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir"3. O mito narra uma história sagrada e verdadeira, que se refere ao ato de criação de alguma coisa. "É o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, revelando a atividade criadora de um personagem sobrenatural, desvendando, portanto, acima de tudo, o caráter de sacralidade"4. E, como diz o estudioso romeno, o mito "fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo significação e valor à existência"5. Importante frisar esse aspecto de sagrado do mito e também seu caráter exemplar, pois sua comunicação em tempos modernos é capaz de encantar, de seduzir, de envolver o espectador em função de sua essência misteriosa. "O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou heróis civilizadores"6. Do ponto de vista comportamental, o "mito representa um certo modo de estar no mundo"7. Estudado no mundo contemporâneo, vê-se que suas conotações essenciais permanecem as mesmas: modelo exemplar, repetição, ruptura do período profano e integração do tempo primordial. As duas primeiras são, inclusive, "consubstancias a toda condição humana"8. Assim, por exemplo, as comemorações do Ano Novo ou das festas que marcam um "começo"; a necessidade de encontrar heróis (em vários locus, tais como na guerra, nas artes, nas competições, nas diversões públicas etc) e a imitação de suas ações; os grandes espetáculos como as touradas, as corridas e demais encontros esportivos, que têm um ponto em comum: "desenrolam-se num 'tempo concentrado', de uma grande intensidade, resíduo ou sucedâneo do tempo mágico-religioso"9. Aliás, não é à toa, que o capitalismo contemporâneo e seus sistemas de comunicação que visam à sedução e o controle dos consumidores, utilizam-se de várias formas míticas para apresentarem seus produtos e serviços. Os símbolos e rituais dos mitos estão presentes em vários modos de comunicação mercadológica que, por causa de suas funções primordiais e, por isso, da capacidade de gerar enternecimento, empatia e magnetismo geram altos resultados junto ao público alvo. Os consumidores, deslumbrados, admirados e hipnotizados agem e se comportam do modo como os fornecedores esperam que eles se comportem. Voltarei em outra oportunidade a este assunto. Mas por ora, tendo em vista um grande evento que se inicia nesta semana em São Paulo, termino apresentando o relato de meu amigo Outrem Ego a respeito de um sonho que ele teve. Ele me disse que teve um sonho e que neste sonho sonhava que estava acordando. Veja o que ele contou: "Acordo e me vejo envolvido por dezenas de pessoas. Elas andam rapidamente, todas na mesma direção. Agitadas, dirigem-se a um imenso prédio. Sigo com elas e aos poucos esprememo-nos para adentrar ao lugar, passando por uma larga porta de metal dourado. Ultrapasso-a e percebo que estou numa espécie de templo. Enorme, espaçoso. Esse espaço amplo me atrai, sinto-me bem. Lá dentro vejo objetos de arte que reluzem, brilham como ouro, ofuscam meus olhos como o sol do meio dia. Deusas seminuas os protegem. As pessoas aglomeram-se em volta desses objetos virtuosos. Elas conversam entre si e, mirando nos olhares delas, eu percebo a adoração reinante. São verdadeiros totens portentosos, queridos, amados; são mais: são desejados. Elas os tocam, os penetram e querem possuí-los. Este é o grande desejo: a posse. Ouço um pouco das conversas: há ansiedade por tê-los, vontade de com eles se exibir. Pessoas há que por eles são capazes de muito; são capazes de venderem seus bens para poder tomá-los em troca. Endividar-se-iam apenas para pagar o preço de adquiri-los. A disputa em torno deles é evidente. Percebo que esses totens dão prestígio social; distinguem as pessoas que os possuem. As pessoas que os obtêm, de certo modo, se apaziguam, se acalmam: garantem seu 'status' na sociedade. Geram inveja nas outras pessoas. 'Morrerão de inveja!', disse um. 'Veja-me agora, não sou o máximo?', perguntou outro. Eis o templo. Eis a festa grandiosa. Eis-me aqui diante de totens e deusas belíssimas. 'Onde estou?', pergunto a uma delas, que me responde: 'Estás no salão do automóvel!'". __________ 1Mitologias. RJ:Bertrand, 9ª. Edição, 1993, p.131. 2Idem, Ibidem, p. 132. 3Mito e Realidade. São Paulo: Perpesctiva, 3ª. Edição, 1991, p. 11. 4Maria da Piedade Eça de Almeida, Mito: metádora viva?, in As razões do Mito. Campinas:Papirus, Regis de Morais (organizador), 1ª. Edição, 1988, p. 63. 5Idem, Ibidem, p. 8 6O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.80. 7Mitos, sonhos e mistérios, de Mircea Eliade. Lisboa:Edições 70, p.20. 8Idem, Ibidem, p. 21. 9Idem, Ibidem p. 23.
quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Big Brother nas escolas?

O Big Brother nas escolas? *Este artigo foi escrito por Rizzatto Nunes em conjunto com a pedagoga Claudia Calmon  Em 1946, George Orwell dizia: "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar...". E ele que, infelizmente, faleceu em 1950 aos 46 anos, vítima de tuberculose, desenvolveu com maestria excepcional uma experiência estética que foi capaz de proclamar uma série de denúncias envolvendo a natureza humana, o Estado e a sociedade. "O Grande Irmão está de olho em você" é o conhecido slogan do famoso romance "1984". Não preciso chover  no molhado de apontar o lado visionário desse livro, um clássico moderno atual e aterrorizante que, escrito entre 1943 e 1948 e lançado em 1949, nos legou uma série de avisos e modos de conduta e também apontou elementos de tecnologia que foram incrementados mesmo antes da data prevista no título. Dentre as várias situações assustadoras apresentadas, a mais famosa e que se tornou popular por um motivo mais ou menos torpe é a do Big Brother. Como se sabe, na obra de Orwell, as pessoas eram vigiadas 24 horas por dia por um aparelho intitulado teletela, que funcionava simultaneamente como televisão e câmera. A vigia que se fazia sobre as pessoas era de tamanha força que se controlavam não só as falas, mas também as expressões faciais, de tal modo que, se aparecesse na tela o Grande Irmão e a pessoa não demonstrasse seu amor por ele e aquiescência com suas ideias, era recolhida, torturada e eliminada. O herói do livro, Winston, que guardava um pouco de consciência das coisas que ocorriam, para poder pensar livremente e esconder a expressão de seu próprio rosto enquanto assim o fazia, descobriu um canto em sua casa não captado pela teletela. Era um espaço neutro em que ele podia permanecer longe da vigilância. Ali, na sombra da vigia, ele podia pensar e escrever num livro de páginas amareladas.  Muito bem. Recentemente, a colocação de câmeras de vídeo nas salas de aula de um colégio em São Paulo gerou, e ainda gera, uma discussão sobre a legitimidade de sua existência. A pergunta que se faz é: pode mesmo uma escola colocar câmeras de tevê para vigiar o comportamento do aluno em sala de aula? Os que se posicionam a favor dizem que, com isso, os alunos acabam se comportando de maneira mais adequada, respeitando as regras de convivência vigentes na escola. Os críticos, de outro lado, dizem que esse não é o melhor método de incorporação de normas de conduta. Penso que os críticos têm razão. A se continuar a implantação desse modelo de vigília em salas de aula, como se os alunos estivessem num presídio, talvez se consiga, de fato, um comportamento objetivamente adequado às normas, mas se coloque a perder o necessário processo de formação e interiorização delas. É preciso que o aluno não só cumpra as determinações, mas, especialmente, internalize-as, conferindo-lhes legitimidade, pois só assim conseguirão comportar-se de forma adequada não só na escola como em outros ambientes sociais. De nada adianta construir-se uma relação na qual se busque meramente um comportamento passageiro - no período das aulas - como se vivêssemos numa sociedade de total vigilância. Aliás, até mesmo em 1984 o Grande Irmão e seus asseclas queriam não só o comportamento exterior, mas também a internalização da obediência. Tanto que a pessoa flagrada em delito, antes de ser eliminada, era torturada até o momento em que interiorizava o comando, dizendo que aceitava as imposições do sistema. Depois disso, era eliminada. Será que restará aos alunos procurar um local onde as câmeras não os alcancem para poderem manifestar seus pensamentos, sua concordância ou discordância com as regras e os sistemas? Será que esses alunos terão que, de fato, pensar livremente apenas nos banheiros e cantos obscuros da escola? (é isso que se chama educação?). A autoridade do professor em sala de aula (e também a do diretor do estabelecimento) será trocada por câmeras de segurança? Essa questão das câmeras de vigilância há de ser bem analisada, inclusive pelos pais. Algumas perguntas podem e devem ser feitas. Será que a instalação do disposto não está a denunciar algo maior?  Como, por exemplo, a perda da autoridade do professor e do próprio estabelecimento de ensino? Ademais, no caso desse colégio de São Paulo há ainda uma questão jurídica relevante. Examinando-se o projeto pedagógico publicado na sua página da internet, vê-se um descumprimento da proposta. Vejamos alguns trechos: "Projeto Pedagógico - ... orienta-se por um fazer cotidiano que objetiva a aquisição de conhecimentos e competências permeados pelo diálogo, respeito à diversidade , atitude crítica e edificada em princípios éticos e de solidariedade. Fundamenta-se no binômio indissociável ACOLHER e EDUCAR, que: revela uma concepção de criança e de adolescente como sujeito competente e de direitos;     considera sua dimensão intelectual, social, emocional, expressiva, cultural, interacional; respeita as características de cada faixa etária em direção à sua formação integral em que o sentir, pensar e agir estão intrinsecamente interligados. A ação educacional que viabiliza essa proposta se dá por meio de projetos relacionados à valorização da vida... à convivência social, aos trabalhos em equipe... Esses procedimentos visam ao desenvolvimento de competências e habilidades que promovem reflexão crítica e construção de autonomia intelectual e moral, o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de tomar decisões conscientes e responsáveis frente à realidade social. Nesse processo de inserção do aluno na vida em sociedade, nossa escola organiza suas ações em função de três valores centrais, que determinam a maior parte das decisões tomadas, sejam funcionais ou pedagógicas: COMPETÊNCIA - capacidade de mobilizar saberes para agir em situações concretas. ÉTICA - construção do pensamento criterioso, comprometido com o respeito mútuo, com a reciprocidade , com autonomia moral e intelectual. SOLIDARIEDADE - estabelecimento de convívio social que envolva produzir, dividir e aprender com os outros; compromisso com a causa humana, percebendo-se como agente de transformação da realidade e de si mesmo". Há mais no projeto, mas é o que basta para verificar que a proposta pedagógica - boa em essência - não tem qualquer relação com a inserção de câmeras de vigilância em sala de aula. Parece mesmo que a direção perdeu a rédea da administração da escola e dos alunos. Realmente, é uma contradição. Para educar é preciso sabedoria e autoridade. Ambas geram legitimidade. O aluno obedece porque compreende a razão da ordem e, ao internalizá-la, acaba por legitimar a autoridade do professor e da própria escola. Esse é um tipo de poder legítimo, que é exercido para gerar consciência e conhecimento. Com câmeras de vigilância, instaura-se uma espécie de força que se limita a controlar a ação no espaço físico. Perde-se, pois, a oportunidade de educar verdadeiramente. No caso, o próprio projeto prevê a autonomia dos alunos, o preparo para a vida social fora da escola e a responsabilidade.  Mas que autonomia terão os alunos com câmeras olhando para suas faces e seus atos? A autonomia não surge num sistema de imposição de ordem e de obediência vigiada.  Para sua aquisição, deve-se permitir e propiciar a discussão constante de princípios e regras pelos próprios alunos entre si e com a participação dos professores, para que, de fato, elas sejam internalizadas e se tornem legítimas. Não se trata de imposição, mas de aquisição negociada, dialogada, problematizada no contexto da aprendizagem. Os alunos devem ser convidados a pensar juntos sobre o que é construir uma sociedade com respeito, o que é que de ser considerado bom e correto para a comunidade escolar, como se deve dar o relacionamento entre os colegas, o que deve ser considerado saudável, justo, etc. Uma escola tem que estar preparada para formar cidadãos responsáveis e conscientes de seus direitos e deveres. Não pode se contentar em gerar robôs, que sejam incapazes de expressar o que pensam, cujos movimentos do corpo são controlados e que entram e saem das salas de aulas com sorrisos amarelos nos seus rostos vigiados.
Como já referi nesta coluna, se o consumidor adulto é, como de fato é, vulnerável e hipossuficiente no mercado de consumo (como diz o Código de Defesa do Consumidor), a criança-consumidora é especialmente vulnerável. E, se o consumidor adulto é, geralmente, vítima do fornecedor, a criança-consumidora é não só vítima do fornecedor como também muitas vezes dos pais e demais pessoas próximas. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões artificiais - como a do Dia das Crianças - em que o elemento externo (isto é, o mercado) impõe que eles façam compras e deem presentes aos filhos e netos para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes como que valor devam dar a eles. Naturalmente que, uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor e enganador, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar e adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). E, nessa questão dos presentes, há muito mais do que simplesmente essa ocasião do dia das crianças: os produtos - e também serviços - de consumo de há muito têm intervindo nas relações de pais e filhos de modo que a reflexão impõe que pensemos num horizonte mais amplo do que apenas essa fictícia data comemorativa. Muito se tem falado, nessa nossa sociedade que se diz civilizada, da dificuldade que os pais têm, atualmente, para educar seus filhos na imposição de limites claros. É um tema batido, mas repito o que se tem assistido: muitos pais acabam oferecendo para seus filhos produtos e serviços em excesso porque eles não tiveram essa oportunidade na própria infância. Isso por, pelo menos, dois motivos: primeiro porque os pais desses pais não tinham condições financeiras para adquirir os produtos e serviços que eram oferecidos; segundo, porque, de fato, naquela época, havia menos oferta e o preço era muito mais elevado. Agora, esses pais, que melhoraram seu padrão aquisitivo, têm à sua disposição muito mais produtos e serviços a menores preços, o que acaba sendo uma tentação irresistível. Ademais, como aqui tenho sempre lembrado, o marketing agressivo de vendas de produtos e serviços para crianças, muitas vezes, cria de propósito um liame entre pais e filhos de modo a possibilitar que esses últimos pressionem os primeiros em busca das compras. Aliás, por causa disso, não é incomum que pais se endividem apenas e tão somente para comprar bugigangas e produtos desnecessários para seus filhos. Não quer dizer que os filhos não possam fazer por merecer, nem que não devam, em algum momento, receber certos produtos e serviços. A questão é outra. É preciso que as crianças e adolescentes deem valor a tais oferendas; é necessário que eles saibam o real preço das coisas; que consigam, de fato, perceber que aquilo é uma conquista e não algo que facilmente caiu do céu. Lembro o que disse meu amigo Outrem Ego a respeito desse assunto. Ele me contou que, quando era criança, de infância pobre e recursos limitados, como qualquer garoto da idade dele, gostava de colecionar figurinhas. Mas, como seu pai, operário, não tinha recursos para adquiri-las a toda hora, ele ficava aguardando dias a fio numa alta expectativa. Ele me contou que, até hoje, ainda lembra da torcida que fazia para que a chegada do seu pai em casa às sextas-feiras fosse acompanhada dos desejados pacotinhos de figurinhas. E me falou da enorme alegria que sentia quando ganhava cinco pacotinhos. Cinco. Apenas cinco e gerava um incrível sentimento de felicidade. Uma vez, seu pai trouxe-lhe dez e ele quase não dormiu de tão contente e eufórico que ficou. Ele dava muito valor não só às figurinhas como ao esforço do pai para adquiri-las. Sei, como você, meu caro leitor, que os tempos são outros, mas o modo de aquisição de produtos e serviços e a importância que as crianças devem dar a esse ato continuam os mesmos. É preciso que elas consigam dar valor aos presentes; que descubram que eles exigem um esforço para sua compra e seu recebimento. E, como há muitos pais que, como os de meu amigo, não têm condições financeiras para a aquisição mesmo de alguns produtos simples e baratos, é também importante que elas saibam que nem sempre poderão possuir certos produtos e serviços sem que isso signifique alguma derrota ou tragédia. Para terminar essa proposta de reflexão, já que estou falando de crianças e referi que vivemos numa sociedade civilizada, faço questão de apresentar uma história narrada pelo filósofo Mario Sérgio Cortella no seu livro "Qual é a tua obra?"1. Ele conta uma história da visita de dois caciques da nação Xavante em 1974 à cidade de São Paulo. Naquela época, diz Cortella, "os xavantes não usavam o dinheiro como meio de qualidade de vida. Para eles, qualidade de vida era alimento, porque era o jeito de garantir sobrevivência"2. Dentre os vários lugares que os xavantes foram levados para conhecer, um deles foi o Mercado Municipal de São Paulo, no centro da cidade. O filósofo da PUC/SP conta que os xavantes ficaram pasmos e maravilhados com tanta comida sendo oferecida. Eram - e são - pilhas de alfaces, tomates, cenouras, laranjas etc. De repente, diante de uma banca repleta de legumes, um dos xavantes apontou para um menino e perguntou: "O que ele está fazendo?". Tratava-se de um menino pobre, que estava "pegando alface pisada, tomate estragado e batata já moída"3. Ele recolhia do chão e colocava tudo num saquinho. Cortella disse que responderam: "Ué, ele está pegando comida". O cacique, então, não disse mais nada e continuou andando e observando as coisas ao seu redor. Depois de um tempo, perguntou: "Eu não entendi. Por que ele está pegando essa comida estragada aqui no chão se tem essa pilha de comida boa?". Ao que responderam: "É que para pegar comida dessa pilha aqui, precisa-se de dinheiro". O cacique continuou: "E ele não tem dinheiro?". "Não tem", disseram. "Por que não tem dinheiro?", indagou o cacique. Mario Sérgio Cortella afirma que, depois disso, os caciques disseram algo que ele nunca se esqueceu: "Vamos embora". E explicou que eles queriam dizer: "Vamos embora da cidade de São Paulo". "Veja como eles são 'selvagens'"4. Cortella concluiu: "Eles não conseguiram compreender essa coisa tão óbvia: que uma criança faminta, diante de uma pilha de comida boa, pega comida podre. Eles não são civilizados". Penso que a culpa por esse estado de coisas não é só do sistema, mas que o modelo de capitalismo selvagem em que vivemos contribui e muito para tanto não resta dúvidas. Quem sabe um dia possamos afirmar com o peito repleto de alegria que realmente atingimos um elevado estágio de civilização, no qual as crianças não precisam passar e morrer de fome - e que ninguém precise.
Aproveito o caso da brasileira que colocou sua virgindade à venda numa espécie de reality show de uma produtora australiana, para propor uma reflexão sobre o que, de fato, pode-se vender na sociedade capitalista em que vivemos. O fato de uma moça querer vender sua virgindade talvez não possa mesmo ser capaz de chocar ninguém. Vivemos uma época em que há um entorpecimento tal que parece que fica difícil acontecer algo escandaloso. (Basta o exemplo da banalização da violência e da criminalidade do dia a dia para demonstrar a gravidade do problema). Daí que, neste artigo, a partir da proposta da catarinense que se chama Catarina e que deu o que falar, pretendo focar o mercado de consumo e sua incrível capacidade de criar comportamentos, sua tremenda e oculta força para amoldar pessoas e impor normas. Já referi aqui nesta coluna o livro de Michael J. Sandel, cujo título é sugestivo: "O que o dinheiro não compra"1. Quem lê o livro vê que o dinheiro pode comprar quase tudo. (Há os que defendem que possa mesmo comprar tudo). Aos moldes do livro, vou colocar uma questão: "Tudo está à venda?". Pensando na jovem catarinense, fica-se com uma tentação em responder que sim, que os eventuais limites éticos que permitiriam que respondêssemos "não!" estão perdidos. A importância do dinheiro na sociedade capitalista abertamente colocada e também fixada como fundamento das relações instituídas, realmente, estabeleceu um novo modelo normativo. Os lemas da sociedade em que vivemos são bem conhecidos: "O dinheiro não traz felicidade, manda buscar" ; "O dinheiro não traz felicidade, mas compra algo bem parecido";"O dinheiro não compra felicidade, mas prefiro chorar no carro a chorar no ônibus" e outras bobagens do tipo, mas que dizem muito sobre o sistema. Por outro lado, não resta dúvida de que ele é importante. As pessoas oprimidas pela falta do dinheiro olham à volta e depois de muito - ou pouco - pensarem acabam descobrindo algo que possam vender dado ao alto grau de permissividade para fazê-lo. Para ficarmos no tema da venda da virgindade ou, tecnicamente, de parte do corpo humano - a possibilidade oferecida a um homem de, penetrando a candidata, romper seu hímen - situarei os pontos, para nossa reflexão, em alguns elementos do capitalismo que envolvem o corpo. No livro "O mercado humano", Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa apresentam um panorama da enorme quantidade de casos de venda e compra de partes do corpo em muitos países do mundo2. Vários deles são bem conhecidos e, inclusive, regulamentados em alguns lugares, tais como o das barrigas de aluguel ou a venda do próprio sangue humano (algo permitido nos Estados Unidos da América3). Berlinguer e Garrafa focam casos de venda de órgãos, mostrando o drama que envolve vendedores desesperados e médicos e compradores inescrupulosos4. O episódio da catarinense, claro, está situado no campo da prostituição - tema também abordado no livro dos dois autores. É do tipo de oferta do corpo às escuras. Um "blind date" sexual em que a mulher não conhece seu parceiro; basta que ele pague e aceite as regras previamente estabelecidas, como a própria Catarina explica: "O comprador não pode levar outra pessoa, querer realizar fantasias (sic...), usar brinquedo sexual, nada. Também é obrigatório o uso de camisinha e só pode tirar a virgindade, nada mais. Conversar pode. Mas beijar, não. Beijar não está no contrato"5. (grifei o pedaço da fantasia, pois como pretendo mostrar é exatamente fantasia - machista - que está sendo vendida). Na questão do uso e venda do corpo, a influência dos métodos capitalistas se faz sentir quando as pessoas, ao se referirem a esse tipo de transação, utilizam-se da expressão "mercado de órgãos humanos", "mercado de barrigas de aluguel", "mercado de sangue humano", etc., o que é uma forma simbólica de incorporar a transação, dando-lhe ares de normalidade, isto é, apresentando-a como produto de consumo. Acresço aos exemplos acima outro citado por Sandel no referido livro: Uma mulher de 30 anos do Estado de Utah no EUA, Kari Smith, mãe solteira de um menino de 11 anos de idade que tinha problemas na escola, precisava de dinheiro para a educação de seu filho. Em 2005, num leilão via internet, ela se ofereceu para tatuar um anúncio permanente na própria testa para qualquer patrocinador comercial que estivesse disposto a lhe pagar 10.000 dólares. Um cassino online aceitou a oferta. Apesar da resistência do tatuador - quem diria? - Kari tatuou o endereço eletrônico do cassino na testa, virando uma espécie de outdoor ambulante6. Na maior parte desses exemplos, o que os pesquisadores mostram é que se trata de gente desesperada e necessitada. São pessoas muito pobres que vendem o próprio sangue para conseguir trocados e continuar vivendo como der ou vendem o rim ou alugam a testa! Mas, não deveria haver limites? Na venda de órgãos, há, e na de sangue, também em vários lugares. E a existência de um mercado lícito ou mesmo ilícito não seria capaz de estimular a venda aberta de qualquer coisa? Será que basta existir compradores para surgir a oferta? Ou é o contrário? Voltemos ao caso do leilão da virgindade. Ao contrário do que mostram os autores nos livros citados, não é o desespero que marca a oferta de Catarina. Ao que consta, ela não é uma moça que precise vender sua virgindade para sobreviver, como ela mesma confirma: "O que eu posso te dizer agora é que o leilão, para mim, é um negócio"7. Aliás, diz mais que com o dinheiro que receberá pretende abrir uma ONG e investir num projeto de casas populares para famílias pobres em Santa Catarina8. A acreditar-se nas palavras dela, seria, então, um sacrifício o que ela se propõe. Seria um sacrifício que vale a pena? Dá para desconfiar, pois como se pode ver das reportagens, ainda que ela pretenda desmerecer o pagamento em dinheiro - polpudo, diga-se-há um claro interesse pela fama, esse outro produto da sociedade de consumo, que criou as celebridades e o culto às estas. Os chamados cinco minutos de fama são um doença típica da sociedade capitalista contemporânea: "Quando deu certo - o chamado para o reality show - , fiquei feliz. Eu era de uma cidade pequena em Santa Catarina e um cineasta australiano me escolheu"9. O caso é complexo: Quem olha, pensa que ela não dá valor à própria virgindade ou fisicamente falando, ao hímen que há de ser rompido. Não farei qualquer consideração porque, naturalmente, somente uma avaliação sóciopsicológica poderia responder. E, talvez, ninguém tivesse nada a ver com isso não fosse um detalhe: Catarina e os produtores do intitulado "documentário" tornaram a oferta pública. Ela abriu mão de sua privacidade e, bem ao contrário, se mostrou abertamente a todo o mundo. Aliás, era esse mesmo o propósito, pois se trata de um leilão, uma oferta pública e ganha quem mais der. Eu pergunto: o que, de fato, Catarina está vendendo e o que os compradores pretendem adquirir? Seria a "virgindade"? Ora, 'virgindade" é um conceito construído que tem base fisiológica e sócioculturais (o que faz variar seu sentido, dependendo do local e momento da história). Do ponto de vista objetivo, a virgindade pode ser definida como o atributo de uma pessoa que nunca teve nenhum tipo de relação sexual, representada na mulher pela existência do hímen intacto (o que pode eventualmente trazer problemas para mulheres que não tenham hímen, embora nunca tivessem sido penetradas pelo membro masculino). Simbolicamente, a virgindade emana a ideia de pureza, candura, da obra intocada. Na sociedade de consumo, por isso, fala-se em CD virgem, DVD virgem, azeite virgem ou extra virgem (quando referido à primeira prensagem), etc. Na religião cristã, a Virgem Maria é o exemplo da pureza: a mulher santa que deu a luz sem ser maculada. Pergunto, agora, como fazem os autores dos livros citados: Que mal há nisso? Se a virgindade é dela, por que não pode vender? Nos outros casos, o aspecto comercial mostrou-se bastante prejudicial por vários motivos. Não só porque são sempre os oprimidos e desprotegidos que recorrem a esses estratagemas insólitos, como também porque enfraquece o sentido moral que deveria nortear as ações humanas e que deveriam servir de sustentação ao mercado - qualquer tipo de mercado. No caso de venda de órgãos, Berlinguer e Garrafa contam que um dos primeiros processos judiciais para punir a prática foi desenvolvido na Grã-Bretanha contra um médico (Raymond Crockett) por ele ter transplantado para quatro pacientes ingleses os rins de outros quatro cidadãos turcos recrutados como doadores recompensados ou remunerados. Na sentença, o juiz deixou claros os malefícios do ato para todos: "A tragédia pessoal e profissional de V. S, dr. Crockett, é que o seu comportamento desacreditou profundamente a prática do transplante renal, que havia sido encorajada por V. S. através de suas atividades na Grã-Bretanha"10. Na questão da venda de sangue, Sandel apresenta um estudo feito pelo britânico Richard Titmuss em 1970 para mostrar a relação entre venda e doação11. Ele comparou o sistema em vigor no Reino Unido, onde todo o sangue para transfusão é doado com o dos Estados Unidos, onde parte é doada e outra parte é comprada por bancos de sangue comerciais de pessoas dispostas a vendê-lo. Titmuss comprovou, através de dados, que o sistema britânico de coleta de sangue funciona melhor que o americano. O modelo de mercado livre para compra e venda de sangue leva à escassez crônica, ao desperdício, a custos mais altos e a maior risco de contaminação. Mas, ele também apontou os problemas de ordem ética: os bancos de sangues lucrativos nos EUA recrutam boa parte de seus vendedores em bairros pobres e favelas; pessoas desesperadas para obterem algum dinheiro. Há uma redistribuição do sangue dos pobres aos ricos, um efeito perverso e imoral. Titmuss diz, e com razão, que transformar o sangue em mercadoria corrói o sentimento de obrigação de doar sangue, diminui o espírito de altruísmo e solapa a relação de doação, que é uma característica ativa da vida social. E os dados comprovavam que, por causa da existência de um mercado de compra e venda de sangue, o que se observava nos EUA era um decréscimo do número de doadores. "A comercialização e o lucro com o sangue vêm afastando o doador voluntário"12. Como pondera Titmuss, a partir do momento em que começam a encarar o sangue como um produto que pode ser vendido e comprado, as pessoas perdem um pouco de seu senso de responsabilidade moral pela doação. A compra e venda de sangue desmoraliza a prática da doação gratuita. Então, para concluir, retorno ao caso da Catarina. A oferta é de um produto imaterial, uma fantasia machista: a virgindade que será violada. Espanta mesmo que, em pleno século XXI, algum homem pague e muito para ter essa experiência, desse modo frio e calculista. E, se existe algum produto material, ele é o hímen que será rompido. Daí, então, há também uma espécie de serviço: o direito a seu rompimento. Caso típico de oferta que fazem todos os dias as prostitutas, com a diferença de que não se trata de rompimento, mas apenas de penetração. Qual o alcance desse tipo de oferta? Talvez passe em branco e, como acontece com a maioria dos "famosos de cinco minutos", logo logo não se tratará mais do assunto. Realmente. Todavia, o problema da oferta remanesce e deveria nos fazer pensar. Seu caráter machista expõe o que há de pior nesse modelo: A ideia de que a mulher vale por sua virgindade e que sua violação é um prêmio muito especial, algo que já devia ter sido extirpado do imaginário social masculino e feminino, pois mantém em vigor um tabu indesejado (a virgindade) e o preconceito de que a mulher deve sempre apresentar-se virgem para seu homem. __________ 1Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1ª. ed. 2012. 2Brasília:UNB, 1ª. Edição, 1996. 3Como mostra Sandel no referido livro, p. 121/123. 4Idem, passim. 5Trecho de entrevista à Folha de São Paulo publicado em 26/9/2012. 6Idem, p. 184. No livro, Sandel narra outros casos de uso do corpo com outdoor permanente e temporário (Conf. ps. 179/184). 7Mesma entrevista acima referida. 8Idem. 9Idem 10Livro citado, p. 11. 11Livro citado, ps. 121 e segs. 12Titmuss citado no livro de Sandel, p. 122.
Não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, mas, como as greves se repetem, eu também me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores nesse período de greve dos funcionários dos correios e dos empregados dos bancos. Tenho referido os Correios no Brasil como exemplo de serviço de alta qualidade e eficiência. Ou, como digo, um dos caminhos mais rápidos entre dois pontos é o correio. Realmente, é induvidoso que esse é um dos melhores serviços públicos do país e que cumpre a missão estatal que se espera obter de todo serviço essencial (público, privado ou privatizado). Mas, por conta da paralisação, muitas pessoas podem já ter sofrido danos ou ainda podem vir a sofrer até a completa regularização do sistema. Daí que vale a pena lembrar os direitos e obrigações envolvidos. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor. É que ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência dos mesmos. Para que a ECT seja responsabilizada, não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. E, de fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem de oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica, etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer do consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Cabe ao consumidor manter uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Sei que, atualmente, há outra greve correndo no sistema bancário, o que piora a situação do consumidor. Apesar das opções que, no caso, os consumidores têm - mas não todos - de pagamentos via internet e casas lotéricas, valem as mesmas regras de proteção ao consumidor que acima transcrevi: não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem como fazê-lo. O que se espera, naturalmente, como demonstração de boa prestação de serviços, é que os fornecedores não cobrem multas dos consumidores que eventualmente pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve. Anoto, de todo modo, que, no que diz respeito à entrega das faturas dos serviços de água e esgoto e energia elétrica, a greve não tem muito efeito porque muitas concessionárias utilizam seus próprios funcionários para a entrega das faturas. Há ainda problemas numa série de cobranças de serviços e compras de produtos relativas ao comércio em geral. Os comerciantes e prestadores de serviços costumam emitir boletos com observação de envio para Cartório de Protesto após certo período de atraso. Nesses casos, valem também as mesmas regras que acima apresentei e, por certo, cabe ao consumidor entrar em contato com o comerciante ou prestador de serviço para obter outro meio de quitação da dívida.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O consumidor empregado do fornecedor

A ideia do consumidor ser transformado em empregado do fornecedor não é nova. É conhecida de todos nos serviços self service em restaurantes, passando pelos postos de combustíveis nos Estados Unidos da América, vindo a desembocar, no final do século XX, nos atendimentos self service feitos pelo consumidor via internet dos serviços bancários e se expandiu por toda a rede de vendas online. Esse modo de transferir atividade fim para o consumidor, que é quem paga para recebê-la, às vezes, de fato, traz vantagens: quando, por exemplo, ele faz transferências bancárias sem sair de casa ou quando escolhe aquilo que quer comer nos restaurantes olhando e examinando os pratos oferecidos. Mas, nem sempre significa bom serviço. Veja-se o caso dos postos de combustíveis self service americanos. É exemplo de serviço de péssima qualidade com, inclusive, riscos para a saúde e a segurança do consumidor (Por sorte, por aqui não foi implantado). Essa "técnica" é, naturalmente, uma maneira que o fornecedor tem de diminuir custos, usando mão de obra terceirizada gratuita do próprio consumidor. E ela não para de se expandir, piorando os serviços: já chegou nos check-ins dos aeroportos, que em muitos lugares não são lá grande coisa em matéria de qualidade. Meu amigo Outrem Ego contou-me o seguinte de recente viagem que fez aos Estados Unidos. Desembarcou em Nova York e, depois de passar três dias curtindo a Big Apple, dirigiu-se ao aeroporto de Newark para tomar um avião com destino à cidade de Boston. Ao chegar ao aeroporto, percebeu que a companhia aérea, a Continental, não tinha balcão de atendimento. Havia um serviço self service obrigatório. O passageiro tem de usar uma máquina para fazer o check-in. Outrem Ego começou a suar frio e entrou na fila, que não andava, porque cada consumidor-passageiro gastava muito tempo apertando os botões da máquina que, evidentemente, não conversava com eles. Depois de muito tempo, efetuado o check-in, ele não resistiu e foi reclamar com um funcionário da companhia aérea e perguntou a ele se não tinha medo de perder o emprego com essa transferência dos serviços primários para o usuário, ao que este respondeu: "não se preocupe, meu emprego está garantido". "Como é que ele não percebe!" pensou meu amigo. É que, na mesma hora, ele lembrou de um manobrista que trabalhava no estacionamento de um banco em que ele tinha, e ainda tem, conta no Brasil. Quando esse banco foi adquirido por um outro e fundido, na semana seguinte após a fusão, a primeira pessoa que perdeu o emprego, apesar de lá trabalhar há mais de dez anos, foi, exatamente o manobrista, piorando, naturalmente, o serviço porque, a partir daquele momento, quem tinha e tem que se virar com os automóveis é o próprio consumidor que vai à agência bancária. De fato, as palavras redimensionamento, reorganização, reposicionamento, reacomodação ou qualquer outro termo que o valha são usuais nas fusões. Elas significam que muitos trabalhadores perderão, como de fato perdem, o emprego, para que, com a diminuição dos custos, as empresas faturem mais (não vamos nos iludir com a ideia de que a redução dos custos, é repassada para o preço aos consumidores, eis que a realidade mostra algo muito diferente). Aliás, fusões significam desemprego, às vezes, em massa. O mesmo ocorre com a suposta redução de custos na implantação do sistema self service: o consumidor é transformado em empregado sem nada receber em troca, nem qualidade dos serviços, nem diminuição de preço. Aliás, ao contrário, muitas vezes ele paga para fazer o serviço do fornecedor, pois imprime os comprovantes em sua casa com seu papel e sua tinta ou paga um preço maior por ter feito o pedido em casa como acontece, por exemplo, com os ingressos para o cinema. Neste último serviço, o negócio é muito bom (para o fornecedor!): o consumidor usa seu computador e sua internet, imprime o ingresso em casa e pelo "serviço" ainda paga a mais taxas que variam de 27,39% (para meia entrada) a 13,69% (para inteira). Para filmes projetados em 3D o preço do ingresso e da taxa são maiores com percentuais similares. Cito um exemplo que extraí de um Shopping: preço do ingresso meia- entrada - R$11,50 mais taxa de serviço de R$3,15; preço do ingresso inteira - R$23,00 mais taxa de serviço também de R$3,15. A ironia é que sai impresso no recibo que a taxa diz respeito aos "serviços de conveniência"... Mas, como já mostrei antes em outros artigos, o mercado é mesmo muito bom em "criar modas" e ditar comportamentos e o consumidor, embalado por elas vai se adaptando e se acostumando. Ele se vira sozinho mexendo nas araras das lojas de roupas para encontrar o traje que tem interesse; depois se arranja para experimentar o que encontrou sozinho em frente o espelho; quebra a cabeça para decifrar as informações dos sites das companhias aéreas para conseguir emitir um ticket de viagem ou se atormenta tentando obter uma passagem via milhagem, etc. Em algumas lanchonetes e praças de alimentação podem ser lidos avisos do tipo "Limpe a mesa para o próximo cliente". Muitos consumidores, por cortesia e educação, fazem a limpeza. Mas, nem sempre há local para se colocar os recipientes, o que impede que se faça a arrumação. Em outras ocasiões, como nem sempre o consumidor cumpre a determinação, não é incomum encontrar-se mesas sujas, repletas de pratos, talheres, copos e restos de comida pela falta de empregados em número suficiente para manter o lugar limpo. O fornecedor esquece que não basta dar uma ordem ao consumidor; é necessário ter pessoal próprio para efetuar a limpeza caso o consumidor não o faça. Tiro no pé, pois. Gosto sempre de lembrar que todo empregado é consumidor e que, muitas vezes, o empregado, após violar um cliente a mando do patrão, acaba sendo violado como consumidor, enganado pelo empregado de outro patrão. Trata-se, afinal, da sociedade capitalista como a conhecemos. Nesse modelo do self service, talvez pudessem os empregados se preocupar com seus empregos, porque quando o sistema dá certo, certamente, há enxugamento de postos de trabalho. Sei que nesse assunto não há saída, pois o sistema self service veio para ficar, dando mais lucros via redução de custos e tirando emprego dos trabalhadores, mas em alguns setores, como postos de combustíveis e aeroportos, eles bem que poderiam não existir.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Por que os consumidores são tão previsíveis?

Nesse último fim de semana, meu amigo Outrem Ego fez uma indagação a respeito do enorme congestionamento nas estradas paulistas (e também em várias outras pelo país afora). Disse ele: "Era um fim de semana longo, emendado pelo feriado. A previsão do tempo apontava sol sem chuvas. Não era óbvio que haveria congestionamento? Por que é que mesmo assim as pessoas, nessa condição de viajantes ou turistas, enfiaram-se na estrada para fazer, em seis horas, um trajeto de uma? Aliás, como sempre acontece, todo ano, todo feriado emendado, em todas as festas de fim de ano etc. As pessoas são mesmo tão previsíveis?". Um caminho para tentar responder essa questão é o do exame do comportamento humano nos papéis sociais desempenhados. O consumidor, por exemplo, é um papel social com características próprias que, inclusive, no Brasil, foi elevado à condição de figura constitucional (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXII). O consumidor como papel social - aliás, como também outros papéis sociais - apresenta-se com diversas ramificações e especialidades, tais como o usuário de cartão de crédito, o correntista, o turista, o espectador, o internauta etc., cada qual com especificidades próprias. Nessa linha de reflexão, servir-me-ei de elementos da Sociologia do Direito que, penso, pode nos ajudar na busca. Com efeito, a Sociologia Jurídica desenvolveu o conceito de papel social . O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social1. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo, latentemente, ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo oferece sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas, dá-se o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se uma seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos2. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, delegado etc. Escolheu ser médico; não será odontólogo, nem advogado ou engenheiro etc. Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está - isso não importa para o papel social - pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem, ainda, nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente - "ele queria fazer Medicina, mas não conseguia passar" - ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de medicina, de engenharia, de administração de empresas etc., como exposto acima. Os papéis sociais foram criando-se por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que, para o indivíduo, as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações. Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos. E é muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais pré-existentes entre os demais papéis sociais. Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte, o que traz vantagem e desvantagem. A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade. A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. O indivíduo real - psíquica e fisicamente considerado - é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e, por vezes, esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais. Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando é o suficiente3. Como elemento de comprovação do que estou apresentando, isto é, o de que o papel social exerce forte influência no comportamento das pessoas, mostro na sequência como os agentes financeiros organizaram-se para conhecer de antemão o comportamento de seus futuros tomadores de empréstimos. É pela análise dos papéis sociais desempenhados pelas pessoas e a catalogação das ações e comportamentos neles desenvolvidos, que as pesquisas sobre expectativas de ações futuras têm sido feitas. E o desenvolvimento desse setor é cada vez mais preciso. Os bancos, já na metade do século XX, implantaram o cálculo do risco dos empréstimos a serem concedidos pela avaliação dos consumidores em seus diversos segmentos de papéis. Eles criaram o credit score, que nada mais é do que um método de concessão de pontos para certas características das pessoas nos papéis em que estão investidas. Funciona assim: são colocadas notas negativas e positivas numa escala crescente que valoriza posições e ações: a idade, a profissão, o estado civil, o tempo no emprego, o salário, a condição de ser funcionário privado ou público, as posses (propriedade de imóveis, móveis etc.), a existência de filhos e a idade deles etc. - um longo etc. e bem detalhado. Com isso, pode-se fixar um score, isto é, uma nota pelo risco que o indivíduo pode gerar, bastando, para tanto, que a ficha cadastral esteja preenchida. Nem é preciso conversar com o consumidor: é só dar notas para seus dados pessoais. Esse tipo de análise de crédito foi o que propiciou o desenvolvido dos chamados créditos de massa, créditos pré-aprovados e os cartões de crédito. Se um consumidor é aposentado do serviço público, tem bom salário - sem risco de não receber no fim do mês - é proprietário de imóveis, automóveis, seus filhos já são independentes etc. pode receber boa nota e, logo, ele implica baixo risco. Se se trata de um engenheiro recém-formado, que acaba de arrumar um emprego num pequeno escritório, é casado há dois anos, sua esposa está grávida, não possui patrimônio, a não ser um imóvel financiado por 30 anos, então, recebe nota baixa, pois oferece alto risco. Esses exemplos simples, mas reais, e as características de cada proponente variam ao infinito, mas quanto mais se avalia os atos e as circunstâncias de cada um, mais se pode acertar no resultado do futuro adimplente ou inadimplente. Os bancos vêm fazendo isso há dezenas de anos e formaram um enorme arquivo com esses dados, o que permite uma muito boa avalição de seus clientes. O risco, naturalmente, também está atrelado ao valor do crédito ou empréstimo, ao tempo de relação existente com o proponente e o banco, aos empréstimos anteriormente tomados e pagos ou não por ele e outros elementos particulares e específicos do proponente, que são levados em consideração. Mas, o importante para nossa análise é a avaliação do comportamento objetivo da posição cadastral - via papéis - para demonstrar como se dá o exame da previsibilidade comportamental. Olhando-se as ações e comportamentos por essa via, é de se indagar se, então, o futuro pode ser previsto. A resposta é sim, mas apenas nas circunstâncias e nos percentuais objetivamente avaliados em relação a certos e escolhidos comportamentos, como o exemplo dos turistas de fim de semana, dos proponentes de cartões de crédito e empréstimos e outros tantos interesses difusos dos consumidores, dos votos nas eleições em geral etc. O futuro é previsível, portanto, no coletivo, a partir do exame dos papéis sociais. No individual, no particular de cada pessoa, o futuro continua imprevisível porque, evidentemente, qualquer pessoa pode escolher não se comportar como os demais estão se comportando ou irão se comportar: alguém que não apresenta risco para um banco pode, por exemplo, furar o sistema deixando de pagar; alguém que sempre pega a estrada nos fins de semana prolongados pode resolver não viajar em algum deles etc. São exceções que podem também ser consideradas estatisticamente para melhorar o cálculo e que, quando envolve grande quantidade de pessoas agindo dentro do padrão, ainda permite a previsibilidade, pois funciona como mero desvio. Realmente, do ponto de vista da liberdade, é um pouco assustador que se possa antecipadamente saber como é que as pessoas irão se comportar. É mesmo. Parece estranho, mas o cálculo acaba dando certo, porque desconsidera a pessoa real, a pessoa que existe, com nome, documento e endereço. O cálculo leva em consideração o papel social e não a pessoa. Mas, é exatamente esse método que "salva a liberdade". É que, como visto acima, a possível ação livre dá-se no plano do indivíduo e não do papel. Ou, em outras palavras, não se consegue antecipadamente descobrir "quem" irá se tornar inadimplente ou mesmo adimplente. Não se pode, de antemão, adivinhar qual será a pessoa real, com nome, CPF e RG que, afinal, acabará atrasando o pagamento de sua dívida ou que manterá as prestações em dia. O cálculo dá certo exatamente porque desconsidera a pessoa real; esta não importa. O que vale é o papel que ela desempenha, o que conta são as características dos papéis sociais em que ela está inserida. Por isso, ainda dá para se falar em liberdade individual: alguém pode não corresponder às expectativas previstas para o comportamento no papel social e examinadas para a feitura do cálculo. Por outro lado, para quem faz o cálculo visando estabelecer controle sobre um certo grupo de pessoas ou querendo antecipar resultados em função das ações dessas pessoas, isso não importa. Basta desconsiderar os eventuais deslizes de alguns componentes - algumas pessoas - do grupo estudado. É assim que as coisas se dão: no papel social, existe uma muito grande possibilidade de que as pessoas se comportem da maneira como se espera que elas se comportem, de modo que, sim, pode-se antever suas ações e comportamentos. Poder-se-ia objetar que os consumidores-turistas de fim de semana não têm alternativas de lazer, além de colocar o pé na estrada. É verdade. Mas, lembre-se que para o método que permite a previsão dos acontecimentos, isso não é importante; os motivos da ação ou comportamento não são relevantes. O que vale é o comportamento em si e objetivamente considerado. E este é previsível. Assim, considerando-se as características desse consumidor-turista de fim de semana, é possível antever seu comportamento para os próximos feriados, período de festas de fim de ano etc. Respondendo, então, a meu amigo Outrem Ego, posso dizer que no próximo feriado emendado dar-se-á exatamente o mesmo, pois, no papel social de turista de fim de semana, grande parte das pessoas se comportam como se espera que elas se comportem. Isso não é um mal, mas, apenas um dado objetivo do comportamento humano. Ademais, essa possível previsibilidade tem seu lado bom. Ela permite que as empresas que administram as estradas planejem as viagens, que a polícia rodoviária faça o mesmo, que os comerciantes das cidades visitadas aumentem seus estoques de produtos e se preparem para oferecer serviços para a multidão que chegará etc. Goste-se ou não, é assim que as coisas são. De fato, essa possibilidade de previsão é quase enfadonha. É ela que explica em parte o sucesso de campanhas publicitárias, das promoções, dos concursos, dos feirões de imóveis etc. Já se sabe que o consumidor irá comportar-se de certo modo. Somente muita educação e tomada de consciência do jogo capitalista e social permitiria um mudança nesses padrões repetitivos e previsíveis. Contrariando o maravilhoso Nelson Rodrigues que dizia que "no Brasil até o passado é imprevisível", a ciência demonstra como fazer cálculos capazes de prever comportamentos. Quem duvida, que aguarde o próximo feriadão e observe os congestionamentos nas estradas. __________ 1Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, que produziu vários textos com base na Teoria dos Sistemas de Talcott Parsons. Cito especificamente "Legitimação pelo procedimento", Brasília: UNB, 1980, especialmente ps. 71 e segs. 2A escolha gera um alívio para o indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui. 3Para mais dados, consulte-se o livro citado de Niklas Luhmann.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A ganância empresarial e o direito do consumidor

O Código de Defesa do Consumidor faz 22 anos no próximo dia 11 de setembro (lei 8.078/90). Não preciso chover no molhado para dizer o quão importante essa lei foi e é para todos os consumidores brasileiros e também para os estrangeiros que estejam no território nacional. Aliás, não só para os consumidores como para os próprios fornecedores que souberam e souberem bem aproveitar as normas firmadas. Aproveito, então, essa comemoração de aniversário para abordar um aspecto preocupante que aflorou no mercado de consumo abertamente nos últimos anos, para que possamos fazer uma reflexão sobre a questão do consumidor nos tempos atuais. Falarei da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente2". Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Apenas para ficar com dois exemplos: Recentemente, no mês de março p.p., alguns donos de postos de combustíveis em São Paulo, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros, aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas; em janeiro de 2011, alguns comerciantes da região serrana do Estado do Rio de Janeiro aumentaram abusivamente os preços dos gêneros de primeira necessidade, logo após os deslizamentos de terra nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e outras e que deixaram centenas de mortos e milhares de desabrigados. São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Mas, o que chama a atenção no episódio do furacão na Flórida não é tanto a ganância, mas a incrível e aberta defesa feita por muitos economistas do ato ganancioso como elemento intrínseco do sistema e - pasme-se - positivo! Dentre os vários "teóricos de mercado" que fizeram esse tipo de defesa naquela oportunidade, refiro, por todos, o economista Thomas Sowell para quem o termo "extorsão", utilizado pelas vítimas dos comerciantes, não passava de uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque lhes parece vaga demais"4. Veja o que escreveu Sandel sobre a fala dele: "Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança dez dólares quando a Flórida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem"5. Trata-se de um sofisma ridículo e pueril, pois obviamente os fabricantes de gelo somente se motivariam se o preço se mantivesse nas alturas de forma constante. No caso, o preço foi elevado excessivamente, fixado para um curto período de tempo e imposto contra consumidores desesperados. Esse tipo de argumento poderia passar despercebido, não fosse algo consistentemente defendido por diversos e diferentes setores empresariais e seus inúmeros asseclas "teóricos". Parece mesmo que uma característica desses últimos vinte, trinta anos na sociedade capitalista é a falta de vergonha na cara, do surgimento da possibilidade do "cara de pau" falar qualquer coisa. Defender a ganância é apenas um dos exemplos desse descaramento que pensa e propõe o mercado funcionando como um Deus capaz de tudo resolver. Aliás, e a propósito, é isso mesmo: na concepção cristã, como disse acima, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual, faz sentido, na medida em que, como disse, o mercado funciona como um Deus. E é nesse aspecto, inclusive, que tem se usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado". Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e também demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade. Eis, pois, uma mostra de um dos aspectos mais perniciosos da sociedade capitalista contemporânea mas, que, de todo modo, acaba ajudando a realçar a importância de nossa lei protecionista do consumidor, editada há 22 anos. __________ 1Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 4Ibidem, p.12. 5Ibidem, p. 12.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A felicidade é um produto de consumo?

O mercado oferece abertamente a felicidade. Nos anúncios publicitários, por exemplo: "Pão de açúcar, lugar de gente feliz". Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu! Sky". "Paixão Sem Freio, Tanque Cheio", da Baterias Moura, etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Se nós fossemos capazes de conseguir olhar por trás dos bens adquiridos, além dos serviços, embaixo das embalagens, dentro da química dos alimentos e dos cosméticos, se pudéssemos ver realmente como as coisas são, numa espécie de raio-x mágico que enxergasse o espírito dos produtos e dos serviços, certamente encontraríamos um anjo (!) sorridente que nos entregaria a chave da porta de entrada da cidade feliz; um lugar onde poderíamos, afinal, respirar sossegados e em paz, essa que talvez seja a irmã da felicidade. Mas, será que esse anjo existe? Ou se trata de mais uma ilusão oferecida pelo mercado? O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos, etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Como já demonstrei em vários artigos meus aqui publicados, o modelo de produção acabou se imiscuindo em praticamente todas as esferas sociais, afetando relações pessoais, de emprego e sociais das mais gerais, o sistema educacional, os esportes etc. e também a própria relação do indivíduo com ele mesmo. A propósito, acaba de sair em português o livro do professor Michael J. Sandel, intitulado "O que o dinheiro não compra" (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), que apresenta dezenas de exemplos de casos de invasão do mercado em esferas antes jamais imaginadas. Para ficarmos com apenas alguns exemplos relatados no livro: Upgrade na cela carcerária: US$ 82,00. Em Santa Ana, Califórnia, e tantas outras cidades, os infratores não violentos podem pagar por acomodações melhores - uma cela limpa e tranquila na prisão, longe das celas dos prisioneiros não pagantes; Acesso às pistas de transporte solidário: a partir de US$ 8,00 nas horas de rush. Para tentar diminuir o congestionamento do trânsito, Minneapolis e outras cidades estão permitindo que motoristas desacompanhados usem as pistas reservadas ao transporte solidário a taxas que variam de acordo com a intensidade do tráfego; Barriga de aluguel indiana: US$ 6.250,00. Os casais ocidentais em busca de uma mãe de aluguel recorrem cada vez mais à terceirização da Índia, onde a pratica é legal e o preço corresponde a menos de um terço das taxas em vigor nos Estados Unidos; Direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção: US$ 150.000,00. A África do Sul passou a autorizar fazendeiros a vender a caçadores o direito de matar uma quantidade limitada de rinocerontes para incentivá-los a criar e proteger a espécie ameaçada de extinção; O direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera: (? 13,00). A União Europeia mantém um mercado de emissões de gás carbônico que permite às empresas comprar e vender o direito de poluir. Tenho também aqui tratado, mais de uma vez, do processo de controle que joga os consumidores numa alienação que os impede de perceber os reais interesses em jogo. Por isso que, muitas vezes, encontram-se consumidores com problemas financeiros adquiridos em função de gastos com compras supérfluas e sem nenhum interesse ou função pessoal. Não prosseguirei por essa via porque minha intenção aqui nesse artigo é desvendar ou, ao menos, levantar uma discussão sobre se por trás desse modelo de produção, com essa enorme profusão de produtos e serviços, o que se esconde é uma promessa de encontro da felicidade. Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? É possível ilustrar esse processo de oferta e também controle com vários exemplos, mas ficarei apenas com um que sempre me chamou atenção e que é muito peculiar. Aqui na cidade de São Paulo é comum encontrarmos pendurados nos postes anúncios de videntes, médiuns, leitores de búzios, etc. que prometem resolver, dentre outros, os problemas amorosos dos consulentes. Intrigado com esses anúncios resolvi fazer uma pesquisa e, para minha surpresa, descobri que não só os jornais de grande circulação como revistas semanais trazem páginas com muitas ofertas desse tipo. Algumas são incríveis, mas talvez reflitam o desespero do consumidor: "Amor perdido. Trago de volta quem você ama, melhor que era antes". Existem dezenas de exemplos oferecendo o encontro do amor, a salvação do casamento, etc. Se essas ofertas existem em grande profusão é sinal de que há um público consumidor interessado nelas. E isso demonstra que, realmente, o mercado conhece profundamente o consumidor em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, etc. Mostra, também, que por trás das ofertas - não só nestas como em muitas outras - existe uma promessa de encontro da felicidade. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens, consultas em videntes, etc., mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-la. Como diria meu amigo Outrem Ego, "essa frustração gerada pelo mercado de consumo, paradoxalmente, alimenta o próprio mercado de consumo, fazendo crescer a indústria química de medicamentos contra ansiedade, 'stress', angústia e enchendo os consultórios dos médicos, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, etc".
Recentemente, a Secretaria Nacional do Consumidor - Senacon, órgão do Ministério da Justiça, notificou 10 instituições financeiras para questionar a cobrança de tarifas para abertura de crédito na venda e compra de veículos automotores. Essa prática, que não é nova e é ilegal, envolve não só a cobrança desse tipo de "tarifa", intitulada pelos fornecedores de TAC, como tantas outras "inventadas" apenas para subtrair dinheiro do consumidor e ainda outras que simplesmente transferem para o consumidor o custo da atividade fim que está sendo vendida. Como demonstrarei na sequência, o Poder Judiciário tem coibido esse tipo de abuso. Mas, vejamos inicialmente porque os fornecedores conseguem executar facilmente essa malandragem grosseira e abusiva. Para tanto, aponto um fato conhecido, o de que uma característica básica da sociedade capitalista, a partir especialmente do início do século XX, é ter uma produção planejada e executada de forma estandartizada e em série: o resultado desse modelo é a oferta de produtos e serviços "de massa", típicos de consumo. No que diz respeito ao Direito, lembro que este acompanhou tal movimento industrial e criou modelo próprio de contratação, adequado ao processo homogeneizado que surgia. Passou-se a criar fórmulas padronizadas, autênticas cláusulas contratuais em série, verdadeiros contratos de consumo. Dentre as características desses contratos, a mais marcante é sua estipulação unilateral pelos fornecedores, que, adotando modelo prévio, estudado e decidido por conta própria, os impõem a todos os consumidores que quiserem - ou precisarem - adquirir seus produtos e serviços. O produto e/ou serviço são oferecidos acompanhados do contrato. Com isso, o consumidor, para estabelecer a relação jurídica com o fornecedor, tem que assiná-lo, aderindo a seu conteúdo. Daí se falar em "contrato de adesão". Agora, anoto, para frisar, que o uso do termo "adesão" não significa "manifestação de vontade" ou "decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas contratuais". No contrato de adesão, não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt servanda. É uma contradição apontar-se o conhecido aforismo em matéria de contrato de adesão. Não há acerto prévio entre as partes, discussão de cláusulas e redação de comum acordo. O que se dá é o fenômeno puro e simples da adesão ao contrato pensado e decidido unilateralmente pelo fornecedor, o que implica maneira própria de interpretar e que foi totalmente encampado pela lei consumerista. Foi isso o que reconheceu o legislador na redação do caput do art. 54 do Código de Defesa do Consumidor, ao dizer que o "contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". Aliás, a lei 8078/90 CDC é a primeira lei brasileira a definir contrato de adesão. Esse nome dado ao contrato que envolve relação jurídica de consumo, "de adesão", é simplesmente a constatação de que na sociedade capitalista em que vivemos o fornecedor decide, sem a participação do consumidor, tudo o que pretende fazer: escolhe ou cria os produtos que quer fabricar ou o serviço que pretende oferecer, faz sua distribuição e comercialização, opera seu setor de marketing e publicidade para apresentar e oferecer o produto ou o serviço e elabora o contrato que será firmado pelo consumidor que vier a adquirir o produto ou o serviço. Tudo unilateralmente, isto é, tudo sem que o consumidor participe ou palpite. É risco e responsabilidade do fornecedor. Ao consumidor, cabe apenas adquirir o produto ou o serviço e "aderir" ao contrato. Na verdade, para comprar qualquer produto ou serviço, o consumidor é obrigado a aderir à oferta, pagando o preço anunciado e nas condições de pagamento exigidas. O contrato de adesão é um dos componentes da oferta e que existe na forma escrita quando desse modo exige a natureza da operação. Assim, por exemplo, se se trata de um plano de saúde, deve haver contrato escrito. O mesmo ocorre quando se faz um empréstimo no banco ou se financia a casa própria, ou, ainda, quando se contrata um seguro ou a assinatura da TV a cabo etc. Em todos os casos, o consumidor não discute as cláusulas contratuais nem pode exigir alterações substanciais no termo escrito. Ele apenas "adere" ao que já estava previamente preparado e ponto final. Aliás, não é um consumidor que adere; são todos. O contrato de adesão é elaborado pelo fornecedor para ter validade de igual forma para todos os seus clientes. Do mesmo modo que uma montadora de veículos reproduz um automóvel na série centenas, milhares de vezes ou que um produtor fabrica milhares de canetas iguais a partir de um modelo específico, um único contrato de adesão é elaborado pelo departamento jurídico do fornecedor e reproduzido centenas, milhares de vezes. Cada consumidor que adquire o produto ou o serviço adere ao modelo impresso, que é idêntico aos demais. Logo, fica claro que não é difícil para o fornecedor-redator do contrato de adesão nele incluir cláusulas abusivas de forma camuflada ou ostensivas. É isso que explica a facilidade com que agentes financeiros acabam impondo tarifas sem base legal ou que não representam um serviço prestado: Para obter o financiamento, o consumidor acaba aderindo ao contrato e sofrendo a abusiva cobrança. Mas, como as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito, conforme estipulado no art. 51 do CDC, o consumidor, após firmado o contrato, pode pleitear extra ou judicialmente a devolução dos valores indevidamente cobrados. E o Poder Judiciário tem dado ganho de causa aos consumidores. Na sequência, transcrevo trechos dessas decisões. "Ação declaratória c. c. repetição de indébito Contrato de financiamento - Taxa de Abertura de Crédito (TAC) e remuneração de serviços de terceiros - Ilegalidade da cobrança - Juros moratórios até o limite de 1% ao mês súmula 379 do STJ Devida a restituição dos valores cobrados indevidamente - Sentença mantida Recurso Desprovido". (Apelação 0210323-28.2010.8.26.0100 Rel. Des. IRINEU FAVA - 13ª Câmara de Direito - j. 13/7/2011 - v.u.). "CONTRATO. FINANCIAMENTO. TARIFAS. ABUSIVIDADE. 1. Embora contratualmente previstas, é abusiva a cobrança de tarifa de inclusão de gravame eletrônico, ressarcimento e despesa de promotora de venda, serviço de terceiro, de avaliação de bem, porquanto não poderia o fornecedor cobrar do consumidor despesas de sua responsabilidade. 2. É abusiva a cobrança de taxas que não representam prestação de serviço ao cliente, servindo apenas como estratagema para redução de riscos da atividade do fornecedor. 3'..' . 4. Recurso parcialmente provido". (Ap. 0007259-75.2011.8.26.0482 - Rel. Des. MELO COLOMBI - J. 18/1/2012 - v.u.). "É abusivo o repasse ao consumidor de tarifas provenientes de operações que são de interesse e responsabilidade exclusivos do fornecedor dos serviços, inerentes à sua atividade voltada ao lucro, como é o caso da tarifa de abertura de crédito, da de emissão de carne, da de serviços de terceiro e de promotoria de venda e da de ressarcimento de gravame eletrônico". (Ap. 0011847-83.2011.8.26.0011, 21ª Câmara, Rel. Des. ITAMAR GAINO, j. 29/2/2012, v.u). "Além disso, são mesmo indevidas as cobranças a título de "tarifa de cadastro", "tarifa de abertura de crédito", "tarifa de emissão de carnê", "tarifa de serviço de terceiros", "registro de contrato", "avaliação do bem" etc., na medida em que é patente a abusividade da cláusula que permite a transferência para o consumidor dos custos". (Apel. 0039654-08.2011.8.26.0002, Rel. Des. Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, j. 15/8/12, v.u.). "CONTRATO BANCÁRIO. TARIFA DE EMISSÃO DE BOLETO. (...). 1 - Cobrança de taxa de emissão de boleto de cobrança que se o configura como conduta abusiva. Precedente do STJ: "Sendo os serviços prestados pelo Banco remunerados pela tarifa interbancária, conforme referido pelo Tribunal de origem, a cobrança de tarifa dos consumidores pelo pagamento mediante boleto/ficha de compensação constitui enriquecimento sem causa por parte das instituições financeiras, pois há dupla remuneração pelo mesmo serviço, importando em vantagem exagerada dos Bancos em detrimento dos consumidores, razão pela qual abusiva a cobrança da tarifa, nos termos do art. 39, V, do CDC ce art. 5 1 , § I, I e III, do CDC. Precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo". (Apelação 990.10.278772-9 - 18ª Câmara de Direito Priva - Rel. Des. Alexandre Lazzarini - j. 24/8/10 - v.u.). "Ademais, é patente que é abusiva a cláusula que permite a cobrança de tarifas sem a correspondente contraprestação do serviço, sendo, pois, nulas suas disposições. Em se tratando de tarifa para emissão de boleto, ela é não só ilegal como esdrúxula, porque transfere para o consumidor o custo da atividade, além de não corresponder a qualquer serviço prestado. O mesmo se diga em relação à "tarifa de abertura de crédito", mera nomenclatura que não traduz serviço prestado, já que o crédito é, em si, o negócio firmado no contrato" (Ap. 0010615-25.2011.8.26.0047, Rel. Des. Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, TJSP, j. 25/4/2012, v.u.).
Einstein disse: "Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta". Dentre as várias funções das normas jurídicas (determinar ações, gerir comportamentos, educar, exemplificar, permitir, proibir, etc.), uma delas e que não é muito tratada pelos estudiosos é essa de limitar a estupidez humana. Parece mesmo que o ser humano, largado a si mesmo, sem freios e direções, é capaz de atos horrorosos. Dentre estes, cuidarei de um que pode causar danos ao estimular outros atos mais terríveis. Volto a falar de publicidade, desta feita especificamente da abusiva. Por sorte, a lei já regula o assunto há mais de vinte e um anos. Nas últimas semanas, o noticiário mostrou a indignação de centenas de consumidores que protestaram nas redes sociais contra dois anúncios que estimulavam a violência sexual contra as mulheres: um dos preservativos Prudence e outro da cerveja Nova Schin. Examinando os dois anúncios, vi estarrecido que tudo indica que seus criadores perderam mesmo a noção dos limites, aliás, bem definidos no Código de Defesa do Consumidor. Lembro, a seguir, o teor do texto legal, embora pense que, no caso, não haveria necessidade alguma de que a lei dissesse algo. Bastava que os anunciantes e os criadores do anúncio tivessem um pouco mais de bom senso e respeito para com as mulheres. Mas, como não tiveram, é bom que saibam o que a lei estipula a respeito. Eis os termos legais: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança"." "Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa". A publicidade do preservativo foi colocada na página da Prudence no Facebook no dia 16 de julho p.p. e depois das reclamações foi suprimida em 30 de julho. O anúncio trazia um foto de um rosto de mulher e sobre ele, em letras graúdas estava escrito: "Dieta do Sexo". Ao lado era apresentada uma tabela que mostrava quantas calorias seria possível perder praticando diferentes formas de atos sexuais. Entre estes, aparecia no topo da foto: "Sexo com o consentimento - 10 calorias; Sem o consentimento dela - 190 calorias". Na sequência, outra forma: "Com as duas mãos - 8 calorias; com uma mão - 32 calorias; com uma mão, apanhando dela - 208 calorias". Apesar do absurdo do anúncio, evidentemente sexista e que dava a entender que o homem pode sim praticar sexo contra a vontade da mulher que está em seus braços (o que caracteriza estupro), após o protesto nas redes sociais a empresa ainda tentou justificá-lo, como mostra o site SOF-Sempreviva Organização Feminista (clique aqui): "Em um primeiro momento, a Preservativos Prudence buscou, no espaço de comentários da imagem no Facebook, justificar a situação. Disse ser contrária à violência, alegando que a propaganda não faz apologia a estupro, mas sim à 'conquista'. Ou seja, de acordo com a empresa, fazer sexo sem o consentimento da mulher é conquistá-la . Na tentativa de consertar a situação, só conseguiu piorá-la. Ao invés de reconhecer que a propaganda faz apologia a um crime, colocou esse tipo de agressão como algo normal, banal, uma mera 'conquista'. Há de se lembrar que a minimização do estupro é uma das causas pelas quais as vítimas não têm apoio, e muitas vezes nem conseguem efetivar uma denúncia. Quando tomam a iniciativa de denunciar o agressor, é comum ainda serem responsabilizadas pela própria agressão devido a seu ' comportamento permissivo". Não só praticaram o abuso, como violaram a lei e ainda tentaram justificar, antes de retirar de circulação a peça ilegal. E não é que, logo depois, a fabricante da cerveja Nova Schin cololocou no ar uma publicidade que fazia a mesma coisa! No anúncio veiculado nas tevês, está um grupo de homens jovens reunidos num quiosque numa praia, olhando para as mulheres na areia. De repente, um deles diz: "Já pensou se a gente fosse invisível?". Na sequência, duas mulheres que caminham pela praia sentem que são tocadas pelas costas por pessoas invisíveis. Depois, as cenas mostram algumas mulheres saindo de um vestiário, invadido pelos invisíveis, sem a parte de cima do biquíni. Nas duas cenas, as mulheres se assustam e fogem. Esses são apenas mais dois exemplos dos abusos impunemente praticados via publicidade comercial, nesses casos contra a dignidade das mulheres. Nos anúncios de cerveja, aliás, a falta de criatividade que impera no setor é tamanha que há muitos anos que a mesma ladainha machista de mulheres e cervejas vem sendo repetida; a novidade é agora ser insinuado que o "sexo cervejeiro" pode ser feito contra a vontade da mulher. Mais um caso de incentivo ao estupro. Já disse aqui que um dos grandes problemas do consumidor na sociedade capitalista é o de sua dificuldade em se defender publicamente contra tudo o que lhe fazem de mal. Se ele é enganado, sofre um dano etc tem de recorrer aos órgãos de proteção ao consumidor ou contratar um advogado. Mas, há esperança. Ela esta nas redes sociais da internet e no surgimento de sites de reclamações. Aos poucos, os consumidores vão encontrando um caminho para expressar sua insatisfação com os produtos e serviços adquiridos e também contra toda forma de malandragem perpetrada por muitos fornecedores, além, claro, de protestar contra a publicidade enganosa e abusiva. No caso desses incríveis dois anúncios, o repúdio via redes sociais foi muito grande, o que é alvissareiro. Em matéria de publicidade machista, penso que o boicote dos consumidores seria o melhor remédio para coibi-los. Boicote não só das mulheres, mas também dos homens de bem que não podem se calar diante dos delitos. Os maus empresários só conhecem um modo de fracasso: a perda em suas vendas. Daí, unindo-me a todos aqueles que se expressaram contra esses anúncios, termino transcrevendo trecho do ótimo e indignado texto publicado no Blogueiras Feministas (clique aqui): "Isso é engraçado, Nova Schin? Mulheres amedrontadas porque têm suas roupas arrancadas e seus corpos tocados sem permissão é motivo de riso? Que tal falar que 'é só uma piada' para as milhares de mulheres que são diariamente vítimas de abuso sexual em nosso país? Que tal dizer que isso tudo não passa de 'ficção' para as milhares de mulheres que são abusadas por homens em metrôs, ônibus e trens? Por que você não encara as meninas que são vendidas pelo tráfico sexual, as prostitutas espancadas, as esposas estupradas por maridos, as estudantes violentadas no próprio ambiente universitário? Por que você não exibe esse vídeo para as mulheres que sofrem todos os dias devido a essa mentalidade perpetuada por vocês? Essa mentalidade de que os homens têm o direito inquestionável de extrair diversão daquilo que para nós mulheres é um terror diário".
Eu aproveito a Olimpíada de Londres para apresentar algumas reflexões de ordem jurídica sobre o evento e, ligado a elas, a da possibilidade de se indenizar atletas, técnicos e demais membros de comissões técnicas que sofreram algum tipo de dano em função da competição. Os jogos olímpicos são, sem dúvida alguma, a maior festa do esporte mundial. De longa tradição e impondo respeito, eles são realmente o melhor momento de confraternização entre os povos e também de bela competição dos atletas de cada país. Seria muito bom se, um dia, no futuro, se pudesse decidir disputas políticas pela via do esporte e não das armas... No entanto, não é de agora - só que atualmente é evidente -, as Olimpíadas são um grande negócio e altamente lucrativo para muitos que nelas se envolvem. São literalmente bilhões de dólares envolvidos e bilhões de pessoas sintonizadas, além de milhares de profissionais das mais diversas áreas trabalhando direta e indiretamente no evento, afora os voluntários. Que não nos enganemos. Uma Olimpíada é um produto, um grande e belo produto, trabalhado, explorado, vendido e anunciado como tal. É verdade que se trata de um produto especial talhado por milhares de pessoas ao redor do planeta, mas o Comitê Olímpico Internacional - COI vende esse produto do mesmo modo que as grandes corporações vendem os seus: com preços e lances, cotas de patrocínio, direitos de imagem, sessão de direitos patrimoniais e morais etc. Tudo num grande esquema bem desenvolvido pelos competentes profissionais de marketing e vendas. Aliás, com a competência dos grandes empreendedores. Ora, com tanto dinheiro e interesses em jogo, seríamos muito inocentes se acreditássemos numa total transparência dos atos e pureza daqueles que se envolvem nos acontecimentos de todos os jogos. Há, é verdade, algumas competições em que é bastante difícil fazer-se algum tipo de manipulação ou praticar-se fraude, mas em outras é possível. Não estou, evidentemente, dizendo que nesta Olimpíada de Londres houve; estou apenas chamando atenção para o modelo estabelecido: trata-se do mais moderno capitalismo. Logo, a chance de manipulação e fraude existe porque essa é uma característica bastante conhecida do modelo. Reclamações existem: a equipe do Japão de ginástica artística, após o anúncio do resultado que a deixou de fora do pódio, recorreu de uma das notas no cavalo com alças. Teve sua reivindicação atendida e acabou ficando com a medalha de prata, eliminando os ucranianos. No judô, num combate entre um japonês e um sul-coreano que havia terminado empatado, a decisão foi para a bandeirada. Primeiramente, o trio de juízes deu a vitória ao sul-coreano. Mas, depois, a comissão de especialistas não concordou e fez com que o resultado fosse invertido. E foi exatamente no judô que a brasileira Rafaela Silva foi eliminada por uma decisão polêmica dos juízes, em função da aplicação por ela de um golpe proibido. Foram várias as reclamações contra arbitragens. Pergunto: Há algum tipo de manipulação? Não se sabe, mas sempre que houvesse alguma dúvida, dever-se-ia apurar. Além do mais, como produto que é, está sujeito a vícios e defeitos. Mesmo não havendo manipulação intencional, há o erro, o simples e ancestralmente conhecido erro humano, que também pode causar dano. Pense nisso: numa competição como a Olimpíada, milhares de atletas passam pelo menos vários anos de suas vidas dedicados exclusivamente a chegar lá. Esses atletas muitas vezes sacrificam-se, deixando de lado a família, os amigos e muitos deles não contam com apoio financeiro ou logístico de ninguém. Arriscam-se sozinhos, sabendo que as dificuldades para o sucesso serão enormes. Isso, se tudo for feito honestamente e dentro do previsto. Não se faz teste de antidoping para eliminar os atletas que violam os princípios dos jogos? Deve-se tomar a mesma atitude de apurar e punir aqueles que praticam outros atos ilícitos. Além disso, é preciso garantir o direito do atleta que se sinta injustiçado de pedir revisão do resultado. E, uma vez apurada a incorreção, anular-se a disputa. Mas, penso mais que isso. Uma Olimpíada não existe sem os atletas, treinadores e comissão técnica que são a base dos jogos e do monumental interesse comercial envolvido. Então, parece razoável que se deva indenizar os atletas que foram injustiçados e/ou prejudicados pela arbitragem ou pela organização. A indenização em dinheiro é uma boa maneira de ressarcir em parte o transtorno e a dor sofrida pelo atleta nessas condições. Não se deve simplesmente aceitar que os organizadores de um evento desse porte, faturando o que faturam e que possam causar danos aos atletas e seus treinadores, comissão técnica etc. saiam ilesos; não sejam responsabilizados. Uma das garantias mais importantes do capitalismo contemporâneo é exatamente a da indenização paga em dinheiro pelos danos causados - materiais e morais. Lembro do evento bastante significativo ocorrido na Olimpíada de Pequim há quatro anos e que vitimou nossa atleta do salto com vara, Fabiana Murer (que, infelizmente, também neste ano não conseguiu atingir seu intento). Ela foi prejudicada pela incompetência da organização dos jogos, cuja desídia impediu que ela fizesse seu salto com o aparelho adequado. Um prejuízo irreparável, depois de tantos anos de preparação. Dano moral puro. A única forma de reparação teria sido o pagamento de uma indenização em dinheiro e em valor tal que fosse capaz de funcionar de forma exemplar e pedagógica para poder impedir que acontecesse novamente. O mesmo deveria se dar no caso de se apurar e descobrir manipulação de resultados. O atleta haveria de ser indenizado.
quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os presentes de grego na sociedade capitalista

É de conhecimento geral a expressão "presente de grego", que é aquele que gera prejuízo ou aborrecimento a quem o recebe. Ela ilustra a história do enorme cavalo de madeira que os troianos receberam como presente dos gregos e que estava repleto de soldados prontos para a luta, o que acabou pondo fim à Guerra de Tróia. Passaram milhares de anos, mas na sociedade capitalista os fornecedores continuam dando esse tipo de presente a seus clientes. Ilustro com dois casos recentes. Um que foi apresentado como dádiva (a queda dos juros) e outro que é oferecido como presente mesmo. O primeiro, uma tragédia, o segundo, uma comédia. Veja. Não muito tempo atrás, uma grande empresa do varejo fazia uma propaganda enganosa nas TVs, que era espetacular (não direi o nome da empresa para não fazer propaganda, mas certamente o leitor se lembrará). O anúncio apresentava-se da seguinte forma: aparecia um número na tela, por exemplo 8%, e em seguida um raio destruía aquele número e aparecia um número menor, 7%. Em off, o locutor dizia: "A C B. baixou novamente os juros e aumentou o prazo. Aproveite!!!". Era uma propaganda enganosa, mas imperceptível para o consumidor que não está habituado aos cálculos e sistemas de cobrança de juros. O que fazia a empresa? Ela baixava os juros para 7%, mas aumentava o prazo do financiamento de 12 para 18 meses, ou seja, ela aumentava a cobrança dos juros em função do aumento do prazo. Mas parecia ao consumidor que os juros eram menores. E não é que essa prática acabou sendo adotada recentemente pelos bancos, inclusive os oficiais, com ampla publicidade e, aliás, também forte divulgação pelos meios de comunicação. Um presentão para o consumidor. Veja-se apenas o exemplo da Caixa Econômica Federal. Ela anunciou aos quatro cantos que os juros para o financiamento de imóveis no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) haviam caído de 9% para 8,85% ao ano e, para os imóveis fora do SFH, de 10% para 9,9% ao ano. (Anoto que, não era preciso fazer tanto alarde para uma redução percentual tão pequena). Em contrapartida, o prazo de financiamento cresceu de 30 para 35 anos.Sem querer entrar por demais nos detalhes, eis que é escancarada a manobra, aponto apenas os cálculos feitos e publicados no jornal "Agora" de 12 de junho p.p. (pág. A11): Para um imóvel no valor de R$ 300.000,00, com entrada de R$ 43.975,59 e financiamento de R$ 256.024,41, o valor das prestações mensais para o prazo de 20 anos é de R$ 2.994,63; para um financiamento de 30 anos, R$ 2.639,12 e para um financiamento de 35 anos, R$ 2.537,55. A prática comercial é a mesma que já antes apontei aqui, ligada não a benefícios da operação de financiamento, mas ao valor mensal da prestação, que uma vez reduzido, faz o consumidor optar pelo prazo mais longo. Acontece que os valores totais pagos no decorrer dos anos mostram que o prejuízo do mutuário é enorme. No 1º caso (20 anos), o valor total pago é de R$ 550.103,88. No 2º caso (30 anos), o valor total é R$ 691.102,49 e no 3º caso (35 anos), o valor total é de R$ 772.723,53. Ou seja, a diferença paga a mais pelo consumidor que optar pelo financiamento mais longo - ainda que os juros tenham abaixado um pouquinho - em relação ao de menor prazo é de R$ 222.619,65. A questão que estou abordando não é a de maior ou menor taxa de juros, nem de maior ou menor gasto em longos períodos de tempo, mas sim a de que a maneira como a oferta é apresentada pela publicidade, como se fosse uma grande vantagem, mas não é. Presente de grego, pois. A outra questão que quero abordar diz respeito a um tipo de marketing que, quando examinamos de perto, parece que já atingiu as raias do absurdo, mais parecendo que o fornecedor está rindo da cara do seu cliente. Vou deixar meu amigo Outrem Ego narrar o que aconteceu com ele no dia do seu aniversário. Leia: "No meu aniversário recebi uma mensagem do meu cartão de fidelidade. Estava escrito: 'Olá, algumas datas merecem ser celebradas, clique e assista'. Eu cliquei e assisti. Era um vídeo simpático apresentando o museu da companhia aérea que no final trazia uma série de imagens de seus funcionários me desejando feliz aniversário. Até aí tudo bem, achei muito simpático. No entanto, não gostei do presente. Parecia mais uma gozação. No final do vídeo aparecia: 'No mês de seu aniversário você e seu acompanhante têm direito a 50% de desconto nos ingressos'. Tratava-se dos ingressos para poder entrar no citado museu da companhia aérea. Havia alguns problemas adicionais; por exemplo, eu moro em São Paulo e o museu fica no interior do Estado, distante 250 km. Aí eu fui averiguar o valor do presente (50% de desconto). E você sabe quanto custa o ingresso para entrar no museu? R$ 25,00. Eu estava ganhando um presente de R$ 12,50 que, para usufruir, me obrigava a me locomover 250 quilômetros da minha cidade até lá. Será que eles não podiam me dar pelo menos o valor do ingresso inteiro? Sabe, se eu aceitasse o verdadeiro presente de grego, eu ainda teria que pagar R$ 12,50 mais despesas com gasolina, pedágio, etc. Eu achei que fosse trote ou vírus que havia entrado em meu e-mail, mas não! Era mesmo pra valer: Eles estavam tirando sarro da minha cara mesmo". Bem, por hoje é isso. Parece mesmo que os marqueteiros de plantão estão completamente descontrolados, de um lado, podendo falar e endossar qualquer tipo de informação (enganosa ou não) e, de outro, nem mais se preocupando com aquilo que os consumidores possam vir a pensar ou sentir em relação às suas mensagens. Já passou da hora de se respeitar os consumidores, não só porque assim o exige a lei, mas também pelas boas regras de educação. E chega de presente de grego.