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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quarta-feira, 15 de março de 2023

O Dia Mundial do Consumidor

Hoje, dia 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia, há mais de 60 anos (em 1962), que o então presidente norte-americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, tais como o direito à segurança, à informação e à escolha e o direito de ser ouvido. E no fim de semana passado (11 de março) o nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC) fez 32 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Aproveito, pois, essas datas para lembrar algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, conhecidos importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas. Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas,  em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.; as compras via web/internet; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Tudo  regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo  que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a Constituição Federal de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Realço algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege a parte vulnerável que é a pessoa consumidora, aliás, como é em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. E, como também já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência e forte proteção, ainda há abusos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
Empresas mentem para seus clientes? O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e, também, com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento da clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa" para lembrar que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais. De fato, a mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços que impõe que um trabalhador ou colaborador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo simplesmente porque agiram corretamente na relação com seus consumidores. __________ 1 "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:         Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.         § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.         § 2º Se o crime é culposo;         Pena Detenção de um a seis meses ou multa".
Após os terríveis desastres naturais causados pelas chuvas no litoral norte do Estado de São Paulo, surgiram denúncias de que alguns produtos essenciais haviam sofrido aumento abusivo de preços. Infelizmente, esse tipo de conduta é recorrente em casos de catástrofes não só no Brasil como em outros lugares do mundo. São exemplos da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população  da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Como eu disse acima, esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil algumas vezes. São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos fornecedores. Ademais, colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Lembro que, na concepção cristã, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo que vivemos, tudo parece possível.  E o Código de Defesa do Consumidor proíbe expressamente esse tipo de conduta. Com efeito, dispõe o artigo 39, V e X do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)    V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (...)                     X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;" O que se espera é que os órgãos de defesa do consumidor investiguem esses casos e punam os infratores. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade).
Infelizmente, todo início de ano é a mesma coisa: as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras. E parte disso é previsível. Volto, pois, ao tema da responsabilidade do Estado no caso das catástrofes climáticas. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários pontos do país são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica,  repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos.  A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer,  passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio.  De nada adianta ficar acusando as vítimas depois das ocorrências, como se vê em alguns casos, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada  e, também, nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Lembro, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme  § 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra  considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.  Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro.  Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e, também, pela vítima.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como se sabe, regula uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores. E, além disso, tem uma preocupação especial com a proteção coletiva dos direitos estabelecidos. Se observarmos o título III da lei 8078/90, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos como isso é significativo. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de se esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações privadas e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. Naturalmente, existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental por parte de algumas empresas de grande porte, por causa do impacto que decisões nesse tipo de ação judicial pode causar. E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que os consumeristas chamam de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, que eu transcrevo a seguir. Trata-se de uma antiga mala-direta enviada por um grande Banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por Telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o Banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, quase não são notados. Esse tipo de manobra sempre existiu e ainda existe no mercado de consumo. A tática de abusar em pequenos volumes e valores para ganhar na quantidade está presente em ofertas e publicidade de vários tipos. É a Ação Coletiva que tem eficácia para impedir e/ou eliminar esse tipo de abuso.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O problema da doença das compras compulsivas

Volto ao tema do vício, que é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Há vícios de todo tipo e um específico ligado às compras, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.   Mas, veja leitor, que interessante: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz  com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma  consumidora  típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Vivemos numa  sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas e medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e  de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista criou muitas facilidades para o pagamento das aquisições. Durante muitos anos, o comprador pagava em papel moeda, depois simplesmente passava um cheque, que representava o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possuía concretamente, pois estava no banco. Quer dizer, estava num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária estava. O sistema financeiro foi ampliando esse modelo. Num certo momento, então, como disse, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado a ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. Na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Muitos consumidores  não se dão conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.                                   Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A educação escolar como produto de consumo

Um amigo meu, fez uma observação interessante. Disse que, quando estava cursando a graduação numa faculdade privada, viu, mais de uma vez, seus colegas se comportarem como consumidores estranhos: se o professor ou a professora faltava, eles comemoravam ao invés de reclamarem. Eles pagavam por um serviço que não estavam recebendo e ainda assim não se incomodavam. No artigo de hoje, cuido de alguns pontos da prestação privada do serviço escolar que envolve pais, mães, filhos e filhas.  Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar particular é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento  cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), o que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos, foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Muitas delas adotaram o regime integral, oferecendo refeições e vários cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Não responderei pensando na questão do marketing (muito bem desenhado por muitas delas). Respondo com o aspecto  lógico: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seus filhos na escola particular, esperam que eles aprendam o conteúdo indicado e necessário. Não é isso? Espera-se que sim. É a obrigação essencial da escola. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em algumas escolas quando os alunos são matriculados ou no início do ano letivo, a Secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que sua filha ou seu filho receba um reforço no aprendizado". Vejamos, agora, outro aspecto: o da lição de casa. Nas escolas que oferecem serviços de ensino de tempo integral, se a aluna ou o aluno permanece nas instalações da escola o dia inteiro, tem sentido que ela ou ele chegue em casa e ainda tenha que fazer lição? Ou passe os feriados e fins de semana fazendo lição? Será que a infância e adolescência não tem mais espaço para a convivência com os pais, amigos e demais familiares? Em atividades de lazer e mesmo culturais, mas fora do âmbito do conteúdo das disciplinas escolares?  Essa convivência tão importante na formação dos jovens foi abandonada?  Então, para que serve passar o dia na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras? Seria um caso de vício na prestação do serviço? Pensemos na relação jurídica da prestação dos serviços de ensino. O fornecedor, uma escola, ou seja,  uma empresa, se oferece para ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar.  Quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo à aluna ou ao aluno que tenha algum tipo de dificuldade própria de aprendizado. Faço uma abordagem relativamente ao grande número de alunos que não apresentam nenhum tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento.  Por fim, anoto que, algumas vezes, a situação beira ao absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando numa sala 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola, na hipótese,  não cumpriu a oferta; não cumpriu com seu dever de ensinar.  
Em período de férias e com a volta das viagens nacionais e internacionais; com o fim das fortes restrições da locomoção por causa da pandemia da Covid, é sempre bom lembrarmos de alguns direitos dos passageiros dos aviões. Assim, hoje, cuido dos atrasos e dos direitos envolvidos. O tema está regulado pela resolução nº 400 de 13-1-2016 da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil. Começo lembrando que esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor só resta torcer para que tudo dê certo.  Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que há, infelizmente, como já se constatou algumas vezes,  os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese,  um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. De todo modo, nesse assunto, lembro que, independentemente, do motivo, sempre que o atraso for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A citada Resolução garante assistência material ao passageiro e o faz do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta."  O que interessa aqui são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, o consumidor tem o direito de pleitear indenização por danos morais. Importante consignar que, em várias decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe pedir indenização.  Mas acima das 4 horas o pleito é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto,  do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança  da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade,  que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro,  um valor definido,  mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações dependem daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso e espera após as 4 horas e, também,  as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte etc.). Por fim, anoto que é relevante para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos  profissionais ou familiares.
Continuando a exposição da semana anterior, lembro que para a teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não importa a motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem a capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem ainda os interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.).  O que vale é a seleção objetivamente operada. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, pressão do pai, da mãe ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de Medicina, Engenharia, Administração de Empresas etc.  Os papéis sociais foram-se criando por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que para o indivíduo as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações1.  Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos.  Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para ter um  comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte. Isso traz vantagens e desvantagens.  A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade.  A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. Essa relação indivíduo-papel, do ponto de vista social, pode gerar conflitos. Não resta dúvida de que, apesar da fixidez do papel, o indivíduo real nele absorvido irradia, no comportamento resultante do exercício do papel, vários aspectos de sua personalidade, além de nele desempenhar suas aptidões pessoais, tais como habilidades manuais, inteligência, ponderação, discrição etc.  E a teoria dos papéis sociais pode, então, contribuir sobremaneira para a elucidação da questão do público e do privado no que diz respeito ao indivíduo.  Continuo no próximo artigo. __________ 1 É muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais preexistentes entre os demais papéis sociais.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

E um milagre, quanto custa?

Como já comentei aqui, nesta época do ano, eu adoro rever filmes que festejam o Natal e seus milagres. Tenho alguns preferidos como, por exemplo, "O Milagre da Rua 34" (em qualquer versão) e "A felicidade não se compra" (de Frank Capra). Gosto também dos diversos contos de Natal, que, como esses filmes, fazem bem  à mente e ao coração. E é esse o tema de minha última coluna do ano: um conto de Natal para celebrar o milagre. Trata-se de um trecho de meu Romance "A Visita", que intitulei "E um milagre quanto custa?" Desejo Feliz Natal aos leitores e leitoras!  Segue:  E um milagre, quanto custa? Essa é a história de Lucas, um menino de 7 anos. Ele era muito atento, curioso e um dos melhores alunos de sua sala do 2º ano do Ensino Fundamental de uma excelente escola pública numa cidade do interior paulista. Ele estava muito animado com o fim das aulas que se anunciava para os próximos dias, pois teria mais tempo para brincar com seu irmão menor, Pedro, de apenas três anos de idade. Sempre que havia chance, eles jogavam futebol na quadra do prédio onde moravam. Seu pai trabalhava como vendedor em uma concessionária de veículos e sua mãe voltara a trabalhar como costureira. Sua avó materna ajudava a cuidar da casa e a tomar conta dele e de seu irmão. Mas, naquele mês de dezembro, Lucas percebeu uma movimentação estranha e diferente em casa. Ao que lhe pareceu, seu pai havia perdido o emprego e estava nervoso em busca de outro. A mãe mostrava-se muito preocupada com o pagamento do aluguel do apartamento onde moravam. Para piorar o clima reinante, Pedrinho adoecera. Não podia mais jogar bola nem brincar mesmo dentro de casa. Sua avó vivia assustada para lá e para cá com seu irmãozinho. Os dois dormiam no mesmo quarto, mas, na última semana, a cama dele fora colocada no quarto dos pais. Ficou um pouco apertado, mas sua mãe havia dito que era importante por causa da doença. Numa noite, Lucas estava deitado e ouviu um barulho agitado na sala. Seus pais e sua avó conversavam e pareciam muito nervosos. Ele, então, resolveu sair na ponta dos pés para escutar a conversa no canto da parede do corredor. Os três estavam muito apreensivos. A voz de sua mãe denunciava uma enorme aflição. Ele não compreendeu muito bem as expressões que ouvia nem os sentimentos manifestados, mas viu que se tratava de algum problema muito grave. Esticou a cabeça e espiou. Quando viu que seu pai enxugava lágrimas nos olhos, voltou para seu quarto e chorou no travesseiro. No dia seguinte, à noite, Lucas parou atrás da porta do quarto dos pais para ouvir a conversa dos dois. Sua mãe estava chorando, sendo acudida pelo pai. Entre soluços, ela disse:  - Querido, você sabe, somente uma cirurgia pode salvar a vida do Pedrinho e nós não temos dinheiro para pagá-la. - É... Desesperador... - Numa época em que se pode comprar de tudo, em que se desperdiça tanto, nós não podemos pagar pela saúde de nosso filho. Pela vida de nosso filho! Somente um milagre pode salvá-lo! Lucas também ficou muito triste. Voltou para seu quarto e teve dificuldade para dormir. No dia seguinte, um domingo pela manhã, enquanto assistia à TV, viu um anúncio que dizia: "Produto milagroso. Não é remédio. É produto natural que opera milagres. Emagreça sem aborrecimento".        Ele sentiu algo que nunca havia sentido - diríamos que se tratava de um misto de ansiedade com esperança -, e uma ideia brotou em sua cabeça: "Vou comprar um milagre para salvar meu irmãozinho". Foi até seu quarto, esvaziou seu porquinho-cofre e contou as moedas. Tinha vinte e dois reais. Colocou tudo numa pequena bolsa e começou a planejar o que fazer. Na segunda-feira, no intervalo das aulas, ele pegou a bolsinha com as moedas e foi até a enfermaria. Lá chegando, viu que a enfermeira abraçava fortemente um homem. Lucas parou na porta e esperou. Ouviu o homem e a enfermeira conversarem animadamente. Percebeu que eles eram irmãos. De repente, ela notou a presença dele e disse: - Olá. Tudo bem? Você precisa de alguma coisa? - Sim... Quer dizer, meu irmão precisa... O Pedrinho está muito doente. - Ele estuda aqui na escola? - Não. Ele ainda não vai para a escola. Só tem três anos. - Então, acho que não posso fazer nada. Desculpe. - Mas a senhora sempre ajuda as crianças... E meu irmão precisa de um remédio que tem aqui... Uma vez eu fiquei com febre e... Eu me lembro, a senhora me deu umas gotas e disse: "Pode tomar. É amargo, mas faz milagres. Você logo ficará bom". Fez-se um silêncio e, se alguém olhasse o rosto da enfermeira, poderia claramente identificar o ponto de interrogação que ali pairava. O homem, então, interveio: - Diga uma coisa. O que o seu irmão tem? - Não sei direito... Mas ouvi minha mãe dizer pro meu pai que ele tem um caroço crescendo dentro da cabeça. Meu pai falou que não tem dinheiro para pagar a operação. Minha mãe disse que só um milagre pode salvar o Pedrinho. Eu quero comprar o milagre. Olha... Eu tenho dinheiro - e mostrou as moedas. - E, um milagre, quanto custa? O homem deu um sorriso. Colocou Lucas numa cadeira, agachando-se para ficar na altura dos olhos dele e perguntou: - Quanto dinheiro você tem? - Vinte e dois reais. - Nossa! Que coincidência! Vinte e dois reais é exatamente o preço de um milagre. Quem é que vem te buscar na escola? - Hoje, é minha mãe. - Ficarei aqui conversando com minha irmã, que eu não vejo faz tempo. Levantou-se e abraçou novamente a enfermeira. Depois, voltou-se para Lucas e perguntou: - Você ainda tem aula hoje? - Tenho. - Então, vá estudar. Quando acabar a aula, volte aqui. Nós dois iremos juntos até a saída encontrar sua mãe. Aquele homem era um neurocirurgião que morava na capital e trabalhava num dos maiores hospitais da cidade. Muito atarefado, fazia anos que devia uma visita à irmã. Naquela manhã, ele havia acabado de fazer surpresa para ela, chegando de repente e dizendo que passaria três ou quatro dias por lá. Após a aula, Lucas foi encontrá-lo. Então, o médico foi com ele e sua mãe para casa, onde a avó tomava conta de Pedrinho. Examinou-o e, também, as análises de laboratórios que haviam sido feitas. Depois, pediu licença para poder falar a sós com Lucas e foi com ele até o quarto. - Temos um segredo - falou em voz baixa. - Sim, sim - disse, com o rosto iluminado, Lucas. - Dê-me as moedas. Você acaba de comprar um milagre! Lucas as entregou ao médico, que as colocou no bolso e disse: - Esse é nosso segredo. Não conte para ninguém, viu! Vem cá, me dê um abraço! E recebeu um abraço tão gostoso que seus olhos científicos de cirurgião se encheram de lágrimas. Na véspera do Natal, Pedrinho foi levado para a capital pelos pais e operado num centro cirúrgico especializado, no qual o médico trabalhava. Foi salvo! E tudo de graça! No dia de Natal, Lucas e sua avó receberam a notícia de que a operação fora um sucesso. Foi o melhor presente natalino que eles poderiam ganhar. A avó proclamou: - Um milagre o salvou... Isso não tem preço! Lucas olhou para a avó e deu um sorriso gostoso e bem aberto, sentindo uma enorme alegria com seu segredo bem guardado.
Desde sempre a mentira esteve presente nas relações de consumo. E pergunto: "afinal quem é que mente? As empresas mentem para seus clientes?" O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena Detenção de um a seis meses ou multa". Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e, também, com as outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento da clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que  pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte dos fornecedores não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns mais inteligentes e menos gananciosos). O fato é que existem "empresas mentirosas". Mas, lembro que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente. Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais, o que não é o caso em exame. A mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços trabalhistas, que impõem que um trabalhador engane outro. Na realidade dos fatos, isso gera uma espécie de batalha de um consumidor contra outro: o consumidor é enganado por um representante de um fornecedor que é, por sua vez, também um consumidor. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com esse procedimento ético e legal.
Este é um artigo que publico nesta época do ano para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento etc envolvendo os presentes das crianças para o Natal que se avizinha. Na correria natural de fim de ano, é comum esquecer-se de alguma coisa. Ademais a compra é compulsória e emocional. Por isso, penso que vale a pena relembrar algumas dicas que podem envolver as  dificuldades para a escolha, a necessidade de testar brinquedos, os problemas das trocas etc. Pesquisando preços Em primeiro lugar e como sempre, lembro que não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Nem se deve deixar levar pela aparência inicial, pelos descontos oferecidos, pela boa conversa do vendedor ou da oferta feita no site. Vale pesquisar e não comprar por impulso.  As condições para troca Anoto que, de fato, fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetido não é obrigação do comerciante. Contudo, se ele propõe a troca, tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. Trata-se de oferta e esta vincula o ofertante, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor. Essa oferta de troca torna-se, inclusive, típica obrigação contratual. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como as peças de vestuário, podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Mas, há alguns problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota de compra e venda ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, a saída é guardar a nota fiscal e, se necessário, usá-la. De todo modo, anoto que a maior parte das lojas entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., procedimento que deveria ser adotado por todos os estabelecimentos. Outro aspecto que deve ser levado em conta diz respeito às etiquetas. Há comerciantes que se negam a trocar o produto se a etiqueta foi removida. Para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja retirada até que o presente seja experimentado e aprovado. De todo modo, com ou sem etiqueta, o comprador não perde o direito à troca, pois essa é uma exigência é abusiva. Cabe reclamar num órgão de defesa do consumidor. Vícios nos brinquedos Não se pode esquecer  de perguntar se a loja faz troca do brinquedo e em quais condições. Alguns comerciantes negam-se a fazer troca de brinquedos que apresentem problemas de funcionamento (vícios), limitando-se a mandar o consumidor para a assistência técnica. Assim, para evitar transtornos, vale perguntar antes de comprar se o estabelecimento faz troca em caso de vícios (o que, aliás, é sua obrigação legal) e decidir se vale a pena comprar lá.  Testando o brinquedo É importante testar o brinquedo na loja, inclusive os eletrônicos. Não se pode esquecer que, apesar de se poder trocar ou consertar posteriormente o brinquedo com defeito, a criança que ganhou o presente - às vezes tão esperado - já se frustrou.  É verdade, que nessa época do ano, com as lojas cheias é mais difícil fazer os testes, mas vale a pena insistir assim mesmo. Se não der por algum motivo justo ou se a compra for feita via web/internet, então, a saída é testar o brinquedo logo que for recebido. Idade adequada É preciso atenção com a questão da adequação do brinquedo à idade das crianças. Brinquedos muito sofisticados e caros nem sempre satisfazem. Alguns são complicados; outros fazem tudo sozinhos e a criança só fica olhando. Além de ser bom que a criança participe ativamente do uso do brinquedo, é necessário que ele possibilite a utilização do raciocínio e da imaginação. No caso de jogos, há que se checar a idade para a qual os fabricantes os indicam. Segurança é fundamental É necessário um cuidado especial com certos produtos, o que vale para todas as crianças e especialmente para os bebês: não se deve adquirir objetos pontiagudos ou cortantes, nem os que tenham cordões que o bebê possa enrolar no pescoço; da mesma forma não se deve adquirir pequenos objetos que as crianças possam engolir; e o mesmo cuidado deve-se ter com sacos plásticos, por causa de sufocamento. Os materiais devem ser laváveis e as tintas e demais componentes devem ser atóxicas e não descascarem. É bom lembrar: apesar da responsabilidade dos fabricantes, é a mãe e o pai que devem, em primeiro lugar, estar atentos para o que adquirem. Ela e ele são diretamente responsáveis por checar os brinquedos que estão na posse de seus filhos e filhas. É fundamental examinar mesmo depois da compra, direta e detalhadamente o brinquedo, verificar se não há peças que podem se soltar, pedaços pequenos que as crianças podem colocar na boca, se não há partes pontiagudas etc. É importante,  também, checar os brinquedos que as crianças ganham de presente, inclusive, aqueles distribuídos nas festas das escolas (conselho que vale para todas as festas das quais as crianças participam). Não é incomum que nessas festas sejam dados brindes de má qualidade que podem causar danos. Além disso, é preciso fiscalizar a qualidade dos brinquedos mesmo depois de usados pelas crianças.  Os brinquedos, com o desgaste,  podem acabar gerando os mesmo problemas que produtos novos mal feitos. Esse tipo de vigilância constante deve sempre ser exercido pelos responsáveis. Propaganda enganosa Cuidado com publicidade enganosa. Não se deve esquecer que muitas propagandas de brinquedos são dirigidas às crianças e não ao adulto. Por isso, para avaliar esse tipo de publicidade é preciso levar também em consideração a visão que a própria criança tem - ou teria - ao ver o anúncio. De qualquer forma, há que se avaliar com calma e comparar o produto real com o oferecido no anúncio publicitário. Em relação às embalagens, é bom saber que, às vezes, a enganosidade pode estar nas fotos e informações nelas contidas. Nem sempre a apresentação corresponde ao produto real. Certificado de garantia e manuais Se o produto tiver garantia do fabricante, o certificado deve estar junto do mesmo. E, os brinquedos, jogos e outros produtos que devem ser instalados e usados mediante instruções devem ter manuais claros, escritos em português. Não se deve instalar  ou utilizar o produto antes de ler, entender e seguir à risca as disposições trazidas pelo fabricante. Roupas Não se pode esquecer que as crianças crescem rapidamente, bem como mudam de hábitos, desejos e necessidades com a mesma velocidade. Assim, vale a pena levar em conta tais fatos para adquirir, por exemplo, roupas, comprando-as sempre um pouco folgadas e nunca em quantidades exageradas. Livros Uma dica importante: dar livros é fundamental, também levando em consideração a idade da criança. O mercado está repleto de excelentes livros para todas as idades e alguns são bem baratos. É um presente de total utilidade. Pode-se, claro, dar outros presentes, mas um livro junto deles é sempre bem-vindo.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Ainda não aprenderam a tratar bem o consumidor

Recentemente, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: "Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Algumas vezes o sinal foi cortado, fiquei sem imagem por falha técnica deles e jamais me deram um desconto. "Pois bem, não sei bem o que aconteceu, mas a conta do mês de outubro ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 e eu só vi dia 15. Paguei, então, no dia seguinte, 16. Mas, não é que recebi uma cobrança grosseira por e-mail, expedida no mesmo dia 16, dizendo que se eu não regularizasse meu débito em dois dias o sinal iria ser cortado. "Empresários grossos e mal-educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada? "Fico pensando: se eu fosse cliente de um restaurante por igual tempo e fosse lá uma vez por mês comer e pagasse a conta direitinho... Será que, depois de dez anos, se eu tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante me faria lavar os pratos? "É assim que eu me sinto: ultrajado. Os administradores desse capitalismo moderno são muito grossos!" Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor é ainda muito grande. Veja esse exemplo: nos anos oitenta do século passado, os bancos de primeira linha tinham uma técnica de cobrança que sempre levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam seus executivos, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa". Isso era não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar, é  menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração. O que se observa é que, muitas vezes, o consumidor real é esquecido. A empresa trabalha com o número de clientes (consumidores) que tem, considerando-o um ativo do fundo de comércio dos negócios em geral. Assim, se o consumidor não é considerado como uma pessoa real, mas como um mero número que tem certo valor econômico, não há mesmo necessidade de respeitá-lo e nem de enxergá-lo. A hipótese de perda de um cliente não é vista como uma descontinuidade dos negócios nem como um rompimento indesejado: basta que a situação esteja prevista dentro do quadro estatístico que cuida da inadimplência e das rupturas. Se estiver dentro do previsto, não haverá preocupação. São números. O consumidor é um número.  E em alguns casos, o que se percebe é que a relação com os clientes piorou. Certas empresas agem com a mesma estratégia indelicada, considerando o consumidor apenas um número que representa uma certa receita mensal. Se for mais barato violá-lo, nem que seja por um aviso automático mandado via computador, é assim que será. O lamentável é que, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava corrigir a programação.
No artigo anterior, falei sobre a Black Friday e as promoções de todo tipo em todas as mídias, sites etc. que já haviam se iniciado. E, ainda no mesmo clima, retorno ao tema das compras compulsivas.  Trata-se de uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. É um vício contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.   E, talvez, até pior: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz  com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará algum tipo de satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma  consumidora  típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e  de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em papel moeda toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno,  um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. E o sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado à ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. E os pagamentos feitos no sistema bancário que já eram rápidos (Doc e Ted), agora são instantâneos com o Pix. Na realidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.                                   Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de auto-ajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022

A Black Friday já começou

A edição do ano da Black Friday já começou. Há promoções de todo tipo em todas as mídias, sites etc. O termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui há ofertas de todo tipo e nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos  comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar o preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no Código de Defesa do Consumidor - CDC (Art. 37, caput e §1º) Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa tipificado no art. 67 do CDC e ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa (CDC, art. 66). Naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço! Apesar de tudo, é possível conseguir e encontrar produtos com bons descontos e preços baixos na Black Friday e nos dias que a antecedem. E há outros perigos: cada vez mais os hackers e os sites falsos estão presentes no mercado em geral. Por isso, listo, mais uma vez, as cautelas que o consumidor deve tomar nessas compras, não só agora na Black Friday, mas sempre que fizer aquisições via web/internet/aplicativos. Seguem itens obrigatórios fixados pelo decreto presidencial 7.962/13 e, também, dicas usuais para esse tipo de compra. Com efeito, o consumidor deve:  a. Conhecer e investigar o site por intermédio do qual pretende comprar. Primeiramente, examinando o endereço na web. Do lado esquerdo deve haver um cadeado e o endereço deve iniciar com https://. Do site deve constar o nome empresarial, o CPF (se o vendedor for pessoa física) ou o CNPJ; o endereço físico completo, o endereço eletrônico e os dados para contato.  b. Verificar se o site está em alguma lista de restrições dos órgãos de defesa do consumidor, como, por exemplo o Procon-SP; c. Checar via web os preços praticados anteriormente, para tentar descobrir se realmente está sendo oferecido desconto;  d. Comparar preços nos diversos sites de vendas para os mesmos produtos, levando em consideração os acréscimos por fretes e seguros e, também, formas de pagamento;    e. Evitar de fazer as compras por intermédio de em celulares ou computadores de terceiros e/ou desconhecidos; f. Manter o sistema operacional do computador e/ou do smartphone atualizado;  g. Certificar-se de que os dispositivos tenham antivírus;  h. Ativar o serviço que o informa via SMS a respeito das transações financeiras efetuadas;  Outra boa dica é a de fazer pesquisa em sites de proteção ao consumidor como, por exemplo, o ReclameAqui, para checar reclamações e respostas do fornecedor.  Lembro, ainda, que as ofertas devem  apresentar: as características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; a discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; as condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Por fim,  e como se sabe, para as compras feitas via web/internet/aplicativos, o consumidor tem o prazo de 7 dias para se arrepender, cancelar a compra e/ou devolver o produto e receber o que pagou de volta. O artigo 5º do Decreto Presidencial citado estabelece expressamente: "O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor."
O direito à saúde é uma garantia constitucional (arts. 196 e segs da Constitucional Federal). Lembro que uma das virtudes da sociedade capitalista contemporânea é a do desenvolvimento da ciência, embora tenhamos descoberto recentemente, na pandemia do Covid-19, que ela não é tão desenvolvida como pensávamos. De todo modo, a sociedade tem de se aproveitar das verdades científicas - quando elas são incontestáveis - em seu benefício. Eis um exemplo: em boa parte do século XX fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70 os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu etc. Fumar era algo natural de se fazer. Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e  começou-se  a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. E, apesar da grita de alguns fumantes e, claro, dos fabricantes, as limitações e proibições vingaram muito bem. Outro problema: a obesidade. Excetuando as tendências genéticas, os fatos demonstram que ela é uma doença e assim está definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O foco aqui é a questão ambiental: a ciência demonstra que a obesidade está ligada em boa parte ao consumo de produtos de baixa qualidade nutritiva e alta concentração de açucares, sais, gorduras, conservantes etc. Assim, com o apoio da ciência, vê-se que pode o Estado atuar no mercado para exigir, por exemplo, que os produtos alimentícios estampem informações mais precisas e mais claras. As embalagens poderiam também dizer dos malefícios que podem ocorrer pela ingestão excessiva. A publicidade poderia ser restringida. Nas escolas de ensino fundamental e médio,  poder-se-ia proibir que as cantinas vendessem porcarias. Enfim, o problema da obesidade ligada à alimentação deve ser tratada com o cuidado que o caso exige. Quanto à publicidade, a existente atualmente é muito bem produzida para encantar pais e filhos, levando-os a mundos maravilhosos e oferecendo porcarias e bugigangas. As propagandas são belíssimas, com produção de dar inveja a filmes hollywoodianos, mas nunca dizem a quantidade de gorduras, açucares sais etc. E esses elementos são fortes nas redes sociais. Mas, há também uma questão de tomada de consciência por parte do consumidor, que pode dizer não às ofertas, assim como pode mudar  seus hábitos alimentares. E em relação aos mais jovens, cabe aos pais regularem o modo de alimentação de seus filhos, crianças e adolescentes. Há, de fato, um problema, como apontei: é a desproporção entre, de um lado,  a oferta e, de outro, a capacidade de crítica e obtenção de informações precisas pelos consumidores. Estes estão acuados, lutando pela vida no dia-a-dia do trabalho ou procurando empregos, estudando, cuidando dos filhos etc. Sobra pouco  tempo para refletirem sobre seus hábitos de consumo e se organizar para tanto. Por isso, muitas vezes o consumidor acorda tarde demais. Uma ajuda viria a calhar. É por essas e outras que os consumeristas entendem que o Estado pode dar uma mãozinha. Sempre lembrando, que nós já temos uma excelente lei de proteção ao consumidor (o CDC), que garante direitos e regula obrigações, funcionando como uma boa alternativa para a defesa dos interesses e direitos de forma individual e coletiva. De todo modo, é preciso que a informação dos produtos que os consumidores adultos e especialmente as crianças e adolescentes possam ingerir seja clara e ostensivamente oferecida e apresentada.  Para terminar lembro a frase atribuída a Otto Von Bismark que diz "Se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo". Penso que nesta sociedade em que vivemos, dominada pelo mercado, seria importante atualizar esse pensamento: "Se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas e demais embalados e enlatados, os biscoitos, os sucos artificiais, os refrigerantes e várias bebidas de caixinhas etc. não as comprariam".
O princípio pacta sunt servanda, isto é, de que os pactos devem ser respeitados não se aplica aos contratos de consumo. Apresento aqui uma retrospectiva histórica que, penso, permite entender as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos. Inicio colocando um ponto: o CDC, como sabemos, foi editado somente em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei que chegou muito atrasada para a proteção do consumidor. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as relações de consumo. E, eventualmente, gerou toda sorte de dificuldade para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. Muito bem. O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele  que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. No caso das relações contratuais privatistas, trata-se de uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Ora, esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo não serve para as relações de consumo, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. Repito, para finalizar: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
Passados os efeitos da pandemia da Covid 19, os aeroportos já estão lotados pelo mundo afora. Os consumidores estão deixando milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Novamente mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos para serem distribuídos aos acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão. No entanto, velhas táticas de violação aos direitos dos consumidores continuam em vigor.  Em recente viagem aérea à Europa, meu amigo Outrem Ego ouviu de um atendente de uma cia aérea que o avião estava lotado e alguns passageiros não poderiam embarcar por causa do overbooking. Sim, o atendente admitiu abertamente a prática ilegal.  O overbooking é uma tática absurda e uma clara demonstração do modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Esses administradores não estão preocupados com seus clientes o que é especialmente reforçado nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera economia financeira que na escala, representa maior faturamento, apesar do desprezo ao consumidor.  Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (Tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, em alguns casos as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burlar: quando acontece o problema, elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. O overbooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida e que tem que ser banida.
quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A democracia, o voto e a liberdade

O domingo que se passou foi dia de eleições obrigatórias. Por isso, trago esta reflexão. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos, inicialmente, um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. No mundo há 193 países reconhecidos internacionalmente. Destes, apenas 25 ainda adotam esse modelo1, isto é, somente 12,95%. E dentre os 10 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever (na França o voto obrigatório é apenas para o Senado)2. Os que são contra o voto obrigatório argumentam que ele transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão, pois a liberdade é sua base. Isso porque, como dizem, a obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Todos os anos muitos brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder os vários direitos retirados de quem não vota e, também, porque é mais fácil e prático votar do que justificar a ausência. Esse argumento, de outro lado, apresenta o voto facultativo como algo positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como a do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. (Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso - sem partido -  etc. Mas, o fim do voto obrigatório, como dizem os que o defendem, seria um bom começo). Assim, as pessoas que quisessem exercer sua liberdade, participariam das eleições por escolha feita. Com isso, teriam mais interesse em tudo o que ocorre direta ou indiretamente nas próprias eleições e no que é feito depois pelos candidatos eleitos.  Parece certo que, de um modo ou de outro, é preciso mesmo aprimorar o sistema político, que está inserido numa sociedade capitalista que o tempo todo busca a modernização, especialmente para que a representação seja efetiva e a liberdade individual seja respeitada.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Brasil volta ao top 10 no ranking de maiores economias do mundo...
Continuo, no artigo de hoje,  a tratar da boa-fé objetiva, como elemento de harmonização das relações de consumo, que comecei a examinar na semana passada. Como adiantei, é importante que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídicas de consumo. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que  se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência.   A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.  Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).1 Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI,  muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura  reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois,  um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1 E o Código Civil   incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em  cada relação jurídica.
O presente momento histórico que vivemos exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas da atualidade é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf.  caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros, dentre os quais se encontra  o da boa-fé objetiva. A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise  da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação;  os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas bases gerais que sempre se repetem como alicerce das relações, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem  utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc. Anoto que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.  E a boa-fé objetiva é uma fórmula fundamental desse tipo que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. É importante, portanto, que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídica de consumo. No artigo da próxima semana, cuidarei especificamente dela.
Conta-se a seguinte piada de um menino conversando com sua mãe: - Manhêêêê! - grita o menino. - O que foi, meu filho? - Lá na escola, os meus coleguinhas estão dizendo que eu sou um grande mentiroso! -  Larga de bobagem, meu amor. Você ainda nem está na escola! * * * Nem toda mentira tem assim perna tão curta. Mas, nessa área, há episódios pitorescos produzidos no mercado, tanto do mundo real como do virtual. Na atualidade, a entrega da informação e sua força viral em memes de web/ internet e redes sociais se propagam a tal velocidade e geram uma quantidade tão grande de reproduções que, muitas vezes, essa quantidade acaba sendo vista como medida da verdade. Há de tudo, desde coisas sem importância e bobagens engraçadas até boatos causadores de danos, verdades idem e falsidades planejadas. E em matéria de direito do consumidor, o dever de informar é princípio fundamental no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, na sistemática implantada pelo CDC, o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preços etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. E, naturalmente, oferecendo informações verdadeiras. Trata-se de um dever exigido mesmo antes do início de qualquer relação. A informação passou a ser componente necessária do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela. Ademais, o CDC tem também estabelecido o princípio da transparência, que se traduz na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato que está sendo apresentado. Assim, da soma desses princípios, compostos de dois deveres - o da transparência e o da informação -, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas. Sabe-se que a web - mas não só - é um campo fértil para que sejam produzidas toda sorte de enganações, ao lado de tudo o que há de bom por lá. A pergunta que faço é a seguinte: dá para acreditar em tudo o que é publicado, divulgado, mostrado, enfim, naquilo que se nos surge diariamente para os produtos e serviços apresentados nos anúncios de tevê, na web, nas redes sociais, nos programas de rádio etc.? Por exemplo, algumas técnicas tradicionais de enganações em ofertas que envolvem o consumidor, continuam existindo abertamente. Muitos preços tem grandes descontos para quem comprar em alguns minutos ou para os primeiros X compradores que ligarem imediatamente etc. Promoções e promessas mirabolantes aparecem a toda hora. Por que é que os consumidores acreditam nesse tipo oferta, que utiliza um dos motes mais antigos e fajutos da oferta e da publicidade? Sei que, às vezes, a comunicação é bem feita e nos engana. É preciso prestar muita atenção e tentar descobrir quais interesses estão envolvidos para poder identificar os embustes. É Isso! Se antes já era difícil saber como lidar com as informações em geral, conhecendo-se a fonte ou não, atualmente a dificuldade é maior. Pequenos e grandes anunciantes e mesmo os desconhecidos produzem muito material que pode enganar. E se a fonte gera confiança, fica mais difícil desconfiar.  Aliás, como toquei no assunto da confiança e apenas para terminar, lembro que o maior problema de uma fofoca está exatamente no fato de a pessoa que a recebe conhecer a fonte e, muitas vezes, é por isso que acredita!    
quinta-feira, 8 de setembro de 2022

A questão dos vícios nos produtos usados

Na semana passada, cuidei dos aspectos da garantia legal que envolve os produtos usados, prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje, em continuidade, trato dos vícios nesses produtos e como o consumidor pode exercer os direitos fixados na lei. Com efeito, o exercício desses direitos está previsto nas hipóteses do artigo 18 do CDC, que  envolvem os vícios de qualidade ou quantidade que tornem os produtos usados impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Dispõe o "caput" do artigo 18 "caput" do CDC e, também, o § 1º, o seguinte: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço." Muito bem. Essa regra do citado §1º do artigo 18 vale para todos os tipos de produtos, inclusive, os usados. Logo, o fornecedor tem a obrigação de sanar o vício no prazo máximo de 30 dias. Caso ele não consiga sanar o vício nesse tempo, então, o consumidor tem a seu dispor as hipóteses dos incisos I, II e III. E, como diz a norma, por escolha sua. Todavia, surgem algumas dúvidas em relação à hipótese do inciso I no caso do produto ser usado. Como o consumidor poderia exigir a substituição do produto usado por outro da mesma espécie em perfeitas condições de uso? Um bom exemplo para estudarmos a questão é a do veículo usado (que envolvem milhares de transações todos os meses). Para que o consumidor pudesse exigir a troca teria que apontar um veículo que fosse igual ao adquirido, o que seria muito difícil, pois como se sabe, as características de  cada um deles varia muito: ano, cor, tempo de uso, quilometragem, gastos de pneus, amortecedores, molas etc. Assim, penso que a previsão do inciso I seja, de fato, na realidade das transações, esvaziada, com muita dificuldade de ser exercida. As duas outras hipóteses (dos incisos II e III), no entanto, são plenamente aplicáveis ao caso de vício encontrado no produto usado. De todo modo, ainda que não seja possível a utilização da regra do inciso I do §1º do art.18 pelo comprador do produto usado de forma direta, existe uma outra alternativa prevista no §4º do mesmo artigo que afeta o previsto naquele §1º . Vejamos: "§ 4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1° deste artigo." Primeiramente, anoto que essa escolha prevista no §4º é opcional do consumidor, que não precisa justificá-la. Trata-se de mero expressar objetivo de sua vontade. Assim, ele poderá aceitar em troca: a) outro produto de espécie, marca ou modelo diferentes, que tenha preço mais barato do que foi pago pelo produto viciado; b) outro produto de espécie, marca ou modelo diferentes, que tenha preço superior àquele que foi pago pelo produto viciado. No primeiro caso, o consumidor terá direito a receber a diferença do preço a seu favor, no ato da troca. No segundo, terá que pagar o complemento da diferença do preço pago a menor.
quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A questão da garantia dos produtos usados

Pergunto: o produto usado goza da garantia legal do Código de Defesa do Consumidor (CDC)? A resposta é sim, desde que se trate, de fato, de relação jurídica de consumo. Como se sabe, existem relações jurídicas de compra e venda de produtos que não estão submetidas à égide da Lei n. 8.078/90 (CDC). E, como não poderia deixar de ser, uma parte dessas transações é feita tendo por objeto produtos usados. É o que ocorre quando uma pessoa vende seu automóvel para outra pessoa. Nessa hipótese a relação jurídica negocial está submetida ao Código Civil. Contudo, quando o fornecedor típico vende para um consumidor um produto usado dentro de sua atividade, a relação jurídica é de consumo e está protegida pelo CDC. Em relação a esse assunto é relevante que se coloque inicialmente que o CDC não faz distinção entre produto novo ou usado. E, como ele não distingue, ambos estão incluídos no rol dos produtos cuja relação de venda e compra é por ele regulada. Assim, os prazos para reclamar previstos na lei, de 30 dias para produtos não duráveis e 90 dias para os duráveis, valem também para os casos dos produtos usados. Dessa maneira, por exemplo, quando uma concessionária ou um comerciante de veículos vende um automóvel usado, esse produto tem a garantia legal, e o consumidor tem 90 dias de prazo para reclamar. Mas daí surge um problema: se o veículo é usado, não é sinal de que já está desgastado? Então, como é que se pode falar em garantia? Realmente, o produto usado não tem as mesmas propriedades, nem funciona como um novo. Então, como é que se vai definir a garantia? Bem, há dois fatos: a) o produto usado tem a garantia legal; b) o produto usado não serve ao uso e consumo com a mesma eficiência do produto novo (nem tem o mesmo valor). A garantia legal terá de ser, então, considerada segundo as reais especificidades do produto que estiver sendo comprado, bem como com as condições de oferta do fornecedor que o estiver vendendo. Se o consumidor compra um automóvel usado, não pode esperar o desempenho de um novo, que os pneus não estejam desgastados, da mesma maneira que todos os demais componentes etc. Mas isso não implica que 15 dias após a compra o motor possa fundir. Cada caso será um caso. Mas, naturalmente, quem adquire um automóvel usado pretende utilizá-lo em sua própria qualidade (de usado). As variáveis reais no caso do produto usado são em número incontável e, como disse, variarão em cada caso. De todo modo, faço a colocação apenas para moldar o tema no sistema legal consumerista. Por isso, destaco que a responsabilidade é objetiva do fornecedor e a ele cabe especificar na oferta e/ou no contrato de compra e venda (ou na nota fiscal, no termo de venda e entrega etc.) as condições reais em que o produto está sendo vendido. Não basta colocar no documento "no estado". Essa expressão pode ter validade no direito privado, mas nas relações jurídicas de consumo tem eficácia contra o vendedor (fornecedor). Em caso de problema, caberá a ele demonstrar qual era o estado do produto e que este não apresentava as condições em que agora se encontra. E, para produto usado, o desgaste, como se viu, é sua condição. Logo, é mais prudente e mais adequado para atender à norma explicitar as condições do produto. Por fim, afirme-se que na questão do produto usado aplica-se, também, a hipótese do vício oculto. E, como oculto, o vício pode manifestar-se semanas ou meses após o uso. É possível, por exemplo, ocorrer de um veículo sair de fábrica com vício oculto, que só se manifeste em mãos de terceiro consumidor que o adquiriu na condição de usado. Nesse caso, a responsabilidade pelo vício retroagirá pela sucessão de vendedores, podendo atingir a montadora. Uma outra questão diz respeito ao exercício do direito garantido nas hipóteses do artigo 18 do CDC, envolvendo vícios de qualidade ou quantidade que tornem os produtos usados impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Tema que desenvolverei no próximo artigo.
O chamado recall está previsto no § 1º do art. 10 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), nesses termos: "Art. 10. (...) § 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários." Foi após a edição do CDC (lei8.078/90) que o recall começou a funcionar bem efetivamente no Brasil. Por meio desse instrumento, a norma protecionista pretende que o fornecedor impeça ou procure impedir, ainda que tardiamente, que o consumidor sofra algum dano ou perda em função de vício que o produto ou o serviço tenha apresentado após sua comercialização. Essa regra legal tem um alvo evidente. Trata-se das produções em série. Após gerar determinado produto, por exemplo, um automóvel, o fabricante constata que um componente apresenta vício capaz de comprometer a segurança do veículo. Esse componente, digamos, um amortecedor, que é o mesmo modelo instalado em toda uma série de 1.000 automóveis que saiu da montadora, apresentou problema de funcionamento, e, por ter origem no mesmo lote advindo do seu fabricante (isto é, do fabricante do amortecedor), tem grande probabilidade de repetir o problema nos automóveis já colocados no mercado. Então, esses veículos vendidos devem ser "chamados de volta" (recall) para ser consertados. Para efetivar o recall, o fornecedor deve utilizar-se de todos os meios de comunicação disponíveis e, claro, com despesas correndo por sua conta. É o que dispõe o § 2º do mesmo art. 10: "§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço."     Está correto. Mas, penso que não basta. É preciso fazer uma interpretação extensiva do texto para cumprir seu objetivo. Assim, utilizando-se o mesmo exemplo acima, dos amortecedores, se os veículos são zero quilômetro, as concessionárias que os venderam têm registro, nas notas fiscais, dos endereços dos compradores. Nada mais natural, portanto, que as montadoras chamem os consumidores por correspondência, telegrama, telefonema, e-mail, mensageiros etc. Além disso, o recall deve ser anunciado via rede social e ser inserido no site do fornecedor. Então, deve-se entender que o sentido desejado no § 2º é o de amplamente obrigar o fornecedor a encontrar o consumidor que adquiriu seu produto ou serviço criado para que o vício seja sanado. A questão que se coloca é a seguinte. Se a função do recall é permitir que o vício do produto ou do serviço seja sanado, e, para tanto, o consumidor é chamado, pergunta-se: o fornecedor continua responsável por eventuais acidentes de consumo causados pelo vício não sanado, pelo fato de o consumidor não ter atendido ao chamado? Respondo. Como a responsabilidade do fornecedor é objetiva, não se tem que arguir de sua atitude correta ou não em fazer o recall (embora, como dito acima, ele esteja sempre obrigado a fazê-lo). Havendo dano, o fornecedor responde pela incidência das regras instituídas nos artigos 12 a 14 do CDC. E, como está lá estabelecido, não há, no caso, excludente da responsabilização. A saída mais favorável ao fornecedor que fez o recall é a da demonstração da culpa exclusiva do consumidor (artigos 12, § 3º, III, e 14, § 3º, II). Todavia, como é o fornecedor que assume riscos e não o consumidor, havendo dano, o caso é de culpa concorrente do consumidor.
Tenho visto a utilização dos termos "vício" e "defeito" para tratar de questões que envolvem direito do consumidor, mas nem sempre de forma apropriada. Por isso, trato hoje de diferenciar os dois conceitos que estão estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor (CDC-Lei 8.078/90).  Com efeito, em termos conceituais, o CDC estabeleceu uma alguma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos são tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. E para entender "defeito" no CDC é necessário antes conhecer o sentido de "vício".  O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC.  São considerados vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, também, que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária.  Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha num vestido ou num terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc.  Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária.  O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si.  O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor.  Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador.  Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1.  Vejamos agora dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. Exemplo 1 Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero--quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios está com problema de fábrica.  Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia.  O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros.  O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito.  Exemplo 2 Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente.  Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito.  É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito.  Conclusão  Por fim, lembro que o CDC trata vício de maneira muito diferente de defeito, inclusive no que respeita ao agente que pode ser responsabilizado, aos prazos etc.  E o chamado acidente de consumo, naturalmente, está relacionado com o defeito, sendo mais devastador e podendo atingir terceiros que não participavam da relação de consumo como no caso relatado no exemplo nº 1 acima ou, num  outro exemplo, como ocorre numa queda de um avião sobre casas ao redor do aeroporto etc. _________ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado.
Vivemos numa sociedade capitalista muito acelerada, na qual parece que é preciso consumir o tempo todo sem parar e com o sentido de urgência. Muitos consumidores compram demais e adquirem o que nem precisam, mas a maioria está sempre em busca do que ainda não tem e que desejam ou, pior, que precisam. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população (o que aumenta significativamente a inadimplência), muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. E o mercado sabe mexer com as expectativas e desejos do consumidor e, também, com suas frustrações. De fato, os bens de difícil aquisição, alimentam a frustração do consumidor, que sonha mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  de apaziguar sua alma. Além disso, como é direito do consumidor sonhar, ele vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. E como a esperança é forte e a ilusão também, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como disse acima,  o consumidor tem pressa. E nunca teve tanta como nos dias que correm. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro  de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Pergunto: será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar?
Muito tem se falado em liberdade de expressão e seus limites,  fake news e temas ligados à comunicação. Por isso, resolvi tratar do tema da liberdade de expressão no âmbito do Direito do Consumidor, especialmente no que diz respeito à publicidade. Pergunto: a comunicação feita na publicidade comercial goza dos mesmos parâmetros da liberdade de expressão? Respondo. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado,  há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em Juízo  fale a verdade.  Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e, por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação  à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos criadores da agência. Sua razão de existir se funda em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, se vê que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. 
quinta-feira, 30 de junho de 2022

O controle dos consumidores pela linguagem

Um dos modos conhecidos de controle imposto pela chamada globalização é o da imposição linguística. Antigamente, esse método chamava-se imperialismo, ditado pelos países ricos; os demais países, hoje intitulados de emergentes, eram qualificados como subdesenvolvidos.  Trata-se de uma forma de manipulação com várias peculiaridades e que foram sendo impostas com o passar do tempo por esses  países  dominantes. Os países ricos continuaram assim e os subdesenvolvidos foram "promovidos" a emergentes. Uma vitória simbólica. Vitória dos poderosos e não dos dominados, pois como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está  presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição  desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida1. A produção cultural e tecnológica dos países dominantes é desenvolvida e entregue aos demais países. Assim, na atual globalização, a invasão não se faz em termos de territórios, mas de mercados. Toma-se conta do polo de consumo e, na medida em que os consumidores aderem aos produtos e serviços inventados e produzidos pela indústria e comércio dominantes, passam a se comportar como esses detentores do poder global querem que eles se comportem. Quanto aos produtos e serviços, vale de tudo, desde um refrigerante até os chamados "produtos culturais", tais como filmes de cinema, enlatados de tevê e demais redes,  séries, programas etc. E um dos modos mais eficientes de dominação, como acima antecipei,  é o do uso da linguagem. Para ficarmos com a posição de Bourdieu, o uso de palavras e expressões pelos dominadores (os que vêm de fora ou que estão mesmo dentro da comunidade) é um dos modos mais eficientes de controle. Meu  amigo Outrem Ego gosta muito de brincar com esse poder que a língua  estrangeira tem, especialmente, o anglicismo (que no mais das vezes aparece  escondido no termo "estrangeirismo") e que tem uma origem e direção: a língua inglesa. Numa conversa sobre o tema, ele me disse: "Minha filha me contou que seu boyfriend foi até o shopping center de bike. Ela estava lá, esperando por ele, na pista de skate, que fica em frente a um outdoor. Quando ele chegou, foi que ela reparou que ele tinha um piercing na barriga, pois estava quase sem camisa por causa do vento. Parecia até que queira fazer strip tease. Brincando, ela perguntou se ele não queria fazer de vez um topless e aproveitar para arrancar o apetrecho do umbigo e colocar um band-aid no lugar. Ele riu e disse que estava tudo bem com ele, pois tinha feito um checkup recentemente. Daí eles encontraram outro casal e entraram correndo para comer numa lanchonete fast food. Ela comeu um hamburger, no qual passou ketchup e bebeu uma coca-cola light. Ele deglutiu um cheeseburger bacon e tomou um milk-shake de chocolate. De sobremesa, ela comeu um cupcake de blueberry e ele um sundae de creme. Os outros dois amigos, que sentaram na mesma mesa da praça de alimentação, haviam ido a lugares diferentes: ela foi a um restaurante self-service e de lá levou uma caesar salad e um smoothie de morango. Ele variou: pegou um tuna wrap num lugar, uma porção de onion rings em outro e bebeu um suco detox. De sobremesa, ela tomou frozen yogurt e ele um cookie de chocolate". Ele concluiu sua fala: "Isso não é fake news". Como se sabe, a linguagem é um sistema aberto e, naturalmente, cada língua, de um jeito ou de outro, recebe influência externa. Não há necessariamente um mal nisso até porque é inevitável. Muitas vezes, inclusive, a língua pátria acaba por fazer uma adaptação. No caso brasileiro, são muitas as palavras aportuguesadas (ou abrasileiradas), tais como abajur, futebol, purê, batom, chofer, baguete, ateliê, bife, boate, sutiã etc. Mas, de fato, chama a atenção a enorme quantidade de termos em inglês que passou a fazer parte do dia a dia do mercado de consumo brasileiro, com muita naturalidade, a indicar, como acima referi, de um lado o poder de controle dos americanos e ingleses e, de outro, uma aceitação passiva do modelo. Uma simples passada d'olhos no mercado brasileiro mostra uma interminável sucessão de termos ingleses. Nem preciso ficar na tecnologia, com iphones, smarthphones, blue-rays etc. ou nos computadores e seus inputs, outputs, backups,  mouse, scanner, software, hardware, etc. ou, ainda, na internet e redes sociais com o skype, facebook, o twitter, as hashtags etc. Na área dos automóveis e demais veículos é incrível: os automóveis possuem transmissão automática H-matic com shiftronix, freios ABS, ar condicionado com AQS (Air quality control system), tração 4X4 full time, air-bags, pneus radiais com banda larga all season passenger, blue tooth, bluemediatv, bancos de couro premium,  e muitos outros adereços, em inglês, claro. O novo Honda Fit permite uma acomodação dos bancos da seguinte forma: modo utility, modo tall, modo long e modo refresh.  Capisce? __________ 1 O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
O Estado arrecada impostos para poder cuidar da população. Para oferecer segurança, atendimento médico e hospitalar, saneamento básico, educação etc. E, naturalmente, o que se espera é que os serviços oferecidos sejam claros, honestos, eficientes e universais. Muito bem. Hoje proponho que façamos uma reflexão sobre o serviço público que envolve ruas, avenidas, veículos, controle do tráfego etc. Há serviços em todas as esferas de poder: municipal, estadual e federal. E há maus e bons serviços. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o serviço de  coleta de lixo é bom. Aliás, quer o munícipe pague a taxa de lixo ou não, o serviço continua sendo prestado, como tem que ser. Já o asfaltamento de ruas é inacreditavelmente ruim. Não sei se a capital paulista seria a cidade com o maior número de buracos do mundo. E penso que ninguém fez essa conta. Mas, tendo em vista a extensão da cidade, provavelmente, seja. Deveria estar no Guinness! São milhões, talvez bilhões de buracos. E o valor das taxas e impostos coletados são altíssimos. Mas, não revertem em pavimentos adequados. O consumidor tem seus veículos estragados todos os dias: pneus furados, rodas quebradas, amortecedores arruinados etc. Responsabilidade civil objetiva da prefeitura e sem o devido ressarcimento. E os radares instalados, escondidos ou não. São centenas. Sim, servem para prevenir acidentes, mas, como se sabe, alguns também funcionam bem na arrecadação. Esses aparelhos são frutos da alta tecnologia. A propósito, pergunto: por que não se usa a tecnologia em benefício da população? Seria muito bem-vinda nesse setor. Nas noites, os cruzamentos das ruas e avenidas tem semáforos funcionando sem que haja veículos atravessando. Não só é perda de tempo absoluta, como é perigosíssimo parar em vias desertas, por causa dos assaltos.  Antigamente, o condutor olhava a via transversal e como estava tudo deserto, ultrapassava o sinal vermelho com o devido cuidado. Na atualidade, não pode fazer isso, pois não sabe se há algum radar oculto ali, esperando a passagem. Ora, porque não se instalam "semáforos inteligentes": se não há veículo se aproximando, ele permanece no vermelho. Só muda para o verde, quando aparecer algum. Evitaria perda de tempo e risco de assalto com todas as consequências daí decorrentes. Custaria caro?  Talvez, mas os benefícios são evidentes. Os radares também custam e estão bem instalados.