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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Como ultimamente os meios de comunicação têm abordado com certa regularidade a questão do barulho, que causa danos e nem sempre têm tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu aproveito para cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente. Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. Não posso deixar de fora os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao sossego É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde. Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir. O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei nº 24.645/1934, revogado, que dispunha: "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Os temas dessa antiga norma foram incorporados na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) estebelece, no seu art. 32, pena de detenção para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de reclusão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Nesse ponto, anoto que para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que tem sido noticiado, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais.
Hoje vou falar de publicidade por causa da supressão de um anúncio do Banco do Brasil que, segundo consta, foi retirado do ar por determinação da Presidência da República e também pela tentativa "esperta" da lanchonete Burger King de surfar nessa onda (algo que muitos publicitários fazem, para obter mídia de graça). Na verdade, quero mostrar quais são os limites legais para os anúncios publicitários. Não assisti ao vídeo do Banco do Brasil, nem do Burger King. Apenas li as matérias e comentários publicados nas redes sociais. Nem fui atrás porque não interessa para o que aqui vou desenvolver, isto é, trata-se apenas de uma oportunidade para falar sobre alguns aspectos legais da propaganda comercial que comumente passam despercebidos. Antes de prosseguir, quero deixar claro que o anunciante tem todo o direito de escolher seu público alvo: jovens, adolescentes, idosos, solteiros e solteiras, casados e casadas, divorciados e divorciadas, homens, mulheres, empresários e empresárias, estudantes etc. Naturalmente, a escolha estará relacionada ao produto ou serviço oferecido, mas a escolha é de quem faz o anúncio. É legítimo e adequado que assim seja. Dito isso, falo agora de ética e da lei. Ética significa tomar a atitude correta, isto é, escolher a melhor ação a tomar ou conduta a seguir. Uma pessoa ética tem bom caráter, busca sempre fazer o bem a outrem. No sistema jurídico - necessariamente ético -, pode-se identificar uma série de fundamentos ligados à ética, tais como o da realização da Justiça e a boa-fé objetiva (uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Um standart, um modelo a ser seguido1). Muito bem. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, expressar-se é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado, há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em Juízo fale a verdade. Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil, criminal etc. ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos empregados da agência. Sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender ou a uma marca que se quer divulgar. Dessa maneira, vê-se que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. Além disso, é de considerar algo evidente: o anúncio será enganoso se o que foi afirmado não se concretizar. Se o fornecedor diz que o produto dura dois meses e em um ele está estragado, a publicidade é enganosa. Se apresenta o serviço com alta eficiência, mas o consumidor só recebe um mínimo de eficácia, o anúncio é, também, enganoso etc. Enfim, será enganoso sempre que afirmar algo que não corresponda à realidade do produto ou serviço de acordo com todas as suas características. As táticas e técnicas variam muito e todo dia surgem novas, engendradas em caros escritórios modernos onde se pensa frequentemente em como impingir produtos e serviços mesmo contra a real vontade do consumidor e também fazendo ofertas que nunca se efetivam. São os produtores da mentira desta sociedade capitalista com pouca ética. __________1 Consumidor, São Paulo: Saraiva, 13ª. Edição , 2019, Cap.9, item 6.9.
Hoje falarei mais uma vez da ganância, a sede de ganho sem limites. Fiquei preocupado com notícias de liberação dos preços, especialmente dos medicamentos. (Lembremos da catástrofe que foi a liberação da cobrança de bagagem pela Anac, que dizia que o preço das passagens aéreas cairia... Algo que aqui, na época, disse que era para inglês ver). Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares, cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Esse tipo de conduta não é nova nem surpreendente e já se verificou no Brasil e em outros lugares do mundo inúmeras vezes. São práticas evidentemente odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Mas, o que chama a atenção no episódio do furacão na Flórida não é tanto a ganância, mas a incrível e aberta defesa feita por muitos economistas do ato ganancioso como elemento intrínseco do sistema e - pasme-se - positivo! Dentre os vários "teóricos de mercado" que fizeram esse tipo de defesa naquela oportunidade, refiro, por todos, o economista Thomas Sowell para quem o termo "extorsão", utilizado pelas vítimas dos comerciantes, não passava de uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque lhes parece vaga demais"4. Veja o que escreveu Sandel sobre a fala dele: "Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança dez dólares quando a Flórida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem"5. Trata-se de um sofisma ridículo e pueril, pois obviamente os fabricantes de gelo somente se motivariam se o preço se mantivesse nas alturas de forma constante. No caso, o preço foi elevado excessivamente, fixado para um curto período de tempo e imposto contra consumidores desesperados. Esse tipo de argumento poderia passar despercebido, não fosse algo consistentemente defendido por diversos e diferentes setores empresariais e seus inúmeros asseclas "teóricos". Parece mesmo que uma característica desses últimos vinte, trinta anos na sociedade capitalista é a falta de vergonha na cara, do surgimento da possibilidade do "cara de pau" falar qualquer coisa. Defender a ganância é apenas um dos exemplos desse descaramento que pensa e propõe o mercado funcionando como um Deus capaz de tudo resolver. Aliás, e a propósito, é isso mesmo: na concepção cristã, como disse acima, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual faz sentido, na medida em que, como disse, o mercado funciona como um Deus. E é nesse aspecto, inclusive, que se tem usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado". Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e também demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade, o que, infelizmente, não corresponde aos fatos. Eis, pois, uma mostra de um dos aspectos mais perniciosos da sociedade capitalista contemporânea, que merece e precisa ser combatido. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 4 Ibidem, p.12. 5 Ibidem, p. 12.  
A imprensa em geral e o mercado, mais uma vez, tratam a Petrobras e sua política de preços como se estatal fosse uma empresa privada que não deve e nem tem relação com os consumidores e a sociedade. Vale, pois, que esclareçamos alguns pontos jurídicos relevantes que não são levados em consideração. Inicialmente, lembro que a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do direito privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobrás, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei." O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de direito privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de direito público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens, conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;" Além disso, ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Naturalmente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo, quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, veja-se bem. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas, que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobrás pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?
Certa vez, quando eu ainda estava na ativa no Tribunal, julgamos um feito em que o consumidor reclamava de abusos praticados por um prestador de serviço. Examinando o contrato firmado, encontramos uma cláusula contratual, que era uma verdadeira pérola jurídica. Estava escrito: "Aplica-se ao presente contrato o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90). Parágrafo único. No eventual conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas aqui estabelecidas, prevalecem as cláusulas". Pode? Bem, infelizmente, cláusulas abusivas desse tipo são encontradas em todos os setores do mercado de consumo. Claro que a maior parte delas não é tão escancarada, mas são comuns e em grande quantidade. E sua ocorrência regular está ligada exatamente ao fato de que o consumidor não negocia nem consegue impor sua vontade representada em cláusulas porque, em matéria de consumo, como regra, não vige o sistema privatista do conhecido brocardo latino pacta sunt servanda. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E, como se sabe, vivemos numa sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaco uma que interessa aqui: a produção é planejada unilateralmente pelo fornecedor no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto ou prestar certo serviço, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual no qual se supõe que, aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela Lei n. 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor no seu art. 54. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute o conteúdo das cláusulas adredemente redigidas. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Este é o modo de produção de produtos e serviços de massa do século XX. Só que nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos algumas dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, nessa questão contratual, nossa memória privatista impõe que, muitas vezes ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. Repito, pois, para finalizar e lutando contra nossa equivocada memória: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
Para se compreender o significado de prática abusiva, é necessário que antes pensemos na questão do abuso do direito. O abuso do direito Com efeito, a ideia da abusividade tem relação com a doutrina do abuso do direito. A constatação de que o titular de um direito subjetivo pode dele abusar no seu exercício acabou levando o legislador a tipificar certas ações como abusivas1. A prática real do exercício dos vários direitos subjetivos acabou demonstrando que, em alguns casos, não havia ato ilícito, mas era o próprio exercício do direito em si que se caracterizava como abusivo. A teoria do abuso do direito, então, ganhou força e acabou preponderando. Pode-se definir o abuso do direito como o resultado do excesso de exercício de um direito, capaz de causar dano a outrem. Ou, em outras palavras, o abuso do direito se caracteriza pelo uso irregular e desviante do direito em seu exercício, por parte do titular2. Assim, por exemplo, abusa do direito o patrão que ameaça mandar embora o empregado sem justa causa caso ele não se comporte de certa forma3. A legislação brasileira, adotando a doutrina do abuso do direito, acabou regulando uma série de ações e condutas que outrora eram tidas como práticas abusivas. E o exemplo próprio disso são as normas do CDC, que proíbem o abuso e nulificam cláusulas contratuais abusivas. A abusividade do exercício do direito, transformada pela lei 8.078 em norma tipificada com conduta ilícita aparece em várias seções. Práticas abusivas em geral A lei 8.078 tratou especificamente de regular as práticas abusivas em três artigos: 39, 40 e 41. Mas apenas no art. 39 as práticas que se pretendem coibir, e que lá são elencadas exemplificativamente, são mesmo abusivas. O art. 40 regula o orçamento e o art. 41 trata de preços tabelados. É claro que a não entrega do orçamento e a violação do sistema de preços controlados são também consideradas práticas abusivas. Porém, a organização do texto não foi muito boa. A rigor, as chamadas práticas abusivas previstas no art. 39 têm apenas um elenco mínimo ali estampado. Há outras espalhadas pelo CDC. Por exemplo, a desconsideração da personalidade jurídica em caso de abuso do direito (art. 28), a cobrança constrangedora (que é regulada no art. 42, c/c o art. 71), a "negativação" nos serviços de proteção ao crédito de maneira indevida (que o art. 43 regulamenta), o anúncio abusivo e enganoso, previsto nos parágrafos do art. 37 etc. Práticas abusivas objetivamente consideradas As chamadas "práticas abusivas" são ações e/ou condutas que, uma vez existentes, caracterizam-se como ilícitas, independentemente de se encontrar ou não algum consumidor lesado ou que se sinta lesado. São ilícitas em si, apenas por existirem de fato no mundo fenomênico. Assim, para utilizarmos um exemplo bastante conhecido, se um consumidor qualquer ficar satisfeito por ter recebido em casa um cartão de crédito sem ter pedido, essa concreta aceitação sua não elide a abusividade da prática (que está expressamente prevista no inciso III do art. 39). A lei tacha a prática de abusiva, portanto, sem que, necessariamente, seja preciso constatar-se algum dano real. Práticas abusivas pré, pós e contratuais As chamadas práticas abusivas podem ser classificadas em "pré-contratuais", que, como o próprio nome diz, surgem antes de firmar-se o contrato de consumo, como aquelas que compõem a oferta ou a ação do fornecedor que pretende vincular o consumidor. No primeiro caso estão, por exemplo, a prática ilícita de condicionar o fornecimento de algum produto ou serviço à aquisição de outro produto ou serviço, conhecida como operação casada4. Na segunda hipótese está, por exemplo, o envio do cartão de crédito sem que o consumidor tenha pedido, acima comentado. A prática "pós-contratual" surge como ato do fornecedor por conta de um contrato de consumo preexistente. Como exemplo, tome-se a "negativação" indevida nos serviços de proteção ao crédito. E a "contratual" é aquela ligada ao conteúdo expresso ou implícito das cláusulas estabelecidas no contrato de consumo. Tomem-se como exemplo todas as hipóteses de nulidade previstas no art. 51 e a do inciso IX do art. 39, que dispõe como abusiva a não estipulação de prazo para o cumprimento da obrigação pelo fornecedor. __________ 1 No CDC isso vai refletir-se também no contrato, pois a lei tacha de nulas as cláusulas contratuais abusivas. 2 O conceito de abuso do direito permitiu-me classificá-lo ao lado dos atos ilícitos no meu Manual de introdução ao estudo do direito (São Paulo: Saraiva, 16ª. Edição, 2019) nos seguintes termos: "De qualquer forma, preferimos situar o 'abuso do direito' numa posição ao lado do ato ilícito, mas com ele não se confundindo, porque o ato ilícito é figura típica, reconhecida pelo ordenamento jurídico, como tal. Já o 'abuso' não é propriamente caracterizado pelo ordenamento jurídico, mas sim pelo exercício irregular de fato, concreto, de um direito, este reconhecido pelo ordenamento como direito. É, portanto, o exercício irregular que pode caracterizar o abuso do direito, que no ordenamento é regular. No caso do ato ilícito, a ilicitude já estava antes prevista como proibida e condenável". 3 Claro que a hipótese pode ser capaz de gerar "despedida indireta". Mas o abuso nasce daí, do fato de o empregado não querer perder o emprego e por isso não se utilizar do recurso da despedida indireta. 4 E prevista no inciso I do art. 39.
quinta-feira, 28 de março de 2019

O recall no Código de Defesa do Consumidor

O § 1º do art. 10 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) cuida do chamado recall, nesses termos: "Art. 10. (...) § 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários". O recall começou a funcionar, de fato, no Brasil, especialmente após a edição da lei 8.078/90. Por meio desse instrumento, a norma protecionista pretende que o fornecedor impeça ou procure impedir, ainda que tardiamente, que o consumidor sofra algum dano ou perda em função de vício que o produto ou o serviço tenha apresentado após sua comercialização. Essa regra legal tem um alvo evidente. Trata-se das produções em série. Após gerar determinado produto, por exemplo, um automóvel, o fabricante constata que um componente apresenta vício capaz de comprometer a segurança do veículo. Esse componente, digamos, um amortecedor, que é o mesmo modelo instalado em toda uma série de 1.000 automóveis que saiu da montadora, apresentou problema de funcionamento, e, por ter origem no mesmo lote advindo do seu fabricante (isto é, do fabricante do amortecedor), tem grande probabilidade de repetir o problema nos automóveis já colocados no mercado. Então, esses veículos vendidos devem ser "chamados de volta" (recall) para ser consertados. Modos de efetuar o "recall" Para efetivar o recall, o fornecedor deve utilizar-se de todos os meios de comunicação disponíveis e, claro, com despesas correndo por sua conta. É o que dispõe o § 2º do mesmo art. 10: "§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço". Correto. Mas não basta. É preciso fazer uma interpretação extensiva do texto para cumprir seu objetivo. Assim, utilizando-se o mesmo exemplo acima, dos amortecedores, se os veículos são zero-quilômetro, as concessionárias que os venderam têm registro, nas notas fiscais, dos endereços dos compradores. Nada mais natural, portanto, que as montadoras chamem os consumidores por correspondência, telegrama, telefonema, mensageiros etc. Além disso, o recall deve ser anunciado via rede social e ser inserido no site do fornecedor. Então, deve-se entender que o sentido desejado no § 2º é o de amplamente obrigar o fornecedor a encontrar o consumidor que adquiriu seu produto ou serviço criado para que o vício seja sanado. E se o consumidor não for encontrado? A questão que se coloca é a seguinte. Se a função do recall é permitir que o vício do produto ou do serviço seja sanado, e, para tanto, o consumidor é chamado, pergunta-se: o fornecedor continua responsável por eventuais acidentes de consumo causados pelo vício não sanado, pelo fato de o consumidor não ter atendido ao chamado? A resposta é sim. Como a responsabilidade do fornecedor é objetiva, não se tem que arguir de sua atitude correta ou não em fazer o recall. Havendo dano, o fornecedor responde pela incidência das regras instituídas nos artigos 12 a 14 do CDC. E, como está lá estabelecido, não há, no caso, excludente da responsabilização. A que mais se aproxima é a da demonstração da culpa exclusiva do consumidor (artigos 12, § 3º, III, e 14, § 3º, II). Todavia, como é o fornecedor que assume riscos e não o consumidor, havendo dano nessa hipótese, o que se verifica é a culpa concorrente do consumidor.  
Está bombando nas redes sociais uma publicidade feita pela empresa de investimentos Empiricus Research. Nela uma moça se apresenta e diz: "Oi. Meu nome é Bettina, eu tenho 22 anos e 1 milhão e 42 mil reais de patrimônio acumulado".E ela diz mais: "Eu comprei ações na bolsa de valores". Depois complementa falando de sua trajetória no mundo das finanças, que começou com R$ 1.520,00 e chegou ao patrimônio atual após apenas três anos. E, claro, pede que o consumidor a acompanhe para fazer investimentos na empresa de consultoria.A jovem do vídeo é Bettina Rudolph, que trabalha na equipe da consultoria de investimentos. E, segundo se lê na internet, o CEO da empresa disse que a história que ela relata no vídeo é real. Nas redes sociais percebe-se que muitas pessoas não acreditaram no anúncio publicitário e passaram a fazer comentários jocosos e agressivos contra a protagonista.Não entrarei na discussão dos comentários das pessoas, mas faço questão de colocar o que me chamou a atenção: o da existência ou não de publicidade enganosa no caso. A matéria, como se sabe, é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). A publicidade enganosa é tratada nos §§ 1º e 3º do art. 37.Ampla garantiaO CDC foi exaustivo e bastante amplo na conceituação do que vem a ser publicidade enganosa. Ele quis garantir que efetivamente o consumidor não seria enganado por uma mentira nem por uma "meia verdade".Com efeito, diz a lei que é "enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, das características, da qualidade, da quantidade, das propriedades, da origem, do preço e de quaisquer outros dados a respeito dos produtos e serviços oferecidos." (§ 1º do art. 37).Diz mais que "a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço" (§ 2º do art. 37).Logo, o efeito da publicidade enganosa é induzir o consumidor a acreditar em alguma coisa que não corresponda à realidade do produto ou serviço em si, ou relativamente a seu preço e forma de pagamento, ou, ainda, a sua garantia etc. O consumidor enganado leva, como se diz, "gato por lebre". Pensa que está numa situação, mas, de fato, está em outra.As formas de enganar variam muito, uma vez que nessa área os fornecedores e seus publicitários são muito criativos. Usa-se de impacto visual para iludir, de frases de efeito para esconder, de afirmações parcialmente verdadeiras para enganar e de promessas para brincar com os sonhos e esperanças do consumidor. O publicitário sabe invocar o que faz o público aderir à alguma proposta.Pergunto agora: Bettina mente? Isto é, a empresa Empiricus mente? O depoimento é feito num anúncio publicitário em que a moça representa a empresa e oferece a assessoria da consultoria de investimentos para que o consumidor com um pouco de dinheiro possa obter rapidamente mais de um milhão reais.Bem, ao que parece, pelo menos boa parte do público duvidou de Bettina e também alguns especialistas em investimentos1. Eu também não acreditei. Mas, como saber?Então, se há essa dúvida, penso que os órgãos de defesa do consumidor, o Ministério Público ou mesmo o Conar podem cobrar da empresa a prova de que fala a verdade. O CDC, nesse ponto, também regulou o assunto. Leia-se o artigo 38:"Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina".Logo, não há o que discutir. Em qualquer disputa na qual se ponha em dúvida ou se alegue enganosidade do anúncio, caberá ao anunciante o ônus de provar o inverso, sob pena de dar validade ao outro argumento.Além disso, lembro da regra do parágrafo único do art. 36, que compõe um conjunto com esta outra do art. 38. Aquela norma dispõe que "o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem".Observe-se que a lei estabelece que não basta veicular a verdade. É ainda necessário que a prova da verdade da informação veiculada seja mantida em arquivo para eventual averiguação e checagem.E o CDC dá tanta importância à questão que criou tipo penal para a oferta de publicidade enganosa e também para punição pelo não cumprimento das determinações do parágrafo único do artigo 36. É o que dispõem os artigos 67 e 69:"Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:Pena - Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa""Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade:Pena - Detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses ou multa".Apesar desse rigor, o fato é que a norma tem um duplo sentido protetor. Pretende proteger o consumidor, mas também garante o fornecedor-anunciante.Protege o consumidor porque ele ou seus legítimos representantes, querendo e havendo motivo justificado, poderão requerer a confirmação dos dados anunciados, o que é exatamente o caso deste anúncio da Empiricus.Garante o fornecedor, pois, arquivando e mantendo consigo os dados técnicos que deram sustentação ao anúncio, não poderá ser acusado de prática de publicidade enganosa, porquanto terá como provar que falou a verdade.Assim, usando o próprio exemplo do depoimento feito no anúncio: basta provar que a depoente aplicou alguns trocados e em alguns meses passou a ter mais de um milhão de reais.__________1 Por exemplo, Samy Dana.
Hojé é o dia mundial dos direitos do consumidor. No dia 15 de março de 1962 o então presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e direitos dos consumidores. Foi um marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: a) o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; b) o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; c) o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; d) e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao presidente Kennedy; inicialmente foi comemorado em 15 de março de 1983; em 1985 a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida que, de 1962 para cá houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em 11/9/1990 (e que entrou em vigor em 11/3/1991). É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha. Aproveitemos, então, este dia para fazer uma reflexão a partir de certos fatos. Sempre que me deparo com abusos perpetrado pelas empresas, me vem a mente não só a imagem do empresário aproveitador, mas também a do funcionário que executa suas ordens. Esse mesmo empregado, que sabe muito bem que está abusando de alguém, ele próprio é também consumidor e certamente será enganado em algum lugar: numa loja, pelo serviço de transporte ou telefônico, por um gerente de um banco etc. É, podemos dizer, uma falta de consciência de que todos somos consumidores. É essa falta de consciência que faz com que no telemarketing ativo o atendente viole a tranquilidade do consumidor em seu lar e, muitas vezes, o engane com ofertas miraculosas; ou no telemarketing passivo, quando o atendente nega-se a fazer o cancelamento solicitado etc. A ironia é que neste mercado que só conhece o lucro, todos esses "pequenos infratores" a mando de seus patrões violam o direito de outras pessoas no horário de seu trabalho, mas assim que vão às compras são também enganados e violados É por essas e outras que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que se deixado à própria sorte os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Para ficarmos apenas com um exemplo: o da crise financeira internacional de 2008. Ficou demonstrado como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes. Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Há esperança? Já comentei por aqui, que vejo com bons olhos os empresários que se preocupam com a questão ambiental, com o impacto que seus produtos e serviços tem na sociedade, que se envolvem em projetos sociais etc. Tudo isso é bem-vindo, mas penso que para melhorar mais é necessário que o consumidor possa e saiba escolher os produtos e serviços que adquire e que o Estado tenha regras rígidas de controle do sistema de produção capitalista, fazendo com a lei seja cumprida.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC-lei 8.078/90), em termos conceituais, estabeleceu uma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos são tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. Para entender "defeito" no CDC é necessário antes conhecer o sentido de "vício". Vício O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC. São considerados vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e também que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha num vestido ou num terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária. Defeito O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor. Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1. Vejamos agora dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. Exemplo 1 Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero-quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios veio com problema de fábrica. Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia. O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros. O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito. Exemplo 2 Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente. Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito. É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito. Conclusão Por fim, lembro que o CDC trata vício de maneira muito diferente de defeito, inclusive no que respeita ao agente que pode ser responsabilizado, aos prazos etc. E o chamado acidente de consumo, naturalmente, está relacionado com o defeito, sendo mais devastador e podendo atingir terceiros que não participavam da relação de consumo como no caso relatado no exemplo 1 acima ou, num outro exemplo, como ocorre numa queda de um avião sobre casas ao redor do aeroporto etc. __________ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado.
Não é a primeira vez que escrevo sobre este tema. Gostaria que fosse a última, mas tudo indica que em nosso querido Brasil tudo se repetirá. Infelizmente e para usar uma expressão significativa, está "tudo como dantes no quartel de Abrantes". Todo início de ano, temos assistido a uma série de situações parecidas e repetidas: as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; grande parte dessas catástrofes é previsível. E para piorar as coisas, neste início de ano ainda tivemos a tragédia do rompimento da Barragem da Vale em Brumadinho e o incêndio no alojamento dos jovens jogadores do Flamengo dentre outras más notícias. Na verdade, essa situação já passou dos limites faz tempo! Volto ao tema que envolve os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. Os mais recentes episódios deram-se no Rio de Janeiro e na cidade de Mauá. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente o direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que, um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. O brasileiro não precisa ser um herói que não suplante seu trágico destino nem uma vítima de um Estado inoperante que conhece o futuro, mas se omite nas providências que devia tomar para modificá-lo. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou de terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla, é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Para concluir, lembro que a indenização há de ser plena com ressarcimentos dos danos materiais, pagamentos de pensões, além de indenizações por danos morais e, claro, o acolhimento das pessoas desalojadas, atendimentos médicos e hospitalares e qualquer outro tipo de necessidade de urgência.
Não é a primeira vez que trato deste assunto que, infelizmente, é básico na sociedade capitalista: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fabricantes, produtores, industriais, comerciantes, enfim, fornecedores em geral. Veja isto, meu caro leitor. Meu amigo Outrem Ego que contou. A filha dele pediu que ele comprasse ingresso para um show de um cantor internacional. Ele entrou em dois sites de vendas. Chamou a atenção que o site dizia em letras garrafais algo como: "há poucos ingressos à venda"; "Lembre-se de que foram vendidos 68 ingressos recentemente. Complete sua compra e não fique sem o seu!"; "compre já antes que se esgotem os ingressos" etc. Sua filha não estava por perto e ele acabou não adquirindo o ingresso. E por uma série de problemas de tempo e trabalho, passou uma semana sem que ele o fizesse. Então, sua filha surgiu esbaforida dizendo que os ingressos estavam esgotados (essa era a informação lançada nas redes sociais). Outrem Ego foi ao site e viu que estava tudo igual. Com as mesmas ofertas e informações "para pressionar" o comprador. Bem, ele acabou comprando. Seguindo as informações de meu amigo (uma semana após a compra que ele fez e quinze dias depois da primeira vez que ele olhou no site) eu mesmo fui ver as ofertas. Estava tudo lá: ingressos se esgotando, compre já etc.. Nota: estamos em fevereiro e o show será só em novembro. Naturalmente, não cuidarei do fato de que, algum dia os ingressos se esgotarão. Quero falar da informação verdadeira, da atitude correta que deveria pautar a conduta dos fornecedores. Como acreditar no que dizem? Pensemos num caso mais grave: o da Vale do Rio Doce em Brumadinho. O que se espera é que uma empresa daquele porte faça de tudo para que seu negócio dê certo, com rentabilidade e sem colocar em risco a vida das pessoas e preservando o meio ambiente. Daí, surge o acidente: como se poderá acreditar que estava tudo em ordem e que não havia economia no item segurança? Vendo algumas matérias sobre aquele tipo de atividade, viu-se, por exemplo, que é possível fazer-se mais de um tipo de barragem e lá se optou pela mais barata1. É isso mesmo? Fizeram economia na segurança visando unicamente o lucro? Nesta sociedade capitalista, não se pode acreditar no que é dito e até mostrado? Está cada dia mais difícil! De há muito tempo que os consumeristas descobriram que um dos fundamentos da sociedade de consumo é a mentira. Largos setores empresariais são desonestos na relação com seus clientes. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco de história do comércio, da indústria, da economia etc. sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos etc. são a base da produção e distribuição de produtos e serviços. Falta transparência. Como diria Sócrates que aqui já referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista se faz muita coisa mas se mostra outra diferente. Uma questão intrigante é a atitude de uma parcela de consumidores diante das mentiras - às vezes insultuosas --: a da aquiescência pueril; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. O consumidor, ansioso e ávido para comprar torna-se fácil vítima da enganação. Aceita a mentira porque lhe soa cômoda ou está de acordo com seu próprio interesse ou, ainda, porque não desenvolveu senso crítico capaz de percebê-la. Chama a atenção, também, a ação dos empregados e colaboradores desses fornecedores: são eles, muitas vezes, os propagadores da enganação. E, certamente, sabem o que estão fazendo. Ficarei ainda com o exemplo de meu amigo. Como já contei aqui, ele já morou em Portugal, onde mantém um imóvel. Muito bem. Quando lá esteve, fez um seguro residencial. A empresa cobra um valor mensal. Não é que ele já tentou por três vezes cancelar o seguro e não consegue? Ele telefona (e do Brasil), o atendente é simpático e pergunta do que se trata. Quando ele diz que quer cancelar o serviço, o atendente diz que vai passar para o setor competente e o coloca numa "fila" que nunca termina. Da última vez, ele reclamou e a atendente - que era brasileira, como ele percebeu pelo sotaque - disse que o pessoal que cancela o serviço iria ligar para ele, pois a fila era longa. Ele ainda está aguardando... Desafortunadamente, esse é o modelo adotado por muitos fornecedores. É por essas e outras que o mercado não pode ficar totalmente livre. Ainda quando há concorrência, os fornecedores se comportam melhor, mas quando ela não existe ou é pequena, os abusos se multiplicam. Não tem jeito: o Estado tem que vigiar, fiscalizar e punir. E os consumidores têm que reclamar e processar. __________ 1 Ver aqui as diferenças.
Como há muito tempo não cuido de questões jurídicas da área do trabalho, só agora, quando fui verificar alguns aspectos envolvendo os trabalhadores da Vale do Rio Doce no caso da tragédia de Brumadinho, é que vi que na reforma trabalhista feita pela lei 13.467/17, existem regras para a fixação da indenização por danos morais, e indicando como referência o salário do trabalhador, algo que, pelo que penso, é inconstitucional. Explico. O questão da indenização por dano moral no Brasil tem gerado uma série de avaliações tanto na doutrina como na jurisprudência. Eu mesmo escrevi várias vezes sobre o assunto, que está apresentado em detalhes em alguns dos meus livros1. Para o presente artigo, o que importa é um dos critérios fixados na lei da reforma trabalhista: o da determinação do valor da indenização em função do salário do trabalhador. Vejamos o que diz a lei na regulação da apuração e da fixação da indenização do dano moral: "Art. 223-G - Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: I - a natureza do bem jurídico tutelado; II - a intensidade do sofrimento ou da humilhação; III - a possibilidade de superação física ou psicológica; IV - os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão; V - a extensão e a duração dos efeitos da ofensa; VI - as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral; VII - o grau de dolo ou culpa; VIII - a ocorrência de retratação espontânea; IX - o esforço efetivo para minimizar a ofensa; X - o perdão, tácito ou expresso; XI - a situação social e econômica das partes envolvidas; XII - o grau de publicidade da ofensa. § 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido." (Norma incluída na CLT pela Lei nº 13.467, de 13-7-2017) - Grifei. Não abordarei a questão dos critérios que devem ser levados em conta pelo magistrado para a fixação do valor da indenização (que, aliás, estão em sintonia com a posição doutrinária e jurisprudencial). O problema, como antecipei, está na fixação do salário do ofendido prevista no §1º da norma. Ora, o que é dano moral? Lembre-se que a palavra "dano" significa estrago; é uma danificação sofrida por alguém, causando-lhe prejuízo. Implica, necessariamente, a diminuição do patrimônio da pessoa lesada. Moral, pode-se dizer, é tudo aquilo que está fora da esfera material, patrimonial, do indivíduo. Diz respeito à alma, aquela parte única que compõe sua intimidade. O dano moral é aquele que afeta a paz interior de cada um. Atinge o sentimento da pessoa, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico, mas que lhe causa dor e sofrimento. É, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo. Uma imagem denegrida, um nome manchado, a perda de um ente querido ou até mesmo a redução da capacidade laborativa em decorrência de um acidente traduzem-se numa dor íntima. Em que pese o fato de essa dor não ser suscetível de avaliação econômica, uma vez que não atinge o patrimônio material da vítima, sentiu-se a necessidade de reparar o dano sofrido, nascendo, assim, o direito à indenização1. Porém, com características próprias, que a diferenciam da indenização do dano material. Com efeito, o substantivo "indenização", ainda que utilizado de maneira recorrente para tratar do quantum a ser pago àquele que sofreu o dano moral, não tem o mesmo sentido do termo "indenização" empregado para a reparação do dano material. Como se sabe, a palavra "indenizar", quando utilizada na relação com o dano material, tem como função reparar o dano causado, repondo o patrimônio desfalcado, levando-o de volta ao status quo ante. Logo, o termo "indenização" tem teleologia voltada à equivalência econômica, especialmente fundada na ideia de que todo bem material pode ser avaliado economicamente, podendo ser reposto por intermédio de seu valor em moeda corrente. Mas, no dano moral, não há prejuízo material. Então, a indenização nesse campo possui outro significado. Seu objetivo é duplo: satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá proporcionar ao ofendido uma satisfação, uma sensação de compensação capaz de amenizar a dor sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como punição ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto suficiente para dissuadi-lo de um novo atentado. Remanesce-se utilizando o termo "indenização" no caso do dano moral por dois motivos: um de ordem prática - lembra reposição de dano -, outro de conteúdo semântico - de fato o que se manda que o causador do dano moral faça é pagar certo valor em dinheiro. Logo, o substrato é ainda econômico. Aí está a grande dificuldade enfrentada pelos magistrados: a fixação do valor devido a título de indenização por danos morais. Como já dito, o dano moral é caracterizado pela dor, pelo sofrimento de alguém, em decorrência de um ato danoso; e justamente por ser um sentimento de foro íntimo, pessoal, tal dor é impossível de ser mensurada e, consequentemente, traduzida em cifras. A fixação de critérios para se encontrar um valor justo é bem-vinda. Nesse sentido, aqueles estampados no caput do art. 223-G da CLT foram bem elaborados e estão em sintonia com os utilizados em muitas decisões judiciais. O problema está no §1º desse artigo: como poderia o legislador colocar como teto o salário do trabalhador que foi violado? Respondo: não poderia. Em primeiro lugar, há o problema da colocação de um teto para a fixação da indenização para danos extrapatrimoniais, que aliás é o tema posto na ADI 5.870-DF, que questiona a constitucionalidade dessa norma. O Parecer da Procuradoria-Geral da República é no sentido de sua inconstitucionalidade2. E fixar um teto ligando-o ao salário do trabalhador lesado viola, penso eu, o princípio constitucional da igualdade. Isso porque, como acima exposto, o dano moral implica em dor, sofrimento, padecimento etc., situações íntimas da psiquê e da alma humana. E como a indenização em maior valor tem relação com sofrimento mais forte e/ou mais prolongado, fixar valores diferentes para os trabalhadores atingidos, unicamente com base no salário individual, significa dizer que aquele que ganha menos sofre menos; quem ganha mais sofre mais. Trata-se de um verdadeiro non sense, um absurdo e, também, algo preconceituoso. Aliás, seria altamente preconceituoso, por exemplo, dizer que a dor da diretora da empresa seria maior que a dor de sua secretária. Em caso de morte de algum ente querido isso é ainda mais patente. Quem pode dizer que a dor da perda de quem ganha mais é maior da de quem ganha menos? Acontece que é isso que a norma da CLT diz: aquele trabalhador que ganha mais terá direito a uma indenização por dano moral maior que a do trabalhador que ganha menos. E como essa indenização tem relação direta com o sofrimento da vítima, conclui-se que quem ganha mais sofre mais. Verdadeiro absurdo! Por isso, penso que também por este aspecto essa norma é inconstitucional3. __________ 1 E, claro, sem qualquer sombra de dúvida, pelo menos a partir da Carta Magna de 1988, que expressamente garante a indenização pelo dano moral. Por exemplo, nos Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. edição, p. 131 e segs) e no Curso de Direito do Consumidor (São Paulo; Saraiva, 13ª. edição, 2019, págs. 374 e segs). 2 Veja o Parecer. 3 Realço que a situação econômica da vítima é irrelevante. Sequer se deve perguntar da capacidade econômica daquele que sofreu o dano, porque não é em função disso que se vai fixar o valor da indenização. Ou seja, quer se trate de uma pessoa humilde e sem posses, quer seja uma abastada, isso em nada influi na determinação do quantum. Não se pode olvidar das características da indenização no caso do dano moral: ela é satisfativo-punitiva. O elemento satisfativo deve ser buscado no evento causador do dano e não na condição econômica da vítima. Por isso, não tem qualquer validade a alegação, muitas vezes utilizada, de enriquecimento ilícito da vítima. Quando o magistrado determina um valor expressivo como indenização, ele não está olhando para a condição econômica da vítima e/ou se a paga indenitária irá enriquecê-la, mas, sim, está lançando sua investigação no causador do dano. Enriquecer ou não em função da verba indenizatória é mero acaso, irrelevante para a fixação da quantia a ser paga. Portanto, também não tem importância conhecer o poder econômico da vítima.
O §7º do art. 226 da Constituição Federal garante o planejamento familiar como um direito fundamental: "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas1." O sonho de muitos casais é ter filhos e também o de muitas mulheres, independentemente de estarem num relacionamento com um homem. Mas, acontece que algumas mulheres, por problemas fisiológicos, não conseguem engravidar de forma natural. Como se sabe, com o avanço da ciência, passou a ser possível à mulher engravidar pelo procedimento da fertilização in vitro. O problema é que esse procedimento não é barato. E o que se percebe no mercado é que os planos de saúde, como regra, não cobrem esse tipo de procedimento, alegando falta de previsão contratual ou ausência de previsão no rol da ANS - Agência Nacional de Saúde. Antes de prosseguir, quero destacar que meu foco será o da necessidade de feitura de fertilização "in vitro" por impossibilidade clínica. A questão envolvendo o plano de saúde que me interessa neste artigo está ligada, portanto, aos casos em que, comprovadamente, a mulher não pode engravidar naturalmente. E, querendo engravidar e não tendo alternativa, vê-se obrigada a buscar o procedimento, sem receber cobertura do plano de saúde. E o que diz a legislação? Lembro, primeiramente, que incide na relação do (a) consumidor (a) com a operadora de plano de saúde o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e, naturalmente, a lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde2. Desse modo, ainda que haja algum tipo de previsão contratual, as cláusulas devem ser interpretadas favoravelmente ao (à) consumidor (a) (art. 47, CDC). E é exatamente a lei 9.656 que garante à consumidora o direito de pleitear que a inseminação "in vitro" seja custeada pela operadora do plano de saúde. No entanto, a redação de dois dispositivos dessa lei gera dúvidas de interpretação a exigir esclarecimentos. Cito primeiramente o inciso III do art. 10, que dispõe: "Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta lei, exceto: (...) III - inseminação artificial;" E agora o art. 35-C: "Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos (...) III - de planejamento familiar." Um leitor menos atento é capaz de imaginar que existe uma contradição na lei 9.656/98. Isso porque, está claro, com base no inciso III do artigo 10, que a operadora do plano de saúde pode excluir de seu rol de atendimentos a inseminação artificial. Mas, no artigo 35-C da mesma lei está prevista a obrigatoriedade do atendimento ao planejamento familiar, que implica no reconhecimento ao direito desse mesmo procedimento. Seria contradição ou há outra explicação? Bem que o legislador poderia ter escrito as normas de forma mais clara. Todavia, penso que não há contradição. Explico. A exclusão do inciso III do artigo 10 diz respeito à mulher que, podendo engravidar naturalmente, opte pela inseminação artificial. Já a regra do art. 35-C diz respeito à mulher que sofra de alguma doença ou impedimento fisiológico que a impeça de engravidar naturalmente. Nessa hipótese, sem alternativa, ela recorre à inseminação in vitro. Isso porque é a única alternativa dela engravidar. Vê-se, portanto, que a norma do art. 35-C garante o planejamento familiar nos casos de impedimento natural para a gravidez. Desse modo, posso concluir que não pode a operadora do plano de saúde deixar de atender à mulher que, comprovadamente não podendo engravidar e que tenha indicação médica para fazer o procedimento, recorra à inseminação in vitro para buscar realizar esse sonho garantido no texto constitucional. __________ 1 A Lei 9.263, de 12-01-1996, que regulamenta o §7º do art. 226 da CF, garante os procedimentos de aumento de prole, inclusive com atuação do SUS. Aqui neste artigo estou enfocando apenas as obrigações das operadoras de planos de saúde. Eis o texto dessa lei. 2 Nesse sentido, para evitar qualquer dúvida, veja-se a súmula 608 do STJ e Súmula 100 do TJ/SP.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

À procura do bom senso

Neste último artigo do ano, levanto uma questão que deveria estar na ordem do dia: onde está o bom senso nesta nossa sociedade capitalista e democrática? Distorções, decisões absurdas com consequências disparatadas. E parece que vamos nos acostumando. Bom senso é um conceito ligado às noções de sabedoria e de razoabilidade. Ele diz respeito a capacidade da pessoa de fazer bons julgamentos e escolhas levando em consideração a realidade social, natural e humana e também as normas legais, morais e costumeiras, avaliando causas e consequências. Seria, posso dizer, uma forma de pensar ou filosofar natural do indivíduo na análise da experiência da vida cotidiana. É algo intuitivo e que envolve pensar a fazer a coisa certa. Não se deve confundir bom senso com a ideia de senso comum. Este pode, às vezes, até refletir uma opinião errônea e preconceituosa sobre determinado objeto. Já o bom senso está ligado à ideia de sensatez. Aristóteles dizia que o bom senso é um elemento central da conduta ética. Uma capacidade virtuosa de achar o meio termo e distinguir a ação correta. Já apontei em outro artigo que se pode ter dificuldade de encontrar a inteligência humana. E o mesmo pode ser dito relativamente ao bom senso. Vejamos mais uma vez a democracia, no incrível caso do Brexit, que está encalacrado. O resultado do referendo/plebiscito1 no Reino Unido que resultou no episódio da saída da União Europeia foi uma catástrofe. Dos 46,5 milhões de eleitores, apenas compareceram às urnas 72,2% (33,5 milhões). Desses, 51,9% votaram pela saída do bloco europeu e 48,1% pela permanência. Feitas as contas, o resultado é que apenas 17,4 milhões de eleitores ou seja, 37,47% do total, votaram a favor da saída. "Ampla" minoria, portanto (e ainda por cima, segundo pesquisas, foram os mais velhos que votaram, deixando essa herança para os mais jovens). Com tanta gente cuidando do mesmo assunto, com tantos pensadores ingleses, escoceses, europeus etc., como é que foram organizar um plebiscito, cujo resultado seria tão importante, com a possibilidade de que a decisão pudesse se dar com tão pequena margem de votos e sem levar em consideração a participação percentual dos votantes em relação à população? E ainda por cima num turno só? Outro exemplo: o empresário Elon Musk está investindo cerca de 10 bilhões de dólares para levar alguns outros bilionários a passear até a lua2. No projeto intitulado Space X, o primeiro a se aventurar será o magnata japonês Yusaku Maezawa. O lançamento está previsto para 20233. Até esse ano de 2023, quantos seres humanos terão morrido por falta de alimentos, problemas de saneamento básico e coisas simples como ingerir água potável? Pois é. Temos aviões supersônicos, espaçonaves que frequentam planetas distantes, bombas nucleares espetaculares (e perigosíssimas), mas não conseguimos combater simples mosquitos que picam e matam as pessoas (Sei que não é tão fácil combater esses "bichinhos", mas fica a constatação). Houve avanços como aqui já coloquei. Você leitor, deve lembrar que, antigamente, era permitido fumar dentro dos aviões. Mas, claro, apenas em parte das poltronas. Por exemplo, da de número vinte até a número 40. Nas demais, não podia. Só esqueciam de dizer para a fumaça que ela ficasse alojada nos mesmos compartimentos. Era o mesmo em restaurantes. E o irmão de meu amigo, que é engenheiro, teve sua carteira de habilitação suspensa por ter furado o rodízio algumas vezes no período de um ano. Chateado, cumpriu o ritual exigido para poder dirigir novamente. Quando foi ao posto do Detran, gostou do que viu: tudo se deu de forma organizada e rápida. Mas, não é que o funcionário fez com que ele escrevesse um texto a mão, a partir de um ditado? Ele perguntou: "Pra que isso?". "Para provar que o senhor saber ler e escrever". "Mas eu sou engenheiro. E, na verdade, tenho carteira de habilitação há 20 anos". Não adiantou, teve que escrever o ditado. Incoerência e falta de bom senso. Se olharmos bem, encontraremos muitos exemplos em todo lado. É um bom exercício de observação. Há muita coisa ruim acontecendo pelo mundo afora e uma incrível falta de bom senso. __________ 1 Estou usando os termos de forma indiscriminada, embora haja alguma diferença entre eles: como se sabe, o plebiscito é utilizado para consulta sobre tema que esteja numa fase anterior à elaboração de alguma lei proposta pelo governo ou parlamento. Referendo é uma consulta popular, no qual a população se manifesta sobre uma lei ou ato constituído, ou seja, é uma votação convocada para ratificar ou rejeitar o que já existe.2 Spacex, de Elon Musk, vai levar milionário e artistas para a lua. Há dúvidas se o custo será de 10 ou 5 bilhões de dólares. Ver próxima nota. Mas, claro, isso não importa muito.3 Magnata japonês Yusaku Maezawa será primeiro turista lunar da SpaceX.
Lembro, neste artigo, extraído de meu livro Be-a-bá do Consumidor, alguns cuidados que se deve ter nas compras dos presentes das crianças para o Natal que se avizinha. Na correria natural de fim de ano é comum esquecer-se de alguma coisa. Ademais, a compra é compulsória e emocional. Por isso, penso que vale a pena relembrar algumas dicas que podem envolver as dificuldades para a escolha, a necessidade de testar brinquedos, os problemas das trocas etc. Em primeiro lugar e como sempre, lembro que não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Nem se deve deixar levar pela aparência inicial ou pela boa conversa do vendedor. Vale pesquisar e não comprar por impulso. Nesse tema, a internet é hoje uma grande aliada do consumidor. Vale a pena pesquisar na web e, claro, também nas próprias lojas. E pechinchar pode ser um bom negócio. Vale aproveitar a chance e exercer esse direito básico do consumidor, que é pechinchar, pedir desconto, negociar com o vendedor. Anoto que fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetido não é obrigação do comerciante. Contudo, se ele propõe a troca, tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. Trata-se de oferta e esta vincula o ofertante, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Essa oferta de troca torna-se, inclusive, típica obrigação contratual. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Algumas lojas, porém, impõem algumas condições inconvenientes como, por exemplo, não efetuá-las aos sábados, o que é abusivo. Isso porque não tem fundamento legal e do ponto de vista contratual a exigência é exagerada. Não tem sentido impor o dia para a troca. O que se admite é a fixação de um prazo máximo para fazê-la. Há ainda alguns outros problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota de compra e venda ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, a saída é guardar a nota fiscal e, se necessário, usá-la. De todo modo, atualmente, muitas lojas se modernizaram e entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., procedimento que deveria ser adotado por todos os estabelecimentos. Outro aspecto que deve ser levado em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta foi removida. Para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja retirada até que o presente seja experimentado e aprovado. Mas, com ou sem etiqueta, o comprador não perde o direito à troca, pois é mais uma exigência abusiva. Não se pode esquecer de perguntar se a loja faz troca do brinquedo e em quais condições. Alguns comerciantes negam-se a fazer troca de brinquedos que apresentem problemas de funcionamento (vícios), limitando-se a mandar o consumidor para a assistência técnica. Assim, para evitar transtornos, vale perguntar antes de comprar se o estabelecimento faz troca em caso de vícios (o que, aliás, é sua obrigação legal) e decidir se vale a pena comprar lá. É importante testar o brinquedo na loja, inclusive os eletrônicos. Não se pode esquecer que, apesar de se poder trocar ou consertar posteriormente o brinquedo com defeito, a criança que ganhou o presente - às vezes tão esperado - já se frustrou. É verdade, que nessa época do ano, com as lojas cheias é mais difícil fazer os testes, mas vale a pena insistir assim mesmo. Se não der por algum motivo justo, então a saída é testar o brinquedo logo que chegar em casa. É preciso atenção com a questão da adequação do brinquedo à idade das crianças. Brinquedos muito sofisticados e caros nem sempre satisfazem. Alguns são complicados; outros fazem tudo sozinhos e a criança só fica olhando. Além de ser bom que a criança participe ativamente do uso do brinquedo, é necessário que ele possibilite a utilização do raciocínio e da imaginação. No caso de jogos, há que se checar a idade para a qual os fabricantes os indicam. É necessário um cuidado especial com certos produtos, o que vale para todas as crianças e especialmente para os bebês: não se deve adquirir objetos pontiagudos ou cortantes, nem os que tenham cordões que o bebê possa enrolar no pescoço; da mesma forma não se deve adquirir pequenos objetos que as crianças possam engolir; e o mesmo cuidado deve-se ter com sacos plásticos, por causa de sufocamento. Os materiais devem ser laváveis e as tintas e demais componentes devem ser atóxicas e não descascarem. É bom lembrar: apesar da responsabilidade dos fabricantes, são os pais que devem, em primeiro lugar, estar atentos para o que adquirem. Os pais são diretamente responsáveis por checar os brinquedos que estão na posse de seus filhos. É fundamental examinar mesmo depois da compra, direta e detalhadamente o brinquedo, verificar se não há peças que podem se soltar, pedaços pequenos que as crianças podem colocar na boca, se não há partes pontiagudas etc. É importante, também, checar os brinquedos que as crianças ganham de terceiros, inclusive, aqueles distribuídos nas festas dos amigos das escolas (conselho que vale para todas as festas das quais as crianças participam). Não é incomum que nessas festas sejam dados brindes de má qualidade que podem causar danos. Além disso, os pais devem fiscalizar a qualidade dos brinquedos mesmo depois de usados pelas crianças. Os brinquedos, com o desgaste, podem acabar gerando os mesmo problemas que produtos novos mal feitos. Esse tipo de vigilância constante deve sempre ser exercido pelos pais. É preciso cuidado com informações enganosas, especialmente as oferecidas nas embalagens. É bom saber que, às vezes, a enganosidade pode estar nas fotos e informações nelas contidas. Nem sempre a apresentação corresponde ao produto real. Se o produto tiver garantia do fabricante, o certificado deve estar junto do mesmo. E, os brinquedos, jogos e outros produtos que devem ser instalados e usados mediante instruções devem ter manuais claros, escritos em português. Não se deve instalar ou utilizar o produto antes de ler, entender e seguir à risca as disposições trazidas pelo fabricante. Não se pode esquecer que as crianças crescem rapidamente, bem como mudam de hábitos, desejos e necessidades com a mesma velocidade. Assim, vale a pena levar em conta tais fatos para adquirir, por exemplo, roupas, comprando-as sempre um pouco folgadas e nunca em quantidades exageradas. E por fim, uma dica muito importante: dar livros é fundamental, também levando em consideração a idade da criança. O mercado está repleto de excelentes livros para todas as idades e alguns são bem baratos. É um presente de total utilidade. Pode-se, claro, dar outros presentes, mas um livro junto deles é sempre muito bom.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Black Friday - O CDC ainda está em vigor!

Descontos são bons... Se precisamos do produto! Passamos por mais uma Black Friday apelidada por aqui, com muita razão, de Black Fraude, mas isso parece que não tem muita importância. Nem preciso referir as matérias publicadas pelos veículos de comunicação mostrando algo que acontece todo ano nessa promoção abrasileirada dos falsos descontos: foram centenas de reclamações dos consumidores1. A tática é antiga: aumenta-se o preço alguns dias antes e depois aplica-se um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais que por aqui se faz). Ou então, como foi mostrado na mídia, simplesmente os preços são mantidos2. Que promoção que nada! Chega a ser cansativo. A legislação brasileira é abertamente violada e ponto. Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços". Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa." E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Aguardemos, pois, as investigações das autoridades para que os culpados sejam punidos. __________ 1 Black Friday 2018 tem recorde de reclamações; principal queixa é maquiagem de preço. 2 Quer comprar um celular na Black Friday? Confira se o preço caiu.
Neste ano começou mais cedo. E foi na cidade de Niterói: deslizamento, mortes, destruição. E nem começou a temporada de chuvas. (Mas saiu do noticiário após a quase queda do viaduto em São Paulo...) Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. Como se sabe, a legislação brasileira é clara a respeito. A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Lembro que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. É necessário apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Antes de prosseguir, lembro também que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau de participação (culpa) da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Naturalmente, os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. E além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo, que levará em consideração dentre outros elementos a assistência às famílias das vítimas, o grau de participação ou omissão dos agentes públicos, a necessidade de punição exemplar etc.
quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Os consumidores querem mesmo proteção?

Caro leitor, eu estudo e penso a questão da defesa do consumidor há mais de 30 anos, desde a década de 80 do século passado, quando, na Faculdade de Direito da PUC/SP, começou-se a estudar o tema. Isso antes da edição do Código de Defesa do Consumidor (que, como se sabe, é de 1990). E meu primeiro livro sobre o assunto é de 1991. Nesses anos todos, foram muitas as vezes que me perguntaram e eu mesmo me indaguei: será que o consumidor quer mesmo ser protegido? Por vezes parece que ele quer ser enganado ou prefere ser enganado do que aceitar a verdade. Não há dúvidas de que ele precisa de proteção, mas seria bom se ele (se) ajudasse. Vejamos mais uma vez como o consumidor se envolve com o marketing, com a oferta, com a publicidade etc. Lembro de uma antiga publicidade na qual aparecia uma modelo muito bonita com um corpo escultural e que dizia algo mais ou menos assim: "Oi, eu tenho esse corpo porque uso....". Daí, ela falava o nome do produto, um massageador. Quando fui perguntado em sala de aula sobre o anúncio, de pronto respondi: "Para a propaganda não ser enganosa, a personagem teria de completar a fala, dizendo: E faço controle alimentar com um nutricionista, já fiz lipoaspiração, fiz implantes, faço muitos exercícios na academia todos os dias etc.". Na ocasião, curioso, fiz uma pesquisa para ver as reclamações existentes contra o produto ou, pelo menos, contra a propaganda, que era descaradamente enganosa. Mas, nada encontrei. Por quê? Na verdade, muitas vezes o consumidor não gosta de declarar que foi enganado, especialmente nos casos em que a mentira é muito evidente. Ele tem vergonha de confessar. É como na fabula da raposa e as uvas: apesar da fome, prefere dizer que as uvas estão verdes. Ele convence a si mesmo de que deu azar. Para ele o produto não funcionou, mas ele não foi bobo de acreditar em algo tão descaradamente falso. Como é que se diz mesmo na atualidade? As pessoas acreditam no que querem acreditar. E nenhum de nós está livre desse sistema. Vejam o que sempre ocorre nas eleições e, claro, também nas recentes. As pessoas acreditam em todo tipo de pesquisa, ainda que nas eleições anteriores os mesmos Institutos que as fazem, em alguns casos, errem feio (E, claro, muitas vezes acertam). E, pior, acreditam nos comentaristas, muitos deles absoluta e claramente parciais. Como se diz atualmente: há fake news. Sim, mas há também fake opinion e fake publicity. Aliás, como poderia dizer o consumidor ou a consumidora que comprou o "aparelho mágico" que deixa o corpo maravilhoso, "só não vê quem não quer". Esse fenômeno de se acreditar em qualquer coisa não é novo. Talvez exista desde sempre. E há exemplos incríveis. No livro "Ciência e Pseudociência", Ronaldo Pilati conta alguns1. Veja este: em 1997, os adeptos da Seita Heaven's Gate acreditavam que o mundo acabaria e que a salvação, para seus membros, estaria em uma espaçonave que seguia o cometa Hale-Bopp. Alguns integrantes tiveram a ideia de comprar um telescópio para produzir evidência de que a nave existia. Focalizaram o cometa, mas nenhuma nave. O que fizeram então? Levaram o telescópio à loja e pediram o dinheiro de volta, pois era um produto com defeito2... Veja-se outro episódio recente que gerou uma incrível discussão: o do músico Roger Waters, marqueteiro de primeira linha, que usou no Brasil a mesma tática que usa em alguns lugares do mundo para se promover falando de políticos. Sempre dá certo. Mas, muitos não conseguem ver o jogo que ele faz. Não é só ele que faz. Há outros como, por exemplo, Bono Vox do U2. É mesmo impressionante as cifras que esses artistas faturam como grandes capitalistas que são, fingindo não ser. É a versão musical do massageador que gera um corpo extraordinário. E a fã ou o fã, como uma consumidora apaixonada ou consumidor apaixonado, não percebe. Isto é, não quer ver. O fato é que, essas versões dos fatos são enfiadas pela goela das pessoas e repetidas tantas vezes que soam como verdades. Estratégias de marketing mais fake news mais fake opinions. As pesquisas mostram que as pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. O que se percebe é que os consumidores estão tão absorvidos pelo mundo do marketing, da publicidade, das compras, que não conseguem se dar conta dos direitos que poderiam ter. Eles vão sendo amaciados e tornam-se passivos na avaliação do real, acatando regras, contratos, imagens, textos, notícias, pronunciamentos, ou pior, diante de uma realidade que, melhor avaliada, levaria a descoberta da verdade, acabam aceitando-a porque foram acostumados ao cômodo e inexorável andar das circunstâncias que não lhes pertence. *** ET.: Voltarei ao assunto, pois penso que as redes sociais - ao contrário do que alguns dizem - são uma esperança a favor da busca dos fatos verdadeiros e da informação verdadeira, assim como possibilitarão uma maior liberdade ao pensamento de cada um. __________ 1 São Paulo: Editora Contexto, 2018. 2 Idem, Ibidem, p. 17.
quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Os compradores compulsivos

O vício é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E o consumismo fez nascer um vício, uma doença típica da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, frequenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, joias, etc. e com isso, às vezes, nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em dinheiro toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. Mas, o comprador não percebe isso. Ele simplesmente passa um cheque ou uma TED que representa o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possui concretamente, pois está no banco. Quer dizer, está num número de conta. Nem no cofre da agência bancária está. Ou, então, passa um cartão de crédito e, neste caso, nem dinheiro precisa ter. O mercado, pois, insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um, mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados. Trata-se de mais uma característica da sociedade capitalista que é, simultaneamente, da falta e do desperdício.
quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O marketing é mais um tijolo na parede

Já tive oportunidade de lembrar que candidatos em eleições seguem o modelo típico da sociedade capitalista: são pensados e produzidos do mesmo modo que os produtos que os consumidores encontram nas prateleiras de supermercados e lojas de shopping centers. E o candidato é apresentado ao eleitor dentro da lógica da oferta e da publicidade à disposição dos partidos. Aliás, as campanhas contratam os melhores publicitários para montar a propaganda e atualmente contratam os que mais entendem de redes sociais. E até a embalagem é bem estudada: cortes de cabelo, roupas, maquiagem, a postura etc., tudo é muito bem arquitetado. E o que sai de dentro da embalagem? As falas. São planejadas, discutidas, ensaiadas, muito antes de serem pronunciadas, de tal modo que possam atingir os ouvidos, corações e mentes do público alvo (o eleitor). Assim, pronto o produto (candidato), ele é entregue ao mercado de consumo (público alvo, imprensa, organismos institucionais etc.) como algo a ser comprado num dia certo, o das eleições. Muito bem. Na semana passada, deu muito o que falar a "colocação política" de um dos fundadores da banda Pink Floyd, Roger Waters. Teve de tudo: críticas, elogios, vaias, aplausos, comentários na imprensa escrita, nas tevês, nas rádios, nas redes sociais, etc. Só pelo que eu escrevi no parágrafo anterior, algo chama a atenção: a publicidade massiva e gratuita. Isso mesmo! O que Roger Waters fez não passa da melhor estratégia de marketing conhecida. Conseguir espaço gratuito em todos os veículos de comunicação não é para qualquer um. Tinha que ser feito por um autêntico representante do capitalismo mundial. E, claro, os consumidores - admiradores ou não do músico - acreditam que é para valer. Mostro na sequência como funciona esse tipo de sistema. Roger Waters é um autêntico inglês, nascido em Surrey, Inglaterra. Ele se apresenta como simpático ao socialismo e ao comunismo, mas fatura como um autêntico capitalista. O ingresso mais barato para seus shows no Brasil custa R$180,00, passando por R$220,00, R$287,00, R$395,00, R$701,00 e chegando a R$1.620,00 (no camarote). É apenas mais um socialista caviar, como se diz. Aliás, se o músico realmente quisesse fazer alguma diferença visando ajudar a mudar o mundo, ele seria um dos que poderiam, de fato, contribuir. Como inglês, poderia candidatar-se ao Parlamento Britânico e até tentar ser o Primeiro Ministro. Certamente, poderia influir nos destinos do capitalismo e das injustiças do mundo. Será que ele não sabe que foi sua pátria-mãe, a Inglaterra, que inventou o capitalismo moderno? O capitalismo, sistema econômico baseado na propriedade privada, que produz os bens de consumo e os comercializa visando o lucro, foi definido pelo filósofo escocês Adam Smith em 1776 (no estudo A Riqueza das Nações) em meio à Revolução Industrial na Inglaterra. O sistema funciona nesse modelo até hoje com a ajuda, apoio, incentivo etc. do imperialismo capitalista britânico. O músico não gosta do Donald Trump? Ora, se ele quisesse fazer algo contra o presidente norte-americano, poderia, sendo político britânico, lutar para que sua Imperialista Coroa não apoiasse o presidente que ele chama da fascista. Dou apenas um exemplo: em abril deste ano os EUA atacaram a Síria com o apoio explícito do Reino Unido e da França. Caro leitor, não pense que estou aqui a criticar o músico. Na verdade, estou apenas mostrando a eficiência de sua tática típica de mercado. Resolvi escrever este artigo apenas para demonstrar do que se trata. É um exame da estratégia de capitalista inglês como ele é. Ele sabe muito bem manipular a opinião pública e seus fãs (clientes/consumidores). Se tem alguma coisa autêntica na tática, ela é certamente a que envolve as técnicas de mercado que visam a faturar cada vez mais, aumentando as receitas e o lucro. Como na letra da famosa música do disco The Wall, permito-me fazer uma inversão para mostrar como funciona o marketing do capitalismo atual: a "fala política" do músico não passa de mais um tijolo no muro ("Another brick in the wall").
Nesta semana, comemora-se o Dia das crianças. A essa altura, quem podia comprar já comprou os presentes para serem entregues, como manda o calendário comercial-capitalista da ocasião. Quero, então, mais uma vez, aproveitar a data para propor uma reflexão sobre o tema. Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo assustador que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo vendida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício se resume a adquirir produtos e serviços cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. Vamos, pois, alguns de nós adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos se medem pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o cidadão se aliene nas compras e acredite na publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê ou navegando na web, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade os clientes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderir a operações casadas ilegais, etc. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de smartphones mágicos; de alimentos exuberantes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos. É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas? Com mais influência que em relação aos adultos. Mas, claro, há muitos pais absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlar seus filhos, o que é uma pena. Não que seja fácil. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco de tempo para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu tempo limitado de uso da internet, são suficientes também apenas alguns minutos para a explosão de ofertas. E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Não é mesmo fácil. Mas, é lição de casa que precisa ser feita. Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar. O outro lado do risco da atividade é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso de certas ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente -- é integrante típico do risco daquele negócio. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas e/ou terrestres geradas pelas cinzas do vulcão, que impedem a navegação nem pela interdição de aeroportos por conta de terremotos e tsunamis. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da reserva com recebimento imediato dos valores pagos.
A confusão está estabelecida. Nas redes sociais (o que é compreensível) mas também nos veículos de comunicação (infelizmente, o que não seria de se aceitar), estabeleceu-se uma confusão enorme no significado das palavras. O que era para ser claro e objetivo semanticamente falando ganhou sentidos opostos; o que devia ser obscuro em sua essência mais profunda, parece muito simples. Vou citar dois exemplos trazidos por meu amigo Outrem Ego. Ele, sempre preocupado com a clareza das comunicações, me perguntou: "Como é que alguém pode ser contra uma política de Direitos Humanos? Estes não seriam os direitos fundamentais de todas as pessoas?". Sim, sem dúvida. E colocando a questão da obscuridade onde deveria tudo ser claro, questionou: "Onde está escrito que quem é a favor dos Direitos Humanos é ao mesmo tempo a favor de bandidos?". De fato, não só não está escrito, como ninguém duvida que quem comete crimes deve ser punido e cumprir a pena a qual foi condenado (a). Entrando mais ainda na seara do obscuro tratado com singeleza, perguntou: "Quer dizer que quem é contra o aborto é fundamentalista religioso ou antifeminista? Pois saiba meu amigo, que não sou fundamentalista religioso, embora cristão e sempre fui feminista, sempre defendi o direito à igualdade de todos, homens e mulheres". Realmente, essa retórica é simultaneamente simplista e superficial. Há muitas mulheres contra o aborto e a favor de seus direitos como iguais, feministas sem serem abortistas. São apenas dois casos, mas simbolicamente importantes para que possamos refletir sobre o problema. Não estamos vivendo apenas uma era de radicalizações de lado a lado. É pior: as pessoas estão confundindo os significados de conceitos que são muito caros para um bom entendimento das virtudes dos seres humanos. Some-se a isso a ideia (e realidade) de que a pós-verdade é um dos elementos mais marcantes da sociedade atual e corremos o risco de viver um caos comunicativo. Eu sei que existem comunicações claras e comunicações obscuras. Entre os dois extremos há, certamente, uma ampla zona cinzenta na qual cada um pode tomar o partido que quiser, mas é preciso que nos extremos nós possamos ter certeza do que está sendo dito, feito e comunicado, sob pena de tudo se perder num enorme cipoal de palavras. Nós que somos da área jurídica, muitas vezes, pensamos que tudo pode ser dito ou escrito e a respeito de qualquer coisa. Mas, não é nem pode ser assim. Ainda que a chamada Ciência do Direito não seja exata como as matemáticas, tem que haver um núcleo de comunicação em que a segurança se estabeleça. Segue um exemplo que eu gosto de dar: num estádio de futebol estão 1.000 bacharéis em física e química. No centro do gramado está colocada uma vasilha cheia de água sobre a boca de um fogão acesso. A água começa a ferver. Distribui-se um questionário com a seguinte pergunta: "A água está fervendo. Qual é a temperatura dela em Celsius: a) 80 graus; b) 100 graus: c) 30 graus e d) 55 graus". A resposta todos conhecem. Não é uma questão de opinião. Se algum dos bacharéis presentes não quiser apontar 100 graus porque pensa diferente, então, ele simplesmente errou a resposta. E ponto. No Direito, isso é possível? E nas comunicações sociais seria possível também? No Direito, tem que ser, em alguma medida. Por mais que a linguagem jurídica seja fortemente retórica, certamente há de haver algumas questões que se possa fazer a bacharéis em direito a que eles respondam num mesmo sentido. Aliás, se assim não fosse, como é que os professores fariam avaliações na Faculdade de Direito? Ou como é que se fariam avaliações nos exames da OAB ou para ingresso em qualquer carreira jurídica? E nas comunicações sociais? Parece mais difícil, isso é certo. Mas, nem tudo o que se diz pode passar como verdadeiro ou como falso. Nem tudo o que se diz pode ficar sujeito a diversas interpretações díspares. Afinal, quando alguém dá "bom dia", o sentido imediato deve ser o de um cumprimento, ainda que o dia não esteja lá essas coisas. A verdade é que, com ou sem eleições, com ou sem paixões exacerbadas pela defesa de temas novos ou antigos, com ou sem defesa de assuntos polêmicos, a manipulação das comunicações sociais fica cada dia mais clara, ainda que, para nosso espanto, nem sempre seja fácil identificar o agente manipulador.
quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Está na hora do voto facultativo

Aproveitando as eleições que se aproximam, volto ao tema do voto facultativo, algo que envolve a sociedade de consumo no viés da atuação política dos consumidores-cidadãos e seus representantes eleitos. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, esse do fato do voto ser obrigatório entre nós. De todos os países do mundo, apenas 21 ainda adotam esse modelo, sendo 10 na América Latina e do Sul1. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever2. Penso que o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há que ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a sua aquisição. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em xeque no Brasil. Para ser ter uma ideia, uma pesquisa publicada pela Revista Exame mostra que 79% dos brasileiros não lembra do nome em quem votou em 20143. Esse dado comprova que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota, como, por exemplo, tirar passaporte. Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo. Agora um outro aspecto: como também já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles estejam, de algum modo, então, em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Os cidadãos-consumidores têm que se comunicar livremente com seus representantes. A propósito, se olharmos para uma série de reinvindicações feitas nos últimos meses e anos, veremos que boa parte delas envolve direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e mais segurança pública. Esses pleitos são bem-vindos e representam o direito que têm os cidadãos de se manifestar livremente e de exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos; e, também, que a política seja executada de forma honesta e transparente. Por isso tudo, penso que a liberdade para o voto é um objetivo a ser perseguido. __________ 1 O que é voto obrigatório? 2 O voto obrigatório no mundo e (2) Voto obrigatório no mundo. 3 79% dos brasileiros não lembram em quem votaram para o Congresso.
quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O mercado é capaz de se autorregular?

Há quem acredite que, deixado à própria sorte, o mercado se autorregule e, com isso, resolva uma série de problemas dos consumidores, inclusive oferecendo melhores produtos e serviços a menores preços. De fato, na atualidade, é possível encontrar empresários e empresas que realmente se preocupam com a qualidade de seus produtos e serviços, com a questão ambiental, com entrega de parte do lucro a causas sociais, etc. Mas, são uma minoria. Infelizmente. A verdade é que o mercado precisa de regulação sim. E, ao menos no caso brasileiro, não só por determinação constitucional e legal, mas também por questão de ordem política e social, o Estado é o responsável pela fiscalização de tudo o quanto ocorre no mercado de consumo. Quando me refiro a Estado quero dizer todos os entes da Federação nas suas esferas de competência: a União, os Estados-membros e os municípios. É verdade, também, que uma parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado tem uma certa autonomia em relação à fiscalização do Estado, tais como a indústria e comércio de vestuário, a produção e distribuição de livros, jornais e revistas, a oferta de cursos livres, etc. No entanto, um amplo setor da economia está atrelado às determinações do Estado diretamente ou por intermédio de suas agências e autarquias e/ou são explorações autorizadas a funcionar apenas pelo Estado ou mediante concessão. Não é porque o Estado privatizou certos setores que não tem mais responsabilidade sobre eles. Ademais, não adianta acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" de mercado que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: os empresários modernos e as grandes corporações que eles dirigem querem faturar mais alto, nem que para isso eles tenham que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Para lucrar mais, esses empresários acabam correndo mais risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. E, com o fenômeno da chamada globalização (que tem mais de 20 anos), o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc, as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. As conhecidas marcas mundiais passaram a atuar cada vez mais no marketing de manutenção da grife e, em alguns casos, tais marcas foram produzidas já no ambiente globalizado iludindo os consumidores que acabam adquirindo a marca em detrimento do próprio produto. Dizendo em outros termos: o fato do produto ou serviço ser oferecido por marca conhecida mundialmente não garante sua qualidade. Pode até ser que outrora o produto feito na matriz em que foi criado fosse bom, mas não se pode mais garantir que continue sendo, na medida em que são produzidos em locais que não têm mão de obra qualificada e ambiente de trabalho solidificado na experiência. Ora, como a regra mercadológica é faturar, ainda que piore a qualidade e a segurança dos produtos e dos serviços, exige-se maior participação do Estado diretamente na economia. É um grave erro o Estado sair do mercado, deixando que este resolva os próprios problemas criados. Muitas vezes, é apenas o Estado que pode resolvê-los. Mas, é evidente que de nada adianta ter uma regulação apenas para inglês ver. Cito, por todos os demais, o exemplo do setor aéreo. Ali há de tudo um pouco de ruim: problemas de infraestrutura e administração nos aeroportos; esquemas escusos inventados e implantados pelas companhias aéreas contra os consumidores apenas com a intenção de aferir maior receita; ocorrência regular de overbooking; casos repetidos de atrasos e cancelamentos inexplicáveis; além dos novos mecanismos ocultos de faturamento expressamente autorizados pela Anac, dentre os quais se destacam a mudança das franquias de pesos nas bagagens, a cobrança pela marcação de assentos etc. Nesse setor a responsabilidade do Estado decorre diretamente de seu direito e de seu dever de fiscalização. As companhias aéreas não podem atuar sem a autorização direta dos órgãos governamentais e não podem também fazer promessas e ofertas ao público consumidor que violem o sistema legal. O mesmo se dá em vários outros setores: no de brinquedos, no de alimentos, no de medicamentos, no financeiro etc. Enfim, a cada dia que passa, apesar dos avanços propostos por algumas empresas, fica mais demonstrado que o mercado de consumo deve sofrer ação direta do Estado, em todas as suas áreas de competência e atuação, para garantir o mínimo de qualidade e segurança dos produtos e serviços oferecidos.
As promessas do candidato Ciro Gomes de que, se eleito, liberaria mais de 60 milhões de brasileiros que estão negativados nos serviços de proteção ao crédito deu o que falar. Mas, seria viável do ponto de vista do sistema de consumo estabelecido? É o que respondo na sequência. Bem, incialmente, já que estou falando de campanha política dos presidenciáveis e de Direito do Consumidor, quero lembrar que, de todos, o mais ligado aos direitos dos consumidores é o candidato Geraldo Alckmin, que é um dos principais responsáveis pela existência da lei. Como se sabe, o Código de Defesa do Consumidor, isto é, a lei 8.078/90, nasceu do projeto de lei de 1988 de autoria do então deputado Federal Geraldo Alckmin. Quanto à proposta do candidato Ciro, penso que ela não se sustenta, pelos seguintes motivos. 1) Boa parte dos inadimplentes que estão negativados podem já, neste instante, hoje mesmo, fechar composições amigáveis com os credores em condições favoráveis iguais ou melhores que as prometidas. Os bancos, por exemplo, em relação aos devedores que não possuem bens nem deram garantias (o que representa uma enorme parcela dos negativados) oferecem enormes descontos e parcelamentos bastante facilitados. Aliás, oferecem o tempo todo, mesmo que o devedor não peça. 2) Veja, caro leitor, o descalabro: no Brasil, praticamente metade dos devedores, são superendividados. São cerca de 30 milhões de pessoas1. Um mero acordo não resolve o problema deles. É necessário muito mais: educação, planejamento financeiro, mudança de estilo de vida e de consumo, etc. Cada caso tem peculiaridades próprias. 3) Agora pergunto: por que, afinal, os devedores não aceitam as propostas vantajosas que já existem? Tudo indica que a maior parte não aceita porque não tem condições de pagar de qualquer modo. Logo, nenhuma oferta resolveria o problema desses devedores. 4) Assim, a proposta do candidato de pagar essas dívidas (com grandes ou pequenos descontos) e fazer refinanciamento, pode, simplesmente, fazer com que o devedor troque de credor: antes era o banco A, agora é o banco público X. Ele continuará sem pagar, pois o problema dele é outro (como mostro na sequência). 5) Além disso, lembro que a lei garante que, sempre que o consumidor inadimplente feche acordo com o credor para quitar sua dívida à vista ou a prazo, ele pode exigir que seu nome seja retirado do serviço de proteção ao crédito. Já é assim. 6) O problema é mais profundo. Diz respeito à falta de educação financeira e -- simultaneamente ou não - da incapacidade de resistir ao assédio das ofertas turbinadas pelo marketing da sociedade de consumo. 7) Naturalmente, estão fora desse quadro todos aqueles que se endividaram por situações que fugiram ao controle, tais como perda de emprego, acidentes com a própria pessoa ou familiares próximos, doenças, do mesmo modo com a própria pessoa ou com seus familiares próximos, golpes sofridos com negócios etc. Há um bom número de pessoas nessa situação. 8) Retornando ao problema. Falta necessariamente capacidade para administrar as finanças controlando os gastos, optando pelas melhores e mais baratas formas de financiamento, deixando de comprar o supérfluo etc. Falta, pois, educação para o consumo. Educação financeira e planejada. Algo que pode e deve começar logo cedo com crianças e adolescentes e ser constante na vida adulta. 9) Existem manuais e aulas sendo oferecidos no mercado por associações de defesa do consumidor e até pelos Procons e bancos. Algo já implantado e que pode ser ampliado. Por exemplo, o Procon do Estado de São Paulo tem um Programa de Apoio ao Superendividado feito em conjunto com o Tribunal de Justiça de São Paulo, com inscrições on-line. 10) Tudo indica que a solução é a educação para o consumo. Nada além disso. Até porque a experiência mostra que a negativação do consumidor não é um mal em si. Muitas vezes, é a negativação do consumidor que evita que ele afunde mais ainda em suas dívidas. Não nos esqueçamos de que a negativação é um bloqueio às compras. E se o consumidor não consegue evitar que suas dívidas aumentem, ela pode ser de grande valia, pois impede que a situação se deteriore ainda mais. Repito: simplesmente retirar o nome dos órgãos de proteção ao consumidor sem que ele possa realmente quitar suas dívidas (à vista ou a prazo) e sem que ele aprenda a se organizar para as compras futuras é trocar seis por meia dúzia. Ele trocará de credor e brevemente voltará ao cadastro de inadimplentes. Simples assim. __________ 1 Segundo pesquisa do IDEC.
Como se sabe, no Direito do Consumidor, é decadencial o prazo para a apresentação de reclamação por vícios, conforme disciplinado no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), verbis: "Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito". Desde a edição do CDC, em meus livros e comentários, defendi que a reclamação que obsta a decadência podia - e pode - ser verbal. Na realidade, à primeira vista, a leitura do inciso I do § 2º do art. 26 traz fácil entendimento, uma vez que, realmente, a interpretação gramatical aponta um dos sentidos do texto: obsta a decadência a reclamação feita pelo consumidor ao fornecedor. Todavia, era de se perguntar: a) A reclamação pode ser verbal? b) Tem que ser feita pessoalmente ou pode ser pelo telefone? c) Tem que ser feita pelo próprio consumidor ou por alguma entidade de defesa do consumidor em seu nome? d) A que pessoa real no fornecedor a reclamação tem que chegar? Minhas respostas sempre foram as seguintes. É evidente que uma norma protecionista que tenha conferido prazos curtos (30 e 90 dias) para o consumidor agir e não decair de seu direito tenha que ser interpretada da maneira mais ampla e abrangente possível em relação à forma de constituição dessa garantia. Além do fato de que a regra básica é de proteção ao consumidor (art. 1º), reconhecido como vulnerável (inciso I do art. 4º), cuja interpretação necessariamente deve buscar igualdade real (art. 5º, caput e inciso I, da CF), para gerar equilíbrio no caso concreto (art. 4º, III) etc. Essas características devem ser levadas em conta para o sentido de tudo o que está estabelecido no § 2º. Assim, a lei exige que o consumidor comprove que fez a reclamação, mas nada impede que esta seja verbal, pessoalmente ou por telefone. A prova dessa reclamação, se necessária, será feita no processo judicial, por todos os meios admitidos. É claro que, para o consumidor se garantir plenamente e não correr o risco de perder seu direito, o ideal será que faça a reclamação por escrito e a entregue ao fornecedor: por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos; mediante o serviço de correios com aviso de recebimento; ou protocolando cópia diretamente no estabelecimento do fornecedor. Acontece que não se deve olvidar da realidade do mercado e da dinâmica do atendimento existente. São centenas de empresas que têm colocado à disposição do cliente os Serviços de Atendimento ao Consumidor, conhecidos como SACs1, exatamente para receber, via telefone, as reclamações relativas a vícios dos produtos e dos serviços. Supor que o consumidor, em vez de se servir desse atendimento oferecido, vá burocratizar a relação, preparando um documento escrito e remetendo-o pelo cartório, é ir contra o andamento natural das relações de consumo. Além do que, como o SAC é oferecido pelo fornecedor, como serviço posto à disposição do consumidor, ele integra a oferta e, como ela, vincula o ofertante (arts. 30 e segs. do CDC). Esta sempre foi minha posição, que me pareceu adequada ao modelo legal e ao sistema capitalista vigente. Pois bem. Recentemente, confirmando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, em Acórdão da lavra da ministra Nancy Andrighi, reconheceu expressamente o direito do consumidor fazer reclamação verbal e com isso obstaculizar o decurso do prazo decadencial2. Extrai-se do voto: "(...) 4. É causa obstativa da decadência, entretanto, a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca , nos termos do art. 26, § 2º, II, do CDC. 5. Infere-se do supracitado dispositivo legal que a lei não preestabelece uma forma para a realização da reclamação, exigindo apenas comprovação de que o fornecedor tomou ciência inequívoca quanto ao propósito do consumidor de reclamar pelos vícios do produto ou serviço. 6. A despeito de não haver forma prevista em lei para dar-se tal reclamação, é certo que, para que uma maior segurança do consumidor, o ideal é que a reclamação seja feita por escrito e entregue ao fornecedor por intermédio, por exemplo, do serviço de correios com aviso de recebimento, do Cartório de Títulos e Documentos ou, ainda, protocolando uma cópia no próprio estabelecimento do fornecedor. (...) 8. Com efeito, a reclamação obstativa da decadência, prevista no art. 26, § 2º, I, do CDC, pode ser feita documentalmente - por meio físico ou eletrônico - ou mesmo verbalmente - pessoalmente ou por telefone - e, consequentemente, a sua comprovação pode dar-se por todos os meios admitidos em direito". __________ 1 Para se ter uma ideia, no Brasil as médias e grandes empresas organizaram os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor), por meio dos quais recebem reclamações e pedidos de seus clientes por telefone e e-mail. São 622 SACs distribuídos em 49 áreas, segundo o levantamento feito pela revista Consumidor Moderno, n. 24. 2 Recurso Especial 1.442.597 - DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, v. u., julg. 24-10-2017 (CJe: 30/10/2017). Texto integral.
Um dos mais marcantes aspectos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), apesar de regrar uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores, é o de sua preocupação especial com a proteção coletiva, isto é, de toda a coletividade de consumidores. Se observarmos o título III da lei, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos como isso é significativo na lei 8.078/90. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de se esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. E existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental. Várias empresas de grande porte, quando acionadas em Juízo, fazem um esforço enorme para tentar desconstituir a ação coletiva atacando as associações que a propõe. Isso acaba por reforçar a importância das ações propostas pelo MP. E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, "quer mais", ele "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que eu chamo de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, numa mala-direta enviada por um grande banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por Telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Some-se a isso a eventual dificuldade de ligar para o banco visando o cancelamento. Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Somente uma Ação Coletiva teria eficácia na resolução desse tipo de problema. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, demorou a ser notado! Apesar dos avanços, a área jurídica ainda não respira uma atmosfera cultural de ações coletivas. Uma explicação possível para isso, diz respeito ao ponto da história em que elas foram trazidas para as relações de consumo. O CDC surgiu no cenário jurídico nacional com muitos anos de atraso, gerando um problema típico de memória. Explico: quase todos aqueles que militam na área jurídica formados até 1990 não entendiam as inovações que a lei trouxe, porque foram estudar relações de consumo com base no aprendizado obtido no Direito Privado. E mesmo depois dessa data, ainda demorou muitos anos até que os conceitos introduzidos no sistema jurídico pelo CDC pudessem começar a ser entendidos. O prestígio de nosso Código Civil de 1916 impregnou o modo de percepção dos estudiosos do direito que, com base no seu acervo mnemônico, acabavam interpretando -- e ainda o fazem -- as normas a partir do clássico modelo privatista. O vetusto Código Civil, que entrou em vigor em 1917, recebeu forte influência do direito privado europeu do século anterior, e que já não tinha plena relação com a nossa realidade. Ora, esse direito civil não estava aparelhado para atender as demandas típicas do processo de industrialização capitalista do século XX e seu modo de produção estandartizada, seus esquemas de oferta e marketing, sua capacidade de distribuição etc. E, apesar da edição do novo Código Civil (de 2002), que é muito mais moderno e atualizado que seu antecessor (incorporando, inclusive, vários aspectos que envolvem a sociedade capitalista atual), por influência, em parte, dessa legislação antiga e a interpretação que dela se fez, têm-se até hoje dificuldade para se compreender muitos aspectos da sociedade de massas, dentre os quais o sentido das ações coletivas. É por isso, por exemplo - repetindo o que acima disse -, que em pleno ano de 2018, ainda se tente discutir a legitimidade de associações de consumidores para defender os direitos da coletividade de consumidores.
quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Engana-me que eu gosto. Novamente.

Este é um tema recorrente para mim. Não só nas questões que envolvem consumidor e capitalismo, mas em muitas outras como análises econômicas, pesquisas científicas, discursos políticos, promessas de candidatos etc. O tema da enganação, mas não aquelas muito bem articuladas; falo de mentiras que, apesar de evidentes, nelas muitas pessoas acreditam. Para piorar o quadro, como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Isso facilita muito as coisas que envolvem falácias e mentiras, enganações explícitas e outras nem tanto. Como já disse aqui, existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios depois e que se safavam da inspeção. Outra versão, liga ao mesmo tema, diz que, em 1831, o governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real português para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Porém, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção no local da visita. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Li, há muito tempo, um livro de um escritor norte-americano, que mostrava vários casos nos quais o publicitário enganava o cliente. Atenção: o foco era a enganação do cliente pelo próprio publicitário (quem o havia contratado) e não a enganação do público alvo (o consumidor). Muito bem. Dentre os vários cases, ele contava um em que a agência de publicidade, depois de gastar milhares de dólares do cliente, gabava-se do sucesso da empreitada, que era vender mais sorvetes. Detalhe: foi feita uma campanha na praia no verão e deu certo! O autor disse: vender sorvete na praia no verão é fácil. O duro é vender no inverno debaixo da neve. Vejamos exemplos daqui: já há muito tempo, as agências reguladoras não cumprem a missão para a qual foram criadas, que é resolver conflitos entre as empresas públicas e privadas e seus clientes, regulamentando o setor, mas sempre respeitando as leis e direitos estabelecidos, em especial a legislação de proteção ao consumidor. E, como disse acima, o pior é que as decisões e ações das agências não são feitas de modo que pudessem iludir a plateia. Não. Elas são abertamente violadoras de direitos e enganadoras. Infelizmente, elas continuam agindo desse modo e a céu aberto. Lembro dois exemplos escandalosos: o da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, que não respeita o direito dos consumidores (como ficou claro no caso da franquia de coparticipação que pretendia implemantar nos planos de saúde, projeto do qual ela foi obrigada a recuar) e o da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, que comumente regula o setor para proteger as companhias aéreas em detrimento dos direitos dos passageiros (como a imprensa denunciou diversas vezes). Repito: a questão nem é de empresas ou entidades que agem de forma enganosa e/ou mentirosa. O que chama a atenção é o fato de que tudo é feito descaradamente. Há algo muito estranho no ar. Parece que existe uma espécie de atordoamento que permite que a frase do título deste artigo se torne, de fato, algo real e aceitável.