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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Jovens querem deixar o país

Recentemente eu li que um significativo número de jovens quer deixar o país (76% dos pesquisados). Uma notícia alarmante. Duas razões para o alarme. Em primeiro lugar com o êxodo da juventude haverá carência em todos os campos das atividades. Não teremos novos quadros para  impulsionar os setores produtivos, culturais, científicos e no setor público inexistirão novas lideranças políticas e administrativas  para ocupar os cargos de administração da Nação. As carências já existentes de homens aptos para gerir a política e a coisa pública  agravada pela debandada. Entendo que sair do país, especialmente aqueles que têm condições de contribuir para o seu aprimoramento representa uma incompreensível  falta de estima pelo Brasil e por seu povo. Sabe-se ter havido na história inúmeros exemplos  de imigrações que atingiram inúmeros países. O Brasil mesmo, desde o século 19 acolheu imigrantes de inúmeras Nações. Os estrangeiros que para cá vieram e seus descendentes se integram em nossa vida social e cultural assim como nos legaram positivas influências de suas origens. Todos os surtos imigratórios tiveram causas bem detectáveis a justificá-los. Eles foram marcados por insuperáveis carências em seus países. Fatores diversos, especialmente guerras e revoluções, reduziram as oportunidades de trabalho e suprimiram condições mínimas para a permanência de grande parcela das populações em seus Estados de origem. A imigração passou a ser uma solução de sobrevivência.     Será que estamos atravessando no Brasil de hoje um período de catástrofe social, uma revolução interna, uma ameaça de guerra externa ou de invasão de Nações estrangeiras, um caos na economia, uma avalanche destrutiva de fenômenos naturais? Não. É verdade que não estamos vivendo em um país onde reine a segurança, a igualdade social, uma economia sólida e produtiva, uma assistência integral e abrangente nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento. Estamos sim passando por não pequenas dificuldades. Mas, os nossos problemas não justificam a saída coletiva de brasileiros do país. Impõe sim a união, a crença e o amor à pátria. Tal como nos unimos em defesa da democracia e das instituições, salvo alguns adeptos do totalitarismo,  é essencial que os nossos esforços sejam empregados na supressão ou diminuição de nossas conhecidas mazelas. Sair do país, não. Devem permanecer para construir. É interessante que muitos  que desejam ir embora do Brasil   aqui deveriam ficar, acima de tudo porque a ele muito devem. Refiro-me aos quais foram proporcionadas situações favoráveis para progredir cultural e materialmente, a ponto de poderem  sair e se manter fora . Lembre-se,  tais condições eles as  encontraram no país que agora  querem deixar. Parece ter chegado a hora da parcela privilegiada mergulhar dentro de si e rever posicionamentos herdados do Brasil  imperial, patrimonialista, escravocrata. Desprezo, arrogância, auto suficiência, individualismo, preconceito e discriminação  marcam parte dos integrantes dessa autoconsiderada "casta". É a elite envergonhada de aqui ter nascido. O seu sonho seria ter origem em outras plagas. Retirou do país tudo aquilo que ele lhe pode proporcionar e agora quer ir ou mandar os seus filhos para fora. Fiquem e os deixem no país para retribuírem o que o Brasil lhes proporcionou. Dirão não temos oportunidade. Vamos cria-las. Só os da elite podem fazê-lo. Os menos favorecidos, aliás a enorme massa, quer  sobreviver. Eles sim não possuem condições  para sair do país. Os favorecidos, ao contrário podem tudo, até abandonarem o nosso barco.    O  trabalho é árduo e as mudanças necessárias. Interesses coletivos no lugar dos particulares. A solidariedade ao invés  do egoísmo. O bem público separado do interesse privado. A compreensão afastando a intolerância. O desprendimento em vez da ambição desmedida e da ganância; o amor em substituição ao ódio. São fórmulas piegas, poderão dizer. Não importa. Surtirão efeitos e  irão nos melhorar. Talvez a nossa esperteza excessiva, o apego ao consumo e ao acúmulo de bens materiais; a prevalência do  ter sobre o ser; a ânsia pelo protagonismo, pelas posições sociais de destaque tenham escondido ou feito desaparecer o nosso lado infantil, ingênuo, puro mesmo, mas pleno de entusiasmo, encantamento pelas coisas simples, alegria. O homem e a mulher brasileiros abandonaram algumas de suas marcas distintivas. Criatividade, agilidade mental, improvisação, adaptação a situações adversas, facilidade de relacionamento: o conhecido de agora é o amigo de sempre e tantas outras características deveriam ser reconhecidas, acolhidas e não rejeitadas. Ser quem e como somos e não como imaginamos ser: europeus ou americanos. Está na hora de sabermos quem somos e que Nação queremos construir. Manter o status quo, a favor de uma minoria ou construir um país para todos? Não somos melhores ou piores do que outras gentes, somos diferentes. Tais diferenças devem ser enaltecidas pois constituem as nossas marcas. Ficar no país é dever, trabalhar por ele é missão de todos.   
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O melhor e o pior da festa

Minha mãe dizia que o melhor da festa é esperar por ela. Não tenho dúvidas. A expectativa de momentos de felicidade, confraternização, abraços, emoção, palavras carinhosas e desejos de um porvir melhor nos proporcionam um grande bem estar. A ansiedade dessa espera é confortante, traz otimismo e entusiasmo. Há vezes até que a expectativa supera a própria festa. Mas isso não importa. Importa sim que façamos o possível para que a festa corresponda à espera.  Aguardar um acontecimento, no entanto, pode nos criar sensações desagradáveis. Como a perspectiva da alegria nos causa boas emoções o contrário nos aflige e incomoda. Com efeito, esperar maus momentos provoca inquietação, medo, insegurança e uma sensação desagradável de um futuro de consequências imprevisíveis. Mas, como na boa espera por vezes o acontecimento não é tão agradável quanto se desejava, também a má expectativa pode não corresponder ao fato sobrevindo, e esse ser melhor.  Eu agora transporto a festa acima referida para as eleições e o bom e o mau acontecimento para o seu resultado.  Considero o voto, como já disse alhures, um instrumento exemplar de igualdade. Ele iguala a todos, independente de raça, cor, sexo, religião. É talvez o único traço de união entre os membros da sociedade em um momento determinado. Todos, podendo, votam.  O sentimento generalizado quando da votação, para os democratas, é o de júbilo por estarem exercendo na prática um direito primordial que é o da escolha. É da natureza humana querer fazer as suas opções pelos caminhos que deseje trilhar. Trata-se de exercer a liberdade. E a escolha daqueles que irão governar assume uma dimensão extraordinária para cada eleitor. Ele rigorosamente está declarando quais são as suas esperanças  quanto ao encaminhamento das questões de interesse nacional. Está, nessa hora, determinando quais são as suas opções ideológicas e programáticas.  Pois bem, nova  festa eleitoral se aproxima. Claro, como em todas as eleições, as  expectativas que eram diversas no primeiro turno foram reduzidas para duas possibilidades. Parte da sociedade terá os seus anseios satisfeitos e a outra parte frustrados. Vale dizer, que a sociedade está esperando pelo melhor da festa que é a vitória do seu candidato e, igualmente, pelo pior que é a derrota. Isso significa, ansiedade, dúvida, expectativa do melhor e do pior, sentimentos que trazem desconforto. Esses sentimentos se projetam para o futuro na forma de insegurança, incerteza, otimismo e  pessimismo.  Como o homem não tem o domínio sobre o seu futuro, a sociedade, igualmente, não possui as rédeas do seu porvir e nem possui o controle dos destinos da Nação. No caso das eleições, após a escolha em quem votar, o cidadão adquire a certeza de que os dias, meses e anos  vindouros serão alvissareiros se o vitorioso for o seu candidato. Com a derrota ao contrário as perspectivas serão sombrias. Trata-se do melhor e do pior da festa.  Eu não me sentiria confortável se nesse momento deixasse de manifestar a minha opção eleitoral. Na verdade, reiterá-la pois já foi exposta. Quando o foi recebi críticas contundentes, por vezes ferozes de pessoas que se espantaram com a minha opção. E disseram a mim e a outros do seu inconformismo com a minha escolha. Como era possível que eu estivesse apoiando o candidato da oposição ao atual presidente. Ora, fiquei abismado, não com a posição contrária desses questionadores, mas sim com o questionamento que denota absoluta ausência de formação democrática. Aliás, bem coerente com a opção eleitoral que fizeram. O seu candidato jamais escondeu suas preferencias autoritárias e a sua nostalgia pelo período ditatorial.  Mas, voltando ao inconformismo para com a minha escolha. A pergunta que se impõe: qual a razão da minha preferência causar espanto e a deles não. Escolhi um candidato e eles outro. Assim é na democracia. Eu sim fiquei espantado, abismado com o espanto deles. Mostraram que não são democratas. Repito, foram coerentes.  Quero  realçar que aceito a sua escolha, como democrata que sou. Mas quero declarar  que, em relação à minha escolha, eles se esquecem que o meu candidato já governou o país. Não implantou o comunismo, como apregoam que fará; não invadiu casas; não comeu criancinhas; não estatizou a economia; não avançou nas nossas contas bancárias, como fez ex-presidente que apoia o atual. Fez escolhas corretas para o seu corpo de auxiliares, sem conotação ideológica como exemplo temos Henrique Meireles. Naquela época a festa correspondeu às expectativas.    Permito-me afirmar que a opção que  fizeram parece-me injustificável pois carrega uma enorme quantidade de dúvidas, especulações, inseguranças de caráter  institucional e social. A  paz, a segurança e a harmonia correm riscos concretos.  O presente artigo tem como foco o antes e o depois da grande festa eleitoral. Antes, venturosas expectativas de vitória do candidato da oposição. E, mais, de um porvir que atenda às expectativas dos que buscam viver em uma sociedade menos desigual, pacífica e democrática. 
segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Jô Soares um brasileiro

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalidade dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalidade no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecerá e sempre será visto. Essa sensação de eternidade física se deve à importância e à imprescindibilidade de certas pessoas. Não se admite a vida sem elas. Assim, eu imaginava que ocorreria com o Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos ele ficaria para semente. No entanto, ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos. Quais sementes? Várias, e correspondem às suas qualidades e características. Inteligência, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras. No entanto, eu quero testemunhar um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especificamente nos quatro anos anteriores a essa data. A sua brasilidade. A sua preocupação com o país. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentado pela intolerância, pelos riscos de ruptura institucional, pelas pregações destrutivas, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimento de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas etc. etc. Padecia com a irracionalidade de um governo que não ele via governar e se afligia com a crescente  desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado à destruição e  ao ódio. Talvez poucos homens de comunicação tivessem conhecido o Brasil e os brasileiros como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevistador, durante sessenta anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profissionais. Explorou com argúcia e profundidade todos os  escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevistado. Desta forma ele esmiuçava a sociedade. Dissecava os seus meandros, levantava o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com refinado humor, com absoluta liberdade e independência  jornalística. Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiador do nosso presente. Os tipos que encenava  nos programas de humor representavam os vários brasileiros habitantes dessa terra diversificada, plural, miscigenada. Uma terra quase incompreendida, que, no entanto,  ele retratava com a fidelidade possível. Semanalmente conversávamos. Possuidor de uma memória extraordinária deliciava-me com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão com Silveira Sampaio, considerado por ele como mestre das entrevistas televisivas. Outra figura por ele enaltecida, na área dos programas humorísticos, foi Max Nunes. Citava também um antigo colaborador da TV Tupi, canal 3, Tulio de Lemos. Deixava ainda patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsável pelas suas memorias. Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E, foram muitos. Mas, não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance a amizade de ambos não os separou. Como disse, a situação do país o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritária e antidemocrática em marcha. Queria saber dos movimentos de resistência da sociedade. Ações coletivas ou isoladas lhe davam esperança e alento.   Jô se foi, para minha decepção, pois o julgava imortal. Partiu o Jô brasileiro. O insubstituível  Jô Soares. Ficou o vazio, a tristeza, mas, especialmente ficaram as suas lições de amor ao próximo e ao Brasil.     
quarta-feira, 8 de junho de 2022

A violência estimulada se alastra

Antes de ser guilhotinado Manon Roland afirmou "Oh liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome". Eu me permito perguntar: segurança, quantos crimes e barbaridades tem você como pretexto, desculpa e até aplausos? Até quando vai se matar inocentes ou culpados, não importa. Não se pode matar. Só se pode matar em legítima defesa, circunstância prevista em lei e que justifica a conduta. No entanto, mata-se porque se quer matar. Invade-se uma comunidade, tiros são disparados sem que outros tiros tenham sido desferidos. E as balas atingem não só os alvos desejados como quem está nas ruas ou em casa ou em um bar, em uma loja, dentro de um carro, seja lá onde for as balas alcançam qualquer um. Dizem que são balas perdidas. E daí. É pior, pois demonstra que as armas foram acionadas a esmo. O atirador assume o risco consciente de matar quantos forem alcançados por seus projéteis. Ele aciona sua arma sabendo que ela poderá ser letal para qualquer um. Isso não o preocupa. Deve-se ter presente um pensamento do prêmio Nobel Soljenitsin no sentido de que a violência está sempre acompanhada da mentira. Com efeito, inverdades e invencionices servem para justificar os abusos e inverter as responsabilidades. As vítimas se tornam culpados.   Aliás, a violência desmotivada, desnecessária, criminosa tem como elemento propulsor um discurso oficial que estimula, incentiva e autoriza a barbárie assassina contra a sociedade. O que desencadeia a conduta predatória dos chamados agentes da lei, que, na verdade agem contra ela?  A luta contra o crime? Sim, admitamos que seja. Mas como e por que as mortes entram nesse combate? A única forma de se atacar o crime é matar o criminoso, o suspeito ou o inocente? Há algumas situações que justificam a ação repressiva, mesmo que eventualmente se ponha em risco a integridade física de terceiros, como, por exemplo, nos casos de trocas de tiros, agressões contra pessoas ou contra a própria polícia, intervenção no curso da prática de um crime, e algumas outras. Mas, como explicar a mortandade quando não há violência desencadeada? Chegar nos locais atirando; executar pessoas depois de já imobilizadas, como ocorreu na comunidade do Falet no Rio de Janeiro; partir da mera suposição de que irão atirar contra a polícia e antecipar os disparos tal qual fizeram no Jacarezinho e agora na Vila Cruzeiro, constituem ações que não podem ser denominadas de "Operações Policiais". Não, isso é chacina, assassinato em massa, crime contra a humanidade.  E mais, não se pense que a barbárie é cometida apenas contra grupos, com o receio de seus integrantes atirarem primeiro. Não, se está matando no atacado e no varejo. Não faz muito tempo matou-se alguém em um supermercado sufocando-o. Agora, no Estado do Sergipe,  asfixiou-se  um detido  já imobilizado dentro de um carro, atirando gazes dentro do veículo. Há anos houve dois episódios que muito me marcaram em São Paulo. Um motoqueiro, desarmado, foi morto pelas costas porque não parou quando instado a tal. E um casal de velhos japoneses feirantes que foram executados pois também seguiram com sua kombi, sem perceber que havia uma barreira policial. A memória não ajuda, mas posso afirmar que foram centenas os casos de mortes individuais ou coletivas provocadas por desastrosas ações policiais.   Aliás, crueldades também são cometidas por não policiais. Violências são registradas tendo como autores membros de seguranças privadas.  A violência igualmente está instalada no seio da sociedade, especialmente contra a legião dos desamparados e desvalidos. Até incêndios em corpos vez ou outra são noticiados. Os conflitos provocados pelas diversidades de origem social, cor da pele, opções sexuais, vitimam com frequência, pobres, negros, indígenas, homossexuais. Soma-se a esse rol as atrocidades contra crianças e mulheres. A intolerância que é geradora do ódio, atualmente, permeia o relacionamento pessoal. Manifestações antagônicas não mais são marcadas pela compreensão, pela tolerância e pela educação. Na verdade, esse autoritarismo de ideias representa a negação da própria democracia e da liberdade de pensamento. Haverá respeito desde que a opinião alheia coincida com a minha. Os estímulos à violência são constantes e insistentes, divulgados  basicamente, pela palavra falada, tendo como arautos autoridades que num plano hierárquico  influenciam os incautos e desavisados. Em regra, seus discursos pregam a discórdia e fazem apologia do povo armado. Mentiras, invencionices, bravatas, vulgarização da linguagem, falas impensadas, quando pensadas mal pensadas estão sensibilizando obtusos e fanáticos seguidores.  As arengas criminosas e as blasfêmias não respeitam pessoas, instituições do Estado, algumas religiões e credos, inclusive o Papa e os defensores dos direitos humanos foram alvos de infâmias. É imprescindível que incorporemos e divulguemos os valores da civilidade e do humanismo para não nos transformarmos em uma sociedade, já injusta e desigual, estigmatizada pelo ódio que inviabiliza a pacífica e harmônica relação entre os homens.
terça-feira, 22 de março de 2022

Lembranças que nos alimentam

Li um texto, primoroso texto, de Ignácio de Loyola Brandão. Abro uma pausa para declarar que a minha amizade e o meu afeto por ele constituíram um dos fatos mais prazerosos e gratificantes que me ocorreram nos últimos dez anos. Pois bem, o seu artigo versa sobre a nostalgia que sente da rua onde reside há décadas, a João Moura. A rua de hoje não é a mesma de antanho. Isso o entristece. A mudança ocorreu basicamente pela fúria imobiliária. No local de uma casa, pequena que fosse, existe um mega prédio abrigando centenas de pessoas. Assim está sendo em toda São Paulo. Já há algum tempo, do terraço de um apartamento, durante uma festa, alguém olhando um campo de futebol me disse "que desperdício nesse campo várias torres poderiam ser erguidas". Era um empresário, na verdade um grande tonto para quem o que importa é o lucro, a cobiça, e nenhum outro valor. Não pensou no lazer, o único lazer, que aquele campo proporcionava aos moradores das redondezas, talvez o único instrumento de distração e de sociabilidade para as comunidades do entorno. Ao ler o artigo de Loyola me veio à mente as minhas ruas Cubatão e Stella. Morava na primeira, mas vivia na segunda. Eu pertencia à gloriosa T.S. - Turma Stella. Muitos daquela época já se foram, mas ainda nos reunimos e conversamos constantemente sempre pelo telefone, nos negamos a falar online. Contamos as mesmas histórias, fazemos as mesmas gozações, rimos sonoramente os mesmos risos, queremos que assim seja até o fim. Aliás, assim é há quase setenta anos, por que mudar agora? E, que o fim demore. Na rua Stella e adjacências nós imperávamos. O nosso reino se estendia para o centro de São Paulo, quando atingimos idade para frequentá-lo. Antes e mesmo já jovens nós ainda brincávamos na rua. As brincadeiras eram  "lasca- romeu",  "mãe da rua" e "mãe da lata". Todas elas eram delicados folguedos onde os atritos físicos muitas vezes levavam ao desforço, sempre entre "tapas e depois beijos", ou melhor e depois cerveja. Devo dizer que mesmo as constantes desavenças com outras turmas, em especial nas festas, eram encerradas em algum bar, que servisse álcool para menores. Começamos as nossas atividades etílicas com quinze, dezesseis anos. As brigas naqueles tempos não eram cruentas. Ninguém matava. Tapas, socos e cerveja. Na rua Stella jogamos futebol. Naquele tempo chuteira era chanca e campo era cancha. O futebol era por nós praticado em qualquer lugar, qualquer canto onde houvesse algum espaço onde pudéssemos improvisar os gols, qualquer coisa servia para demarcá-los. Na rua Stella tínhamos um problema, pois em determinado trecho ela era uma descida. O time que ficasse na parte de baixo levava óbvia desvantagem. Embora passassem poucos carros, o nosso problema eram os vizinhos e as janelas de suas casas. Aliás, em uma delas um pé de café existente no pequeno jardim era o nosso grande obstáculo para os chutes fortes, pois tínhamos que tomar cuidado para não o atingir. Ele era florido, verdinho, as folhas brilhavam, nós até gostávamos dele. Na casa moravam duas irmãs já de certa idade. Elas já não nutriam grande simpatia por nós. A recíproca era verdadeira. Um dia quando a bola lá caiu as intolerantes senhoras a sequestraram, não a devolveram e achamos que estraçalharam a pelota. É claro que tínhamos que reagir. Deveríamos aplicar a Lei do Talião - dente por dente -. E o fizemos. Cortamos o pé de café e o deixamos encostado na porta de entrada da casa. Com isso vingamos a bola e aplacamos a nossa ira. Devo confessar nunca ter sido bom de bola. Sempre era o último a ser escolhido no par ou ímpar. Quando era "escalado" eu sempre me colocava onde o time queria: longe da bola. Um fato marcante daqueles tempos, com certeza notado também pelo Loyola, o nosso imortal, era a confraternização existente entre vizinhos. Tinha-se nas típicas pequenas casas de São Paulo da época minúsculos jardins que serviam de locais de encontro, conversa, fofocas. As pessoas paravam para papear com as que estavam nos jardins. Elas também andavam a pé. Carro para a classe média ainda era raridade. Andavam e se encontravam. Havia o maravilhoso bonde. O democrático bonde. O espaço para reflexão, leitura, cochilo, amizades e pernas, sim pernas, como um poeta indagou "Oh Deus  por que tantas pernas?". O relacionamento com os comerciantes da região é outro aspecto que também marcou a minha infância e juventude. O Nicolau do empório, Januário sapateiro, Coca e Mudinho jornaleiros, Manezinho jardineiro, Pedro barbeiro, Lili engraxate, Valinho mecânico e tantos outros que se incorporaram à minha vida e permanecem em minha memória. Mais, muito mais eu poderia recordar das minhas ruas e do meu bairro, na verdade da vida que era risonha e franca. Talvez continue em outros escritos. Por hoje basta, para homenagear esse grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão e para dizer a ele não ficar triste, pois nós pelo menos temos do que lembrar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A tragédia reveladora

A mãe com uma pá nas mãos vai removendo a lama, a terra, as pedras e madeiras para encontrar um tesouro: seu filho. Pacientemente, com aflição e angústia controladas e com esperança vai palmilhando o chão macabro, ao encontro daquele que não mais existe. Em outro dia, tal como um pescador, talvez escafandro, ou mesmo um garimpeiro, o pai vai explorando as margens do rio à cata de uma preciosidade: seu filho. Ele viajava em um ônibus que foi tragado pelas implacáveis águas. Lá se foi. Moço, moço também o pai. O que importa a idade? A fúria das águas não respeita idade. Mães, pais, avós, avôs, irmãos, amigos. Até bebês recém-saídos do útero materno foram levados para outro patamar. Há quem poderá dizer que esses seres foram poupados das misérias e sofrimentos humanos. Mas, ninguém lhes perguntou se queriam ser poupados. O poder da natureza mais uma vez suplantando a vontade e os esforços humanos. E o homem na sua predatória ignorância a desafia obstinadamente. Pobre homem, sem poder, sem inteligência e, principalmente, sem humildade para reconhecer as suas limitações, a sua impotência em face do universo. Desgraças como a de Petrópolis tem, no entanto, o condão de revelar um lado edificante, nobre, que nos dá esperança: a solidariedade. Entidades, ONGs, os valentes motoqueiros e pessoas anônimas da cidade e de fora dela, entregam-se à sublime tarefa de ajudar o outro. Nessas tragédias tem aflorado o amor ao próximo. Amor que se estendido a dimensões mais abrangentes nós teríamos menos guerras; violência; mortes; violação de direitos humanos; queima de florestas; predação de rios e outras condutas destrutivas. O amor substituiria a cobiça que é o guia de uma sociedade argentária e insensível. Gostaria muitos de ver segmentos das elites pegando os seus carros e as suas motos para ir a Petrópolis, não para veranear ou invernar, mas para praticar atos de amor. E mais, que essa tragédia desperte a consciência embotada das autoridades, de todos os níveis, para adotarem medidas de proteção às populações de risco de todo o país. Não devem prometer nada. Devem agir preventivamente, revelando que possuem alguma decência, dignidade, honradez e amor ao semelhante. 
segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Marizalhas em retalhos

Tenho utilizado esse espaço gentilmente cedido pela direção de Migalhas, para divulgar alguns despretensiosos escritos elaborados na forma de crônicas. Muitas já foram publicadas pela Editora Migalhas em um livro denominado "Crônicas Absolvidas". Outras são enviadas de forma irregular, e imediatamente colocadas à disposição leitor. Intenciono dar continuidade à essa agradável atividade enquanto contar com a gentileza do editor e com a paciência dos migalheiros. Meu intuito, agora, são curtas narrativas, não sei se chegam a ser crônicas, sobre fatos que foram vividos por mim ou que chegaram ao meu conhecimento e que apresentam um lado hilário do comportamento humano. A exposição das facetas divertidas, cômicas, jocosas que todos possuem, ilustradas por fatos concretos, pode ter o condão de suavizar a rude e áspera realidade que nos cerca na atualidade. É preciso que saibamos resistir ao negacionismo que pretende atingir até a nossa alegria de viver, a ser substituída pelo permanente estado de rancor, de confronto e de intolerância. Precisamos reafirmar uma característica bem brasileira, qual seja a capacidade de rir e de fazer blague até na adversidade. Como primeira manifestação nesse sentido eu vou narrar um susto, na verdade uma perplexidade que me acometeu quando fui à Teresina para proferir uma palestra. Eu era à época presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, e compunha o chamado Colégio de Presidentes das Seccionais do Brasil. Nessa condição havia uma agradável convivência com advogados de todo o país e a possibilidade de se conhecer as capitais e cidades de outros  Estados. Atendendo a um convite, fui à Teresina. Assim que desembarquei fui recebido cordialmente por dois dirigentes da Ordem estadual. Solícitos foram logo pegando as minhas malas e demonstrando entusiasmo disseram-me que iríamos em seguida "comer a Maria Isabel". Aturdido, talvez tenha ficado ruborizado em face da inusitada proposta. Nada disse, o que deve ter significado para os meus anfitriões a minha aquiescência  ao  programa, para mim, de natureza sexual, tão prontamente proposto e em uma hora imprópria.    Nunca soube se os amigos piauienses perceberam o meu constrangimento e deixaram propositadamente de esclarecer a situação. A verdade foi que passamos no hotel, fiz o registro, deixei a mala e rumamos, segundo imaginava, para algum lupanar. Durante o percurso não houve nenhum comentário sobre a aventura que se avizinhava. Eu, ainda meio assustado, não me senti à vontade para fazer indagações sobre o que nos esperava. Aguardei. Pois bem, depois de algum tempo paramos diante de um restaurante. Pensei tratar-se de um bordel camuflado. Essa suspeita mais me preocupou. Imaginei os riscos que estaria correndo caso houvesse uma batida policial. De qualquer, com muito medo, entrei e sentei-me à mesa que me foi indicada. Quando se aproximou o maitre achei que ele nos conduziria para algum outro cômodo, que imaginei qual seria. No entanto, ali ficamos até que os pratos foram pedidos. E, quando isso correu, uma sensação de alívio tomou conta de mim: Maria Isabel era o nome de um prato típico do Piauí.       
segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Indispensável para sustentações orais

O acesso à tribuna constitui um grave momento para o advogado. Momento de tensão e que requer especial atenção. Não se pense que com o passar do tempo a ansiedade diminua. A insegurança, o receio de não se ir bem, a angústia gerada pela escassez do tempo de fala e outros pequenos distúrbios emocionais parecem que crescem com o aumento da própria experiência. Fenômeno paradoxal, mas real. Quando se é novato na profissão os erros e enganos são atribuídos ao noviciado. Qualquer hesitação na oratória, falha na argumentação, erro nas citações e tantos e tantos outros tropeços são compreendidos e relevados. A complacência já não está presente quando se trata de um profissional calejado. Ele é observado com lentes que captam não só os erros aparentes, mas as minucias que na crítica alheia são postas para comprometer o todo do seu trabalho. Ninguém perdoa os seus escorregões. Portanto, produzir uma sustentação acaba exigindo também uma boa dose de coragem para enfrentar todos esses desconfortos   emocionais.   Os imprevistos também atingem as sustentações orais. Em uma das minhas primeiras perante o Supremo Tribunal Federal, no voo que me levou à Brasília, a aeromoça derrubou um copo de laranjada que coloriu todo o meu terno. Além do terno bicolor eu e os que me cercavam fomos brindados com um odor de laranja até a aterrisagem do avião. O odor não me abandonou. Me fez companhia até o Supremo e comigo permaneceu durante a sustentação. Não sei dizer se o cheiro da laranja influenciou no julgamento. Não me lembro se obtive ou não êxito. Lembro-me, no entanto, que a reação da moça foi de tamanho constrangimento, as desculpas foram tantas, o choro quase indisfarçável, provocaram a minha solidariedade com a coitada. Com certeza, disse-lhe que não havia sido nada. Mentira.    Um outro episódio se deu em uma das salas do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo.  Para a sustentação oral o advogado na Câmara em que estava, subia-se em um pequeno estrado onde estavam a cadeira e a mesa. Pois bem, ao afastar a cadeira, o fiz com exagero, a ponto de derrubá-la do tablado, que por instantes se tornou um picadeiro. O terrível barulho, a recolocação da pesada cadeira no lugar, e  especialmente, a minha falta de jeito e de graça, quebraram o silêncio e a circunspeção do austero local. Mais recentemente, voltei ao Supremo Tribunal Federal, para uma sustentação perante o Tribunal Pleno. Ao assumir a tribuna percebi que ou havia emagrecido de repente ou o cinto não estava bem preso. A verdade é que as calças insistiam em não ficar na cintura, caiam. Por cima da beca eu as puxava, como podia. Essa incômoda manobra se deu durante toda a sustentação oral. Dias após a ida à Brasília, recebi em meu escritório um pequeno pacote muito bem embrulhado, acompanhado de um bilhete : "Amigo, receba esse suspensório que além da utilidade descrita nos dicionários" aí reproduziu o verbete e continuou  "SERVE PARA SUSTENTAÇÕES ORAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL"  assinado Edson  O' Doally" O eminente advogado baiano, que se tornou um querido e hoje saudoso amigo,  estava presente na sessão da quase queda das minhas causas, sentado bem atrás da tribuna. Deve mentalmente ter, por várias vezes, pensado - "Agora cai". Ao chegar em Salvador não teve dúvidas em me presentear com um suspensório, mostrando amizade e solidariedade, mas  principalmente quis evitar futuros sustos nas minhas idas à tribuna. Em tempo, não precisei usar suspensório, pois engordei e o risco das calças caírem desapareceu.
Eu já escrevi alguma coisa sofre o "Fórum do Meu Tempo". Escritos sobre advogados, personagens do dia a dia forense, situações pitorescas por eles vividas, entremeadas pelos dramas que acompanham a cena judiciária especialmente na área penal. Certos escritos foram dedicados às figuras de advogados que marcaram a profissão pela sua dedicação, amor ao direito de defesa, capacidade profissional, cultura e, especialmente, sensibilidade para amparar homens e mulheres levados às barras dos Tribunais. O objetivo, eu diria sagrado, sublime, desses advogados e daqueles verdadeiramente vocacionados, é emprestar aos que não tem nem vez e nem voz, além de sua inteligência, eloquência, capacidade argumentativa a sua coragem, especialmente nos casos em que a opinião pública se volta irada contra o defendido, por vezes instigada pela mídia. Como bem disse Sobral Pinto, a advocacia não é uma profissão para covardes. Ademais, sempre é preciso lembrar, que não defendemos o crime, mas somos porta vozes dos direitos e das garantias legais dos acusados dos que são sentados nos bancos dos réus. Agora, em continuação às minhas homenagens na forma de evocação, a referência será a um símbolo de uma advocacia alegre, espirituosa, romântica, exercida por um homem com tais características. Na verdade, um ser humano raro, que deu a quem o conheceu alento e esperança no porvir de um mundo mais sereno, pacífico, solidário e fraterno. Aliás, conviver com ele possibilitava assimilar esses traços, que eram os de sua personalidade. Sua presença era contagiante. Refiro-me a Carlos Mihich Bueno, o Caxixo. Formado na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1945, era  Considerado pelo meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, o seu amigo "Macacão", como excelente goleiro. O Caxixo são-paulino emérito. O Caxixo refinado e culto, gourmet e apreciador do bom copo. O Caxixo boêmio, amigo da noite e de tudo que ela proporciona. O Caxixo monopolizador de reuniões, pois magnífico "causer". O Caxixo, tribuno primoroso, grande comunicador no Tribunal do Júri. Para mim, o Caxixo amigo querido, cuja ausência é como a curva da estrada, eu só não o vejo, mas ele está presente, segundo a analogia de Fernando Pessoa, sobre a morte. Eu tive a honra de fazer um Júri com ele. Fomos assistentes de acusação em um julgamento em Tupã. A sua impecável atuação a todos encantou e a mim constituiu uma preciosa lição de como acusar sem perder a marca do defensor. Defendeu ele com esmero invulgar o direito da família da vítima a um julgamento justo e consentâneo com a verdade dos fatos. Os adjetivos, por mais generosos, não retratam com fidelidade e em sua inteireza a fecunda criatividade manifestada em situações diversas, por meio de comentários espirituosos, chistes, gracejos, pilherias tudo enfim que refletia a sua fulgurante inteligência. Caxixo se relacionava com grande facilidade. Barreira nenhuma o afastava das pessoas. Ideologia, raça, origem social, procedência, sexo. Bem, quanto a ele tinha óbvia e notória preferência. Sempre conviveu admiravelmente com elas. Todas, de todas as origens. Não se pense que o seu interesse era de um vulgar namorador. Não, era solidário e as ajuda efetivamente. Quando solteiro, frequentava a casa das moças antigamente chamadas de "vida alegre". Ou, hipocritamente, de "vida fácil".  Pois bem, quando estava nessas casas, já formado, era frequentemente requisitado para socorrer aquelas vítimas da incompreensão policial. Presas, ele imediatamente, lá mesmo nas casas, com a máquina de escrever sobre as pernas, impetrava habeas corpus, para libertá-las. Constantemente, se encontrava rodeado pelas colegas das infelizes presas, que o ajudavam fornecendo detalhes da prisão. Tratava as suas amigas e companheiras de forma absolutamente igualitária.  Certa feita comprara em uma doceria dois bolos, que deveriam ser entregues em endereços diferentes. Indagado, respondeu que um era para a Casa Militar e o outro para a Casa Civil. Rápido nos apartes, mas ligeiríssimo nas respostas aos que recebia, foi interrompido pelo promotor, que lhe disse "Vossa Excelência parece um purgante", e ouviu a resposta "E Vossa Excelência é o efeito desse purgante". O seu amor pelo São Paulo Futebol Clube era genuíno, suas raízes o remetiam à infância. Tal como os são paulinos daqueles tempos, Caxixo possuía grande orgulho de sua condição, pois o "clube mais querido da cidade" ou "o clube da fé" adquirira uma justa fama de clube bem dirigido, por pessoas de elevado nível intelectual, moral e ético, que lhe imprimiam uma organização esmerada. Caxixo não perdia jogos. Por vezes tinha que conciliar o trabalho com alguma partida disputada à tarde, em dia de semana. Pois bem, justo em uma dessas tardes teria que sustentar um Habeas Corpus, cuja relatoria era do não menos são-paulino ilustre desembargador Onei Raphael Pinheiro Oricchio. Ficou em palpos de aranha. O Tricolor jogava no Pacaembu. Como fiel torcedor que era, optou pelo jogo. Para tanto pediu adiamento do julgamento, sob a alegação de teria uma audiência em uma vara cível. O desembargador deferiu o pedido. O encontro seguinte que teve com o magistrado, após o adiamento, foi no mesmo dia. Em um local para onde ambos foram. Coincidentemente o Pacaembu. A mentira para ir ao futebol parece que era uma constante dos advogados e juízes torcedores do "mais querido". Certa feita, um vizinho correu para me avisar que papai estava aparecendo na televisão. É verdade. Estava envolvido em um entrevero nas numeradas do estádio, e foi flagrado pelas câmeras O pior não foi a briga e nem o seu televisionamento, foi a bronca que tomou de minha mãe, pois dissera que estava com um dia atribulado, repleto de compromissos profissionais. As agruras da advocacia, dentre elas os prazos processuais, uniram dois advogados com os elos da responsabilidade profissional e da solidariedade. Caxixo atravessou a Praça João Mendes às pressas, esbaforido, angustiado. Era necessário chegar ao balcão de protocolo antes que ele fechasse. Era o último dia, último minuto de um prazo. Quando entrou no saguão do Fórum sentiu-se mal e perdeu as forças para continuar correndo. Atrás dele passava o então advogado Antonio Carlos Malheiros, que agarrou a petição e a protocolou no último instante. Gestos de amor à profissão e ao próximo, sempre marcaram a advocacia.   E Caxixo era isso, um ser especial que gerava e recebia amor.
segunda-feira, 17 de maio de 2021

Banjo Boy

Nós o chamávamos de "Banjo Boy". Tratava-se de um morador de rua que perambulava pela Cubatão, Stella, Correia Dias e outras da região. Ruas situadas na ligação do Paraiso com a Vila Mariana. Maltrapilho, descalço, roupas esfarrapadas, barba rala, não andava, corria, de um lado para o outro, portanto um banjo ou instrumento congênere. Nunca falou, jamais gritou, não importunava ninguém. A sua voz nunca foi ouvida por nenhum de nós. Talvez fosse mudo. Embora o seu apelido fosse "Banjo Boy" nós não sabíamos com precisão qual era o inseparável instrumento que segurava apertado ao peito, como o seu único e precioso bem. Podia ser um cavaquinho ou um banjo, bandolim ou uma pequena viola. Violão não era. Optamos pelo banjo. Eu ia me esquecendo, o instrumento não tinha cordas. Fomos influenciados por uma música de sucesso na época, anos sessenta. Chamada "Banjo Boy": "Sempre alegre e feliz vai o banjo boy, banjo boy o trovador". O compositor dessa melodia deve ter se inspirado no nosso amigo. Com o seu mutismo, portanto sem nenhuma reclamação ou ato de hostilidade, passava a impressão de estar conformado com a sua situação, pelo menos aparentemente.  Não foi pequeno o período no qual ele frequentava as nossas ruas. Nós o estimávamos. Embora não falássemos, a empatia recíproca existia e se refletia na troca de sorrisos e de acenos de mãos, quando por nós ele passava. Como disse, vagava pelas ruas. Catava tocos de cigarros. Andava e corria sem parar. Queria, parece, acompanhar a voragem do tempo, para não ficar estagnado. A impressão que se tinha é que estava sempre à cata de algo  O seu banjo era intocável. Faltavam cordas e nele ninguém se atrevia em por as mãos. Esse ser humano, absolutamente sem eira e nem beira, tinha-nos como seus parceiros de olhares e de adeuses. Nós nos comunicávamos por meio de uma música jamais tocada ou ouvida. Talvez, até ouvíssemos ele tocar aquele instrumento sem cordas. Ele tocava e nós ouvíamos uma melodia sem som, mas de marcante sonoridade para nossos espíritos. O "Bancho Boy" representava a liberdade plena de ir e vir, andar como bem entendesse, morar em qualquer canto, não cumprir regras ou deveres sociais. Enfim, fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que não nos era permitido. Não invejávamos a sua vida, mas cobiçávamos a sua liberdade, que jamais seria nossa.                                                                   
segunda-feira, 26 de abril de 2021

Pinóquio e o boiadeiro

Lá vamos nós, brasileiros. Qual o trajeto a ser percorrido, e qual o nosso destino? Quem sabe? Ninguém. Com certeza não estamos indo ao encontro da verdade. Nenhuma das verdades que nos levariam a um destino melhor. Agruras pontuais, sofrimentos coletivos, distância da pátria dos nossos sonhos, é o que temos. Agora, acrescente-se o componente da farsa. Até quinta- feira, era o discurso agressivo, predatório, intolerante, discriminatório, instigador da violência e da destruição das instituições e tudo o mais que se tornou marca de uma gestão sem gestor. Depois dessa data, o já abominável cenário transformou-se em uma pantomima, sem a graça e a criatividade dos saudosos espetáculos circenses.   No centro do picadeiro estão os que mentem. Mentem a mentira plena, sem ressalves. E o fazem sem rubor nas faces, sem nenhum resquício de vergonha.    Nem nos contos da carochinha, nas fábulas de Esopo ou de La Fontaine, nos maiores ficcionistas da literatura mundial, encontramos criações tão audaciosas e distantes da realidade, como a fala presidencial desse dia 22, que substituiu o 1º de abril. Aliás, lembre-se que histórias infantis, fábulas, ficção possuem, em regra, conteúdo ético e moral. A fala bolsonarista, ao contrário, é o descarte, o desprezo por mensagens construtivas e edificantes. As suas falas querem a destruição, a desconstrução. Poder-se-á dizer que a ladainha de quinta, 22, foi repleta de promessas, compromissos, juras de amor pela Amazônia, pelos índios, pela floresta, pelas águas, pelo firmamento limpo de impurezas. Fala de um cultor fervoroso da obra divina, a natureza. Sua oração significaria uma conduta meritória de sua parte, pois reviu e reconsiderou sua anterior posição. Ora, ora, cinismo puro, oportunismo genuíno, desfaçatez descarada. Trata-se de um pronunciamento desprovido de seriedade e credibilidade, em face das reiteradas e recentes falas em sentido contrário. Aliás, recentes e de sempre. Como emprestar-se valor e honestidade a afirmações que até ontem eram levianas, frívolas, desarrazoadas. Como se enxergar uma repentina claridade, no lugar de uma densa treva? Estamos, agora, esperando ansiosos o pronunciamento do ministro boiadeiro. Os mugidos de seus bois com certeza nos trarão alento e esperança. Ele saberá conduzir o seu gado para o pasto e fechar as porteiras para que não haja um estouro da boiada, que seria muito a gosto dos desmatadores, incendiários, grileiros, latifundiários, ocupantes de terras indígenas e tantos outros predadores.   Só resta agora o presidente dizer que sempre temeu a pandemia e as suas consequências. Que sempre chorou os mortos. Que abominou a cloroquina. Que sempre defendeu o isolamento. Que sempre evitou aglomeração; que não mediu esforços para termos vacinas, etc. etc. Vamos aguardar. Quem viver verá. Eu espero estar vivo para vê-lo ir embora. Inclusive o ajudarei a fazer as malas, para que leve consigo os males que nos impingiu.   
terça-feira, 30 de março de 2021

O poeta da vila e a pandemia

Nunca, como em nossos dias, foi tão importante, indispensável mesmo, apelar-se para políticas compensatórias. Política na acepção de escolha, de opção. Compensações não materiais, mas no sentido de substituição do pior e do prejudicial pelo menos nocivo. Lembro-me de um livro, talvez filme ou novela, denominado "Poliana". A personagem praticava o chamado jogo do contente. Seu escopo era, exatamente, compensatório, pois, em face de uma situação desagradável, procurava elaborar um pensamento que extraísse da mesma situação algo de bom, reconfortante, que afastasse a sua contrariedade. Pois bem, em face da pandemia provocada pelo corona com as dolorosas e, até então, inimagináveis consequências, cada um de nós precisa cuidar da saúde mental e emocional, além da saúde corporal. À pandemia alia-se a pantomima provocada pelo cômico, senão fosse trágico, gerenciamento da crise e pelo desgoverno que nos conduz à beira do abismo. Várias fórmulas têm sido apresentadas. Psicólogos, psiquiatras, artistas, esportistas, escritores, fisioterapeutas e tantas outros profissionais têm, em suas áreas, procurado apresentar sugestões que aliviem os sofrimentos provocados pelo isolamento. A minha contribuição não é no campo das atividades concretas. Imaginei ser útil o exemplo de um compositor, poeta e filósofo, não de formação, mas de vida, que por meio de sua música retratou dramas do cotidiano, sempre com um viés de alegria. Soube tratar a amargura, a melancolia e a decepção com pitadas de ironia, chacota e muita graça.  As suas carências e desilusões, suas e de qualquer um, eram substituídas por deboches, piadas e caçoadas, marcadas por um humor inteligente e malicioso. Refiro-me a Noel Rosa. Fértil compositor, morto com vinte e seis anos, compôs duzentas e cinquenta músicas aproximadamente. Suas letras retrataram as várias nuances da sociedade da época, bem como reproduziram sentimentos e emoções pessoais, de forma por vezes dramáticas, outras cômicas, mas especialmente com ironia e muita musicalidade.    Seus olhos eram sagazes e captavam o âmago de cada episódio, modo de ser pessoal e conduta social. A sua inteligência e capacidade criativa transformavam as suas letras musicais em primorosa prosa, por vezes em belas poesias.   Algumas de suas músicas expõem com graça e com leveza situações de sofrimento e de carência, tornando-as menos penosas e mais aceitáveis. "O Orvalho Vem Caindo", mostra quem não tem onde morar, e um dia passa bem, dois ou três passa mal. Em "Conversa de Botequim", ele demanda pendurar a conta da média no cabide ali da frente; "Com que Roupa", daquele que não tem roupa para ir ao samba, mas vai se reabilitar; "Filosofia", de quem zomba da aristocracia que não tem alegria e cultiva a hipocrisia; "João Ninguém", de quem diz que muita gente tem luxo mas não tem a alegria que João tem. Estas, entre outras, dão exemplos de sua capacidade de transformar temas áridos em músicas alegres que cantam com o otimismo um porvir melhor. Caso estivesse conosco assistindo e amargando as consequências da pandemia, Noel saberia levá-la com fidelidade para a música. Mas, encontraria uma forma poética de fazê-lo e, com certeza, traria bem-estar ao espírito e descanso à mente. Utilizando-se do sarcasmo, da sátira e da blague, retrataria o comportamento de alguns homens públicos e apontaria aqueles que estupidamente negam o inegável e não valorizam a vida por, não se importarem com as mortes. Ouvir Noel Rosa não diminuirá a tragédia das mortes e das infecções, mas com certeza, mostrará ser a vida dotada de duas faces, sendo preciso sempre encontrar-se a que se oponha ao lado mau, injusto e destrutivo da existência.
terça-feira, 9 de março de 2021

Namoricos, namoros e traições

Minha neta de dez anos foi pedida em namoro por um colega de classe, por meio eletrônico. Respondeu, pelo mesmo caminho, que considerava o colega um amigo, mas que era cedo para namorar. Gostei da educada e conveniente resposta. Claro que achei o pedido prematuro, precoce e inadequado. Reação de avô cioso de seu papel de protetor das netas. Aliás, seis netas. Haja asas protetoras. No entanto, agradou-me saber que ainda se pede em namoro. Ou será uma prática limitada até os dez ou onze anos? Depois dessa idade dizem que nem namoro mais há. Há sim e eu provo. Não posso negar ter ficado feliz de já ter uma neta cortejada. Ah!!! Nessa hora lembrei-me que tenho uma outra neta, não cortejada, mas já em pleno namoro. Com 21 anos o namoro não é um mero flerte. Ela até já trouxe o felizardo para dentro das casas da família. Quando eu soube, logo me veio a possibilidade de ser bisavô. E eu externei a ideia para o casal. Fiz bem? Acho que não, pois fui alvo de grandes críticas. Talvez tenha sido porque além de querer ter um bisneto ou bisneta eu completei a ambos: com ou sem casamento. Interessante que a reação mais contundente a esse natural anseio partiu dos mais jovens da família. Isso mostra haver um conservadorismo ocupando uma baixa faixa etária.   Lembrei-me que no meu tempo pedia-se em namoro. E, mais, a escolhida por sua vez solicitava um tempo para responder. Normalmente eram necessários três dias. O prazo era fatal. No quarto entendia-se que a resposta era não. Ademais, se ela quisesse dizer sim nos dias posteriores o rapaz estava desobrigado de aceitar. Muitas vezes ele condescendia e a tolerância era maior quanto maior fosse o seu interesse. Certo dia um queridíssimo amigo pediu-me ajuda para pedir uma moça em namoro, que segundo ele já estava conquistada. Faltava, apenas, a formalidade do pedido. Esse se daria por telefone. Estávamos em minha casa. Combinamos que eu ficaria na extensão e quando entendesse ser a hora adequada eu iria avisá-lo. Dito e feito. Mas, mal feito. Assim que lhe dei o sinal, o amigo solenemente fez o pedido. Não precisou de nenhum prazo para vir a resposta. Em questão de segundos veio um sonoro e contundente não. Frustação geral. Dos amigos, que solidários tinham uma expectativa positiva. Do pretendente, certo da aceitação e minha, pois me julgava um ótimo consultor sentimental. Na verdade, a minha atuação não foi de toda desfavorável, pois, traindo o meu amigo, tempos depois estava namorando a mesma moça...
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O júri e a "grobata"

A advocacia é uma profissão multifacetada. As características que compõe a sua natureza levam-nos a afirmar ser ela ciência, pela gama de conhecimentos que exige; arte, em face da grande parcela de improvisação e criatividade que requer; e sacerdócio, pelo grau de renúncia e sacrifício aos quais se obrigam os advogados. Note-se que alguns aspectos pessoais distintivos do advogado que lhe emprestavam uma marca inconfundível, quais sejam a   indumentária, a escrita e o linguajar, estão sofrendo alterações. O advogado agora está aos poucos se desvencilhando da gravata e alguns do paletó. Na sua escrita está pondo de lado citações latinas, palavras em desuso, termos jurídicos desnecessários, longas citações doutrinárias e na oratória tenta seguir métodos modernos de comunicação em substituição ao discurso pomposo de outrora. No entanto, a advocacia mantem alguns traços imutáveis que vencem o tempo e são intrínsecos à sua personalidade e ao seu caráter. Uma das suas características é a atração que desperta na imprensa e na própria sociedade, mormente na área criminal. O elevado grau de humanismo, sensibilidade e emoção contido nos conflitos, e por vezes, o amor e o ódio suscitados pelos protagonistas da cena judiciária, são fatores de irresistível interesse coletivo.   A advocacia é um repositório de histórias reais, por vezes ficcionais, folclóricas, dramáticas e hilárias. Ademais dá ensejo à especulação midiática, asas à imaginação e a interpretações as mais díspares e antagônicas sobre o mesmo fato. Mais do que qualquer outra a advocacia criminal, pela natureza dos eventos que acolhe, os crimes, provoca a atenção e a curiosidade da sociedade, interessada pelo fato em si e pelo julgamento do acusado. Entre os litígios criminais, os que envolvem o crime de homicídio, tentado ou consumado, são os que mais dão ensejo a episódios pitorescos, tiradas de espírito, esgrimas verbais, gozações envolvendo advogados e promotores, rápidos apartes e respostas precisas. É na Tribuna do Júri que os seus protagonistas podem, com liberdade, dar vasão aos seus conhecimentos jurídicos, à sua agilidade de espírito e de raciocínio e à sua perspicácia e vivacidade de inteligência. Esses atributos postos nas discussões da causa e os dramas humanos que trazem uma identidade com o cotidiano das pessoas representam uma atração ao homem comum, independente de suas condições sociais e de sua cultura. O meu primeiro escritório foi na Praça da Sé, nº 399, onde meu pai esteve desde 1957. Prédio antigo, charmoso, a porta do elevador era "pantográfica", feita de pontas, que qual uma sanfona era aberta e fechada manualmente. O zelador era um português de nascimento, no Brasil desde a década de vinte ou trinta, que, embora sem nenhuma instrução, era portador de uma aguçada inteligência e um especial apreço pelo Tribunal do Júri. Quando podia ia assistir à uma sessão. Dizia e era verdade, que assistira aos júris dos grandes advogados da época. Os conhecia e deles falava com alguma intimidade. Dante Delmanto, Covello, Américo Marco Antonio Cirilo Júnior, Marrey Júnior, Waldir Troncoso Peres e outros eram submetidos à sua análise e crítica, sempre era rigorosa. Pois bem, quando comecei a atuar no Plenário do Primeiro Tribunal, nomeado pelo saudoso amigo e juiz Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão a presença do Adelino era obrigatória.       Sentava-se nos primeiros bancos do imponente salão do Tribunal do Júri, o primeiro, e lá ficava do início à proclamação do resultado dos jurados e da sentença proferida pelo magistrado. A partir de uma determinada época, passei a ser nomeado também pelo juiz Fernandes Rama, que presidia o Segundo Tribunal, localizado no quarto andar do vetusto prédio do Tribunal de Justiça. Lá também a presença de Adelino era obrigatória. Não pensem que o amigo comparecia aos julgamentos para me aplaudir. Ao contrário, passou a ser o meu crítico. Dizia ao final com o seu gostoso sotaque lusitano: "o menino foi bem, mas no meu tempo vi melhores". Por vezes, fazia críticas procedentes extraídas de sua inteligência intuitiva, embora inculta. Tenho enorme saudade do velho Adelino, que, esqueci de dizer, honrava as formalidades o Júri do passado, pois só ia às sessões portando uma gravata multicolorida, que ele pronunciava "grobata". Adelino, onde estiver, ponha sua "grobata" e olhe por mim. 
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Campos da várzea

Os dicionários dão à palavra várzea o significado de extensas áreas situadas nas planícies ou, ainda, o de terrenos cultivados e localizados à beira dos rios e dos riachos. Pois bem, estranhamente, a maioria omite o significado de maior interesse e alcance pelo menos para nós que habitamos as cidades. Várzea é o local aonde se pratica futebol fora dos estádios destinados a esse esporte. Não só o futebol, pois é um local destinado a outras atividades de esporte e de lazer. Lembro-me, na minha infância e juventude, no nosso "campinho", o do Olímpicos do Paraíso, situado na rua Stella com Oscar Porto, nós nos ocupávamos de práticas de outras naturezas. Jogávamos taco ou casinha. Com três pequenos pedaços de madeira, presos na ponta superior, fazia-se duas "casinhas", uma em cada ponta de um espaço determinado que deveriam ser derrubadas, com as tacadas ou arremessos da bolinha.  Empinar papagaio, soltar balões e outras brincadeiras, como "lasca romeu", "mãe da lata", "malha" e até "bocha", também ocupavam esse espaço. Aliás, por vezes, a sua destinação era desvirtuada. O campo se transformava em campo de batalha. Turmas rivais marcavam dia e hora para um confronto físico. Havia regras e normas que deveriam ser seguidas, como se obedece a um código de honra. Havia um número certo de contendores que não poderia ser ultrapassado. Riscava-se uma linha horizontal. Cada grupo ficava postado em frente ao outro, assim que alguém ultrapassasse a linha a contenda tinha início. Outra regra sagrada, nada de armas ou de qualquer instrumento que fizesse às vezes de tapas daqui, tapas dali, por vezes um soco e um pontapé e nada mais. Naqueles tempos as brigas eram incruentas, não se feria não se matava. Não raras vezes selava-se a paz, em um bar. O futebol era a destinação original desses campos. O futebol brasileiro muito deve a eles e aos "olheiros" que os frequentavam. O campo da várzea possui uma indiscutível relevância para a própria sociedade, especialmente para as suas camadas menos favorecidas. Espaço de lazer e de sociabilidade, democrático espaço. As agremiações de futebol localizadas nos bairros de São Paulo reuniam em torno de si não só jogadores como parte de seus habitantes. Os jogos especialmente os de domingo pela manhã atraiam adeptos do futebol, mas não só. Ali se confraternizava, bisbilhotava, flertava, namorava, petiscava e nos dias festivos ou dos grandes jogos, havia as célebres churrascadas, acompanhada de chope. Lembro-me que não havia "serpentina" para gelá-lo. Os barris eram cobertos por barras de gelo, envoltas em estopa para não que não se derretessem. O campo de várzea é uma instituição nacional, e com ele não se deve brincar. Centros de sociabilidade principalmente nas periferias, carentes de espaços públicos, torna-se imprescindível a sua manutenção criação em terrenos abandonados. Temos que resistir à voracidade da cidade que engole os seus espaços de liberdade, congraçamento e harmonia bem como a sua própria memória. Eles, embora em número bem menor do que no passado, ainda sobrevivem à ganância imobiliária. Certa vez, do andar alto de um prédio, algum barão do cimento, olhando para um conjunto de campos, exclamou suspirando: "que desperdício", estava se referindo-se aos prédios que ali poderiam ser construídos. Tempos depois aqueles campos foram substituídos por um parque. O barão teve que digerir a sua frustação. Abro um parêntese, para lembrar que o futebol de várzea não precisa necessariamente ser praticado em um campo e nem jogado por vinte e dois jogadores. Também não é preciso nem ao menos uma bola. Pratica-se o futebol em qualquer lugar onde aja um espaço. Uma rua; um quintal; um beco; uma vila; um buraco qualquer com duas extremidades. Aliás, por vezes se joga apenas com um "gol". Trata-se da chamada "meia linha", que em Santos é o "lelê". Um só goleiro. Bola fora é gol dele. Por vezes, bastam dois jogadores, um em cada gol. É o "gol a gol". Eles chutam e defendem. Sobre os gols, claro que são improvisados, com traves da mais diversa procedência. Pedaços de pau; latas; sapatos; tijolos. Bem se vê que as traves são só as laterais e imaginárias quanto à altura. Resta a bola. Para se jogar na várzea basta algo que se pareça com a bola. O mais comum são as meias, que tomam a sua forma. Quem gosta do futebol faz muitas concessões. E, ele por sua vez, tudo aceita, até para não ser esquecido.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A detenção de inocentes incendiários

Eu jamais fui protagonista direto ou indireto de nenhuma conduta delituosa de alguém, que posteriormente viria a ser meu cliente. Era procurado para defender e o fazia com base na narrativa do acusado e das provas vindas para os autos. O meu conhecimento do fato era, portanto, pós fato. No entanto, como exceção, protagonizei dois episódios que ficaram gravados na minha memória e nos meus sentimentos. Duas foram as razões da minha memória haver registrado ambos de forma indelével: primeira, todos os participantes das cenas eram e são meus amigos de infância; ademais as cenas foram pitorescas, para não dizer hilárias, assim como hilária foi a minha intervenção como quase advogado, como rábula. Devo explicar porque elas também me marcaram sentimentalmente. Tanto os participantes de ambas quanto os próprios episódios estão cobertos pelo manto da amizade e do passado, um passado juvenil pleno de aventuras e de venturas. Agora narrarei um dos episódios. Estávamos, como sempre, no início da noite, reunidos na rua Stella, a nossa gloriosa rua, que emprestava o seu nome à nossa não menos gloriosa Turma, denominada T.S. Ficávamos em frente à segunda vila que lá existia, essa em frente ao campo de várzea do também gloriosa Olímpicos da Vila Mariana. Percebe-se que para nós todos e tudo que nos cercavam constituíam uma glória. Salvo os times de futebol. Nós são-paulinos obviamente não glorificávamos o Corinthians, Palmeiras, Santos e vice-versa. Por se tratar de uma sexta-feira, estávamos todos reunidos nos aquecendo para uma nova jornada boêmia. Uma boemia quase infanto-juvenil, pois os mais novos tinham quinze anos. Como éramos ousados, inquietos e curiosos, nos aventurávamos pelo centro da cidade indo a bares como o Bar do Jeca, o Ponto Chic, Salada Paulista, até o Avenida Danças. Aí a ousadia era suprema. Lá só se estivéssemos de gravata e com algum dinheiro a mais, para picotar os cartões das dançarinas.   Os mais velhos, por vezes, iam ao Clube de Paris, Dakar, Vagão etc. Não poucas vezes ao Som de Cristal, estupenda gafieira. Não nos aventurávamos a dançar, apenas assistir. Era um verdadeiro espetáculo vermos os casais, elegantíssimos dançando, na verdade bailando. O respeito era grande, a ponto de o cavalheiro dançar com um lenço em sua mão direita para não manchar o vestido da dama.  Uma outra gafieira famosa existia na rua da Glória, o Paulistano da Glória. Pois bem, voltando ao episódio. Alguém do nosso grupo resolveu verificar se um líquido que escorria pela rua perto da sarjeta era água ou outro líquido. Era outro e não água. Era gasolina. O seu teste seria inofensivo se para fazê-lo não tivesse usado um isqueiro. O fogo espalhou-se e ameaçou alguns dos carros estacionados. Alguns chegaram a ficar um pouco danificados. Preocupados que ele pudesse se alastrar e tomar a rua, com risco a quem passasse e às próprias casas, todos nós, heroicamente, passamos a tentar afastar os automóveis. Nessa empreitada destacou-se um de nós: Tamer Chain, campeão panamericano de halterofilismo. Enquanto seis ou sete se esforçavam para afastar um carro das chamas, Tamer sozinho arrastava a traseira e depois a frente e punha o veículo a salvo. Houve um Volks que ele literalmente levantou a parte da frente. Não passou muito tempo e várias viaturas chegaram. A nossa planejada e esperada noitada transformou-se em uma compulsória excursão ao Pátio do Colégio, então sede do 1º Distrito Policial da Capital. Depois de contarmos o que ocorrera o delegado de plantão passou com insistência a indagar quem fora o autor da façanha. Como não tínhamos nenhuma propensão à delação permanecemos num mutismo solidário e absoluto. Sabíamos que o incendiário fora, o mais sério, o mais ajuizado ou menos desajuizado de todos, "o Velho". Como assinala sua alcunha, o mais antigo de todos nós.    Tive a ideia de perguntar à autoridade policial em qual faculdade havia se formado. Formara-se exatamente na minha faculdade, a Paulista de Direito da Universidade Católica. Bem aí as coisas ficaram mais fáceis, pois comecei a falar dos meus professores, alguns que tinham também sido dele. Citei algumas façanhas que conhecia dos estudantes e das turmas de sua época. Fatos por mim mencionados, que até o emocionaram, foram os relacionados com as disputas entre o 11 e o 22 de Agosto, Centros Acadêmicos da São Francisco e da Católica. Eram os famosos jogos entre ambas as Faculdades, denominados "33 de Agosto". Por fim, descobrimos ter ele pertencido ao partido acadêmico do qual eu era presidente, o Partido Universitário Independente, o PIU. A pirotécnica noite terminou na delegacia, mas todos fora das grades e se congratulando com a autoridade, eminente "puquiano".    
terça-feira, 4 de agosto de 2020

O fórum do meu tempo

Outro dia me questionei: será que nunca mais vou compulsar um processo? Não mais teria em mãos uns autos? Não lerei ao vivo e em cores portarias de instauração de inquéritos; boletins de ocorrência; certidões de cartório ou de oficiais de justiça; carimbos; despachos de delegados; cotas de promotores; termos de depoimentos; laudos; relatórios de delegados; denúncias; decisões interlocutórias; acareações; reconhecimentos; alegações escritas; transcrições de debates em audiências; sentenças; razões; acórdãos? Parece que não. Dirão muitos, "mas você tem isso tudo online". Ah é. Sei que tenho. E daí. Isso não me satisfaz. Eu quero o prazer de ter a papelada nas mãos. Trata-se de um prazer proporcionado pelo tato. É como o livro. É como o carinho. Alguém vai me convencer que é bom o carinho ou a carícia online? Com grande dificuldade eu tenho acesso aos autos pelo computador. Aliás, deixa eu ser honesto, nem acessar eu sei. Sempre há quem o faça para mim. Vejam, eu jamais precisei de alguém para compulsar processos. Agora sinto-me capenga, meio aleijão. Mas não pensem que me rendo e fico no computador para ler, não. Todos os processos são imediatamente impressos. Só leio no papel. Pronto. Lembro-me dos processos e imediatamente vem à mente o Fórum do meu tempo e os seus personagens. Comecei a advogar quando os cartórios e as varas criminais estavam instalados no vetusto e maravilhoso prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo. Por lá transitavam, diariamente, todos os protagonistas da cena judiciária. Figuras que me marcaram indelevelmente. Tenho-os vivos na lembrança e no coração. Meu começo foi com eles e até o fim os terei na memória e no coração. Vou começar pelos acusados, pois são eles os responsáveis por todas as atividades desenvolvidas no Fórum. São os principais protagonistas. Caso não existissem não haveria justiça criminal. Como o crime é um fenômeno ligado à condição humana, com as suas misérias e as suas grandezas, eles jamais deixarão de existir. Existir não como objeto do processo, mas seu sujeito, portador de deveres e de direitos, sendo inocente ou culpado. Devem ser respeitados, mas é verdade que dão um imenso trabalho. Para mim o momento crítico, de maior tensão, é o do interrogatório. Um martírio. Por mais que se oriente, explique, treine nunca se tem certeza do seu desfecho. Esse drama aumenta nos casos levados ao Tribunal do Júri. Acusado de homicídio contra o amante de sua mulher e de tentativa contra ela, o meu cliente foi exaustivamente instruído sobre um ponto específico: ele deveria dizer que sempre portava uma arma, pois saia cedo e morava em um lugar ermo, como justificativas. Ele possuía registro e porte. Era inconveniente que os jurados pensassem ter ele se armado para cometer o crime. Encontrou o casal casualmente e, como sempre, se encontrava armado. Pois bem, após indagar quem era o seu advogado, o presidente do Júri foi logo perguntando se era comum ele andar armado. Sem perder tempo foi logo dizendo "JURO POR DEUS QUE NÃO". O juiz amigo, Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão olhou para mim e balançou a cabeça. Eu, desalentado cobri o rosto... Falar de acusado deve-se falar dos defensores. Destaco um episódio ocorrido com um advogado que marcou época pela sua alegria, desconcentração, simpatia, Paulo Brandão. Antes do episódio uma sua característica. Nos dias que iria atuar na Tribuna do Júri passava em uma pastelaria existente na rua Onze de Agosto e comprava considerável quantidade de pastéis. Com a autorização do Juiz Presidente ele os distribuía antes da sessão. O juiz, os jurados, funcionários, advogados, promotores, a escolta e para o próprio acusado, todos como que se confraternizavam antes do embate judicial, em torno dos deliciosos pastéis. Paulo Brandão costumava invocar Cristo em apoio à proclamação da inocência do acusado. E dizia: "por esse Cristo que aqui está o réu é inocente" ou "por esse Cristo que aqui está o réu agiu em legítima defesa". Fosse a tese que fosse Cristo era chamado para reforça-la. Pois bem, certa feita, após fazer a sua chamada divina virou para trás e não viu o Cristo. Não se deu por rogado "o réu é inocente por esse Cristo que não está aqui, mas que deveria estar"... e continuou a sua peroração. Recordo-me com carinho e saudade de dois oficiais de justiça que atuavam no 1º Tribunal do Júri, Pinheiro e Mesquita. Por trabalharem nas sessões, entravam na sala secreta durante as votações, para recolherem os votos dos jurados. Um passava com o saco para recolher os votos válidos e o outro os votos não computáveis. Essa atuação os credenciava, segundos eles, a saber o perfil de cada jurado. Pois bem, um dia antes dos julgamentos de caso meu, iam ambos ao escritório. À época tinha escritório na Praça da Sé, 399. Iam com a lista de jurados em punho, para avisar-me que esse ou aquele jurado deveriam ser recusados, pois eram contumazes condenadores. Outros, ao contrário, com toda a tranquilidade poderiam ser aceitos, pois sistematicamente votavam com a defesa. Saiam do escritório com a sensação do dever cumprido para com o advogado amigo. Claro que com uns trocados também. Eram, além de zelosos funcionários públicos, eméritos boêmios, como tal sempre precisavam de um reforço orçamentário. Eu ia me esquecendo que em regra as suas indicações normalmente falhavam. Quem eu aceitava condenava, já o recusado, não se sabe... Em breve continuarei a comentar sobre o Fórum do meu tempo. Salvo engano, no Cartório do Segundo Tribunal do Júri havia um oficial de justiça, que em todo final de ano, às vésperas do natal, passava uma lista para ajudarmos no tratamento de um parente ou mesmo para que pudesse enterrar um amigo ou parente morto. Houve uma ocasião que passou a lista para os funerais da mãe que havia falecido. Com muita pena começamos a nos cotizar, quando alguém disse a ele que a sua mãe já havia falecido fazia alguns anos. Não se alterou, imediatamente tirou do bolso uma outra lista dizendo 'enganei-me quem morreu agora foi meu pai'...
terça-feira, 28 de julho de 2020

Mais um amigo se foi

Mais um amigo se foi. Pois é, as perdas acumuladas reapresentam o grande sofrimento imposto pelo avanço da idade. Engana-se quem atribui às limitações físicas, às restrições sociais, aos abalos psicológicos os maiores ônus do envelhecimento. Não. Nada disso. Todos esses percalços são suportáveis. Perder um companheiro querido isso sim, é o "X do Problema", para plagiar Noel Rosa. Como superar a perda. Não sei e duvido que alguém saiba. Toca-se a vida. Mas ela passa a ser vida capenga, manca, desfalcada. E, quanto mais se envelhece, mais se sente o desfalque. Carlos Drumond de Andrade disse estar andando de banda, por causa do vazio do seu lado esquerdo. É o meu caso. O vírus atingiu José Mentor. Ele não resistiu à "gripezinha". Outros que fariam menos falta do que ele estão resistindo e zombando. Macabra e funesta zombaria. Aliás, aquele que zomba, zomba do próprio povo brasileiro, vítima da cruel pandemia. Que Deus lhe poupe da perde de um ente querido. Eu tive uma perda. José Mentor amigo e companheiro. Cinquenta anos de convivência. Ele com quinze e nós, colegas da sua irmã Angélica de Almeida, da Turma de 1969, da Faculdade Paulista de Direito da PUC, com dezenove em média, já o conhecíamos. Ele acompanhava a irmã em nossas festas de calouros. Anos depois entrou na Faculdade. Teve intensa vida acadêmica, especialmente nas atividades políticas. Engajou-se no combate à ditadura militar. Esteve preso no Presídio Tiradentes. Sua opção pela luta em prol da liberdade, da democracia e dos direitos humanos manifestou-se desde sempre. Talvez desde o berço. Ingressou na política partidária e também passou a advogar. Corajoso, inquieto, inconformado com injustiças, reunia, pois, as características comuns ao político destemido e ao advogado verdadeiramente vocacionado. Defendeu no Parlamento causas em prol da coletividade e em sua banca postulou pelo primado da lei e da justiça. Durante anos amargou acusações que se mostraram infundadas. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal lhe fizeram justiça. Proclamaram-no inocente. Eu o acompanhei em todas as etapas do seu calvário. Sofremos juntos. Compartilhamos as dúvidas, as angustias, as incertezas, que se avolumam em épocas de insegurança jurídica. Eu sabia dos enganos e distorções das acusações. Mas será que os julgadores sabiam? Souberam e, repito, fizeram justiça. Mas não apagaram as marcas dos açoites, representados pela exposição mediática, pelos comentários levianos e desarrazoados. Sofreu, sofremos juntos. Superou galhardamente a injusta situação. É, Zé Mentor, você se foi. Nós ficamos, mas na verdade você está conosco. Como disse Fernando Pessoa a morte é como a curva da estrada, só não se é mais visto. Permanece a sua presença, mesmo com a sua ausência. Você continua ao lado de suas filhas e filho, seus netos, sua irmã e seus irmãos e todos os seus amigos e amigas. Mentor, aos domingos, doravante e como sempre foi, estarei sentado no banquinho em frente ao seu, no bar de casa, brindando à vida que juntos compartilhamos.
quinta-feira, 28 de maio de 2020

O inconformismo de um acadêmico

Imensa alegria ele proporcionou à sua família. Ingressara na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1942. Família de origem libanesa, os pais e demais parentes eufóricos e orgulhosos divulgaram por toda São José do Rio Preto, sua cidade, a notícia de que o filho de imigrantes se tornara um Acadêmico das Arcadas. O novo calouro iria, com certeza, recompensar com brilho e bravura os esforços daqueles que se sacrificaram e contribuíram para o seu êxito. A emoção ao ingressar pela primeira vez no prédio da Faculdade causou-lhe indescritível emoção, perpetuada em suas memórias transmitidas a mim em inesquecíveis encontros em Rio Preto. Essa sua emoção se estendeu por cinco anos, manifestada em cada atividade, em cada episódio, em cada momento vivido na gloriosa velha e sempre nova Academia, casa do culto ao saber e à liberdade. Quando passei a viajar pelo interior de São Paulo, no exercício da política de classe, em meados dos anos setenta e durante as duas décadas seguintes, eu era fidalgamente recebido por ele e pelo meu queridíssimo amigo Paulo Nimer, um grande advogado de júri daquela região. Aliás, uma região que à época reunia uma plêiade de notáveis oradores que se destacavam na tribuna da defesa. Assim, Paulo Nimer de Rio Preto; Fernando Jacob de Fernandópolis; Roberto Rolemberg de Jales; Moacir Castro de Olímpia; pontificavam no Tribunal do Júri de toda a região. Nas minhas idas a Rio Preto, Gabriel e Paulo reuniam advogados da cidade e da região, que se tornaram grandes amigos, para encontros memoráveis no melhor estilo das tradições bacharelescas e boêmias. Havia sempre discurso, cerveja e música, tudo em abundância. Gabriel era colega de meu pai, da Turma de 1946. Nutriam recíproco carinho e foram amigos vida a fora. Bié, seu apelido, saudava o filho do seu companheiro Macacão, apelido de meu pai, como se saúda um filho. Abraço caloroso, sorriso de contagiante alegria e, durante a estada, gestos de cordialidade e de generosidade, que bem refletiam a sua origem árabe, interiorana e de acadêmico de Direito. Na Faculdade, Bié teve intensa participação política, tanto na política interna do Centro Acadêmico Onze de Agosto, quanto nas pugnas anti getulistas. Participava dos comícios, redigia manifestos, frequentava as assembleias do Centro Acadêmico, ia às passeatas. Enfim, passou, desde o primeiro ano, a ser um ativo militante da luta em prol da redemocratização do país. Houve ocasiões nas quais se viu cercado pela polícia em passeatas. Tinha dificuldades em correr junto com os seus colegas, em razão de um aparelho que usava em uma das pernas. Enquanto os seus colegas que fugiam eram detidos ele era poupado. Esse fato ao invés de alegrá-lo, o deixava profundamente aborrecido, para não dizer ofendido, humilhado até. Em uma dessas ocasiões, não se conteve e interpelou um delegado "por que nunca sou preso? Fica aqui o meu protesto. Eu quero ir para o DOPS". Pouco tempo após, a sua vontade foi satisfeita. No mesmo ano de 1943, em 2 de novembro, quando a Faculdade e o Centro foram invadidos, Gabriel foi preso com outros colegas, inclusive com o Macacão e, aí sim, levado ao DOPS. Anfitrião emérito, como já dito, recebia com enorme alegria todo aquele que fosse visitar a sua cidade ou nela trabalhar. Discorria com orgulho sobre a sua Rio Preto. Cantava a sua gente, a excelência do seu centro médico, a qualidade dos seus companheiros de advocacia, o crescimento industrial da cidade, o seu ativo comércio, e a qualidade culinária de seus clubes e restaurantes. Uma ocasião, levou um amigo de São Paulo para jantar no Automóvel Clube, não sem antes fazer apologia do requinte do seu bar e da sofisticação da sua cozinha. Sem dúvida se tratava do mais elegante Clube recreativo do interior do Estado, segundo a sua imparcial e insuspeita opinião... Assim que entraram no bar ele gritou para o garçom amigo "João, solta dois sanduiches de jacaré", de imediato veio a resposta: "Dr. Gabriel estamos sem pãezinhos". O garçom não quis desmentir o advogado, que deveria ter proclamado a qualidade e o refinamento do restaurante. Com certeza o garçom, que o conhecia de longa data, não quis desmenti-lo, e atribuiu a falta da iguaria à falta dos pãezinhos e não do jacaré.
sexta-feira, 8 de maio de 2020

Advocacia risonha e franca

Eles praticavam uma advocacia que se pode chamar de artesanal. Redigiam, batiam à máquina, iam diariamente ao fórum e às delegacias de polícia, pesquisavam jurisprudência nas várias publicações específicas, instruíam-se com a doutrina haurida dos inúmeros compêndios de suas bibliotecas, ou nas de colegas. Nos seus escritórios, desempenhavam funções que hoje são da atribuição de secretárias, estagiários, office boys, telefonistas, digitadores, arrumadeiras e algumas outras. Por outro lado, não havia na advocacia, mormente a do interior, a especialização. Eram, em regra, "clínicos gerais", pois atuavam em todas as áreas do Direito. Os honorários, bem, os honorários constituíam um capítulo à parte. Cobrava-se, mas raramente um advogado deixava de assumir uma causa por razões relacionadas à sua remuneração. Os clientes pagavam como podiam, mas em regra pagavam. O pagamento, especialmente aos colegas do interior, no entanto, nem sempre era em dinheiro. Muito, mas muito comum mesmo, os honorários serem saldados por meio da dação de algum animal ou ave. Galinhas e porcos faziam às vezes de moedas de troca, com muita frequência. Havia ainda, verduras, hortaliças, queijos, goiabadas, cachaça. Diga-se, sempre de excelente qualidade. Em regra, essa forma de saldar os honorários era sempre acompanhada de um ingrediente que obrigava os advogados a aceitá-la: a gratidão. A maneira mais eficaz e eloquente de demonstrarem o seu agradecimento pelo empenho e pela dedicação dos bacharéis era a entrega de algo que lhes era caro. E, veja-se que em certas regiões, para sitiantes e agricultores, como eram valiosas as galinhas, os porcos, as verduras e as hortaliças. Essas eram algumas das características da advocacia de anos atrás. Outra marca daquela época, era a ampla cultura humanística dos profissionais do direito. Mercê de um largo cabedal de conhecimentos e da rica experiência humana que a profissão ainda proporciona, eram eles dotados de espírito refinado, aguçado senso crítico, humor sutil e elegante e uma tendência para extrair dos fatos da vida o seu lado pitoresco e por vezes hilário. Um significativo episódio bem ilustra o senso de humor, a ágil inteligência e a maravilhosa capacidade de rir de si mesmo de um veterano advogado do interior do Estado, da cidade de Barretos. Uma longa fila se formara para o acesso ao caixa do banco. Ao lado dessa, havia uma outra sem uma viva alma. Segundo o aviso ela se destinava aos deficientes, enquanto aquela às pessoas sãs. O advogado Kalil Salles, como de hábito, trajado com esmero, sorriso aberto e com o seu permanente ar de superioridade, não a pseudo superioridade dos arrogantes e dos presunçosos, mas daqueles que encaram a vida com complacência e com bonomia, olhou a longa fila e dirigiu-se ao outro guichê. Todos os clientes do banco que estavam na fila à unanimidade gritaram "saia daí Dr. Kalil e venha para o fim da nossa fila. O senhor não é deficiente". Em face do clamor geral, o sagaz, irônico e espirituoso velho advogado reagiu, defendendo-se: "Por acaso há deficiência maior do que a BROCHURA?" Com certeza mentiu, ao se atribuir uma particularidade inexistente. Mas, não se importou em negar a sua virilidade para ser atendido com rapidez. Afinal, pouco se lhe dava acreditarem ou não em sua patética confissão. Kalil, atualmente, está em outras e melhores paragens. Também lá não ficou na fila. Foi acolhido de pronto pelo Anfitrião, e com ele vive tempos novos, novos e eternos, pronto para receber cada um de nós na hora certa, e aí sim, em obediência à fila...
segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um homem magnânimo

Ele era psiquiatra. Daqueles verdadeiramente vocacionados, impelidos desde tenra idade a desvendar a mente e a alma, especialmente as mentes com anomalias, e, em consequência, as almas conturbadas. Sua extraordinária vocação, aliada aos seus ininterruptos estudos e atualizações científicas e a uma ampla cultura humanística e universal, fez dele um dos mais renomados psiquiatras brasileiros. Aos seus conhecimentos teóricos adquiridos durante o curso de medicina e atualizados por toda a sua vida, foram acrescentadas atividades práticas desenvolvidas inicialmente no Juqueri e posteriormente no Departamento Médico do Estado, no setor de psiquiatria, e no Sanatório Bela Vista, do qual foi diretor clínico por décadas. Não se pense que a psiquiatria o deixou alheio à medicina em geral. Dotado de sólida formação clínica inerente ao ensino médico da sua época, meu tio Marizito, Eugênio Mariz de Oliveira Neto, diagnosticava com exatidão infalível. Olhava e após tirar a pressão, efetuar algumas perguntas dava o diagnóstico e indicava o médico especializado, que confirmava a sua opinião. Eu mesmo pude testemunhar essa sua capacidade. Não foram poucas as vezes que ele, com acerto, detectou doenças em minha mãe, vítima de uma patologia cardíaca que provocava não poucos efeitos colaterais. Assim que a via, indicava o médico especialista que tratava da doença por ele indicada. A sua retidão de caráter e fidelidade a seus princípios eram acompanhadas por outros dois atributos que ornavam a sua personalidade e marcavam a sua conduta: o seu desprendimento e a sua generosidade. Não foram poucas as suas demonstrações de solidariedade e de sensibilidade em face das dificuldades daqueles que o cercavam. Supria as necessidades médicas e emocionais das pessoas, assim como as carências materiais. Quantas e quantas vezes socorreu os que necessitavam de um conselho, de uma orientação, da indicação de um rumo. Eu sou testemunha das inúmeras ocasiões que amparou quem o procurava. Eu mesmo fui alvo de seu acolhimento, não poucas vezes. Lembro-me de um fato notável, a ilustrar essas suas características. Dessa feita o seu socorro foi material. Minha mãe, em 1958, submeteu-se a uma então pioneira cirurgia cardíaca, para desobstrução da válvula mitral. O cirurgião, professor Zerbini, realizava a cirurgia com o bisturi entre os dedos e com o tato procurava atingir a região a ser operada. Ainda não havia o aparelho que substituía o coração durante a intervenção. Tão delicada operação era dispendiosa. Profissional liberal papai não possuía folga financeira. Para fazer frente às despesas colocou seu carro, um Nasch, 1949, à venda. No entanto, premido pela necessidade inadiável da cirurgia, autorizou-a, na crença de poder, de alguma forma, saldar os honorários médicos e os custos hospitalares. Pois bem, a sua fé o acudiu. Na verdade, o salvou a bondade do seu irmão mais velho, Marizito. Sem nenhum alarde ou prévia comunicação, discretamente, em uma de suas visitas à minha mãe, no hospital Beneficência Portuguesa, deixou em cima de uma mesa um embrulho de jornal, como se o tivesse esquecido. Papai tentou alcança-lo no corredor. Ele já se fora. Dentro do pacote havia a quantia necessária para saldar as despesas que meu pai teria, com os honorários médicos, já conhecidos. A ausência permanente desse ser generoso, abriu uma clareira de solidariedade e de amor ao próximo, sentimentos que valorizam o ser humano e dão significado ao ato de viver.
terça-feira, 3 de março de 2020

Amor ranzinza

Sogra, ora sogra, quem não as têm não sabe o que representam. Mas antes de falar do seu significado, por questão de justiça e de reciprocidade, é necessário que examinemos aquilo que nós representamos para elas. O relacionamento é de dupla mão e as idiossincrasias, antipatias, implicâncias e sentimentos que tais, igualmente não constituem monopólio de uma das partes, a reciprocidade está presente. Para elas, nós somos os intrusos que vieram para furtar o bem mais precioso que lhes pertence, sua filha. Mas não é o ato físico da saída de casa para conosco morar. É mais, muito mais do que isso. A mãe que talvez dividisse o afeto da moça apenas com o pai, agora passou a ter mais um condômino no seu coração. E, talvez, talvez não, com certeza, pelo amado esse mesmo coração bate e pulsa mais do que por ela. Pelo menos, nos tempos iniciais do amor. Até então, ela possuía um controle quase absoluto dos passos da filha. Vejam bem, claro que hoje as relações entre mãe e filha estão totalmente modificadas, mas os episódios que vou narrar se passaram em fins dos anos trinta, início dos anos quarenta. Ademais, a mãe, futura sogra, era viúva, portanto, o afeto da filha até conhecer o usurpador, era seu com absoluta exclusividade, quase desde sempre, por que enviuvara muito cedo. Houve um episódio que os uniu: o nascimento do primeiro filho e primeiro neto. Ambos ficaram preocupados, ansiosos e aflitos a ponto de prometerem ir a pé até a Igreja da Penha, assim que o nascimento ocorresse. A mãe e o filho recém-nascido, ambos saudáveis, levaram sogra e genro ao cumprimento da promessa. Pois lá foram. Saíram do centro da cidade e se dirigiram pela Av. Celso Garcia até o alto da Penha. No trajeto, pelo menos no seu início o genro disparou, na certeza de que a sogra sucumbiria ao cansaço ou se chegasse, seria com grande atraso em relação a ele. Passou a olhar para trás e não mais a viu. Fato que reforçou a sua suspeita. Horas depois, chegou à Igreja da Penha. Entrou, comprou velas, acendeu-as e sentou-se para rezar. Olhou para o altar e espantado, perplexo, incrédulo, viu no primeiro banco os encanecidos cabelos da sogra. Com certeza chegara havia bom tempo, pois rezava um terço, e pode ver várias contas já rezadas... Alguns anos se passaram e ele pode comprar o seu primeiro automóvel. Um Ford Prefect. Pequeno carro preto, possuidor do pior molejo, da mais precária suspensão de todos os da época. Pois bem, ele fazia questão de proclamar que a transportava sempre que ela desejava. E, o fazia com prazer. Bom genro. Para poucos, no entanto, dizia que fazia questão de coloca-la no banco de trás e assim fazer o papel de seu chofer. E, por que o fazia? Porque, propositadamente, caia em buracos, para que ela batesse a cabeça no teto do carro. Ela, por sua vez, jamais se conformou com o usurpador do amor da filha. E, com ele implicava até o limite da tolerância. E, a tolerância não a melhor qualidade do genro. Assim, entre briguinhas, picuinhas e caras viradas, tendo a filha como anteparo, ambos viveram e conviveram até que ela se foi. Alívio para ele? Não, profunda, sincera e longa tristeza. Foi um típico caso de amor recíproco, amor ranzinza, mas amor.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Os anjos sem asas e o imortal

Você entra e elas correm. Em sua direção. A partir desse momento você passa a ficar protegido e amparado. "Chamo-me Joana e vou acompanhá-lo junto com a auxiliar Tereza durante toda o dia. À noite virão outras". Não se vestem de branco, mas, com certeza, possuem asas. Quando chamadas voam ao nosso encontro. Creio que muitas e muitas vezes são solicitadas por nada. Queremos vê-las e só. Nesses casos, atendem não ao físico, mas ao espírito. Acalmam, procuram retirar a angústia, a ansiedade, a solidão e o medo da morte. Há momentos nos quais o constrangimento, o pudor, a vergonha, eu sei lá, tomam conta de nós. Elas, no entanto, sublimam, em nome do sagrado dever de nos cuidar, quaisquer sentimentos que pudessem ter que as inibissem. Agem com a mais absoluta naturalidade. Refiro-me, dentre outros momentos, à hora do xixi. "Quero, embora não gostaria de querer, mas preciso fazer xixi". "Ah!, pois não", responde ela, como se o pedido fosse por um mero copo d'agua. "Vou buscar o papagaio". E eu penso: "Por que a denominação "papagaio"? Será que tem a forma da falante ave"? Então, ela traz o dito cujo, e ameaça retirar o lençol. Eu pulo, quase dou um salto. A impeço de continuar. "Não, grato eu mesmo faço", digo. Nessa altura, estou lívido ou completamente ruborizado, não sei. Bem coberto, faço o necessário encaixe, mas fico aguardando-a se retirar. Vigilante, ela se afasta da cama, mas não do quarto. Eu rezo para que ela se retire. Eu rezo e a minha bexiga implora, prestes a estourar. Ela percebe e sai. Alívio. Volta em seguida para livrar-me do papagaio, que eu a entrego. Há ocasiões que os querubins se distraem com o nosso sofrimento. Aliás, ponha sofrimento nisso. Como quando retiram o esparadrapo ou quaisquer outras colas que arrancam os nossos inofensivos pelos. Elas riem e dizem: "Viu só como mulher sofre quando se depila". Eu sei que depilação provoca incômodo. Mas, precisamos, nós homens, sofrer também? Sei que não nos fazem sofrer propositadamente. São as circunstâncias. Mas que gostam do nosso padecimento, isso lá gostam... Vejam, nem por isso perdem a sua condição de anjos. É uma questão ligada a hoje tão discutida "questão de gênero". Igualados na dor física, homens e mulheres se aproximam e viram um só gênero. Dramática também é a hora da punção de uma veia para retirada de sangue, colocação de soro ou algum outro procedimento. Os nossos anjos sinceramente sofrem quando não a encontram e devem ficar nos picando até o salvador encontro. O imortal Ignácio de Loyola Brandão, após passar por intensas agruras hospitalares, com excepcional poder criativo e esmerada escrita, nos legou o livro com o singular e delicioso título "Veia Bailarina". Está tudo lá. Tal como eu, Ignácio deve ter tido vários anjos a lhe amparar. No seu caso, os cuidados e a proteção foram tão intensos e eficientes que ele se tornou um imortal. Pôde sair do hospital e ir para a Academia Brasileira de Letras.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Culinária e cultura

Não são quaisquer ostras. Apenas as de Cananéia. O seu rigor culinário é equivalente ao seu apurado preparo intelectual e cultural. Aos noventa anos pensa e transmite as suas ideias e reflexões com uma clareza e objetividade, acerto e propriedade, como poucos o fizeram na história do país. Devo esclarecer que o seu gosto culinário e refinado apetite não se limitam às ostras. Sei de pelo menos duas outras iguarias de sua preferência. O kibe cru e uma perfeita combinação de sorvete de limão com um pouco de vodka, servidos como sobremesa em um prato de sopa. Quanto às ostras e ao kibe não é nem um pouco parcimonioso. A sobremesa, no entanto, é limitada a um único prato, embora fundo, a vodka impõe o limite. Os moluscos de Cananéia são comidos no restaurante Roma, normalmente às terças-feiras. Não todas as semanas, apenas ele as encomenda. São memoráveis almoços. Os companheiros são escolhidos por ele com o mesmo requinte que dedica à mesa. Cabeças pensantes, conversas agradáveis e, para mim, enriquecedoras. Não se imagine que enveredam para altas indagações filosóficas ou especulações metafísicas. Não, fala-se com propriedade dos temas da atualidade, das questões que a todos afligem, mas com leveza, graça, e, por vezes, com inteligência e ironia. Comentários sobre ausentes sempre há, até porque críticas a terceiros apenas à distância, pois de corpo presente é falta de educação... Delfim Netto nos comanda. Certo dia em que estávamos, ele, Élio Gaspari e eu no restaurante, depois de vários pratos de ostras, acompanhado de magnífico espumante, ouvi um dizer ao outro, quase sussurrando: "talvez agora um macarrãozinho, o que você acha?" Ao que o outro, no mesmo tom de pecado, quase envergonhado, aquiesceu prontamente. Eu, espantado, espanto que logo passou, aderia à inacreditável aventura gastronômica. De lá em diante, o macarrãozinho foi incorporado ao cardápio, com um acréscimo: além do alho e do óleo, por minha sugestão foi colocado aliche no spaghetti. O encanto desses almoços reside também na inteligência, na cultura e na verve de Élio Gaspari, o consagrado jornalista que se dedicou a revelar a história recente do país, cuidadosamente estudada e pesquisada por preciosos arquivos que possui, organizado com muito labor e esmero no curso das últimas décadas. Eu, por meu turno, limito-me a ouvir e a apreender o que é ensinado por ambos, fontes inesgotáveis de sabedoria, e de ricas experiências hauridas da profícua vida de cada um. Sou um afortunado, pois recebo sem nada dar em troca.
terça-feira, 2 de julho de 2019

Perus e peruadas

Uma afeição dos estudantes que data dos primórdios da gloriosa Academia era dedicada aos galináceos em geral, em especial aos perus, embora não desprezassem o galo, a galinha, codorna, faisão, perdiz e outras. Em face dos parcos recursos que a maioria dos acadêmicos contavam para as suas despesas ordinárias com locação, vestimenta, livros e as indispensáveis com os bares, bilhares, restaurantes e locais menos ortodoxos, nada sobrava para a satisfação de suas predileções culinárias e etílicas, que denotavam paladar sofisticado pelas iguarias e pelas bebidas de qualidade, inacessíveis a suas bolsas quase sempre vazias. Da conjugação desses fatores, dureza e bom gosto surgiu o hábito da rapinagem. Instrumento para suprir as carências dos futuros bacharéis era utilizado com alguma frequência. Quintais de casas, pomares e hortas de chácaras, restaurantes e bares, mercado municipal e todo e qualquer outro local onde houvesse suprimentos para as suas necessidades, eram com frequência visitados por eles. Frutas, legumes, bebidas, galinhas e perus e outros comestíveis quando apropriados qualificavam o furto de famélico, pois serviam para saciar a fome e a sede dos pobres jovens, cujas energias eram sugadas pelos estudos e, em maior dose, por outras atividades especialmente noturnas, voltadas para o culto da música - serenatas - do esporte - bilhar e carteado - da dança e outras... No entanto, rapinagens havia que não eram qualificadas pelos objetos rapinados. Por exemplo, o veado de ouro estampado em painel que foi arrancado da porta da botica do mesmo nome. Caso se possa dizer, esse furto foi seguido de arrependimento eficaz e caracterizado como furto de uso, pois o veado foi devolvido ao seu habitat. É bem verdade que a devolução se deu em face de uma promessa de recompensa em dinheiro, que foi cumprida, com a omissão da identificação dos autores da proeza. Rapinagens, ainda, tinham por objetivo suprir os serviços de mesa das repúblicas. Estas, embora estivessem, em sua maioria, mal conservadas, com um mobiliário precário e danificado, as mesas de refeições estavam ornadas por refinados serviços, com pratos, talheres, copos, que ornavam as mesas das mais aristocráticas residências. E, como explicar o contraste entre a pobreza dos imóveis e dos móveis, com o luxo das mesas. A rapinagem, ou melhor, as expedições de rapinagem feitas aos melhores restaurantes, cafés e hotéis de São Paulo. Eram eles os fornecedores compulsórios da prataria e da fina louça das mesas dos estudantes. Outras rapinagens, que não de alimentos ou talheres tinham a possibilidade de serem qualificadas: rapinagens sacras. Sim, nem sequer o campanário da Faculdade foi respeitado. Furtou-se o badalo do sino que, várias vezes por dia, tocava alto e bom som. Outro símbolo da Igreja foi vítima da estudantada: uma cruz existente na rua da Cruz Preta, hoje Quintino Bocaiúva. Não se pense que os estudantes podiam sempre usufruir dos frutos dessas apropriações. Havia decepções e frustações. Um exemplo ocorreu com o estudante Manuel de Almeida Melo Freire, o Almeidinha. Segundo disse aos seus amigos, havia ganhado um belo e suculento peru. Ninguém acreditou que o galináceo fosse um presente. Sabiam ser outra a sua origem. No entanto, aceitaram o convite para a ceia, após o término do teatro. Quando chegaram à casa, de pronto sentiram o agradável aroma do peru assado. No entanto, grande decepção. O peru não mais estava na bandeja, que fora depositada em um banquinho perto da porta da cozinha. Descobriu-se que uma quadrilha de gatos da redondeza se banqueteara com a cobiçada ave. Na verdade, os bichanos se vingaram dos estudantes, em nome de todas as vítimas de suas rapinagens. Uma característica da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é a continuidade de seus hábitos e costumes, que superam o tempo e são seguidos pelas gerações vindouras com as adaptações dos momentos históricos. Assim se deu com os furtos dos perus. Após as primeiras, ocorridas por volta de 1830, sendo autores da façanha os estudantes Antônio José de Figueiredo Vasconcelos, Serafim de Andrade e Antônio Ricardo, outras e tantas outras foram perpetradas durante mais de um século. Em 1948, uma grande empreitada para o surrupio de perus foi meticulosamente planejada e envolveu uns trinta estudantes. O audacioso projeto não poderia mesmo ser executado sem cuidadoso preparo, pois os galináceos seriam furtados à noite, do Parque da Água Branca onde se realizava uma exposição de animais. Divididos em grupos, cada um deles possuía com tarefas específicas, desde vigiar as ruas até a apreensão das aves. Nove gordos perus foram agarrados e levados para os carros de aluguel que esperavam nas imediações. Na noite seguinte houve uma memorável ceia no Centro Acadêmico, oportunidade em que foi criada a Ordem do Peru. A peruada, célebre festa de recepção aos calouros, realizada após terem recebido os temíveis trotes, nada tem com os perus, e nem com a sua subtração tradicional pelos acadêmicos do Largo. Trata-se de um desfile no qual imperam a graça, a ironia política, o sarcasmo, as vestimentas exóticas, por vezes sumárias, a música, os discursos, muitos sem nenhum conteúdo ou nexo, enfim as "palhaçadas" bem a gosto e no feitio tradicional da Faculdade, que denotam a inteligente criatividade dos moços que ao lado de agradarem pelo lado hilário, transmitem importantes mensagens de crítica social e política. Os acadêmicos sempre desde os primórdios da Faculdade o "ridendo castigat mores".  
terça-feira, 7 de maio de 2019

Fatos e fitas: tragédias

Não só amenidades, brincadeiras, boêmia, trotes, penduras e uma já intensa vida cultural marcaram o Largo de São Francisco do século 19. Fatos trágicos passaram para a história da Academia e de São Paulo, pois envolveram antigos alunos, transformados em destacadas figuras públicas e sociais. Dentre outros casos, dois merecem destaque. Abalou São Paulo o assassinato que envolveu Francisco de Assis Peixoto Gomide Júnior e sua filha, cometido na residência de ambos, situada à rua da Princesa, atual Benjamin Constant. Peixoto Gomide Júnior, formado no Largo de São Francisco em 1873, teve uma presença marcante na vida social e política de São Paulo, chegou a ser presidente da Província. Sua casa era frequentada diariamente por políticos, advogados, antigos companheiros da Faculdade, e por pessoas pertencentes a variadas camadas sociais, que vinham prestar-lhe solidariedade política e, especialmente, pedir-lhe favores. Além de filhos, Peixoto Gomide amparou e educou um mulato, Batista Cepelos, que graças ao seu apoio tornou-se promotor de Justiça e conhecido poeta parnasiano. Cepelos e uma das filhas de Gomide tinham um relacionamento estreito, que logo se transformou em namoro com vistas a um próximo casamento. Gomide desconhecendo o namoro, via nesse relacionamento uma amizade fraterna, pois Cepelos fora criado com os seus filhos, como se filho fosse. Aliás, veremos que na verdade filho era. No entanto, quando o casal revelou os seus sentimentos e comunicou a sua intenção, houve uma reação enérgica por parte do pai da moça, que se colocou ardorosamente contra o enlace. Inconformada, a filha não se submeteu à vontade paterna, desobediência pouco comum à época, e de forma obstinada e persistente tentou levar avante o seu intento. Recebeu o apoio de seus familiares, que não entendiam a resistência do patriarca. Até então ele demonstrara um afeto paternal por Cepelos. Estranho e inexplicável que não apoiasse o matrimônio. A resistência do pai, horrorizado pela possibilidade da filha se envolver em uma relação incestuosa e a obstinação da filha em se casar com aquele que ignorava ser seu irmão, um não querendo revelar a verdade e a outra a desconhecendo, transformaram esse drama humano em um tragédia que chocou São Paulo. Como não lograsse fazê-la desistir, Peixoto Gomide, para evitar a consumação do incesto, matou a moça e suicidou-se em seguida. Batista Cepelos era seu filho fruto de um relacionamento fora do casamento. Marcado pela tragédia, o poeta anos após, foi encontrado morto no Rio de Janeiro, para onde se mudara, após cair de uma elevação. Não foi elucida a natureza da morte, se acidental, assassinato ou suicídio. Outro homicídio repercutiu intensamente em São Paulo e em outras Províncias, especialmente no Maranhão, onde ocorreu. Teve como seu autor o desembargador José Cândido de Pontes Visgueiro, formado na turma de 1834 da nossa Academia. Vítima desse homicídio foi a jovem Maria da Conceição. Pontes Visgueiro nasceu em Maceió e cursou os dois primeiros anos de Direito na Faculdade de Olinda, transferindo-se para São Paulo onde completou o curso. Segundo consta, a sua vinda se deu porque, nas férias escolares, passou a namorar uma moça de Maceió, que não era do agrado de sua família. Esta obrigou-o a vir estudar em nossa cidade. Já nos primeiros anos na Academia mostrou ser portador de um temperamento agressivo. Andava armado com uma longa faca, fato que trazia intranquilidade para os colegas. E não era gratuito o receio dos demais estudantes. Certa ocasião, agrediu com canivetadas a um colega pois este fizera uma pisada que o desagradara. Consta, ainda, que em uma noite atirou pedras contra as janelas da Casa da Marquesa de Santos, onde se realizava um baile. Exerceu a magistratura em Maceió e posteriormente em cidades da Província do Piauí, após um período na política, tendo sido deputado pelas Alagoas. Posteriormente, foi desembargador na Província do Maranhão. Quando já desembargador, conheceu em São Luiz uma moça que mendigava pelas ruas do centro. Contava ela não mais do que 15 anos de idade. Ele beirava os setenta. Apaixonado pela jovem, o ancião foi tomado por avassalador ciúmes, que o levava a agir violentamente contra a moça e contra quem ele entendia a estar cortejando. Toda a pequena sociedade local comentava o comportamento do magistrado e antevia a tragédia que acabou por ocorrer. Mariquinhas, assim era conhecida Maria da Conceição, desapareceu por uns tempos, após ter sido flagrada por Pontes Visgueiro aos beijos com um jovem estudante. Ela conseguiu safar-se da ira do velho amante, o que não ocorreu com o moço que sofreu enfurecida agressão. Durante várias semanas insistiu para um reencontro com Mariquinhas, que se esquivava por medo de represália. Cedeu por fim. Acompanhada por uma amiga foi à casa do desembargador. Durante algum tempo o encontro foi agradável, com o velho apaixonado desdobrando-se em gentilezas. No entanto, quando a amiga se retirou, o martírio de Maria da Conceição teve início. Ela foi segura por um empregado de Visgueiro, que estava escondido na casa e colaborou na prática do crime, que já vinha sendo planejado há vários dias. Enquanto o empregado cúmplice chamado Guilhermino, a agarrava e a imobilizava pela garganta, o criminoso a esfaqueava e dava-lhe mordidas por todo o corpo, após aplicar-lhe clorofórmio nas narinas. Os requintes de crueldade, impressionaram as autoridades, que de plano vislumbraram um grave distúrbio mental, antes mesmo que Pontes Visgueiro fosse submetido a exames psiquiátricos. O trecho comporta um parêntese para lembrar que o velho desembargador quando criança já fora acometido por grave enfermidade, que o marcou física e talvez psicologicamente, pela vida afora. Uma febre retirou-lhe a fala e a audição. Os sentidos voltaram, mas, aos quarenta anos perdeu a escuta por completo. Após o horrível crime, cometido com fúria e com perversidade, o corpo de Mariquinhas foi colocado em um caixão e enterrado no quintal da casa. O caixão fora encomendado há dias. O advogado Franklin Doria, um dos mais notáveis da época, década de 70, do século XIX, discordou da tese do acusador que afirmara ter sido o homicídio premeditado, meticulosamente planejado, especialmente em razão da encomenda do caixão. O defensor, ademais, postulou fosse reconhecida a ausência de higidez mental por parte do desafortunado magistrado. No entanto, sobreveio a condenação imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça. A pena originária foi a de galés perpétua, substituída pela prisão perpétua, pois contava o velho desembargador com mais de sessenta anos. Foi encarcerado na Casa de Correção do Rio de Janeiro. Em certa ocasião, quando da visita do ministro da Justiça ao presídio, Pontes pediu e foi atendido, para se avistar com a autoridade. As perguntas do condenado eram respondidas por escrito em razão da surdez que o acometia. Perguntou ao ministro sobre a sua aposentadoria, pois se dizia desembargador. A resposta o teria chocado e abatido profundamente - "Foi".  
sexta-feira, 29 de março de 2019

Estripulias de estudantes e de professores

O contraste entre a pacatez de uma sociedade acostumada às rígidas rotinas familiares e às poucas atividades sociais, marcadas também por não menos rígida liturgia, e a febril, buliçosa e provocativa conduta dos seus novos habitantes, vindos de várias partes do país, começavam a imprimir uma conotação cosmopolita à cidade e a lhe proporcionar novos horizontes culturais, políticos e sociais Os estudantes de Direito do Largo de São Francisco inauguraram novos hábitos e, principalmente, foram responsáveis por eventos jamais vistos na pauliceia. Alguns hilários, outros assustadores, mas que sempre retiravam a cidade do marasmo costumeiro e forneciam abundante material para comentários, disque disques, fofocas, bisbilhotices de toda ordem e natureza. Estava a sociedade de São Paulo se civilizando. Como exemplo de um desses eventos, imagine-se, naquela época, uma figura eminente no meio jurídico e social ser flagrado, por outra não menos importante, no quintal da casa, em idílio amoroso com uma escrava serviçal. Não se pense ser o fato raro, mesmo à época. Raro era o flagrante. Pois bem, o juiz de órfãos de São Paulo, dr. Elias Chaves, certa noite, ouviu estranhos ruídos no vasto quintal de sua casa, localizada no então Largo da Glória. Tratava-se de uma chácara com vasto pomar, árvores e aprazíveis locais cercados por flores e plantas de todas as espécies. Aliás, assim eram todas as residências daquela época. Chácaras de grande extensão que abrigavam casas senhoriais, amplas e imponentes. Estando-se nesses locais, a impressão era de se estar em uma propriedade rural. Essa ideia era reforçada pela existência de animais criados nas vastas áreas externas à casa. Em face da inusitada movimentação o juiz armou-se com uma longa bengala de rumou para fora. Estivéssemos nos dias de hoje, o dr. Elias Chaves se municiaria de arma de fogo. Assim agiria, influenciado por estímulos oficiais, que pregam a utilização de armas de fogo, para que cada cidadão não titubei em aplacar os seus receios, resolver as suas pendências e superar as suas frustrações, à bala. Quando se aproximou da zona de perigo, reconheceu uma sua escrava, doméstica da casa, em ardoroso idílio com um parceiro, prontamente desaparecido. No dia seguinte, o juiz de órfãos levou o ato ao conhecimento do delegado Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, formado em São Francisco em 1838 e futuro professor da escola. Residia ele na hoje rua da Glória, chamada então de Chácara dos Ingleses, quase em frente ao Largo da Glória, local da Chácara de Elias Chaves. As investigações não lograram descobrir o companheiro da jovem no bucólico e furtivo encontro amoroso. No entanto, posteriormente, o Dr. Francisco Furtado empenhou-se fortemente para conseguir a libertação de uma escrava que executava serviços caseiros para a família do dr. Chaves. Esse fato parece ter reavivado a memória do juiz de órfãos, pois teve confirmada uma desconfiança que lhe assaltou desde a visão do vulto que fugia de seu quintal. O suspeito deveria mesmo ter sido o seu vizinho, delegado de polícia. Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a adotar condutas e práticas que se perpetuaram pois foram assimiladas por todas as gerações vindouras. Uma delas foi o pendura. Não há registros sólidos dos primeiros penduras dados em São Paulo. No entanto, é certo que as mesmas razões que impeliram os estudantes à prática das famosas rapinagens motivaram-nos a "pendurar" despesas em bares e restaurantes. E qual a razão? Sem dúvida foram duas as razões, a fome e a falta de dinheiro. Rapinagens e penduras famélicos. Aliás, os penalistas podem afirmar sem medo de erro que o furto famélico encontra as suas raízes no Largo de São Francisco, ou melhor na situação de penúria de inúmeros de seus primeiros estudantes. Há registro de um acontecimento ocorrido em um restaurante da então freguesia da Penha, que pode ser considerado o embrião dessa tradicional prática que perdura até hoje. Os alegres estudantes, depois de se fartarem com iguarias e fartas doses etílicas, verificaram estar desprovidos de numerário suficiente para fazer frente às despesas constantes da conta apresentada pelo já preocupado proprietário. Em face do impasse, liderados por Filástrio Nunes Pires, saíram em defesa de um colega, cuja companheira estaria sendo molestada com gestos e olhares pelo caixa do estabelecimento. Da grande algazarra, os estudantes passaram a ameaçar fisicamente o funcionário que nada entendia, pois nada fizera. Tão grande foi a confusão, que o dono do restaurante pediu que os acadêmicos se retirassem. Foi prontamente atendido pelos jovens, que saíram eufóricos pois aplacaram a fome e a sede e mantiveram intactas as suas parcas finanças.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas: Academia de Direito e de Música

Ao diversificado universo das atividades estudantis, desde as desenvolvidas em sala de aula, talvez essas as de menor intensidade, passando por seus folguedos e peraltices, passeios, serenatas, saraus, escritos em jornais, poesias, clubes literários, proselitismo político, discursos, até a intensa boemia, não poderia faltar a música. Ela já surgiu no próprio dia da instalação do Curso de Direito, em 1º de março de 1828. Dia de festa, de gala, de discursos infindáveis, muito formalismo e de farta mesa de doces. Afinal, a efeméride estava a justificar toda a pompa e circunstância que a sociedade da época sabia produzir. O discurso principal ficou a cargo do primeiro professor da Faculdade, José Maria de Avelar Brotero. Registros da época, inclusive do jornal Farol Paulistano, talvez o único de São Paulo, mostraram que a fala procurou retratar a alegria e o orgulho de toda a população paulistana, pelo histórico acontecimento. São Paulo estava a partir dessa data sediando o primeiro curso superior do Brasil, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Lembre-se que de acordo com a lei de 11 de agosto de 1827, além de São Paulo a cidade pernambucana de Olinda iria abrigar como efetivamente o fez, um curso de Direito para os jovens das regiões norte e nordeste. No entanto, a sua primeira aula se deu em maio de 1828, portanto após a inauguração da Faculdade de São Francisco. Nesse dia, não constam erros de pronúncia, nem trocas de palavras por parte de Brotero, fatos que passariam a ser corriqueiros compondo um folclore que acompanhou o professor por toda a sua vida, as famosas "broteradas", palavras pronunciadas em conjunto: "limenta com pimão", ao invés de pimenta com limão; "vidrada quebraça", no lugar de vidraça quebrada, "cidadeira brasilão" em substituição a cidadão brasileiro. As trapalhadas igualmente estavam presentes nas frases completas. Assim, ficou célebre o dito campestre "o gado a saltar de galho e galho, os passarinhos a pastarem pelo campo". O Imperador Pedro II também pode testemunhar as confusões verbais do professor Brotero. Quando em visita à Faculdade, Brotero apresentou ao Imperador o Cônego Fidelis, professor de Retórica: "Apresento Vossa Majestade o Cônego Retórica, professor de Fidelis". Uma outra característica de Brotero era o seu temperamento irascível e o seu mau gênio. O seu alvo principal era o Diretor da Faculdade Coronel José Arouche de Toledo Rendon. No entanto, atingia outros professores, alunos e até funcionários da escola. Um bedel que terminado o seu expediente ia ler jornais na biblioteca, não conseguia o seu intento, pois quando Brotero o via, dava-lhe algo para fazer, não permitindo que permanecesse parado, lendo. Aliás, a alcunha desse servente era Zé Quieto. Tratava-se de um negro. Em relação a outro funcionário, Chico Guaiaca, sabendo que tocava em uma banda, determinou que optasse, ou a Faculdade ou as exibições musicais. Não se sabe se a opção foi feita. Além de Zé Quieto e de Chico Guaiaca um terceiro servente caiu em desgraça. Era o Mendonça, que no entanto, não permaneceu silente diante das provocações. Após algumas implicâncias, enfrentou o professor Brotero dizendo-lhe "não me persiga, porque eu também sou maluco". Voltando à instalação do curso jurídico em São Paulo, nessa data houve a primeira manifestação musical no Largo de São Francisco. Foi executado o denominado "Hino da Inauguração". Segundo algumas fontes o único registro existente a respeito foi feito pelo jornal "Farol Paulistano", que, no entanto, não informou o seu autor. Esse hino parece ter tido vida efêmera, pois foi substituído pelo "Hino Acadêmico", com letra de Bittencourt Sampaio e música de Carlos Gomes. Inúmeras outras composições, durante a história da Faculdade, cantaram e louvaram as Arcadas e os seus estudantes, inclusive as famosas trovas acadêmicas, relegando ao esquecimento o Hino da Inauguração. A respeito da autoria desse primeiro hino há uma especulação em torno do nome de André da Silva Gomes, um antigo professor de música que residia em São Paulo. Alguns dizem poder ter sido ele o responsável pela peça ou, mesmo, algum de seus alunos. O violão, a viola e a flauta eram os instrumentos mais utilizados pelos estudantes. No entanto, houve um, hoje pouco conhecido com esse nome, o oficlide ou oficleide, que não era executado por aluno, mas sim pelo contínuo da Faculdade de alcunha Chico Guaiaca, o mesmo que foi alvo de Brotero, que o tocava em uma banda de música. Os estudantes portadores de dom musical, quando revelado, recebiam algumas vantagens e privilégios dos professores simpáticos à música. Consta que um sisudo mestre era generoso e benevolente com um aluno, aliás péssimo aluno, mas um exímio tocador de flauta. Por tal razão, o professor dava-lhe altas notas não consentâneas com a qualidade de suas provas. Alguns mestres se insurgiram e negaram a aprovação ao flautista. O seu protetor, no entanto, disse que agiria da mesma forma em relação aos alunos protegidos pelos seus colegas de congregação, reprovando-os. Sem oposição, o mau aluno pode ser matriculado no ano posterior. Houve um momento no início da Faculdade, que os professores resolveram agir com maior rigor na avaliação dos alunos. Consta de um ofício às autoridades do Império, que os professores seriam mais rigorosos e não aprovariam os "vadios, que se ocupavam em fazer travessuras e desordens". Vê-se que os seresteiros, boêmios, os que perambulavam pela cidade e seus arredores, os dedicados às letras, à música e a outras atividades extracurriculares teriam dificuldades em obter êxito nos exames. No entanto, como em regra os travessos, peraltas e desordeiros possuíam uma inteligência ágil e vivaz, o pouco que estudavam era suficiente para a aprovação. Assim era e assim é. Dentro desse sistema de maior rigidez e disciplina, nem sequer apresentações artísticas de estudantes eram permitidas. Foram, inclusive, proibidas exibições no recém criado "Teatro Acadêmico" e nos outros poucos palcos existentes em São Paulo. Os estudantes, no entanto, não aceitaram as imposições superiores e passaram a atuar em locais aonde o povo pudesse ir. O Largo de São Gonçalo, hoje Praça João Mendes, tornou-se palco de apresentações teatrais e musicais especialmente nas tardes de domingo. Os pendores artísticos musicais dos estudantes de Direito foram manifestados, por vezes, em situações as mais inusitadas. Em razão de um atrito com a polícia dentro do Teatro do Pátio do Colégio, na presença do então Presidente da Província Coronel Joaquim José de Luiz e Souza, vários estudantes foram presos. Não se sabe exatamente por quantos dias. Segundo uns registros por vinte quatro horas, de acordo com outros durante onze dias. No entanto, durante o tempo que estiveram encarcerados a cantoria não cessou. Entoavam músicas conhecidas ou improvisavam letras, que ecoavam por toda a redondeza. Em outra oportunidade, um estudante que fora preso por agredir o professor Brotero, ficou durante todo o período de encarceramento na cadeia pública localizada no Largo de São Gonçalo, a cantar e a tocar violão. Nos primórdios da Faculdade alguns estudantes se destacaram, em razão de seus dotes musicais. O magistral jurista Teixeira de Freitas, quando estudante do Largo de São Francisco, deliciava os seus colegas de República com o seu violão, que tocava deitado em uma rede. O notável baiano tinha preferência pela música "A vida do Estudante", composta por seu colega Antônio Queiroga. Teixeira de Freitas veio transferido da Faculdade de Olinda, mas não se formou em São Paulo. Colou grau na mesma Olinda, para onde retornou, quando estava no quarto ano. O autor de "O Guarani" e de outras obras que o elevaram à condição de um dos maiores escritores do Brasil, José de Alencar, formado em 1850, embora não fosse músico, além de haver inspirado Carlos Gomes, na composição da ópera do mesmo nome, escreveu a letra de outra ópera, "Noite de São João" . A música foi do também famoso maestro Elias Lobo. É interessante notar que os dois grandes músicos, Carlos Gomes e Elias Lobo, embora não tivessem estudo Direito, tiveram as suas carreiras ligadas aos estudantes de Direito do Largo de São Francisco.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas : Academia de Direito e de Letras

As crônicas da época já registravam o comportamento dos estudantes e a vida que passaram a levar em São Paulo, com influência marcante no próprio modo de ser da pacata sociedade do pequeno burgo. O comportamento, o modo de ser, os hábitos trazidos pelos acadêmicos acompanharam todas as gerações de franciscanos, até as mais recentes. Souberam elas honrar o legado construído desde os primórdios da Faculdade e que passou a constituir as gloriosas tradições acadêmicas: a boêmia, a irreverência, a permanente alegria de viver, a dedicação à poesia e à música, as disputas ideológicas, a adoção das causas libertárias, a solidariedade, enfim o culto ao belo e ao humanismo. Eram os acadêmicos informais, indisciplinados, buliçosos, segundo um cronista da época, travessos, acriançados, autores de peraltices e de aventuras nunca antes presenciadas pela pacata população de São Paulo. Esses epítetos não incomodavam os estudantes, que tinham a consciência clara do tipo de vida que levavam e que desejavam mesmo levar, pois seu modo de ser brotava da própria essência de cada qual, da essência mesmo do acadêmico de Direito. Fagundes Varela pôs em verso o sentir do estudante: "Pode bem ser que livros não abrisse Que não votasse amor à sábia castaMas tinha o nome inscrito entre os alunos Da escola de São Paulo, e é o quanto basta". Um visitante da época, observador atento e arguto, fez uma análise comparativa entre os "dois povos" que habitavam São Paulo. "A capital da província e a Faculdade de Direito, o burguês e o estudante, a sombra e a luz, o estacionarismo (sic) e a ação, a desconfiança de uns e a expansão muitas vezes libertina de outros". Esse mesmo visitante, Augusto Emílio Zaluar, referiu-se aos acadêmicos como uma "colmeia mais ruidosa, infatigável em sua ação", que estava repleta de vida e de vontade, uma vontade que "produz o desvario e alimenta o gênio". A colmeia era habitada pelas "abelhas douradas que fabricam ao sol da juventude os primeiros favos da sabedoria e da ciência". Outros cursos nos meados do século XIX começaram a ser instalados na cidade. O Curso Anexo, como preparatório ao ingresso na Faculdade; o Gabinete Topográfico, que funcionou no Palácio do Governo, para a formação de engenheiros a serem preparados para a construção de estradas. A sua duração, no entanto, foi efêmera. Uma outra instituição de ensino criada em São Paulo, após a instalação dos cursos jurídicos, foi a Escola Normal de São Paulo, para a formação de professores. Surgiram, ainda seminários e várias escolas particulares, dentre as quais o Colégio Fonseca; o Colégio Emulação; o Colégio Ipiranga; o Culto à Ciência; o Ateneu Paulistano e outros. No entanto, mesmo posteriormente, com o funcionamento de outras Faculdades, especialmente Engenharia e Medicina, os estudantes de Direito continuaram a reinar absolutos em uma cidade que os havia incorporado em seu patrimônio social, cultural e político. São Paulo carecia de bibliotecas e de livrarias. O maior acervo estava na Faculdade de Direito, constituído majoritariamente por obras de teologia, menos de Direito e poucas de literatura. A falta de livros atingia as escolas primárias e secundárias. Segundo registro dos anos trinta e quarenta do século XIX, tal deficiência era suprida por cartões que reproduziam trechos das sagradas escrituras. A criação das primeiras tipografias possibilitou o início da imprensa na cidade. Jornais como "O Farol Paulistano"; "O Constitucional"; "O Correio Paulistano", assim como outras pequenas publicações sempre contaram com a colaboração de acadêmicos. Já por volta da década de 1860, eram inúmeras as publicações literárias e políticas redigidas por estudantes de Direito: Esboços Literários; Memórias do Culto à Ciência; Revista Dramática; Murmúrios Juvenis do Amor à Ciência; O Lírio; A Legenda; O Caleidoscópio; O Acadêmico, entre outras. Algumas dessas publicações eram manuscritas e outras eram impressas nas tipografias já existentes na cidade. Interessante notar que para suprir a falta de livros de ensino as tipografias foram de grande utilidade. Além da impressão de jornais e publicações variadas, elas foram responsáveis pela impressão de alguns manuais, especialmente de história. Assim, em uma tipografia existente na hoje extinta rua de São Gonçalo, foi impresso o livro "Resumo de História Universal". Júlio Frank idealizador da Bucha teria sido o responsável por tal publicação. As livrarias igualmente eram escassas. Uma das maiores e mais bem surtidas era a Garraux. Tornou-se um centro de confluência de professores e de estudantes. Além da atração básica que eram os livros, os seus frequentadores estavam sempre prontos ao intercambio de ideias, às discussões políticas e à troca de experiências literárias. Nessa época, meados do século 19, começaram a ser editados clássicos da literatura universal, assim como obras de autores nacionais, inclusive muitas escritas por acadêmicos ou antigos acadêmicos do Largo de São Francisco. Entre os que se dedicaram às letras, ainda como estudantes nos primeiros dez ou vinte anos da Faculdade, tiveram destaque Antonio Joaquim Ribas, Firmino Rodrigues da Silva, Francisco Bernardino Ribeiro e Francisco Otaviano. Posteriormente, a Faculdade veio a produzir nomes que se consagrariam na poesia e na prosa: José de Alencar; João Cardoso de Menezes; Almeida Rosa; Bernardo Guimarães; Alvares de Azevedo; Fagundes Varela e Castro Alves; Vicente de Carvalho e tantos outros. Contribuíram para o avanço das letras naqueles tempos as sociedades literárias e científicas então criadas. A primeira delas foi a Sociedade Filomática, fundada em 1833, pelo acadêmico Bernardino Ribeiro e pelos professores Carlos Carneiro de Campos, José Joaquim Torres e Tomaz Cerqueira. A Filomática foi seguida pelo Ateneu Paulistano, pela Associação Amor à Ciência, pela Arcádia Paulistana, pela Culto à Ciência, pelo Recreio Instrutivo, dentre outras agremiações. Há quem considere tais associações como embriões do Centro Acadêmico 11 de agosto. A literatura, em prosa e verso, a beleza da palavra falada e a música sempre estiveram presentes na história da Faculdade. O culto à estética e ao belo nunca se apartaram do culto ao direito e a Academia, do seu início até os nossos dias, abrigou juristas e poetas, advogados e musicistas, juízes e literatos. Eram prestigiados tanto os estudiosos, quanto aqueles que se destacavam nas artes. Dizem que esses eram até protegidos em homenagem aos seus dotes. Segundo um autor, Castro Alves, por vezes, foi aprovado pela beleza de seus versos, pois alguns de seus exames eram de duvidoso mérito.
terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Fatos e fitas: alegrias e lágrimas

Os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, desde sua fundação, deram à então tristonha cidade de São Paulo um vigor extraordinário. As peculiaridades da vida social, cultural e política que a marcaram no século XIX tiveram como gênese o Largo e seus acadêmicos. Naquele período não foram poucas as manifestações, inclusive de estudantes, de desagrado e pouca estima pela São Paulo da época. O retrato que passavam da cidade era desprimoroso. No entanto, transcorridas não muitas décadas a sua população deu mostras da generosidade e da grandeza da alma paulista, pois rendeu homenagens e reverenciou aqueles que no passado haviam sido seus detratores, e que se tornaram admirados poetas, literatos e homens públicos. Alvares de Azevedo, que segundo a lenda teria nascido na própria Faculdade, se referia a São Paulo como "cidade dos mortos", pois tudo nela lhe parecia "velho e centenário" a ela lhe provocava "tédio e aborrecimento". O futuro romancista Bernardo Guimarães mencionou que São Paulo, embora se apresentasse como um núcleo intelectual respeitável possuía características que lembravam a cidade tradicional da época de "Amador Bueno", o "paulista que não quis ser rei". Aclamado rei dos portugueses e espanhóis no século XVIII, na porta da Igreja de São Bento, abdicou da coroa antes de ser coroado. Olavo Bilac, por sua vez, em uma carta a um amigo dizia não poder viver "numa terra onde só há frio, garoa, lama, republicanos, separatistas, camelos e tupinambás". Em seguida afirmou viver trancado em casa decorando o texto da "Corpo Juri". Terminou informando ter a cabeça "cheia de rimas e de latim. Uma calamidade". Deve-se notar a falta de coerência do poeta. Veio a São Paulo do Rio de Janeiro onde trabalhara em jornal e cursara a Faculdade de Medicina. Abandonou o curso, e mudou-se para São Paulo, onde pretendia cursar Direito. Ao que parece saiu da Corte em razão de uma frustação amorosa. Passou a trabalhar na imprensa paulista, mas não se matriculou na Faculdade de Direito. Assistia aulas esporadicamente, na condição de ouvinte. Deu continuidade em São Paulo à vida boemia que levava no Rio de Janeiro. Frequentava com assiduidade o Bar do Jaça, o Grande Hotel, o Restaurante Faria e a Sereia Paulista, locais de encontro dos boêmios da época, constituída especialmente por estudantes, poetas e jornalistas. E a cidade, acidamente criticada por ele, como se viu, dele mesmo receberia, mais tarde, palavras de carinho e benquerença. Recordando os tempos em que aqui residiu, referiu-se a São Paulo como "esplêndida metrópole". Fez evocações sentimentais dessa época. "Naqueles dias de pouco sol e naquelas noites de muita garoa, já tínhamos dentro de nós esta atual cidade, esta esplêndida metrópole". Os estudantes, dentre eles o próprio Bilac, como se disse estudante de ocasião, entoavam orgulhosos uma cantiga alusiva à vida alegre que levavam: "andamos rindo às estrelas, boêmios endiabrados; apedrejando janelas; dos burgueses sossegados". A influência dos estudantes se fazia notar quando sobrevinham as férias. Com a academia sem atividades, muitos dos estudantes regressavam para as suas cidades e Províncias de origem. Nesse período, São Paulo mudava de fisionomia. Voltava a ser insossa, sem graça, quase sem vida. Segundo a afirmação de alguém que acompanhava a vida paulistana daquela época, durante o ano "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante, e só ele". Esta opinião é compartilhada por Emílio Zaluar, escritor nascido em Portugal, mas radicado no Brasil, em seu livro Peregrinação pela Província de São Paulo. Afirmou nesta preciosa obra que a cidade deveria ser analisada sempre sob dois pontos de vista. De um lado, a cidade em si, a capital da Província e de outro a Faculdade de Direito. "O burguês e o estudante a sombra e a luz, o estacionário e a ação" e após outras analógicas comparações, concluiu como derradeiro contraste, a rotina da população com as "audaciosas tentativas de progresso encarradas na população transitória e flutuante". O estudante de Direito entrou na vida da cidade, quer formando um núcleo peculiar, quer exercendo uma influência decisiva para alterar a fisionomia de São Paulo e de sua sociedade a partir mesmo de 1828, ano do início das atividades da Faculdade. Os estudantes não só deram vida "às sombrias ruas da vetusta cidade colonial" como passaram a compor uma classe intelectual unida e homogênea, sensível aos apelos liberais e nativistas que agitavam a sociedade da época. Época na qual a coroa do Imperador não estava bem fixada em sua cabeça, aliás, segundo se dizia, na "cabeça amalucada de D.Pedro I". Na verdade, logo a partir de 1828, os estudantes de Direito passaram a predominar no pequeno burgo, impondo uma agitação e uma alegria até então inexistentes. Por outro lado, passaram a construir um ambiente de debates políticos e de formação intelectual e literária que deitou raízes na história de São Paulo, tornando-a nos anos vindouros o grande centro propulsor da cultura brasileira. Assinale-se que nos primeiros vinte anos de vida da Faculdade de Direito já era expressivo o número de estudantes de outros Estados, como, aliás, ocorreu nas décadas posteriores, até a criação de outras escolas no país. Os estudantes vinham do Rio de Janeiro; de Minas; da Bahia; de Mato Grosso; do Maranhão e de outros Estados, então Províncias. Em uma cidade, cuja vida social, intelectual e boêmia dependia dos estudantes, não poderiam faltar locais para as diversões menos ortodoxas. As casas das chamadas "mulheres de vida alegre", os lupanares, ou bordeis ou castelos, se já existentes, obviamente, aumentaram consideravelmente as suas "atividades" com a instalação da Faculdade de Direito. Uma das responsáveis pelas "casas" mais conhecidas, era Rita Clementina de Oliveira, conhecida por "Ritinha Sorocabana". As chamadas "madalenas" ou "dalilas" ou "cortesãs" eram reverenciadas e protegidas pelos estudantes, que em não raras vezes se apaixonavam. Muitas dessas mulheres quando os seus preferidos terminavam o curso e voltavam para os seus locais de origem, iam despedir-se na "árvore das lágrimas". Localizada no hoje bairro do Ipiranga, a árvore era o local do adeus, era a testemunha das tristezas, melancolias e lagrimas vertidas nas separações entre estudantes e suas amadas e entre os próprios acadêmicos ligados por sólida amizade constituída durante os cinco anos vividos no Largo de São Francisco.