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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Indispensável para sustentações orais

O acesso à tribuna constitui um grave momento para o advogado. Momento de tensão e que requer especial atenção. Não se pense que com o passar do tempo a ansiedade diminua. A insegurança, o receio de não se ir bem, a angústia gerada pela escassez do tempo de fala e outros pequenos distúrbios emocionais parecem que crescem com o aumento da própria experiência. Fenômeno paradoxal, mas real. Quando se é novato na profissão os erros e enganos são atribuídos ao noviciado. Qualquer hesitação na oratória, falha na argumentação, erro nas citações e tantos e tantos outros tropeços são compreendidos e relevados. A complacência já não está presente quando se trata de um profissional calejado. Ele é observado com lentes que captam não só os erros aparentes, mas as minucias que na crítica alheia são postas para comprometer o todo do seu trabalho. Ninguém perdoa os seus escorregões. Portanto, produzir uma sustentação acaba exigindo também uma boa dose de coragem para enfrentar todos esses desconfortos   emocionais.   Os imprevistos também atingem as sustentações orais. Em uma das minhas primeiras perante o Supremo Tribunal Federal, no voo que me levou à Brasília, a aeromoça derrubou um copo de laranjada que coloriu todo o meu terno. Além do terno bicolor eu e os que me cercavam fomos brindados com um odor de laranja até a aterrisagem do avião. O odor não me abandonou. Me fez companhia até o Supremo e comigo permaneceu durante a sustentação. Não sei dizer se o cheiro da laranja influenciou no julgamento. Não me lembro se obtive ou não êxito. Lembro-me, no entanto, que a reação da moça foi de tamanho constrangimento, as desculpas foram tantas, o choro quase indisfarçável, provocaram a minha solidariedade com a coitada. Com certeza, disse-lhe que não havia sido nada. Mentira.    Um outro episódio se deu em uma das salas do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo.  Para a sustentação oral o advogado na Câmara em que estava, subia-se em um pequeno estrado onde estavam a cadeira e a mesa. Pois bem, ao afastar a cadeira, o fiz com exagero, a ponto de derrubá-la do tablado, que por instantes se tornou um picadeiro. O terrível barulho, a recolocação da pesada cadeira no lugar, e  especialmente, a minha falta de jeito e de graça, quebraram o silêncio e a circunspeção do austero local. Mais recentemente, voltei ao Supremo Tribunal Federal, para uma sustentação perante o Tribunal Pleno. Ao assumir a tribuna percebi que ou havia emagrecido de repente ou o cinto não estava bem preso. A verdade é que as calças insistiam em não ficar na cintura, caiam. Por cima da beca eu as puxava, como podia. Essa incômoda manobra se deu durante toda a sustentação oral. Dias após a ida à Brasília, recebi em meu escritório um pequeno pacote muito bem embrulhado, acompanhado de um bilhete : "Amigo, receba esse suspensório que além da utilidade descrita nos dicionários" aí reproduziu o verbete e continuou  "SERVE PARA SUSTENTAÇÕES ORAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL"  assinado Edson  O' Doally" O eminente advogado baiano, que se tornou um querido e hoje saudoso amigo,  estava presente na sessão da quase queda das minhas causas, sentado bem atrás da tribuna. Deve mentalmente ter, por várias vezes, pensado - "Agora cai". Ao chegar em Salvador não teve dúvidas em me presentear com um suspensório, mostrando amizade e solidariedade, mas  principalmente quis evitar futuros sustos nas minhas idas à tribuna. Em tempo, não precisei usar suspensório, pois engordei e o risco das calças caírem desapareceu.
Eu já escrevi alguma coisa sofre o "Fórum do Meu Tempo". Escritos sobre advogados, personagens do dia a dia forense, situações pitorescas por eles vividas, entremeadas pelos dramas que acompanham a cena judiciária especialmente na área penal. Certos escritos foram dedicados às figuras de advogados que marcaram a profissão pela sua dedicação, amor ao direito de defesa, capacidade profissional, cultura e, especialmente, sensibilidade para amparar homens e mulheres levados às barras dos Tribunais. O objetivo, eu diria sagrado, sublime, desses advogados e daqueles verdadeiramente vocacionados, é emprestar aos que não tem nem vez e nem voz, além de sua inteligência, eloquência, capacidade argumentativa a sua coragem, especialmente nos casos em que a opinião pública se volta irada contra o defendido, por vezes instigada pela mídia. Como bem disse Sobral Pinto, a advocacia não é uma profissão para covardes. Ademais, sempre é preciso lembrar, que não defendemos o crime, mas somos porta vozes dos direitos e das garantias legais dos acusados dos que são sentados nos bancos dos réus. Agora, em continuação às minhas homenagens na forma de evocação, a referência será a um símbolo de uma advocacia alegre, espirituosa, romântica, exercida por um homem com tais características. Na verdade, um ser humano raro, que deu a quem o conheceu alento e esperança no porvir de um mundo mais sereno, pacífico, solidário e fraterno. Aliás, conviver com ele possibilitava assimilar esses traços, que eram os de sua personalidade. Sua presença era contagiante. Refiro-me a Carlos Mihich Bueno, o Caxixo. Formado na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1945, era  Considerado pelo meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, o seu amigo "Macacão", como excelente goleiro. O Caxixo são-paulino emérito. O Caxixo refinado e culto, gourmet e apreciador do bom copo. O Caxixo boêmio, amigo da noite e de tudo que ela proporciona. O Caxixo monopolizador de reuniões, pois magnífico "causer". O Caxixo, tribuno primoroso, grande comunicador no Tribunal do Júri. Para mim, o Caxixo amigo querido, cuja ausência é como a curva da estrada, eu só não o vejo, mas ele está presente, segundo a analogia de Fernando Pessoa, sobre a morte. Eu tive a honra de fazer um Júri com ele. Fomos assistentes de acusação em um julgamento em Tupã. A sua impecável atuação a todos encantou e a mim constituiu uma preciosa lição de como acusar sem perder a marca do defensor. Defendeu ele com esmero invulgar o direito da família da vítima a um julgamento justo e consentâneo com a verdade dos fatos. Os adjetivos, por mais generosos, não retratam com fidelidade e em sua inteireza a fecunda criatividade manifestada em situações diversas, por meio de comentários espirituosos, chistes, gracejos, pilherias tudo enfim que refletia a sua fulgurante inteligência. Caxixo se relacionava com grande facilidade. Barreira nenhuma o afastava das pessoas. Ideologia, raça, origem social, procedência, sexo. Bem, quanto a ele tinha óbvia e notória preferência. Sempre conviveu admiravelmente com elas. Todas, de todas as origens. Não se pense que o seu interesse era de um vulgar namorador. Não, era solidário e as ajuda efetivamente. Quando solteiro, frequentava a casa das moças antigamente chamadas de "vida alegre". Ou, hipocritamente, de "vida fácil".  Pois bem, quando estava nessas casas, já formado, era frequentemente requisitado para socorrer aquelas vítimas da incompreensão policial. Presas, ele imediatamente, lá mesmo nas casas, com a máquina de escrever sobre as pernas, impetrava habeas corpus, para libertá-las. Constantemente, se encontrava rodeado pelas colegas das infelizes presas, que o ajudavam fornecendo detalhes da prisão. Tratava as suas amigas e companheiras de forma absolutamente igualitária.  Certa feita comprara em uma doceria dois bolos, que deveriam ser entregues em endereços diferentes. Indagado, respondeu que um era para a Casa Militar e o outro para a Casa Civil. Rápido nos apartes, mas ligeiríssimo nas respostas aos que recebia, foi interrompido pelo promotor, que lhe disse "Vossa Excelência parece um purgante", e ouviu a resposta "E Vossa Excelência é o efeito desse purgante". O seu amor pelo São Paulo Futebol Clube era genuíno, suas raízes o remetiam à infância. Tal como os são paulinos daqueles tempos, Caxixo possuía grande orgulho de sua condição, pois o "clube mais querido da cidade" ou "o clube da fé" adquirira uma justa fama de clube bem dirigido, por pessoas de elevado nível intelectual, moral e ético, que lhe imprimiam uma organização esmerada. Caxixo não perdia jogos. Por vezes tinha que conciliar o trabalho com alguma partida disputada à tarde, em dia de semana. Pois bem, justo em uma dessas tardes teria que sustentar um Habeas Corpus, cuja relatoria era do não menos são-paulino ilustre desembargador Onei Raphael Pinheiro Oricchio. Ficou em palpos de aranha. O Tricolor jogava no Pacaembu. Como fiel torcedor que era, optou pelo jogo. Para tanto pediu adiamento do julgamento, sob a alegação de teria uma audiência em uma vara cível. O desembargador deferiu o pedido. O encontro seguinte que teve com o magistrado, após o adiamento, foi no mesmo dia. Em um local para onde ambos foram. Coincidentemente o Pacaembu. A mentira para ir ao futebol parece que era uma constante dos advogados e juízes torcedores do "mais querido". Certa feita, um vizinho correu para me avisar que papai estava aparecendo na televisão. É verdade. Estava envolvido em um entrevero nas numeradas do estádio, e foi flagrado pelas câmeras O pior não foi a briga e nem o seu televisionamento, foi a bronca que tomou de minha mãe, pois dissera que estava com um dia atribulado, repleto de compromissos profissionais. As agruras da advocacia, dentre elas os prazos processuais, uniram dois advogados com os elos da responsabilidade profissional e da solidariedade. Caxixo atravessou a Praça João Mendes às pressas, esbaforido, angustiado. Era necessário chegar ao balcão de protocolo antes que ele fechasse. Era o último dia, último minuto de um prazo. Quando entrou no saguão do Fórum sentiu-se mal e perdeu as forças para continuar correndo. Atrás dele passava o então advogado Antonio Carlos Malheiros, que agarrou a petição e a protocolou no último instante. Gestos de amor à profissão e ao próximo, sempre marcaram a advocacia.   E Caxixo era isso, um ser especial que gerava e recebia amor.
segunda-feira, 17 de maio de 2021

Banjo Boy

Nós o chamávamos de "Banjo Boy". Tratava-se de um morador de rua que perambulava pela Cubatão, Stella, Correia Dias e outras da região. Ruas situadas na ligação do Paraiso com a Vila Mariana. Maltrapilho, descalço, roupas esfarrapadas, barba rala, não andava, corria, de um lado para o outro, portanto um banjo ou instrumento congênere. Nunca falou, jamais gritou, não importunava ninguém. A sua voz nunca foi ouvida por nenhum de nós. Talvez fosse mudo. Embora o seu apelido fosse "Banjo Boy" nós não sabíamos com precisão qual era o inseparável instrumento que segurava apertado ao peito, como o seu único e precioso bem. Podia ser um cavaquinho ou um banjo, bandolim ou uma pequena viola. Violão não era. Optamos pelo banjo. Eu ia me esquecendo, o instrumento não tinha cordas. Fomos influenciados por uma música de sucesso na época, anos sessenta. Chamada "Banjo Boy": "Sempre alegre e feliz vai o banjo boy, banjo boy o trovador". O compositor dessa melodia deve ter se inspirado no nosso amigo. Com o seu mutismo, portanto sem nenhuma reclamação ou ato de hostilidade, passava a impressão de estar conformado com a sua situação, pelo menos aparentemente.  Não foi pequeno o período no qual ele frequentava as nossas ruas. Nós o estimávamos. Embora não falássemos, a empatia recíproca existia e se refletia na troca de sorrisos e de acenos de mãos, quando por nós ele passava. Como disse, vagava pelas ruas. Catava tocos de cigarros. Andava e corria sem parar. Queria, parece, acompanhar a voragem do tempo, para não ficar estagnado. A impressão que se tinha é que estava sempre à cata de algo  O seu banjo era intocável. Faltavam cordas e nele ninguém se atrevia em por as mãos. Esse ser humano, absolutamente sem eira e nem beira, tinha-nos como seus parceiros de olhares e de adeuses. Nós nos comunicávamos por meio de uma música jamais tocada ou ouvida. Talvez, até ouvíssemos ele tocar aquele instrumento sem cordas. Ele tocava e nós ouvíamos uma melodia sem som, mas de marcante sonoridade para nossos espíritos. O "Bancho Boy" representava a liberdade plena de ir e vir, andar como bem entendesse, morar em qualquer canto, não cumprir regras ou deveres sociais. Enfim, fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que não nos era permitido. Não invejávamos a sua vida, mas cobiçávamos a sua liberdade, que jamais seria nossa.                                                                   
segunda-feira, 26 de abril de 2021

Pinóquio e o boiadeiro

Lá vamos nós, brasileiros. Qual o trajeto a ser percorrido, e qual o nosso destino? Quem sabe? Ninguém. Com certeza não estamos indo ao encontro da verdade. Nenhuma das verdades que nos levariam a um destino melhor. Agruras pontuais, sofrimentos coletivos, distância da pátria dos nossos sonhos, é o que temos. Agora, acrescente-se o componente da farsa. Até quinta- feira, era o discurso agressivo, predatório, intolerante, discriminatório, instigador da violência e da destruição das instituições e tudo o mais que se tornou marca de uma gestão sem gestor. Depois dessa data, o já abominável cenário transformou-se em uma pantomima, sem a graça e a criatividade dos saudosos espetáculos circenses.   No centro do picadeiro estão os que mentem. Mentem a mentira plena, sem ressalves. E o fazem sem rubor nas faces, sem nenhum resquício de vergonha.    Nem nos contos da carochinha, nas fábulas de Esopo ou de La Fontaine, nos maiores ficcionistas da literatura mundial, encontramos criações tão audaciosas e distantes da realidade, como a fala presidencial desse dia 22, que substituiu o 1º de abril. Aliás, lembre-se que histórias infantis, fábulas, ficção possuem, em regra, conteúdo ético e moral. A fala bolsonarista, ao contrário, é o descarte, o desprezo por mensagens construtivas e edificantes. As suas falas querem a destruição, a desconstrução. Poder-se-á dizer que a ladainha de quinta, 22, foi repleta de promessas, compromissos, juras de amor pela Amazônia, pelos índios, pela floresta, pelas águas, pelo firmamento limpo de impurezas. Fala de um cultor fervoroso da obra divina, a natureza. Sua oração significaria uma conduta meritória de sua parte, pois reviu e reconsiderou sua anterior posição. Ora, ora, cinismo puro, oportunismo genuíno, desfaçatez descarada. Trata-se de um pronunciamento desprovido de seriedade e credibilidade, em face das reiteradas e recentes falas em sentido contrário. Aliás, recentes e de sempre. Como emprestar-se valor e honestidade a afirmações que até ontem eram levianas, frívolas, desarrazoadas. Como se enxergar uma repentina claridade, no lugar de uma densa treva? Estamos, agora, esperando ansiosos o pronunciamento do ministro boiadeiro. Os mugidos de seus bois com certeza nos trarão alento e esperança. Ele saberá conduzir o seu gado para o pasto e fechar as porteiras para que não haja um estouro da boiada, que seria muito a gosto dos desmatadores, incendiários, grileiros, latifundiários, ocupantes de terras indígenas e tantos outros predadores.   Só resta agora o presidente dizer que sempre temeu a pandemia e as suas consequências. Que sempre chorou os mortos. Que abominou a cloroquina. Que sempre defendeu o isolamento. Que sempre evitou aglomeração; que não mediu esforços para termos vacinas, etc. etc. Vamos aguardar. Quem viver verá. Eu espero estar vivo para vê-lo ir embora. Inclusive o ajudarei a fazer as malas, para que leve consigo os males que nos impingiu.   
terça-feira, 30 de março de 2021

O poeta da vila e a pandemia

Nunca, como em nossos dias, foi tão importante, indispensável mesmo, apelar-se para políticas compensatórias. Política na acepção de escolha, de opção. Compensações não materiais, mas no sentido de substituição do pior e do prejudicial pelo menos nocivo. Lembro-me de um livro, talvez filme ou novela, denominado "Poliana". A personagem praticava o chamado jogo do contente. Seu escopo era, exatamente, compensatório, pois, em face de uma situação desagradável, procurava elaborar um pensamento que extraísse da mesma situação algo de bom, reconfortante, que afastasse a sua contrariedade. Pois bem, em face da pandemia provocada pelo corona com as dolorosas e, até então, inimagináveis consequências, cada um de nós precisa cuidar da saúde mental e emocional, além da saúde corporal. À pandemia alia-se a pantomima provocada pelo cômico, senão fosse trágico, gerenciamento da crise e pelo desgoverno que nos conduz à beira do abismo. Várias fórmulas têm sido apresentadas. Psicólogos, psiquiatras, artistas, esportistas, escritores, fisioterapeutas e tantas outros profissionais têm, em suas áreas, procurado apresentar sugestões que aliviem os sofrimentos provocados pelo isolamento. A minha contribuição não é no campo das atividades concretas. Imaginei ser útil o exemplo de um compositor, poeta e filósofo, não de formação, mas de vida, que por meio de sua música retratou dramas do cotidiano, sempre com um viés de alegria. Soube tratar a amargura, a melancolia e a decepção com pitadas de ironia, chacota e muita graça.  As suas carências e desilusões, suas e de qualquer um, eram substituídas por deboches, piadas e caçoadas, marcadas por um humor inteligente e malicioso. Refiro-me a Noel Rosa. Fértil compositor, morto com vinte e seis anos, compôs duzentas e cinquenta músicas aproximadamente. Suas letras retrataram as várias nuances da sociedade da época, bem como reproduziram sentimentos e emoções pessoais, de forma por vezes dramáticas, outras cômicas, mas especialmente com ironia e muita musicalidade.    Seus olhos eram sagazes e captavam o âmago de cada episódio, modo de ser pessoal e conduta social. A sua inteligência e capacidade criativa transformavam as suas letras musicais em primorosa prosa, por vezes em belas poesias.   Algumas de suas músicas expõem com graça e com leveza situações de sofrimento e de carência, tornando-as menos penosas e mais aceitáveis. "O Orvalho Vem Caindo", mostra quem não tem onde morar, e um dia passa bem, dois ou três passa mal. Em "Conversa de Botequim", ele demanda pendurar a conta da média no cabide ali da frente; "Com que Roupa", daquele que não tem roupa para ir ao samba, mas vai se reabilitar; "Filosofia", de quem zomba da aristocracia que não tem alegria e cultiva a hipocrisia; "João Ninguém", de quem diz que muita gente tem luxo mas não tem a alegria que João tem. Estas, entre outras, dão exemplos de sua capacidade de transformar temas áridos em músicas alegres que cantam com o otimismo um porvir melhor. Caso estivesse conosco assistindo e amargando as consequências da pandemia, Noel saberia levá-la com fidelidade para a música. Mas, encontraria uma forma poética de fazê-lo e, com certeza, traria bem-estar ao espírito e descanso à mente. Utilizando-se do sarcasmo, da sátira e da blague, retrataria o comportamento de alguns homens públicos e apontaria aqueles que estupidamente negam o inegável e não valorizam a vida por, não se importarem com as mortes. Ouvir Noel Rosa não diminuirá a tragédia das mortes e das infecções, mas com certeza, mostrará ser a vida dotada de duas faces, sendo preciso sempre encontrar-se a que se oponha ao lado mau, injusto e destrutivo da existência.
terça-feira, 9 de março de 2021

Namoricos, namoros e traições

Minha neta de dez anos foi pedida em namoro por um colega de classe, por meio eletrônico. Respondeu, pelo mesmo caminho, que considerava o colega um amigo, mas que era cedo para namorar. Gostei da educada e conveniente resposta. Claro que achei o pedido prematuro, precoce e inadequado. Reação de avô cioso de seu papel de protetor das netas. Aliás, seis netas. Haja asas protetoras. No entanto, agradou-me saber que ainda se pede em namoro. Ou será uma prática limitada até os dez ou onze anos? Depois dessa idade dizem que nem namoro mais há. Há sim e eu provo. Não posso negar ter ficado feliz de já ter uma neta cortejada. Ah!!! Nessa hora lembrei-me que tenho uma outra neta, não cortejada, mas já em pleno namoro. Com 21 anos o namoro não é um mero flerte. Ela até já trouxe o felizardo para dentro das casas da família. Quando eu soube, logo me veio a possibilidade de ser bisavô. E eu externei a ideia para o casal. Fiz bem? Acho que não, pois fui alvo de grandes críticas. Talvez tenha sido porque além de querer ter um bisneto ou bisneta eu completei a ambos: com ou sem casamento. Interessante que a reação mais contundente a esse natural anseio partiu dos mais jovens da família. Isso mostra haver um conservadorismo ocupando uma baixa faixa etária.   Lembrei-me que no meu tempo pedia-se em namoro. E, mais, a escolhida por sua vez solicitava um tempo para responder. Normalmente eram necessários três dias. O prazo era fatal. No quarto entendia-se que a resposta era não. Ademais, se ela quisesse dizer sim nos dias posteriores o rapaz estava desobrigado de aceitar. Muitas vezes ele condescendia e a tolerância era maior quanto maior fosse o seu interesse. Certo dia um queridíssimo amigo pediu-me ajuda para pedir uma moça em namoro, que segundo ele já estava conquistada. Faltava, apenas, a formalidade do pedido. Esse se daria por telefone. Estávamos em minha casa. Combinamos que eu ficaria na extensão e quando entendesse ser a hora adequada eu iria avisá-lo. Dito e feito. Mas, mal feito. Assim que lhe dei o sinal, o amigo solenemente fez o pedido. Não precisou de nenhum prazo para vir a resposta. Em questão de segundos veio um sonoro e contundente não. Frustação geral. Dos amigos, que solidários tinham uma expectativa positiva. Do pretendente, certo da aceitação e minha, pois me julgava um ótimo consultor sentimental. Na verdade, a minha atuação não foi de toda desfavorável, pois, traindo o meu amigo, tempos depois estava namorando a mesma moça...
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O júri e a "grobata"

A advocacia é uma profissão multifacetada. As características que compõe a sua natureza levam-nos a afirmar ser ela ciência, pela gama de conhecimentos que exige; arte, em face da grande parcela de improvisação e criatividade que requer; e sacerdócio, pelo grau de renúncia e sacrifício aos quais se obrigam os advogados. Note-se que alguns aspectos pessoais distintivos do advogado que lhe emprestavam uma marca inconfundível, quais sejam a   indumentária, a escrita e o linguajar, estão sofrendo alterações. O advogado agora está aos poucos se desvencilhando da gravata e alguns do paletó. Na sua escrita está pondo de lado citações latinas, palavras em desuso, termos jurídicos desnecessários, longas citações doutrinárias e na oratória tenta seguir métodos modernos de comunicação em substituição ao discurso pomposo de outrora. No entanto, a advocacia mantem alguns traços imutáveis que vencem o tempo e são intrínsecos à sua personalidade e ao seu caráter. Uma das suas características é a atração que desperta na imprensa e na própria sociedade, mormente na área criminal. O elevado grau de humanismo, sensibilidade e emoção contido nos conflitos, e por vezes, o amor e o ódio suscitados pelos protagonistas da cena judiciária, são fatores de irresistível interesse coletivo.   A advocacia é um repositório de histórias reais, por vezes ficcionais, folclóricas, dramáticas e hilárias. Ademais dá ensejo à especulação midiática, asas à imaginação e a interpretações as mais díspares e antagônicas sobre o mesmo fato. Mais do que qualquer outra a advocacia criminal, pela natureza dos eventos que acolhe, os crimes, provoca a atenção e a curiosidade da sociedade, interessada pelo fato em si e pelo julgamento do acusado. Entre os litígios criminais, os que envolvem o crime de homicídio, tentado ou consumado, são os que mais dão ensejo a episódios pitorescos, tiradas de espírito, esgrimas verbais, gozações envolvendo advogados e promotores, rápidos apartes e respostas precisas. É na Tribuna do Júri que os seus protagonistas podem, com liberdade, dar vasão aos seus conhecimentos jurídicos, à sua agilidade de espírito e de raciocínio e à sua perspicácia e vivacidade de inteligência. Esses atributos postos nas discussões da causa e os dramas humanos que trazem uma identidade com o cotidiano das pessoas representam uma atração ao homem comum, independente de suas condições sociais e de sua cultura. O meu primeiro escritório foi na Praça da Sé, nº 399, onde meu pai esteve desde 1957. Prédio antigo, charmoso, a porta do elevador era "pantográfica", feita de pontas, que qual uma sanfona era aberta e fechada manualmente. O zelador era um português de nascimento, no Brasil desde a década de vinte ou trinta, que, embora sem nenhuma instrução, era portador de uma aguçada inteligência e um especial apreço pelo Tribunal do Júri. Quando podia ia assistir à uma sessão. Dizia e era verdade, que assistira aos júris dos grandes advogados da época. Os conhecia e deles falava com alguma intimidade. Dante Delmanto, Covello, Américo Marco Antonio Cirilo Júnior, Marrey Júnior, Waldir Troncoso Peres e outros eram submetidos à sua análise e crítica, sempre era rigorosa. Pois bem, quando comecei a atuar no Plenário do Primeiro Tribunal, nomeado pelo saudoso amigo e juiz Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão a presença do Adelino era obrigatória.       Sentava-se nos primeiros bancos do imponente salão do Tribunal do Júri, o primeiro, e lá ficava do início à proclamação do resultado dos jurados e da sentença proferida pelo magistrado. A partir de uma determinada época, passei a ser nomeado também pelo juiz Fernandes Rama, que presidia o Segundo Tribunal, localizado no quarto andar do vetusto prédio do Tribunal de Justiça. Lá também a presença de Adelino era obrigatória. Não pensem que o amigo comparecia aos julgamentos para me aplaudir. Ao contrário, passou a ser o meu crítico. Dizia ao final com o seu gostoso sotaque lusitano: "o menino foi bem, mas no meu tempo vi melhores". Por vezes, fazia críticas procedentes extraídas de sua inteligência intuitiva, embora inculta. Tenho enorme saudade do velho Adelino, que, esqueci de dizer, honrava as formalidades o Júri do passado, pois só ia às sessões portando uma gravata multicolorida, que ele pronunciava "grobata". Adelino, onde estiver, ponha sua "grobata" e olhe por mim. 
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Campos da várzea

Os dicionários dão à palavra várzea o significado de extensas áreas situadas nas planícies ou, ainda, o de terrenos cultivados e localizados à beira dos rios e dos riachos. Pois bem, estranhamente, a maioria omite o significado de maior interesse e alcance pelo menos para nós que habitamos as cidades. Várzea é o local aonde se pratica futebol fora dos estádios destinados a esse esporte. Não só o futebol, pois é um local destinado a outras atividades de esporte e de lazer. Lembro-me, na minha infância e juventude, no nosso "campinho", o do Olímpicos do Paraíso, situado na rua Stella com Oscar Porto, nós nos ocupávamos de práticas de outras naturezas. Jogávamos taco ou casinha. Com três pequenos pedaços de madeira, presos na ponta superior, fazia-se duas "casinhas", uma em cada ponta de um espaço determinado que deveriam ser derrubadas, com as tacadas ou arremessos da bolinha.  Empinar papagaio, soltar balões e outras brincadeiras, como "lasca romeu", "mãe da lata", "malha" e até "bocha", também ocupavam esse espaço. Aliás, por vezes, a sua destinação era desvirtuada. O campo se transformava em campo de batalha. Turmas rivais marcavam dia e hora para um confronto físico. Havia regras e normas que deveriam ser seguidas, como se obedece a um código de honra. Havia um número certo de contendores que não poderia ser ultrapassado. Riscava-se uma linha horizontal. Cada grupo ficava postado em frente ao outro, assim que alguém ultrapassasse a linha a contenda tinha início. Outra regra sagrada, nada de armas ou de qualquer instrumento que fizesse às vezes de tapas daqui, tapas dali, por vezes um soco e um pontapé e nada mais. Naqueles tempos as brigas eram incruentas, não se feria não se matava. Não raras vezes selava-se a paz, em um bar. O futebol era a destinação original desses campos. O futebol brasileiro muito deve a eles e aos "olheiros" que os frequentavam. O campo da várzea possui uma indiscutível relevância para a própria sociedade, especialmente para as suas camadas menos favorecidas. Espaço de lazer e de sociabilidade, democrático espaço. As agremiações de futebol localizadas nos bairros de São Paulo reuniam em torno de si não só jogadores como parte de seus habitantes. Os jogos especialmente os de domingo pela manhã atraiam adeptos do futebol, mas não só. Ali se confraternizava, bisbilhotava, flertava, namorava, petiscava e nos dias festivos ou dos grandes jogos, havia as célebres churrascadas, acompanhada de chope. Lembro-me que não havia "serpentina" para gelá-lo. Os barris eram cobertos por barras de gelo, envoltas em estopa para não que não se derretessem. O campo de várzea é uma instituição nacional, e com ele não se deve brincar. Centros de sociabilidade principalmente nas periferias, carentes de espaços públicos, torna-se imprescindível a sua manutenção criação em terrenos abandonados. Temos que resistir à voracidade da cidade que engole os seus espaços de liberdade, congraçamento e harmonia bem como a sua própria memória. Eles, embora em número bem menor do que no passado, ainda sobrevivem à ganância imobiliária. Certa vez, do andar alto de um prédio, algum barão do cimento, olhando para um conjunto de campos, exclamou suspirando: "que desperdício", estava se referindo-se aos prédios que ali poderiam ser construídos. Tempos depois aqueles campos foram substituídos por um parque. O barão teve que digerir a sua frustação. Abro um parêntese, para lembrar que o futebol de várzea não precisa necessariamente ser praticado em um campo e nem jogado por vinte e dois jogadores. Também não é preciso nem ao menos uma bola. Pratica-se o futebol em qualquer lugar onde aja um espaço. Uma rua; um quintal; um beco; uma vila; um buraco qualquer com duas extremidades. Aliás, por vezes se joga apenas com um "gol". Trata-se da chamada "meia linha", que em Santos é o "lelê". Um só goleiro. Bola fora é gol dele. Por vezes, bastam dois jogadores, um em cada gol. É o "gol a gol". Eles chutam e defendem. Sobre os gols, claro que são improvisados, com traves da mais diversa procedência. Pedaços de pau; latas; sapatos; tijolos. Bem se vê que as traves são só as laterais e imaginárias quanto à altura. Resta a bola. Para se jogar na várzea basta algo que se pareça com a bola. O mais comum são as meias, que tomam a sua forma. Quem gosta do futebol faz muitas concessões. E, ele por sua vez, tudo aceita, até para não ser esquecido.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A detenção de inocentes incendiários

Eu jamais fui protagonista direto ou indireto de nenhuma conduta delituosa de alguém, que posteriormente viria a ser meu cliente. Era procurado para defender e o fazia com base na narrativa do acusado e das provas vindas para os autos. O meu conhecimento do fato era, portanto, pós fato. No entanto, como exceção, protagonizei dois episódios que ficaram gravados na minha memória e nos meus sentimentos. Duas foram as razões da minha memória haver registrado ambos de forma indelével: primeira, todos os participantes das cenas eram e são meus amigos de infância; ademais as cenas foram pitorescas, para não dizer hilárias, assim como hilária foi a minha intervenção como quase advogado, como rábula. Devo explicar porque elas também me marcaram sentimentalmente. Tanto os participantes de ambas quanto os próprios episódios estão cobertos pelo manto da amizade e do passado, um passado juvenil pleno de aventuras e de venturas. Agora narrarei um dos episódios. Estávamos, como sempre, no início da noite, reunidos na rua Stella, a nossa gloriosa rua, que emprestava o seu nome à nossa não menos gloriosa Turma, denominada T.S. Ficávamos em frente à segunda vila que lá existia, essa em frente ao campo de várzea do também gloriosa Olímpicos da Vila Mariana. Percebe-se que para nós todos e tudo que nos cercavam constituíam uma glória. Salvo os times de futebol. Nós são-paulinos obviamente não glorificávamos o Corinthians, Palmeiras, Santos e vice-versa. Por se tratar de uma sexta-feira, estávamos todos reunidos nos aquecendo para uma nova jornada boêmia. Uma boemia quase infanto-juvenil, pois os mais novos tinham quinze anos. Como éramos ousados, inquietos e curiosos, nos aventurávamos pelo centro da cidade indo a bares como o Bar do Jeca, o Ponto Chic, Salada Paulista, até o Avenida Danças. Aí a ousadia era suprema. Lá só se estivéssemos de gravata e com algum dinheiro a mais, para picotar os cartões das dançarinas.   Os mais velhos, por vezes, iam ao Clube de Paris, Dakar, Vagão etc. Não poucas vezes ao Som de Cristal, estupenda gafieira. Não nos aventurávamos a dançar, apenas assistir. Era um verdadeiro espetáculo vermos os casais, elegantíssimos dançando, na verdade bailando. O respeito era grande, a ponto de o cavalheiro dançar com um lenço em sua mão direita para não manchar o vestido da dama.  Uma outra gafieira famosa existia na rua da Glória, o Paulistano da Glória. Pois bem, voltando ao episódio. Alguém do nosso grupo resolveu verificar se um líquido que escorria pela rua perto da sarjeta era água ou outro líquido. Era outro e não água. Era gasolina. O seu teste seria inofensivo se para fazê-lo não tivesse usado um isqueiro. O fogo espalhou-se e ameaçou alguns dos carros estacionados. Alguns chegaram a ficar um pouco danificados. Preocupados que ele pudesse se alastrar e tomar a rua, com risco a quem passasse e às próprias casas, todos nós, heroicamente, passamos a tentar afastar os automóveis. Nessa empreitada destacou-se um de nós: Tamer Chain, campeão panamericano de halterofilismo. Enquanto seis ou sete se esforçavam para afastar um carro das chamas, Tamer sozinho arrastava a traseira e depois a frente e punha o veículo a salvo. Houve um Volks que ele literalmente levantou a parte da frente. Não passou muito tempo e várias viaturas chegaram. A nossa planejada e esperada noitada transformou-se em uma compulsória excursão ao Pátio do Colégio, então sede do 1º Distrito Policial da Capital. Depois de contarmos o que ocorrera o delegado de plantão passou com insistência a indagar quem fora o autor da façanha. Como não tínhamos nenhuma propensão à delação permanecemos num mutismo solidário e absoluto. Sabíamos que o incendiário fora, o mais sério, o mais ajuizado ou menos desajuizado de todos, "o Velho". Como assinala sua alcunha, o mais antigo de todos nós.    Tive a ideia de perguntar à autoridade policial em qual faculdade havia se formado. Formara-se exatamente na minha faculdade, a Paulista de Direito da Universidade Católica. Bem aí as coisas ficaram mais fáceis, pois comecei a falar dos meus professores, alguns que tinham também sido dele. Citei algumas façanhas que conhecia dos estudantes e das turmas de sua época. Fatos por mim mencionados, que até o emocionaram, foram os relacionados com as disputas entre o 11 e o 22 de Agosto, Centros Acadêmicos da São Francisco e da Católica. Eram os famosos jogos entre ambas as Faculdades, denominados "33 de Agosto". Por fim, descobrimos ter ele pertencido ao partido acadêmico do qual eu era presidente, o Partido Universitário Independente, o PIU. A pirotécnica noite terminou na delegacia, mas todos fora das grades e se congratulando com a autoridade, eminente "puquiano".    
terça-feira, 4 de agosto de 2020

O fórum do meu tempo

Outro dia me questionei: será que nunca mais vou compulsar um processo? Não mais teria em mãos uns autos? Não lerei ao vivo e em cores portarias de instauração de inquéritos; boletins de ocorrência; certidões de cartório ou de oficiais de justiça; carimbos; despachos de delegados; cotas de promotores; termos de depoimentos; laudos; relatórios de delegados; denúncias; decisões interlocutórias; acareações; reconhecimentos; alegações escritas; transcrições de debates em audiências; sentenças; razões; acórdãos? Parece que não. Dirão muitos, "mas você tem isso tudo online". Ah é. Sei que tenho. E daí. Isso não me satisfaz. Eu quero o prazer de ter a papelada nas mãos. Trata-se de um prazer proporcionado pelo tato. É como o livro. É como o carinho. Alguém vai me convencer que é bom o carinho ou a carícia online? Com grande dificuldade eu tenho acesso aos autos pelo computador. Aliás, deixa eu ser honesto, nem acessar eu sei. Sempre há quem o faça para mim. Vejam, eu jamais precisei de alguém para compulsar processos. Agora sinto-me capenga, meio aleijão. Mas não pensem que me rendo e fico no computador para ler, não. Todos os processos são imediatamente impressos. Só leio no papel. Pronto. Lembro-me dos processos e imediatamente vem à mente o Fórum do meu tempo e os seus personagens. Comecei a advogar quando os cartórios e as varas criminais estavam instalados no vetusto e maravilhoso prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo. Por lá transitavam, diariamente, todos os protagonistas da cena judiciária. Figuras que me marcaram indelevelmente. Tenho-os vivos na lembrança e no coração. Meu começo foi com eles e até o fim os terei na memória e no coração. Vou começar pelos acusados, pois são eles os responsáveis por todas as atividades desenvolvidas no Fórum. São os principais protagonistas. Caso não existissem não haveria justiça criminal. Como o crime é um fenômeno ligado à condição humana, com as suas misérias e as suas grandezas, eles jamais deixarão de existir. Existir não como objeto do processo, mas seu sujeito, portador de deveres e de direitos, sendo inocente ou culpado. Devem ser respeitados, mas é verdade que dão um imenso trabalho. Para mim o momento crítico, de maior tensão, é o do interrogatório. Um martírio. Por mais que se oriente, explique, treine nunca se tem certeza do seu desfecho. Esse drama aumenta nos casos levados ao Tribunal do Júri. Acusado de homicídio contra o amante de sua mulher e de tentativa contra ela, o meu cliente foi exaustivamente instruído sobre um ponto específico: ele deveria dizer que sempre portava uma arma, pois saia cedo e morava em um lugar ermo, como justificativas. Ele possuía registro e porte. Era inconveniente que os jurados pensassem ter ele se armado para cometer o crime. Encontrou o casal casualmente e, como sempre, se encontrava armado. Pois bem, após indagar quem era o seu advogado, o presidente do Júri foi logo perguntando se era comum ele andar armado. Sem perder tempo foi logo dizendo "JURO POR DEUS QUE NÃO". O juiz amigo, Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão olhou para mim e balançou a cabeça. Eu, desalentado cobri o rosto... Falar de acusado deve-se falar dos defensores. Destaco um episódio ocorrido com um advogado que marcou época pela sua alegria, desconcentração, simpatia, Paulo Brandão. Antes do episódio uma sua característica. Nos dias que iria atuar na Tribuna do Júri passava em uma pastelaria existente na rua Onze de Agosto e comprava considerável quantidade de pastéis. Com a autorização do Juiz Presidente ele os distribuía antes da sessão. O juiz, os jurados, funcionários, advogados, promotores, a escolta e para o próprio acusado, todos como que se confraternizavam antes do embate judicial, em torno dos deliciosos pastéis. Paulo Brandão costumava invocar Cristo em apoio à proclamação da inocência do acusado. E dizia: "por esse Cristo que aqui está o réu é inocente" ou "por esse Cristo que aqui está o réu agiu em legítima defesa". Fosse a tese que fosse Cristo era chamado para reforça-la. Pois bem, certa feita, após fazer a sua chamada divina virou para trás e não viu o Cristo. Não se deu por rogado "o réu é inocente por esse Cristo que não está aqui, mas que deveria estar"... e continuou a sua peroração. Recordo-me com carinho e saudade de dois oficiais de justiça que atuavam no 1º Tribunal do Júri, Pinheiro e Mesquita. Por trabalharem nas sessões, entravam na sala secreta durante as votações, para recolherem os votos dos jurados. Um passava com o saco para recolher os votos válidos e o outro os votos não computáveis. Essa atuação os credenciava, segundos eles, a saber o perfil de cada jurado. Pois bem, um dia antes dos julgamentos de caso meu, iam ambos ao escritório. À época tinha escritório na Praça da Sé, 399. Iam com a lista de jurados em punho, para avisar-me que esse ou aquele jurado deveriam ser recusados, pois eram contumazes condenadores. Outros, ao contrário, com toda a tranquilidade poderiam ser aceitos, pois sistematicamente votavam com a defesa. Saiam do escritório com a sensação do dever cumprido para com o advogado amigo. Claro que com uns trocados também. Eram, além de zelosos funcionários públicos, eméritos boêmios, como tal sempre precisavam de um reforço orçamentário. Eu ia me esquecendo que em regra as suas indicações normalmente falhavam. Quem eu aceitava condenava, já o recusado, não se sabe... Em breve continuarei a comentar sobre o Fórum do meu tempo. Salvo engano, no Cartório do Segundo Tribunal do Júri havia um oficial de justiça, que em todo final de ano, às vésperas do natal, passava uma lista para ajudarmos no tratamento de um parente ou mesmo para que pudesse enterrar um amigo ou parente morto. Houve uma ocasião que passou a lista para os funerais da mãe que havia falecido. Com muita pena começamos a nos cotizar, quando alguém disse a ele que a sua mãe já havia falecido fazia alguns anos. Não se alterou, imediatamente tirou do bolso uma outra lista dizendo 'enganei-me quem morreu agora foi meu pai'...
terça-feira, 28 de julho de 2020

Mais um amigo se foi

Mais um amigo se foi. Pois é, as perdas acumuladas reapresentam o grande sofrimento imposto pelo avanço da idade. Engana-se quem atribui às limitações físicas, às restrições sociais, aos abalos psicológicos os maiores ônus do envelhecimento. Não. Nada disso. Todos esses percalços são suportáveis. Perder um companheiro querido isso sim, é o "X do Problema", para plagiar Noel Rosa. Como superar a perda. Não sei e duvido que alguém saiba. Toca-se a vida. Mas ela passa a ser vida capenga, manca, desfalcada. E, quanto mais se envelhece, mais se sente o desfalque. Carlos Drumond de Andrade disse estar andando de banda, por causa do vazio do seu lado esquerdo. É o meu caso. O vírus atingiu José Mentor. Ele não resistiu à "gripezinha". Outros que fariam menos falta do que ele estão resistindo e zombando. Macabra e funesta zombaria. Aliás, aquele que zomba, zomba do próprio povo brasileiro, vítima da cruel pandemia. Que Deus lhe poupe da perde de um ente querido. Eu tive uma perda. José Mentor amigo e companheiro. Cinquenta anos de convivência. Ele com quinze e nós, colegas da sua irmã Angélica de Almeida, da Turma de 1969, da Faculdade Paulista de Direito da PUC, com dezenove em média, já o conhecíamos. Ele acompanhava a irmã em nossas festas de calouros. Anos depois entrou na Faculdade. Teve intensa vida acadêmica, especialmente nas atividades políticas. Engajou-se no combate à ditadura militar. Esteve preso no Presídio Tiradentes. Sua opção pela luta em prol da liberdade, da democracia e dos direitos humanos manifestou-se desde sempre. Talvez desde o berço. Ingressou na política partidária e também passou a advogar. Corajoso, inquieto, inconformado com injustiças, reunia, pois, as características comuns ao político destemido e ao advogado verdadeiramente vocacionado. Defendeu no Parlamento causas em prol da coletividade e em sua banca postulou pelo primado da lei e da justiça. Durante anos amargou acusações que se mostraram infundadas. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal lhe fizeram justiça. Proclamaram-no inocente. Eu o acompanhei em todas as etapas do seu calvário. Sofremos juntos. Compartilhamos as dúvidas, as angustias, as incertezas, que se avolumam em épocas de insegurança jurídica. Eu sabia dos enganos e distorções das acusações. Mas será que os julgadores sabiam? Souberam e, repito, fizeram justiça. Mas não apagaram as marcas dos açoites, representados pela exposição mediática, pelos comentários levianos e desarrazoados. Sofreu, sofremos juntos. Superou galhardamente a injusta situação. É, Zé Mentor, você se foi. Nós ficamos, mas na verdade você está conosco. Como disse Fernando Pessoa a morte é como a curva da estrada, só não se é mais visto. Permanece a sua presença, mesmo com a sua ausência. Você continua ao lado de suas filhas e filho, seus netos, sua irmã e seus irmãos e todos os seus amigos e amigas. Mentor, aos domingos, doravante e como sempre foi, estarei sentado no banquinho em frente ao seu, no bar de casa, brindando à vida que juntos compartilhamos.
quinta-feira, 28 de maio de 2020

O inconformismo de um acadêmico

Imensa alegria ele proporcionou à sua família. Ingressara na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1942. Família de origem libanesa, os pais e demais parentes eufóricos e orgulhosos divulgaram por toda São José do Rio Preto, sua cidade, a notícia de que o filho de imigrantes se tornara um Acadêmico das Arcadas. O novo calouro iria, com certeza, recompensar com brilho e bravura os esforços daqueles que se sacrificaram e contribuíram para o seu êxito. A emoção ao ingressar pela primeira vez no prédio da Faculdade causou-lhe indescritível emoção, perpetuada em suas memórias transmitidas a mim em inesquecíveis encontros em Rio Preto. Essa sua emoção se estendeu por cinco anos, manifestada em cada atividade, em cada episódio, em cada momento vivido na gloriosa velha e sempre nova Academia, casa do culto ao saber e à liberdade. Quando passei a viajar pelo interior de São Paulo, no exercício da política de classe, em meados dos anos setenta e durante as duas décadas seguintes, eu era fidalgamente recebido por ele e pelo meu queridíssimo amigo Paulo Nimer, um grande advogado de júri daquela região. Aliás, uma região que à época reunia uma plêiade de notáveis oradores que se destacavam na tribuna da defesa. Assim, Paulo Nimer de Rio Preto; Fernando Jacob de Fernandópolis; Roberto Rolemberg de Jales; Moacir Castro de Olímpia; pontificavam no Tribunal do Júri de toda a região. Nas minhas idas a Rio Preto, Gabriel e Paulo reuniam advogados da cidade e da região, que se tornaram grandes amigos, para encontros memoráveis no melhor estilo das tradições bacharelescas e boêmias. Havia sempre discurso, cerveja e música, tudo em abundância. Gabriel era colega de meu pai, da Turma de 1946. Nutriam recíproco carinho e foram amigos vida a fora. Bié, seu apelido, saudava o filho do seu companheiro Macacão, apelido de meu pai, como se saúda um filho. Abraço caloroso, sorriso de contagiante alegria e, durante a estada, gestos de cordialidade e de generosidade, que bem refletiam a sua origem árabe, interiorana e de acadêmico de Direito. Na Faculdade, Bié teve intensa participação política, tanto na política interna do Centro Acadêmico Onze de Agosto, quanto nas pugnas anti getulistas. Participava dos comícios, redigia manifestos, frequentava as assembleias do Centro Acadêmico, ia às passeatas. Enfim, passou, desde o primeiro ano, a ser um ativo militante da luta em prol da redemocratização do país. Houve ocasiões nas quais se viu cercado pela polícia em passeatas. Tinha dificuldades em correr junto com os seus colegas, em razão de um aparelho que usava em uma das pernas. Enquanto os seus colegas que fugiam eram detidos ele era poupado. Esse fato ao invés de alegrá-lo, o deixava profundamente aborrecido, para não dizer ofendido, humilhado até. Em uma dessas ocasiões, não se conteve e interpelou um delegado "por que nunca sou preso? Fica aqui o meu protesto. Eu quero ir para o DOPS". Pouco tempo após, a sua vontade foi satisfeita. No mesmo ano de 1943, em 2 de novembro, quando a Faculdade e o Centro foram invadidos, Gabriel foi preso com outros colegas, inclusive com o Macacão e, aí sim, levado ao DOPS. Anfitrião emérito, como já dito, recebia com enorme alegria todo aquele que fosse visitar a sua cidade ou nela trabalhar. Discorria com orgulho sobre a sua Rio Preto. Cantava a sua gente, a excelência do seu centro médico, a qualidade dos seus companheiros de advocacia, o crescimento industrial da cidade, o seu ativo comércio, e a qualidade culinária de seus clubes e restaurantes. Uma ocasião, levou um amigo de São Paulo para jantar no Automóvel Clube, não sem antes fazer apologia do requinte do seu bar e da sofisticação da sua cozinha. Sem dúvida se tratava do mais elegante Clube recreativo do interior do Estado, segundo a sua imparcial e insuspeita opinião... Assim que entraram no bar ele gritou para o garçom amigo "João, solta dois sanduiches de jacaré", de imediato veio a resposta: "Dr. Gabriel estamos sem pãezinhos". O garçom não quis desmentir o advogado, que deveria ter proclamado a qualidade e o refinamento do restaurante. Com certeza o garçom, que o conhecia de longa data, não quis desmenti-lo, e atribuiu a falta da iguaria à falta dos pãezinhos e não do jacaré.
sexta-feira, 8 de maio de 2020

Advocacia risonha e franca

Eles praticavam uma advocacia que se pode chamar de artesanal. Redigiam, batiam à máquina, iam diariamente ao fórum e às delegacias de polícia, pesquisavam jurisprudência nas várias publicações específicas, instruíam-se com a doutrina haurida dos inúmeros compêndios de suas bibliotecas, ou nas de colegas. Nos seus escritórios, desempenhavam funções que hoje são da atribuição de secretárias, estagiários, office boys, telefonistas, digitadores, arrumadeiras e algumas outras. Por outro lado, não havia na advocacia, mormente a do interior, a especialização. Eram, em regra, "clínicos gerais", pois atuavam em todas as áreas do Direito. Os honorários, bem, os honorários constituíam um capítulo à parte. Cobrava-se, mas raramente um advogado deixava de assumir uma causa por razões relacionadas à sua remuneração. Os clientes pagavam como podiam, mas em regra pagavam. O pagamento, especialmente aos colegas do interior, no entanto, nem sempre era em dinheiro. Muito, mas muito comum mesmo, os honorários serem saldados por meio da dação de algum animal ou ave. Galinhas e porcos faziam às vezes de moedas de troca, com muita frequência. Havia ainda, verduras, hortaliças, queijos, goiabadas, cachaça. Diga-se, sempre de excelente qualidade. Em regra, essa forma de saldar os honorários era sempre acompanhada de um ingrediente que obrigava os advogados a aceitá-la: a gratidão. A maneira mais eficaz e eloquente de demonstrarem o seu agradecimento pelo empenho e pela dedicação dos bacharéis era a entrega de algo que lhes era caro. E, veja-se que em certas regiões, para sitiantes e agricultores, como eram valiosas as galinhas, os porcos, as verduras e as hortaliças. Essas eram algumas das características da advocacia de anos atrás. Outra marca daquela época, era a ampla cultura humanística dos profissionais do direito. Mercê de um largo cabedal de conhecimentos e da rica experiência humana que a profissão ainda proporciona, eram eles dotados de espírito refinado, aguçado senso crítico, humor sutil e elegante e uma tendência para extrair dos fatos da vida o seu lado pitoresco e por vezes hilário. Um significativo episódio bem ilustra o senso de humor, a ágil inteligência e a maravilhosa capacidade de rir de si mesmo de um veterano advogado do interior do Estado, da cidade de Barretos. Uma longa fila se formara para o acesso ao caixa do banco. Ao lado dessa, havia uma outra sem uma viva alma. Segundo o aviso ela se destinava aos deficientes, enquanto aquela às pessoas sãs. O advogado Kalil Salles, como de hábito, trajado com esmero, sorriso aberto e com o seu permanente ar de superioridade, não a pseudo superioridade dos arrogantes e dos presunçosos, mas daqueles que encaram a vida com complacência e com bonomia, olhou a longa fila e dirigiu-se ao outro guichê. Todos os clientes do banco que estavam na fila à unanimidade gritaram "saia daí Dr. Kalil e venha para o fim da nossa fila. O senhor não é deficiente". Em face do clamor geral, o sagaz, irônico e espirituoso velho advogado reagiu, defendendo-se: "Por acaso há deficiência maior do que a BROCHURA?" Com certeza mentiu, ao se atribuir uma particularidade inexistente. Mas, não se importou em negar a sua virilidade para ser atendido com rapidez. Afinal, pouco se lhe dava acreditarem ou não em sua patética confissão. Kalil, atualmente, está em outras e melhores paragens. Também lá não ficou na fila. Foi acolhido de pronto pelo Anfitrião, e com ele vive tempos novos, novos e eternos, pronto para receber cada um de nós na hora certa, e aí sim, em obediência à fila...
segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um homem magnânimo

Ele era psiquiatra. Daqueles verdadeiramente vocacionados, impelidos desde tenra idade a desvendar a mente e a alma, especialmente as mentes com anomalias, e, em consequência, as almas conturbadas. Sua extraordinária vocação, aliada aos seus ininterruptos estudos e atualizações científicas e a uma ampla cultura humanística e universal, fez dele um dos mais renomados psiquiatras brasileiros. Aos seus conhecimentos teóricos adquiridos durante o curso de medicina e atualizados por toda a sua vida, foram acrescentadas atividades práticas desenvolvidas inicialmente no Juqueri e posteriormente no Departamento Médico do Estado, no setor de psiquiatria, e no Sanatório Bela Vista, do qual foi diretor clínico por décadas. Não se pense que a psiquiatria o deixou alheio à medicina em geral. Dotado de sólida formação clínica inerente ao ensino médico da sua época, meu tio Marizito, Eugênio Mariz de Oliveira Neto, diagnosticava com exatidão infalível. Olhava e após tirar a pressão, efetuar algumas perguntas dava o diagnóstico e indicava o médico especializado, que confirmava a sua opinião. Eu mesmo pude testemunhar essa sua capacidade. Não foram poucas as vezes que ele, com acerto, detectou doenças em minha mãe, vítima de uma patologia cardíaca que provocava não poucos efeitos colaterais. Assim que a via, indicava o médico especialista que tratava da doença por ele indicada. A sua retidão de caráter e fidelidade a seus princípios eram acompanhadas por outros dois atributos que ornavam a sua personalidade e marcavam a sua conduta: o seu desprendimento e a sua generosidade. Não foram poucas as suas demonstrações de solidariedade e de sensibilidade em face das dificuldades daqueles que o cercavam. Supria as necessidades médicas e emocionais das pessoas, assim como as carências materiais. Quantas e quantas vezes socorreu os que necessitavam de um conselho, de uma orientação, da indicação de um rumo. Eu sou testemunha das inúmeras ocasiões que amparou quem o procurava. Eu mesmo fui alvo de seu acolhimento, não poucas vezes. Lembro-me de um fato notável, a ilustrar essas suas características. Dessa feita o seu socorro foi material. Minha mãe, em 1958, submeteu-se a uma então pioneira cirurgia cardíaca, para desobstrução da válvula mitral. O cirurgião, professor Zerbini, realizava a cirurgia com o bisturi entre os dedos e com o tato procurava atingir a região a ser operada. Ainda não havia o aparelho que substituía o coração durante a intervenção. Tão delicada operação era dispendiosa. Profissional liberal papai não possuía folga financeira. Para fazer frente às despesas colocou seu carro, um Nasch, 1949, à venda. No entanto, premido pela necessidade inadiável da cirurgia, autorizou-a, na crença de poder, de alguma forma, saldar os honorários médicos e os custos hospitalares. Pois bem, a sua fé o acudiu. Na verdade, o salvou a bondade do seu irmão mais velho, Marizito. Sem nenhum alarde ou prévia comunicação, discretamente, em uma de suas visitas à minha mãe, no hospital Beneficência Portuguesa, deixou em cima de uma mesa um embrulho de jornal, como se o tivesse esquecido. Papai tentou alcança-lo no corredor. Ele já se fora. Dentro do pacote havia a quantia necessária para saldar as despesas que meu pai teria, com os honorários médicos, já conhecidos. A ausência permanente desse ser generoso, abriu uma clareira de solidariedade e de amor ao próximo, sentimentos que valorizam o ser humano e dão significado ao ato de viver.
terça-feira, 3 de março de 2020

Amor ranzinza

Sogra, ora sogra, quem não as têm não sabe o que representam. Mas antes de falar do seu significado, por questão de justiça e de reciprocidade, é necessário que examinemos aquilo que nós representamos para elas. O relacionamento é de dupla mão e as idiossincrasias, antipatias, implicâncias e sentimentos que tais, igualmente não constituem monopólio de uma das partes, a reciprocidade está presente. Para elas, nós somos os intrusos que vieram para furtar o bem mais precioso que lhes pertence, sua filha. Mas não é o ato físico da saída de casa para conosco morar. É mais, muito mais do que isso. A mãe que talvez dividisse o afeto da moça apenas com o pai, agora passou a ter mais um condômino no seu coração. E, talvez, talvez não, com certeza, pelo amado esse mesmo coração bate e pulsa mais do que por ela. Pelo menos, nos tempos iniciais do amor. Até então, ela possuía um controle quase absoluto dos passos da filha. Vejam bem, claro que hoje as relações entre mãe e filha estão totalmente modificadas, mas os episódios que vou narrar se passaram em fins dos anos trinta, início dos anos quarenta. Ademais, a mãe, futura sogra, era viúva, portanto, o afeto da filha até conhecer o usurpador, era seu com absoluta exclusividade, quase desde sempre, por que enviuvara muito cedo. Houve um episódio que os uniu: o nascimento do primeiro filho e primeiro neto. Ambos ficaram preocupados, ansiosos e aflitos a ponto de prometerem ir a pé até a Igreja da Penha, assim que o nascimento ocorresse. A mãe e o filho recém-nascido, ambos saudáveis, levaram sogra e genro ao cumprimento da promessa. Pois lá foram. Saíram do centro da cidade e se dirigiram pela Av. Celso Garcia até o alto da Penha. No trajeto, pelo menos no seu início o genro disparou, na certeza de que a sogra sucumbiria ao cansaço ou se chegasse, seria com grande atraso em relação a ele. Passou a olhar para trás e não mais a viu. Fato que reforçou a sua suspeita. Horas depois, chegou à Igreja da Penha. Entrou, comprou velas, acendeu-as e sentou-se para rezar. Olhou para o altar e espantado, perplexo, incrédulo, viu no primeiro banco os encanecidos cabelos da sogra. Com certeza chegara havia bom tempo, pois rezava um terço, e pode ver várias contas já rezadas... Alguns anos se passaram e ele pode comprar o seu primeiro automóvel. Um Ford Prefect. Pequeno carro preto, possuidor do pior molejo, da mais precária suspensão de todos os da época. Pois bem, ele fazia questão de proclamar que a transportava sempre que ela desejava. E, o fazia com prazer. Bom genro. Para poucos, no entanto, dizia que fazia questão de coloca-la no banco de trás e assim fazer o papel de seu chofer. E, por que o fazia? Porque, propositadamente, caia em buracos, para que ela batesse a cabeça no teto do carro. Ela, por sua vez, jamais se conformou com o usurpador do amor da filha. E, com ele implicava até o limite da tolerância. E, a tolerância não a melhor qualidade do genro. Assim, entre briguinhas, picuinhas e caras viradas, tendo a filha como anteparo, ambos viveram e conviveram até que ela se foi. Alívio para ele? Não, profunda, sincera e longa tristeza. Foi um típico caso de amor recíproco, amor ranzinza, mas amor.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Os anjos sem asas e o imortal

Você entra e elas correm. Em sua direção. A partir desse momento você passa a ficar protegido e amparado. "Chamo-me Joana e vou acompanhá-lo junto com a auxiliar Tereza durante toda o dia. À noite virão outras". Não se vestem de branco, mas, com certeza, possuem asas. Quando chamadas voam ao nosso encontro. Creio que muitas e muitas vezes são solicitadas por nada. Queremos vê-las e só. Nesses casos, atendem não ao físico, mas ao espírito. Acalmam, procuram retirar a angústia, a ansiedade, a solidão e o medo da morte. Há momentos nos quais o constrangimento, o pudor, a vergonha, eu sei lá, tomam conta de nós. Elas, no entanto, sublimam, em nome do sagrado dever de nos cuidar, quaisquer sentimentos que pudessem ter que as inibissem. Agem com a mais absoluta naturalidade. Refiro-me, dentre outros momentos, à hora do xixi. "Quero, embora não gostaria de querer, mas preciso fazer xixi". "Ah!, pois não", responde ela, como se o pedido fosse por um mero copo d'agua. "Vou buscar o papagaio". E eu penso: "Por que a denominação "papagaio"? Será que tem a forma da falante ave"? Então, ela traz o dito cujo, e ameaça retirar o lençol. Eu pulo, quase dou um salto. A impeço de continuar. "Não, grato eu mesmo faço", digo. Nessa altura, estou lívido ou completamente ruborizado, não sei. Bem coberto, faço o necessário encaixe, mas fico aguardando-a se retirar. Vigilante, ela se afasta da cama, mas não do quarto. Eu rezo para que ela se retire. Eu rezo e a minha bexiga implora, prestes a estourar. Ela percebe e sai. Alívio. Volta em seguida para livrar-me do papagaio, que eu a entrego. Há ocasiões que os querubins se distraem com o nosso sofrimento. Aliás, ponha sofrimento nisso. Como quando retiram o esparadrapo ou quaisquer outras colas que arrancam os nossos inofensivos pelos. Elas riem e dizem: "Viu só como mulher sofre quando se depila". Eu sei que depilação provoca incômodo. Mas, precisamos, nós homens, sofrer também? Sei que não nos fazem sofrer propositadamente. São as circunstâncias. Mas que gostam do nosso padecimento, isso lá gostam... Vejam, nem por isso perdem a sua condição de anjos. É uma questão ligada a hoje tão discutida "questão de gênero". Igualados na dor física, homens e mulheres se aproximam e viram um só gênero. Dramática também é a hora da punção de uma veia para retirada de sangue, colocação de soro ou algum outro procedimento. Os nossos anjos sinceramente sofrem quando não a encontram e devem ficar nos picando até o salvador encontro. O imortal Ignácio de Loyola Brandão, após passar por intensas agruras hospitalares, com excepcional poder criativo e esmerada escrita, nos legou o livro com o singular e delicioso título "Veia Bailarina". Está tudo lá. Tal como eu, Ignácio deve ter tido vários anjos a lhe amparar. No seu caso, os cuidados e a proteção foram tão intensos e eficientes que ele se tornou um imortal. Pôde sair do hospital e ir para a Academia Brasileira de Letras.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Culinária e cultura

Não são quaisquer ostras. Apenas as de Cananéia. O seu rigor culinário é equivalente ao seu apurado preparo intelectual e cultural. Aos noventa anos pensa e transmite as suas ideias e reflexões com uma clareza e objetividade, acerto e propriedade, como poucos o fizeram na história do país. Devo esclarecer que o seu gosto culinário e refinado apetite não se limitam às ostras. Sei de pelo menos duas outras iguarias de sua preferência. O kibe cru e uma perfeita combinação de sorvete de limão com um pouco de vodka, servidos como sobremesa em um prato de sopa. Quanto às ostras e ao kibe não é nem um pouco parcimonioso. A sobremesa, no entanto, é limitada a um único prato, embora fundo, a vodka impõe o limite. Os moluscos de Cananéia são comidos no restaurante Roma, normalmente às terças-feiras. Não todas as semanas, apenas ele as encomenda. São memoráveis almoços. Os companheiros são escolhidos por ele com o mesmo requinte que dedica à mesa. Cabeças pensantes, conversas agradáveis e, para mim, enriquecedoras. Não se imagine que enveredam para altas indagações filosóficas ou especulações metafísicas. Não, fala-se com propriedade dos temas da atualidade, das questões que a todos afligem, mas com leveza, graça, e, por vezes, com inteligência e ironia. Comentários sobre ausentes sempre há, até porque críticas a terceiros apenas à distância, pois de corpo presente é falta de educação... Delfim Netto nos comanda. Certo dia em que estávamos, ele, Élio Gaspari e eu no restaurante, depois de vários pratos de ostras, acompanhado de magnífico espumante, ouvi um dizer ao outro, quase sussurrando: "talvez agora um macarrãozinho, o que você acha?" Ao que o outro, no mesmo tom de pecado, quase envergonhado, aquiesceu prontamente. Eu, espantado, espanto que logo passou, aderia à inacreditável aventura gastronômica. De lá em diante, o macarrãozinho foi incorporado ao cardápio, com um acréscimo: além do alho e do óleo, por minha sugestão foi colocado aliche no spaghetti. O encanto desses almoços reside também na inteligência, na cultura e na verve de Élio Gaspari, o consagrado jornalista que se dedicou a revelar a história recente do país, cuidadosamente estudada e pesquisada por preciosos arquivos que possui, organizado com muito labor e esmero no curso das últimas décadas. Eu, por meu turno, limito-me a ouvir e a apreender o que é ensinado por ambos, fontes inesgotáveis de sabedoria, e de ricas experiências hauridas da profícua vida de cada um. Sou um afortunado, pois recebo sem nada dar em troca.
terça-feira, 2 de julho de 2019

Perus e peruadas

Uma afeição dos estudantes que data dos primórdios da gloriosa Academia era dedicada aos galináceos em geral, em especial aos perus, embora não desprezassem o galo, a galinha, codorna, faisão, perdiz e outras. Em face dos parcos recursos que a maioria dos acadêmicos contavam para as suas despesas ordinárias com locação, vestimenta, livros e as indispensáveis com os bares, bilhares, restaurantes e locais menos ortodoxos, nada sobrava para a satisfação de suas predileções culinárias e etílicas, que denotavam paladar sofisticado pelas iguarias e pelas bebidas de qualidade, inacessíveis a suas bolsas quase sempre vazias. Da conjugação desses fatores, dureza e bom gosto surgiu o hábito da rapinagem. Instrumento para suprir as carências dos futuros bacharéis era utilizado com alguma frequência. Quintais de casas, pomares e hortas de chácaras, restaurantes e bares, mercado municipal e todo e qualquer outro local onde houvesse suprimentos para as suas necessidades, eram com frequência visitados por eles. Frutas, legumes, bebidas, galinhas e perus e outros comestíveis quando apropriados qualificavam o furto de famélico, pois serviam para saciar a fome e a sede dos pobres jovens, cujas energias eram sugadas pelos estudos e, em maior dose, por outras atividades especialmente noturnas, voltadas para o culto da música - serenatas - do esporte - bilhar e carteado - da dança e outras... No entanto, rapinagens havia que não eram qualificadas pelos objetos rapinados. Por exemplo, o veado de ouro estampado em painel que foi arrancado da porta da botica do mesmo nome. Caso se possa dizer, esse furto foi seguido de arrependimento eficaz e caracterizado como furto de uso, pois o veado foi devolvido ao seu habitat. É bem verdade que a devolução se deu em face de uma promessa de recompensa em dinheiro, que foi cumprida, com a omissão da identificação dos autores da proeza. Rapinagens, ainda, tinham por objetivo suprir os serviços de mesa das repúblicas. Estas, embora estivessem, em sua maioria, mal conservadas, com um mobiliário precário e danificado, as mesas de refeições estavam ornadas por refinados serviços, com pratos, talheres, copos, que ornavam as mesas das mais aristocráticas residências. E, como explicar o contraste entre a pobreza dos imóveis e dos móveis, com o luxo das mesas. A rapinagem, ou melhor, as expedições de rapinagem feitas aos melhores restaurantes, cafés e hotéis de São Paulo. Eram eles os fornecedores compulsórios da prataria e da fina louça das mesas dos estudantes. Outras rapinagens, que não de alimentos ou talheres tinham a possibilidade de serem qualificadas: rapinagens sacras. Sim, nem sequer o campanário da Faculdade foi respeitado. Furtou-se o badalo do sino que, várias vezes por dia, tocava alto e bom som. Outro símbolo da Igreja foi vítima da estudantada: uma cruz existente na rua da Cruz Preta, hoje Quintino Bocaiúva. Não se pense que os estudantes podiam sempre usufruir dos frutos dessas apropriações. Havia decepções e frustações. Um exemplo ocorreu com o estudante Manuel de Almeida Melo Freire, o Almeidinha. Segundo disse aos seus amigos, havia ganhado um belo e suculento peru. Ninguém acreditou que o galináceo fosse um presente. Sabiam ser outra a sua origem. No entanto, aceitaram o convite para a ceia, após o término do teatro. Quando chegaram à casa, de pronto sentiram o agradável aroma do peru assado. No entanto, grande decepção. O peru não mais estava na bandeja, que fora depositada em um banquinho perto da porta da cozinha. Descobriu-se que uma quadrilha de gatos da redondeza se banqueteara com a cobiçada ave. Na verdade, os bichanos se vingaram dos estudantes, em nome de todas as vítimas de suas rapinagens. Uma característica da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é a continuidade de seus hábitos e costumes, que superam o tempo e são seguidos pelas gerações vindouras com as adaptações dos momentos históricos. Assim se deu com os furtos dos perus. Após as primeiras, ocorridas por volta de 1830, sendo autores da façanha os estudantes Antônio José de Figueiredo Vasconcelos, Serafim de Andrade e Antônio Ricardo, outras e tantas outras foram perpetradas durante mais de um século. Em 1948, uma grande empreitada para o surrupio de perus foi meticulosamente planejada e envolveu uns trinta estudantes. O audacioso projeto não poderia mesmo ser executado sem cuidadoso preparo, pois os galináceos seriam furtados à noite, do Parque da Água Branca onde se realizava uma exposição de animais. Divididos em grupos, cada um deles possuía com tarefas específicas, desde vigiar as ruas até a apreensão das aves. Nove gordos perus foram agarrados e levados para os carros de aluguel que esperavam nas imediações. Na noite seguinte houve uma memorável ceia no Centro Acadêmico, oportunidade em que foi criada a Ordem do Peru. A peruada, célebre festa de recepção aos calouros, realizada após terem recebido os temíveis trotes, nada tem com os perus, e nem com a sua subtração tradicional pelos acadêmicos do Largo. Trata-se de um desfile no qual imperam a graça, a ironia política, o sarcasmo, as vestimentas exóticas, por vezes sumárias, a música, os discursos, muitos sem nenhum conteúdo ou nexo, enfim as "palhaçadas" bem a gosto e no feitio tradicional da Faculdade, que denotam a inteligente criatividade dos moços que ao lado de agradarem pelo lado hilário, transmitem importantes mensagens de crítica social e política. Os acadêmicos sempre desde os primórdios da Faculdade o "ridendo castigat mores".  
terça-feira, 7 de maio de 2019

Fatos e fitas: tragédias

Não só amenidades, brincadeiras, boêmia, trotes, penduras e uma já intensa vida cultural marcaram o Largo de São Francisco do século 19. Fatos trágicos passaram para a história da Academia e de São Paulo, pois envolveram antigos alunos, transformados em destacadas figuras públicas e sociais. Dentre outros casos, dois merecem destaque. Abalou São Paulo o assassinato que envolveu Francisco de Assis Peixoto Gomide Júnior e sua filha, cometido na residência de ambos, situada à rua da Princesa, atual Benjamin Constant. Peixoto Gomide Júnior, formado no Largo de São Francisco em 1873, teve uma presença marcante na vida social e política de São Paulo, chegou a ser presidente da Província. Sua casa era frequentada diariamente por políticos, advogados, antigos companheiros da Faculdade, e por pessoas pertencentes a variadas camadas sociais, que vinham prestar-lhe solidariedade política e, especialmente, pedir-lhe favores. Além de filhos, Peixoto Gomide amparou e educou um mulato, Batista Cepelos, que graças ao seu apoio tornou-se promotor de Justiça e conhecido poeta parnasiano. Cepelos e uma das filhas de Gomide tinham um relacionamento estreito, que logo se transformou em namoro com vistas a um próximo casamento. Gomide desconhecendo o namoro, via nesse relacionamento uma amizade fraterna, pois Cepelos fora criado com os seus filhos, como se filho fosse. Aliás, veremos que na verdade filho era. No entanto, quando o casal revelou os seus sentimentos e comunicou a sua intenção, houve uma reação enérgica por parte do pai da moça, que se colocou ardorosamente contra o enlace. Inconformada, a filha não se submeteu à vontade paterna, desobediência pouco comum à época, e de forma obstinada e persistente tentou levar avante o seu intento. Recebeu o apoio de seus familiares, que não entendiam a resistência do patriarca. Até então ele demonstrara um afeto paternal por Cepelos. Estranho e inexplicável que não apoiasse o matrimônio. A resistência do pai, horrorizado pela possibilidade da filha se envolver em uma relação incestuosa e a obstinação da filha em se casar com aquele que ignorava ser seu irmão, um não querendo revelar a verdade e a outra a desconhecendo, transformaram esse drama humano em um tragédia que chocou São Paulo. Como não lograsse fazê-la desistir, Peixoto Gomide, para evitar a consumação do incesto, matou a moça e suicidou-se em seguida. Batista Cepelos era seu filho fruto de um relacionamento fora do casamento. Marcado pela tragédia, o poeta anos após, foi encontrado morto no Rio de Janeiro, para onde se mudara, após cair de uma elevação. Não foi elucida a natureza da morte, se acidental, assassinato ou suicídio. Outro homicídio repercutiu intensamente em São Paulo e em outras Províncias, especialmente no Maranhão, onde ocorreu. Teve como seu autor o desembargador José Cândido de Pontes Visgueiro, formado na turma de 1834 da nossa Academia. Vítima desse homicídio foi a jovem Maria da Conceição. Pontes Visgueiro nasceu em Maceió e cursou os dois primeiros anos de Direito na Faculdade de Olinda, transferindo-se para São Paulo onde completou o curso. Segundo consta, a sua vinda se deu porque, nas férias escolares, passou a namorar uma moça de Maceió, que não era do agrado de sua família. Esta obrigou-o a vir estudar em nossa cidade. Já nos primeiros anos na Academia mostrou ser portador de um temperamento agressivo. Andava armado com uma longa faca, fato que trazia intranquilidade para os colegas. E não era gratuito o receio dos demais estudantes. Certa ocasião, agrediu com canivetadas a um colega pois este fizera uma pisada que o desagradara. Consta, ainda, que em uma noite atirou pedras contra as janelas da Casa da Marquesa de Santos, onde se realizava um baile. Exerceu a magistratura em Maceió e posteriormente em cidades da Província do Piauí, após um período na política, tendo sido deputado pelas Alagoas. Posteriormente, foi desembargador na Província do Maranhão. Quando já desembargador, conheceu em São Luiz uma moça que mendigava pelas ruas do centro. Contava ela não mais do que 15 anos de idade. Ele beirava os setenta. Apaixonado pela jovem, o ancião foi tomado por avassalador ciúmes, que o levava a agir violentamente contra a moça e contra quem ele entendia a estar cortejando. Toda a pequena sociedade local comentava o comportamento do magistrado e antevia a tragédia que acabou por ocorrer. Mariquinhas, assim era conhecida Maria da Conceição, desapareceu por uns tempos, após ter sido flagrada por Pontes Visgueiro aos beijos com um jovem estudante. Ela conseguiu safar-se da ira do velho amante, o que não ocorreu com o moço que sofreu enfurecida agressão. Durante várias semanas insistiu para um reencontro com Mariquinhas, que se esquivava por medo de represália. Cedeu por fim. Acompanhada por uma amiga foi à casa do desembargador. Durante algum tempo o encontro foi agradável, com o velho apaixonado desdobrando-se em gentilezas. No entanto, quando a amiga se retirou, o martírio de Maria da Conceição teve início. Ela foi segura por um empregado de Visgueiro, que estava escondido na casa e colaborou na prática do crime, que já vinha sendo planejado há vários dias. Enquanto o empregado cúmplice chamado Guilhermino, a agarrava e a imobilizava pela garganta, o criminoso a esfaqueava e dava-lhe mordidas por todo o corpo, após aplicar-lhe clorofórmio nas narinas. Os requintes de crueldade, impressionaram as autoridades, que de plano vislumbraram um grave distúrbio mental, antes mesmo que Pontes Visgueiro fosse submetido a exames psiquiátricos. O trecho comporta um parêntese para lembrar que o velho desembargador quando criança já fora acometido por grave enfermidade, que o marcou física e talvez psicologicamente, pela vida afora. Uma febre retirou-lhe a fala e a audição. Os sentidos voltaram, mas, aos quarenta anos perdeu a escuta por completo. Após o horrível crime, cometido com fúria e com perversidade, o corpo de Mariquinhas foi colocado em um caixão e enterrado no quintal da casa. O caixão fora encomendado há dias. O advogado Franklin Doria, um dos mais notáveis da época, década de 70, do século XIX, discordou da tese do acusador que afirmara ter sido o homicídio premeditado, meticulosamente planejado, especialmente em razão da encomenda do caixão. O defensor, ademais, postulou fosse reconhecida a ausência de higidez mental por parte do desafortunado magistrado. No entanto, sobreveio a condenação imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça. A pena originária foi a de galés perpétua, substituída pela prisão perpétua, pois contava o velho desembargador com mais de sessenta anos. Foi encarcerado na Casa de Correção do Rio de Janeiro. Em certa ocasião, quando da visita do ministro da Justiça ao presídio, Pontes pediu e foi atendido, para se avistar com a autoridade. As perguntas do condenado eram respondidas por escrito em razão da surdez que o acometia. Perguntou ao ministro sobre a sua aposentadoria, pois se dizia desembargador. A resposta o teria chocado e abatido profundamente - "Foi".  
sexta-feira, 29 de março de 2019

Estripulias de estudantes e de professores

O contraste entre a pacatez de uma sociedade acostumada às rígidas rotinas familiares e às poucas atividades sociais, marcadas também por não menos rígida liturgia, e a febril, buliçosa e provocativa conduta dos seus novos habitantes, vindos de várias partes do país, começavam a imprimir uma conotação cosmopolita à cidade e a lhe proporcionar novos horizontes culturais, políticos e sociais Os estudantes de Direito do Largo de São Francisco inauguraram novos hábitos e, principalmente, foram responsáveis por eventos jamais vistos na pauliceia. Alguns hilários, outros assustadores, mas que sempre retiravam a cidade do marasmo costumeiro e forneciam abundante material para comentários, disque disques, fofocas, bisbilhotices de toda ordem e natureza. Estava a sociedade de São Paulo se civilizando. Como exemplo de um desses eventos, imagine-se, naquela época, uma figura eminente no meio jurídico e social ser flagrado, por outra não menos importante, no quintal da casa, em idílio amoroso com uma escrava serviçal. Não se pense ser o fato raro, mesmo à época. Raro era o flagrante. Pois bem, o juiz de órfãos de São Paulo, dr. Elias Chaves, certa noite, ouviu estranhos ruídos no vasto quintal de sua casa, localizada no então Largo da Glória. Tratava-se de uma chácara com vasto pomar, árvores e aprazíveis locais cercados por flores e plantas de todas as espécies. Aliás, assim eram todas as residências daquela época. Chácaras de grande extensão que abrigavam casas senhoriais, amplas e imponentes. Estando-se nesses locais, a impressão era de se estar em uma propriedade rural. Essa ideia era reforçada pela existência de animais criados nas vastas áreas externas à casa. Em face da inusitada movimentação o juiz armou-se com uma longa bengala de rumou para fora. Estivéssemos nos dias de hoje, o dr. Elias Chaves se municiaria de arma de fogo. Assim agiria, influenciado por estímulos oficiais, que pregam a utilização de armas de fogo, para que cada cidadão não titubei em aplacar os seus receios, resolver as suas pendências e superar as suas frustrações, à bala. Quando se aproximou da zona de perigo, reconheceu uma sua escrava, doméstica da casa, em ardoroso idílio com um parceiro, prontamente desaparecido. No dia seguinte, o juiz de órfãos levou o ato ao conhecimento do delegado Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, formado em São Francisco em 1838 e futuro professor da escola. Residia ele na hoje rua da Glória, chamada então de Chácara dos Ingleses, quase em frente ao Largo da Glória, local da Chácara de Elias Chaves. As investigações não lograram descobrir o companheiro da jovem no bucólico e furtivo encontro amoroso. No entanto, posteriormente, o Dr. Francisco Furtado empenhou-se fortemente para conseguir a libertação de uma escrava que executava serviços caseiros para a família do dr. Chaves. Esse fato parece ter reavivado a memória do juiz de órfãos, pois teve confirmada uma desconfiança que lhe assaltou desde a visão do vulto que fugia de seu quintal. O suspeito deveria mesmo ter sido o seu vizinho, delegado de polícia. Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a adotar condutas e práticas que se perpetuaram pois foram assimiladas por todas as gerações vindouras. Uma delas foi o pendura. Não há registros sólidos dos primeiros penduras dados em São Paulo. No entanto, é certo que as mesmas razões que impeliram os estudantes à prática das famosas rapinagens motivaram-nos a "pendurar" despesas em bares e restaurantes. E qual a razão? Sem dúvida foram duas as razões, a fome e a falta de dinheiro. Rapinagens e penduras famélicos. Aliás, os penalistas podem afirmar sem medo de erro que o furto famélico encontra as suas raízes no Largo de São Francisco, ou melhor na situação de penúria de inúmeros de seus primeiros estudantes. Há registro de um acontecimento ocorrido em um restaurante da então freguesia da Penha, que pode ser considerado o embrião dessa tradicional prática que perdura até hoje. Os alegres estudantes, depois de se fartarem com iguarias e fartas doses etílicas, verificaram estar desprovidos de numerário suficiente para fazer frente às despesas constantes da conta apresentada pelo já preocupado proprietário. Em face do impasse, liderados por Filástrio Nunes Pires, saíram em defesa de um colega, cuja companheira estaria sendo molestada com gestos e olhares pelo caixa do estabelecimento. Da grande algazarra, os estudantes passaram a ameaçar fisicamente o funcionário que nada entendia, pois nada fizera. Tão grande foi a confusão, que o dono do restaurante pediu que os acadêmicos se retirassem. Foi prontamente atendido pelos jovens, que saíram eufóricos pois aplacaram a fome e a sede e mantiveram intactas as suas parcas finanças.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas: Academia de Direito e de Música

Ao diversificado universo das atividades estudantis, desde as desenvolvidas em sala de aula, talvez essas as de menor intensidade, passando por seus folguedos e peraltices, passeios, serenatas, saraus, escritos em jornais, poesias, clubes literários, proselitismo político, discursos, até a intensa boemia, não poderia faltar a música. Ela já surgiu no próprio dia da instalação do Curso de Direito, em 1º de março de 1828. Dia de festa, de gala, de discursos infindáveis, muito formalismo e de farta mesa de doces. Afinal, a efeméride estava a justificar toda a pompa e circunstância que a sociedade da época sabia produzir. O discurso principal ficou a cargo do primeiro professor da Faculdade, José Maria de Avelar Brotero. Registros da época, inclusive do jornal Farol Paulistano, talvez o único de São Paulo, mostraram que a fala procurou retratar a alegria e o orgulho de toda a população paulistana, pelo histórico acontecimento. São Paulo estava a partir dessa data sediando o primeiro curso superior do Brasil, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Lembre-se que de acordo com a lei de 11 de agosto de 1827, além de São Paulo a cidade pernambucana de Olinda iria abrigar como efetivamente o fez, um curso de Direito para os jovens das regiões norte e nordeste. No entanto, a sua primeira aula se deu em maio de 1828, portanto após a inauguração da Faculdade de São Francisco. Nesse dia, não constam erros de pronúncia, nem trocas de palavras por parte de Brotero, fatos que passariam a ser corriqueiros compondo um folclore que acompanhou o professor por toda a sua vida, as famosas "broteradas", palavras pronunciadas em conjunto: "limenta com pimão", ao invés de pimenta com limão; "vidrada quebraça", no lugar de vidraça quebrada, "cidadeira brasilão" em substituição a cidadão brasileiro. As trapalhadas igualmente estavam presentes nas frases completas. Assim, ficou célebre o dito campestre "o gado a saltar de galho e galho, os passarinhos a pastarem pelo campo". O Imperador Pedro II também pode testemunhar as confusões verbais do professor Brotero. Quando em visita à Faculdade, Brotero apresentou ao Imperador o Cônego Fidelis, professor de Retórica: "Apresento Vossa Majestade o Cônego Retórica, professor de Fidelis". Uma outra característica de Brotero era o seu temperamento irascível e o seu mau gênio. O seu alvo principal era o Diretor da Faculdade Coronel José Arouche de Toledo Rendon. No entanto, atingia outros professores, alunos e até funcionários da escola. Um bedel que terminado o seu expediente ia ler jornais na biblioteca, não conseguia o seu intento, pois quando Brotero o via, dava-lhe algo para fazer, não permitindo que permanecesse parado, lendo. Aliás, a alcunha desse servente era Zé Quieto. Tratava-se de um negro. Em relação a outro funcionário, Chico Guaiaca, sabendo que tocava em uma banda, determinou que optasse, ou a Faculdade ou as exibições musicais. Não se sabe se a opção foi feita. Além de Zé Quieto e de Chico Guaiaca um terceiro servente caiu em desgraça. Era o Mendonça, que no entanto, não permaneceu silente diante das provocações. Após algumas implicâncias, enfrentou o professor Brotero dizendo-lhe "não me persiga, porque eu também sou maluco". Voltando à instalação do curso jurídico em São Paulo, nessa data houve a primeira manifestação musical no Largo de São Francisco. Foi executado o denominado "Hino da Inauguração". Segundo algumas fontes o único registro existente a respeito foi feito pelo jornal "Farol Paulistano", que, no entanto, não informou o seu autor. Esse hino parece ter tido vida efêmera, pois foi substituído pelo "Hino Acadêmico", com letra de Bittencourt Sampaio e música de Carlos Gomes. Inúmeras outras composições, durante a história da Faculdade, cantaram e louvaram as Arcadas e os seus estudantes, inclusive as famosas trovas acadêmicas, relegando ao esquecimento o Hino da Inauguração. A respeito da autoria desse primeiro hino há uma especulação em torno do nome de André da Silva Gomes, um antigo professor de música que residia em São Paulo. Alguns dizem poder ter sido ele o responsável pela peça ou, mesmo, algum de seus alunos. O violão, a viola e a flauta eram os instrumentos mais utilizados pelos estudantes. No entanto, houve um, hoje pouco conhecido com esse nome, o oficlide ou oficleide, que não era executado por aluno, mas sim pelo contínuo da Faculdade de alcunha Chico Guaiaca, o mesmo que foi alvo de Brotero, que o tocava em uma banda de música. Os estudantes portadores de dom musical, quando revelado, recebiam algumas vantagens e privilégios dos professores simpáticos à música. Consta que um sisudo mestre era generoso e benevolente com um aluno, aliás péssimo aluno, mas um exímio tocador de flauta. Por tal razão, o professor dava-lhe altas notas não consentâneas com a qualidade de suas provas. Alguns mestres se insurgiram e negaram a aprovação ao flautista. O seu protetor, no entanto, disse que agiria da mesma forma em relação aos alunos protegidos pelos seus colegas de congregação, reprovando-os. Sem oposição, o mau aluno pode ser matriculado no ano posterior. Houve um momento no início da Faculdade, que os professores resolveram agir com maior rigor na avaliação dos alunos. Consta de um ofício às autoridades do Império, que os professores seriam mais rigorosos e não aprovariam os "vadios, que se ocupavam em fazer travessuras e desordens". Vê-se que os seresteiros, boêmios, os que perambulavam pela cidade e seus arredores, os dedicados às letras, à música e a outras atividades extracurriculares teriam dificuldades em obter êxito nos exames. No entanto, como em regra os travessos, peraltas e desordeiros possuíam uma inteligência ágil e vivaz, o pouco que estudavam era suficiente para a aprovação. Assim era e assim é. Dentro desse sistema de maior rigidez e disciplina, nem sequer apresentações artísticas de estudantes eram permitidas. Foram, inclusive, proibidas exibições no recém criado "Teatro Acadêmico" e nos outros poucos palcos existentes em São Paulo. Os estudantes, no entanto, não aceitaram as imposições superiores e passaram a atuar em locais aonde o povo pudesse ir. O Largo de São Gonçalo, hoje Praça João Mendes, tornou-se palco de apresentações teatrais e musicais especialmente nas tardes de domingo. Os pendores artísticos musicais dos estudantes de Direito foram manifestados, por vezes, em situações as mais inusitadas. Em razão de um atrito com a polícia dentro do Teatro do Pátio do Colégio, na presença do então Presidente da Província Coronel Joaquim José de Luiz e Souza, vários estudantes foram presos. Não se sabe exatamente por quantos dias. Segundo uns registros por vinte quatro horas, de acordo com outros durante onze dias. No entanto, durante o tempo que estiveram encarcerados a cantoria não cessou. Entoavam músicas conhecidas ou improvisavam letras, que ecoavam por toda a redondeza. Em outra oportunidade, um estudante que fora preso por agredir o professor Brotero, ficou durante todo o período de encarceramento na cadeia pública localizada no Largo de São Gonçalo, a cantar e a tocar violão. Nos primórdios da Faculdade alguns estudantes se destacaram, em razão de seus dotes musicais. O magistral jurista Teixeira de Freitas, quando estudante do Largo de São Francisco, deliciava os seus colegas de República com o seu violão, que tocava deitado em uma rede. O notável baiano tinha preferência pela música "A vida do Estudante", composta por seu colega Antônio Queiroga. Teixeira de Freitas veio transferido da Faculdade de Olinda, mas não se formou em São Paulo. Colou grau na mesma Olinda, para onde retornou, quando estava no quarto ano. O autor de "O Guarani" e de outras obras que o elevaram à condição de um dos maiores escritores do Brasil, José de Alencar, formado em 1850, embora não fosse músico, além de haver inspirado Carlos Gomes, na composição da ópera do mesmo nome, escreveu a letra de outra ópera, "Noite de São João" . A música foi do também famoso maestro Elias Lobo. É interessante notar que os dois grandes músicos, Carlos Gomes e Elias Lobo, embora não tivessem estudo Direito, tiveram as suas carreiras ligadas aos estudantes de Direito do Largo de São Francisco.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas : Academia de Direito e de Letras

As crônicas da época já registravam o comportamento dos estudantes e a vida que passaram a levar em São Paulo, com influência marcante no próprio modo de ser da pacata sociedade do pequeno burgo. O comportamento, o modo de ser, os hábitos trazidos pelos acadêmicos acompanharam todas as gerações de franciscanos, até as mais recentes. Souberam elas honrar o legado construído desde os primórdios da Faculdade e que passou a constituir as gloriosas tradições acadêmicas: a boêmia, a irreverência, a permanente alegria de viver, a dedicação à poesia e à música, as disputas ideológicas, a adoção das causas libertárias, a solidariedade, enfim o culto ao belo e ao humanismo. Eram os acadêmicos informais, indisciplinados, buliçosos, segundo um cronista da época, travessos, acriançados, autores de peraltices e de aventuras nunca antes presenciadas pela pacata população de São Paulo. Esses epítetos não incomodavam os estudantes, que tinham a consciência clara do tipo de vida que levavam e que desejavam mesmo levar, pois seu modo de ser brotava da própria essência de cada qual, da essência mesmo do acadêmico de Direito. Fagundes Varela pôs em verso o sentir do estudante: "Pode bem ser que livros não abrisse Que não votasse amor à sábia castaMas tinha o nome inscrito entre os alunos Da escola de São Paulo, e é o quanto basta". Um visitante da época, observador atento e arguto, fez uma análise comparativa entre os "dois povos" que habitavam São Paulo. "A capital da província e a Faculdade de Direito, o burguês e o estudante, a sombra e a luz, o estacionarismo (sic) e a ação, a desconfiança de uns e a expansão muitas vezes libertina de outros". Esse mesmo visitante, Augusto Emílio Zaluar, referiu-se aos acadêmicos como uma "colmeia mais ruidosa, infatigável em sua ação", que estava repleta de vida e de vontade, uma vontade que "produz o desvario e alimenta o gênio". A colmeia era habitada pelas "abelhas douradas que fabricam ao sol da juventude os primeiros favos da sabedoria e da ciência". Outros cursos nos meados do século XIX começaram a ser instalados na cidade. O Curso Anexo, como preparatório ao ingresso na Faculdade; o Gabinete Topográfico, que funcionou no Palácio do Governo, para a formação de engenheiros a serem preparados para a construção de estradas. A sua duração, no entanto, foi efêmera. Uma outra instituição de ensino criada em São Paulo, após a instalação dos cursos jurídicos, foi a Escola Normal de São Paulo, para a formação de professores. Surgiram, ainda seminários e várias escolas particulares, dentre as quais o Colégio Fonseca; o Colégio Emulação; o Colégio Ipiranga; o Culto à Ciência; o Ateneu Paulistano e outros. No entanto, mesmo posteriormente, com o funcionamento de outras Faculdades, especialmente Engenharia e Medicina, os estudantes de Direito continuaram a reinar absolutos em uma cidade que os havia incorporado em seu patrimônio social, cultural e político. São Paulo carecia de bibliotecas e de livrarias. O maior acervo estava na Faculdade de Direito, constituído majoritariamente por obras de teologia, menos de Direito e poucas de literatura. A falta de livros atingia as escolas primárias e secundárias. Segundo registro dos anos trinta e quarenta do século XIX, tal deficiência era suprida por cartões que reproduziam trechos das sagradas escrituras. A criação das primeiras tipografias possibilitou o início da imprensa na cidade. Jornais como "O Farol Paulistano"; "O Constitucional"; "O Correio Paulistano", assim como outras pequenas publicações sempre contaram com a colaboração de acadêmicos. Já por volta da década de 1860, eram inúmeras as publicações literárias e políticas redigidas por estudantes de Direito: Esboços Literários; Memórias do Culto à Ciência; Revista Dramática; Murmúrios Juvenis do Amor à Ciência; O Lírio; A Legenda; O Caleidoscópio; O Acadêmico, entre outras. Algumas dessas publicações eram manuscritas e outras eram impressas nas tipografias já existentes na cidade. Interessante notar que para suprir a falta de livros de ensino as tipografias foram de grande utilidade. Além da impressão de jornais e publicações variadas, elas foram responsáveis pela impressão de alguns manuais, especialmente de história. Assim, em uma tipografia existente na hoje extinta rua de São Gonçalo, foi impresso o livro "Resumo de História Universal". Júlio Frank idealizador da Bucha teria sido o responsável por tal publicação. As livrarias igualmente eram escassas. Uma das maiores e mais bem surtidas era a Garraux. Tornou-se um centro de confluência de professores e de estudantes. Além da atração básica que eram os livros, os seus frequentadores estavam sempre prontos ao intercambio de ideias, às discussões políticas e à troca de experiências literárias. Nessa época, meados do século 19, começaram a ser editados clássicos da literatura universal, assim como obras de autores nacionais, inclusive muitas escritas por acadêmicos ou antigos acadêmicos do Largo de São Francisco. Entre os que se dedicaram às letras, ainda como estudantes nos primeiros dez ou vinte anos da Faculdade, tiveram destaque Antonio Joaquim Ribas, Firmino Rodrigues da Silva, Francisco Bernardino Ribeiro e Francisco Otaviano. Posteriormente, a Faculdade veio a produzir nomes que se consagrariam na poesia e na prosa: José de Alencar; João Cardoso de Menezes; Almeida Rosa; Bernardo Guimarães; Alvares de Azevedo; Fagundes Varela e Castro Alves; Vicente de Carvalho e tantos outros. Contribuíram para o avanço das letras naqueles tempos as sociedades literárias e científicas então criadas. A primeira delas foi a Sociedade Filomática, fundada em 1833, pelo acadêmico Bernardino Ribeiro e pelos professores Carlos Carneiro de Campos, José Joaquim Torres e Tomaz Cerqueira. A Filomática foi seguida pelo Ateneu Paulistano, pela Associação Amor à Ciência, pela Arcádia Paulistana, pela Culto à Ciência, pelo Recreio Instrutivo, dentre outras agremiações. Há quem considere tais associações como embriões do Centro Acadêmico 11 de agosto. A literatura, em prosa e verso, a beleza da palavra falada e a música sempre estiveram presentes na história da Faculdade. O culto à estética e ao belo nunca se apartaram do culto ao direito e a Academia, do seu início até os nossos dias, abrigou juristas e poetas, advogados e musicistas, juízes e literatos. Eram prestigiados tanto os estudiosos, quanto aqueles que se destacavam nas artes. Dizem que esses eram até protegidos em homenagem aos seus dotes. Segundo um autor, Castro Alves, por vezes, foi aprovado pela beleza de seus versos, pois alguns de seus exames eram de duvidoso mérito.
terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Fatos e fitas: alegrias e lágrimas

Os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, desde sua fundação, deram à então tristonha cidade de São Paulo um vigor extraordinário. As peculiaridades da vida social, cultural e política que a marcaram no século XIX tiveram como gênese o Largo e seus acadêmicos. Naquele período não foram poucas as manifestações, inclusive de estudantes, de desagrado e pouca estima pela São Paulo da época. O retrato que passavam da cidade era desprimoroso. No entanto, transcorridas não muitas décadas a sua população deu mostras da generosidade e da grandeza da alma paulista, pois rendeu homenagens e reverenciou aqueles que no passado haviam sido seus detratores, e que se tornaram admirados poetas, literatos e homens públicos. Alvares de Azevedo, que segundo a lenda teria nascido na própria Faculdade, se referia a São Paulo como "cidade dos mortos", pois tudo nela lhe parecia "velho e centenário" a ela lhe provocava "tédio e aborrecimento". O futuro romancista Bernardo Guimarães mencionou que São Paulo, embora se apresentasse como um núcleo intelectual respeitável possuía características que lembravam a cidade tradicional da época de "Amador Bueno", o "paulista que não quis ser rei". Aclamado rei dos portugueses e espanhóis no século XVIII, na porta da Igreja de São Bento, abdicou da coroa antes de ser coroado. Olavo Bilac, por sua vez, em uma carta a um amigo dizia não poder viver "numa terra onde só há frio, garoa, lama, republicanos, separatistas, camelos e tupinambás". Em seguida afirmou viver trancado em casa decorando o texto da "Corpo Juri". Terminou informando ter a cabeça "cheia de rimas e de latim. Uma calamidade". Deve-se notar a falta de coerência do poeta. Veio a São Paulo do Rio de Janeiro onde trabalhara em jornal e cursara a Faculdade de Medicina. Abandonou o curso, e mudou-se para São Paulo, onde pretendia cursar Direito. Ao que parece saiu da Corte em razão de uma frustação amorosa. Passou a trabalhar na imprensa paulista, mas não se matriculou na Faculdade de Direito. Assistia aulas esporadicamente, na condição de ouvinte. Deu continuidade em São Paulo à vida boemia que levava no Rio de Janeiro. Frequentava com assiduidade o Bar do Jaça, o Grande Hotel, o Restaurante Faria e a Sereia Paulista, locais de encontro dos boêmios da época, constituída especialmente por estudantes, poetas e jornalistas. E a cidade, acidamente criticada por ele, como se viu, dele mesmo receberia, mais tarde, palavras de carinho e benquerença. Recordando os tempos em que aqui residiu, referiu-se a São Paulo como "esplêndida metrópole". Fez evocações sentimentais dessa época. "Naqueles dias de pouco sol e naquelas noites de muita garoa, já tínhamos dentro de nós esta atual cidade, esta esplêndida metrópole". Os estudantes, dentre eles o próprio Bilac, como se disse estudante de ocasião, entoavam orgulhosos uma cantiga alusiva à vida alegre que levavam: "andamos rindo às estrelas, boêmios endiabrados; apedrejando janelas; dos burgueses sossegados". A influência dos estudantes se fazia notar quando sobrevinham as férias. Com a academia sem atividades, muitos dos estudantes regressavam para as suas cidades e Províncias de origem. Nesse período, São Paulo mudava de fisionomia. Voltava a ser insossa, sem graça, quase sem vida. Segundo a afirmação de alguém que acompanhava a vida paulistana daquela época, durante o ano "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante, e só ele". Esta opinião é compartilhada por Emílio Zaluar, escritor nascido em Portugal, mas radicado no Brasil, em seu livro Peregrinação pela Província de São Paulo. Afirmou nesta preciosa obra que a cidade deveria ser analisada sempre sob dois pontos de vista. De um lado, a cidade em si, a capital da Província e de outro a Faculdade de Direito. "O burguês e o estudante a sombra e a luz, o estacionário e a ação" e após outras analógicas comparações, concluiu como derradeiro contraste, a rotina da população com as "audaciosas tentativas de progresso encarradas na população transitória e flutuante". O estudante de Direito entrou na vida da cidade, quer formando um núcleo peculiar, quer exercendo uma influência decisiva para alterar a fisionomia de São Paulo e de sua sociedade a partir mesmo de 1828, ano do início das atividades da Faculdade. Os estudantes não só deram vida "às sombrias ruas da vetusta cidade colonial" como passaram a compor uma classe intelectual unida e homogênea, sensível aos apelos liberais e nativistas que agitavam a sociedade da época. Época na qual a coroa do Imperador não estava bem fixada em sua cabeça, aliás, segundo se dizia, na "cabeça amalucada de D.Pedro I". Na verdade, logo a partir de 1828, os estudantes de Direito passaram a predominar no pequeno burgo, impondo uma agitação e uma alegria até então inexistentes. Por outro lado, passaram a construir um ambiente de debates políticos e de formação intelectual e literária que deitou raízes na história de São Paulo, tornando-a nos anos vindouros o grande centro propulsor da cultura brasileira. Assinale-se que nos primeiros vinte anos de vida da Faculdade de Direito já era expressivo o número de estudantes de outros Estados, como, aliás, ocorreu nas décadas posteriores, até a criação de outras escolas no país. Os estudantes vinham do Rio de Janeiro; de Minas; da Bahia; de Mato Grosso; do Maranhão e de outros Estados, então Províncias. Em uma cidade, cuja vida social, intelectual e boêmia dependia dos estudantes, não poderiam faltar locais para as diversões menos ortodoxas. As casas das chamadas "mulheres de vida alegre", os lupanares, ou bordeis ou castelos, se já existentes, obviamente, aumentaram consideravelmente as suas "atividades" com a instalação da Faculdade de Direito. Uma das responsáveis pelas "casas" mais conhecidas, era Rita Clementina de Oliveira, conhecida por "Ritinha Sorocabana". As chamadas "madalenas" ou "dalilas" ou "cortesãs" eram reverenciadas e protegidas pelos estudantes, que em não raras vezes se apaixonavam. Muitas dessas mulheres quando os seus preferidos terminavam o curso e voltavam para os seus locais de origem, iam despedir-se na "árvore das lágrimas". Localizada no hoje bairro do Ipiranga, a árvore era o local do adeus, era a testemunha das tristezas, melancolias e lagrimas vertidas nas separações entre estudantes e suas amadas e entre os próprios acadêmicos ligados por sólida amizade constituída durante os cinco anos vividos no Largo de São Francisco.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Fatos e fitas: refregas e conflitos

Não foram raras as ocasiões nas quais os estudantes se viram envolvidos em conflitos coletivos ou interpessoais. Interessante notar duas peculiaridades desses conflitos. Eles tinham início em locais fechados e se estendiam para as ruas. Ademais, em regra, as brigas não ocorriam entre estudantes, mas sim com a polícia ou mesmo com professores da Faculdade. Uma delas teve início pela obstinação de um militar que teimava em permanecer no teatro com o seu quepe na cabeça. Foi repreendido por um estudante, mas não atendeu aos reclamos do acadêmico. A apresentação acabou sendo interrompida, fato que provocou uma reação da plateia, contra o teimoso militar, que acabou abandonando o local. A paz voltou a reinar no pequeno teatro. No entanto, terminada a sessão, teve início um conflito entre estudantes que foram socorrer seus colegas e militares que os estavam esperando na porta. Nos dias subsequentes os ânimos se acirraram e, em decorrência, ocorreram vários incidentes. Em um dos conflitos, um militar foi empurrado de um barranco, fato que lhe causou ferimentos generalizados. Os estudantes, em face das ameaças dos companheiros do militar ferido, constituíram uma comissão, para pedir providencias ao presidente da Província, Jósimo do Nascimento Silva, que os atendeu e informou que os militares haviam sido removidos para outras cidades. A interferência do presidente foi providencial, pois evitou consequências graves no confronto que se avizinhava, entre estudantes e militares. Em outro momento, em um teatro localizado no Pátio do Colégio, os estudantes presentes passaram a tossir insistente e continuamente. Tosses incômodas para a plateia, mas que provocavam risos daqueles acadêmicos que paravam de tossir, apenas para poder gargalhar. Assistia ao espetáculo o coronel Joaquim José Luis de Souza, presidente da Província. Assumiu ele a palavra para advertir os estudantes. Nesse exato instante, um deles levantou-se na plateia e elevou a sua voz, ou melhor, a tosse forçada. Esse estudante recebeu voz de prisão dada pelo delegado João Carlos da Silva Teles, presente ao evento, em cumprimento à ordem do coronel presidente. Como o delegado fosse egresso da Faculdade, os jovens acreditaram que a ordem não seria cumprida. Enganaram-se. Tristão da Cunha Menezes e Martim Francisco Ribeiro de Andrade ambos acadêmicos, foram presos, pois se colocaram ao lado do colega que recebera ordem de prisão, o também acadêmico José Caetano de Andrade Pinto. Os demais estudantes aos gritos, passaram a lançar impropérios contra as citadas autoridades. Todos eles foram ameaçados de prisão, mas não se intimidaram, pois além de continuarem a esbravejar dirigiram-se à cadeia e lá ficaram com os colegas presos. Segundo registro, cerca de setenta estudantes teriam passado a noite na delegacia. Foram eles postos em liberdade em razão de um habeas corpus concedido pelo ex-acadêmico do Largo e juiz de Direito, Carlos Antonio de Bulhões Ribeiro. Apesar desses incidentes, os estudantes possuíam a capacidade de alegrar uma cidade austera e sisuda. Serenatas, cantorias, recitais, saraus, passeios em grupos, a pé ou a cavalo, brincadeiras com transeuntes, por vezes brigas e algazarras compunham todo um rol de entusiasmadas atividades que davam uma especial animação a São Paulo. No entanto, não eram unânimes os aplausos às estripulias estudantis. Especialmente os padres reagiam. E, o faziam, talvez com alguma dose de razão. Dentro das igrejas, o inadequado comportamento de alguns estudantes também se fazia presente. Tantas foram as denúncias de mau comportamento, que o presidente da Província determinou a abertura de um inquérito para apurar as denúncias contra os acadêmicos. Foi o procedimento policial instaurado com ofícios subscritos por várias autoridades eclesiásticas, narrando a maneira como se portavam os estudantes durante as cerimonias religiosas. Em um desses ofícios, a queixa se referia ao posicionamento dos jovens que não se ajoelhavam quando deveriam fazê-lo. Para o subscritor do documento esse fato representava "mui pouca decência". Um outro, dizia respeito aos "abusos" cometidos por esses "indiscretos moços". Considerou-se, em um ofício, ser a conduta da "atual mocidade" nas igrejas tão "escandalosa" a ponto de afligir "ainda aqueles que são indiferentes à religião". Nem sempre o "mau" comportamento nos templos podia ser atribuído aos estudantes, pois não eram eles identificados. No entanto, dificilmente outros jovens poderiam ser responsabilizados, em face da ausência de indícios de autoria, e porque os "antecedentes" dos acadêmicos indicavam serem eles os principais suspeitos. Um desses "antecedentes" teria ocorrido na Ordem 3ª de São Francisco e foi narrado pelo seu vigário. Teria ele visto dois jovens "jogando bola com uma caveira no jazigo da Ordem". Não soube, no entanto, informar se eram estudantes. Tudo levou a crer que... O procedimento coletivo ou individual dos acadêmicos não ensejava reação apenas das autoridades policiais ou eclesiásticas. Casos houve que a repressão foi comandada pelo próprio presidente da Província. O fato em foco, no entanto, não se revestiu da gravidade que justificasse a dura reação do presidente da província, Vicente Pires da Mota. O estudante Antonio José de Figueiredo Vasconcelos, em certa ocasião, praticou um fato que já se tornara uma tradição entre os acadêmicos: participou das chamadas rapinagens famélicas, tendo como alvo perus e galinhas. Não se tem conhecimento de consequências gravosas para inúmeros outros estudantes que desde a instalação dos cursos jurídicos visitaram os quintais das casas paulistanas, no afã de abastecerem suas repúblicas com as saborosas aves. No entanto, na gestão do presidente Vicente Pires da Mota o tacão da repressão caiu pedaço sobre alguns acadêmicos da época, praticantes ousados e corajosos da já arraigada tradição. Embora formado nas Arcadas, Pires da Mota considerava grave transgressão o furto dos galináceos. E, coerente com essa visão, determinou a prisão de Antonio José de Figueiredo Vasconcelos. Houve resistência por parte do acadêmico, que acabou sendo amarrado pelos pés e pelas mãos em uma vara, na posição horizontal, como se fosse um animal conduzido para o sacrifício. Houve pronta reação dos colegas de Vasconcelos, que publicamente e em altos bradodos censuraram a violência praticada por Pires da Mota. Em face das pressões exercidas pelos estudantes, o acadêmico, após ser conduzido à delegacia da forma animalesca já descrita, foi posto em liberdade. Destacou-se no meio estudantil e na própria sociedade paulistana, nos primórdios da Faculdade, o estudante José Joaquim Ferreira da Veiga. Boêmio inveterado, gozava de liderança junto àqueles que também professavam a mesma crença nessa opção existencial. Seu afeto à Faculdade foi demonstrado pelo longo período em que lá cursou Direito: oito anos. Ingressou em 1829 e formou-se em 1836. Talvez inspirados em seu porte físico e em seu temperamento, seus colegas o apelidaram de "Boi". Possuía compleição avantajada, e um gênio irascível e belicoso. Exercia uma atividade incomum para um estudante: era um exímio capoeirista. Tornou-se popular, querido e respeitado não só por um considerável número de estudantes, como por populares, especialmente pelos boêmios e pelos notívagos. A época de atuação de Boi e de seu grupo esteve marcada por graves agitações. Pedro I havia abdicado. Os ânimos exaltados dividiram a sociedade de São Paulo: de um lado os portugueses que desejavam a volta do Imperador, de outro o nativismo tomava conta do espirito dos brasileiros, que desejavam a consolidação de nossa Independência, mas sem a presença de D. Pedro. Comícios em praças públicas e nas portas de bares, ocorriam especialmente à noite, impedindo o sossego noturno das famílias paulistanas. Os livros se referem ao grupo brasileiro como "jacobinos", pela exaltação e radicalismo do sentimento nativista. Registram, ainda, as constantes provocações dos portugueses, que não desprezavam oportunidades para dar vivas a D. Pedro e exigir o seu retorno ao Brasil. A bem da verdade, a eles faziam coro alguns brasileiros, chamados de restauradores. Poucos brasileiros, diga-se.
Nas décadas de 1830 e 1840, os conflitos políticos que agitaram o país atingiram o Largo de São Francisco, especialmente em relação a duas questões que empolgaram a sociedade brasileira durante até o final do século XIX: a república e a escravidão. Mas, com a abdicação de Pedro I em 1831, a então recém-instalada Academia, também passou a discutir a sucessão do Imperador e, especialmente, se viu envolvida pelas disputas entre os liberais e conservadores. Após a ida de D.Pedro para Portugal, em face da pouca idade de seu filho, instalou-se no país uma regência trina, composta por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Francisco de Lima e Silva e José Joaquim Carneiro de Campos. O sistema de Regências Trinas durou até 1835, quando, em cumprimento ao Ato Adicional de agosto do ano anterior, houve eleições, aliás as primeiras do país, para a escolha de um único regente. Esse mesmo Ato Adicional também criou as Assembleias Legislativas Provinciais. Foi eleito como Regente do Império, o Padre Diogo Antônio Feijó. Ex-deputado por São Paulo às Cortes de Lisboa, posteriormente ministro da Justiça e senador, sua trajetória política foi controvertida e repleta de críticas, mas também de entusiasmados apoios. Possuiu adeptos leais e desafetos raivosos. No entanto, sempre foi reconhecido como um homem probo, de conduta ilibada. Feijó era padre secular, pois não se formou em seminário, prestou exames denominados de civis e foi aprovado. Talvez por tal razão fosse contra o celibato imposto aos sacerdotes. Ademais, expunha um outro fator de rebeldia contra a orientação clerical: era maçom. Sua loja era de Porto Feliz, no interior de São Paulo, aliás a primeira loja maçônica de São Paulo. A antiga rua da Freira, hoje leva o seu nome, rua Senador Feijó, onde nasceu em uma grande casa situada na esquina dessa rua com a rua Cristóvão Colombo. A criação das Assembleias Provinciais representou um importante fator de descentralização do poder e de fortalecimento das lideranças regionais. Ao mesmo tempo, com o poder nas mãos dos políticos locais houve um recrudescimento das disputas entre os grupos rivais. Diogo de Feijó renunciou à regência em 1837, em meio a uma situação política extremamente conturbada, sendo sucedido por Araújo Lima. Várias revoltas eclodiram em Províncias, desde o Rio Grande do Sul, até o Pará passando por São Paulo e por Minas, as quais foram responsáveis pela revolução de 1842. A causa remota dessa revolução, que teve início na cidade paulista de Sorocaba, foi a rivalidade entre liberais e conservadores. No entanto, o pavio da explosão revolucionária foi a promulgação de duas leis no final de 1841. Uma criou o Conselho de Estado, em novembro e a outra, promulgada um mês após, trouxe modificações ao Código de Processo Criminal do Império. A criação do Conselho de Estado, segundo os liberais tinha por escopo permitir que os conservadores controlassem o poder central, trazendo ao jovem Imperador uma série de restrições que impediam o pleno exercício do governo, sem a permanente e pontual interferência do Partido Conservador. As modificações operadas pela outra lei no Código Criminal, por sua vez, alteravam e retiravam importantes avanços inseridos pelos liberais quando da sua promulgação no inicio da década de trinta, quando estavam no poder. Um fato que colaborou para mais incitar a rivalidade em ter liberais e conservadores foi a presença de um conservador, vindo da Bahia, no governo de São Paulo, José da Costa Carvalho. Ocupou o cargo de juiz de fora em nossa Estado. Posteriormente, foi diretor da Faculdade de Direito e presidente da Província. Anteriormente, participara da Regência Trina, que governou a Nação antes da eleição de Feijó. A maioria dos deputados da Assembleia Provincial de São Paulo era composta por liberais convictos e aguerridos. Maioria liberal também era encontrada nas Câmaras Municipais de várias cidades paulistas. Dentre elas Sorocaba, que deu início à Revolução de 1842. O levante foi chefiado por Rafael Tobias de Aguiar, que criou a chamada Coluna Libertadora, composta por voluntários que marcharam contra São Paulo. Inúmeras outras cidades paulistas participaram da rebelião: Taubaté; Quatiz; São Carlos; Porto Feliz; Bragança; Areias; Lorena; dentre outras, nas quais os liberais possuíam supremacia política. O Governo Imperial designou o Duque de Caxias para vir a São Paulo combater a revolta. Desceu em Santos e rumou para Sorocaba. No entanto, os revolucionários já haviam se afastado, permanecendo apenas Diogo Antonio Feijó, que aderira aos revoltosos. Como estivesse em cadeiras de rodas, não pode se locomover. Em São Paulo, as tropas revolucionárias pararam na região do Butantã, em uma das margens do Rio Pinheiros. As comandadas por Caxias ficaram no outro lado do Rio. Após um combate de pouca duração os revoltosos se retiraram. Caxias veio a São Paulo com aproximadamente quinhentos homens, contra quase mil de Tobias de Aguiar. Para dar aos revoltosos a impressão de que seu contingente era maior, Caxias solicitou ao presidente da Província mantimentos para mais de mil homens. A crença nesse número se instalou no seio dos revoltosos. Em São Paulo foi criado um Corpo de Voluntários, para a defesa da cidade, chefiado pelo Tenente Jaime da Silva Teles, que foi bibliotecário da Faculdade de Direito. Antes da eclosão do movimento, políticos de São Paulo enviaram um ofício ao Governo Central pleiteando a revogação das mencionadas leis promulgadas no final de 1841. Desejavam também ser recebidos, o que não ocorreu, pois o Imperador e seus ministros entenderam inadequados os termos do ofício reivindicatório. Segundo afirmado, estava ele exposto em "linguagem desmedida". Uma das expressões consideradas ofensivas e "criminosas" foi aquela que se referiu aos ministros responsáveis pelas leis, como "abutres esfomeados". Um dos integrantes da Comissão encarregada da entrega do ofício foi Nicolau de Campos Vergueiro, que foi punido com o seu afastamento da Faculdade de Direito, onde exerceu o cargo de Diretor durante alguns anos. Em Minas Gerais, os liberais também se revoltaram. Um dos líderes foi Teófilo Otoni, formado no Largo de São Francisco, e que se tornou um importante líder político liberal. Caxias rumou para Minas e debelou a conspiração que se tornou acirrada especialmente nas cidades de Sabará e Ouro Preto. Com a ajuda de seu irmão, Coronel José Joaquim, Caxias também venceu os rebeldes mineiros. Em Minas houve um combate na localidade de Santa Luzia, no qual os rebeldes foram derrotados. A partir desse fato, os liberais passaram a ser chamados de "Luzias". Os conservadores eram conhecidos por "Saquaremas", em alusão a uma região do Estado do Rio de Janeiro, onde se reuniam com frequência. Além de Rafael Tobias de Aguiar, destacou-se na revolta de São Paulo um antigo acadêmico de Direito, Gabriel José Rodrigues dos Santos, que exerceu na Faculdade e fora dela, junto à sociedade paulistana, uma marcante influência, quer pela sua conduta como cidadão prestante, quer como intelectual, jurista e homem de letras. Gabriel dos Santos foi promotor público. Teria abandonado a carreira em face de uma ardorosa acusação que levou o acusado a ser sentenciado à morte. Embora convicto da responsabilidade criminal do acusado, sentiu-se amargurado pelas consequências de sua acusação, pois imaginava que houvesse comiseração por parte dos jurados e do juiz sentenciante. Esse é um bom exemplo para os acusadores modernos, que se comprazem em colaborar com a morte civil de cidadãos por eles acusados, com empenho e veemência, em processos nos quais haja provas, não as tenha ou mesmo contra as provas dos autos. Gabriel de Rezende foi levado a julgamento realizado no Convento do Carmo. Foi defendido por João Crispiniano Soares e acusado por Antônio Duarte Moraes. O magistrado que presidiu a sessão foi Rafael de Araújo Ribeiro. Tanto o defensor quanto o juiz eram egressos do Largo de São Francisco, formados nas suas primeiras turmas. Sobreveio um decreto absolutório. E, os demais revoltosos, em 1844 foram anistiados. Feijó, no entanto, não foi beneficiado, pois já havia falecido, quando da edição do decreto de anistia. A Revolução de 1842 teve um aspecto sentimental e romântico, marcado pelo casamento, em Sorocaba, de Rafael Tobias de Aguiar com a Marquesa de Santos, pouco antes das tropas por ele comandadas virem para São Paulo.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Fatos e fitas: sociedades secretas e solidariedade

Não eram poucos os estudantes carentes de recursos para o próprio sustento. Muito deles, inclusive, não conseguiam sequer pagar a hospedagem em uma pensão. Viviam do favor que lhes era prestado por outros colegas em melhor situação financeira. Alguns deles, inclusive, viviam nos Conventos de São Francisco e do Carmo, onde os padres lhe forneciam abrigo e alimentação. Lembre-se que nas repúblicas, por vezes, as refeições eram fartas, dignas das mesas mais abastadas e bem sortidas. Recorde-se também da origem dessa fatura ocasional: as rapinagens, as já conhecidas rapinagens famélicas. Eram os perus, galinhas, porcos, procedentes dos vastos quintais da casa de então, que saciavam a fome dos acadêmicos. O Mercado Municipal também abastecia, compulsoriamente, as mesas das repúblicas e fornecia iguarias finas e boas bebidas para os famosos piqueniques nos arredores de São Paulo. Especificamente, à margem dos rios Tamanduateí e Tiete, nas imediações da Igreja da Penha, ou mesmo em Santos. Desprovidos de recursos para frequentar os poucos restaurantes existentes em São Paulo, os acadêmicos menos favorecidos, tinham acesso a uma boa casa de pasto localizada em frente à Faculdade: a casa de Nhá Umbelina. Lá se regalavam pela manhã com bolos, doces, empadas, café, leite, mingaus e outras iguarias. O largo nem sempre foi um Largo. Em seu lugar havia um grande quintal cercado, com um grande chafariz no meio, pertencente ao Convento e o acesso à Faculdade se dava por uma portinhola por onde entravam também os fiéis para a igreja. Nhá Ubelina desenvolveu uma atividade que se tornou muito comum em São Paulo. Uma outra quituteira conhecida foi Nhá Maria Café, que servia suas iguarias na rua das Casinhas, depois rua do Tesouro. Lá os fregueses inclusive muitos estudantes, deliciavam-se com empadas de piquiri ou de lambari, cuscuz de bagre e de camarão de água doce e tantas outras delicias. A venda de iguarias nas ruas de São Paulo já existia desde o século XVIII. As vendedoras eram chamadas de vendeiras, e vendiam doces e salgados, principalmente na porta das Igrejas. Vendedoras de rua também eram as quitandeiras, especializadas na venda das hortaliças. A população de São Paulo protestou de forma veemente quando essas vendedoras foram obrigadas a sair da rua das Casinhas. O seu destino foi a Praça do Mercado. As dificuldades e carências dos estudantes pobres não se limitavam à moradia e à alimentação. Não. Outras existiam e os afligiam. Quando eram convidados para algum sarau ou baile organizados pelas famílias, especialmente por aquelas que possuíam. A solidariedade mais uma vez se fazia presente. Bastava encontrar o colega que possuísse medidas semelhantes e, uma vez encontrado, o problema estava resolvido. Óbvio, que o colega precisaria ter pelo menos duas fatiotas. As carências também se faziam sentir nas atividades boêmias noite a fora. Para beber, comer, adquirir algum instrumento, na hipótese de praticar a serenata, o estudante necessitava de recurso. Despesas naturais de uma vida notívaga intensa e variada tinham que ser arcadas, pois não bastava a lua e as estrelas, essas eram gratuitas. No entanto, havia, além dos bares e restaurantes, outros locais onde os gastos eram elevados e compulsórios. Despesas com a saúde igualmente recebiam o auxilio dos solidários colegas. Enfim, a camaradagem que ultrapassava os limites da amizade e entravam no espaço da fraternidade. Eram irmãos. Pois bem, foi com esse espírito, o da ajuda mútua recíproca que surgiu a ideia da criação de uma Sociedade que praticasse a filantropia. Houve ampla discussão que antecedeu a criação da Sociedade, a respeito da natureza e dos meios a serem empregados para a ajuda efetiva que deveria ser prestada aos muitos estudantes pobres que cursavam a Faculdade de Direito. Havia um ponto de convergência: a indispensabilidade, ditada pela sensibilidade dos estudantes que participavam das reuniões, de prestar o auxílio fraterno aos colegas necessitados. Formavam todos, ricos, remediados e pobres em conjunto uno e indivisível de jovens ligados por um elo indestrutível, que era o de saber direito e praticar a Justiça. As diferenças políticas, monarquistas ou republicanas; eram liberais ou conservadores; escravocratas ou abolicionistas, os dividiam os conceitos políticos, mas não os sentimentos de amizade, solidariedade e amor ao próximo, e o próximo pertencia à Academia Brasileira do Largo de São Francisco. Dentro desse espírito foi fundada a "Sociedade Filantrópica", dois anos após a instalação dos cursos jurídicos de São Paulo. Participou desse ato, não só com sua presença física, mas como um dos idealizadores da iniciativa, o estrangeiro Júlio Frank, recém-chegado ao Brasil. Sensível à preocupação dos estudantes Júlio discorreu sobre as iniciativas adotadas entre Universidades atentas para os mesmos problemas das carências, que atingiam também os estudantes europeus. Contou sobre a existência da Burschenschaff, que em várias faculdades da Alemanha congrega estudantes pobres que são auxiliados pelos colegas abastados. A ideia entusiasmou os participantes de algumas reuniões preparatórias. No entanto, manifestaram a sua dificuldade em pronunciar o nome da entidade. Júlio Frank então, reduziu a longa e impronunciável palavra para Bucha, Abrasileirada, a Bucha incorporou-se não só no nosso vocabulário como deixou raízes indestrutíveis nas tradições da Faculdade de Direito. Dirigiam inicialmente a nova Sociedade, que na verdade encobria a Bucha, pois essa tinha o caráter de sociedade secreta. Figuras importantes de São Paulo passaram a integrá-la, alguns alunos da São Francisco: Antonio Mariano de Azevedo Marques, Diogo Antonio Feijó, Luiz Monterio de Orvelha, José Inácio Silveira da Mota, Manoel Alves Alvim. Inúmeras e importantes figuras das Arcadas foram "bucheiros". No entanto, sempre pairou dúvidas sobre as suas identidades. A "Bucha" foi uma sociedade secreta. O escopo beneficente e filantrópico impedia a divulgação de quem auxiliava para evitar solicitações de mais ajuda e evitava constrangimentos a quem recebia. A Sociedade Filantrópica, como se disse, era a entidade que encobria a Bucha, era a sua face externa. As arrecadações eram feitas em seu nome e logo nos seus primórdios angariou um número considerável de sócios. Um dado relevante é que logo passou a prestar assistência judiciária a quem necessitasse. Pode-se dizer ter sido ela o embrião do Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, e de outros existentes em Faculdades de Direito espalhadas pelo país. A Bucha se perpetuou em dois símbolos inestimáveis para a Faculdade e para os "bucheiros" de ontem de hoje e de sempre. A "Chave" e o túmulo de Júlio Frank existente em um dos pátios da Faculdade. A "Chave" representava o acesso à entidade. Anualmente era entregue ao "Bucheiro". Sempre um aluno do 5º ano que a passava, em uma cerimônia, a um sucessor que estava terminando o quarto ano. O "mandato" deste era por um ano. O grande símbolo da Bucha, no entanto, é o sepulcro onde corpo de Julio se encontra, em um dos pátios da Faculdade. Pequeno pátio com um túmulo que se ergue na forma de um obelisco cercado de um gradil. Não fosse a Faculdade a acolhê-lo e os estudantes a patrocinarem a construção de túmulo, ou o corpo de Júlio Frank ficaria insepulto. A Igreja católica negou-lhe sepultamento em seus templos, pois ele era protestante. Nascido na Saxônia embarcou como clandestino rumo ao Brasil. Descoberto, ficou preso por algum tempo na Fortaleza do Lage, no Rio de Janeiro. Uma vez liberdade, veio para São Paulo, especificamente para Sorocaba, onde se encontrou com alguns patrícios e trabalhou em uma Fundição. Em São Paulo, foi recomendado por um sorocabano Rafael Tobias de Aguiar, político de grande influência que o ajudou a lecionar no Curso Anexo da Faculdade de Direito. O político que veio a chefiar a Revolução de 1842, reconheceu, de pronto, as qualidades intelectuais do jovem, que conhecia história, geografia, geometria e várias línguas. Júlio logo conquistou a simpatia e a admiração dos estudantes, não só do curso anexo como da própria Faculdade de Direito. Um de seus mais próximos discípulos foram Antonio Joaquim Ribas, futuro conselheiro Ribas e um dos mais notáveis lentes da Academia. Uma curiosidade digna de nota, se refere à um sepultamento e a um nascimento. Júlio Frank está em repouso na Faculdade. Mas, outra celebridade teria ali nascido. Álvares de Azevedo, segundo a lenda, teria sido dado à luz dentro do velho Convento. Sua mãe, desprovida de amparo e de cuidados fora acolhida pelas Arcadas, lá levada por alunos caridosos. O sepultamento é fato real. Já o nascimento tem todas as características de uma lenda. Não se esqueça, no entanto, que o talento poético de Álvares de Azevedo praticamente nasceu e floresceu dentro da Faculdade de Direito. Ao que parece bucheiros e detentores da chave foram, dentre outros Américo Brasileiro, Francisco Glicério, Cesar Lacerda Vergueiro, Afonso Pena dentre outros. Ledo engano achar-se que a Bucha congregava apenas estudantes que auxiliavam e outros que eram ajudados. Não. Tornou-se um centro de estudos, discussões e disseminação de ideias libertárias, que impregnando cada um de seus membros, possibilitando a estes difundi-las em seus círculos de relacionamento, durante e após o curso. Ao lado da Bucha a Maçonaria também desempenhou o protagonismo fundamental na formação de gerações comprometidas com a liberdade e com a dignidade do homem. Ambas representavam características semelhantes: sociedades secretas, filantrópicas, defesa da liberdade, democracia, humanismo, igualdade. Dentre outras pontes comuns. Diversamente da Bucha a Maçonaria não surgiu no Brasil, na Faculdade de Direito da São Paulo. Ela é universal e antiquíssima. Não existe um extenso registro sobre a Maçonaria no Largo de São Francisco. Pouco se sabem que era maçom na Faculdade. Mas, que houve pedreiros famosos lá formados os houve. Os maçons eram chamados pedreiros, porque os primeiros seriam operários que construíram as igrejas e catedrais na Idade Média. No Brasil a Maçonaria teve uma influencia relativa. A não ser no período do Império. A primeira loja maçônica surgiu no fim do século XIX, em Pernambuco. Sua atuação marcante se deu na época da Independência e da Proclamação da Republica. Durante o 2º Império, a chamada a Questão Religiosa envolveu diretamente os maçons, a Igreja Católica e o Governo Imperial. Uma parte radical da Igreja, denominada ultramontanismo, representada no Brasil pelos bispos Dom Vidal e Dom Macedo Costa, proibiram os maçons de frequentar as cerimônias religiosas e interditaram as irmandades nas quais houvesse maçons. O governo, em face do paradoxo então existente, determinou o levantamento das interdições. Os bispos não obedeceram e acabaram sendo presos. A questão religiosa provocou efeitos importantes na historia do Brasil. Dentre elas a separação entre a Igreja e o Estado.
quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Fatos e fitas: civismo e solidariedade

A Faculdade de Direito tornou-se um campo fértil para os debates em torno de temas e de questões que estavam agitando a Nação e provocando movimentos armados em vários Estados. Assim, a consolidação da Independência; a rivalidade entre nativos e portugueses; a abdicação de D.Pedro I; a instituição da Regência; a maioridade de Pedro II, a República e a escravidão, dentre outros, suscitaram não só polêmicas e acirradas discussões, como levaram à criação de grupos cujos integrantes estavam ligados por pensamentos e objetivos comuns. A questão da maioridade de D. Pedro II, vinha sendo colocada como fundamental para que a normalidade institucional reinasse no país, conturbado por revoltas armadas. Na capital do país, em 1838, foi criada a "Sociedade Promotora da Maioridade" ou "Clube da Maioridade", cujo objetivo era criar condições jurídicas para que o filho de D. Pedro I assumisse o trono do Brasil. Os acadêmicos se dividiram, a favor e contra a antecipação da maioridade. Essa divisão provocou grandes divergências e acirrados debates. A Faculdade de Direito de São Paulo também constituiu um dos primeiros núcleos organizados para a luta contra a escravidão. No início foi um grupo que se manteve na clandestinidade, logo após, passou a defender os ideais abolicionistas de forma transparente e pública. É importante realçar que os movimentos abolicionistas foram contemporâneos aos de natureza nativista e republicano, mas com estes não se confundiam, pois alguns desses últimos não necessariamente objetivavam o fim da escravidão, mas ao contrário, desejavam a sua permanência. Os representantes das classes mais abastadas, especialmente da aristocracia rural, não queriam nenhuma alteração no status quo. Os estudantes de Direito dessa mesma origem defendiam os interesses de seus pais, e se opunham à libertação dos escravos. Interessante notar que muitos líderes das revoltas nativistas da época possuíam escravos. Tiradentes, por exemplo, sempre se fazia acompanhar por um escravo. Ademais, muitos dos escravos alforriados, tendo se tornado economicamente ativos, passaram a possuir cativos. Francisco Paulo da Silva um negro do Vale do Paraíba era proprietário, de aproximadamente, duzentos escravos, em suas Fazendas situadas no Vale do Paraíba. Como não eram poucos os acadêmicos anti-abolicionistas, o ambiente na Faculdade era marcado por desavenças que, por vezes, se transformavam em dissenções irreconciliáveis. Mesmo em período mais próximo à abolição, a resistência à libertação dos escravos recrudesceu e vinha pelas vozes de figuras proeminentes, podendo ser citado apenas um exemplo: José de Alencar defendia a escravidão e atacava os abolicionistas chamando-os de "emissários da revolução, apóstolos da anarquia". Saliente-se, que a Igreja católica apoiava a escravidão. Negros eram "povos infiéis", descendentes de Caim, filho de Noé. É possível que essa posição tenha, também, exercido influência importante em relação aos estudantes com tendências escravocratas. Não se esqueça da grande influência clerical na época do Império, onde Estado e Igreja não estavam separados. Dos abolicionistas estudantes de Direito destacou-se Antonio Bento de Souza e Castro. Diversamente de outros líderes da abolição que transmitiam as suas ideias por meio de escritos, em prosa e verso, ou por meio da palavra discursada, ele, talvez por não possuir recursos culturais que o credenciassem a ajudar a causa da libertação dos escravos por meio de atividades ligadas ao intelecto, agia de forma efetiva e pragmática. Com efeito, Antonio Bento teve uma participação extraordinária na luta abolicionista. Como promotor de Botucatu e Limeira e, após, na qualidade de juiz municipal e delegado de polícia em Atibaia, sempre que as suas funções ensejavam oportunidade, ele não se constrangia em demonstrar o seu posicionamento, por meio de medidas e decisões desfavoráveis aos proprietários de escravos. Quando veio do interior para advogar em São Paulo, o ex-aluno da São Francisco passou a atuar em prol dos escravos, e a sua ação foi literalmente de libertação, pois os ajudava a fugir dos cativeiros, e os encaminhava para o quilombo do Jabaquara, em Cubatão e para outros locais. As fugas eram promovidas por um grupo por si criado, denominado de caifazes. Estes homens, que usavam uma camélia branca na lapela, exerciam as mais variadas profissões e se reuniam especialmente na Igreja dos Remédios, no Largo de São Gonçalo, e de lá partiam para as ações concretas. Os caifazes formavam e dividiam em pequenos grupos que se espalhavam por cidades do interior, adredemente escolhidas. Invadiam as propriedades rurais e retiravam tantos escravos quantos possíveis fossem. Inúmeros escravos eram "adotados" por abolicionistas que lhes davam proteção e ocupação remunerada, para sua sobrevivência. Esses negros eram levados e encaminhados para várias localidades em Minas, Rio e Mato Grosso e para várias cidades paulistas. Foi de grande auxílio aos caifazes os ferroviários de São Paulo. Eles transportavam os negros das cidades nas quais eram libertos para São Paulo, e desta para outros destinos especialmente para Santos, onde ficavam no quilombo do Jabaquara ou de navio iam para o Rio de Janeiro, para ser acolhidos pelos quilombos domésticos. Para serem colocados nos vagões, havia uma senha: "segue bagagem" e a partir daí passavam os cativos a receber proteção e ajuda dos funcionários do trem e das estações por onde passava. Os caifazes constituíam uma sociedade secreta, no sentido da não identificação de seus integrantes, com ramificações em todas as camadas sociais e representantes em várias instituições públicas ou privadas, o que facilitava sobremodo o planejamento e a execução dos planos de fuga dos escravos. O grupo abolicionista possuía um jornal "A Redempção" editado por Antonio Bento, que se tornou um eficiente veículo de difusão da barbárie representada pela escravidão e ao mesmo tempo um poderoso veículo para provocar na sociedade um sentimento adverso contra os escravocratas. Outros jornais foram fundados por Antonio Bento tais como "O Arado" e "A Liberdade". Os caifases e os seus órgãos de imprensa, criados por inspiração e iniciativa do acadêmico do Largo, podem ser considerados um dos fatores fundamentais para libertação dos cativos brasileiros, ou pelo menos uma sólida semente que contribuiu para a geração da abolição. Nas décadas subsequentes, os estudantes de Direito criaram vários jornais acadêmicos, com o escopo de difundir os princípios abolicionistas. O "Ça Ira" e "A Onda" tiveram grande destaque, passando esse a ser os porta vozes do Centro Abolicionista Acadêmico. O Largo não legou apenas o chefe dos caifases como figura de realce na luta pelo fim do servilismo negro. Em décadas diversas, estudantes do Largo se destacaram na luta antiescravista. Além de Antonio Bento, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, que não concluiu o curso em São Paulo, Raul Pompéia, Pimenta Bueno, Valentim Magalhães, Paulo Eiró, dentre outros inúmeros outros, reunidos no Pateio da Faculdade, então denominado de "Gerais", traduziam por inflamados discursos e comoventes poesias os elevados ideais libertários. Além de inúmeros ardorosos abolicionistas, pode-se afirmar que, embora nela não tenha se formado, mas com ela manteve estreito relacionamento, a Academia gerou o rábula negro Luiz Gama, o grande defensor de escravos perante a Justiça, tendo segundo seu próprio relato em carta a Lúcio de Mendonça obtido a libertação de mais de quinhentos cativos. Nascido na Bahia, filho de um português e de uma negra, escrava liberta, que foi presa várias vezes por haver participado de movimentos revoltosos, Luiz Gama passou sua infância como escravo. Foi vendido como tal pelo próprio pai, quando tinha dez anos. A sua origem, no entanto, segundo ele mesmo narrou, dificultou sobremodo a sua comercialização: quando era declinado o seu Estado natal, a sua compra por parte dos senhores ficava inviabilizada. Os compradores desistiam da aquisição quando tomavam conhecimento da sua condição de "baiano". Luiz Gama se viu liberto por falta de mercado. Depois de servir ao exército, veio para São Paulo e aqui trabalhou como funcionário público. Nesse período, passou a se interessar pela causa dos escravos, fato que o levou a estudar com afinco a legislação até então existente sobre a escravidão, bem como a conviver com alguns professores e alunos do Faculdade. Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, professor da Academia e José Bonifácio o Moço ajudaram-no a se tornar um autodidata em Direito. Especializou-se na legislação e com coragem, esmero técnico e eloquência conseguiu não só retirar do cativeiro cinco centenas de cativos, assim como obteve na Justiça o reconhecimento de vários direitos dos negros mesmo já alforriados, mas que ainda viviam em situação precária e sem a proteção legal. Trabalhou, em regra, sem cobrar honorários e tornou-se um dos maiores advogados que o Brasil conheceu, embora não tivesse se formado. Algum tempo depois um outro notável advogado, que igualmente começou como rábula, formado no Rio de Janeiro, Evaristo de Moraes, escreveu sobre seu irmão de cor, descrevendo a epopeia que foi a sua carreira de advogado, considerada por Gama, como um verdadeiro sacerdócio. Evaristo, por sua vez, começou sua atuação como rábula, defendendo seus colegas da estiva, quando se envolviam em brigas entre si e especialmente contra a polícia. Posteriormente, já formado, participou dos grandes julgamentos da época. Foi, por exemplo, advogado do oficial do Exército Dilermando de Assis, autor de dois homicídios: matou Euclides da Cunha e, anos depois, seu filho, que levava o seu nome e era conhecido como Quidinho. Ambos foram absolvidos Ao contrário de Evaristo que pode bacharelar-se, Luiz Gama não obteve êxito em seu intento. Não restaram esclarecidas as razões que o impediram de estudar no Largo de São Francisco. Este fato, no entanto, não o impediu de conviver com vários alunos e durante anos com antigos estudantes que frequentavam o seu escritório, pois se tornara um símbolo, uma referência da advocacia da época. Foi um percussor da defesa dos direitos humanos. Embora sem o grau de bacharel em Direito Luiz Gama pode ser considerado um legítimo representante das Arcadas, pois encarnou todos os valores secularmente defendidos gloriosa Academia.
quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Fatos e fitas: a Academia em época conturbada

Os princípios do iluminismo, que estavam empolgando a intelectualidade de países europeus, encontraram nos estudantes de São Francisco um campo fértil para germinar. Estavam eles sob o impacto de uma independência ainda não consolidada e que, ao contrário, parecia frágil e reversível. Mesmo tendo partido para Portugal, D. João VI se auto proclamou "Imperador do Brasil e Rei de Portugal e Algarves", embora tenha delegado a seu filho Pedro I o pleno exercício do governo brasileiro. Por outro lado, D. Pedro firmou um acordo com o governo português, pelo qual o Brasil se responsabilizaria pela quitação de uma dívida de Portugal com a Inglaterra e pagaria uma "compensação" ao antigo Reino, pela perda de suas propriedades no nosso país. No total, o Brasil dispendeu dois milhões de libras esterlinas para que Portugal reconhecesse a nossa independência. José Bonifácio de Andrade e Silva, quando soube do chamado "Tratado de Aliança e Paz" declarou que o país havia recebido "um coice na boca do estômago". Os estudantes não assistiam passivos aos apelos em prol da restauração do domínio português, da volta de D. Pedro ao trono brasileiro e, embora incipientes, da proclamação da República. Reagiam contra os dois primeiros movimentos, e começavam a se engajar nas correntes republicanas. A insatisfação política e a instabilidade institucional se manifestaram no país na forma de inúmeras revoltas ocorridas especialmente nos Estados do nordeste, que almejavam sua própria independência e não queriam se vincular a um governo central. Por outro lado, partiam da Capital do País e de São Paulo, especificamente do Largo de São Francisco, manifestações coletivas ou individuais, por meio de escritos e discursos, que clamavam pela união dos brasileiros em torno da consolidação da independência. Quando D. Pedro I voltou a Portugal, em 1831, várias rebeliões ocorrem na Corte e em outros Estados, apresentando natureza e objetivos diversos, mas todas demonstrando a falta de solidez da independência e a intranquilidade com o fim do primeiro reinado e insegurança com o futuro das ainda insipientes instituições. O discurso republicano, por tais razões, estava encontrando eco junto a parcelas da sociedade, especialmente na Academia de São Francisco. Seus estudantes eram os principais arautos das novas ideias, que tomavam corpo à medida que a transição para um novo governo imperial era insegura e incerta. Os jovens estudantes entusiasmados com os ideais iluministas consubstanciados nas Revoluções Americana e Francesa, em São Paulo passaram a conviver e a assimilar os ensinamentos liberais de Líbero Badaró, por eles chamado de "Botas", por usar esse calçado. Professor do Curso Anexo e fundador do jornal "O Observador Constitucional". Badaró não só divulgava os pensamentos contrários ao absolutismo monárquico como era um ferrenho adversário do governo imperial e não lhe poupava críticas, por vezes ofensivas e agressivas. Embora tivessem sido presos os autores de seu assassinato, ocorrido em 1830, na rua São José, que hoje leva o seu nome, os mandantes não foram apontados com induvidosa clareza. Houve até rumores de que o crime fora praticado por inspiração do próprio Imperador. As primeiras pregações republicanas começaram a incomodar e a preocupar o Imperador. Sabedor da existência de um núcleo republicano na Faculdade do Largo de São Francisco, D. Pedro I chamou à Corte Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, futuro Diretor da Faculdade, em razão de suspeitas de que estaria ele tramando a proclamação da República. O antagonismo entre portugueses e brasileiros foi se acentuando à medida que o prestigio de D. Pedro I declinava. Eram constantes os atritos ocorridos em vários Estados, especialmente no Rio de Janeiro. O mais violento deles passou para a história com o nome da "Noite das Garrafadas". Na ocasião, os portugueses organizaram uma festa na rua da Quitanda, em homenagem a D. Pedro. Todas as casas foram iluminadas e foram construídas fogueiras, que eram alimentadas com álcool despejado de garrafões fornecidos por comerciantes portugueses. Aos gritos de "Viva D. Pedro, Imperador dos Portugueses," percorreram várias ruas atirando pedras e garrafas nas casas dos brasileiros. Estes, em represália, vociferando contra o governo e apagando as fogueiras, atacaram lojas e residências de portugueses, quebrando vidraças e também atirando objetospe contra os seus moradores. Houve várias brigas nas ruas, com inúmeros feridos e presos. Após o retorno da cidade à normalidade, D. Pedro compareceu à Capela Real em ação de graças pela viagem que os imperadores fizeram pouco antes a Minas Gerais. Após teria um beija mão no Palácio de São Cristóvão. Para decepção do casal imperial poucos foram os brasileiros que compareceram às duas solenidades. Verificou-se, ainda, ter sido diminuto o número de militares presentes, fato que mais apreensão trouxa ao monarca. Em face dos acontecimentos da "Noite das Garrafadas" um grupo de deputados apresentou um documento exigindo a exemplar punição dos portugueses responsáveis pelos distúrbios. Caso nenhuma medida punitiva fosse adotada, haveria uma revolução. Não foi desencadeada nenhuma revolta, diante da omissão do Imperador, mas, em resposta os brasileiros afrontaram a autoridade imperial, desprezando-a. Com efeito foi organizada pelos brasileiros um desfile militar para comemorar os sete anos da outorga da Constituição, ao qual compareceram todas as principais figuras da sociedade e das forças armadas. No entanto, o Imperador não foi convidado. D. Pedro foi, no mesmo dia, vítima de uma outra desfeita. Após o desfile, resolveu, por insistência da Imperatriz, Dna. Amélia, ir à uma missa solene celebrada na mesma comemoração, para a qual também não fora convidado. Após a solenidade religiosa, as pessoas passaram a dar vivas à independência; à soberania nacional; à república e ao menino Pedro seu filho, futuro Pedro II. A ele, no entanto, nenhuma menção, foi feita. Em 7 de abril de 1831, D. Pedro abdicou e retornou a Portugal. Logo após o retorno de nosso primeiro Imperador à sua terra natal, em São Paulo organizou-se um grupo para ir combater no Rio de Janeiro os chamados restauradores, que desejavam a volta de D. Pedro. O responsável pela organização do grupo de paulistas, foi o Padre Vicente Pires da Mota, eminente figura pública de São Paulo, formado no Largo de São Francisco, e seu futuro Diretor. Consta ter sido Pires da Mota um exemplar administrador quando ocupou cargos públicos, dentre eles o de vice e, posteriormente, presidente da Província de São Paulo. No entanto, registram os anais que era extremamente rigoroso, a ponto de cometer abusos e até gritantes arbitrariedades, quando desempenhava as funções de juiz de paz e, anos após, de diretor da Faculdade. Determinou, quando juiz, a prisão de um estudante acusado da prática, já comum à época, do furto de perus e de outras aves. A prática, diga-se, foi seguida pelas gerações futuras de estudantes famélicos, mas de refinado gosto culinário. Pois bem, uma vez que tal estudante resistiu à prisão, Pires da Mota determinou aos encarregados que o amarrassem e o transportassem como fosse possível. Assim, o jovem foi amarrado pelos pés e mãos a uma vara, na posição horizontal, para ser levado à cadeia. A Faculdade de Direito, após o retorno de D. Pedro e ainda sob o impacto da morte de Líbero Badaró, fundador do "Farol Paulistano", veículo de divulgação das ideias liberais e declaradamente contrário ao governo central, passou a constituir um núcleo de oposição à Monarquia e favorável à República, que só viria a ser proclamada quase sessenta anos após. No entanto, não eram poucos os estudantes que, nos anos posteriores, mostravam-se defensores do regime monárquico. Antes da maioridade de Pedro II, instalou-se o regime das regências, que também foi marcado por inúmeras revoltas eclodidas em vários Estados. Assim, Cabanagem, no Pará; Sabinada, na Bahia; Balaiada no Maranhão, e muitas outras, incluindo a Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul e a Revolução de 1842, em Sorocaba, que contou com a participação de vários estudantes, já filiados ao Partido Liberal.
terça-feira, 18 de setembro de 2018

Celeiro de ideias, ideais, sonhos e utopias

A Academia foi palco e núcleo propulsor de ideias e ideais libertários desde a sua instalação. Aliás, os articuladores de sua criação preocuparam-se com a formação cidadã dos jovens estudantes, e também, preparando-os para serem gestores da coisa pública e homens de Estado. Desta forma, em suas raízes estão objetivos e anseios que extrapolam os limites impostos pelo magistério, a saber sejam os de ensinar matérias específicas, para habilitar os profissionais para o desempenho das respectivas funções. O Largo de São Francisco desde os seus primórdios, ultrapassou aqueles lindes e se tornou um polo de ferrenhas e frutíferas discussões em prol do aprimoramento sócio, político e cultural do país. Em especial o jardim de pedras, pátio da Faculdade e, posteriormente, ela, como um todo transformada em "Território Livre", palco de divulgação de ideias, ideais, sonhos e utopias de todos os matizes, em prol do desenvolvimento da sociedade humana e do homem brasileiro. Nos primeiros anos da Faculdade, os ideais dos iluministas, dos enciclopedistas, das Revoluções Americanas e Francesa foram disseminados entre os estudantes. Nesse momento surgiram os primeiros escritos dos estudantes divulgando tais pensamentos, que, na verdade, representaram os primeiros germes da Abolição e da República. Deve ser notado que fora da Faculdade os embates em torno das novas ideias encontravam abrigo nas repúblicas dos estudantes. Ali, tal como no pátio da Escola, os princípios defendidos pelo liberalismo e pelo iluminismo eram alvo de análise e de aprofundadas discussões, exercendo forte influência no espírito dos acadêmicos. Vê-se, pois, que as repúblicas não eram exclusivamente centros de residência e de convivência entre os estudantes, que se reuniam para planejar as suas brincadeiras, serenatas, peraltices, rapinagens e outras atividades que tais. Além das ideias importadas, os moços se ocupavam dos problemas nacionais, com especial atenção para os referentes às regiões do país, de onde provinham inúmeros estudantes. Note-se que a implantação da República e a Libertação dos Escravos já eram temas discutidos abertamente. Os estudantes estavam prontos para abrigar em seus espíritos os fundamentos de construção de um novo mundo, que assistia a ruina das Monarquias tradicionais e do absolutismo, assim como via surgir governos democráticos. Os jovens apreenderam e compreenderam que os Estados modernos deveriam ser lastreados por novos princípios oriundos do humanismo, ligados às ideias de igualdade entre raças e povos; ao voto universal; à separação entre Estado e Igreja; à livre expressão do pensamento, dentre muitos outros postulados. O Bispo de São Paulo, dom Manoel Joaquim Gonçalves, não via com bons olhos a presença das novas pregações libertárias, para ele nitidamente revolucionárias, pois colocavam em risco a solidez dos alicerces de sustentação do antigo mundo, construído em consonância com os princípios seculares da Igreja Católica. No púlpito e fora dele, com grande veemência, verberava a importação das corrosivas ideias que, segundo apregoava, punham em risco o mundo aristocrata cristão. Em 1830, um fato abalou a Academia e toda a sociedade paulista: foi assassinado o médico italiano Líbero Badaró, que empresta o seu nome à antiga Rua Nova de São José, local do crime. Nasceu em Gênova, em 1798, e seu nome em italiano era Gio Balta, João Batista, tendo acrescentado Líbero Badaró, como sobrenome para externar no próprio nome as suas ideais liberais. Formou-se em medicina na Universidade de Turim, em 1825. Anteriormente estudara botânica na Universidade de Bolonha. Foi para o Rio de Janeiro, segundo consta fugindo de adversários políticos. Revalidou o seu diploma e tornou-se amigo do jornalista Evaristo da Veiga, que fundara o jornal Aurora Fluminense. Dizem ter vindo ele para o Brasil, também atraído pela nossa rica flora, conduzido, assim, por curiosidade científica. Há registros de que na Capital do país entregava-se a longos passeios pelas matas cariocas, estudando nossas espécies botânicas. Veio para São Paulo, com a ajuda do amigo, José da Costa Carvalho, Marques de Monte Alegre, que em fevereiro de 1827 fundou o Farol Paulistano, primeiro jornal paulistano. Este jornal contou com a colaboração do dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro; do Padre Manuel Joaquim do Amaral Gurgel e do Padre Vicente Pires da Mota, todos eles professores e futuros diretores da Faculdade de Direito. Posteriormente, Líbero Badaró fundou o Observador Constitucional. O primeiro número foi editado em 23 de novembro de 1829, e teve como escopo principal a divulgação dos ideais libertários ardentemente defendidos por seu criador. O jornal era impresso na tipografia do Farol Paulistano, e era lido com grande interesse pelos acadêmicos de direito. Líbero deu aula no Curso Anexo preparatório para o ingresso na Faculdade de Geometria e de Matemática. Sua pregação liberal era exaltada e atingiu decisivamente os primeiros alunos, que já estavam influenciados, como se viu, pelas mesmas ideias. Não são conhecidas com clareza as razões que motivaram o seu assassinato, no dia 20 de novembro de 1830. Suspeita-se ter sido mandante do crime o Ouvidor da Província Cândido Ladislau Japiassu, que lhe nutria não disfarçada animosidade, pois Líbero denunciava os seus desvios de conduta sistematicamente por meio do Observador Constitucional. Líbero foi morto por dois homens encapuçados na hoje rua Líbero Badaró, vítima de tiros fatais. Quem o socorreu foi Emiliano Fagundes Varela, que por lá passava no momento do ataque. Seus socorros foram em vão, pois o óbito se deu no dia seguinte. Sua crença nos ideais liberais estava tão arraigada em seu espírito, que ao morrer teria afirmado "morre um liberal, mas não morre a liberdade". Nos anos trinta e quarenta, contando com a efetiva colaboração dos estudantes do Largo de São Francisco, surgiram várias publicações regulares em São Paulo. Assim, O Paulista Oficial; O Solidário; O Escandalizado; O Escorpião; Americano; Clarim Saquarema. Este último jornal trazia estampada à frase "Viva o Imperador, Viva a Constituição.". A mobilização dos estudantes em torno do novo pensamento político que se espalhava pelo mundo, no Brasil revestiu-se de grande importância, pois a nossa independência recém-proclamada, longe de estar consolidada, estava cercada de riscos impostos pela ação eficiente e obstinada dos chamados restauradores que não só pugnavam pelo retorno de D.Pedro I ao trono, como pela volta do Brasil à condição de colônia de Portugal. Nesse sentido, representaram um papel fundamental na busca pela integral autonomia política e administrativa do país as pregações dos acadêmicos, especialmente por meio da imprensa. Em 1856 foi impresso o Guaianã inteiramente escrito e editado por estudantes. Trazia publicações de natureza científica, política e literária. Posteriormente surgiram, dentre outros, os seguintes jornais editados por estudantes de direito, durante os anos da segunda metade do século XIX. : O Acadêmico do Sul; Caleidoscópio; O Timbira; Imprensa Acadêmica; O Constitucional, porta voz do Clube Constitucional Acadêmico; houve um outro com o mesmo nome, O Constitucional, que foi publicado em maio de 1875 e representava os acadêmicos conservadores. O primeiro O Constitucional, começou a ser editado em maio de 1871; A Crença; O Tribuno; O Rebate, publicado por estudantes republicanos; A Renascença; A Academia de São Paulo Líbero Badaró, que já contava com a simpatia e com o apoio às suas ideias dos estudantes, passou a gozar de grande afeição por parte dos paulistanos. Durante uma epidemia de varíola prestou relevantes serviços à população de São Paulo. Cuidou com muita dedicação dos que estavam contaminados e adotou medidas preventivas para evitar que a doença se alastrasse. A solidariedade sempre marcou a Academia de São Paulo, e teve como figuras emblemáticas à época, dois estrangeiros, Líbero Badaró e Júlio Frank.
quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Discórdias, agitações e sustos

Não se pense que as rapinagens fossem empreitadas afoitas, fruto do ímpeto de momento. Não, ao contrário, pois eram precedidas de planejamento minucioso, que incluía o modus faciendi, o horário, o tempo de duração, a quantidade da res furtiva, uma visita exploratória ao local escolhido, especialmente chácaras e quintais de São Paulo e outros detalhes necessários para o êxito da "gatunagem". Parece que os prazeres e atrativos provocados pela preparação e pela consumação da aventura superavam o seu próprio resultado. Mesmo que voltassem de mãos vazias, restariam as emoções vividas, pois, na verdade, eram elas que importavam. Por estarmos falando das inocentes rapinagens estudantis, é interessante notar como dentro de um mesmo século, o dezenove, as práticas delituosas mudaram de natureza, de intensidade e de gravidade. Além dos furtos que sempre existiram e os assaltos nas estradas, passaram a ocorrer os crimes praticados pelos grupos de capoeira, os assassinatos por encomenda, principalmente nas zonas rurais, onde também os primeiros sinais do cangaço surgiam, especificamente no norte e no nordeste. Em seguida, houve a intensificação da criminalidade violenta, aproximadamente da metade do século até o seu final, fornecendo uma mostra daquilo que aconteceria nos séculos seguintes. Durante os cento e oitenta anos seguintes, a sociedade assistiu ao crescimento do crime, sem procurar detectar e combater as suas causas. Limitou-se a clamar por mais e mais punição, como se essa fosse o suficiente para por fim à escalada de violência. Na verdade, ao pedir prisão e repressão, estava procurando transferir responsabilidades que também lhe são inerentes, especialmente àquelas que ligadas a um dos fatores criminógenos, que são as carências sociais, que jamais foram assumidas e combatidas. No fim do século dezenove a realidade do crime já era retratada por Machado Assis: "Cá fora espera-nos a noite, felizmente tranquila e fomos para casa, sem maus encontros, que andam agora frequentes. Há muito tiro, muita facada, muito roubo. A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se ai sonos deleitosos". O "Bruxo do Cosme Velho", em um escrito publicado em "A Semana", mostrou o seu alívio naquela noite sem sustos. Ao mesmo tempo retratou uma época em que a violência já atingia a sociedade carioca. Com certeza, já naquela época, as agressões com fins patrimoniais eram de forma ilusória combatidas com o encarceramento, quando descoberto os seus autores. No entanto, muito provavelmente não se procurava perquirir e analisar as causas dessa criminalidade violenta, que já se apresentavam como de natureza social. Se tivessem sido, na ocasião, atacados os fatores desencadeadores do fenômeno criminal talvez não tivéssemos os assustadores índices hoje vigentes. Como exemplo eloquente do descaso secular pelas causas do crime, nós temos a tragédia do menor abandonado. Tivessem eles sido cuidados e supridas as suas necessidades, não teríamos os trombadinhas que começaram a agir no início dos anos setenta e se transformaram em "trombadões" e hoje chefiam as organizações criminosas. Aliás, a questão do menor já vinha sendo denunciada desde o século retrasado, sem, no entanto, encontrar eco na também insensível sociedade da época. O jornalista Alcindo Guanabara afirmou, no início do século retrasado: "A infância abandonada, aumentada em número pelo aumento da população, continua a viver na miséria afrontosa, viveiro de delinquentes, sementeira de prostituição e do crime, que se avoluma e cresce progressivamente". Sempre a reação da sociedade, de um modo geral, infelizmente, não foi e não é de acolhimento e amparo, mas sim de clamor por repressão cada vez mais intensa. Passou a preocupar-se com o menor carente apenas quando ele começou a nos agredir. Até então, ele estava amargando as suas carências em baixo das pontes e dos viadutos, sem provocar qualquer emoção ou solidariedade. Mas retornemos à época das quase inocentes rapinagens. Já foi mencionado o furto de uma cruz existente na hoje rua Quintino Bocaiuva, antiga da Cruz Preta. A motivação seria de natureza sentimental, ou melhor, ligada à inveja ou ao ciúme. Segundo ficou registrado, um estudante de direito escalava a dita cruz, para ter acesso ao quarto de uma dama. Alguns de seus colegas, invejosos da proeza e enciumados, pois a dama era cobiçada, resolveram impedir os encontros removendo o instrumento de acesso ao quarto. Um aspecto que marcou a Academia logo no seu nascedouro, foram as desavenças entre o seu primeiro diretor, o Tenente General José Arouche de Toledo Rendon e o primeiro professor, José Maria de Avelar Brotero. Viviam eles às turras e as suas diferenças foram levadas ao conhecimento do Governo Imperial, por meio de ofícios em que cada um dos protagonistas fazia severas acusações contra o outro. Certa ocasião o Diretor Rendon, invocando os seus vários anos de serviços prestados ao Império e antes a D. João VI, solicitou a sua demissão do cargo de Diretor, "em prêmio pelos meus serviços", pois não mais conseguia aturar um homem "decerto um louco, capaz de atacar moinhos". Em outra oportunidade o diretor da Faculdade transmitiu ao Governo o que lhe parecia serem insultos insuportáveis, reiterando o seu desejo de deixar o cargo, fato que não ocorreu, pois Imperador o mantinha na Faculdade. Toledo Rendon referia-se a Brotero como "este estrangeiro", pois nascera ele em Portugal. Não há com clareza o registro das razões que levaram o Diretor a nutrir tão acirrada aversão ao professor Brotero, e esse a promover constantes provocações. Sabe-se que o primeiro lente da Faculdade era um orador eloquente, porém confuso em suas preleções. Ficaram também famosas as trocas de nomes e afirmações absolutamente desconexas atribuídas a si. Era useiro e vezeiro em inverter também as silabas das palavras: "limenta com pimão", "vidrada quebrada", "cidadeiro brasilão", dentre outras. As suas estranhas atitudes e manias passaram a ser chamadas de" "broteradas" e não passou muito tempo para ele ser considerado um "amalucado". O professor Brotero não provocava apenas o professor Rendon. Vários foram os seus desafetos e as suas esquisitices e implicâncias atingiam pessoas de várias categorias sociais e profissionais. Um bedel, que durante bom tempo vinha sendo alvo de suas perseguições e implicâncias, disse-lhe certo dia : "Sr. Conselheiro eu suplico a V.Exa. que não me persiga, não; porque eu também sou maluco". Brotero atingiu também os seus companheiros do pequeno corpo docente da Faculdade. O professor Baltazar Lisboa, por exemplo, teve uma efêmera passagem no Curso de Direito, pois sentindo-se perseguido por ele, pediu demissão de suas funções. Lecionou apenas durante um ano, 1829, a matéria de Direito Eclesiástico. Outros professores foram igualmente alvo de suas perseguições e rabugices, assim como estudantes e até bedéis não ficaram imunes às suas implicâncias durante o longo período em que exerceu o magistério no Largo de São Francisco, pois afastou-se apenas em 1871. Voltando às suas atrapalhadas verbais, elas não pouparam sequer o Imperador Pedro II. Quando da visita de Sua Alteza ao Estado de São Paulo, fez ele a apresentação do professor Cônego Fidelis, da cadeira de Retórica, da seguinte forma "apresento a V. Majestade, o sr. Cônego Retórica, professor de Fidelis". Há um hilário exemplo de como mudava a ordem das palavras nas frases : "o gado a saltar de galho em galho, os passarinhos a pastarem pelo campo". Não se sabe se estas confusões de expressões, de ideias, de vocabulário e de letras eram verdadeiras ou meras anedotas, vale dizer não se sabe se eram fatos ou fitas. É possível que algumas fossem fatos verdadeiros e não fitas. No entanto, sabe-se, e isso precisa ficar registrado, que a sua trajetória na Faculdade foi marcada pela inestimável e árdua obra de planejamento e execução da implantação prática do curso de Direito, abrangendo todos os seus inúmeros aspectos e nuances. Onde hoje está localizada a rua Cristovão Colombo, havia um barranco que, posteriormente, foi aterrado para a construção de uma via que desse acesso ao local mais elevado da cidade, atualmente Avenida Paulista. Esta via é a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio. Pois bem, o local foi batizado como "Beco do Eco", onde os estudantes promoviam algazarras noturnos que muito incomodavam os moradores das redondezas. Após os gritos reproduzidos pelos ecos, inevitavelmente surgia algum estudante travestido de fantasma que passava a andar pela cidade, assustando os poucos transeuntes. Consta que Olavo Bilac ia ao beco e cumprimentava o eco : "boa noite" e o eco respondia "boa noite". As constantes atividades dos acadêmicos traziam alegria e por vezes provocavam sustos e apreensões nos moradores da então silenciosa e pacata cidade, especialmente nos arredores da Faculdade e das repúblicas. Além da sua presença sempre buliçosa e irreverente os estudantes de direito da época provocavam grande curiosidade nos paulistanos. Indagavam eles como esses rapazes estavam se preparando para o exercício da advocacia e das carreiras jurídicas, se sempre eram vistos pelas ruas, em passeios pelos arredores da cidade, em serenatas, em saraus, nos bilhares, e nos poucos bares e restaurantes. Estudar parece que não estudavam. Como, então, passavam de um ano para o outro e acabavam por se formar? Na verdade, aos estudantes pouco importava o que deles se pensava. A resposta à sociedade estava num soneto de Fagundes Varela : "Pode, bem sei, que livros não abrisse. Que não votasse amor à sabia casta, mas tinha o nome inscrito entre os alunos da escola de São Paulo é o quanto basta". Varela reproduziu um sentimento que acompanhou pelos anos vindouros todos os acadêmicos do Largo de São Paulo, e vige os nossos dias. O sentimento de realização pessoal plena, pelo simples e grande fato de ser ou de ter sido aluno das Arcadas. A presença dos acadêmicos de Direito nem sempre era marcada por momentos de alegria. Houve ocasiões nas quais a sociedade paulistana, que já saíra de sua pasmaceira com a só instalação do Curso Jurídico, passou por momentos de grande desassossego em razão dos atritos com a polícia. Estava-se assistindo a um espetáculo no Teatro da Ópera, quando alguns estudantes passaram a tossir incessantemente, impedindo a continuação do espetáculo. As tossidas barulhentas não tinham fim, fato que levou o Coronel Joaquim José de Luz e Souza, Presidente da Província a intervir aos gritos e com ofensas aos estudantes, sem respeitar as suas crises brônquicas... Um estudante reagiu e foi preso. Outros se rebelaram e também foram detidos. Em outra oportunidade os estudantes foram impedidos de ingressar na Igreja da Sé. Houve um embate corporal com os estudantes, que chegaram a entrar na Igreja e lá pegaram os castiçais que serviram de armas contra os policiais. Quando não havia atritos com a polícia, entre os professores e os alunos ou envolvendo os próprios estudantes, eles criavam situações potencialmente favoráveis a discussões e mesmo brigas físicas. Uma república que ficou inscrita na história da Academia foi a chamada "Comuna", localizada na rua da Freira, hoje Senador Feijó. A casa era de grande dimensão e permanecia aberta dia e noite, possibilitando que os estudantes que por lá passassem tomar refeições e pernoitar quando havia vagas. Uma caraterística dessa república, durante um tempo, foi a existência de um manequim, naturalmente surrupiado de alguma loja, colocado em uma das sacadas da casa, que emitia sons e palavras. Não só sons indefinidos, como por vezes saiam palavras de saudação aos que por ali passavam ou de críticas ou zombarias aos mestres da Faculdade. Havia um tubo de folha de Flandres, preso à boca do manequim e os estudantes ficavam na outra extremidade dentro de uma sala, fazendo as vezes de ventríloquos. Foram os estudantes da " Comuna" que furtaram o símbolo da farmácia "Veado de Ouro", um veado de madeira dourado. O furto fez com que o proprietário da farmácia, por meio de anúncio, oferecesse uma recompensa pela devolução do veado. Dias após, lá esteva ele emoldurando a entrada do prédio da rua de São Bento. Não foi a botica a única vítima de uma modalidade específica de rapinagem, qual seja a que tinha por objeto tabuletas de casas comerciais e seus respectivos objetos que serviam de emblemas. Estes objetos ficavam guardados em uma sala fechada, para impedir que fossem furtados pelos próprios estudantes que por ali passavam... Na realidade, o reinado da Academia e dos acadêmicos subjugava a cidade: "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante e só ele", como afirmou o antigo estudante Moreira Pinto.