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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Repúblicas, rapinagens e outras estudantadas

Abrigada a Faculdade em um Convento, seria necessário acolher os estudantes que vinham para São Paulo, do interior e de outros Estados. Após cinco anos de sua instalação, em 1832, formaram-se trinta e cinco alunos que compuseram, assim, a primeira turma de bacharéis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Após 1828, a cada ano um número crescente de jovens era admitido na Academia. Durante os primeiros vinte e cinco anos de existência, formaram-se seiscentos e quinze estudantes. Em face da precária situação financeira da maioria dos estudantes, bem como diante do diminuto número de casas para alugar, eles passaram a se agrupar, para juntos ocuparem uma mesma casa. Daí surgiram as famosas repúblicas. Elas se situavam em determinados pontos da cidade. Liberdade; rua dos Estudantes; rua da Glória; da Assembleia; Largo da Sé; rua da Freira, atual Senador Feijó ; rua Santa Tereza; Conselheiro Furtado; São Joaquim, entre outros locais. Alguns estudantes moravam em chácaras alugadas, e outros poucos habitavam celas dos Conventos. Seis passaram a morar no Convento de São Francisco. Nos de São Bento e do Carmo estudantes pobres eram acolhidos pelos frades que lhes davam não só pousada como alimentação. Alguns deles vieram a se destacar na política e no Direito. Um estudante negro, Camilo Augusto Maria do Brito, tornou-se presidente do Estado de Goiás; Sizenando Nabuco, irmão de Joaquim Nabuco e Júlio Augusto de Castro, alcunhado de "Bocage Acadêmico", pois suas poesias continham as irreverências e ousadias do poeta português. As repúblicas possuíam um mobiliário muito simples, mal conservado e as suas instalações eram precárias e desconfortáveis. As portas estavam enferrujadas, as vidraças, as mesas e as cadeiras quebradas, rachaduras nas paredes, dentre outros defeitos estavam presentes em quase todas elas. Como exceção destacavam-se a Pensão da Viúva Reis e uma república situada no Largo da Glória, na qual morou o poeta Alvares de Azevedo. O local denominava-se Chácara dos Ingleses. Em frente havia o Cemitério dos Aflitos. Os serviços das mesas de refeições das Repúblicas, embora as instalações fossem precárias, eram refinados. Os melhores cafés e restaurantes da cidade colaboravam compulsoriamente para o aprimoramento do bom gosto e dos hábitos dos estudantes, que por meio de "expedições de rapinagem" supriam as suas carências domésticas. Ficaram famosos os piqueniques organizados pelos acadêmicos do Largo. A origem dos comestíveis e das bebidas, servidos em abundância era o Mercado Municipal que ficava às margens do Tamanduateí. Os estudantes encostavam um barco, naturalmente pertencente a terceiros, e por uma rampa que dava acesso a uma porta lateral, transformavam o Mercado em patrocinador obrigatório dos alegres encontros estudantis. Não se pense que a operação era simples. Exigia, sobretudo audácia e coragem. No entanto, a causa era nobre e justificava os riscos. Afinal estavam praticando um furto famélico. As rapinagens não se limitavam aos comestíveis. Não, os estudantes não eram seletivos. As incursões desapropriatórias eram muito bem planejadas e variavam de objeto. A botica "Veado de Ouro", situada na rua de São Bento, foi vítima dos estudantes que retiraram da porta da loja um veado de ouro, que era seu símbolo. O seu proprietário colocou um anúncio pedindo a devolução do objeto, comprometendo-se a manter sigilo sobre o autor e a recompensá-lo em dinheiro. O veado foi devolvido. Os acadêmicos em matéria de rapinagem não respeitavam sequer os locais sacros e a própria Faculdade. Com efeito, o campanário do Convento de São Francisco foi alvo da visita dos jovens que surrupiaram o badalo do sino. As razões do sacrílego furto não foram desvendadas. O furto obrigou que novo badalo fosse instalado no Convento e a adoção de providências para imprimir segurança ao local, incluindo a própria Faculdade, pois várias de suas vidraças haviam sido quebradas. De grande relevo na vida dos estudantes que moravam nas repúblicas, eram as cozinheiras e os escravos. Estes, em regra, eram alforriados, após a formatura de seus senhores. Interessante que tal como ocorria entre os estudantes, os escravos estavam divididos entre calouros e veteranos, dependendo da condição de seus senhores, sendo que aqueles deviam obediência a estes. Os estudantes da nova Academia, desde o início de sua instalação, deram um novo vigor ao pequeno burgo, que viu a sua pasmaceira dar lugar a uma agitação até então desconhecida, representada pelas serenatas, pelas manifestações de oratória, pelo trote, pelos saraus, enfim os estudantes por onde passavam deixavam a sua marca. Eles não ficavam confinados nas imediações da Faculdade ou de suas moradias. Saíam em longos passeios à pé, que poderiam atingir a Penha ou Santo Amaro. A cavalo percorriam toda a cidade, especialmente nos locais onde houvesse chácaras com pomares, cujas frutas eram por eles "colhidas". Uma dessas chácaras se localizava na Bela Vista, e para lá os estudantes se dirigiam pela manhã, após intensa atividade etílica na noite anterior, com o objetivo de participarem de um concurso denominado "Bezerril" . Sagrava-se campeão aquele estudante que bebesse a maior quantidade de leite, que com certeza fora também vencedor da competição da noite, apenas tendo havido a substituição do líquido ingerido. As andanças dos rapazes pela cidade, a par de alegrá-la, criava nos conservadores habitantes uma certa sensação de insegurança e mesmo de medo. Realmente, por vezes, assustavam os pacatos moradores da pacata São Paulo. Algumas das ruas, que abrigavam repúblicas, tornavam-se intransitáveis após certa hora da noite. Nas ruas da Palha, atual Sete de Abril, e na rua dos Bambus, hoje um trecho da Av. Rio Branco, por exemplo, os estudantes reservavam surpresas aos poucos e corajosos transeuntes, por vezes inocentes brincadeiras, mas, por vezes, não. Na rua da Palha, eles se transformavam em Quixotes ou em Cruzados da Idade Média. Montados em vassouras, investiam contra os moinhos de vento ou contra os mouros, representados por algum incauto, que por lá passasse. Observe-se que não trajavam pesadas roupas ou armaduras. Apresentavam-se apenas vestidos com um camisolão de dormir, fato que horrorizava os habitantes do local. Um estudante chamado Caetano Pinto, saia às ruas portando uma grande vara, para se equilibrar nas pontes e pinguelas então existentes, ou subia em um carro de boi e desfilava pelas vias mais movimentadas, erguendo um estandarte. Um outro acadêmico saia à noite vestido de mulher, com uma palmatória nas mãos que era utilizada nos transeuntes notívagos. O estudante se dizia representante da ordem pública, e estava à caça de desordeiros e mesmo não o sendo, o transeunte era obrigado a retornar à sua casa. Os rios Tietê e Tamanduateí eram muito frequentados pelos estudantes que praticavam natação e remo. As moças, sempre acompanhadas por alguém, também frequentavam as margens desses rios, para assistir as competições e para "tirar linha" com algum jovem acadêmico. Serenatas e cantorias noite adentro eram quase diárias. Abandonavam as mesas dos bares e dos bilhares para postar-se em baixo das janelas das eleitas e declamar ou cantar a sua paixão. O apaixonado se fazia acompanhar de colegas, incumbidos dos instrumentos e dos cantos. Por vezes, quando a escolhida surgia na janela os amigos serviam de ponto, para dar "cola" ao amigo. Tanto as canções, como as poesias, culminando com a declaração de amor, deveriam ser executadas com rapidez, pois inevitavelmente as serenatas terminavam com o pai da "Julieta" substituindo-a nas janelas para arremessar toda a água de um balde, quando não o balde junto. Em regra eram quatro os instrumentos tocados : flauta; cavaquinho violão e clarineta. Por vezes, surgia o violão e a rabeca. Os mesmos grupos de seresteiros davam audições nas Repúblicas e nas Praças Públicas, especialmente no Largo da Igreja de São Gonçalo, localizada na atual Praça João Mendes, aonde as famílias passeavam ao cair das tardes dos fins de semana. Falando de música, deve ser realçada a sua importância na vida da Academia de Direito, quer pelas atividades musicais ali desenvolvidas no curso de sua história, quer em razão de uma instituição genuinamente franciscana, a "Caravana Artística", quer porque a música retratou o espírito galhofeiro, boêmio, espirituoso dos estudantes, por meio das trovas acadêmicas . Note-se que Carlos Gomes, em 1860, esteve em São Paulo, hospedou-se- em uma república, na rua São José, hoje Líbero Badaró, e frequentou a Faculdade com assiduidade. Nesta época, o mestre campineiro, compôs o "Hino Acadêmico". Foi em São Paulo que compôs uma canção popular até hoje divulgada e cantada "Quem Sabe". Consta ter ele dedicado à uma sua amada quando se separaram. Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a compor modinhas, na verdade as famosas trovas acadêmicas, que se perpetuaram e até os nossos dias são entoadas em qualquer lugar onde se encontrem estudantes. Em meados do século XIX, era comum que em suas andanças notívagas, os acadêmicos do Largo cantassem: "Andamos rindo às estrelas - Boêmios endiabrados - Apedrejando as janelas - dos burgueses sossegados". Esta trova, nos remete a um fato hilário que provocou persistentes gozações por parte da roda de Olavo Bilac, grande poeta e excepcional boêmio. Estava ele na redação do jornal Diário Mercantil, quando recebeu a visita de um homem que reconheceu ser o marido de uma senhora, que por ele se apaixonara e o assediava publicamente. Certo de que a visita do marido injuriado não seria amigável, Olavo preparou-se para enfrentar uma agressão ou algo mais grave. No entanto, o marido de forma educada e respeitosa, dirigiu-se ao poeta e pediu-lhe desculpas em nome da mulher, pois esta sofria das faculdades mentais, era doida e acabara de ser internada em um hospício. O alívio veio seguido da decepção, pois, verificou que não era alvo de uma paixão avassaladora. Não se deve pensar que a conduta dos acadêmicos estava exclusivamente voltada para troças e brincadeiras ou para serenatas e galanterias. Muitas eram as ocasiões em que se dedicavam aos cuidados com a alma e com o espírito, demonstrando o seu fervor e a sua devoção religiosos. Compareciam a todas as festividades da Igreja realizadas na cidade e em seus arredores. Procissões, quermesses, até missas e rezas contavam com a presença, ai constrita e bem comportada, dos futuros bacharéis. No entanto, uma observação se faz necessária: os estudantes não compareciam às festas e às cerimonias religiosas exclusivamente por razões ligadas à fé que dedicavam aos santos de sua devoção, aos padroeiros de suas cidades ou comunidades. Razões mais mundanas os moviam. As comidas, as bebidas e especialmente as sinhazinhas paulistanas, que se faziam notar e que notavam os garbosos acadêmicos nestas solenidades religiosas, representavam um importante fator de atração para os estudantes. Uma atividade que desagradava sobremodo os sisudos e conservadores paulistanos era a rapinagem praticada pelos jovens acadêmicos com grande frequência e de forma diversificada, que naqueles tempos não se restringiram ao badalo do sino da Faculdade ou à uma cruz que existia na rua da Cruz Preta, atual Quintino Bocaiuva. Além das frutas e das verduras confiscadas dos pomares das hortas, os galinheiros eram assiduamente frequentados, pois galináceos e perus eram o alvo dessas rapinagens, que na verdade ficavam longe do alcance da lei penal, pois, como já foi dito, enquadravam-se na categoria de furto famélico.
quarta-feira, 11 de julho de 2018

Fatos e fitas: Um teto para a faculdade

Depois da dissolução da Assembleia Constituinte em 1823, o Parlamento voltou a se instalar e em janeiro de 1825 a questão da instalação de cursos superiores no Brasil foi retomada, agora já com a definição de que seriam cursos de Direito. O Poder Executivo apresentou um projeto que previa o Rio de Janeiro como a cidade habilitada a acolher a primeira Faculdade de Direito do país. O autor do projeto foi o ministro do Império, Estevam Ribeiro de Rezende, Marques de Valença. A proposta não foi sequer discutida, uma vez que a Constituição recém-outorgada previa a competência do Legislativo para matérias pertinentes ao ensino. Um ano e meio após, em junho de 1826, um outro projeto foi oferecido. As discussões voltaram a girar em torno do local. Destacaram-se a favor de São Paulo os deputados Batista Pereira e Nicolau de Campos Vergueiro. Um dos argumentos contrários à instalação em São Paulo, chamou a atenção e provocou pronta reação a afirmação de que deveria ser a cidade do Rio de Janeiro a escolhida, pois este seria o desejo do governo central. Indagou-se: "Então, o governo é quem dirige o corpo legislativo"? Ponderações extensas foram por vários parlamentares expendidas, no sentido de mostrar-se a autonomia do Legislativo e a não aceitação de interferência do Executivo em questões de sua alçada. Observa-se que as intromissões de um Poder do Estado em outro é uma constante na história das instituições brasileiras. Nos dias de hoje, elas se acentuaram de tal forma que estão pondo em risco a normalidade política e constitucional, com sérios riscos de haver uma ruptura institucional. Está havendo, no entanto, uma agravante em relação a tempos pretéritos: o Poder Judiciário, único que sempre se manteve dentro dos rigorosos limites de suas funções naturais, está claramente avançando sobre competências que ultrapassam as suas, por razões as mais diversas, mas que tem no protagonismo de seus integrantes uma das mais evidentes. O inusitado ativismo político e o discurso correspondente parecem indicar que alguns membros do Poder Judiciário possuem uma vocação política, que é incompatível com a natural vocação dos juízes de distribuir justiça de forma imparcial e independente. Esta missão, por seu turno, deve ser executada com comedimento e recato. Em 1826, na verdade, não foi apresentado um novo, mas reapresentado o projeto discutido na extinta Assembleia Constituinte, com algumas alterações. O autor da iniciativa foi o deputado por Minas Gerais Lúcio Soares Teixeira de Gouveia. Depois de amplamente debatido por uma Comissão, foi apresentado um Projeto de Lei criando os cursos. Previa ele o Rio de Janeiro como cidade sede. No entanto, em plenário as discussões continuaram a se dar em torno da localização da nova Faculdade, pois não houve aceitação do Rio de Janeiro. Paralelamente, discutiu-se a grade de matérias, com exclusão de algumas constantes do projeto original e a inclusão de outras. Houve, também, dissenção sobre a remuneração dos professores da novel Faculdade. Uma corrente defendia que os professores tivessem a mesma remuneração e as honras dos desembargadores dos Tribunais da Relação das Províncias. Outra, no entanto, se opunha a essa equiparação. Prevaleceu a primeira. Foi apresentada uma emenda, para que os cursos fossem instalados em São Paulo e em Olinda. Finalmente, em 11 de agosto de 1827 o Brasil passou a ter Faculdades de Direito nas duas cidades, sendo que a de Olinda, posteriormente, foi transferida para Recife. Em São Paulo, foi escolhido o Convento de São Francisco para sediar o curso recém- criado. Foram, também, cogitados outros dois conventos existentes na cidade: de São Bento e do Carmo. O de São Francisco, segundos incumbidos da escolha, era aquele que apresentava melhores condições. As suas dependências poderiam ser adaptadas às salas de aula e aos locais para abrigar a administração. Ademais os frades poderiam lá permanecer, em dependências isoladas. Por outro lado, possuía uma biblioteca com, aproximadamente, seis mil volumes. Esta biblioteca antecedeu a instalação dos cursos de Direito, pois foi criada pelo governo provincial, em 1825, no mesmo convento de São Francisco. A construção era, como de resto todas as demais daquela época, de argila misturada e socada com areia, que possibilitava edificações resistentes denominadas de taipas. Havia um pátio ao céu aberto, cercado por colunas, que resistiu a um incêndio e às reformas do prédio e tornou-se símbolo de ativismo cívico e político, e também de agregação e de confraternização. Era e é o chamado "jardim de pedras", que veio a constituir o centro e a alma da Academia. Incumbido da escolha do local para sediar a Faculdade em São Paulo, o Tenente Coronel José Arouche de Toledo Rendon, nomeado diretor da nova instituição, juntamente com José Maria de Avelar Brandão, escolhido o seu primeiro professor, após pesquisar os três Conventos excluiu os outros dois mencionados por entender serem pequenas as suas dependências, fato que levaria à demolição e consequente expulsão dos frades. O diretor Toledo Rendon quando propôs o Convento de São Francisco afirmou que o local abrigaria "interinamente a Faculdade de Direito", pois "S. Majestade Imperial mandará depos formar este estabelecimento em lugar próprio, e que tenha não só as comodidades para um curso jurídico, como também para outras Faculdades, que se julgarem necessárias". A "interinidade" da Faculdade de Direito de São Francisco já dura, desde sua inauguração em março de l828, cento e noventa anos. No século vinte, tentou-se retira-la do velho Convento. Uma corrente humana de verdadeiros franciscanos fez um cerco protetor ao venerando prédio e enterrou a infeliz iniciativa. Com pompa e circunstância, em 1 de março de 1828, houve a instalação solene do curso de Direito, que representava o marco inicial de nossa independência cultural. O local não abrigaria apenas o saber jurídico, mas seria um espaço consagrado à ampla discussão de ideias; à fértil criação artística; ao livre discorrer dos ideais libertários; à produção jornalística e a um abrangente debate político. Sem embargo do rígido cerimonial e dos longos discursos, os organizadores ofereceram uma festa, com farta mesa, que "esteve franqueada a todo o povo". Assim, a Academia de Direito se abria, desde seu nascedouro, ao povo, como um local de irradiação do Direito, da Justiça e da Liberdade. A festa contou com um recital de poesias, música e com a execução de um hino composto para a ocasião. Houve, ainda, um Te Deum em ação de graças, na então Catedral de São Paulo. Nesta ocasião, houve a instalação do curso anexo à Faculdade, igualmente criado pela lei de 11 de agosto de 1827. Seu objetivo era preparar os jovens, a partir dos quinze anos, para o ingresso na Faculdade. O curso anexo passou a ser denominado de "curral dos bichos" e as aulas lá ministradas eram "aulas menores", ao passo que as de Direito eram as "aulas maiores". Nesse curso eram ministradas aulas de geografia, história, filosofia dentre outras matérias. Esclareça-se que a instalação da Faculdade de Olinda se deu em 15 de maio de 1828. Portanto, se ambas foram criadas por lei em 11 de agosto de 1827, o pioneirismo da instalação e do início das aulas pertence à Faculdade de São Paulo, inaugurada, como se viu em 1º de março.
quinta-feira, 21 de junho de 2018

Fatos e fitas: O início

Em 1654, os holandeses, quando aqui estiveram, planejaram criar uma Universidade. Posteriormente, Afonso VI, de Portugal, quis inaugurar cursos universitários na Bahia. No entanto, houve uma forte resistência por parte dos professores de Coimbra. Os Inconfidentes, por seu turno, tinham como meta prioritária, assim que o Brasil se tornasse independente, a criação da Universidade Brasileira. Frustradas todas essas tentativas, logo após a proclamação da Independência, já em 1823, os deputados que integravam a Assembleia Constituinte convocada pelo Imperador Pedro I passaram a discutir, por iniciativa do Visconde de São Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, a instalação de Cursos Superiores no Brasil. As discussões iniciais geraram em torno da conveniência de se criar um Universidade ou apenas Cursos Específicos. Optou-se pelos Cursos Jurídicos tendo em vista a natureza e os objetivos desses estudos, que no mundo de então já caracterizavam as Faculdades de Direito, especialmente as de Coimbra e de Paris. Desejava-se um ensino universal, que possibilitasse uma cultura abrangente das questões e problemas nas várias áreas do conhecimento humano. Lembre-se que os jovens brasileiros, pertencentes às famílias mais abastadas, cursavam universidades europeias: a de Coimbra para o Curso de Direito e a de Montepelier para Medicina. Um dos escopos do curso jurídico era o de também formar homens que estivessem preparados para gerir os negócios do Estado, na condição de deputados, senadores e demais gestores, que estariam "aptos para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado". Esta missão pública reservada aos bacharéis foi explicitada na declaração de Carvalho de Melo, Visconde de Cachoeira, responsável pela elaboração do "Projeto de Regulamento" da criação dos Cursos Jurídicos editado em 1825. Como se vê, os bacharéis brasileiros nasceram com uma missão que extrapola os limites da atuação jurídica, qual seja a de servir a pátria na condução de seu destino, em todos os seus níveis. Cargos nos escalões inferiores, passando por Ministérios, Governos Estaduais, prefeituras, até a presidência da República, foram ocupados por bacharéis formados na Academia do Largo de São Francisco. Na velha República tivemos Prudente de Moraes, Campos Sales, Rodrigues Alves, Affonso Pena, Wenceslau Braz, Delfim Moreira, Arthur Bernardes, Washington Luiz, posteriormente José Linhares, Nereu Ramos, Jânio Quadros e Michael Temer. O bacharelismo passou a constituir uma ideologia, um sistema de pensar e de agir na condução da coisa pública. A formação do bacharel, portanto, teve como foco também a sua atuação como gestor da coisa pública. O apego ao constitucionalismo; às liberdades públicas; ao federalismo; à liberdade de opinião; aos princípios da legalidade; da ampla defesa; do contraditório; da igualdade eram valores assimilados nos bancos da Faculdade e praticados no desenvolvimento de várias funções que lhes eram atribuídas. Lamentavelmente, os bacharéis, após 1964, foram alijados dos postos de comando da Nação, e substituídos pelos tecnocratas. A instalação de cursos superiores no Brasil, especificamente os de Direito, vinha ao encontro de uma preocupação corrente à época, qual seja a de alcançarmos a emancipação cultural, até como forma de consolidação de nossa independência. Ademais, após o sete de setembro, o clima em Portugal passou a ser de franca hostilidade aos brasileiros, incluindo os nossos estudantes, que cursavam a Universidade de Coimbra. Inconformados com a Independência da até então colônia, os portugueses passaram a afrontar o Brasil e a perseguir os brasileiros, mesmo dentro da Universidade. Um brasileiro, Andrada Machado, que tinha assento nas Cortes de Lisboa, narrou que ao usar da palavra foi atacado pela multidão que ocupava as galerias, sob os gritos de "Mata, mata". Uma vez decidida a instalação de Cursos Jurídicos, restava a escolha dos locais. Imaginou-se que duas Faculdades seriam necessárias. Uma para atender o Norte e o Nordeste e a outra a ser instalada no centro ou no sul do país. Assim, argumentos a favor desse ou daquele Estado, à época Províncias, foram ardorosamente defendidos. O constituinte José Feliciano Fernandes Pinheiro, posteriormente Visconde de São Leopoldo, proponente da ideia e posteriormente, como ministro de Estado, subscritor da lei de 11 de agosto de 1827, ao propor a criação "o quanto antes" de uma Universidade sugeriu São Paulo. A cidade foi escolhida juntamente com Olinda. Os moços do Norte e do Nordeste teriam Pernambuco para desenvolver os seus estudos, e os do sul e do sudeste viriam para São Paulo sem terem que se deslocar para o nordeste. A justificativa do Visconde de São Leopoldo para São Paulo sediar a Faculdade, aos olhos do paulistano de hoje pode parecer uma pândega, uma refinada gozação: "Considerei principalmente a salubridade, a amenidade do clima. Sua feliz posição, a abundância e a barateza de todas as precisões e comodidades da vida" e para encerrar a sua fala comparou o Tietê com o Mondego de Coimbra: "O Tietê vale bem o Mondego do outro hemisfério". No entanto, a reação contra São Paulo foi intensa. Falou-se que por não ser litorânea, a cidade era de difícil acesso. Não possuía estrutura necessária para abrigar os estudantes que viriam de outros cantos do país, a começar pela ausência de moradias. Chegou-se até a afirmar que a pronúncia dos paulistas era estranha e poderia influenciar negativamente a fala dos estudantes. Esta última alegação foi contestada por jovens paulistas que, residentes no Rio de Janeiro, assistiam às sessões da Constituinte. Observaram a pronúncia de brasileiros de outros Estados e não viram diferenças substanciais. Concluíram eles não haver um dialeto tipicamente paulista e, portanto, os estudantes que fossem estudar em São Paulo não seriam contaminados no seu falar. "Anteriormente, o Visconde de Cachoeira defendera o Rio de Janeiro para sediar a Faculdade, invocando dentre outros argumentos "mais pureza na linguagem" e porque mais polidas são as maneira dos habitantes". Uma objeção a São Paulo veio a varar os anos e é ouvida até hoje. Disse o Visconde de Jequitinhonha, Acaiba de Montezuma "Não sei porque aqui sempre se anda com São Paulo para cá São Paulo para lá. Em nada aqui se fala que não venha São Paulo". Pois é, já naquele tempo, São Paulo provocava manifestações de emulação e de desapreço... Contra a terra bandeirante também se manifestou o Visconde de Cairu, Silva Lisboa, que defendeu fosse escolhido o Rio de janeiro, pois possuía prédios suficientes para abrigar os estudantes. Ademais, salientou que o porto de Santos não seria "tão frequentado como o do Rio de Janeiro para dar iguais facilidades". Por outro lado, segundo ele, "A viagem por terra para São Paulo é detrimentosa; a importação de livros e instrumentos é difícil". Vários argumentos a favor de São Paulo foram utilizados pelo parlamentar Antonio Carlos de Andrada Machado, destacando-se um deles pela sua originalidade e pelo seu conteúdo moralista. Disse ele que a cidade era adequada porque "não tinha distrações". Este argumento pode ter sensibilizado os deputados mais austeros e conservadores. No entanto, se inexistentes até então, as "distrações" foram logo nos primeiros tempos criadas pelos próprios estudantes, especialmente pelos boêmios, que agitaram a pacata cidade e provocaram a abertura de bares, restaurantes e outros locais menos ortodoxos. Mesmo a sóbria e fechada sociedade paulistana foi contagiada pelos jovens, que promoviam serenatas, saraus, passeios a cavalo e tantas outras atividades, algumas que chegavam a trazer desassossego, - especialmente aos pais de família. Antonio Carlos, ao expor aquela "qualidade" de São Paulo, impugnou a Bahia exatamente porque lá as "distrações" eram infinitas e eram vários "os caminhos da corrupção". Arrematou sentenciando "é uma cloaca de vícios". As agressivas observações provocaram veemente reação por parte do adversário de São Paulo, Montezuma, baiano que alguns anos depois seria o responsável pela criação do Instituto dos Advogados Brasileiros e seu primeiro presidente. As sessões e os debates sobre a instalação do curso de Direito foram interrompidos, pois em 12 de novembro de 1823, o Imperador Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte. Como se verá, as discussões voltaram a tomar conta das atenções do Parlamento Brasileiro, não mais Assembleia Constituinte, em 1825.
Formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nutro por ela muito carinho e permanente saudade, quando relembro os anos do curso de Direito. Tive a ventura de viver inesquecíveis episódios ligados às atividades acadêmicas, marcadas por festas, trotes, reuniões memoráveis em bares e restaurantes, intensa militância política, práticas esportivas, das quais participava apenas como cartola e as famosas choupadas no então campo de futebol ou no sobrado do Centro Acadêmico 22 de Agosto. No velho convento da Monte Alegre construí amizades perenes; conheci minha mulher; tive aulas com excepcionais professores, aprendi a conviver com os contrários e forjei minha personalidade e o meu caráter, baseados na solidariedade e no respeito pelo próximo. No entanto, a Faculdade de Direito Largo de São Francisco sempre despertou a minha afeição e o meu interesse pela sua gloriosa história. Aliás, diga-se que a Academia simboliza os atributos e características de todos os bacharéis em Direito, que vocacionados para as lidas com o Direito, estão impregnados do espírito acadêmico das Arcadas, pouco importando a sua origem escolar. Esse espírito foi sendo forjado nas Arcadas no curso dos anos e relacionado ao comprometimento que seus estudantes sempre tiveram com a liberdade, com o culto do espírito, com o humanismo, com a poesia, com a solidariedade, com o amor ao próximo, com a Justiça social. Estes valores foram cultivados e cultuados desde a fundação da Faculdade e a acompanham por quase dois séculos. Pode-se afirmar que esse rol de interesses superiores do espírito humano deveria projetar-se para a sociedade brasileira como um todo. Ela seria melhor. Aliás, houve época em que tais valores preponderavam. Foi exatamente quando o Brasil era considerado o "País dos Bacharéis". O espírito acadêmico possui várias características e peculiaridades identificadoras do bacharel em Direito. No entanto, este espírito só é personificado por aqueles que são verdadeiramente vocacionados para exercer quaisquer das carreiras ligadas ao Direito e aos ideais de Justiça. Sem esse espírito e sem a vocação, formam-se em Direito e nada mais. No entanto, é justo que se diga: existem portadores do espírito acadêmico que nunca exerceram as profissões respectivas, mas nem por isso perderam os ideais do bacharel. Muitos já tentaram conceituar o espírito acadêmico, mas esta caracterização parece estar sempre incompleta. O lado galhofeiro, chamado por alguém de acriançado, travesso, buliçoso, irreverente, rebelde, cômico, aventureiro, convive com aqueles ideais de liberdade, solidariedade e outros. Todas essas marcas habitam a nossa alma. No entanto, há mais e nos resta continuar a descobrir porque somos o que somos. Além de portador do espírito franciscano, que como disse caiu no domínio de todos os bacharéis, laços hereditários ligam-me à Velha Academia. Nasci e cursei precocemente a Faculdade, pelo menos por osmose. Osmose paterna que infiltrou em meu inconsciente desde o meu nascimento o seu amor Franciscano. Quando vim à terra, meu pai cursava o terceiro ano. Estive presente à sua missa de formatura. Talvez com um ano, pouco menos ou pouco mais, passei a frequentar o centro Acadêmico Onze de Agosto, e fui protagonista de episódios marcantes, narrados inúmeras e repetidas vezes por seus participantes. Sempre que posso eu também os repito a terceiros. Os estudantes se reuniam no Centro Acadêmico 11 de Agosto todas as noites da semana, para a prática de atividades físicas, jogo de sinuca e suas variantes, vinte um, vida e mata - mata, acompanhadas de tertúlias literárias e etílicas. Ao saírem, davam sempre demonstração de seu espírito fraterno e solidário, ao externar a sua preocupação com a infância. Esta, naquelas ocasiões, era por mim representada. Meus pais moravam com meus avós paternos na rua do Riachuelo, exatamente atrás da Faculdade e em frente ao Onze. Pois bem, ao deixar o Centro eles se colocavam em baixo da janela do nosso apartamento para, alto e bom som, lembrarem o jovem casal da obrigação de alimentarem o filho recém-nascido: "Macacão, acorda para dar leite para o macaquinho". Invariavelmente meu avô, por eles chamado de "Macaco Velho" saía à janela e ameaçava os acadêmicos de morte, que, em verdade, nada mais estavam fazendo do que zelar pela minha saúde. Em outra ocasião fui levado ao Centro Acadêmico por meu pai. Depois de passar de braço em braço, eu desapareci das vistas de todos. Depois da mobilização dos aflitos estudantes eu fui encontrado sendo posto dentro da geladeira. Consta que o meu salvador foi o lendário Chico Elefante. Durante anos, dois estudantes da época disputaram a autoria do sequestro, quase cárcere privado: Anacleto Raposo Holanda e Kleber de Menezes Dória. Cada um deles assumia a autoria da façanha e mostrava grande indignação em face da mentira proferida pelo outro. Eu imagino um estudante do Largo expondo fatos os mais variados, ocorridos no curso dos anos, já séculos, quase dois. Narraria também fitas, estas como um conjunto de fatos, em parte verdadeiros, meio falsos ou inteiramente falsos, mas fruto, da criação mental, talvez da invencionice, mas como toda ficção, sempre respaldados por uma inspiração espelhada na realidade, que pode estar mais, ou estar menos, distante da mesma ficção. Portanto, o tempo transcorrido, as sucessivas versões, a imaginação dos que foram narrando e outros fatores construíram ao lado dos fatos as fitas em torno desse monumento institucional que é a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Perceberam que esse estudante é atemporal. Ele testemunhou o que irá narrar, pois deve representar as várias épocas da Faculdade, mas, ao mesmo tempo, significa simbolicamente o elo de união de todas essas épocas, pois elas, em verdade, constituíram uma unidade indivisível do Largo de São Francisco. Ela é única, do seu nascimento aos nossos dias. Tanto o narrador, como a Faculdade são, portanto, atemporais. Não há Academia deste ou daquele período da história de São Paulo e do Brasil. Há uma única, da qual emana o espírito acadêmico, que é superior ao tempo, às mudanças sociais ocorridas, e aos próprios homens que construíram esse espírito e ao próprio rigor histórico dos fatos e à dose de criatividade de suas fitas. Por todas essas razões, resolvi escrever, como disse, despretensiosas crônicas sobre a Faculdade, desprovidas de rigor histórico, cronológico e baseadas em uma pesquisa que poderia dizer perfunctória, mas escritas com o espírito e com a alma desejosos de reverenciar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como uma das mais importantes instituições nacionais. No entanto, há um outro escopo: homenagear aquele que incutiu esse amor em meu espírito, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai, da Turma de 1946, a melhor de todas, segundo ele. Quero deixar patente os meus sinceros e comovidos agradecimentos a dois ex-alunos da Faculdade, que me incentivaram e colaboraram decisivamente ao fornecer um material precioso para as crônicas: Armando Marcondes Machado Jr., o grande pesquisador e historiador da Faculdade e José Carlos Madia de Souza, lutador incansável pela eternização das tradições acadêmicas, presidente da Associação dos Antigos Alunos da São Francisco.
terça-feira, 10 de abril de 2018

Nós, animais gregários

O homem tem uma necessidade irrefreável de se expressar, de expor ideias, sentimentos, fantasias, criações da imaginação. Concretiza esse anseio por meio da palavra oral ou da palavra escrita. A intenção de quem escreve sem preocupações literárias, é expor experiências vividas, é recordar passagens e pessoas, é extrair dos fatos da vida aspectos inusitados, pitorescos, edificantes ou merecedores de repulsa. Enfim, são lembranças que não saíram da memória e estão mantidas nas várias caixinhas do cérebro e merecem vir à tona. Interessante é destacar que são experiências pessoais, cuja relevância é também pessoal, subjetiva. Mas, talvez, elas despertem, em quem vier a lê-las, lembranças e emoções em razão da identidade com suas próprias experiências. O foco, como disse, também são pessoas que marcaram a vida de cada qual. Não estou referindo-me a esportistas notórios, políticos de projeção, cantores ou artistas de renome. Na verdade, as recordações atingem seres anônimos que povoaram os nossos períodos de vida, das mais variadas emoções e provocaram sentimentos de múltipla natureza. Pessoas que nos mostraram as grandezas e as misérias da condição humana. Nesses escritos evocativos não se pretende fazer um cotejo entre épocas. "Aquele tempo" não é melhor ou pior do que o atual. São tempos diferentes. As diferenças no relacionamento interpessoal, no comportamento, nos hábitos, na educação são facilmente verificados. É difícil, no entanto, apontar as razões de tais diferenças. Na realidade, as pessoas mudaram e os tempos também, como consequência. Entendo saudável narrar outros tempos e até cotejá-los com os atuais. Pode-se, inclusive, descobrir que as diferenças não eram tão acentuadas quanto se imaginava. É importante o registro das épocas que se foram, que mudaram, que se repetem e que irão mudar ou novamente se repetir. Fatos, pessoas e locais povoam a nossa memória e o nosso imaginário. Como disse Fernando Pessoa, não se sabe se eles existiram ou se nós é que não existimos. Mas eram reais. No meu caso a maioria das pessoas e dos fatos existiram. No entanto, não posso garantir que a reprodução seja de fidelidade induvidosa. Duvido que seja. Aspecto interessante nesse fazer correr o tempo para apontar as suas mutações, é que o nosso olhar para trás infla os espaços e as coisas. As proporções, com o passar dos anos, vão adquirindo espectros menores, quer de coisas, de locais, de fatos e, por vezes, de sentimentos. Érico Veríssimo, que dizia ser "antes de mais nada um contador de histórias". Não se considerava um "escritor para escritores" Não era segundo ele "um inovador, não trouxe nenhuma contribuição original para a arte dos romances" ( in "Solo de Clarineta" , vol 2. - p. 308 - 1976). Humilde confissão de um grande escritor. Aqueles que registram as suas experiências, em regra não são escritores, são, pode-se dizer "contadores de sentimentos". No meu caso, a minha memória e o meu racional estão impregnados de algum sentimento. Nenhum fato, presenciado ou conhecido, habita a minha memória desacompanhado de alguma, maior ou menor, carga emocional. A minha presença nos eventos, mesmo estando ausente, foi e é sempre constante. Eu não consigo ficar alheio a uma ocorrência. Meu espírito nele se projeta. Tomo posição, opino, sofro, alegro-me, fico repleto de perplexidade, solidariedade, revolta, inquietação, enfim, sempre com o emocional operoso e vigilante. Aqueles que, por meio de escritos, mostram a sua atenção permanente aos eventos da vida, por meio de escritos, demonstram os possuidores, em escala superior, de uma marca comum a todos os homens: um ser essencialmente gregário. Todos o somos. Uns mais, outros menos. Há aqueles que atingiram níveis elevados da necessidade de conviver e de participar. Talvez em relação a estes haja um superdimensionamento do ego, revelado pela necessidade de ser protagonista, mesmo que à distância do acontecimento e indiretamente. O espírito está alerta e atento, sempre se manifesta, e o faz de variadas formas, como um irrefreável impulso de provocar e fazer aflorar algum tipo de sentimento.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Uma Confraria a serviço da democracia

Ele faleceu há uns dois meses. Em seu velório revi colegas de nossa época de estudantes, dos idos de sessenta. Formamo-nos em 1969 e 1970. Ele foi meu calouro. Procurei proteger-lhe do trote. Tratei-o bem, pois desejava aliciá-lo para o PIU - Partido Independente Universitário, por mim presidido naquele ano. Logrei êxito, pois ele alinhou-se conosco e teve uma marcante participação na política acadêmica de então. O governo militar se instalara em 1964, após a deposição do presidente Jango Goulart. O meio estudantil efervescia. O sentimento comum era o de incerteza e de absoluta insegurança. Sabia-se que a ruptura institucional poderia nos conduzir por caminhos tortuosos a uma situação de risco institucional. Na Faculdade Paulista de Direito, da PUC, como nas demais, havia os que aplaudiam o golpe, para eles a revolução; os que lhe eram contrários e aqueles que se colocavam em uma posição de expectativa. Para estes, a questão ideológica, a preservação ou não da democracia e das liberdades individuais, pouco importavam. A tomada do poder era um fato consumado. Estavam apenas aguardando os futuros acontecimentos, sem nenhum envolvimento favorável ou contrário. Os que se posicionavam contra o golpe estavam divididos. Aqueles engajados em partidos ou em organizações já existentes ou em formação, queriam ações concretas contra o regime instalado, que iam dos protestos à luta armada. Outros também se opunham claramente contra a tomada do poder pelos militares, mas não concordavam com ações agressivas e provocativas, que poderiam conduzir a um endurecimento do regime. E, tinham razão, pois pretextando combater a subversão em 1968 editaram o malfadado ato institucional nº 5. O PIU abrigava alguns colegas favoráveis ao golpe, mas era uma minoria sem voz. Os demais queriam perfilar o caminho da política para o combate à ditadura. Desde a instalação do governo militar, nós ansiávamos pela rápida redemocratização do país, esperando que as eleições presidenciais marcadas para 1965 fossem realizadas. Quando elas foram canceladas, percebemos o risco da perpetuação no poder por aqueles que o haviam assumido ilegitimamente. Optamos pela atuação política como a via a ser percorrida para a normalização institucional. Liderava o movimento dos radicais José Dirceu, por quem eu nutria simpatia, reconhecendo-lhe incontestável liderança. Era da minha turma, mas não se formou conosco, pois foi preso em Ibiúna no Congresso da UNE, em 1968. Travamos memoráveis debates nas assembleias e nas frequentes reuniões realizadas para discutir movimento estudantil, em face da anormal situação política. Durante o velório do amigo, companheiro de partido e das lutas acadêmicas, vários fatos foram lembrados. A sua coerência e a sua coragem foram enaltecidas. Sim, coragem pois esta não era um requisito apenas dos que saiam à rua para protestar e para enfrentar a polícia. A coragem também era um atributo nosso, que nos opúnhamos à ação dos radicais. A coragem era exigida exatamente porque estávamos contra os métodos de combate à ditadura então vigorantes. E, como era difícil contrariar os radicais. Éramos rotulados de direitistas, gorilas, defensores do golpe. Mentiras eram lançadas sem nenhum pudor, mas nós nos mantínhamos coerentes e inabaláveis em nossas posições. O amigo e fiel companheiro se manteve sempre na vanguarda de nossos movimentos dentro da Faculdade. Mas, nós tínhamos um outro interesse e o satisfazíamos fora da escola. Constituímos um grupo, para, sem abdicar das preocupações políticas, aliás como complementação e linha auxiliar dessas, cultivamos prazeres próprios do espírito acadêmico, quais sejam os ligados à boa mesa e à música. Assim, Fábio de Campos Lilla, este é o querido amigo agora pranteado, e eu, criamos a "Confraria Baco" . Um grupo de seletos companheiros, escolhidos por suas aptidões gastronômicas, etílicas e musicais, que se reunia aos sábados para o almoço na Serra de São Roque, onde se comia frango com polenta e se bebia vinhos da região, compatíveis com as nossas parcas economias, portanto, de sofrível qualidade. Diga-se que para nós, o frango e seus acompanhamentos eram iguarias estupendas, e o vinho era o único accessível ao nosso bolso. Deixava nossas línguas escuras e os nossos fígados com sequelas que nos acompanharam para sempre. Nós também cantávamos. Fábio, que se tornou um dos mais festejados e exitosos advogados tributaristas do país, era, sem nenhuma dúvida, o mais desafinado de todos nós. No entanto, não possuía consciência de sua inaptidão para a música, e com entusiasmo soltava a sua péssima voz. Eu tinha pena das mesas vizinhas. Quero registrar o meu pleito de saudade por aquele que desde os bancos universitários soube com coragem e coerência honrar os seus ideais democráticos e uma vez advogado, dignificar a profissão como poucos. Fábio e a nossa "Confraria Baco" simbolizam a capacidade dos estudantes daqueles sombrios tempos de, sem abrir mão de seus ideais e sem deixar de persegui-los, de cultivar a alegria de viver.
segunda-feira, 18 de março de 2013

Somos brancos?

Li em algum lugar uma afirmação de Chico Buarque sobre o racismo. Afirmação verdadeira, em forma de blague. Ele criticava a resistência nacional em admitir a miscigenação como característica de nossa gente : "no Brasil só a Xuxa é branca. Mesmo assim caso não case com o Tafarel irão desaparecer os brancos". Com efeito, quem é branco nesse país onde predominaram negros vindos da África e que aqui foram fazendo e tendo filhos, entre si e com brancos e índios ? No século XIX o percentual de negros se não era superior, quase o era. Fernando Henrique disse que ele tinha, ou quase todos nós tínhamos, um "pé na cozinha". Houve até quem quisesse o seu "impeachment". Atualmente, a população brasileira é constituída por maioria significativa de brancos, em face da imigração, do final do outro e início do século passado. No entanto, os brasileiros que não possuem descendência próxima com imigrantes, possuem mesmo que remotamente origem em algum tipo de miscigenação. E, qual é a razão de não assumirmos a nossa condição mestiça. Por que esta dificuldade de reconhecermos a nossa origem. É interessante que quanto à cor da pele gostamos do bronzeado, gostamos de nos expor ao sol para "tomar cor". É notória a nossa preferência pela cor morena do mulato (a). Talvez se trate de um claro indício, embora inconsciente, do reconhecimento da nossa origem miscigenada. Estranha queda pela cor e repulsa pela origem. Nós temos uma elite que desejou desde seus primórdios ser europeia, especificamente francesa. Posteriormente, o sonho foi se americanizando. Esta utopia segue o seu curso nos dias de hoje, com a adoção, por exemplo, de um vasto vocabulário da língua inglesa em substituição a expressões correlatas do nosso português. É interessante notar que nas nossas mais fulgurantes manifestações culturais, a música e o futebol, o negro sempre desempenhou um papel de grande destaque, propulsor e de vanguarda. Em ambos, a sua presença, no entanto, foi inicialmente rejeitada. O batuque, o choro, o maxixe e o samba eram desprezados pelas classes dominantes. Nos salões apenas valsas vienenses e polca. Uma ocasião, sob os auspícios da primeira dama, Sra. Nair de Tefé, esposa do Marechal Hermes da Fonseca, a compositora e pianista Chiquinha Gonzaga apresentou-se em um sarau no Palácio do Governo, executando apenas músicas populares, em especial um tango maxixe chamado "Corta-Jaca". Foi um escândalo na República. Rui Barbosa, que havia perdido as eleições presidenciais exatamente para o Marechal Hermes, assumiu a tribuna do Senado para com veemência deplorar o achincalhe representado pela apresentação de uma música menor, vulgar, essencialmente popular, incompatível com a dignidade nacional. Referindo-se ao maxixe o Conselheiro afirmou tratar-se da "mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens,a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba". Como a recepção em Palácio contou com a presença do corpo diplomático, a "vergonha" teria sido maior, gerando rubor nas fases e até revolta, no dizer do inolvidável jurista. Este fato denota com clareza a verdadeira ojeriza da elite pelas nossas genuínas manifestações culturais. Na verdade, ojeriza que venceu o tempo e ainda perdura até os nossos dias, embora com menor intensidade. Posteriormente, a música popular se expandiu, derrubou barreiras, ocupou espaços, incorporou-se ao acervo cultural do povo e teve no negro o seu grande artífice. As figuras magistrais de Pixinguinha, Ismael Silva, Sinhô, Cartola, Nelson Cavaquinho, Donga, João da Baiana, juntamente com compositores brancos deitaram raízes nas décadas de vinte, trinta e quarenta, de uma música que soube retratar a história, o cotidiano e as características de um povo, como talvez não se tenha feito em nenhum outro país. O futebol, nos seus primórdios, foi apropriado pelos brancos, pelos "bem nascidos" , até que se descobriu o insuperável talento dos negros. A primeira seleção brasileira a nos dar orgulho foi a de 1938, na França, com Leônidas da Silva, o "Diamante Negro", encantando o mundo com a sua mágica atuação. A expressão negro foi colocada também na alcunha de outro grande craque do passado, Fausto a "Maravilha Negra". O primeiro jogador negro a se destacar foi Friedenreich. Ele, no entanto, não assumiu a sua negritude, pois, dizem, procurava branquear-se, alisando o cabelo, passando pó no rosto, imitando costumes dos brancos. Aliás, este fato do "branqueamento" não é incomum ainda nos dias de hoje. Falando em maquiagem para disfarçar a cor, a alcunha de "pó de arroz" que acompanha o Fluminense não provem, como se imagina, do fato de sua torcida ser de elite, mas sim de um seu jogador, de nome Carlos Alberto, empoar o rosto exatamente para clarear a sua tez. Como se vê, as nossas origens nunca foram devidamente assumidas pelo conjunto da sociedade. A verdade é que nós não incorporamos a miscigenação como um elemento intrínseco à nossa formação. Negros e mulatos, graças ao talento que lhes é inato, respondem por algumas manifestações culturais que nos distinguem perante o mundo. Caso eles fossem substituídos pelos brancos, muito provavelmente, tal reconhecimento não ocorreria. Por tal razão, e só por ela, as elites nesses setores se curvam, sem no entanto, abrir outros espaços. Os relacionamentos sociais fluiriam melhor e a sociedade seria mais harmônica e pacífica caso houvesse o claro e explícito reconhecimento de que nós brasileiros representamos uma mistura de outras raças, crenças e aptidões, única no mundo e que se aceita e assimilada nos proporcionaria uma identidade própria e uma alta estima da qual somos carentes.
segunda-feira, 4 de março de 2013

A história dos sem história

Com o passar do tempo, especialmente nos últimos anos, tem me assaltado uma sensação de tempo perdido, acompanhado de um sentimento de arrependimento. Não pense que generalizo. Não estou me referindo ao arrependimento pelo que fiz ou pelo que não fiz e de um modo ou de outro desperdicei o tempo. Na verdade esse desperdício dos tempos que já se foram é uma outra história. O foco é outro, é específico. Lamento não ter aproveitado o tempo de vida das pessoas que marcaram a minha vida, para produzir o registro de suas trajetórias, de viva voz. Desta forma eu estaria fixando a história, talvez a verdadeira, que é a história do cotidiano das pessoas. É interessante como não se tem a cultura de valorizar o cotidiano, a vida de cada um, suas emoções, alegrais, frustrações, opiniões, preferências. Por outro lado, os seus êxitos e as suas conquistas deveriam fazer parte das certidões pessoais de cada qual. Uma lei deveria obrigar todos a documentar por escrito ou oralmente a sua trajetória de vida e registrar o documento ou a gravação em um órgão público. Com isso estaria sendo armazenado para a posteridade o registro da história, individual e coletiva, não escrita a posteriori, mas sim concomitante à sua ocorrência. Por consequência, teríamos um retrato fiel da condição humana escrita não por um Balsac, mas por todos aqueles que em vida, podem retratar as multifacetadas características e os variados contornos dessa condição, com todas as suas nuances, grandezas, misérias. Entendo que a grande e verdadeira história da humanidade não é a das datas, das guerras, revoluções e golpes, dos assassinatos, das proclamações, das conferências e dos tratados. Esses eventos se formam e a humanidade se constitui por meio do dia a dia que enobrece ou desmerece o homem; na ocorrência de seus pequenos ou maiores êxitos ou fracassos; nas suas conquistas ou frustrações; nos seus amores, rancores, uniões, separações, no seu egoísmo ou no seu desprendimento, enfim a história da humanidade é a de cada ser humano. A proposta do registro público da vida de cada um é o exagero impossível para se chegar ao razoável viável. Então, resta saber como é possível escrever-se essa história, pois é impossível obrigar cada ser a registrar a sua passagem pela vida. O caminho é a persuasão, o estímulo, o incentivo para que memórias e autobiografias sejam escritas e divulgadas. Não estou me referindo apenas aos vultos notórios. Falo da divulgação dos registros daqueles tidos como os sem história, sem imagem, sem importância, falo dos anônimos. Com esta abertura se estará formando uma cultura voltada para o que é simples, trivial e cotidiano, mas que no conjunto representa a verdadeira e fiel história do homem brasileiro. Claro que a fixação dessa história deverá se dar por meio da edição de livros, boletins, opúsculos, pequenas publicações, gravações e pelos meios eletrônicos. Ademais, os escritos poderão abranger experiências coletivas. Turmas de faculdades; agremiações esportivas; entidades profissionais; famílias e outros núcleos poderão narrar a sua história que é constituída pela historia de seus integrantes. Assim, estaremos construindo a história global, baseada na de cada um. A escrita da história a partir da vida individual ou de um grupo de indivíduos poderá provocar estímulos pessoais para o reconhecimento do próprio valor, motivo de crescimento pessoal, amadurecimento e aumento da autoestima. Ao narrar a própria vida em sua inteireza, removendo o véu do esquecimento, o indivíduo terá condições de refletir sobre cada episódio, e avaliá-lo com maior clareza e serenidade em face do tempo passado. Condutas pretéritas, que lhe marcaram negativamente, poderão ser reexaminadas e vir a receber uma avaliação menos desfavorável. A narrativa da própria vida é um exercício eficaz para desmentir o filósofo Schopenhauer, para quem a vida dos homens, vista exteriormente, é insignificante e sem interesse, e é surda e obscura se sentida interiormente.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

São Paulo de ontem e de sempre

São Paulo está aniversariando. Quatrocentos e cinquenta e nove anos. Quatro séculos e meio, bem vividos e bem sofridos. Um tempo que não respeitou as barreiras impostas pelas preferências e pelas necessidades de seus habitantes. A vontade de cada um, de um grupo ou de grandes parcelas de paulistanos foi atropelada sem que se pedisse licença. Eu, em particular, e como eu inúmeros outros da minha geração, se fossemos perguntados sobre o que gostaríamos que voltasse, responderíamos de chofre, jogar bola nas ruas. Termos as ruas de volta. Nunca fui um craque, longe disso. Sempre fui o último a ser escalado nas peladas. E, em regra, compunha o time que ficaria com um jogador a mais, pois a minha presença nenhuma diferença fazia. No entanto, o que importava é que tínhamos a rua, éramos os seus donos. Nós tínhamos a rua como o nosso grande espaço de relacionamento, onde brincávamos, brigávamos, vivíamos e convivíamos, era na verdade o nosso inexpugnável reino. Não temos mais as ruas porque os automóveis a tomaram. Usurparam as ruas e isolaram as pessoas. Substituíram os bondes que as acolhiam e as uniam para separá-las. O automóvel, dizem, representou a industrialização e a modernização do país. Mas, eu preferia os bondes e as ruas. Desejo-os de volta. Perdemos as ruas e também os bairros e os vizinhos; os campos de várzea; os armazéns e os empórios; os sapateiros; os encanadores, os eletricistas, os amoladores de facas; os vendedores de algodão doce, de leite de cabra, verduras e frutas, biju, na porta da casas. Não se pense que eu seja um melancólico nostálgico. Tenho saudades sim, mas sei que os novos tempos da cidade que está inflada de problemas podem perfeitamente ser amenizados e melhorados, bem aproveitados para deixar saudades no futuro. Depende da cidade? Não, depende de nós. Nós somos os responsáveis pela nova época. São Paulo está ai, basta que a saibamos aproveitar. Vamos construir a nova cidade, sem destruir a antiga. É preciso dar amor à cidade ao invés de ofendê-la, decantar a sua crueldade, a sua feiúra, a sua selvageria. Características que estão muito mais em nossa visão predatória da realidade do que na própria realidade. Os que a habitaram no início do século 20 lamentavam a perda dos lampiões de gás, das serestas, da "Rapaziada do Brás", dos "Moços da Academia", do rio Tietê e de suas regatas e de tantas outras marcas daqueles tempos. Aqueles que aqui viveram nos anos trinta e quarenta remetem a sua memória à vida boêmia então possível de ser vivida na cidade. Cassinos, cabarés, taxi dancing, magníficos cinemas e outros locais existentes em uma época que possibilitava fácil acesso aos locais e seguro retorno ao lar. Os paulistanos dos anos cinquenta e sessenta choram a rua Augusta perdida; os primeiros Volks; o escurinho dos cinemas; os bailes de formatura, aonde ainda os casais dançavam juntos e, por vezes, de rosto colado, que representava a suprema intimidade !!! Tempos nos quais se pedia em namoro. E a resposta vinha, quando vinha, três dias depois. Eu sei, que os jovens que hoje vivem a cidade intensamente, dirão daqui a uns anos, ah ! no meu tempo, a São Paulo da minha época sim é que era uma boa cidade. Pois é, assim é e assim sempre será. Vamos melhorá-la agora, para que ela possa ser recordada no futuro. As décadas vindouras também terão os seus encantos, que se transformarão em saudade para quem as viver. Eu, no entanto, só temo que haja em São Paulo quem não tenha uma razão, seja lá qual for, para lembrá-la com carinho. Isto sim é de se lamentar, é muito mais triste do que todas as perdas que a cidade nos impôs.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O bonde

Para quem não sabe, talvez muitos não saibam : Bonde era um meio de transporte. Agora é apenas uma lembrança daqueles que o conheceram. Na verdade existe ainda aqui e ali, como instrumento turístico, como o de Santos, que faz um curto percurso pelo centro da encantadora cidade. No Rio de Janeiro há o bonde de Santa Tereza, e mesmo em São Paulo havia, não sei se há, um que saia do Memorial dos Imigrantes, no Brás, e dava aos domingos um pequeno giro. Logo depois dos Estados Unidos, o Brasil adotou o Bonde, em 1868. D. Pedro II participou da primeira viagem. Em São Paulo o novo transporte veio em 1872. Puxado a burro, somente no início do século 20 veio para a cidade o elétrico. Não se pense que ele significou apenas um eficiente meio de transporte, que em São Paulo existiu até 1968. O seu significado sócio cultural foi extraordinário. Constituiu um importante fator de sociabilidade. O Bonde aberto, com os seus compridos bancos, proporcionava a integração dos passageiros, entre si, com a própria cidade e com cada local, rua, casa que ele ia ultrapassando. O estribo, por sua vez, possibilitava que dele se saltasse, quando chegava o cobrador, caso se estivesse perto do destino. . . Ficava-se pendurado para se aplicar um "pendura" . Aliás, consta que o próprio cobrador "pendurava", pois de cada três cobranças registrava com a cordinha sonora apenas duas . . . Assim agia, na certeza da impunidade. Provas não havia, uma vez que "no bonde salvo o cobrador e o motorneiro tudo era passageiro". Quando eu pulava com ele em movimento, normalmente caia. Era conhecida a minha falta de agilidade. Enquanto o automóvel isola, o bonde congregava. Convidava ao diálogo, possibilitava o relacionamento. Provocava um sentimento de paz, bonomia e benquerença. Dele podia-se olhar o mundo ao nosso redor. Alguém disse que o Bonde era o "mirante do cotidiano". Não só do cotidiano. Via-se e enxergava-se o outro. Esse olhar para o outro foi tema de uma publicidade estampada no seu interior: "veja ilustra passageiro, que belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado". E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o tônico creosotado. Algumas características do Bonde davam condições à conversa, à reflexão, à leitura, ao flerte, ou simplesmente ao vagar dos olhos, dentre outras. O escritor Amadeu Amaral sintetizou as razões destas possibilidades: "vagaroso não dava sono; veloz mas não provocava vertigem seguro e repousante". Do Bonde se extrai aspectos poéticos e também hilários, contados em prosa, verso e música, de Machado de Assis, a Fernando Portela, autor de um magnífico álbum "Bonde Saudoso Paulistano", passando por Carlos Drumond e por vários compositores. Machado expôs com lirismo a magia proporcionada pelo Bonde : "Admirei a marcha serena dos bondes, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga". É isto. O Bonde serenamente percorria os seus caminhos e permitia que a brisa acariciasse os rostos e também as almas. Eram momentos de sossego, sem contratempos, engarrafamentos e, abafamento. Faço uma observação, até para ser coerente. Não era todo bonde que proporcionava bem estar. O chamado bonde "camarão", por ser fechado não se diferenciava muito do ônibus. A única diferença eram os trilhos, quando deles ele não saia. Quando vieram os bondes elétricos, Machado, em deliciosa crônica, lamentou o abandono dos burros, que ficaram desempregados. Nessa crônica, ele retratou um diálogo onde dois burros puxadores de bonde, mostraram a sua perplexidade em face da vinda do elétrico. Um deles estava exultante, pois seria aposentado com garantias de sobrevivência. No entanto, o outro contestou, lembrando que apenas mudariam de senhor, pois seriam vendidos e passariam a puxar carroças, sujeitos ao mesmo tratamento à base de chicotadas. Ainda Machado, apesar de reconhecer no Bonde elétrico um avanço para a modernidade, deplorou a falta de modos dos usuários e, por tal razão, lançou regras de comportamento para os passageiros, que foram expostas em uma crônica de 1883. Uma música de Cornélio Pires e Mariano da Silveira, cantada por Inezita Barroso, com muita graça, retratou o espanto e o sofri mento de um homem da roça que em São Paulo entrou em um bonde fechado pela primeira vez. A reclamação veio logo na primeira estrofe, onde o caipira conta que ao entrar abriu uma portinhola, levou um tranco, quebrou a viola e ainda teve que por dinheiro na "caixinha da esmola". Em seguida, ainda dentro da "gaiola", entrou uma moça rebolando, que no seu colo foi sentando, e ai ele confessou "fiquei gostando". Logo após entrou um padre bem barrigudo, que após dar um tranco graúdo, deu um "abraço num bigodudo", que era protestante "dos carrancudos". Por fim, disse que iria embora para a sua terra, pois "esta porqueira inda acaba em guerra". Drumond, por sua vez, reclamou do número de pernas que encontrava nos bondes. Disse que o bonde passa cheio de pernas, pernas brancas, pretas, amarelas. "Por que tantas pernas meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada". Os saudosistas podem ter esperança, pois se anuncia a volta do bonde em certos trechos da cidade. Será ? Fala-se também de um meio de transportes que seria o sucessor dos bondes, o Veículo Leve sobre Trilhos, mas sem o estribo. Vamos aguardar.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O furto do pernil

O sonho se realizou. Tratava-se de um antigo sonho, que quando alcançado foi batizado de "Até Que Enfim". Pusemos uma placa no frontispício da varanda. A casa, esse era o sonho, tinha uma larga e comprida varanda que a circundava, como aliás exige uma casa de campo. Era de madeira, pré construída e ficava nos arredores de São Paulo, em um clube de campo. O quanto nós pudemos ela foi aproveitada. Queridos amigos participaram de memoráveis churrascos e reuniões, realizadas em uma edícula construída atrás da casa. Amigos, na verdade casais e seus filhos, que se conheceram na época da Faculdade Paulista de Direito da Universidade Católica de São Paulo. Estudantes, cada um foi trilhando o seu caminho sentimental e, assim, os casais foram se constituindo, os casamentos celebrados e os filhos nascendo. Igualmente os rumos profissionais foram sendo traçados. No entanto, continuávamos juntos. Compartilhávamos dos anseios, das inseguranças, enfim dos apertos do início da vida. Nos divertíamos muito, embora com parcos recursos. Em nossas casas, nos bares e restaurantes, quando a grana permitia. Nos finais de semana, quando possível, aproveitávamos a casa de praia ou o sítio de alguém. As crianças foram crescendo unidas. E, nós íamos vivendo e bem. Um dos lugares de nossa assídua frequência era exatamente o "Até Que Enfim". Ao lado da edícula havia um pequeno campo, aonde praticávamos o embrião do futebol societ. Havia disputas acirradas. Os nossos filhos, já crescidos, eram os nossos adversários. Em regra ganhavam e quando o placar ia se avantajando contra nós, interrompíamos a partida, ou simulando alguma encrenca em campo ou simplesmente sumindo com a bola. Memoráveis encontros regrados à cerveja, música e farta mesa celebravam a amizade, para nós imorredoura. No entanto, a vida com a suas artimanhas, por esta ou por aquela razão, foi nos afastando. Restaram, no entanto, as gratas recordações e um carinho imorredouro. Retornando ao "Até Que Enfim" foram inúmeros os episódios marcantes, todos pitorescos. Cito um ocorrido em um 31 de dezembro. Estavam conosco os queridos amigos e compadres Wilma e Wladmir Cassani, com os seus filhos. Durante o dia, já na hora do almoço, tiveram início as comemorações, marcadas pela algazarra das crianças, seis ao todo, e por fartos comes e bebes. O auge do 31 seria atingido à noite com a ceia, preparada com esmero e carinho pelas mulheres. O prato de resistência deveria ser um pernil. Mergulhado em suculento molho passou o dia aguardando a ida ao forno. Depois de assado adquiriu um aspecto irresistível. Não faria feio ao famoso pernil do bar "Estadão". Tostado, úmido, cor com brilho, um pouco pururuca, sua visão despertou o nosso apetite e aguçou a nossa gula. Mas, ele só seria servido por volta da meia noite. Foi colocado em cima de um banco, na cozinha junto à porta que dava para fora. Ficou lá à nossa espera. Chegada a hora alguém foi buscá-lo. A expectativa só não era maior do que a fome. No entanto, quem foi à cozinha voltou de mãos vazias, ou melhor, chegou com a assadeira vazia. Sumira o pernil. Fora-se a nossa ceia. Do espanto, passamos para a revolta e para a indignação, ao verificarmos que o nosso cobiçado manjar havia sido furtado por um torpe e vil cachorro, que sorrateiramente invadira a cozinha e abocanhara a indefesa perna de um mutilado porco. Um dos sinais de superioridade do cachorro, e há outros, sobre o homem, é o olfato aguçado. E, com este apurado sentido o cão ladrão conseguiu nos lesar. E, como que por deboche e por escárnio, deixou rastros e pistas de sua criminosa conduta espalhados por longo trajeto. Fragmentos de ossos e nacos de carne eram os indícios suficientes da autoria delitiva: um cão da vizinhança, que permaneceu impune, pois nunca foi encontrado. É, como dizem os sedentos, no caso os famintos por castigo e por vingança, no Brasil grassa a impunidade.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Sinceridade no júri

O caso era de dois homicídios, um consumado e um tentado, que teriam sido praticados por um marido traído. A morte do parceiro e a tentativa contra a parceira levaram ao banco dos réus um pacato operário de cinquenta anos de idade. Fruto da cultura, à época ainda arraigada, de que a conduta reprovável de um cônjuge atinge a honra do outro, bem como que a honra manchada só é lavada à bala, o homem resolveu obedecer aos padrões imperantes. A sua decisão não foi repentina. Não, ela foi refletida, sedimentada, criou raízes e gerou a sua inabalável opção. Desde o dia de sua primeira desconfiança, fruto de uma comprometedora e induvidosa marca no pescoço e do tardio horário de chegada em casa, as suas dúvidas foram sendo dissipadas e a certeza foi se cristalizando em seu espírito. Homem de extraordinária simplicidade, casado há vinte e cinco anos, não suportou conviver com a conduta da mulher, para ele denotadora de imperdoável infidelidade, que atingiu os oito filhos do casal. Enquanto ele se esfalfava para sustentar a enorme prole, imaginando que a companheira estivesse em casa cumprindo o papel reservado à mulher, que no seu entender seria o relacionado às atividades domésticas, estava ela se dando ao desfrute com outro, ou com outros homens. O primeiro golpe que recebeu da mulher ocorreu em Osasco. Estava ele no interior de um ônibus e viu-a abraçada com alguém. Desceu do coletivo, mas não pode ver quem era o seu rival. O atrevido parceiro de sua mulher fugiu. Disse haver perdoado a companheira, em nome dos oito filhos, para manter a unidade familiar. Algum tempo depois, consentiu que ela trabalhasse fora, segundo ela para reforçar o orçamento doméstico. As constantes "horas extras" utilizadas para justificar os não raros atrasos na chegada em casa, somados ao episódio de Osasco provocaram-lhe ciúmes e desconfianças. Em determinado dia, observou que a esposa portava outro sinal significativo no pescoço. Agora a marca era de um rubro marcante. Com certeza não era a anterior, pelo decurso do tempo. Portanto, havia prova de recente infidelidade. Não tendo sido por ele provocada, porque o casal não se aproximava havia muito tempo, sua honra fora tingida de vermelho, desta feita por um novo vampiro. Na manhã seguinte à descoberta, ele seguiu a adúltera. Entrou no mesmo ônibus e desceu pontos depois, perto da av. Brigadeiro Luiz Antonio, local distante do trabalho da mulher. Esse fato causou-lhe inquietação e aumentou a sua desconfiança. Assim que saltou do ônibus viu-a entrar em uma perua Kombi que estava parada perto do ponto. Houve uma pequena demora até que, ao ver ambos se beijando, pensou ser aquele o momento propício para recuperar a sua dignidade e a sua honra, o que só poderia se dar à bala. Claro que o ciúme se fez presente em sua decisão. Aproximou-se da Kombi aos gritos. Assustado de início, o motorista cúmplice da infidelidade se recompôs e procurou tirar do porta-luvas uma arma. Antes, no entanto, que o fizesse, foi atingido duas ou três vezes pelos disparos desferidos pela janela do carro. A mulher teve como aliada a arma do marido, que negou fogo quando acionada contra ela. Aceitei defender o marido traído, pois ele me inspirou pena. Pena do homem amargurado pela infidelidade da esposa, mãe de seus filhos, a quem soubera perdoar uma primeira vez, sem ter, entretanto, resistido ao segundo deslize. Durante o curso da instrução, procurei convencê-lo de que seu ato fora impensado, fruto do choque provocado pela visão da mulher aos beijos com outro dentro de um carro. Para mostrar que agira em legítima defesa, quer física, quer da honra ou na pior das hipóteses, sob os efeitos de violenta emoção, eu procurava mostrar que ele não agira premeditadamente, afastando de seu espírito qualquer ideia nesse sentido. Pois bem, para que vingasse tal tese, necessário seria que ele afirmasse um fato relevante: por morar em lugar ermo e ir cedo para o trabalho, todos os dias saia armado de casa, sendo que possuía porte. Não houve nenhuma discordância de sua parte. Pareceu-me ter ele apreendido a versão, que, aliás, não fugia da realidade. Treinei-o dias seguidos. Quando lhe perguntava, como se fosse juiz, se ele andava armado, respondia-me, de pronto, que sim, pois possuía licença e residia longe e saia cedo de casa para trabalhar. No dia do júri achei-o tranquilo e pronto para enfrentar o julgamento. Com certeza não falharia. A versão seria bem exposta. Pois bem, vencidas as fases iniciais da sessão, teve início o seu interrogatório. Primeira pergunta do presidente do primeiro Tribunal do Júri: O sr. sempre andou armado? Resposta veemente: Não Excelência, eu juro por Deus que jamais coloquei um revólver na cinta. Somente naquele dia. Ah! exclamou o magistrado olhando-me com ar de censura, como se eu não tivesse orientado corretamente o cliente. A sorte é que os jurados foram sensíveis ao seu drama e reconheceram a legítima defesa, com excesso culposo. Graças, talvez, à sua sinceridade o Otelo estava salvo...
segunda-feira, 23 de julho de 2012

O príncipe dos advogados criminais

Um exame da carreira dos grandes advogados criminais nos mostra o despontar da vocação para a advocacia penal logo nos primórdios da carreira, mesmo já durante a Faculdade ou até antes de nela ingressar. Nenhuma outra motivação, nenhum outro fator, nenhuma circunstância externa impeliu esse bacharéis a abraçar o Direito Penal e a optar pelo árduo caminho da defesa, íngreme, por vezes tortuoso, mas sempre iluminado pela busca da liberdade e da dignidade pessoal. Razões, as mais diversas, conduzem os recém-formados a optar por alguns dos ramos da advocacia. Influência de algum advogado mais antigo, oportunidade para trabalhar em um escritório especializado em algum setor, trabalho interno em pessoa jurídica. Enfim, todas razões externas, na maioria dos casos, alheias à vontade do bacharel, que nem sequer fizera a sua escolha. Já na área penal, prepondera a vocação, a chamada interior para o exercício da defesa daqueles levados às barras dos tribunais criminais. No caso de Dante Delmanto foi exatamente esse insuperável chamamento que o levou a trabalhar com um grande expoente da advocacia criminal da época, primoroso orador, que foi Adriano Marrey. Na verdade, sua inata inclinação pela defesa, aflorou quando assistiu a um júri em Botucatu, sua cidade natal, no qual trabalharam Antonio Augusto Covelo e Alfredo Pujol, dois expoentes do Tribunal Popular da época. Nem sequer era estudante de Direito. Sua vocação levou-o à recusar a carreira diplomática. Uma bolsa patrocinada pela Fundação Carnegie, para estudar na Holanda, especificamente em Haia, depois de concluída, outorgou-lhe o direito de ingressar no Itamaraty como 3º secretário. Preferiu advogar. Trabalhou durante nove anos no escritório do notável criminalista Adriano Marrey, um dos grandes da época, onde adquiriu valiosa experiência que aliada ao seu estilo próprio, com marcas e aspectos peculiares, que foram se aprimorando e sedimentando com o correr dos anos, tornou-se um dos maiores advogados criminais de todos os tempos. O fato marcante da conduta profissional de Dante Delmanto foi o cuidado, o esmero, a dedicação religiosa a cada caso. Sua entrega ao minucioso estudo dos processos era absoluta e tornou-se notória e lendária. Tal como um refinado artesão, a matéria prima de seu trabalho, o processo, era examinado, esmiuçado, prospectado até estar sob o seu domínio absoluto, para em seguida e a partir daí serem construídas as teses de defesa, elaboradas as primorosas razões, todas elas emolduradas por pertinentes citações doutrinárias que davam supedâneo a alegações e argumentos irrespondíveis, calcados nos elementos probatórios constantes dos autos. Conhecedor de cada folha, certidão ou carimbo do processo, Dante jamais cometeu um engano, uma falha, uma omissão no exame das provas, pois expunha com precisão todas e delas extraía argumentos valiosos para a defesa. Aliás, também foi e ainda é considerado o mais temível e eficiente argumentador dos que pontificaram na advocacia criminal. Não se pense que Delmanto tivesse os seus interesses, a sua cultura e a sua inteligência exclusivamente voltados para a advocacia. Não, era um homem do mundo e talvez a sua permanente sintonia com os fatos da vida tenha constituído um dos fatores de sua proeminência na advocacia criminal. Dotado de extraordinária sensibilidade para entender o homem e os fatores humanos, não tinha uma visão maniqueísta da vida, pois como todo advogado vocacionado, possuía plena consciência das inevitáveis contradições que nos marcam e sabia aceitá-las com olhar compreensível, complacente e solidário. Em sua trajetória de vida, da advocacia à política, passando pelo futebol, Dante Delmanto deixou marcas indeléveis, de caráter, competência e dedicação plena. Lutou em 1932, na Epopeia Paulista, já formado em Direito. Aficcionado pelo Palmeiras, com vinte e cinco anos, foi eleito seu presidente. Nesse período, o então Palestra Itália, obteve notáveis feitos. Na política, cerrou fileiras em torno do partido Constitucionalista, tendo sido eleito, em 1935, deputado estadual constituinte, como o candidato mais votado. No curso de sua vida profissional, Delmanto demonstrou de forma permanente e significativa o seu respeito e acatamento pela dignidade e pelos direitos alheios, fossem adversários da tribuna, réus ou vítimas. Certa feita recusou-se a utilizar documentos que comprometiam um ex-prefeito, pai de uma moça morta por um seu cliente. A justificativa para não valer-se dos documentos, foi plena do sentido ético que sempre norteou sua vida profissional e pessoal: não seria moral e ético infligir mais dores a quem já as tinha de sobejo pela perda da filha. Assim se conduzia Dante Delmanto, o "Príncipe dos Advogados Criminais", exemplo para todos nós, velhos e jovens advogados criminais.
segunda-feira, 18 de junho de 2012

Advocacia injustiçada

Não faz muito tempo uma jornalista perguntou-me: "Doutor se o seu cliente já confessou o crime; sua arma está apreendida; ele se encontra preso, porque defesa"? A indagação não difere de uma outra feita com frequência: "Como o senhor tem coragem de defender este acusado"? Ambas retratam um desconhecimento e por tal razão uma profunda incompreensão do papel desempenhado pelo advogado no âmbito da administração da Justiça. A incompreensão não é recente, diria ser histórica. No entanto, acentuou-se nos dias de hoje em face da cultura repressiva que se instalou no país de uns anos a essa data. A advocacia e o próprio direito de defesa tem tido sua importância minimizada e mais do que isso a atuação dos defensores é contestada, por vezes menosprezada e até achincalhada. A verdade é que a incompreensão acompanha a advocacia desde os seus primórdios. O conceito público da profissão oscila de acordo com o momento histórico vivido. Nos regimes totalitários a voz dos advogados sempre incomodou os detentores do poder. Napoleão Bonaparte afirmou a seu ministro da Justiça que gostaria que a língua dos advogados fosse cortada, demonstrando toda a sua aversão pela profissão. Anteriormente, durante a Revolução Francesa, para a defesa dos acusados apresentados à Convenção, que se transformara em Tribunal de Exceção, exigia-se dos advogados extraordinária coragem física e moral. Vários advogados tiveram o mesmo destino de seus clientes: a guilhotina. Malesherbes que defendeu Luiz XVI foi um deles. O exercício da advocacia naquela época estava causando embaraços às intenções de Robespierre e do acusador Touquier Tinville voltadas à eficiência e à rapidez dos julgamentos. Por essa razão foi promulgada uma lei que proibiu a atividade dos advogados. Desta forma, aqueles objetivos foram atingidos: em poucas semanas houve centenas de condenações Dentre inúmeros exemplos de incompreensão do papel do advogado, e ao mesmo tempo de destemor e desprendimento no exercício da profissão, destaca-se o do advogado judeu Yoram Sheftel. Havia ele perdido vários parentes vítimas do Holocausto e não obstante defendeu Ivan Demspanuyuk, acusado de ser Ivan, o Terrível, responsável pelo campo de concentração de Treblinka. Ao aceitar a defesa, Yoram provocou feroz reação da comunidade judaica. Chegou a ser agredido, fato que lhe ocasionou a perda de uma vista. Apesar do infortúnio ele permaneceu na defesa e obteve a absolvição de seu defendido, pois a Suprema Corte de Israel entendeu não haver prova da identidade do acusado. A história nos conta que nos momentos de ruptura institucional, os advogados sempre foram desrespeitados e agredidos. Nos dias de hoje não há ruptura institucional. No entanto, o período é de verdadeiro obscurantismo social, representado por uma cultura repressiva que se reflete na intolerância raivosa, na insensatez, na ânsia por castigo e por vingança. Em razão dessa cultura que é capitaneada pela mídia sensacionalista e inconveniente, o direito de defesa vem sendo considerado inconveniente, inoportuno, motivo de atraso das punições e, portanto, fator de impunidade. A sociedade passou a ver o advogado como defensor do crime e não como porta voz dos direitos e das garantias constitucionais de seu cliente. É comum que nos considerem cúmplices do acusado e coautores do crime que é imputado àquele. A sociedade deveria ser alertada para a importância da nossa missão : porta vozes dos direitos e das garantias constitucionais e individuais. A violação desses direitos e dessas garantias, em algum caso concreto, põe em risco todo e qualquer cidadão, inocente ou culpado, que venha a ser processado. A incompreensão, atualmente, transformou-se em desrespeito, desprestigio e desvalorização. Verifica-se que a advocacia no Brasil está sendo verdadeiramente hostilizada. Há algumas críticas dirigidas à advocacia sobre aspectos que são comuns a outras profissões. Estas, no entanto, ficam imunes. Fala-se que o pobre está carente de assistência jurídica, por não poder contratar bons advogados. Um lado desconhecido da advocacia é exatamente aquele dedicado à defesa dos carentes de recurso. A mídia sempre nos coloca como defensores de pessoas abastadas, que via de regra são acusadas da prática dos chamados crimes do colarinho branco ou da prática de homicídio os quais, por alguma razão ganharam grande repercussão. Jamais a imprensa dá espaço para os casos de acentuado conteúdo humano que mereceriam realce voltado para as suas circunstâncias e motivos. Raramente mostram os aspectos favoráveis ao acusado, bem como omitem os seus direitos, os princípios que devem ser obedecidos em seu benefício e, por consequência, omitem o nosso papel que é exatamente o de arautos desses mesmos direitos e princípios. Os críticos da advocacia se esquecem dos advogados, e não são poucos, dedicados à advocacia pro-bono. Há, ainda, os colegas conveniados com o Estado, que atendem aos carentes. Não se esqueça dos dedicados e competentes defensores públicos, que exercem uma relevante função social. A falta de assistência jurídica aos hipossuficientes não é maior nem é menor do que a carência nas áreas da saúde, da educação e da habitação. É óbvio que a responsabilidade não é dos advogados, dos médicos ou dos engenheiros, mas sim da trágica desigualdade social reinante. Outra veemente crítica: os advogados cobram honorários elevados. Assertiva, que se verdadeira, não pode ser generalizada. A maioria absoluta dos advogados enfrenta grandes dificuldades no mercado de trabalho. Poucos são os que recebem remuneração condigna. A contratação de honorários é ato bilateral. Há quem cobre e há quem aceite e pague. Trata-se, na verdade, de uma crítica infundada, para não dizer ridícula e hipócrita, partida de uma sociedade que valoriza o ganhar e o ter, em detrimento do ser. São reverenciados e desfrutam de grande prestígio social os jogadores de futebol, os artistas, os apresentadores de televisão, os empresários, os médicos de renome, e tantos outros profissionais que ganham fortunas. Quanto aos advogados, bem, com relação a nós o ganho passa a ser pecaminoso, criminoso, imoral. A verdade verdadeira é que a advocacia nos coloca entre o calvário e o paraíso. Adorados pelos defendidos, somos, não raras vezes, alvo de execração pública, fruto do crônico desconhecimento da nossa missão. Só somos valorizados por aqueles que de nós necessitam. Mesmo assim, em muitos casos, a ingratidão nos acompanha, pois terminado o processo somos esquecidos. Verberar a injustiça, pugnar pelo direito, ser inconformado, rebelde, incômodo, esta é a nossa vocação. E dela muito nos orgulhamos Santos ou demônios, probos ou chicaneiros, idealistas ou oportunistas, o rótulo varia e a indefinição permanece. Nós sabemos o que somos e conhecemos o nosso valor. Para nós, isto é o que basta.
segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um advogado invejável

A trajetória profissional de Evandro Lins e Silva provoca inveja. A inveja sã, não a destrutiva. A inveja que transforma o invejado em modelo a ser seguido e imitado. Qual o advogado criminal brasileiro que não gostaria de ter vivido a vida profissional e pública por ele vivida? Evandro cumpriu o duplo papel que desde a fundação dos cursos jurídicos foi destinado aos advogados: exercer as funções inerentes às carreiras ligadas ao bacharelado em direito e exercer funções públicas na administração ou na política. O Visconde de Cachoeira em 1825, quando elaborou o projeto de regulamentação dos cursos jurídicos, disse que eles não formariam apenas magistrados e peritos advogados, mas deputados e senadores para ocuparem "os lugares diplomáticos e demais empregos do Estado". Evandro cumpriu esse destino. Advogou com intensidade durante sua longa vida. Abriu hiatos apenas para dedicar-se à causa pública, como procurador Geral da República, chefe da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo dele retirado por ato de força do governo militar. Mesmo quando exclusivo militante da advocacia, ele não deixou de atuar em prol da sociedade e da cidadania, aliás cumprindo um fadário da advocacia que é o de ser a porta voz dos anseios e das aspirações da sociedade. Basta que se dê um exemplo para ilustrar a síntese, que em Evandro foi perfeita, entre o advogado e o cidadão: atuou como representante dos brasileiros no processo de impeachment de um presidente da República. A verdade é que Evandro marcou a sua trajetória de vida pelo desprendimento e pelo servir. Extrapolou os limites da postulação privada, para atingir as de interesse coletivo. A prova provada de seu desprendimento nós encontramos nas defesas que fez no famigerado Tribunal de Segurança Nacional, criado por Vargas em 1935. Foi o advogado que mais defendeu presos políticos sem jamais haver cobrado honorários. Exemplo de generosidade e de um idealismo do advogado que coloca o seu sagrado mister de defender acima de interesses outros. Trata-se de um exemplo para aqueles que nos dias de hoje pretendem transformar as bancas de advocacia em balcões de mercancia. Também nesse Tribunal a missão do advogado foi cumprida acima dos seus posicionamentos políticos e empatias pessoais. Defendeu acusados da intentona comunista de 1935 e os integralistas de 1938. Evandro fez com que o direito de defesa pairasse acima das ideologias de direita e de esquerda. Como ser político tinha claros posicionamentos em face da realidade nacional, que no entanto não interferiram no exercício da defesa. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, juntamente com Domingos Velasco, Hermes Lima, Joel Silveira, João Mangabeira e outros. O júri, eu creio , foi na advocacia a sua maior afeição. Da defesa de um passional, aliás chamado Otelo, em 1932, seu primeiro caso, feito ao lado do grande rábula João da Costa Pinto, até a sua defesa notável de Doca Strett, passando por Castorina a doméstica acusada de infanticídio, júri no qual teve ao seu lado Carlos Lacerda, em 1934, Evandro Lins e Silva, durante setenta anos, fez da tribuna do Júri um altar para cultuar a liberdade e imolar a injustiça e o arbítrio. Como já dito, Evandro serviu ao interesse público cumprindo, assim, o destino traçado para os grandes advogados pelo Visconde de São Leopoldo. Foi ministro das Relações Exteriores e como tal no episódio da instalação dos mísseis em Cuba, pela União Soviética, agiu como mediador, tendo contribuído decisivamente para que a Guerra Fria não se transformasse em guerra real. Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, lá permaneceu durante cinco anos e quatro meses. Nesse período relatou cinco mil processos e participou do julgamento de, aproximadamente, trinta mil. Levou para a Magistratura características inerentes à advocacia. Como juiz continuou sua incansável perseguição à verdade, que na condição de advogado empenhava-se em levar para os autos. Demonstrou possuir um alto grau de compreensão do homem, com suas grandezas e suas misérias, desprovido de uma visão maniqueísta ou sectária do homem e da vida. Como juiz não foi um aplicador mecânico da lei. Adaptar as suas decisões às condições sociais, culturais e econômicas do momento reinante e às características de cada caso, sempre foi sua preponderante preocupação. Por outro lado, chamais olvidou ser a lei insuficiente para alcançar todas as situações de conflito em uma sociedade multifacetada e em contínua transformação. Evandro Lins e Silva, homem público admirável e magistrado exemplar, na verdade, foi uma das mais extraordinárias vocações de advogado que o Brasil conheceu. Depois de sete anos afastado da advocacia, quando serviu o país em cargos públicos, retornou à profissão. Voltou como se fosse um recém-formado. Voltou como um imberbe bacharel, portando orgulhoso o seu diploma, ostentando com garbo o seu anel de grau e trajando vaidoso a sua beca. Uma vez no fórum, novamente participou dos embates judiciários, sem qualquer laivo de prepotência ou de arrogância, que invadem o espírito de outros que exerceram os mesmos cargos por ele ocupados. Dominava-oo orgulho de ser advogado e não o decorrente das funções exercidas. Passou a exibir esse orgulho nos balcões dos cartórios, nas salas de espera dos juízes, esperando para despachar ou mesmo examinando inquéritos nas delegacias. Estava ele advogado pleno outra vez. E, essa condição o acompanhou até o fim de seus dias. Almoçávamos no restaurante Mário, no Leme, minha mulher Ângela, Clemente Hungria, Evandro e eu, quando num arroubo de confissão, desabafo e suplica, afirmou "Mariz, quero clientes, preciso continuar a advogar". Beirava os noventa anos. Foi um canto de louvor à profissão.
segunda-feira, 21 de maio de 2012

Advocacia e mídia: um precursor

O meu contato com Leonardo Frankenthal não foi constante e nem intenso. Diria até que fomos conhecidos, mas não amigos, por meras razões do acaso, que não nos proporcionou um contato amiudado. Quando comecei a trabalhar no escritório de meu pai em 1961 ou 1962, Frankenthal estava despontando como estrela fulgurante da advocacia criminal. Como o escritório de meu pai era exclusivamente dedicado à área cível, naquela ocasião eu nem sequer conhecia Leonardo de vista. Eu era um office boy do fórum cível, já à época instalado na Praça João Mendes, contando com não mais do que seis andares utilizados. Com o correr dos anos comecei a ouvir falar dele e de outros grandes advogados criminais: Dante Delmanto; Marco Antonio; Waldir Troncoso Peres; Raimundo Paschoal Barbosa; José Aranha; Henrique Vainer; Viana de Moraes e tantos outros. Passei a frequentar o fórum criminal ainda quando solicitador acadêmico, entre 1968 e 1969. Foi José Carlos Dias quem possibilitou o meu primeiro contato com uma vara criminal, indicando-me para trabalhar com ele em um caso de homicídio. Desse caso para outros, foi um passo. Os presidentes dos 1º e 2º Tribunais do júri nomeavam-me para inúmeros processos de réus carentes. Desta forma comecei a frequentar diariamente o nosso venerando e magnífico Palácio da Justiça, onde estava instalado o fórum criminal. A partir dessa ocasião Frankenthal tornou-se familiar para mim, embora o nosso relacionamento fosse superficial. Digo ter me familiarizado com ele em face de comentários, notícias de jornais e dos seus feitos como advogado do júri. Advogado competente, aguerrido, foi alvo de críticas, não raras, por sua impetuosidade e arrojo na defesa dos clientes, especialmente daqueles levados a júri, onde essas características mais se acentuavam. Leonardo Frankenthal talvez tenha sido o advogado criminal que com mais desenvoltura, desembaraço e competência soube relacionar-se com a imprensa, naquela época. Nos anos sessenta, havia uma ainda limitada interferência da imprensa na pauta da Justiça Penal. Era mantida uma respeitosa distância entre o jornal e o fórum. O magistrado era acatado e o advogado reverenciado. Distância, acatamento e reverência desaparecidos nos dias de hoje. Difícil, na atualidade, ler-se uma matéria que enalteça aspectos positivos da Justiça e da atuação dos advogados. À época, em primeiro lugar, os papéis dos personagens da cena judiciária eram expostos com fidelidade pela imprensa, o que facilitava a compreensão da missão de cada qual pela sociedade. Havia uma preocupação pedagógica, de bem informar, por parte da imprensa. O direito dever de punir do Estado vinha acompanhado nas matérias jornalísticas do direito à liberdade e à dignidade dos acusados. A sociedade não estava impregnada da cultura punitiva e repressiva hoje vigente. Havia um sentido do justo mais arraigado na consciência e na alma da coletividade. Foi nesse ambiente que Frankenthal soube introduzir na mídia, rádio e principalmente jornal, a advocacia criminal, com as suas glórias e as suas agruras. Deu ao sagrado mister de defender uma dimensão que extrapolou os quadrantes do poder judiciário para penetrar nos domínios da sociedade. Pode-se afirmar sem medo de erro ter sido Leonardo Frankenthal um notável "marqueteiro", não daqueles que criam situações ficcionais, mas o marqueteiro que com a própria realidade, sem maquiagens e simulações, enaltece e dignifica uma atividade humana, no caso uma das mais nobres e sagradas atividades do homem que é o exercício do direito de defesa.
segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um advogado notável e um ser humano invulgar

Seu apelido era "Negro", embora não fosse da raça negra. Naquele tempo não havia o patrulhamento hipócrita e ele sim discriminatório, em relação às referências feitas aos homens e às mulheres da raça negra. Utilizava-se expressões como "negro", "negrão", "crioulo", "colored" e tantas outras como forma carinhosa de referir-se aos amigos negros. Nilton Silva Júnior, era, parafraseando o que Vinicius de Moraes falou de Ciro Monteiro, um só abraço em toda a humanidade. O seu irretocável caráter, a sua personalidade invulgar, o seu extraordinário carisma, a sua marcante simpatia e amabilidade fizeram-no verdadeiramente amado por todos os que o conheceram. Transformava-se em amigo do mero conhecido e amigo também seria dos seus inimigos, caso os tivesse tido. Orador primoroso, em qualquer oportunidade em que discursasse sua fala transbordava sentimento. Havia ocasiões que não possibilitavam tais transbordamentos, em face do caráter técnico e objetivo do discurso. No entanto, nestas ocasiões, ele rapidamente assimilava as circunstâncias e as reproduzia em um quadro onde preponderava a emoção ao lado do belo e do edificante. Paradoxalmente, esse advogado primoroso, esse ser humano único, bondoso, solidário, generoso, na verdade magnânimo, parece que carregava dentro de si o germe da autodestruição. Fez mal a si e só a si. Maltratou-se profissional e pessoalmente. Era um devoto do direito de defesa, e o exercia com grande competência e eficiência. No entanto, não cuidou da sua advocacia como deveria. Descuidou também da sua saúde. Desprezou-a, não lhe deu importância. Continuou, embora já enfermo, com os seus excessos boêmios, que alimentavam o seu diabetes fatal. Foi cercado pelos esmerados cuidados de sua mulher, aliás heroína mulher, Maria Aparecida e de amigos de rara fidelidade, dentre os quais destaco a figura excepcional, ímpar do advogado João Chaquian. A trajetória de Nilton Silva Júnior nos leva à crença de que não lutou para evitar a partida, deixou-se levar sem resistir, aliás, parece ter contribuído para a prematura ida . . . Sua vocação de advogado tinha como sustentação marcas de sua própria personalidade: a bondade, a compreensão e o apreço pelo ser humano. Desprovido de uma visão maniqueísta do mundo e dos homens, como todo advogado verdadeiramente vocacionado, não julgava a conduta humana, procurava entende-la e defendia quem dele necessitasse. Participou com o extraordinário Waldir Troncoso Peres da defesa de um homem acusado de haver matado a esposa com inúmeras facadas. Consta que ambos, dias antes do júri, se isolaram no litoral para o preparo da defesa. Muitos volumes, que retratavam um dos casos mais rumorosos dos últimos tempos. Dividiram o trabalho. Cada um lia parte da prova e engendrava os respectivos argumentos defensivos. Eu tenho certeza que esse exame probatório foi rápido e não exigiu grande empenho. Não que a prova não tenha sido examinada por completo. Não. Eles a analisaram e em sua totalidade. Mas, o fizeram sem esforço, pelo menos sem o esforço que seria despendido por qualquer um de nós, advogados criminais normais, meros mortais. O estudo que fizeram deve ter sido rápido, embora não superficial. Mas, por que rápido e sem esforço? Porque ambos eram geniais e como gênios captavam e processavam as informações com estupenda facilidade. Obtiveram êxito. Caso repleto de conteúdo humano, eles conseguiram desvendar os mistérios da alma dos seus protagonistas. Deram à prova oral, colhida perante os juízes de fato, uma interpretação que transcendeu os limites estreitos do fato criminoso e penetraram na estrutura psicológica do acusado, no seu atormentado espírito. Lograram transmitir aos jurados as íntimas e recônditas razões do acusado, surgidas em face de circunstâncias impostas pela vida em comum. Nilton e Waldir possuíam inúmeras semelhanças profissionais. A oratória, a facilidade em interpretar e expor a prova, a idolatria pela liberdade e pelo direito de defesa, a coragem de arrostar a incompreensão pública nos casos de grande repercussão, o desprendimento material. Ambos esmiuçavam os aspectos psicológicos, intimistas e emocionais da conduta delitiva, aprofundando-se nos do motivo do crime. Esse aspecto, no entanto, apresentava uma diferença entre os dois. Enquanto Waldir possuía um sólido embasamento doutrinário, voltado para o conhecimento da mente e da alma humana, Nilton desvendava o íntimo dos protagonistas da cena delituosa com base na sua extraordinária intuição. Embora fosse portador de vasta cultura humanística, seu conhecimento do homem era intuitivo, haurido de uma vida vivida com intensidade, livre de preconceitos e de limitações. Nilton Silva Júnior, uma vocação extraordinária de advogado, possuidor de raro encanto pessoal, acima de tudo um ser primoroso no relacionamento pessoal, talvez tenha sido o mais gentil, generoso, solidário e simpático dentre todos os advogados que brilharam no Fórum Criminal naqueles tempos.
segunda-feira, 23 de abril de 2012

Um fidalgo da advocacia

Talvez Henrique Vainer tenha sido o único advogado criminal de sua geração que jamais assumiu a Tribuna do Júri. Nessa época, a instituição era a vitrine para todos os que defendiam a liberdade, e ele jamais a visitou. E não o fez, não porque não acreditasse no Tribunal Popular. Lá não advogou por excessiva humildade, exagerado senso de responsabilidade e autocrítica exacerbada. Entendia não reunir os predicados necessários para enfrentar as agruras do Júri. Não se considerava, inclusive, um bom orador. Pois bem, mesmo sem advogar no Júri, Vainer figura na seleta galeria dos grandes advogados criminais do país. Quando veio do Rio de Janeiro, onde se formou em 1941, para São Paulo, passou a advogar na área cível. Mas, por pouco tempo, pois logo se dedicou à advocacia criminal, sua genuína vocação. No início da década de cinquenta, a defesa dos italianos Comeli e Malavesi, acusados de sequestrarem o filho do Conde Matarazzo, já revelava o advogado destemido, combativo e extremamente competente. Seu trabalho em prol da permanência de Malavesi em nosso país, por ter um filho brasileiro, tornou-se referência para a jurisprudência e posteriormente inspirou lei sobre a matéria. Sua atuação era marcada por extremados cuidados e preciosismos raramente vistos em outros colegas. Em relação ao cliente, não se limitava ao cumprimento do dever, orientava, encaminhava e o acompanhava, mesmo que já defendido. Sentia-se como que responsável pelo seu destino. Sua atuação extrapolava os limites do exercício profissional. Exercia a advocacia e ao mesmo tempo exercitava o humanismo. Lhano no trato, a sua cortesia não era apenas fruto de sua fina educação. Representava um profundo respeito pelo semelhante, que não raras vezes transformava-se em eloquente demonstração de amor ao próximo. Fui seu companheiro no conselho Penitenciário do Estado de São Paulo e lá testemunhei a grandeza de seu espírito e toda a bondade do seu coração, por meio de votos repassados de compreensão humana e inabalável fé na recuperação do sentenciado. Ao lado do meticuloso cuidado com que elaborava as suas peças processuais, Vainer se esmerava na manutenção da pureza ética no exercício da profissão. Contou-me o seu grande e inseparável amigo e companheiro de escritório, Silvestre Garreta Prates, que em certa ocasião, após concluir pela inviabilidade da revisão criminal de certo processo, não cedeu aos insistentes aspectos dos pais do condenado, que usaram como último argumento uma mala repleta de dinheiro, colocada e aberta à sua frente. Em outra oportunidade indignou-se com um rico industrial que lhe ofereceu polpuda quantia para assumir a sua defesa, em processo que tramitava por uma determinada Vara, cujo titular era seu fraterno amigo. E a razão da contratação, segundo soube, era exatamente tal circunstância. Henrique Vainer pertenceu a uma notável geração de advogados paulistas, pertencentes a várias áreas de atuação: Rogê de Carvalho Mange; Theotonio Negrão; Geraldo Conceição Ferrari; Raimundo Paschoal Barbosa; Waldir Troncoso Peres; Cássio da Costa Carvalho; Elcio Silva; Rio Branco Paranhos; João Baptista Prado Rossi; Rui Homem de Mello Lacerda;Waldemar Mariz de Oliveira Júnior; Alexandre Thiollier; Sebastião Carneiro Giraldes e tantos outros, que além de extraordinários advogados, tornaram-se porta-vozes dos interesses da advocacia e com notável abnegação e espírito de sacrifício, raros nos dias de hoje, deram vida, alma e perenidade aos órgãos de classe, aos quais pertenceram. Henrique Vainer possuia tão refinada educação, que após assistir ao julgamento de um caso do seu interesse, esperava mais um ou dois outros antes de retirar-se da sala de sessão. Entendia indevida e indelicada a sua imediata saída. Possuía hábitos que infelizmente não mais se coadunam com os pouco gentis e açodados tempos modernos. O meu preito de saudade a um advogado especial, diferenciado, diria um homem da renascença, pela sua fidalguia, sensibilidade e refinamento. Uma ave rara.
segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um advogado destemido

Kleber Menezes Doria não aceitava ser qualificado como criminalista. Dizia ser uma expressão imprópria para designar o advogado criminal. Criminalista, segundo dizia, não seria o advogado, mas sim aquele que estudaria o fenômeno criminal, como historiador, pesquisador ou mesmo perito. Kleber foi uma das figuras mais expressivas da advocacia criminal de São Paulo. Inteligente, culto, conhecedor como poucos do Direito Penal e Processual Penal, com sua forte personalidade marcou quem o conheceu. Temperamento irascível, de uma franqueza por vezes assustadora, não escondia as suas antipatias e idiossincrasias pessoais. Nós nos reuníamos, todos os dias, na lendária "Praça da Alegria", um banco localizado no segundo andar do Palácio da Justiça. Sempre que por lá passava conhecida figura dos meios forenses, carecedor de bom conceito, Kleber, em alto e bom som gritava "mãos na carteira". Nós, também, invariavelmente, colocávamo-nos de costas, meio que constrangidos, mas orgulhosos do amigo corajoso, por vezes inoportuno e inconveniente, mas sempre autêntico e veraz. Também demonstrava de forma desabrida a sua indignação em relação à arrogância, à soberba, menos comuns naqueles tempos do que hoje, mas já existentes. Certa ocasião, um seu colega de turma tornou-se juiz de Direito. Na primeira vez que o encontrou, após o concurso, Kleber chamou-o pelo apelido que o identificava desde os bancos escolares: "Mato Grosso", pois o novo magistrado era natural daquele Estado. Ao ouvir a alcunha, ele dirigiu-se a Kleber, orgulhoso de sua nova condição e disse: "Não me chame mais de Mato Grosso, pois agora sou juiz". Ah, péssima advertência. Inadequada e incabível por si só, mas que adquiriu um caráter de verdadeiro bumerangue pois feita para a pessoa errada ou para a pessoa certa, dependendo da ótica. A partir desse dia, quem no Fórum não conhecia a alcunha do importante magistrado, passou a conhece-la, pois toda vez que um passava pelo outro Kleber a proclamava e difundia. Estigmatizado por graves infortúnios, a sua vida não transcorreu como ele a desejou e idealizou. Amargou desacertos e arrependimentos, mas jamais deixou de ser fiel a si mesmo. Aliás, também fidelidade para com os seus amigos foi uma constante em sua trajetória. Com a mesma veemência que lançava críticas, por vezes ácidas e até desproporcionais, sendo implacável com o que e com quem lhe parecia incorreto, se desdobrava em atenções, carinho e intransigente defesa daquilo que acreditava e daqueles que lhe eram caros. Kleber disputou com Anacleto Raposo Holanda, advogado da sua geração, que se notabilizou por condutas extravagantes, folclóricas e hilariantes, a proeza de eu ter sido colocado na geladeira do Centro Acadêmico 11 de Agosto. Explico, certo dia papai levou-me ao "Onze". Eu era de colo. Assim que chegamos os seus colegas, entretidos com atividades dignificantes, tais como jogo de dados, sinuca e carteado, pararam para recepcionar-nos. Segundo consta, papai cioso do espírito paternal de seus colegas deixou que me pegassem, e lá fiquei eu passando de colo em colo. Reapareci em seguida, no colo do Chico Elefante, proprietário do bar do Centro. Segundo ele, eu fui retirado da geladeira, onde por frações de segundos fiquei, pois fora colocado por um estudante, que, possivelmente, penalizado com o calor que eu sentia, quis refrescar-me. A identidade do autor da façanha jamais foi revelada, pois Kleber e Anacleto se foram. Durante anos, um acusava o outro de haver indevidamente usurpado o memorável feito. No elenco de grandes advogados criminais que conheci, quando comecei a advogar, e que já não mais estão entre nós, Kleber não pode ser olvidado. O seu comportamento por muitos criticado não superava as suas qualidades de homem e de profissional. Acreditava nos valores que informam a nossa profissão. Tinha verdadeira veneração pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O espírito das Arcadas estava não só impregnado em seu interior como ele o propagava, fazendo verdadeira profissão de fé nos princípios que o compõe, ligados ao humanismo, à liberdade, à democracia e à justiça.
segunda-feira, 26 de março de 2012

Um paradigma de honradez e retidão

A lembrança de Raimundo Paschoal Barbosa vem acompanhada de uma imensa saudade, daquelas que nos dominam como um forte e apertado abraço. Mas, não se pense tratar-se da saudade que causa amargor, inconformismo e incontrolável tristeza. Ao contrário, ela é como um afago, um bálsamo, um acalento. A sua ida, nos últimos tempos, passou a ser esperada em razão de sua debilitada saúde, mas quando ocorreu foi profundamente lastimada e sentida. Hoje, quando penso em Paschoal me alegro. Sua lembrança se reflete em um instantâneo sorriso. É o sorriso das boas e suaves lembranças. Raimundo e eu conversávamos umas três vezes por semana. E ele me chamava de "macaco". Tenho esclarecido que esse não é um apelido fruto de merecimento. Ele foi herdado de meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, seu amigo fraterno. A irreverência de ambos me leva a imaginar o que não estarão fazendo no local em que estiverem. Eu não sei onde estão, mas onde estiverem estarão juntos. Nossas constantes conversas telefônicas amenizavam o árido cotidiano da advocacia. Falávamos amenidades. Ele sempre tinha uma história da profissão para contar. E, como eram agradáveis, engraçadas e inteligentes as suas narrativas. Episódios de sua rica trajetória de vida nunca faltaram. Nesses diálogos a ironia e o humor inteligentes sempre estavam presentes, marcados pelo seu gostoso sotaque nordestino. Histórias da sua participação na 2ª. guerra mundial eram contadas com entusiasmo e indisfarçável orgulho por haver integrado a Força Expedicionária Brasileira. Episódios da sua estada na Itália faziam-me recordar daqueles contados por meu pai, só que estes eram imaginários, pois papai jamais participara da guerra, jamais fora pracinha. Narrava a sua "atuação" nas tomadas de Monte Castelo e de Monte Cassino, com tantos detalhes e realismo que mesmo sabendo ser pura invenção nós todos gostávamos de ouvi-lo. O Ceará de sua época, suas experiências como jornalista - começou como faxineiro de redação - a forte personalidade de sua mãe, sua militância comunista, eram outros temas de sua predileção. É interessante notar que mesmo mantendo as características do homem do nordeste, simbolizadas por seu forte sotaque, assimilou o modo de ser do povo paulista e o ostentava com indisfarçável orgulho. Poucos amaram a advocacia como Raimundo a amou. Passou a simbolizar a figura do verdadeiro advogado criminal. Era um devoto da sagrada missão de defender. Sua retidão ética, seu destemor em face da tentativa de violação de nossas prerrogativas, sua altivez em face da prepotência e do arbítrio, a sua proverbial atenção aos advogados mais jovens transformaram-no em verdadeiro ícone da advocacia criminal, paradigma de honradez e retidão. No quadrilátero da Praça João Mendes, ou será retângulo, não importa, exercia o poder de império sobre todos nós, jovens advogados. E, os antigos também aceitavam gostosamente o seu jugo. Sem nenhuma propensão para o autoritarismo ou para o mando, muito ao contrário, pois era um libertário, nesse espaço exercia o seu reinado, que tinha como origem um direito divino, tal o dos antigos monarcas. Era natural, transcendia a sua vontade, eram os seus súditos que se submetiam à sua dominação. Mesmo após haver saído da Liberdade, ido para a Cardeal Arco Verde, ele diariamente ia inspecionar os seus domínios territoriais. E, ai passava na Ordem, na nossa "Praça da Alegria" no Palácio da Justiça, em algum escritório, mas especialmente se postava em alguma esquina sempre cercado, jamais o vi só, para cumprir um ritual que se tornou indispensável, o de contar "causos" e casos, fazer blague, aconselhar, opinar, gozar, ironizar, enfim derramar toda a sua cultura, toda a sua sabedoria de vida e em especial toda a sua infindável devoção e todo o seu amor à advocacia, para deleite e enriquecimento de todos os que, embasbacados, o ouvíamos com a reverência devida aos grandes homens. Há um episódio notável, talvez já notório, mas que deve ser repetido à exaustão como exemplo da sua índole e da grandeza humana de Paschoal. Ele perdeu sua mulher, Dna. Cecília, vítima de um latrocínio, em 1984. Ligado a ela por laços de amor e de uma absoluta e não disfarçada dependência, jamais superou a sua perda. Por vezes, e não foram poucas, dizia-me ser a viuvez um estado que beirava o insuportável. Pois bem, no velório de Dna. Cecília um delegado comunicou-lhe que dois suspeitos haviam sido presos. O grande advogado o idólatra da liberdade, não titubeou e disse "Doutor, solta os presos, pois suspeito não se prende, apenas se interroga". Esse operário da advocacia, braçal da profissão, como gostava de se auto denominar, está fazendo extraordinária falta a todos nós, velhos e novos advogados criminais. Paschoal Barbosa possuía uma crença fervorosa na advocacia, como instrumento de modificação da realidade. Parafraseando Rene Dotti ele tinha um inquebrantável compromisso com "a realidade existencial da prática nas defesas penais". Entendia o advogado como figura imprescindível à construção de um mundo melhor. Aliás, parece que essa visão instrumentária da advocacia, que se estende à própria Ordem, é característica de todo advogado verdadeiramente vocacionado, ardoroso crente da imprescindibilidade da profissão como fator decisivo na construção de um mundo melhor. Não me refiro, evidentemente, à advocacia ou à Ordem utilizadas como meio de projeção pessoal ou como instrumento para o alcance de outros objetivos, diversos daqueles que lhe são naturais. Objetivos, alguns deles até inconfessáveis. A visão dos grandes advogados, que colocam a profissão e a sua entidade mãe a serviço de valores que transcendem os seus próprios limites, é, para uns, quixotesca, para outros utópica, ilusórias, desprovida de pragmatismos e senso da realidade. É, pode ser, mas foi ela quem sustentou e sustenta a advocacia, nos momentos em que o autoritarismo político ou social pôs em risco a sua própria sobrevivência. Foi esta mesma visão que levou o advogado a ser o arauto da liberdade e da democracia, em inúmeros episódios da nossa história. E, para não dizer mais, foi esta visão que evitou o cometimento de injustiças contra acusados lançados à execração e ao linchamento públicos. Poucos, como Raimundo acreditaram e cumpriram esse ideário sagrado, que deveria ser retomado por todos aqueles que advogam e especialmente por aqueles que pretendem ocupar os postos de comando na OAB. Tal como ele o fez deverão servir a entidade e à classe com abnegação, desprendimento e devoção aos ideais da advocacia.
segunda-feira, 12 de março de 2012

O feminismo de uma não feminista

Seu destino estava traçado desde a infância. No curso de sua vida iria percorrer caminhos até então intransitáveis para as mulheres. Com efeito, abriria horizontes, desbravaria trilhas, venceria obstáculos e derrotaria preconceitos. Transformaria o que não passava de utopias em sonhos e esses em realizações concretas. Esther de Figueiredo Ferraz foi sem dúvida uma das figuras mais importantes da recente história do país. Deu inestimável contribuição à Justiça como advogada e à educação como professora. Contou-me ter se autoalfabetizado. Morava na cidade de Mococa e diariamente separava as vogais das consoantes estampadas nas matérias do jornal "O Estado de São Paulo" e dessa maneira formava os nomes de familiares e de objetos. Quando recebeu a primeira cartilha já sabia ler. Ainda muito jovem mostrou coragem, destemor e pertinácia. Assim, conseguiu libertar-se dos grilhões de uma sociedade patriarcal e preconceituosa e pode construir o seu futuro, aliás um futuro inatingível para a maioria das mulheres. Esther foi pioneira porque foi livre e soube manter a sua liberdade e a sua integridade. Cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por si só, já foi uma façanha notável. Segundo contou, ela prestou vestibular à revelia de seu pai. À época pouquíssimas mulheres cursavam o ensino superior. Ela foi pioneira na advocacia, tendo escolhido uma área então considerada incompatível com a condição feminina: a criminal. Sua estreia no Tribunal do Júri, aliás a primeira mulher a atuar no Tribunal Popular, ganhou grande e favorável repercussão. Formada em 1944, em pouco tempo passou a ser reconhecida no universo da profissão, diga-se um universo exclusivamente masculino, como excelente advogada, tendo sido eleita para o Conselho da OAB de São Paulo. Novamente pioneira, pois foi a primeira mulher a ter assento na instituição. Esther não se limitou a advogar na área penal. Preocupou-se em vasculhar e investigar todas as questões pertinentes ao fenômeno criminal e ao homem criminoso. Nesse mister ela não teve receio em enfrentar temas áridos, alguns inéditos e outros voltados para a condição feminina. Assim, abordou a prostituição, o lenocínio, a criminalidade infantil, o sistema penitenciário e a mulher presidiária. Na área da educação igualmente foi percussora. Foi a mulher que pela vez primeira ocupou um Ministério, o da Educação. Essa primazia repetiu-se no Magistério. Jamais uma mulher havia prestado concurso à livre docência no Largo de São Francisco. Foi aprovada com distinção. Consta que um dos catedráticos recusou-se a participar da banca examinadora, pois não admitia uma mulher na Congregação da Velha Academia. Anos depois, ao ser indagado sobre o porquê de sua objeção, o professor respondeu ter tido um acesso de burrice na ocasião. Lembre-se, ainda, que Esther foi reitora da Universidade Mackensie, Secretária de Educação de São Paulo e integrante dos Conselhos Estadual e Federal de Educação. Impressionava, sobremodo, a sua inteligência. Uma inteligência culta, ao mesmo tempo ágil, pragmática, sintonizada com a realidade e pronta a aplicar conceitos teóricos a problemas específicos a serem resolvidos. Merece realce a sua grande capacidade de entender às céleres mutações ocorridas durante a sua trajetória de vida. Sem abdicar de seus valores e de seus princípios, jamais a vi criticando os tempos atuais e louvando épocas passadas, como uma empedernida saudosista. Soube viver o seu tempo e ajudou-o a melhorar. Não ficou presa ao passado, mas também não se escravizou aos modelos e estereótipos da modernidade. Continuou a ser livre. O humanismo foi também uma outra característica do seu pensamento e da sua conduta. Procurou compreender o homem em sua dimensão global, com suas misérias e grandezas. Estudiosa do penitenciarismo, via na pena um meio de socialização do detento, sendo que sem esse escopo a punição se transformaria em instrumento de vingança. Defendeu com ardor a criação de escolas internatos para os menores infratores, tendo por objetivo efetivamente prepará-los, sob os mais variados aspectos, especialmente suprindo-lhes as carências, para tornarem-se cidadãos úteis e prestantes. Uma outra maravilhosa qualidade de Esther foi a de fazer e saber cultivar amizades. Ao deixar o Conselho Federal de Educação afirmou que a árvore de sua vida foi sempre alimentada pela seiva vinda de seus amigos. Em uma entrevista ao jornalista Gaudêncio Torquato para o Jornal do Advogado, em 2001, em comovente reflexão, respondeu que se sentia uma mulher realizada, embora Deus não lhe tivesse dado tudo, pois "gostaria de ter casado". No entanto, disse ela, "não faço disso uma tragédia. Substitui pelo sentimento da amizade". E, arrematou afirmando ser a amizade "a mais elevada de todas as emoções humanas, porque ela é gratuita. Ao passo que o amor é interesseiro no sentido de que ele dá e quer receber. Tenho uma legião de amigos e isso me conforta". Conviver com pessoas, compreendê-las, ampará-las, ajudá-las, talvez tenha sido a mais bela página da admirável obra que foi a sua vida. Esta obra foi marcada por um humanismo excepcional, que a fez trilhar caminhos penosos, inóspitos, ainda impenetráveis para as mulheres, com arrojo, coragem e decisão. Foi verdadeiramente uma pioneira do feminismo pátrio, sem jamais adotar posições excludentes ou antagônicas em relação ao mundo masculino, predominante à época.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O advogado da liberdade

Esta é a segunda vez que escrevo sobre Waldir Troncoso Peres. A primeira foi a convite da Associação dos Advogados de São Paulo, logo após o seu falecimento. Certos fatos narrados são repetidos. Algumas observações sobre sua personalidade e caráter também, no entanto haverá nesse escrito considerações não feitas anteriormente. Embora falecido há aproximadamente três anos, sua presença é permanente. Fala-se dele, passagens de sua rica vida são recordadas, seus históricos júris são até hoje comentados, enfim a sua lembrança assalta o espírito de todos aqueles que, como eu, nutrem uma imorredoura estima pela sua estupenda figura de homem e de advogado. Desta forma, inesgotável é o rol de registros pertinentes ao seu modo de ser, às suas ideias, às suas manifestações, ao seu peculiar e encantador gestual, enfim à sua existência. Nascido em uma fazenda do interior de São Paulo, na cidade de Vargem Grande, manteve até o final de seus dias uma comovente simplicidade, a simplicidade do homem ligado à terra e criado sem limites espaciais, sem os freios da civilização urbana. Deixou livremente aflorar, e manteve intacto, autêntico, o seu eu vigoroso, real, desprovido de adulterações, reservas, maquiagens. Jamais exerceu papéis, pois sempre foi personagem de si mesmo. Soube manter-se livre, podendo assim, ser fiel à sua essência. Com 16 anos veio para São Paulo. Morou em pensão. Ingressou no Largo de São Francisco. Foi orador do Centro Acadêmico Onze de Agosto, o primeiro, na histórica instituição que, ao ser eleito, não cursava o quinto ano. Combateu a ditadura Vargas, foi preso. Perdeu a liberdade lutando por ela. Meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, seu colega da turma de 1946, igualmente amargou o cárcere pela mesma razão. Trabalhou no escritório de Luiz Carlos Pujol e Emílio Carlos. Posteriormente, montou seu próprio escritório com Nicolau Chacur, posteriormente Wadi Helou passou a integrá-lo. Cedo, Waldir teve despertado em si o interesse pela advocacia criminal. Não há nenhuma dificuldade em buscar a razão de sua opção. A liberdade, como desiderato maior da advocacia criminal e o homem como matéria prima do nosso trabalho, o conduziram para o "crime" na forma de um chamamento coerente com as suas aspirações existências: a preocupação pelo homem e o apreço pela liberdade. Waldir, tal como os advogados criminais de sua geração, sempre encarou a advocacia como verdadeiro sacerdócio, mercê da necessidade de compreensão da alma humana e do alto grau de abnegação e de renúncia impostos ao advogado. Igualmente, atendeu à perfeição duas outras características da advocacia penal: ela é uma ciência, pela gama de conhecimentos, de pesquisa e de especulação que exige. Ademais, é arte em razão do acentuado grau de criatividade e de beleza estética - palavra escrita ou falada - que a envolve. Ninguém rigorosamente ninguém, sem demérito para os extraordinários oradores do fórum, ou fora dele, que conheci e que conheço, superaram o Espanhol como orador. Foi um artista da palavra e seu cultor, seu reverente cultor. Como alguém já teria dito, nunca se soube se ele pensava primeiro e falava depois, ou ao contrário se sua verve antecedia os seus pensamentos. Era um turbilhão, uma cascata, um dique que se rompia, com inteligência, propriedade e coerência. Dizer que Waldir foi um cientista, no sentido do pesquisador, é distorcer a realidade. Não foi um advogado dedicado a grandes especulações intelectuais em torno do Direito. Conhecia com solidez todos os institutos do Direito Penal relacionados ao direito de defesa. Com grande proficiência adaptava as dirimentes, excludentes, causas de diminuição de pena, inexigibilidade de conduta diversa, e outros institutos, aos fatos e circunstâncias que compunham a conduta delituosa de seu defendido. No entanto, um setor no qual era imbatível, e ai, pode-se dizer ter sido um cientista no sentido amplo do termo, é o referente ao homem e à sua alma. Possuía uma insuperável necessidade, verdadeiramente existencial, que chegava às raias da angústia, em desvendar, dissecar, esmiuçar, a mente e a alma, o pensar e o sentir do homem. Toda a defesa por si produzida, escrita ou oral, no júri ou fora dele, sempre se fez acompanhar por uma percuciente análise comportamental do acusado e dos demais protagonistas do processo, bem como dos motivos que o levaram ao crime. O homem sempre atraiu as atenções prioritárias de Waldir Troncoso Peres, como advogado e como cidadão. Tornou-se um invulgar advogado exatamente porque sempre soube ser compreensivo e mais do que isso complacente com as mazelas humanas. Passou a entender o homem com suas grandezas e misérias. Longe das posições maniqueístas, as suas opiniões sobre o homem e sobre o seu comportamento e sobre a vida em geral, sempre levaram em conta o verso e o reverso da moeda. Jamais as suas apreciações isolaram o bem do mal, o certo do errado, o feio do belo, o justo do injusto. Os extremos sempre se conciliaram nos seus juízos de valor. Porém, nunca transigiu com um valor que constituiu a razão maior de sua existência: a liberdade. Em matéria de liberdade jamais admitiu o outro lado, a existência do reverso. Jamais aceitou meio termo ou conciliação com qualquer circunstância que a ela se opusesse. Perseguiu a liberdade como valor máximo do homem. Waldir, em certa ocasião, assumiu a defesa de policias acusados de pertencerem ao chamado "esquadrão da morte". Mais uma vez, dentre as inúmeras em sua vida profissional, foi o porta-voz dos direitos e das garantias constitucionais de acusados colocados à execração pública. Mais uma vez encarnou a figura do advogado pleno. Arrostou a histórica incompreensão que acompanha a advocacia criminal. Com efeito, especialmente nos casos de ampla divulgação e de grande repercussão o advogado é confundido com o acusado. É visto como apologista do crime cometido e não como defensor dos direitos do acusado. Há uma resistência, verdadeira irresignação, quanto ao exercício da defesa. Querem condenação sem processo e punição sem julgamento. Querem vingança. Em um ano no qual novas eleições para o Conselho Seccional da Ordem terão lugar é oportuno repetir uma passagem que já mencionei no escrito para a Revista da AASP. Procurado pelos componentes do Grupo Tempos Novos, criado por mim em 1986, para ser candidato à presidência, nas eleições que se travariam em 1990, Waldir assentiu e o fez com grande entusiasmo. Pareceu-lhe uma excepcional oportunidade para divulgar as suas ideias e propagar os seus ideais, como advogado e como cidadão prestante. Entendeu mesmo ser uma missão irrecusável. Por outro lado, a sua disposição de concorrer e a sua eventual vitória teriam um inestimável valor simbólico e exemplar, como excepcional fator de valorização profissional, da qual a advocacia, já em crise, muito carecia. Saliente-se que nós procuramos Waldir, quase que implorando, para que aceitasse a candidatura, sem que ele a procurasse. Já estava distante da política de classe. Recebeu o convite como uma honraria, qual seja a de poder servir a advocacia. E, o procuramos, não primordialmente porque poderia ganhar as eleições e com ele o nosso grupo. Não, tivemos como preocupação primeira escolher um nome que pudesse representar o nosso ideário, as nossas propostas de valorização profissional a nossa luta enfim pelo engrandecimento da advocacia, que vínhamos empreendendo nas duas gestões anteriores. Não queríamos um nome qualquer, uma chapa qualquer e nem desejamos celebrar acordos com quaisquer grupos, por mais viáveis eleitoralmente que fossem. Vencer seria e é importante. No entanto, ser coerente leal e fiel com princípios e com ideais supera a vitória, que a qualquer preço é aviltante pois desprovida de coerência e de honestidade. E Waldir, por sua vez, não tinha em mente vencer as eleições para ostentar o título de presidente, pura e simplesmente. Queria servir, contribuir para o aprimoramento das instituições, ajudar a restituir ao advogado o respeito social, o acatamento e o reconhecimento de seu valor e de sua imprescindibilidade. Waldir acreditava, tal como todos nós, na advocacia como instrumento eficaz para a construção de um Brasil melhor. Para ele o relevante seria a Ordem e não o cargo. É, naqueles tempos, se pensava dessa forma. Espero que volte a ser assim. Espero que voltemos a ver a Ordem como instituição plenamente habilitada a ser a porta-voz dos anseios e das aspirações da advocacia, pois o cumprimento desse objetivo é a única razão que justifica as candidaturas para os seus postos de comando. Com toda a certeza os rumos da OAB/SP e os da própria advocacia teriam sido alterados e possivelmente não estaríamos assistindo à crise que tanto nos amargura, caso Waldir não houvesse desistido de ser candidato. Justificativas estritamente pessoais levaram-no a desistir. Todos lamentaram, mas entenderam as suas superiores razões. Seus motivos foram expostos em um comovente discurso proferido na Câmara Municipal de São Paulo, perante o grupo, advogados do interior e da capital, reunidos a seu pedido. Nessa oportunidade Waldir fez uma extraordinária e belíssima profissão de fé na advocacia. Expôs um dilema que o assaltou certa ocasião. O dilema da opção entre legítimos interesses materiais e o dever do advogado de exercer o direto de defesa, independente de remuneração. Em um mesmo caso, ele foi procurado simultaneamente para ser assistente da acusação, remunerado com sedutores honorários e para defender o réu gratuitamente. Optou pela defesa. Segundo disse, preferiu "a orfandade econômica à orfandade moral que seria negar a minha vocação, e a forma de ser, o meu contorno psicológico, o meu modelo espiritual, a minha interioridade". Completou afirmando "Sempre corri atrás da vida, como fundamento e essência, e não atrás de negócios". Nos dias de hoje, quando se prioriza o ganho, o ter, o bem material a sua lição é preciosa, embora possa parecer anacrônica, utópica, mera ficção. É fundamental, no entanto, que ela seja divulgada e repetida à exaustão. Talvez possa ela sensibilizar aqueles que se olvidam com facilidade dos valores intrínsecos à advocacia, e à própria vida, como a verdade, a amizade, a solidariedade e a lealdade. Deve-se, pois, ter presente que, tal como ensinava Waldir, o valor superior da existência é a própria vida em sua abrangência e inteireza e não apenas um único dos seus aspectos que é o negocial. Agora que Waldir se foi, deveremos reverenciar a sua memória. No entanto, não basta lembrá-lo, escrever e falar sobre ele. É preciso perseguir e seguir os seus exemplos. Divulgar os seus pensamentos. Adotar os seus posicionamentos na profissão e na vida, ser fiel aos seus ideais.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Conflito internacional no Guarujá

O local era e é paradisíaco. Situado no morro da Guaiuba no Guarujá, o Edifício Farol Branco tem uma vista deslumbrante. Talvez seja o prédio melhor situado de toda a ilha. Fica em uma península de onde se descortina o mar com horizontes determinados pelo alcance da vista. À época o edifício era isolado, não havia nenhuma construção ao seu redor. Ademais, e esta era uma característica muito peculiar em se tratando de prédios do litoral: ele só era habitado por dois casais, ocupantes dos dois únicos apartamentos existentes. Um de nacionalidade alemã e outro de origem suíça. As funções de síndico eram exercidas alternadamente, ora por um ora por outro condômino, o alemão e o suíço. É óbvio que para construírem em conjunto e habitarem o mesmo prédio, deveria haver entre eles fortes laços de afinidade e de amizade. Durante algum tempo após a construção do prédio, o convívio foi fraterno e harmonioso. No entanto, não demorou e o relacionamento entre as duas famílias passou a sofrer abalos, em razão de provocações constantes e recíprocas das mais variadas espécies. Os atritos ocorriam em regra nas áreas comuns do edifício, compostas por uma piscina, um terraço coberto, uma churrasqueira e uma sauna. Os motivos das desavenças eram em regra banais e baseadas em pretextos, os mais insignificantes. Eram implicâncias recíprocas que conduziam a ofensas verbais e até o início de agressão física. Ações penais e civis recíprocas foram propostas. Recursos e habeas corpus movimentaram os Tribunais que decidiram questões pertinentes à honra, indenizações, e exercício arbitrário das próprias razões. Também agressão física fez parte das desavenças entre os casais. No deck da piscina, o suíço varão deu um tapa no rosto germânico, chamando-o de canalha, vagabundo e sem vergonha. Em seguida, passou a pular e a bater no peito, imitando um gorila. Essa grotesca imitação provocou pronta reação por parte daquele que servira como modelo para a literal macaquice. A revolta do casal alemão também era de ordem estética, direcionada à senhora suíça, que segundo o casal exibia a sua acintosa feiura quando se apresentava com um biquíni sumário, no deck. No entanto, os litígios encobriam na realidade, além de profundas divergências, magoas e ressentimentos, a honra e a dignidade das Nações por eles representadas. Como pano de fundo, pois, de todas as altercações, estava verdadeiramente o orgulho nacional de cada um deles. O problema assumiu foros de questão internacional, envolvendo as duas Nações, Alemanha e Suíça, quando o casal suíço preparou uma recepção para diplomatas e representantes da marinha de seu país. Como ensaio para a recepção houve o hasteamento da bandeira suíça, assim como foi tocado o respectivo hino nacional. O hino foi executado várias vezes, e a bandeira ocupava considerável área que seria comum. Como previsível, os preparativos para a festa cívica irritaram o casal alemão. Primeira providência adotada foi hastear a bandeira germânica, posta em altura superior ao estandarte suíço. Claro que o hino alemão foi tocado e o foi, em alto e bom som. Mas a provocação mais agressiva veio quando o senhor alemão arrancou a bandeira suíça do mastro e nela pisou e sapateou. Depois de encerradas as demandas na área penal, eu não tive mais notícias dos protagonistas de uma verdadeira questão internacional ocorrida em terras ou melhor em praias brasileiras, envolvendo representantes, embora não oficiais, mas aguerridos e patrióticos representantes de duas Nações que quase tiveram suas relações estremecidas pelo patriotismo quase fundamentalista de ambos.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Memórias de um craque

Por vezes eu conseguia ser escalado porque fornecia a bola. Isso ocorria nos meses de junho e dezembro quando e se no meu aniversário ou no Natal eu ganhava a dita cuja. No entanto, mesmo disponibilizando-a, a minha escalação não era garantida, caso alguém mais houvesse sido agraciado com uma outra bola. Quando o jogo era entre nós mesmos, fato corriqueiro, eu tinha lugar certo em um dos times. O critério de escolha era o par ou ímpar. Eu sempre era escolhido por último e não raras vezes integrava o time que teria um a mais, quando o número de jogadores era ímpar. Tal fato significava que o time que contasse com o meu valioso concurso, na verdade tal como o outro, possuía número par de jogadores... Minha posição em campo? Nunca me preocupei com esse detalhe. Estava sempre onde o time necessitasse que eu estivesse, geralmente longe da bola... Embora eclético, pronto para servir em qualquer posição, eu tinha uma preferência pela defesa, especialmente pela lateral direita. Hoje eu seria um ala, daqueles que ajudam o ataque como ponta. Naquele tempo eu era mesmo um beque. Foi nessa posição que enfrentei o Uruguai em 1970. Não se pense que por ter sido um sonho, o meu desgaste físico e emocional foram pequenos. Não, basta dizer que acordei suado e com dores no corpo. A compensação foi a nossa estupenda vitória. Em outra memorável ocasião também atuei pela lateral direita. Foi no disputado jogo entre calouros e veteranos, travado em 1965 na Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Nessa partida, que marcou época na Faculdade da rua Monte Alegre, não pela técnica, mas pelo ímpeto físico e pela disposição etílica dos contendores, meu medíocre desempenho futebolístico, quanto a minha indumentária. Nós os calouros, envergávamos o glorioso uniforme da PUC. Camisas com listras pretas, brancas e vermelhas, com fundo branco, parecida com a antiga camisa da hoje inexistente seleção paulista de futebol. Meias e calções brancos. O traje portanto era padronizado, uniforme, comum a todos os jogadores. No entanto, eu chamei a atenção especialmente a de meu pai, que como professor da Faculdade assistia entusiasticamente a exibição do filho, rodeado, como sempre, por seus alunos. Seu entusiasmo foi efêmero. Rapidamente transformou-se em constrangimento, quase vergonha. Ao ver-me, verificou que avançava perna abaixo, uma vistosa e chamativa cueca, bem mais cumprida do que o calção, ultrapassando-o de muito. Naquela época, estavam na moda, as chamadas cuecas samba canção. E, como eu sempre fui da moda, também naquele dia trajava uma. Várias foram as equipes nas quais eu atuei. As da rua Stella foram as que contaram com a minha mais eficiente contribuição. Nós da T.S. (Turma Stella), em certa ocasião fizemos uma aliança com outras turmas das redondezas e constituímos o Oasis da Vila Mariana. Nesta equipe eu tive lugar de destaque, fui massagista. Joguei, ainda, no time do 3º Tabelionato de Notas, que foi o meu primeiro emprego. A minha carreira nesse time foi curta. Quinze minutos de uma única partida. Um outro time formado no Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, onde eu advogava, contou também com a minha participação. Nesse time fazíamos laço, isso é contávamos com o concurso de outros craques estranhos aos quadros do Centro Social. Um desses jogadores emprestados foi Plínio Marcos, excelente teatrólogo, péssimo jogador. Marcou época, pelo menos nos meios jurídicos futebolísticos, um time fundado na década de setenta por amigos advogados, chamado "In Dúbio Pro Reo". E foram meus companheiros de equipe que souberam fazer justiça a mim. No final do ano, o único de existência do time, prestaram-me comovente homenagem, ao me entregarem um valioso, significantíssimo e modesta às favas, merecido troféu, denominado troféu "Encrenca"... Claro que na minha biografia o meu desempenho esportivo, especificamente futebolístico, ocupa papel de grande realce. Lamento que o reconhecimento dos meus méritos não tenha ocorrido nos momentos mesmo das minhas exibições. Mas, vá lá, por ora eu me satisfaço com o "Troféu Encrenca".
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Generosidade sírio-libanesa

Nasci em um bairro onde predominava a colônia síria-libanesa. Uma prova reside no número de clubes fundados em regra por imigrantes de determinadas regiões da Síria e do Líbano. Assim, lembro-me do Antioguina, do Homs, onde havia saudosas domingueiras dançantes do Alepo, do Rachaia. Estou excluindo o Sírio e o Monte Líbano, situados um pouco mais distantes. Em razão da convivência, algumas características desses imigrantes e de seus descendentes ficaram bem marcadas e até assimiladas por mim desde cedo. De todas, a que eu mais admirava e tenho viva na memória era a generosidade manifestada de várias formas no relacionamento interpessoal. Era um derramar de gentilezas e afagos nos carinhosos encontros que ocorriam constantemente nas vizinhanças. No entanto, a generosidade dos libaneses e dos sírios não se limitava à efusivas manifestações de afeto quando nos víamos. Havia também outros desdobramentos da amizade e do apreço. Mostravam-se extremamente solidários e prestativos quando alguém deles necessitava. A ajuda era uma constante nos seus relacionamentos e não mediam esforços para, ao que parece, retribuir de alguma forma, a acolhida dispensada pelos brasileiros aos seus antepassados. Para não cometer injustiças, mormente quando se trata de arrolar amigos queridos, dentre as figuras do meu mundo árabe, vou destacar uma excepcional senhora, que para nossa ventura encontra-se entre nós, e uma família cujos chefes já se foram, mas os filhos aqui estão dando continuidade a uma preciosa e já vetusta amizade. Falando em amizade, eu agradeço a Deus a possibilidade de haver constituído e mantido amizades que resistiram às vicissitudes da vida. Arrependo-me, no entanto, por outras que eu não consegui manter e conservar. Existiram sim, amigos que já se foram, não da vida, mas do meu rol. Culpa minha, culpa deles, não importa. Importa sim que o saldo foi positivo. Eu tenho velhos e amados amigos. E, mesmo aquelas amizades já rompidas, permanecem no rol das gratas recordações. Tenho muito orgulho em afirmar que eu e alguns amigos que possuo "nunca nos sofremos" como disse o excepcional cronista e compositor Antonio Maria. Ademais, desta feita contrariando outro festejado escritor e cronista, Nelson Rodrigues, que disse ser o amigo "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida" eu afirmo que transformei a utopia em sonho e este em realidade. Presentes nas minhas recordações e mais do que nelas, na minha alma, figuras queridas da colônia árabe - sírios e libaneses - com as quais tive a ventura de conviver. Dona Izabel Nader, hoje, desculpe-me ela a indiscrição, beirando os noventa anos, mantem a energia e o vigor da idade jovem. Ela é possuidora de excepcional memória, de uma inteligência aguda e de extraordinário senso de humor. Contadora de anedotas e fina observadora da realidade, não deixa passar incólume nenhuma situação merecedora de uma irônica ou sarcástica observação. Seu carinho por minha mãe, aliás sempre presente em vida desta, foi transferido a mim, depois que a amiga se foi. Não nos víamos fazia muitos e muitos anos. Quando assumi a presidência da OAB, em São Paulo, no dia da posse, lá estava ela na porta do Clube Paulistano, onde ocorreu a festa, acompanhada de sua neta. Foi a coroação daquele dia de grande significado para mim. Mais alguns anos sem nos ver e passamos a falar com frequência. Ofereceu-nos, a Ângela e a mim, um magnífico jantar, ao qual compareceram seus filhos e netos, dentre eles o seu filho Charles Nader, querido amigo com quem estudei no primário do Externato Paraíso. Comida árabe por ela mesma preparada. Excepcional e farta, como sempre ocorre nas mesas libanesas. Nesse dia, D. Izabel externou todo o seu afeto dedicado a minha mãe e a mim, de uma forma que só ela é capaz de fazer. Ângela e eu casamo-nos em 1970, e fomos morar em uma Vila situada na própria rua Stella, da minha infância e juventude. Duas eram as Vilas da rua Stella. Uma mais acima em frente ao Colégio Bandeirantes, e a chamada Vila de baixo, tendo o campo do Olimpicus à sua frente, em uma baixada. A casa era a de número onze. Foram dois anos, até mudarmos para um apartamento da rua Treze de Maio, no Paraíso, quase Bixiga. Dois anos felizes, porém marcados pela dureza, pelas incertezas e alguma angústia, costumeiras no início de vida dos casais. Renata, nossa primeira filha, nasceu nessa casa. Não houve nenhuma dificuldade de adaptação, pois a rua Stella era a minha rua. Assim, todos os seus moradores eram queridos amigos alguns, e velhos conhecidos outros. Na Vila todos se conheciam há muitos anos. Nossa casa ficava em baixo da de número dez, onde residia um casal ela descendente de sírios ele de libaneses, Nadine e Augusto Bucheb. Seus filhos, especialmente José Badi Bucheb (Dua) eram nossos amigos, amizade que antecedeu nossa ida para a Vila. Creio que em meados da década de cinquenta a família mudou-se para a rua Stella, e a partir dessa época solidificou-se uma amizade que perdura até os nossos dias. Houve o inevitável desfalque do casal, pois ambos já se foram. Durante esses anos, um carinho espontâneo, uma simpatia sem causa aparente, uma forte afeição vinculou todos nós aos Bucheb. O substrato dessa amizade coletiva foi a bondade de ambos, marido e mulher, herdada pelos filhos e manifestada em infindáveis ocasiões. Do Sr. Augusto ficou a figura do homem de agudo senso crítico, inteligência intuitiva muito apurada e uma peculiar graça ao comentar ou narrar fatos. Ele possuía uma especial aptidão: era exímio massagista. Na verdade, era um dom. Nasceu com intuitivo conhecimento de músculos, ossos, nervos e coisas que tais. Consta ter aperfeiçoado esse dom no clube Sírio-Libanês, onde jogou futebol. Lá observava a atuação dos massagistas e desta forma foi adquirindo e aprimorando conhecimentos. Na rua Stella, o Sr. Augusto vez ou outra cuidava dos jogadores que se contundiam nos jogos do Olimpicus e do Independente, ambos se exibiam no campo de várzea que havia na confluência das ruas Stella, Oscar Porto e Tomaz Carvalhal. Mas, não eram apenas os craques desses dois times os beneficiários de suas habilidades. Nós que praticávamos o saudoso, arriscado e romântico futebol de rua também nos tornamos seus assíduos clientes. Eu, pela falta de jeito para os esportes em razão do meu sempre avantajado corpo, me machucava, e era no pé, frequentemente destroncado, torcido ou com algum nervo lesado. Seu Augusto me socorria em sua casa, a de número 10 da vila. Recebia-me com um entre irônico e sádico sorriso. E esse sadismo, naturalmente simulado, pois ele era solidário à dor que eu sentia, ia crescendo à medida que sua mão tateava o meu pé para descobrir o lugar exato da lesão. Encontrado o local, aí, bem aí, era o ápice do sofrimento. Puxava, torcia, contorcia e punha no lugar. Às vezes bastava um único movimento, e o grito também era único. Seus instrumentos de trabalho eram uma bacia com água quente, um sabonete e, principalmente, suas enormes mãos que vigorosamente deslizavam pelo pobre pé enfermo. Como eu sabia que ele jamais cobrava pelos seus valiosos préstimos, apenas para irritá-lo e meio como vingança pelo meu sofrimento, mas já com o pé consertado eu perguntava quanto lhe devia. Imediatamente, mandava-me embora, debaixo de alguns impropérios. E eu ia mancando, mas já sarado graças à impiedosa massagem. Amigo "Rabib", como você faz falta! Desde a sua partida o meu pé nunca mais foi o mesmo... Cada gesto seu era um gesto de amor. No curso de sua longa vida dona Nadime derramou bondade. Matriarca, ela estendia o seu manto protetor sobre sua extensa família: Seu Augusto, os quatro filhos, inúmeros netos e bisnetos. Mas, ela também cobria com afeto tantos quantos tiveram a ventura de conhecê-la. Ângela e eu fomos dois dos inúmeros agraciados. Na verdade, fomos privilegiados, pois durante dois anos estivemos literalmente sob o seu amparo: morávamos na casa da vila abaixo da sua. O símbolo e ao mesmo tempo o instrumento de sua vigilante atenção era uma sineta. Ela a tocava várias vezes ao dia, ou para servir delicioso café feito à moda árabe, maravilhosas esfihas e outras inesquecíveis iguarias ou para indagar se minha mulher necessitava de algo, quando das minhas ausências. O desvelo dedicado à nossa recém-nascida filha Renata era o mesmo que dedicava a seus netos. Durante esses dois anos se cristalizaram uma amizade e uma gratidão imorredouras, a esses descendentes de libaneses, Seu Augusto, e de sírios, dona Nadime, exemplos de dignidade e de amor ao próximo, ambos fruto da imigração de povos que souberam assimilar algumas de nossas características e que nos legaram algumas de suas qualidades, numa miscigenação que pode superar as diferenças dos idiomas, hábitos e cultura em geral.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O tempo e as idades do homem

Dizem que as várias idades do homem o encaminham para certos hábitos, comportamentos, modo de pensar e até para posicionamentos filosóficos e ideológicos. Assim, é verdade que os mais idosos tendem a dormir menos e a cochilar mais; a sair menos de casa; a andar de forma mais arrastada; a escutar menos; enfim, ocorrem sensíveis mudanças em relação a épocas anteriores de sua vida. Hoje, no entanto, há uma tendência de se colocar o velho em contato com atividades das quais ele já havia se afastado. Mas, de qualquer forma, ainda persiste a ideia de que todo homem transforma-se em "outro homem", quando atinge idade provecta. Ideológica e filosoficamente, também há mudanças acentuadas. O jovem idealista portador de ideias revolucionárias; sempre pronto a sacrificar-se para fazer operar a transformação do mundo e imbuído de invencível otimismo, com o passar dos anos se torna mais comedido, com acentuadas preocupações pragmáticas, voltadas para a família e para a profissão. Com o passar dos anos é tomado por ceticismo, que beira um crônico pessimismo. A jornada já vivida, marcada por inevitáveis desencantos e desilusões, as restrições impostas pelo corpo, e as perdas acumuladas, que vão desfalcando o seu antes grande rol de amigos e de entes queridos, introduzem no seu íntimo uma dose de tristeza, que, por vezes, o envolve completamente. Quero, no entanto, abrir um parêntesis para uma observação: os antigos de hoje são menos antigos do que os de outrora. Explico: certo dia abrindo velho álbum de fotografias, deparei-me com a foto de meus avós paternos, Zulmira (Zizi) e Waldemar Mariz de Oliveira. Quando foi tirada, ambos não tinham mais do que sessenta e poucos anos. Uma idade, para os padrões atuais, longe de ser marcada por abstinências, restrições e ranhetices, ainda plena de realizações, de sonhos, vigor físico e alegria de viver. Pelo menos, procura-se que assim seja. Meus avós, no entanto, davam a nítida impressão de missão cumprida; chinelos nos pés, à espera da "indesejada dos homens". Conclui-se que o tempo deixava marcas mais acentuadas e visíveis de sua passagem, do que nos dias de hoje. De qualquer forma, hoje ou ontem o que mais nos impressiona e assusta no passar do tempo é o seu descontrole. Verdadeiramente, gostaríamos que o tempo, de tempos em tempos, desse tempo para que pudéssemos parar e matar o tempo. Quanto mais se avança em idade mais se tem a consciência de nossa impotência diante do tempo. Ele é mais forte do que o homem. Tal como a morte ele é inexorável. Falei o óbvio, claro que sim. No entanto, não é em todas as idades que isso nos parece verdade. Há períodos da vida em que acreditamos poder manipular, administrar e gerenciar o tempo. Assim, como há momentos da vida que pensamos ser imortais, ou ao menos não pensamos na morte e nem observamos o tempo passar. Não sei se nós é que paramos e o tempo corre, ou se como disse alguém ele é como a margem e nós somos como o rio que corre. Nesse último sentido o tempo seria estático e nós passaríamos. Tenho a impressão de que a medida que vamos passando o nosso relacionamento com o tempo fica melhor. Incrível, mas é verdade. Encaramos o tempo sem angústias, com mais calma, sem grandes aflições. Vamos indo com ele para onde ele nos queira levar.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O pé de café; uma vingança futebolística

Quando eu jogava futebol e o fazia mal, chuteira era chanca e o campo era cancha. Nós, da gloriosa TS - Turma Stela - jogávamos na rua, no campo do Olímpicus da Vila Mariana, no Colégio Ipiranga, no Ateneu Brasil, na quadra da Escola Paulista de Medicina, localizada na Vila Clementino, na chácara de meu avô ou em qualquer outro espaço, transformado por nós em "campo", por menos apropriado que fosse, nós o transformávamos em "campo". Levamos a sério a nossa atividade esportiva. Além dos locais por vezes pouco adequados, as bolas e as traves em certas ocasiões eram improvisadas. Pedras, tijolos, pedaços de madeira, sapatos, tênis demarcavam os espaços nos quais os goleadores se consagravam. O nosso local preferido para jogarmos sempre foi a rua Stella, na altura do Colégio Bandeirantes. Dependendo do número de atletas jogávamos de um portão ao outro das duas calçadas. Caso a afluência de jogadores fosse maior a extensão da rua servia de campo. Aí, no entanto, nos deparávamos com uma grave questão. A Stella, nesse trecho, passava a ser uma ladeira. Assim, o time cujo gol se situasse ladeira abaixo tinha sérias dificuldades para atacar. Por tal razão, era muito importante a escolha do lado antes do início do jogo, pois normalmente ele era decidido no primeiro tempo. O futebol era possibilitado pela escassez de automóveis que desciam ou subiam a rua. No entanto, havia uns poucos motoristas que não respeitavam o nosso espaço esportivo e estacionavam os seus carros nas nossas calçadas. Bem, embora tomássemos algum cuidado, apenas algum, a bola volta e meia batia em suas fortes latarias - eram carros da década de cinquenta, início de sessenta - e nos vidros, não tão resistentes. As boladas, quando eficientes, surtiam efeitos, pois dificilmente o veículo atingido voltava a ser estacionado no nosso campo. Nossa atividade esportiva não era respeitada também por alguns moradores, que insistiam em deixar as venezianas de suas casas abertas. As janelas eram fechadas apenas com as vidraças. Se com os intrusos automóveis, nossas cautelas eram relativas, cuidado mesmo tomávamos para que as bolas não invadissem os jardins e se chocassem com as janelas dos simpáticos sobrados da Stella. No entanto, um ou outro chute mais violento e sem muita direção ultrapassava os pequenos muros das casas e, tragédia, a propriedade alheia era danificada. Corríamos para salvar a bola da fúria do dono da casa, que a confiscaria, e a submeteria a uma tortura de elevada crueldade: seria rasgada até ter um fim indigno da sua relevância, seria furada. Em uma ocasião, no entanto, as donas da casa atingidas, duas irmãs, foram mais rápidas e, sem ordem judicial, apreenderam e destruíram o nosso tesouro. Eram duas solteironas que não nos viam com bons olhos. A recíproca era verdadeira. Com o incidente as antipatias aumentaram de intensidade. Pois bem, algo precisaria ser feito para que a bola fosse vingada, a sua memória reverenciada e a nossa honra restituída. Sentíamos-nos humilhados. Ai, então, surgiu a ideia. Havia no jardim do sobrado onde elas moravam um pé de café. Bonito, de meia altura, de um verde reluzente, chamava a atenção. Em razão da perda da nossa estimada e imprescindível pelota, nada mais adequado do que o pé de café. Dente por dente . . . Ele foi cortado em uma noite de lua cheia, portanto não à luz do dia, pois não seríamos tão insanos. Mas à luz da lua. O cortamos e o deixamos encostado na porta, obstruindo a passagem das moradoras. Imagine-se a repercussão que o nosso ato de justiça teve nas imediações. Fomos alvo de algumas críticas, mas de muitos elogios, pois as duas cafeicultoras não gozavam lá de grande prestígio na vizinhança.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O gosto da infância

Maravilhosos eram os pães franceses da Panificadora Bastos, localizada na rua Vergueiro. Lembro-me ir diariamente com minha mãe até a padaria, por volta das seis horas da tarde. Eles vinham embrulhados em papel simples, o que permitia que eu o rasgasse e beliscasse as casquinhas crocantes, fato que irritava a minha mãe, pois os pães ficavam mutilados. É interessante como tais fatos ligados ao sabor e também ao olfato marcam nossa infância. Na verdade, é a própria infância que empresta o sabor e o aroma que impregnam os nossos sentidos e se fixam na memória. Qualquer iguaria que nos tenha marcado se vier a ser provada na idade adulta não nos proporciona o prazer do passado, mesmo sendo uma fiel reprodução da receita primitiva. A saudade da época vivida, daqueles que se foram e mesmo a saudade de nós mesmos, trazem-nos lembranças de fatos que jamais se repetirão, e se apresentam por meio dos dois sentidos. Todas as recordações gastronômicas se fazem acompanhar de lembranças de pessoas, lugares e situações especiais. Os pães, por exemplo, estão ligados à Panificadora que os fabricava e à minha mãe que os comprava e impedia que eu os comesse antes de chegarem ao destino. Procuro há mais de cinquenta anos um sorvete que se equipare ao de nata da Mercearia Carioca, localizada em Santos, especificamente no Boqueirão, esquina das ruas Epitácio Pessoa e Oswaldo Cruz. Embora eu continue a procurar o magnífico sorvete de nata, sei que a minha peregrinação pelas sorveterias restará infrutífera. Não sei com que regularidade, mas sei que ela descia a rua Stella pela manhã acompanhada do som inconfundível de um sininho. Vinha ele pendurado no pescoço de uma cabra, anunciando a chegada do leite que era vendido de porta em porta. Minha avó descia de sua casa com um ou dois copos e os enchia de um leite tirado diretamente da fonte. Espumoso e quentinho. Leite forte, substancioso, nutritivo e com um sabor inesquecível. Mas, verdadeiramente marcante era o carinho com que minha avó providenciava o leite para o neto, já à época muito bem nutrido. Desta mesma avó, o zelo, o afeto e o carinho dedicados a mim, aos outros nove netos e a quem frequentasse a sua casa, na verdade compunham os maravilhosos doces que ela preparava. Todos eles eram à base de ovos, muito açúcar, farinha, creme, e óbvio colesterol, que, no entanto, era o bom, pois havia o ingrediente do amor. Não se pense que se limitava aos doces as qualidades culinárias de minha avó. Não, pois havia também os salgados. As minhas lembranças sensoriais registram, ainda, as magníficas empadas de queijo e o excepcional cuscuz. Quanto a esse extraordinário prato genuinamente brasileiro anos depois eu encontrei quem se igualasse à Dna. Zizi, nome de minha avó: trata-se de nossa querida amiga Regina Rocha, mãe de meu genro Marcelo. Se o sorvete de nata, o leite de cabra, as balas de coco de minha mãe, e tantos outros sabores da infância não foram reencontrados, o cuscuz foi fiel e felizmente reproduzido. Os gostos inesquecíveis não eram apenas os da infância. Depois das empadas, do cuscuz, do leite de cabra, do sorvete de nata, das balas de coco, com a adolescência outros vieram tão saborosos, e significativos quanto os que me marcaram quando criança. As magníficas coxinhas da Panificadora ABC, localizada na esquina da Domingos de Moraes com a rua José Antonio Coelho. O ABC era uma instituição. Gozava de uma imaculada reputação, e deixou marcas no sentimento e na memória de todos os seus frequentadores. Não era uma padaria como as de hoje. Havia pães deliciosos, um insuperável creme de chantilly, frios magníficos, mas dois eram os pontos culminantes: a coxinha e o chope. Eu falei padaria, mas na verdade era um misto de padaria e de um bar refinado. Seu barman era o Geraldo, um querido amigo, a alma do ABC. Se ainda era ainda comum vender-se fiado nos empórios, armazéns, farmácias e lojas, etc., fiar chopes, coxinhas , empadas, e outras bebidas e guloseimas era incomum, no entanto, o Geraldo nos fiava, e mais, burlava a lei e vendia bebida alcoólica a nós ainda menores de dezoito anos. Os sabores do passado acompanham-me trazendo a imagem de pessoas queridas e de fatos memoráveis, protagonistas de uma época marcada pela bonomia, pela amorosidade, pela solidariedade, por gentilezas e atenções, marcas então presentes nos relacionamentos pessoais, que tornavam a vida risonha e franca, tal como as escolas da época.Esses sabores, eu creio, produzem em meu espírito o que as madelaines provocavam em Proust : a agradável sensação da "memória afetiva".
segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Povo saudável, mas sem graça

Lembrava-me, outro dia, do prazer de fumar um charuto especialmente para comemorar um grande acontecimento, motivo de intensa alegria ou como complemento de momentos agradáveis passados com pessoas queridas. O nascimento de um filho, ou de um neto, um estupendo almoço, ou mesmo tranquilos momentos de paz e de reflexão eram magnificamente coroados por havanas inigualáveis ou mesmo por deliciosos charutos baianos. Refiro-me também ao britânico cachimbo tão prazeroso quanto os charutos ou as cigarrilhas. Estes prazeres nos foram retirados pela ação dos paladinos da saúde alheia, pregadores de uma vida saudável (será?) mas extremamente sem graça, sem poesia, sem romantismo. Não me refiro apenas ao fumo. Temo pelo futuro de tantas outras atividades que dão sabor à vida, tais como beber, frequentar botecos, perambular pelas ruas até altas horas - desde que com a permissão dos assaltantes - comer doces e frituras, amar e fazer sexo. Não passará muito tempo e campanhas contra o álcool, contra o sexo, contra a música, contra algumas práticas esportivas notadamente, creio eu, o futebol serão desencadeadas. Cada uma delas terá um pretexto, que a boa propaganda tentará transformar em convincente razão. A campanha contra a ingestão de bebidas alcoólicas até já está pronta. Basta adaptar a que foi utilizada contra o cigarro e teremos mais uma cruzada em prol da saúde. Aquela que será desencadeada contra o sexo terá na defesa dos bons costumes e da moralidade os seus fundamentos de maior envergadura. De pronto, algumas respeitáveis entidades passarão a ser os arautos da abolição do sexo antes do casamento, e neste concordarão apenas se o objetivo for a procriação. Condicionamentos ao comportamento humano aumentam a cada dia. Uns são antigos, emanam de regras tradicionais que regulam o relacionamento interpessoal. São aceitas e cumpridas pela maioria, que têm consciência da necessidade de obedecê-las, em nome da harmonia social. Outros, no entanto, surgem como decorrência de novos costumes, hábitos recentes, manias que se espalham de forma invisível e acabam se alojando no corpo social, com a eficiente colaboração da mídia e não raras vezes apresentando nítido interesse comercial. Por vezes, leis são editadas determinando a adoção de tal ou qual comportamento, sob pena da aplicação de sanções. E, como há pairando sobre nós uma cultura repressiva, para que a lei tenha eficácia, apela-se para a polícia que passa a ser a guardiã do seu cumprimento. Lembre-se das cadeirinhas para crianças, cuja obrigatória utilização passou a ser um caso de polícia. Blitzes foram organizadas, nos moldes daquelas formadas para combater o crime. Policiais armados passaram a verificar a existência ou não das cadeiras, perante os aturdidos pais e das assustadas crianças, com o mesmo empenho empregado nas batidas para encontrar tóxicos e armas dentro de automóveis. Quantos abusos não foram cometidos nas ações de combate ao álcool ingerido por motoristas. As autoridades, amparadas pela lei que é genérica, a cumprem de forma indiscriminada, sem levar em conta as diferenças e nuances de cada caso, as quais se consideradas evitariam uma série de injustiças e de desmandos. Não se pode culpar os policiais, pois não sendo juízes, não levam em conta as particularidades de cada caso, e colocam na vala comum todos os excederam os limites legais, pouco importando o grau do excesso. Em verdade, quanto mais leis são editadas para regular a conduta das pessoas, mais deseducada é a respectiva sociedade. Com efeito, a liberdade de escolha com responsabilidade, o respeito aos direitos alheios e aos da coletividade, o senso claro dos limites de suas ações, a solidariedade e o sentido do bem comum podem substituir imposições legais. Campanhas educativas bem conduzidas igualmente podem alterar situações danosas, sem nenhuma coação sancionatória. Lembre-se da campanha anti tabagismo que produziu excelentes resultados sem qualquer ameaça de punição. Em resumo, a lei não altera comportamentos, que são melhorados quando há a assunção individual e coletiva de responsabilidades. Isto é civilização. Desta forma teremos uma sociedade mais consciente dos seus deveres e ao mesmo tempo dos seus desejos e necessidade, e, com certeza menos restritiva e chata.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cadeira de balanço

Era imenso o prazer de ficar sentado em uma cadeira de palha e de balanço, ouvindo-a contar histórias, que sempre eram as mesmas. A cadeira de balanço era a sua preferida, mas para o neto ela a cedia, sentando-se em uma outra, que também balançava, mas que não era a típica cadeira de balanço do mobiliário brasileiro tradicional, como a outra. Não se pense que o seu despojamento significava que eu fosse o seu neto preferido. Não, com certeza eu não o era. Ela possuía netos e netas, éramos dez ao todo. Suas inclinações eram para alguns, dentre os quais meu irmão José Eduardo, que pela proximidade das nossas casas e pela sua pouca idade, era o seu xodó, ou um deles. Os outros eram, Celina, a mais velha de nós e Eduardo, talvez aquele que a cativasse por ser o mais engraçado e arreliento de nós todos. Mas, não se pense também que os outros, os fora do rol dos preferidos, não fossem alvo de sua extremada afeição, do seu carinho e acima de tudo da sua paciência. Sim, ela era afetuosa e paciente com todos nós, especialmente comigo que a fazia repetir histórias já contadas. Como todas as avós da minha geração, ela era uma exímia cozinheira. Na verdade ela se destacava como doceira. Os seus doces eram magníficos, à base de ovos, farinha, de muito açúcar, e, evidentemente, colesterol, mas o bom. Para irmos tomar refeições em sua casa não era necessário aviso prévio. Não, não era preciso, isto porque a qualquer hora do dia ou da noite a mesa estava posta. A farta mesa era apenas para ela e para uma empregada, pois morava sozinha desde a morte de meu avô. O hábito de manter a mesa posta é também uma tradição da família brasileira antiga, tal como a cadeira de balanço. Voltando à cadeira de balanço, eu me sentava e ela, antes de sentar-se na outra, que como disse, não era a verdadeira, abria o seu pequeno bar, e servia-me um martini. Ela também se servia da intragável bebida. Na verdade, abominável bebida, pois além de naturalmente ruim o martini servido era doce. Eu estava começando a adquirir cultura etílica, que foi se aperfeiçoando com o tempo, levando-me a nunca mais tomar o execrável martini doce. No entanto, depois de muito refletir, eu cheguei à conclusão de que as bebidas ruins se tornam toleráveis e até apreciáveis dependendo do nosso estado de espírito, e da companhia com quem se bebe. Devo dizer que a minha avó justificava seus esporádicos goles, ora de vinho, ora de martini , ora de wisk, com a sua pressão arterial. Se a pressão estivesse alta a bebida indicada era uma, se estivesse baixa era outra. Por vezes ela as invertia... Certo dia, em seu aniversário, meu primo Eduardo apareceu na sala onde estavam todos os seus filhos, noras, netos e demais convidados, empunhando uma garrafa de cachaça que ele afirmou, marotamente, haver encontrado em baixo da cama de nossa avó. Exibiu a garrafa, salvo engano era da marca "Tatuzinho" e perguntou a ela: "Vó, o vinho é para pressão alta, o wisk para pressão baixa, e a cachaça? Vovó não se fez de rogada e de pronto respondeu: "Ah, o médico não falou para que servia a cachaça..." Esclareça-se, que a história da cachaça foi invenção do seu neto, meu primo. No entanto, é verdade que vez ou outra ela ingeria uma "pinguinha", mas na forma de "meia de seda" ou de " leite de onça", preparados por ela. Fecho mais esse parêntesis e retorno à cadeira de balanço. O abominável martini doce era acompanhado por castanhas de caju, pois sempre havia uma latinha em seu bar. Como eu disse, as histórias que ela contava eram as mesmas, mas nunca eram contadas da mesma maneira. Assim, algumas delas apresentavam versões diferentes, fato que as tornavam ainda mais interessantes. Alguns dos episódios por ela narrados, por terem várias versões, ficavam envoltos em mistério, que ela fazia questão de não desvendar. Um desses episódios eu denominei de "baile branco". Outra pausa, minha avó era belíssima, conforme atesta uma sua foto tirada aos dezoito anos, que ficava em cima do piano da sala. Pois bem, a cidade de Sorocaba, sua terra natal, no início do século passado, era rica e cultivava hábitos da corte. Um desses era o seu famoso "baile branco", acontecimento onde imperava o requinte, a elegância e a sofisticação da época. Ponto alto da temporada de eventos e festas sorocabanas, a preparação do baile antecedia meses e a festa era aguardada com muita ansiedade pela sociedade, em especial pelos jovens. Minha avó se ufanava de sempre ter sido considerada a mais bela jovem do referido e de outros bailes, festas e recepções de sua cidade natal. Era, segundo dizia com indisfarçável orgulho, a mais assediada e cortejada, sendo disputada para todas as danças. Durante os tradicionais footings, todos os olhares se voltavam para ela e não eram raros os tropeções e os esbarrões quando pescoços se viravam para vê-la e para chamar a sua atenção. Dentre os seus admiradores havia um farmacêutico, ainda de acordo com a sua nada modesta narrativa, que estava apaixonado, mas com quem ela nada queria. À época, ela já namorava o meu avô. Inconformado com o desinteresse de minha avó, o farmacêutico que conhecia e mantinha relações com meu avô, o teria atraído para a sua farmácia, na tarde da realização de mais um baile branco. Meu avô teria ido, se não fosse a interferência de um amigo que desconfiado das intenções do boticário, impediu a sua ida. Nesse ponto a história se tornava nebulosa, misteriosa. Indagada por mim, sobre o que pretendia o seu fã com o seu namorado, futuro marido, ela limitava-se a dizer que os seus objetivos não eram os mais saudáveis. Segundo corria na cidade o farmacêutico estava tramando a morte de meu avô. Nunca se soube se o risco era real ou não, bem como qual seria o meio empregado para o homicídio. Outras tantas histórias eram contadas. Suas, de meu avô, de irmãos, sobrinhos, cunhados e demais parentes. Uma delas era a de um sobrinho, extremamente mentiroso, que emocionava suas tias, incluindo a minha avó, quando narrava as agruras por que passara na revolução de 1932. Dizia ter comido papel de jornal durante quase uma semana, pois não tinha com o que se alimentar. Após a narrativa, as tias comovidas às lágrimas, cotizavam-se e davam um dinheiro para o faminto sobrinho, que dizia precisar de tratamento médico, pois ainda sofria do estômago pelo excesso de jornais ingeridos. Havia uma sobrinha que muito a preocupava, quando ia à sua casa. Tratava-se de uma enfermeira que se especializara em cuidar de senhores idosos, ricos e viúvos, com os quais ela se casava. Casou-se três ou quatro vezes, número de vezes que ficou viúva. Apesar de seus cuidados, seus maridos morriam em suas mãos. Meu pai dizia, com seu peculiar jeito galhofeiro, que ela provocava a sua viuvez. De tanto meu pai repetir essa sua teoria, vovó passou a não ficar à vontade com as idas da sobrinha à sua casa... Mais e mais histórias ela as contava, mais eu as queria ouvir, pouco importando se novas ou repetidas. O encanto das suas recordações, a suavidade de sua voz e o embalo da cadeira de balanço me proporcionavam uma "pacata satisfação de viver", muito marcante em minhas recordações.