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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Memórias de um craque

Por vezes eu conseguia ser escalado porque fornecia a bola. Isso ocorria nos meses de junho e dezembro quando e se no meu aniversário ou no Natal eu ganhava a dita cuja. No entanto, mesmo disponibilizando-a, a minha escalação não era garantida, caso alguém mais houvesse sido agraciado com uma outra bola. Quando o jogo era entre nós mesmos, fato corriqueiro, eu tinha lugar certo em um dos times. O critério de escolha era o par ou ímpar. Eu sempre era escolhido por último e não raras vezes integrava o time que teria um a mais, quando o número de jogadores era ímpar. Tal fato significava que o time que contasse com o meu valioso concurso, na verdade tal como o outro, possuía número par de jogadores... Minha posição em campo? Nunca me preocupei com esse detalhe. Estava sempre onde o time necessitasse que eu estivesse, geralmente longe da bola... Embora eclético, pronto para servir em qualquer posição, eu tinha uma preferência pela defesa, especialmente pela lateral direita. Hoje eu seria um ala, daqueles que ajudam o ataque como ponta. Naquele tempo eu era mesmo um beque. Foi nessa posição que enfrentei o Uruguai em 1970. Não se pense que por ter sido um sonho, o meu desgaste físico e emocional foram pequenos. Não, basta dizer que acordei suado e com dores no corpo. A compensação foi a nossa estupenda vitória. Em outra memorável ocasião também atuei pela lateral direita. Foi no disputado jogo entre calouros e veteranos, travado em 1965 na Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Nessa partida, que marcou época na Faculdade da rua Monte Alegre, não pela técnica, mas pelo ímpeto físico e pela disposição etílica dos contendores, meu medíocre desempenho futebolístico, quanto a minha indumentária. Nós os calouros, envergávamos o glorioso uniforme da PUC. Camisas com listras pretas, brancas e vermelhas, com fundo branco, parecida com a antiga camisa da hoje inexistente seleção paulista de futebol. Meias e calções brancos. O traje portanto era padronizado, uniforme, comum a todos os jogadores. No entanto, eu chamei a atenção especialmente a de meu pai, que como professor da Faculdade assistia entusiasticamente a exibição do filho, rodeado, como sempre, por seus alunos. Seu entusiasmo foi efêmero. Rapidamente transformou-se em constrangimento, quase vergonha. Ao ver-me, verificou que avançava perna abaixo, uma vistosa e chamativa cueca, bem mais cumprida do que o calção, ultrapassando-o de muito. Naquela época, estavam na moda, as chamadas cuecas samba canção. E, como eu sempre fui da moda, também naquele dia trajava uma. Várias foram as equipes nas quais eu atuei. As da rua Stella foram as que contaram com a minha mais eficiente contribuição. Nós da T.S. (Turma Stella), em certa ocasião fizemos uma aliança com outras turmas das redondezas e constituímos o Oasis da Vila Mariana. Nesta equipe eu tive lugar de destaque, fui massagista. Joguei, ainda, no time do 3º Tabelionato de Notas, que foi o meu primeiro emprego. A minha carreira nesse time foi curta. Quinze minutos de uma única partida. Um outro time formado no Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, onde eu advogava, contou também com a minha participação. Nesse time fazíamos laço, isso é contávamos com o concurso de outros craques estranhos aos quadros do Centro Social. Um desses jogadores emprestados foi Plínio Marcos, excelente teatrólogo, péssimo jogador. Marcou época, pelo menos nos meios jurídicos futebolísticos, um time fundado na década de setenta por amigos advogados, chamado "In Dúbio Pro Reo". E foram meus companheiros de equipe que souberam fazer justiça a mim. No final do ano, o único de existência do time, prestaram-me comovente homenagem, ao me entregarem um valioso, significantíssimo e modesta às favas, merecido troféu, denominado troféu "Encrenca"... Claro que na minha biografia o meu desempenho esportivo, especificamente futebolístico, ocupa papel de grande realce. Lamento que o reconhecimento dos meus méritos não tenha ocorrido nos momentos mesmo das minhas exibições. Mas, vá lá, por ora eu me satisfaço com o "Troféu Encrenca".
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Generosidade sírio-libanesa

Nasci em um bairro onde predominava a colônia síria-libanesa. Uma prova reside no número de clubes fundados em regra por imigrantes de determinadas regiões da Síria e do Líbano. Assim, lembro-me do Antioguina, do Homs, onde havia saudosas domingueiras dançantes do Alepo, do Rachaia. Estou excluindo o Sírio e o Monte Líbano, situados um pouco mais distantes. Em razão da convivência, algumas características desses imigrantes e de seus descendentes ficaram bem marcadas e até assimiladas por mim desde cedo. De todas, a que eu mais admirava e tenho viva na memória era a generosidade manifestada de várias formas no relacionamento interpessoal. Era um derramar de gentilezas e afagos nos carinhosos encontros que ocorriam constantemente nas vizinhanças. No entanto, a generosidade dos libaneses e dos sírios não se limitava à efusivas manifestações de afeto quando nos víamos. Havia também outros desdobramentos da amizade e do apreço. Mostravam-se extremamente solidários e prestativos quando alguém deles necessitava. A ajuda era uma constante nos seus relacionamentos e não mediam esforços para, ao que parece, retribuir de alguma forma, a acolhida dispensada pelos brasileiros aos seus antepassados. Para não cometer injustiças, mormente quando se trata de arrolar amigos queridos, dentre as figuras do meu mundo árabe, vou destacar uma excepcional senhora, que para nossa ventura encontra-se entre nós, e uma família cujos chefes já se foram, mas os filhos aqui estão dando continuidade a uma preciosa e já vetusta amizade. Falando em amizade, eu agradeço a Deus a possibilidade de haver constituído e mantido amizades que resistiram às vicissitudes da vida. Arrependo-me, no entanto, por outras que eu não consegui manter e conservar. Existiram sim, amigos que já se foram, não da vida, mas do meu rol. Culpa minha, culpa deles, não importa. Importa sim que o saldo foi positivo. Eu tenho velhos e amados amigos. E, mesmo aquelas amizades já rompidas, permanecem no rol das gratas recordações. Tenho muito orgulho em afirmar que eu e alguns amigos que possuo "nunca nos sofremos" como disse o excepcional cronista e compositor Antonio Maria. Ademais, desta feita contrariando outro festejado escritor e cronista, Nelson Rodrigues, que disse ser o amigo "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida" eu afirmo que transformei a utopia em sonho e este em realidade. Presentes nas minhas recordações e mais do que nelas, na minha alma, figuras queridas da colônia árabe - sírios e libaneses - com as quais tive a ventura de conviver. Dona Izabel Nader, hoje, desculpe-me ela a indiscrição, beirando os noventa anos, mantem a energia e o vigor da idade jovem. Ela é possuidora de excepcional memória, de uma inteligência aguda e de extraordinário senso de humor. Contadora de anedotas e fina observadora da realidade, não deixa passar incólume nenhuma situação merecedora de uma irônica ou sarcástica observação. Seu carinho por minha mãe, aliás sempre presente em vida desta, foi transferido a mim, depois que a amiga se foi. Não nos víamos fazia muitos e muitos anos. Quando assumi a presidência da OAB, em São Paulo, no dia da posse, lá estava ela na porta do Clube Paulistano, onde ocorreu a festa, acompanhada de sua neta. Foi a coroação daquele dia de grande significado para mim. Mais alguns anos sem nos ver e passamos a falar com frequência. Ofereceu-nos, a Ângela e a mim, um magnífico jantar, ao qual compareceram seus filhos e netos, dentre eles o seu filho Charles Nader, querido amigo com quem estudei no primário do Externato Paraíso. Comida árabe por ela mesma preparada. Excepcional e farta, como sempre ocorre nas mesas libanesas. Nesse dia, D. Izabel externou todo o seu afeto dedicado a minha mãe e a mim, de uma forma que só ela é capaz de fazer. Ângela e eu casamo-nos em 1970, e fomos morar em uma Vila situada na própria rua Stella, da minha infância e juventude. Duas eram as Vilas da rua Stella. Uma mais acima em frente ao Colégio Bandeirantes, e a chamada Vila de baixo, tendo o campo do Olimpicus à sua frente, em uma baixada. A casa era a de número onze. Foram dois anos, até mudarmos para um apartamento da rua Treze de Maio, no Paraíso, quase Bixiga. Dois anos felizes, porém marcados pela dureza, pelas incertezas e alguma angústia, costumeiras no início de vida dos casais. Renata, nossa primeira filha, nasceu nessa casa. Não houve nenhuma dificuldade de adaptação, pois a rua Stella era a minha rua. Assim, todos os seus moradores eram queridos amigos alguns, e velhos conhecidos outros. Na Vila todos se conheciam há muitos anos. Nossa casa ficava em baixo da de número dez, onde residia um casal ela descendente de sírios ele de libaneses, Nadine e Augusto Bucheb. Seus filhos, especialmente José Badi Bucheb (Dua) eram nossos amigos, amizade que antecedeu nossa ida para a Vila. Creio que em meados da década de cinquenta a família mudou-se para a rua Stella, e a partir dessa época solidificou-se uma amizade que perdura até os nossos dias. Houve o inevitável desfalque do casal, pois ambos já se foram. Durante esses anos, um carinho espontâneo, uma simpatia sem causa aparente, uma forte afeição vinculou todos nós aos Bucheb. O substrato dessa amizade coletiva foi a bondade de ambos, marido e mulher, herdada pelos filhos e manifestada em infindáveis ocasiões. Do Sr. Augusto ficou a figura do homem de agudo senso crítico, inteligência intuitiva muito apurada e uma peculiar graça ao comentar ou narrar fatos. Ele possuía uma especial aptidão: era exímio massagista. Na verdade, era um dom. Nasceu com intuitivo conhecimento de músculos, ossos, nervos e coisas que tais. Consta ter aperfeiçoado esse dom no clube Sírio-Libanês, onde jogou futebol. Lá observava a atuação dos massagistas e desta forma foi adquirindo e aprimorando conhecimentos. Na rua Stella, o Sr. Augusto vez ou outra cuidava dos jogadores que se contundiam nos jogos do Olimpicus e do Independente, ambos se exibiam no campo de várzea que havia na confluência das ruas Stella, Oscar Porto e Tomaz Carvalhal. Mas, não eram apenas os craques desses dois times os beneficiários de suas habilidades. Nós que praticávamos o saudoso, arriscado e romântico futebol de rua também nos tornamos seus assíduos clientes. Eu, pela falta de jeito para os esportes em razão do meu sempre avantajado corpo, me machucava, e era no pé, frequentemente destroncado, torcido ou com algum nervo lesado. Seu Augusto me socorria em sua casa, a de número 10 da vila. Recebia-me com um entre irônico e sádico sorriso. E esse sadismo, naturalmente simulado, pois ele era solidário à dor que eu sentia, ia crescendo à medida que sua mão tateava o meu pé para descobrir o lugar exato da lesão. Encontrado o local, aí, bem aí, era o ápice do sofrimento. Puxava, torcia, contorcia e punha no lugar. Às vezes bastava um único movimento, e o grito também era único. Seus instrumentos de trabalho eram uma bacia com água quente, um sabonete e, principalmente, suas enormes mãos que vigorosamente deslizavam pelo pobre pé enfermo. Como eu sabia que ele jamais cobrava pelos seus valiosos préstimos, apenas para irritá-lo e meio como vingança pelo meu sofrimento, mas já com o pé consertado eu perguntava quanto lhe devia. Imediatamente, mandava-me embora, debaixo de alguns impropérios. E eu ia mancando, mas já sarado graças à impiedosa massagem. Amigo "Rabib", como você faz falta! Desde a sua partida o meu pé nunca mais foi o mesmo... Cada gesto seu era um gesto de amor. No curso de sua longa vida dona Nadime derramou bondade. Matriarca, ela estendia o seu manto protetor sobre sua extensa família: Seu Augusto, os quatro filhos, inúmeros netos e bisnetos. Mas, ela também cobria com afeto tantos quantos tiveram a ventura de conhecê-la. Ângela e eu fomos dois dos inúmeros agraciados. Na verdade, fomos privilegiados, pois durante dois anos estivemos literalmente sob o seu amparo: morávamos na casa da vila abaixo da sua. O símbolo e ao mesmo tempo o instrumento de sua vigilante atenção era uma sineta. Ela a tocava várias vezes ao dia, ou para servir delicioso café feito à moda árabe, maravilhosas esfihas e outras inesquecíveis iguarias ou para indagar se minha mulher necessitava de algo, quando das minhas ausências. O desvelo dedicado à nossa recém-nascida filha Renata era o mesmo que dedicava a seus netos. Durante esses dois anos se cristalizaram uma amizade e uma gratidão imorredouras, a esses descendentes de libaneses, Seu Augusto, e de sírios, dona Nadime, exemplos de dignidade e de amor ao próximo, ambos fruto da imigração de povos que souberam assimilar algumas de nossas características e que nos legaram algumas de suas qualidades, numa miscigenação que pode superar as diferenças dos idiomas, hábitos e cultura em geral.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O tempo e as idades do homem

Dizem que as várias idades do homem o encaminham para certos hábitos, comportamentos, modo de pensar e até para posicionamentos filosóficos e ideológicos. Assim, é verdade que os mais idosos tendem a dormir menos e a cochilar mais; a sair menos de casa; a andar de forma mais arrastada; a escutar menos; enfim, ocorrem sensíveis mudanças em relação a épocas anteriores de sua vida. Hoje, no entanto, há uma tendência de se colocar o velho em contato com atividades das quais ele já havia se afastado. Mas, de qualquer forma, ainda persiste a ideia de que todo homem transforma-se em "outro homem", quando atinge idade provecta. Ideológica e filosoficamente, também há mudanças acentuadas. O jovem idealista portador de ideias revolucionárias; sempre pronto a sacrificar-se para fazer operar a transformação do mundo e imbuído de invencível otimismo, com o passar dos anos se torna mais comedido, com acentuadas preocupações pragmáticas, voltadas para a família e para a profissão. Com o passar dos anos é tomado por ceticismo, que beira um crônico pessimismo. A jornada já vivida, marcada por inevitáveis desencantos e desilusões, as restrições impostas pelo corpo, e as perdas acumuladas, que vão desfalcando o seu antes grande rol de amigos e de entes queridos, introduzem no seu íntimo uma dose de tristeza, que, por vezes, o envolve completamente. Quero, no entanto, abrir um parêntesis para uma observação: os antigos de hoje são menos antigos do que os de outrora. Explico: certo dia abrindo velho álbum de fotografias, deparei-me com a foto de meus avós paternos, Zulmira (Zizi) e Waldemar Mariz de Oliveira. Quando foi tirada, ambos não tinham mais do que sessenta e poucos anos. Uma idade, para os padrões atuais, longe de ser marcada por abstinências, restrições e ranhetices, ainda plena de realizações, de sonhos, vigor físico e alegria de viver. Pelo menos, procura-se que assim seja. Meus avós, no entanto, davam a nítida impressão de missão cumprida; chinelos nos pés, à espera da "indesejada dos homens". Conclui-se que o tempo deixava marcas mais acentuadas e visíveis de sua passagem, do que nos dias de hoje. De qualquer forma, hoje ou ontem o que mais nos impressiona e assusta no passar do tempo é o seu descontrole. Verdadeiramente, gostaríamos que o tempo, de tempos em tempos, desse tempo para que pudéssemos parar e matar o tempo. Quanto mais se avança em idade mais se tem a consciência de nossa impotência diante do tempo. Ele é mais forte do que o homem. Tal como a morte ele é inexorável. Falei o óbvio, claro que sim. No entanto, não é em todas as idades que isso nos parece verdade. Há períodos da vida em que acreditamos poder manipular, administrar e gerenciar o tempo. Assim, como há momentos da vida que pensamos ser imortais, ou ao menos não pensamos na morte e nem observamos o tempo passar. Não sei se nós é que paramos e o tempo corre, ou se como disse alguém ele é como a margem e nós somos como o rio que corre. Nesse último sentido o tempo seria estático e nós passaríamos. Tenho a impressão de que a medida que vamos passando o nosso relacionamento com o tempo fica melhor. Incrível, mas é verdade. Encaramos o tempo sem angústias, com mais calma, sem grandes aflições. Vamos indo com ele para onde ele nos queira levar.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O pé de café; uma vingança futebolística

Quando eu jogava futebol e o fazia mal, chuteira era chanca e o campo era cancha. Nós, da gloriosa TS - Turma Stela - jogávamos na rua, no campo do Olímpicus da Vila Mariana, no Colégio Ipiranga, no Ateneu Brasil, na quadra da Escola Paulista de Medicina, localizada na Vila Clementino, na chácara de meu avô ou em qualquer outro espaço, transformado por nós em "campo", por menos apropriado que fosse, nós o transformávamos em "campo". Levamos a sério a nossa atividade esportiva. Além dos locais por vezes pouco adequados, as bolas e as traves em certas ocasiões eram improvisadas. Pedras, tijolos, pedaços de madeira, sapatos, tênis demarcavam os espaços nos quais os goleadores se consagravam. O nosso local preferido para jogarmos sempre foi a rua Stella, na altura do Colégio Bandeirantes. Dependendo do número de atletas jogávamos de um portão ao outro das duas calçadas. Caso a afluência de jogadores fosse maior a extensão da rua servia de campo. Aí, no entanto, nos deparávamos com uma grave questão. A Stella, nesse trecho, passava a ser uma ladeira. Assim, o time cujo gol se situasse ladeira abaixo tinha sérias dificuldades para atacar. Por tal razão, era muito importante a escolha do lado antes do início do jogo, pois normalmente ele era decidido no primeiro tempo. O futebol era possibilitado pela escassez de automóveis que desciam ou subiam a rua. No entanto, havia uns poucos motoristas que não respeitavam o nosso espaço esportivo e estacionavam os seus carros nas nossas calçadas. Bem, embora tomássemos algum cuidado, apenas algum, a bola volta e meia batia em suas fortes latarias - eram carros da década de cinquenta, início de sessenta - e nos vidros, não tão resistentes. As boladas, quando eficientes, surtiam efeitos, pois dificilmente o veículo atingido voltava a ser estacionado no nosso campo. Nossa atividade esportiva não era respeitada também por alguns moradores, que insistiam em deixar as venezianas de suas casas abertas. As janelas eram fechadas apenas com as vidraças. Se com os intrusos automóveis, nossas cautelas eram relativas, cuidado mesmo tomávamos para que as bolas não invadissem os jardins e se chocassem com as janelas dos simpáticos sobrados da Stella. No entanto, um ou outro chute mais violento e sem muita direção ultrapassava os pequenos muros das casas e, tragédia, a propriedade alheia era danificada. Corríamos para salvar a bola da fúria do dono da casa, que a confiscaria, e a submeteria a uma tortura de elevada crueldade: seria rasgada até ter um fim indigno da sua relevância, seria furada. Em uma ocasião, no entanto, as donas da casa atingidas, duas irmãs, foram mais rápidas e, sem ordem judicial, apreenderam e destruíram o nosso tesouro. Eram duas solteironas que não nos viam com bons olhos. A recíproca era verdadeira. Com o incidente as antipatias aumentaram de intensidade. Pois bem, algo precisaria ser feito para que a bola fosse vingada, a sua memória reverenciada e a nossa honra restituída. Sentíamos-nos humilhados. Ai, então, surgiu a ideia. Havia no jardim do sobrado onde elas moravam um pé de café. Bonito, de meia altura, de um verde reluzente, chamava a atenção. Em razão da perda da nossa estimada e imprescindível pelota, nada mais adequado do que o pé de café. Dente por dente . . . Ele foi cortado em uma noite de lua cheia, portanto não à luz do dia, pois não seríamos tão insanos. Mas à luz da lua. O cortamos e o deixamos encostado na porta, obstruindo a passagem das moradoras. Imagine-se a repercussão que o nosso ato de justiça teve nas imediações. Fomos alvo de algumas críticas, mas de muitos elogios, pois as duas cafeicultoras não gozavam lá de grande prestígio na vizinhança.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O gosto da infância

Maravilhosos eram os pães franceses da Panificadora Bastos, localizada na rua Vergueiro. Lembro-me ir diariamente com minha mãe até a padaria, por volta das seis horas da tarde. Eles vinham embrulhados em papel simples, o que permitia que eu o rasgasse e beliscasse as casquinhas crocantes, fato que irritava a minha mãe, pois os pães ficavam mutilados. É interessante como tais fatos ligados ao sabor e também ao olfato marcam nossa infância. Na verdade, é a própria infância que empresta o sabor e o aroma que impregnam os nossos sentidos e se fixam na memória. Qualquer iguaria que nos tenha marcado se vier a ser provada na idade adulta não nos proporciona o prazer do passado, mesmo sendo uma fiel reprodução da receita primitiva. A saudade da época vivida, daqueles que se foram e mesmo a saudade de nós mesmos, trazem-nos lembranças de fatos que jamais se repetirão, e se apresentam por meio dos dois sentidos. Todas as recordações gastronômicas se fazem acompanhar de lembranças de pessoas, lugares e situações especiais. Os pães, por exemplo, estão ligados à Panificadora que os fabricava e à minha mãe que os comprava e impedia que eu os comesse antes de chegarem ao destino. Procuro há mais de cinquenta anos um sorvete que se equipare ao de nata da Mercearia Carioca, localizada em Santos, especificamente no Boqueirão, esquina das ruas Epitácio Pessoa e Oswaldo Cruz. Embora eu continue a procurar o magnífico sorvete de nata, sei que a minha peregrinação pelas sorveterias restará infrutífera. Não sei com que regularidade, mas sei que ela descia a rua Stella pela manhã acompanhada do som inconfundível de um sininho. Vinha ele pendurado no pescoço de uma cabra, anunciando a chegada do leite que era vendido de porta em porta. Minha avó descia de sua casa com um ou dois copos e os enchia de um leite tirado diretamente da fonte. Espumoso e quentinho. Leite forte, substancioso, nutritivo e com um sabor inesquecível. Mas, verdadeiramente marcante era o carinho com que minha avó providenciava o leite para o neto, já à época muito bem nutrido. Desta mesma avó, o zelo, o afeto e o carinho dedicados a mim, aos outros nove netos e a quem frequentasse a sua casa, na verdade compunham os maravilhosos doces que ela preparava. Todos eles eram à base de ovos, muito açúcar, farinha, creme, e óbvio colesterol, que, no entanto, era o bom, pois havia o ingrediente do amor. Não se pense que se limitava aos doces as qualidades culinárias de minha avó. Não, pois havia também os salgados. As minhas lembranças sensoriais registram, ainda, as magníficas empadas de queijo e o excepcional cuscuz. Quanto a esse extraordinário prato genuinamente brasileiro anos depois eu encontrei quem se igualasse à Dna. Zizi, nome de minha avó: trata-se de nossa querida amiga Regina Rocha, mãe de meu genro Marcelo. Se o sorvete de nata, o leite de cabra, as balas de coco de minha mãe, e tantos outros sabores da infância não foram reencontrados, o cuscuz foi fiel e felizmente reproduzido. Os gostos inesquecíveis não eram apenas os da infância. Depois das empadas, do cuscuz, do leite de cabra, do sorvete de nata, das balas de coco, com a adolescência outros vieram tão saborosos, e significativos quanto os que me marcaram quando criança. As magníficas coxinhas da Panificadora ABC, localizada na esquina da Domingos de Moraes com a rua José Antonio Coelho. O ABC era uma instituição. Gozava de uma imaculada reputação, e deixou marcas no sentimento e na memória de todos os seus frequentadores. Não era uma padaria como as de hoje. Havia pães deliciosos, um insuperável creme de chantilly, frios magníficos, mas dois eram os pontos culminantes: a coxinha e o chope. Eu falei padaria, mas na verdade era um misto de padaria e de um bar refinado. Seu barman era o Geraldo, um querido amigo, a alma do ABC. Se ainda era ainda comum vender-se fiado nos empórios, armazéns, farmácias e lojas, etc., fiar chopes, coxinhas , empadas, e outras bebidas e guloseimas era incomum, no entanto, o Geraldo nos fiava, e mais, burlava a lei e vendia bebida alcoólica a nós ainda menores de dezoito anos. Os sabores do passado acompanham-me trazendo a imagem de pessoas queridas e de fatos memoráveis, protagonistas de uma época marcada pela bonomia, pela amorosidade, pela solidariedade, por gentilezas e atenções, marcas então presentes nos relacionamentos pessoais, que tornavam a vida risonha e franca, tal como as escolas da época.Esses sabores, eu creio, produzem em meu espírito o que as madelaines provocavam em Proust : a agradável sensação da "memória afetiva".
segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Povo saudável, mas sem graça

Lembrava-me, outro dia, do prazer de fumar um charuto especialmente para comemorar um grande acontecimento, motivo de intensa alegria ou como complemento de momentos agradáveis passados com pessoas queridas. O nascimento de um filho, ou de um neto, um estupendo almoço, ou mesmo tranquilos momentos de paz e de reflexão eram magnificamente coroados por havanas inigualáveis ou mesmo por deliciosos charutos baianos. Refiro-me também ao britânico cachimbo tão prazeroso quanto os charutos ou as cigarrilhas. Estes prazeres nos foram retirados pela ação dos paladinos da saúde alheia, pregadores de uma vida saudável (será?) mas extremamente sem graça, sem poesia, sem romantismo. Não me refiro apenas ao fumo. Temo pelo futuro de tantas outras atividades que dão sabor à vida, tais como beber, frequentar botecos, perambular pelas ruas até altas horas - desde que com a permissão dos assaltantes - comer doces e frituras, amar e fazer sexo. Não passará muito tempo e campanhas contra o álcool, contra o sexo, contra a música, contra algumas práticas esportivas notadamente, creio eu, o futebol serão desencadeadas. Cada uma delas terá um pretexto, que a boa propaganda tentará transformar em convincente razão. A campanha contra a ingestão de bebidas alcoólicas até já está pronta. Basta adaptar a que foi utilizada contra o cigarro e teremos mais uma cruzada em prol da saúde. Aquela que será desencadeada contra o sexo terá na defesa dos bons costumes e da moralidade os seus fundamentos de maior envergadura. De pronto, algumas respeitáveis entidades passarão a ser os arautos da abolição do sexo antes do casamento, e neste concordarão apenas se o objetivo for a procriação. Condicionamentos ao comportamento humano aumentam a cada dia. Uns são antigos, emanam de regras tradicionais que regulam o relacionamento interpessoal. São aceitas e cumpridas pela maioria, que têm consciência da necessidade de obedecê-las, em nome da harmonia social. Outros, no entanto, surgem como decorrência de novos costumes, hábitos recentes, manias que se espalham de forma invisível e acabam se alojando no corpo social, com a eficiente colaboração da mídia e não raras vezes apresentando nítido interesse comercial. Por vezes, leis são editadas determinando a adoção de tal ou qual comportamento, sob pena da aplicação de sanções. E, como há pairando sobre nós uma cultura repressiva, para que a lei tenha eficácia, apela-se para a polícia que passa a ser a guardiã do seu cumprimento. Lembre-se das cadeirinhas para crianças, cuja obrigatória utilização passou a ser um caso de polícia. Blitzes foram organizadas, nos moldes daquelas formadas para combater o crime. Policiais armados passaram a verificar a existência ou não das cadeiras, perante os aturdidos pais e das assustadas crianças, com o mesmo empenho empregado nas batidas para encontrar tóxicos e armas dentro de automóveis. Quantos abusos não foram cometidos nas ações de combate ao álcool ingerido por motoristas. As autoridades, amparadas pela lei que é genérica, a cumprem de forma indiscriminada, sem levar em conta as diferenças e nuances de cada caso, as quais se consideradas evitariam uma série de injustiças e de desmandos. Não se pode culpar os policiais, pois não sendo juízes, não levam em conta as particularidades de cada caso, e colocam na vala comum todos os excederam os limites legais, pouco importando o grau do excesso. Em verdade, quanto mais leis são editadas para regular a conduta das pessoas, mais deseducada é a respectiva sociedade. Com efeito, a liberdade de escolha com responsabilidade, o respeito aos direitos alheios e aos da coletividade, o senso claro dos limites de suas ações, a solidariedade e o sentido do bem comum podem substituir imposições legais. Campanhas educativas bem conduzidas igualmente podem alterar situações danosas, sem nenhuma coação sancionatória. Lembre-se da campanha anti tabagismo que produziu excelentes resultados sem qualquer ameaça de punição. Em resumo, a lei não altera comportamentos, que são melhorados quando há a assunção individual e coletiva de responsabilidades. Isto é civilização. Desta forma teremos uma sociedade mais consciente dos seus deveres e ao mesmo tempo dos seus desejos e necessidade, e, com certeza menos restritiva e chata.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cadeira de balanço

Era imenso o prazer de ficar sentado em uma cadeira de palha e de balanço, ouvindo-a contar histórias, que sempre eram as mesmas. A cadeira de balanço era a sua preferida, mas para o neto ela a cedia, sentando-se em uma outra, que também balançava, mas que não era a típica cadeira de balanço do mobiliário brasileiro tradicional, como a outra. Não se pense que o seu despojamento significava que eu fosse o seu neto preferido. Não, com certeza eu não o era. Ela possuía netos e netas, éramos dez ao todo. Suas inclinações eram para alguns, dentre os quais meu irmão José Eduardo, que pela proximidade das nossas casas e pela sua pouca idade, era o seu xodó, ou um deles. Os outros eram, Celina, a mais velha de nós e Eduardo, talvez aquele que a cativasse por ser o mais engraçado e arreliento de nós todos. Mas, não se pense também que os outros, os fora do rol dos preferidos, não fossem alvo de sua extremada afeição, do seu carinho e acima de tudo da sua paciência. Sim, ela era afetuosa e paciente com todos nós, especialmente comigo que a fazia repetir histórias já contadas. Como todas as avós da minha geração, ela era uma exímia cozinheira. Na verdade ela se destacava como doceira. Os seus doces eram magníficos, à base de ovos, farinha, de muito açúcar, e, evidentemente, colesterol, mas o bom. Para irmos tomar refeições em sua casa não era necessário aviso prévio. Não, não era preciso, isto porque a qualquer hora do dia ou da noite a mesa estava posta. A farta mesa era apenas para ela e para uma empregada, pois morava sozinha desde a morte de meu avô. O hábito de manter a mesa posta é também uma tradição da família brasileira antiga, tal como a cadeira de balanço. Voltando à cadeira de balanço, eu me sentava e ela, antes de sentar-se na outra, que como disse, não era a verdadeira, abria o seu pequeno bar, e servia-me um martini. Ela também se servia da intragável bebida. Na verdade, abominável bebida, pois além de naturalmente ruim o martini servido era doce. Eu estava começando a adquirir cultura etílica, que foi se aperfeiçoando com o tempo, levando-me a nunca mais tomar o execrável martini doce. No entanto, depois de muito refletir, eu cheguei à conclusão de que as bebidas ruins se tornam toleráveis e até apreciáveis dependendo do nosso estado de espírito, e da companhia com quem se bebe. Devo dizer que a minha avó justificava seus esporádicos goles, ora de vinho, ora de martini , ora de wisk, com a sua pressão arterial. Se a pressão estivesse alta a bebida indicada era uma, se estivesse baixa era outra. Por vezes ela as invertia... Certo dia, em seu aniversário, meu primo Eduardo apareceu na sala onde estavam todos os seus filhos, noras, netos e demais convidados, empunhando uma garrafa de cachaça que ele afirmou, marotamente, haver encontrado em baixo da cama de nossa avó. Exibiu a garrafa, salvo engano era da marca "Tatuzinho" e perguntou a ela: "Vó, o vinho é para pressão alta, o wisk para pressão baixa, e a cachaça? Vovó não se fez de rogada e de pronto respondeu: "Ah, o médico não falou para que servia a cachaça..." Esclareça-se, que a história da cachaça foi invenção do seu neto, meu primo. No entanto, é verdade que vez ou outra ela ingeria uma "pinguinha", mas na forma de "meia de seda" ou de " leite de onça", preparados por ela. Fecho mais esse parêntesis e retorno à cadeira de balanço. O abominável martini doce era acompanhado por castanhas de caju, pois sempre havia uma latinha em seu bar. Como eu disse, as histórias que ela contava eram as mesmas, mas nunca eram contadas da mesma maneira. Assim, algumas delas apresentavam versões diferentes, fato que as tornavam ainda mais interessantes. Alguns dos episódios por ela narrados, por terem várias versões, ficavam envoltos em mistério, que ela fazia questão de não desvendar. Um desses episódios eu denominei de "baile branco". Outra pausa, minha avó era belíssima, conforme atesta uma sua foto tirada aos dezoito anos, que ficava em cima do piano da sala. Pois bem, a cidade de Sorocaba, sua terra natal, no início do século passado, era rica e cultivava hábitos da corte. Um desses era o seu famoso "baile branco", acontecimento onde imperava o requinte, a elegância e a sofisticação da época. Ponto alto da temporada de eventos e festas sorocabanas, a preparação do baile antecedia meses e a festa era aguardada com muita ansiedade pela sociedade, em especial pelos jovens. Minha avó se ufanava de sempre ter sido considerada a mais bela jovem do referido e de outros bailes, festas e recepções de sua cidade natal. Era, segundo dizia com indisfarçável orgulho, a mais assediada e cortejada, sendo disputada para todas as danças. Durante os tradicionais footings, todos os olhares se voltavam para ela e não eram raros os tropeções e os esbarrões quando pescoços se viravam para vê-la e para chamar a sua atenção. Dentre os seus admiradores havia um farmacêutico, ainda de acordo com a sua nada modesta narrativa, que estava apaixonado, mas com quem ela nada queria. À época, ela já namorava o meu avô. Inconformado com o desinteresse de minha avó, o farmacêutico que conhecia e mantinha relações com meu avô, o teria atraído para a sua farmácia, na tarde da realização de mais um baile branco. Meu avô teria ido, se não fosse a interferência de um amigo que desconfiado das intenções do boticário, impediu a sua ida. Nesse ponto a história se tornava nebulosa, misteriosa. Indagada por mim, sobre o que pretendia o seu fã com o seu namorado, futuro marido, ela limitava-se a dizer que os seus objetivos não eram os mais saudáveis. Segundo corria na cidade o farmacêutico estava tramando a morte de meu avô. Nunca se soube se o risco era real ou não, bem como qual seria o meio empregado para o homicídio. Outras tantas histórias eram contadas. Suas, de meu avô, de irmãos, sobrinhos, cunhados e demais parentes. Uma delas era a de um sobrinho, extremamente mentiroso, que emocionava suas tias, incluindo a minha avó, quando narrava as agruras por que passara na revolução de 1932. Dizia ter comido papel de jornal durante quase uma semana, pois não tinha com o que se alimentar. Após a narrativa, as tias comovidas às lágrimas, cotizavam-se e davam um dinheiro para o faminto sobrinho, que dizia precisar de tratamento médico, pois ainda sofria do estômago pelo excesso de jornais ingeridos. Havia uma sobrinha que muito a preocupava, quando ia à sua casa. Tratava-se de uma enfermeira que se especializara em cuidar de senhores idosos, ricos e viúvos, com os quais ela se casava. Casou-se três ou quatro vezes, número de vezes que ficou viúva. Apesar de seus cuidados, seus maridos morriam em suas mãos. Meu pai dizia, com seu peculiar jeito galhofeiro, que ela provocava a sua viuvez. De tanto meu pai repetir essa sua teoria, vovó passou a não ficar à vontade com as idas da sobrinha à sua casa... Mais e mais histórias ela as contava, mais eu as queria ouvir, pouco importando se novas ou repetidas. O encanto das suas recordações, a suavidade de sua voz e o embalo da cadeira de balanço me proporcionavam uma "pacata satisfação de viver", muito marcante em minhas recordações.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Chácara Zizi

Era uma propriedade com aproximadamente vinte e quatro mil metros, equivalentes a um alqueire paulista. Localizava-se em Diadema, ainda não elevada à categoria de município. Na verdade, era uma pequena vila, chamada, salvo engano Vila Conceição, com uma igreja, um bar empório e pouquíssimos habitantes. Não possuía asfalto e era carente de muitos outros benefícios urbanos. No entanto, ou talvez por tais características, possuía o encanto de um bucólico vilarejo. Não me lembro de Diadema ser cortada por nenhum riacho, mas deveria haver algum. Frequentei a chácara Zizi, nome em homenagem à minha avó paterna, em dois momentos da minha vida. Na infância e na adolescência. Foram experiências distintas. Eu tenho algumas vagas e agradáveis lembranças das idas da família à chácara quando era criança. Recordo-me que havia problemas com a energia para a iluminação da casa. Existia uma máquina, movida à querosene ou à gasolina, que deveria ser acionada por uma cordinha. A geradora estava localizada na garagem, e meu pai se incumbia do seu funcionamento. A torcida era grande. Todos ansiosos aguardavam a luz surgir na casa e na própria garagem. Quando isso não ocorria de imediato, meu pai ia perdendo a paciência, até que dava um fatal puxão na corda. Pronto, arrebentada outra deveria ser providenciada. Começava outra luta, esta travada pelas mulheres que exercitavam a sua capacidade de improvisação. Usavam pedaços de corda, pano rasgado e até fios de lã. Enquanto não retornava a paciência de meu pai e a luz, a escuridão era quebrada apenas por um grande lampião. Imagem que também tenho nítida na memória é a de minha avó fazendo pães em forno apropriado, que ficava fora da casa. Os pães eram colocados e retirados do forno de alvenaria com uma enorme pá de madeira e eram comidos na hora em que ficavam prontos. Quentes, a manteiga derretia. Até hoje tenho a agradável sensação de os estar comendo. Do aroma também me lembro. Lembro-me das frutas da chácara. Na verdade, não havia um pomar, mas sim inúmeras árvores frutíferas espalhadas pelos quatro cantos e que nos forneciam jabuticabas, goiabas, pequenas mexericas e mangas. Como eu era de pouca agilidade física, não as colhia em uma das árvores. Esperava que caíssem ou que alguém as colhesse para mim. As jabuticabas enchiam bacias que eram distribuídas a quem as quisesse. Das goiabas restou o aroma, pois o sabor não me agradava, a não ser quando transformadas em doce. As mexericas, azedinhas e abundantes em caldo, deixavam inesquecível cheiro nas mãos ao descascá-las. As mais apreciadas eram as mangas, estupendas mangas. Havia um pequeno campo de futebol, que na minha infância também servia de quadra de tênis. Rodeado pelas árvores, tinha em uma das laterais uma fileira de pé de café. Para mim, um enorme cafezal . . . Ao lado do campo havia um alpendre onde a família se reunia para os almoços. Quando dormíamos na chácara, eu me fazia acompanhar de uma bela cartucheira de madrepérolas, que continha dois revólveres dourados. Ao deitar-me pendurava as "armas" na porta e sentia-me protegido e seguro. Por falar em armas, há uma história corrente na família que meu tio Eugênio Mariz de Oliveira Neto - Marizito - combatente de trinta e dois, escondera seu fuzil na chácara, enterrando-o em algum lugar. Jamais se comprovou tal fato. No entanto, já crescido, eu encontrei uma caixa de lata repleta de balas, provavelmente a munição do misterioso fuzil. Depois da infância voltei a ir à chácara Zizi, já a partir dos catorze, quinze anos até ela ser vendida. A família já não ia mais. Outra gente passou a usufruir daquele paraíso campestre. Era a minha gente, tal como a minha família. Éramos gente da rua, da nossa rua Stella. Éramos da rua e também de rua, pois dela não saíamos. O nosso mundo era a Stella e adjacências. A casa servia apenas para as refeições, assim mesmo algumas delas e para dormir, isto por indeclinável imposição dos pais. No fim da década de cinquenta e início da seguinte, passamos a ir à chácara com grande regularidade. Pegávamos o ônibus Diadema na rua Domingos de Moraes. Nunca éramos em menos de quinze. Levávamos bola, chuteiras, naquele tempo eram chamadas também de chanca, algumas vezes camisas de clubes de futebol e, pasmem, alguns entravam no ônibus portando espingardas de chumbo. Não se assustem, pois a fauna era preservada. A pontaria dos caçadores era ridícula. O trajeto era longo. Saíamos por volta das oito horas e não chegávamos antes das nove. Mas, era sempre uma festa. Sempre uma festa, que se prolongava durante todo o dia, até o anoitecer, quando voltávamos. Por vezes, a festa era entremeada por acalorados bate bocas, que se transformavam em confronto físico, de imediato contido e findo com a confraternização dos contendores. Os entreveros ocorriam sempre nos embates futebolísticos travados no que achávamos fosse um campo de futebol. As partidas eram constantemente interrompidas ou pelas brigas, ou porque perdíamos a bola ou ainda porque as traves caiam. A chácara possuía uma vegetação exuberante. Com grandes árvores, mata densa, cortada por alamedas que conduziam à sua parte baixa, onde havia um riozinho que formava um pequeno lago aonde nadávamos, ou melhor nos molhávamos. No entanto, o que mais a ornamentava eram as hortênsias. Maravilhosas hortênsias existentes na entrada da chácara, do portão até a casa e ao seu redor. Lateral à cerca de arame que fazia divisa com outra propriedade, nos fundos da chácara, corria um estreito caminho que ligava as suas duas extremidades. Nesse caminho existia uma imagem de Nossa Senhora, dentro de uma pequena gruta. Nos referíamos à ela como a "santinha". Além da casa principal, casa simples, havia a casa do caseiro. Em frente a ela algo somente visto em gravuras e fotos de outros países: um moinho de vento. Na verdade, a chácara nos oferecia contato com coisas absolutamente inexistentes em São Paulo. Além do moinho de vento, da "santinha", das árvores frutíferas, da máquina de produzir energia, das hortênsias, do forno para pães, havia um chiqueiro, com porcos de verdade, uma máquina para moer cana e fazer garapa, um milharal, um fogão à lenha e uma enorme caixa d'água. A chácara nos proporcionava uma ruptura dos nossos padrões urbanos. Entrávamos em contato com um pequeno mundo rural, que para nós era absolutamente desconhecido. Ademais, nós nos sentíamos livres de quaisquer proibições. Por vezes chegamos a invadir um propriedade vizinha, para usufruir a piscina lá existente. Ficávamos até a inevitável expulsão, sob a mira de espingarda que imaginávamos fosse de sal ou de chumbinho. Naquela época não se atirava para valer. Na realidade, na nossa trajetória de vida, há símbolos marcantes. A chácara Zizi teve um significado extraordinário em minha vida. Como bucólico espaço físico simbolizou a fuga da vida urbana para a rural; bem como a transposição dos afazeres do estudante e do iniciante trabalhador para o ócio, para os folguedos, para o esporte - mal praticado, diga-se. Era a maravilhosa vagabundagem exercitada com amigos fraternos, inesquecíveis cúmplices de uma inesquecível experiência existencial.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Os engraxates

Durante quatro anos seguidos eu frequentei Águas de Lindóia, balneário localizado no interior de São Paulo, dotado de águas milagrosas, pelo menos era o que se dizia. Para o meu problema de alergia de pele elas eram salvadoras. Eu lá ficava durante vinte e um dias, que era o prazo da temporada. Acordava às seis horas para tomar os banhos medicinais e de meia em meia hora, ou menos, não me lembro, tomava as águas em quantidades dosadas. As manhãs eram desagradáveis. Começavam cedo e eram quase integralmente gastas com banhos e ingestão de água. Havia ocasiões que eu ainda conseguia, ao voltar para o hotel, que se chamava do Lago, andar a cavalo. A cidade possuía uma única rua, não asfaltada; um único cinema, chamado Guarany; uma única farmácia, na qual eu comprava sabonetes e cremes medicinais, todos fabricados pelo Dr. Tozzi, dermatologista famoso, percussor dos tratamentos. Eram inúmeros e imponentes os hotéis, destacando-se, à época, o Tamoio e o Glória, esse o mais elegante e frequentado principalmente pela colônia libanesa. O cinema também era único. Cine Guarany - havia um hotel, chamado também Guarany e a farmácia, idem Guarany. Não sei a razão, mas eu me lembro de um filme que ficou gravado em minha memória, ou melhor, apenas o nome do filme, pois nem sei se o assisti. Chamava-se "A Condessa Descalça" salvo engano com a atriz Ava Gardner. Mas, na verdade eu não quero falar de Lindóia, mas dos engraxates de Lindóia, que podem representar todos os engraxates espalhados pelo Brasil. E mais, encarnam todos os prestadores de serviços, que exercem funções imprescindíveis para o nosso cotidiano, sem os quais nos colocamos por vezes em desespero, tal a necessidade que temos dos seus trabalhos. São os eletricistas, os encanadores, os pintores, os marceneiros, no meu tempo de criança os limpadores de fossa, os mecânicos, os sapateiros e tantos outros. É bem verdade, que muitos deles não mais trabalhavam individualmente, pois estão empregados em firmas prestadoras desses mesmos serviços. No entanto, ainda os há laborando em suas pequenas oficinas e nos atendendo em casa ou, como os engraxates, nos servindo nas ruas, quando não nas barbearias ou nos aeroportos. Uma parcela da nossa sociedade se refere a eles como serviçais. Os engraxates de Lindóia percorriam o balneário e os terraços dos hotéis da cidade, inclusive o terraço do Hotel do Lago, onde eu me hospedava. Eu me impressionava com a habilidade manual desses artistas do brilho. Escovas, panos, latas de graxa e vidros de tinta passavam por suas mãos com uma rapidez e agilidade incríveis. Os sapatos ficavam reluzentes, especialmente os de verniz. Estes se transformavam em verdadeiro espelho. E, com que orgulho os engraxates, eram pequenos engraxates, ao final da engraxada, olhavam para a sua obra de arte, os sapatos, e para o freguês, aguardando um elogio. Os engraxates tinham suas manias, os seus códigos e normas, que eram seguidos a risca por todos eles. Quando era para o freguês, ou melhor, o cliente, pois assim eles os chamavam, trocar de pé batiam com a escova do lado da caixa; quando o pé não ficava muito firme, para acertá-lo davam um ligeiro empurrão na ponta ou no calcanhar; se o cliente fosse antigo e conhecido por dar boas gorjetas ao invés de uma mão de graxa, eram aplicadas duas ou três; ao terminar a engraxada nada era dito, eles se limitavam a retirar os protetores das meias. Gostava de vê-los em ação. Eram ótimos no que faziam e sentiam orgulho em dar lustre nos sapatos alheios. Consideravam tal tarefa de primordial importância para a composição estética de um homem. E, realmente, sapatos bem engraxados denotam asseio pessoal, bom gosto e elegância no trajar. Eram orgulhosos e briosos, possuíam autoestima. Enfim, estavam felizes consigo e não se sentiam inferiorizados pelo que faziam e por estarem em contato permanente com pessoas de outra classe social, especialmente com jovens, muitos deles arrogantes e sem educação. Se de um lado eu sentia admiração pelos engraxates, a atitude de alguns, e não eram poucos, de seus clientes me causava revolta e indignação. Não eram os jovens apenas, mas também seus pais, que demonstravam pelas atitudes rudes e por vezes agressivas o desprezo que sentiam por aqueles que estavam numa atitude que eles imaginavam de subserviência. A colocação física de ambos, um em plano elevado sentado, e o outro abaixado aos seus pés, já dava essa impressão. Depois, um trabalhava e o outro aguardava para pagar. E, o fazia com pouco caso, como se fosse uma esmola e não a remuneração por um trabalho. Não houvesse engraxates para terem os sapatos limpos teriam que sujar as mãos com graxa. Algo inadmissível. Nenhum dedo de prosa; nem bom dia ou até logo; inimaginável um elogio, mutismo absoluto, exatamente para configurar a distância de classes. O pouco caso, a soberba e a empáfia de muitos dos clientes chamavam a minha atenção e provocavam uma revolta silenciosa, pois eu nada dizia. Ou melhor, dizia sim aos meninos engraxates. Indagava se eles não se sentiam mal, até humilhados em face do constante menosprezo do qual eram vítimas. Respondiam que não, pois estavam habituados. Ademais, o seu ganha pão, e para muitos o sustento de toda a família, dependia do que lhes era pago pelas engraxadas. A situação dos engraxates de Lindóia retrata aquela que ainda persiste em nosso país e em outros cantos do mundo em vários níveis e circunstâncias. Um fosso social, aberto e mantido por uma pseudo elite que insiste em se manter isolada do contexto social existente, e mais, que apregoa e age como se houvesse uma ridícula superioridade entre os vários segmentos da sociedade. Esta elite gostaria que houvesse um verdadeiro apartheid social.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A ré fujona

Sua aparência era a de uma moça simples, humilde, extremamente tímida e recatada. Pouco falava, fato que em muito dificultou as primeiras entrevistas. Casada há vários anos, certo dia matou o marido. Matou-o com um tiro na nuca. Sim, a vítima foi atingida na nuca quando assistia à televisão. Aguardava a esposa vestir-se para irem a um casamento. Ela desceu as escadas da casa armada e sem nada dizer acionou o gatilho alvejando-o mortalmente. Em uma primeira versão afirmou haver tropeçado em um carpete... A minha primeira preocupação foi saber os motivos que a levaram ao cometimento do crime. No entanto, nem nas primeiras nem nas últimas reuniões ocorridas às vésperas do Júri, eu soube com clareza as razões do homicídio. Evasivas e frases por vezes desconexas, perguntas sem respostas, falta de objetividade deixaram-me sem conhecer os fatos que teriam armado as mãos daquela moça franzina, retraída, de pouco fala. Não só por necessidade profissional, para poder aparelhar-me a fim de defendê-la adequadamente, como por natural curiosidade, passei a conjeturar, formular hipóteses e suposições, procurando desvendar o mistério que cercava o homicídio. A partir de um não pequeno rol de cogitações eu fazia as mais variadas indagações, na procura dos motivos do crime. Mas, nada. Absolutamente nada me era esclarecido. Agressividade do marido; existência de outra mulher; algum interesse patrimonial; algum tipo de pressão psicológica, enfim, árduos exercícios mentais não conduziram a nenhuma resposta. Enquanto foi possível, a defesa centrou-se em questões processuais, levadas ao conhecimento de todas as instâncias, por meio dos recursos cabíveis, após a decisão de pronúncia. A grande preocupação continuava a ser o desconhecimento das causas da sua conduta. Ela, por sua vez, continuava em seu mutismo. Interrogada pelo magistrado, tal como fizera no inquérito, prestou declarações evasivas, contraditórias e, portanto, nada esclarecedoras. Após todo o curso do processo passei a achar que a sua conduta fora desmotivada. Agressões, traição, abandono material, maus tratos, ameaças, incompatibilidades com a família do marido, enfim, todas as situações e razões possíveis que caracterizam homicídios dessa natureza não se apresentavam como causa daquele crime. Sempre que eu indagava sobre esse ou aquele motivo, ela não o confirmava, mas também não o negava peremptoriamente, deixando no ar possibilidades variadas. A denúncia atribuía o móvel do crime à ameaça de abandono. Mas, na mesma peça estava estampado que o casal iria, por consenso, separar-se. Uma outra razão foi posta na inicial: a mulher se negava a engravidar, contrariando o desejo do marido. Por fim, a imputação continha o ingrediente dos ciúmes, como o motivo do homicídio. Vê-se a falta de coerência da própria acusação quanto aos motivos do crime. Não se trata de falta de objetividade ou de desatenção do promotor, ao examinar a prova. A confusa denúncia foi fruto da confusa prova até então existente nos autos, confusão esta que não restou sanada durante a instrução processual. A pronúncia sobreveio e algum tempo depois foi marcada a data para o julgamento perante o tribunal do Júri. No dia, um clima de tensão instalou-se no plenário. O julgamento de Suely veio cercado de especial expectativa, pelo manto de mistério que envolvia os motivos do crime e pela sua forma de execução, deveras chocante. O seu interrogatório não removeu o mistério. A ré tergiversou, gaguejou e, por fim, emudeceu. Os prognósticos do Júri eram os piores possíveis. A defesa técnica não teria nenhum respaldo na autodefesa, praticamente inexistente. Após o relatório feito pelo magistrado, houve longa leitura de peças, e nitidamente a má impressão causada pelo caso desde o início do julgamento foi reforçada. Por volta das vinte e duas horas o magistrado suspendeu a sessão, não sem antes providenciar alojamento no fórum para que os jurados e as testemunhas de acusação e de defesa pudessem pernoitar, dentro do regime de incomunicabilidade determinado pela lei. A acusada, por estar em liberdade, retirou-se, com o compromisso de retornar no dia seguinte pela manhã, para que o julgamento tivesse prosseguimento com o depoimento das testemunhas e os debates. No dia seguinte, toda a liturgia do julgamento foi seguida para a reinstalação da sessão, com a presença de todos os protagonistas da cena judiciária : juiz; jurados; advogado; promotor, funcionários, policiais; espectadores e... claro, faltava alguém, exatamente a figura de proa, a personagem indispensável à continuidade do espetáculo: a acusada. Esperou-se horas. Aliás, espera-se até hoje, pois o banco destinado aos réus continua vazio. Suely desapareceu, rigorosamente desapareceu, pois eu nunca mais tive notícias a seu respeito. Talvez tenha tido a sensibilidade de verificar que seu caso era perdido. Ou, soube do fato ocorrido naquele mesmo dia, em outro plenário vizinho : o acusado saiu algemado ao final da sessão. Possível que tivesse receosa de ter o mesmo destino, ou ainda, hipótese não descartável, não confiou em seu advogado !
terça-feira, 30 de agosto de 2011

Lendas, mitos e símbolos

Interessante crônica escrita por Ruy Castro e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, denominada "Publique-se a Lista", mostra como certos fatos passam a ser aceitos tal como foram narrados, sem, no entanto, estarem de acordo com a realidade e como certas afirmações adquirem ares de verdades absolutas, quando são totalmente contestáveis. São as lendas, os mitos e os símbolos que passam a compor a realidade em substituição aquilo que verdadeiramente é, mas que passa a deixar de ser. Na crônica, Ruy Castro faz menção a um filme, "O Homem que Matou o Fascínora", onde um senador americano construiu a sua carreira política com base no fato de haver matado um célebre criminoso, quando na verdade o responsável pela morte havia sido um ex-pistoleiro, protagonizado por John Wayne. O senador é vivido por James Stuart. Durante anos, aquela versão foi considerada verdadeira e surtiu os efeitos políticos desejados pelo senador, até que ele resolveu revelar a verdade a um jornalista, que lhe disse "quando a lenda se torna realidade publica-se a lenda". Ruy Castro, na mesma crônica, mostrou que entre nós houve uma disputa entre dois políticos mineiros a respeito da autoria de uma máxima semelhante àquela referente ao filme. "O importante não é o fato, mas a versão". Quando José Maria Alkmin disse a Benedito Valadares, até então considerado o autor da frase, que ele estava se apropriando do pensamento que era dele, Valadares de pronto lhe respondeu que realmente o que importava e prevalecia era a versão e não o fato... Na mesma edição, o jornal publicou um artigo do erudito Antonio Cícero, em que ele fala sobre Fernando Pessoa e os mitos e discute se os mitos precedem à poesia ou se é esta a criadora dos mitos. Citou, ainda, uma frase de Pessoa digna de reflexão: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade". A propósito é pertinente uma comparação entre a mitologia e o simbolismo esse tão em voga nos dias de hoje. Os mitos e as lendas são pré existentes e impessoais, criados pela cultura popular ou fruto da criação poética, literária e mesmo filosófica. Já o simbolismo tem uma conotação pragmática, pois se dirige a fins específicos que geralmente objetivam enganar e iludir. O simbolismo transmite conceitos e impressões que não correspondem à realidade dos fatos e das verdadeiras intenções. Cria situações ilusórias que ficam entranhadas no subconsciente coletivo, influencia condutas e forma convicções, dando a enganosa ideia de que algo é, quando na realidade não é. Um observador atento da sociedade brasileira poderá verificar que houve uma substancial modificação na tábua de valores que rege a vida em sociedade e as relações inter-pessoais. Outros são os referenciais e os critérios de avaliação da conduta e do caráter das pessoas. Houve época em que se prestigiava o ser. A característica que prevalecia e tinha realce nas pessoas e nas situações da vida era a que constituía a sua essência, o seu eu, a sua própria realidade. Posteriormente, houve uma substituição do ser pelo ter. Houve uma tal voracidade consumista que provocou uma transformação rápida e radical na sociedade. Passou a valer aquele que possuía e não mais aquele que era. Soma-se à ganância a esperteza, representada pela famigerada "lei de Gerson". Durante algumas décadas, constituímos uma sociedade hedonista, pouco solidária e individualista. No presente, percebe-se um retorno, embora tímido, aos valores que não têm na competição e no consumo seus pontos mais salientes. Esse movimento é percebido especialmente nas classes baixa e média. Talvez os percalços do cotidiano provocados pela natureza e pelo próprio homem que os atinge mais diretamente, estejam provocando a necessidade de mais solidariedade, compreensão, harmonia e paz nos relacionamentos entre as pessoas. O sinônimo de qualidade de vida nessas camadas não está mais na tentativa exclusiva da obtenção de bens materiais. Paz de espírito, união familiar e amizades sólidas, somadas à satisfação dos anseios básicos de saúde, educação e habitação, preenchem as necessidades para uma vida satisfatória. No entanto, esta saudável reversão não atingiu as classes mais favorecidas. Nelas prevalece a competição pelo ter e agora, não é mais o ter, mas sim o parecer ter e o parecer ser. Assim, voltamos ao simbolismo. A aparência prevalece sobre o real, e é o que importa. O cosmético encobre a essência e como é adotado por cada um, é aceito por todos sem nenhuma indagação sobre o ser verdadeiro. Conclui-se que para as elites endinheiradas prevalecem as máximas citadas pelo cronista Ruy Castro "quando a lenda se torna realidade publica-se a lenda" e "o importante não é o fato mas a versão".
segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O historiador da advocacia

Com seu grande talento de escritor e de historiador, Pedro Paulo Filho poderia ter ido exercer essas atividades em São Paulo, juntamente com a advocacia, sua paixão profissional. No entanto, preferiu permanecer em sua terra natal, advogando, escrevendo e pesquisando sobre a advocacia e sobre Campos do Jordão. O escritor possui um estilo claro e objetivo, com a elegância daqueles que dominam o idioma de tal forma que não precisam recorrer ao estilo pernóstico e sofisticado dos que desejam mostrar uma pseudo-erudição e uma aparente cultura, que encobrem a carência de conteúdo e da solidez de pensamento. Como historiador, ao lado da pesquisa minuciosa e abrangente, consegue retirar dos fatos e das situações estudadas a essência, o significado real, os desdobramentos que superaram os limites temporais e provocaram consequências e múltiplas influências no futuro. Como disse, basicamente dois têm sido os alvos de suas incursões como historiador: Campos do Jordão e a advocacia. Ao narrar, em suas várias obras sobre a cidade, os fatos marcantes de sua história, as suas lendas e as suas tradições, Pedro Paulo consegue retratar a própria alma de seu povo. Quanto à advocacia, escreveu alguns livros fundamentais para o pleno conhecimento da profissão, da sua historia, das suas figuras marcantes, das dificuldades do seu exercício nos períodos de exceção, das razões que a tornam uma das atividades mais belas do homem, como disse Voltaire, mas também uma das mais incompreendidas. Escreveu: "Advogados e Bacharéis - Os Doutores do Povo"; "O Bacharelismo Brasileiro"; "Famosos Rábulas no Direito Brasileiro"; "Notáveis Bacharéis na Vida Boêmia" e "Grandes Advogados, Grandes Julgamentos", que constitui um dos mais extraordinários livros sobre advocacia escritos em todos os tempos e línguas. Nessa valiosa obra, Pedro Paulo Filho ao discorrer sobre advogados e julgamentos que ficaram registrados na história da humanidade descortina toda a grandeza e magnitude de uma profissão que, de tempos em tempos, e hoje vivemos um desses períodos, é alvo da quase unânime desaprovação da sociedade. O livro mostra em seus capítulos, mesmo naqueles onde estão presentes narrativas prenhes de comicidade e folclore que tal como o advogado talvez nenhum outro profissional tenha um contacto tão estreito com o homem em sua inteireza com as suas misérias e com as suas grandezas. Esse conhecimento transforma o advogado em um ser complacente, compreensivo e indulgente. Tem ele pleno conhecimento de que não existe o bem absoluto ou o mal exclusivo. Tem ciência da presença do verso e do reverso em todas as situações vividas pelo homem. O livro oferece exemplos da coragem, do humanismo, do amor à liberdade e à justiça, do culto ao Direito, da sensibilidade, do altruísmo e do espírito de abnegação que dignificam a advocacia, que no dizer de Voltaire 'é o mais belo estado de espírito do homem e que a eleva a categoria de sacerdócio'. O Tribunal do Júri recebeu de Pedro Paulo Filho grande realce e não sem razão. O júri simboliza a profissão em sua plenitude, pois lá a liberdade de atuação do advogado é ilimitada; nele as suas qualidades de orador, de argumentador, cultor das ciências jurídicas, conhecedor do homem e da vida podem atingir culminâncias extraordinárias. Por outro lado, é no júri que desfilam os dramas e as tragédias humanas; é nele que o homem é dissecado, vindo à baila os seus mais nobres sentimentos ao lado de suas mais abjetas perversões. E é com esse material que trabalha o advogado, ao lado de promotores, juízes e jurados constituindo o júri um cenário fascinante de exposição da própria condição humana. Outros tribunais estão retratados nos "Grandes Advogados, Grandes Julgamentos". Tribunais perante os quais foram decididas causas de naturezas diversas, dentre as quais as políticas. Nas cortes com competência para o julgamento dos crimes políticos, os advogados sempre tiveram atuações marcadas pela coragem, pelo amor à liberdade e pelo inquebrantável compromisso de exercer o sagrado direito de defesa. Da sua amada Campos do Jordão distante de toda e qualquer publicidade, aparição pública ou outro meio de promoção pessoal, Pedro Paulo Filho tem dado uma contribuição extraordinária e incomparável para o resgate e para a valorização da advocacia brasileira.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A velhice

A minha sogra, com a sabedoria das mulheres forjadas na labuta doméstica, mas tendo os olhos voltados para o mundo que as cerca, e dotadas de uma inata sensibilidade, costumava dizer que apenas a criança era alvo de alguma, vejam bem, alguma, portanto insuficiente, preocupação da sociedade brasileira. Já o idoso não. Esse, na reta final da jornada é deixado ao "deus-dará" e Deus não dá, exatamente porque os homens não querem e nada fazem. Considera-se o velho um estorvo. Asilos, abrigos, casas de repouso estão repletos de idosos sem família, ou o que é trágico, embora tendo parentes estes os abandonaram, limitando-se, os que podem, a pagar a conta todo mês. O amparo é meramente material. Um tímido movimento tem se esboçado no Brasil para valorizar homens e mulheres chamados da "terceira idade". Expressão que merece reparos pelo conteúdo discriminatório que possui. Por meio de campanhas procura-se mostrar que a partir dos sessenta anos as pessoas ainda possuem capacidade e aptidão para uma série de atividades, até então reservadas para os de menor faixa etária. A campanha publicitária feita em torno da valorização da "terceira idade" tem objetivos meramente comerciais, mas, de qualquer maneira, sempre provoca reflexão e alguma mudança. Na verdade, não me refiro aos inconvenientes naturais trazidos pela idade. Muito menos estou pensando nos velhos que estão bem. Bem nascidos, bem assistidos, bem nutridos, enfim amparados. Falo de uma outra velhice. Falo da velhice abandonada, tão grave quanto a infância largada e carente. Ao lado do amparo obrigatório que o Estado deveria dar ao idoso, seria fundamental que a sociedade encarasse a velhice sem o olhar da exclusão, com respeito e atenção. O velho tal como a criança quer e necessita de carinho, pois como disse Baudelaire "Quando ficamos velhos, os afetos contam mais que os conceitos". Há uma crônica do mesmo Baudelaire, encontrada no livro "Pequenos poemas em Prosa" onde é narrada uma dramática e cruel cena de uma velhinha que deseja aproximar-se de uma criança. O escrito chama-se "O Desespero da Velhinha". Narra, inicialmente, a alegria de uma senhora bem idosa diante de uma criança em seu berço. Ambas não possuem nem cabelos e nem dentes. Ela aproxima-se do berço procurando cativar a nenê com sorrisos e com caretas. No entanto, a sua tentativa de agradá-la foi em vão, pois a criança assustou-se e começou a berrar. A senhora afastou-se e disse: "Ah! Para nós, infelizes mulheres velhas, a idade impede de transmitir alegria mesmo aos inocentes; nós causamos horror às criancinhas a quem nós queremos mostrar amor". A simples figura de um velho, aí independentemente de sua condição social e do amparo eventualmente a ele dado, provoca certa rejeição para não dizer certa repulsa. Há uma cultura sedimentada que vê no idoso um ser semi-imprestável. Colocação profissional, atividades físicas mais intensas, vida amorosa, assunção de novas responsabilidades e até troca de afeto, como na crônica de Baudelaire são objetivos postos fora de seu alcance. Portanto, ao lado do abandono material há um outro tão cruel quanto. Trata-se da negação ao idoso de suas ainda existentes potencialidades físicas, mentais e, especialmente, afetivas. Uma obra clássica escrita por Cícero, "Saber Envelhecer", faz a apologia da velhice feliz e está a merecer uma adaptação e plena divulgação para ser posta à disposição de leitores, internautas, blogueiros, romanceada e adaptada para alguma minissérie, novela ou peça de teatro. As agudas observações do grande advogado romano levam-no a concluir que a vida proporciona prazeres para todas as idades, basta se querer identificar aqueles reservados para os idosos.
segunda-feira, 18 de julho de 2011

Competição culinária em família

Em minha família a mesa sempre ocupou um lugar de destaque na pauta dos interesses de todos. Minha avó paterna era uma exímia doceira. Doces basicamente de ovos, creme, maisena, muito açúcar, acompanhados, obviamente pelo colesterol, mas claro que pelo bom colesterol. A mesa em sua casa permanecia posta até a noite. Apenas mudavam as iguarias, adaptadas aos períodos do dia. Dentre todos nós destacava-se o meu irmão José Eduardo, um excepcional comilão, que levou essa marca até os cinquenta e quatro anos, idade em que nos deixou. Ele foi um grande colecionador de façanhas culinárias : comia de quatro a seis bifes a milaneza; tijolos ou latas inteiras de sorvete; coca-cola sem limites; pastéis, empadas e coxinhas em abundância. Certa ocasião comeu, juntamente com um amigo, também do ramo, noventa e poucas esfihas. Quando falava do espantoso número, ele fazia a ressalva de que comera apenas a metade daquela quantidade, mais de quarenta e cinco, e que as esfihas eram pequenas... José Eduardo, embora tivesse a sua vida caracterizada por outros interesses, objetivos e afetos, teve na comida uma razão de viver. Aliás, minha mãe dizia que as pessoas comiam para viver, mas que ele vivia para comer. As pessoas o identificavam por esse aspecto, e esse aspecto constituiu um elo afetivo real entre ele e os seus inúmeros amigos, além de sua irresistível simpatia, de uma graça natural e de um charme encantador. Eu imaginava que meu irmão fosse o grande glutão, o emérito gourmet, o festejado comilão. Cumpre salientar que ele tanto tinha um paladar apurado, como, em razão de seu apetite descomunal, apreciava guloseimas de duvidosa qualidade, com a mesma voracidade, entusiasmo e falta de moderação. Sempre considerei José Eduardo imbatível dentro da família. Mas, não. Embora não tenha sido destronado, parece que irá partilhar o "podium" com um primo, ou melhor com o neto de um querido amigo e primo, Eduardo Viegas Mariz de Oliveira. Trata-se de um jovem de dezesseis anos. Magro, espadaúdo, educado reservado aparentemente e enganosamente comedido. Pois bem, esse jovem, como tantos outros, é adepto da comida japonesa. Certo dia, foi com amigos a um restaurante onde os pratos típicos são servidos na forma de rodízio. Assim, durante horas, foram servidos temaki, somaki, tempura, guioza, e outros. À medida que se satisfaziam, os comensais iam agradecendo e cruzando os talheres. Para espanto dos garçons, apenas o meu primo neto não se saciava. E, mais vinha, mais ele comia e mais ele pedia. Até que, estupefato, mas acima de tudo preocupado com o seu estoque de peixes e demais alimentos que compõe a cozinha nipônica, o gerente, após um cálculo mental de seus prejuízos, verificou que seria menos gravoso às finanças da casa não cobrar o valor fixo do rodízio do que deixar que a voracidade do jovem lhe absorvesse o ganho. Meu irmão, de onde estiver, estará passando os seus bons fluidos gastronômicos, para que o seu sucessor honre a sua memória e dê continuidade às tradições familiares de bem e muito comer.
segunda-feira, 4 de julho de 2011

Como sofrem os e as avós !

Quando se anuncia a chegada de uma nova criança na família, sentimentos fortes tomam conta de todos. Entre a alegria e a apreensão surge a curiosidade. Como será quem virá? A primeira indagação refere-se ao sexo. E outras vão surgindo com o passar do tempo. Atualmente, já se pode saciar em parte essa curiosidade, antes mesmo do nascimento. Um belo dia, fui surpreendido com a foto da minha neta Maria Clara, que ainda estava para nascer. Perguntarão os menos atualizados, especialmente os da minha geração: como há foto de quem ainda não veio? E, realmente, o espanto ocorreu com um querido amigo e compadre, Carlos Miguel Castex Aidar. Contei-lhe que a foto de Maria Clara estava sobre a minha mesa. Ele me perguntou se era a foto de uma amiga comum, Maria Clara Gozzoli. Disse-lhe que era a da minha neta. Surpreso, indagou se ela já havia nascido. Diante da negativa, entre incrédulo e confuso, perguntou-me: se não nascera como poderia ter foto? Seu assombro, segundo explicou, residia no fato de não entender como a máquina fotográfica poderia captar a imagem da neta se ela ainda estava protegida pelo útero materno... Mas, se os avanços tecnológicos nos deixam perplexos e ao mesmo tempo encantados, é fascinante observar-se a reação e o comportamento de todos aqueles que esperam o nascimento de uma criança. Não se espantem, pois esperar uma criança não é privilégio exclusivo da mãe. A espera é compartilhada com várias outras pessoas. Claro que ela é o alvo maior das atenções e das preocupações. Seus desejos e caprichos, quase sempre incomuns, de difícil satisfação e manifestados nas horas mais impróprias, devem ser de pronto satisfeitos. Eu sei: ela é a mãe, traz no ventre o novo ser, mas digo e repito há outros que esperam juntos e também merecem respeito e cuidados. O pai, por acaso também não sofre, não se angustia, não sente também dores? Não as do parto, mas quantas dores surgem durante os nove meses, em partes do corpo antes não doloridas? Quanto aos desejos, ele também os tem, só que não há quem os satisfaça. Se a mulher tem a responsabilidade de dar à luz uma criança, quem tem a aterrorizante obrigação de conduzir a mãe e o nascituro (eta nominho feio) para a maternidade? Uma vez lá, tem duas alternativas: ou assistir ao parto, com reais riscos de dar mais trabalho aos médicos do que a parturiente, ou ficar andando de um lado para o outro no corredor frio, escuro e solitário do hospital. Após o nascimento, os carinhos até então exclusivos para a mãe são transferidos para o nenê. Ele, bem ele continua à margem, quando muito lembrado pelos amigos para pagar umas rodadas ou para fumar um charuto. Aliás, duas atividades hoje de difícil execução. E os avós. Ah! Os avós. Ninguém, rigorosamente ninguém, pensa nos avós, no apuro pelo qual eles passam. O pai sofre, mas sofre estando perto. Os avós não, eles estão longe, em suas casas. Sofrimento mudo, distante, sem queixas. Aliás, o sofrimento avoengo antecede o dos pais. Logo após a união, eles perguntam um ao outro: será que já há novidade? Indagação que fica entre quatro paredes. Os avós são os indagadores e os indagados. Não questionam os filhos para que eles não se sintam pressionados. Não se conversa sobre o assunto que vai se transformando em tabu, na medida em que o tempo passa. Com os outros avós então, nem em pensamento se faz referência às novidades que tanto se espera e que não são anunciadas. Ademais, se os avós, paternos e maternos, conversarem sobre o tema, logo virá a desconfiança sobre de quem é a culpa pela ausência da boa nova. Aliás, esta sempre será do genro ou da nora e não do seu rebento. E, tome sofrimento. Mas essa etapa passa. Outras virão, até o nascimento. Depois do nascimento, ocasião em que a confraternização é geral, lacrimosa e etílica, voltam as angustias, que, aliás, estiveram presentes durante os nove meses. Quando no dia do parto, se tiver havido a infelicidade de uns avós terem sido avisados e chamados antes dos outros, estes se sentirão alijados, postos de lado, malqueridos e a mágoa ser duradoura (será?). Claro que estou falando genericamente. Não é com todos os avós que isso ocorre. No entanto, por uma razão ou por outra, que eles sofrem eles sofrem. Os sofrimentos são provocados por "ciúmes" dos outros avós; pela ausência do neto ou neta naquele fim de semana; por não serem seguidos os seus conselhos e por tantas e tantas outras "relevantes" razões. A sorte é que as mágoas e as queixas migram, de uns para outros avós e acabam indo para o limbo do esquecimento. Aflições, tristezas, pequenas discórdias, "ciúmes", e coisinhas que tais, são substituídos pelo verdadeiro estado de graça e pelo sentimento de eternidade que o nascimento e a vida de um neto ou de uma neta nos proporcionam.
segunda-feira, 20 de junho de 2011

Uma esperança para o Brasil

Papai ao vê-lo dizia: "Gil, Gil, Gil esperança do Brasil". Disse isso durante bem, bem, uns quarenta anos. É verdade que não se viam constantemente. Ao contrário. Eram espaçados os seus encontros. Moravam em cidades diversas. Papai em São Paulo, tio Gil em Santos. A frase era dita apenas pela rima e nada mais. Meu tio ao ouvi-la abria um sorriso e pronto. O sorriso, embora repetido por todos aqueles anos, não era forçado, era espontâneo, sincero. Claro que não recebia a frase como verdadeira em seu conteúdo. Apenas agradava-lhe ouvi-la do cunhado, pois lhe soava como um dito carinhoso. Estranharia se um dia ouvisse um formal "Como vai Gil?". E, o sorriso que brotava de seu rosto de queixo grande e espessos bigodes negros, era recebido por meu pai como uma carinhosa retribuição. Hoje, sei que o cumprimento de meu pai a tio Gil tinha um significado e passava uma mensagem, com certeza não elaborada por ele de forma consciente, mas que brotava de sua percepção a respeito do caráter das pessoas. Papai considerava que se todos os homens possuíssem uma característica marcante da personalidade de meu tio, que era a sua proverbial bondade, o Brasil seria melhor, ou mesmo a humanidade seria menos imperfeita do que é. A ganância, a insensibilidade, o egoísmo, o desprezo pelo próximo por representarem a antítese da bondade seriam, pelo menos em parte, substituídas por ela. A esperança para o Brasil estava, pois, na bondade de Gil Ribeiro de Mendonça. Um outro fato, esse tendo como protagonista a minha mãe, trazia contida a imensa bondade que habitava aquele ser especial. Agora, trata-se da bondade refletida em algumas de suas manifestações exteriores: a gentileza, a delicadeza, a educação. Minha mãe não tomava café. Nunca tomou. O fato era familiarmente notório, pois não havia parente próximo ou distante que o ignorasse. No entanto, não houve ocasião no curso de quase quarenta anos de relacionamento no qual estando mamãe hospedada em casa de sua irmã, minha tia Bina, casada com Ttio Gil, em que na hora sagrada do café noturno ele não indagasse "Carmen Lucia quer um cafezinho?". Diante da reiterada e desnecessária pergunta, minha tia fazia uma também reiterada advertência "Gil, Carmen Lúcia não toma café Gil", dando uma entonação de enfado e de irritação. Mas, pouco adiantava, pois no dia seguinte se repetia o gentil oferecimento. Minha mãe limitava-se a sorrir e com paciência explicava ao cunhado muito querido: "Não Gil obrigada, eu não tomo café". Coisas de pessoas bondosas, ligadas pelos laços da amizade, do afeto e da compreensão.
segunda-feira, 6 de junho de 2011

Um homem raro

Entrávamos na casa do Guarujá e lá estavam eles como sempre a nossa espera. A nossa espera não, a espera de alguém, a espera de outros e de quem lá quisesse ir. Estavam sempre prontos para receber os filhos, os netos, os bisnetos e demais parentes, os amigos e os amigos dos amigos. Conheci casais agregadores, mas como Gilda e Benjamin Pereira de Queiroz penso que não. A forma pela qual acolhiam a todos, traduzida pelo carinho, pelo calor do abraço inicial, pela conversa sempre fluente e agradável e pela magnífica mesa, nos transmitia uma rara sensação de conforto, de bem estar e, principalmente, de benquerença. Por falar em mesa, acho que ela simbolizava de maneira integral e fiel a personalidade e o modo de ser do casal. Não falo aqui da excelência dos almoços e dos jantares impecáveis, dos aperitivos aos licores, passando por inesquecíveis vinhos (quando a Bolsa estava em alta) e terminando nas engordativas, mas sublimes sobremesas. Não é a essa mesa a que eu me refiro, embora ela demonstre o gosto esmerado e o requinte de ambos. Refiro-me, sim, à mesa como meio, como instrumento de congraçamento, de comunhão, de estreitamento de laços, de solidariedade, de cumplicidade, enfim, de amizade, de paz e de harmonia. Acho que todos esses foram os objetivos de vida de Benjamin, como o são de Gilda. Quando um amigo querido se vai, junto vai uma parte de nossa vida. Exatamente aquela parte da vida que foi vivida com quem se foi. Agora que Benjamin se foi e o vazio se instalou, restam-me as saudades de um amigo invulgar. Lamento não tê-lo conhecido antes de 1995, pois teria tido a ventura de com ele conviver mais tempo do que os poucos onze ou doze anos, ou seja, daquele ano até a fatídica data de seu acidente. Pensei durante algum tempo, querendo encontrar a qualidade, a característica que melhor o definisse. Conclui ter sido a sedução a sua mais marcante característica. Sim, Benjamin era um sedutor, um grande sedutor. Discreto, não era homem de efusões, exageros, pieguices. Comedido em suas manifestações deixava, no entanto, transparecer com clareza a simpatia, a afeição que nutria por alguém. Sem excessos, mas de forma consistente e sólida, ele foi um exímio construtor de amizades. Como disse Fernando Pessoa "a morte é como a curva da estrada. Morrer é só não ser visto". É isso, Benjamin só não será mais visto. No entanto, todos que o conheceram terão dele a lembrança de momentos, episódios, gestos ou palavras de afeto, que o manterão sempre presente, sem ser visto. Eu, da minha parte, conservarei nítidas as imagens de nossas andanças pela praia de Pernambuco, quando conversando amenidades ou assuntos sérios, ele deixava transparecer de forma clara a sua retidão de caráter, a sua forte personalidade e o seu acendrado amor pela vida. Também essas suas qualidades intrínsecas o faziam um sedutor. Recordo-me, ainda, dos gloriosos aperitivos, almoços, jantares e ceias e até dos cafés da manhã. Um destes, pelo menos, foi transformado por ele em pré-aperitivo, pois para acompanhar um farto prato de ovos com presunto Benjamin dispensou café, leite e chá e optou por uma gloriosa cerveja gelada (não me contaram, eu juro que vi) . Este fato ocorreu na manhã seguinte à noite em que tivemos uma inesquecível tertúlia etílica culinária, responsável por memorável ressaca que nos atingiu em cheio (Paulão, Tucho e eu) mas que o deixou incólume. Naquela manhã pressenti que estava nascendo uma sólida amizade, ou melhor, uma sólida e líquida amizade... Tenho presentes, ainda, duas outras deliciosas passagens, nas quais Benjamin mostrou todo o seu espírito de grande gozador, sutil e inteligente. Em um restaurante bastante simples, mas que estava lotado, repleto de crianças, com garçons mal preparados e que se trombavam pondo em risco as bandejas que portavam, com clientes reclamando aos altos brados e nós querendo que alguém nos servisse para irmos embora, Benjamin, depois de muito tempo e esforço, conseguiu que um garçom nos atendesse. Pensávamos que ele pediria os pratos e as bebidas, mas, não, com o semblante sério e circunspeto limitou-se a ordenar "o senhor, por favor, traga-nos guardanapos de pano, pois não usamos de papel" para um garçom abobalhado em face do pedido, para ele, absolutamente incomum, estranho e até incompreensível. Em um fim de semana, meu irmão, José Eduardo foi ter conosco no Guarujá. Disse-lhe que iríamos almoçar na casa de Gilda e Benjamin. Sabedor das qualidades culinárias daquela casa, ele, glutão que era, entusiasmou-se e passou a nos apressar. Ao chegarmos fomos, como sempre, recebidos fidalgamente, e encaminhados para a mesa da varanda posta para os aperitivos. Sem nenhuma cerimônia Zé Eduardo iniciou os trabalhos, incentivado por Benjamin, que se mostrou entusiasmado e feliz com aquele voraz comensal, que lhe parecia ser "um dos seus". Em seguida passou a indagar se ele queria uma cerveja, um wisk, uma vodca, um gim, um rum, um vinho, campari, uma caipirinha fosse de que fruta fosse, enfim que bebida alcoólica desejava. Meu irmão que dizia não a cada uma delas, o que já foi irritando o dono da casa, por fim pediu solenemente uma coca cola. Esse pedido, uma verdadeira desfeita, quase uma ofensa pessoal, um verdadeiro despropósito levou o decepcionado, indignado e frustrado anfitrião a levantar-se da mesa para afirmar em alto e bom som "saiba o senhor que na minha casa isso não entra". Percebia-se pelo leve sorriso maroto que Benjamin estava se deliciando com a cena, mas não media esforços para que meu irmão acreditasse na sinceridade da sua braveza... Mais, muito mais eu teria para escrever sobre esse excepcional amigo. Em outra ocasião talvez. Tenho certeza que Benjamin propriamente não morreu, apenas está vivendo de outra forma, vivendo além da curva da estrada.
segunda-feira, 23 de maio de 2011

Exemplo de autoestima para uma elite sem estima

Em 2007 o Esporte Clube Corinthians foi vítima de uma tragédia, a pior que pode atingir um time de futebol: foi rebaixado para a série "b" do Campeonato Brasileiro. Caiu, o timão caiu, mas seus torcedores mantiveram-se em pé e altivos. Claro que a sua orgulhosa e fiel torcida foi acometida de um pungente e lancinante sofrimento. Somente os boleiros verdadeiros podem efetivamente avaliar o quanto o rebaixamento atingiu o orgulho e o amor próprio de cada torcedor. No entanto, a torcida soube enfrentar o seu padecimento com grande dignidade. Como seria de se esperar, procuraram encontrar culpados pelo inimaginável revés. No entanto, o clube em si permaneceu inatingível, foi preservado. Não se ouviu ninguém dizer que trocaria de agremiação; que deixaria de ir aos jogos; que só no Corinthians tal coisa poderia acontecer, e outras afirmações desse tipo, que representam em face de um problema, de uma derrota ou de uma frustração qualquer, o baixo grau de apreço e de respeito pela instituição, seja lá de que natureza for, a que se pertence. Faço esses comentários absolutamente à vontade, pois eu sou torcedor do insuperável São Paulo Futebol Clube. E é nesse ponto que desejo traçar um paralelo entre os torcedores do clube paulista e alguns brasileiros. Não são poucos os que se envergonham de terem nascido e de viverem no Brasil. Eles se limitam a apontar nossas mazelas e negam nossas qualidades. Nada fazem para mudar a realidade e sonham sair do país. Os corintianos, ao contrário, diante da tragédia, emprestaram força ao clube, jamais pensaram em deixá-lo e da maneira que puderam ajudaram-no a reerguer-se. Aplausos a esses torcedores que deram um exemplo a essa elite predatória, que deveria esforçar-se para construir um país melhor ao invés de apontar o dedo acusador e lavar as mãos. Parece estar na hora, tardia, diga-se de passagem, de reconhecermos características que nos são peculiares e que se reconhecidas e utilizadas colaborariam com a nossa tão carente autoestima. Somos ágeis de inteligência, improvisadores, um pouco desorganizados até anárquicos, mas com uma capacidade invulgar de resolvermos problemas. Consta que, cito apenas como exemplo, durante a guerra, na Itália o frio estava maltratando os soldados americanos e brasileiros que lutavam nas regiões de Monte Castelo e de Monte Cassino. O frio maltratava a todos indiscriminadamente, mesmo os americanos mais acostumados aos seus rigores. E, em especial, estava atingindo os pés, que rachavam e sangravam chegando a impossibilitar que os soldados andassem e marchassem com desenvoltura. Inúmeras foram as soluções aventadas, pelos médicos, mas nada conseguia impedir a ação térmica. Eis que, surpreendentemente, um pracinha brasileiro, sabe-se lá de qual rincão, disse "eureka". Não, ele não disse, nós dissemos, ou melhor, as tropas brasileiras e americanas disseram e penhoradas o agradeceram. Qual fora a mágica? Que solução extraordinária teria o pracinha encontrado? Inventara que aparelho milagroso para por fim ao cruento sofrimento da soldadesca? Nada, absolutamente nada de extraordinário. Apenas e tão somente jornal. Sim, jornal para envolver os pés. A impermeabilidade do papel de imprensa não era do conhecimento dos comandantes dos exércitos que tentavam tomar os estratégicos montes italianos. Mas, do pracinha sim. O humilde e simplório soldado brasileiro conhecia essa qualidade do jornal. Não era um conhecimento científico. A experiência de vida, impositiva de sofrimentos e de agruras dera-lhe ciência dos atributos climáticos do papel jornal. Ou, o que é mais provável, embora não tivesse tido nenhuma experiência, ele descobriu o jornal em razão da intuição somada à criatividade tão nossa. Pois bem, como esse existe uma infinidade de exemplos na nossa história e no cotidiano do nosso povo de solução de problemas e de superação de obstáculos em razão da nossa criativa inteligência. Tal característica deveria ser melhor aproveitada. Mas, antes de ser estimulada e utilizada, é preciso que seja reconhecida e aceita. Não nos damos conta que com o nosso tipo de percepção das coisas do mundo e facilidade para encará-las poderíamos estar suprimindo nossas carências e nos aprimorando como povo e como nação ao invés de estarmos, e isso é histórico, a copiar modelos e soluções que deram certo fora com base no modo de ser, pensar e agir de outros povos, mas que não se amoldam a nós. Trata-se, na verdade, do patológico complexo que nos coloca como povo inferior, incapaz de se autodeterminar. É o complexo denominado por Nelson Rodrigues de complexo de cão vira lata ou como disse o mesmo jornalista complexo de Narciso ao inverso.
segunda-feira, 9 de maio de 2011

Imaginação fértil de um brasileiro feliz

A respeito da participação fantasiosa em acontecimentos verdadeiros, meu pai possuía uma encantadora capacidade de criar e detalhar situações, fruto da força de sua imaginação, da graça com que as narrava, do rico gestual utilizado, que transformavam suas fabulações em realidade verossímil. Tão agradáveis e convincentes eram as suas histórias que seus ouvintes não só delas ficavam reféns, como exigiam que ele as repetisse. Assim, meus primos, os irmãos Octávio e Paulo Ribeiro de Mendonça pediam com insistência que ele contasse o fascinante episódio de sua participação, como pracinha, na Segunda Guerra Mundial, especificamente, no episódio da tomada de Monte Castelo. Pracinha ele nunca foi, de guerra jamais participou, mas sua fértil imaginação e notável verve faziam com que os ouvintes se esquecessem tratar-se de ficção. Desta forma meus primos diziam: "Tio, sabemos ser tudo mentira, mas conte outra vez..." Para ilustrar a narrativa, procurando dar-lhe cunho de verdade, mostrava uma cicatriz cirúrgica que possuía em uma das pernas, como se fosse sequela de estilhaços de granada. É interessante observar com que entusiasmo papai contava essa e outras histórias de "heroísmo", entendido este não só como ato de coragem, mas demonstração de amor à pátria, desprendimento e solidariedade humana. Na verdade, portador destas qualidades, colocava-se em face das várias circunstâncias da vida como um herói. Após a narrativa não só de suas aventuras imaginárias, mas de outras que efetivamente ocorreram durante a luta dos estudantes de Direito contra a Ditadura Vargas, da qual ele participou, tendo inclusive sido preso, ele cantava, embora fosse desafinado, o "Paris Belfort", o "Cisne Branco" ou "A Marcha do Expedicionário". Em tais momentos extravasava a sua afeição pelo país, por sua gente, por sua cultura, pelo modo de ser de seu povo. Eram manifestações que faziam bem a ele e a nós. Meu papai fazia parte do rol dos brasileiros felizes com o seu país de nascimento. Não me refiro aqui à exaltação piegas, ao nacionalismo cego ou a um patriotismo xenófobo, falo sim do apego pelo local onde se nasce, falo da identidade com a sua cultura, com a sua música, com a arte que produz, com o povo que o habita, com a história que o construiu, com a natureza que o ornamenta, com os seus hábitos, com a sua religiosidade, suas crendices, com o modo de ser sua gente. Tal identidade não afasta a crítica e nem é incondicional. Mas, com certeza se contrapõe a total ausência de autoestima, que hoje marca numeroso segmento de "brasileiros envergonhados", derrotistas, que gostariam de ter nascido em outras plagas.
segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gente que faz cada coisa !

Assim que entramos na delegacia de polícia da cidade interiorana, logo observei atrás da cadeira onde estava sentado o delegado titular uma flâmula do São Paulo Futebol Clube. A visão deu-me esperança de que o interrogatório do meu cliente, na verdade, meu amigo, alto dirigente do clube "Mais Querido de São Paulo" fosse transcorrer em clima de plena cordialidade, o que ocorreu. Antes de continuar quero esclarecer esta expressão designativa do tricolor. Aliás, expressão pouco conhecida nos dias de hoje. Em 1940, por ocasião da inauguração do Estádio Municipal do Pacaembu, houve um desfile de todos os clubes da cidade. Ao surgir a delegação do São Paulo, foi apoteótica e ensurdecedora a aclamação dos que estavam no estádio. No dia seguinte o jornal "A Gazeta Esportiva" abriu a matéria sobre a inauguração do Estádio do Pacaembu referindo-se ao São Paulo como o "Clube Mais Querido da Cidade". Outros dizem que o epíteto foi cunhado pelo presidente Getúlio Vargas, nessa época governando o país com poderes ditatoriais, presente à inauguração do Pacaembu. A mesma "A Gazeta Esportiva", algum tempo depois, abriu um concurso público que consagrou o tricolor como o clube da preferência dos paulistas. Recebeu 5.523 votos contra 2.671 para o Corinthians e 2.593 para o Palestra Itália. Ainda dentro do parêntesis, um outro cognome do "Mais Querido" é o de "Clube da Fé". Explico. Em 1943, a disputa pelo Campeonato Paulista estava acirrada entre Palmeiras e Corinthians. O campeão seria um dos dois, em razão da colocação de ambos na tabela. Dizia-se que se desse coroa o campeão seria o clube da então "Fazendinha" e se, ao contrário, surgisse cara prevaleceria o hoje Palmeiras. E, o São Paulo? Bem, o São Paulo só seria campeão se a moeda caísse em pé. E, para espanto geral, nem cara e nem coroa, a moeda caiu e ficou fincada no solo. O campeão de 1943 foi o glorioso São Paulo Futebol Clube. Voltemos à delegacia. Estava eu ali para acompanhar o depoimento do amigo, diretor do tricolor. Estava ele sendo acusado de haver "gratificado" os jogares da Francana que haviam tirado preciosos pontos do Corinthians. O resultado fora benéfico ao São Paulo. O diretor estava sendo convocado para depor, pois teria fornecido aos jogadores da Francana envelopes contendo o "reconhecimento" do São Paulo. O problema se agravara uma vez que os envelopes continham o timbre do "Mais Querido". Apesar desse fortíssimo "indício" da "materialidade" do "crime" o diligente policial contentou-se com as explicações dadas pelo investigado e por mim. O diretor do São Paulo negou veementemente a acusação, qualificando-a de absurda, ofensiva, pura invencionice. Diante da justa revolta do dirigente, embora já crendo na negativa, o delegado mostrou-se curioso para saber quem teria armado aquela trama para prejudicar o clube e seu dirigente. Perguntou-me quem seria o responsável pela falaciosa acusação. Disse-lhe que comprometer o diretor do São Paulo poderia interessar à oposição do próprio tricolor, pois estávamos em ano eleitoral. Mas, também, pelas mesmas razões de política interna os opositores do presidente da Francana poderiam ser os responsáveis pela acusação. Por fim, enfatizei que eu não duvidaria se o ocorrido houvesse sido engendrado por corintianos interessados em justificar a derrota. Esta última explicação satisfez plenamente a operosa autoridade, pela razão que expôs e com a qual eu não concordei : afirmou com convicção: "Realmente, deve mesmo ter sido coisa desses corintianos, pois essa gente faz mesmo essas coisas..." E, assunto encerrado, inquérito arquivado.
segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um mau consumidor

Não faz muito tempo realizei uma experiência invulgar: fiz compras. Comprar para mim é façanha rara e quando desempenhada é mal desempenhada. Adquirir algo para outrem é então um sacrifício monumental, embora presentear me dê grande prazer. Não sei comprar, mas gosto de ter para poder dar. Sempre foi assim. Minhas necessidades pessoais de compra são e sempre foram satisfeitas pela minha mulher. Antes de casar-me, era minha mãe quem se incumbia de atender ao filho tímido para tal mister. Nas poucas compras que fiz devo ter sido presa fácil para vendedores pouco escrupulosos. Ao entrar em uma loja já tinha em mente dela sair, e para ir embora eu comprava a primeira mercadoria que me era oferecida. No entanto, a experiência a que me referi pareceu-me satisfatória e com certeza foi muito agradável. Não fiquei intimidado, nem apressado para sair das lojas e não tive a impressão de estar sendo enganado pelos vendedores ou que eles estivessem ávidos para vender seja lá o que fosse. Dois foram os fatores de tão marcante mudança no meu comportamento. Primeiro deles: estava eu fazendo compras em um shopping com a minha neta Maria Fernanda, então com nove anos. Segundo fator: as compras seriam para minha outra neta, Maria Clara, ainda por vir, ansiosamente esperada por todos e já muito amada. O grande apoio que Maria Fernanda me deu e a alegria de estar presenteando a tão esperada segunda neta constituíam os fatores que, tinham imaginava eu, transformado-me num eficiente e esperto consumidor. Pois bem, saímos da última loja, visitáramos umas três ou quatro, e fomos à livraria Saraiva. Compras foram feitas por mim e por Maria Fernanda, as dela segundo sua exclusiva preferência quanto aos livros e cds. Ela, então, desejou tomar lanche. Feitos os pedidos, enquanto esperávamos, Maria Fernanda olhou-me entre solene e gozadora e sentenciou: "Voco (é assim mesmo) você é muito bom para fazer compras" mas, emendou, "em livraria". Pronto, a ilusão de que me tornara hábil consumidor desvaneceu-se com a franqueza e abalizada opinião daquela menina de nove anos. Não entendo a razão da minha inibição. Ela não é coerente com o meu comportamento normal. Na verdade, como disse, sempre tive quem comprasse por mim. Nos curtos períodos em que fazia determinadas compras, fui mal acostumado pelos comerciantes que me atendiam. Seus comércios estavam localizados nas imediações da rua Cubatão, na Vila Mariana/Paraíso. Era a época das famosas cadernetas, uma espécie de fiado oficializado, pois nelas eram contabilizados os débitos. Verdadeiros títulos de crédito no sentido moral, que eram honrados religiosamente ao final de cada mês. Lembro-me que nas imediações o único fornecedor de gêneros alimentícios, de limpeza e de tantas outras mercadorias, incluindo guloseimas, o único empório existente era o do sr. Nicolau. Na verdade localizado bem em frente à minha casa. Pois bem, um dos grandes responsáveis pela minha inépcia como consumidor foi esse mesmo sr. Nicolau. Um descendente de libaneses, portador do carisma e da simpatia próprios da raça, tornou-se um grande amigo, meu e de inúmeros outros meninos do bairro que frequentavam seu empório, juntamente com os alunos do Colégio Bandeirantes. Estes na hora do lanche iam banquetear-se com os deliciosos sanduíches que ele colocava em cima do balcão, já prontos. Bastava pegar e pagar. Pegar todos pegavam, mas pagar... O sistema foi invertido, pague e pegue o sanduba, que não mais ficava exposto no balcão. Seu Nicolau, gritávamos nós, "solta ai um mingau e uma colher de pau", ao que ele respondia esbravejando e arremessando o que tivesse nas mãos, até faca, mas sempre para não nos acertar. No seu empório o sistema também era o da caderneta. Aos domingos, seu Nicolau abria meia porta do empório na hora do almoço para quem quisesse comprar bebidas. Naqueles tempos não se fazia estoque. Não havia dispensa pelo menos para refrigerantes, bebidas e outros "luxos". Creio que mesmo em relação aos alimentos de primeira necessidade não se comprava para o mês todo. A facilidade do empório perto, a caderneta onde eram anotadas as compras, bem como o pagamento que era feito apenas no final do mês convidavam às compras miúdas. No nosso caso, bastava atravessar a rua e lá estávamos no empório do seu Nicolau e da dona Carmen, sua esposa. No meu caso específico, quando comecei a fumar, seu Nicolau adulterava a caderneta pois marcava a compra de balas, chocolate, sonho de valsa ou diamante negro ou refrigerantes ao invés do verdadeiro produto comprado que era um maço de cigarros. Fazia com que os preços equivalessem. No final do mês, sem de nada desconfiar (será?) minha mãe limitava-se a dizer, exibindo a caderneta: "agora eu sei porque você está engordando". Pena que cigarro não emagrece. Está aí a explicação das minhas dificuldades como consumidor: não se compra mais com cadernetas...
segunda-feira, 28 de março de 2011

Advocacia como aprendizado

Houve uma época, eu diria uma das mais ricas de minha vida, pois foi nela que aprendi a advogar, que recém-formado, era nomeado defensor dativo para atuar perante os dois Tribunais do Júri então existentes, em defesa de réus pobres. Época gloriosa, pois além de proporcionar um precioso aprendizado que não seria possível caso ficasse em meu escritório aguardando clientes, que nunca chegariam, colocou-me em contacto, de um lado, com advogados, juízes e promotores da mais alta expressão e que se tornaram grandes amigos, e de outro, com uma realidade apenas noticiada e até intuída, mas não vivenciada. Refiro-me ao contacto que passei a ter com os réus carentes, que me puseram, por consequência, em contacto com o outro Brasil. O Brasil da miséria, das carências nos campos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, do afeto familiar, o Brasil das crianças abandonadas, da exploração dos menores, enfim do país em relação ao qual o outro país, culto, sofisticado, mas elitista, insensível, egoísta costuma dar as costas. Esse cruel e trágico contraste constitui, sem dúvida, um fator criminógeno de alta potência. Pois bem, todos aqueles advogados que militaram no Júri como defensores dativos e os que ainda militam, como os defensores públicos, possuem perfeita noção da influência do meio como fator de crime. O contacto pessoal com os réus e com os respectivos processos nos possibilitou não só conhecer as condições materiais da vida de uma grande camada de nossa população, como perceber a incrível diferença existente entre os valores por eles cultivados e os das chamadas elites. Aliás, tal constatação se fazia pelo exame dos motivos e justificativas dadas pelos homicídios cometidos. Enquanto nas classes mais abastadas se mata por cobiça, por poder, às vezes por ciúmes ou inveja, os menos favorecidos têm nas disputas mais estranhas e de difícil compreensão para nós as causas dos delitos. A defesa de valores aculturados pelo meio em que viveram em contraste com os valores que regem a vida nas cidades para onde migraram provocava não raras vezes altercações que findavam em morte. E a justificativa estava exatamente na violação daqueles princípios, também não poucas vezes eram questões de somenos que se transformavam em causas para matar na rígida e obtusa concepção desses acusados. Talvez se fossem julgados por jurados da mesma origem e cultura outros seriam os veredictos, que via de regra eram condenatórios. Hoje talvez a realidade seja outra em face dos inúmeros instrumentos de integração, tais como a televisão e a Internet, a rapidez das informações, fatores que facilitam o processo de assimilação cultural, mas há trinta anos o deslocamento migratório era indiscutivelmente importante fator criminógeno. Lembro-me do meu primeiro defendido, de alcunha "Lilico", acusado da prática de homicídio por ele negada com veemência. Já na primeira entrevista deu-me clara noção do seu abandono na prisão, pois pediu-me uma escova de dentes, uma pasta e uma toalha. Necessidades básicas, não supridas por seus familiares, possivelmente nem os tinha, e nem pelo Estado. Bem se vê o grau de abandono, de carência, de uma vida sub-humana a que estavam submetidos os clientes do sistema penitenciário. Essa situação, nos dias de hoje, agravou-se, pois o sistema não melhorou e os níveis sociais do país não se elevaram. Merece registro o pedido feito pelo meu primeiro cliente, não só pelo seu significado social, como pelo efeito que produziu em meu casamento. Explico: dos produtos de higiene que me foram pedidos pelo Lilico, comprei a escova e a pasta. Quanto à toalha, peguei uma de casa, sem atentar para a sua qualidade. Minha mulher ao saber ficou furiosa, pois eu pegara exatamente a toalha que compunha um jogo finíssimo que fazia parte do nosso enxoval. Éramos recém-casados. Até hoje sou cobrado pelo meu desprendimento exagerado. Ao evocar o meu início profissional, ocorre-me uma passagem do soberbo livro "Noturno da Lapa" do escritor e jornalista Luiz Martins. Ao explicar a influência que o boêmio bairro carioca exerceu sobre a sua personalidade, em especial sobre a sua visão da vida e dos homens afirmou : "A prostituição foi o primeiro aspecto da miséria humana que conheci" Segundo se infere a prostituição teria lhe provocado os sentimentos da piedade, da ternura e da complacência "com o pecado". Ademais arrematou dizendo ter entrado para o socialismo pela porta noturna de um "bordel". Posso afirmar sem medo de erro a analogia de minha experiência profissional inicial com a experiência lapeana de Luiz Martins. Eu tornei-me mais compreensivo e mais complacente com o homem acusado da prática de crime, quando passei a frequentar a cadeia, pois o crime foi o meu primeiro contacto com o lado sombrio da condição humana. Se não me tornei um socialista na acepção ideológica do termo - ou será que me tornei? - passei a olhar a sociedade além dos estreitos limites do meu mundo pequeno burguês e a ver na política um instrumento adequado à redução substancial das desigualdades sociais, bem como de realização do humanismo e da dignidade do homem. Passei a entender que a atividade política só se justifica se ela estiver a serviço de valores superiores, todos eles ligados ao aperfeiçoamento da condição humana e da vida do homem em sociedade. A advocacia criminal, especialmente aquela dedicada aos réus pertencentes às camadas mais humildes da sociedade, é uma forma de atividade política, na medida em que o advogado leva a um dos Poderes do Estado, como porta-voz do acusado, os direitos e as garantias concedidos pelo ordenamento e luta pela sua prevalência. Por paradoxal que pareça, é necessária uma imputação criminal para que direitos e prerrogativas sejam reconhecidos a alguém que passou a sua vida à margem das normas de proteção outorgadas a todos os cidadãos, mas aplicadas apenas a alguns.
segunda-feira, 14 de março de 2011

Festa é coisa séria

Amizades são construídas em razão das afinidades existentes; da empatia ou, para usar uma expressão atual, da química surgida; dos objetivos que são perseguidos em comum; ou até das próprias divergências que incoerentemente ao invés de separar unem. Por vezes, dois seres se tornam amigos em razão de uma alegria ou de um sofrimento comum. Há, ainda, a solidão como fator de amizade. O estar só permite que sejamos menos exigentes na escolha dos amigos. Ademais, a necessidade de ser preenchido o vazio faz com que logo nos apeguemos a quem aparece. Triste daquele que só tem três amigos, como no poema de Cassiano Ricardo: "Só tenho três amigos!/meu eco, minha imagem,/minha sombra". Existe ainda uma outra origem para as boas amizades. A admiração que alguém provoca em outrem, que daquele se aproxima e se tornam amigos. Conhece-se alguém sem que se tenha qualquer intimidade. Por vezes nem se foi a ele apresentado. Mas, alguma circunstância, alguma característica, alguma qualidade, algum comportamento específico, enfim algo nos chama a atenção e nos leva a querer conhecê-lo ou a estreitar um relacionamento ainda incipiente. Por vezes, a admiração é recíproca e aí a amizade rapidamente se solidifica. Travei contacto pela primeira vez com José Carlos Magalhães Teixeira em 1978, quando meu inolvidável amigo Nilton Silva Júnior e eu fomos representar o recém-eleito presidente da OAB de São Paulo, Mário Sérgio Duarte Garcia, na posse do novo presidente da subseção de São João da Boa Vista, exatamente José Carlos. Éramos, Nilton e eu, os únicos apoiadores da vitoriosa "chapa azul" que elegera Mário Sérgio, presentes à posse. Os adversários da denominada "chapa marrom" haviam vencido as eleições em São João, mas haviam perdido no Estado. O candidato à presidência pela "chapa marrom" foi o advogado e político Rogê Ferreira, figura que marcou época como estudante do Largo de São Francisco, tendo sido presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto, e, posteriormente, político de destaque do Partido Socialista Brasileiro. Pois bem, não obstante desconhecidos e adversários políticos, fomos magnificamente recebidos por advogados que no futuro se tornaram amigos fraternos e companheiros da política de Ordem. Aliás, foi exatamente no sítio de um deles, Delcio Balestero Aleixo, que constituímos o grupo denominado "Tempos Novos" que concorreu e venceu as eleições de 1986, como "Chapa Cinza", ocasião em que fui eleito, pela primeira vez presidente da Ordem. Além de José Carlos e Delcio, em São João da Boa Vista, constitui preciosas amizades com Clóvis Laranjeira, Waldemar Martins do Vale, Jair Cano, Maria Inês, Joel "La Bamba" e tantos outros mais. Eu falava de amizades que surgem mercê da admiração de alguém por outrem, ou da admiração recíproca. Um dos amigos especiais que possuí foi o já citado José Carlos Magalhães Teixeira. A admiração e a estima vieram juntas pouco tempo após conhecê-lo. Ambas aumentaram na medida que convivemos. Procurei a razão dessa afeição. Depois de indagar mentalmente sobre o seu modo de ser e de pensar conclui que uma sua frase dita com frequência, na verdade uma máxima, refletia o seu interior e produzia efeitos no seu comportamento: "festa é coisa séria". Não se trata de uma simples frase e nem ela se limita a mostrar ser o seu autor um festeiro militante, organizador e incentivador das melhores festas que fui em minha vida. E, quando falo em melhores festas não me refiro apenas à qualidade gastronômica e etílica, pois essas são excepcionais. Refiro-me ao clima, ao espírito que impera nessas festas e contamina todos que a elas comparecem. Espírito festivo é o da confraternização, da amizade, mesmo que se conheça o "amigo" naquele instante, da solidariedade, da alegria de estar junto e de poder compartilhar dessa alegria. O responsável por esse espírito foi o José Carlos, seu inspirador, sua fonte, seu paradigma. Disse eu que a frase "festa é coisa séria" não era apenas uma frase e não refletia apenas uma característica do seu autor. O dito, na verdade, contém uma filosofia de vida. Organizar a vida, percorrê-la, transpor os obstáculos, superar os percalços, enfrentar as agruras com a disposição de quem vai ou está em uma festa. Especialmente, é viver sempre tendo compreensão, benquerença, disposição para a confraternização e para a troca de afeto. José Carlos transforma a vida em festa e encara a vida com a seriedade que a vida impõe. Entenda-se por seriedade não a sisudez ou o excessivo rigor, mas o atributo das coisas realmente valiosas e indispensáveis. Conviver com José Carlos Magalhães Teixeira foi, sem dúvida, festejar a vida.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Stella Com S

Poderia ser nome de mulher, mas não é. No entanto é o nome de um amor. Amor tão intenso como o despertado pela mulher amada. Não diria ter sido um amor à primeira vista. Aliás, não me lembro se foi ou não. Pouco importa, pois importa sim ter sido um amor sólido, duradouro, eterno. A rua Stella é a síntese da minha infância e da minha juventude. Não morei nessa rua. Ou melhor, fui nela morar logo que me casei. Lá ficamos por quase dois anos, residindo na vila de baixo, localizada em frente ao campo do Olímpicos da Vila Mariana, glorioso time de várzea. Morei durante a minha vida, vida de criança e de jovem, na rua Cubatão quase esquina com a Stela. Mas foi nessa rua que eu construí o meu mundo, meu rico mundo infantojuvenil. Meu e de mais dez, quinze, vinte componentes da denominada Turma Stella - T.S. - Os mais antigos se conhecem há mais de cinquenta anos. Há até os que estudaram juntos no primário, na mesma classe. A maioria já ultrapassou os sessenta anos. Esse amado reduto da nossa infância e da nossa juventude nos proporcionou uma época gloriosa de amizade, companheirismo e solidariedade. Disse haver construído o meu mundo na Stella, na verdade, a minha personalidade e o meu caráter foram forjados no lar e na rua. Sim, a rua Stella contribuiu e muito para a minha formação. Era o nosso mundo, o nosso reino. Nossos espaços eram a Rua Stella, a Rua Cubatão e adjacências; o campo do Olimpicos Futebol Clube; os bares das redondezas; uma chácara localizada em Diadema; o bilhar "Vermelhinho", na Rua Machado de Assis; os boliches, então na moda; o Pacaembu, o Morumbi; o centro da cidade, e ela como um todo, pois nos sentíamos os seus donos. Não nos largávamos, a nossa convivência era diária. Sentíamo-nos soberanos. Fazíamos o que queríamos. Mais ou menos o que queríamos, pois o nosso querer por vezes esbarrava em obstáculos intransponíveis, representados pelas limitações impostas pelos nossos pais, pelos atentos e vigilantes pais das "meninas" por vezes pelos vizinhos, pelos componentes das outras turmas do bairro e, por vezes, até pela polícia... Abro um parêntesis para lamentar que os obtusos administradores da cidade deixaram que a ganância imobiliária superasse a necessidade da cidade proporcionar espaços de lazer e de convivência aos seus munícipes, especialmente aos jovens das camadas menos favorecidas. Hoje são raros os campos de várzea. Na Stella nós brincávamos, namorávamos, jogávamos futebol na rua, ou em qualquer canto, por mais precário que fosse. Disse que brincávamos, é verdade, e não éramos crianças. Já adolescentes não tínhamos nenhum escrúpulo ou constrangimento. A nossa rua era ocupada literalmente para os nossos jogos. Quando não era o futebol eram jogos que hoje não mais são praticados, pois, tristemente, perdeu-se o espaço das ruas. Brincávamos de "mãe da rua", de "mãe da lata" e de "lasca Romeu". Em um deles batia-se com um cinto naqueles que não adivinhassem a mímica feita por quem segurava o cinto ("lasca Romeu"). Já no outro se procurava derrubar quem tentasse atravessar a rua em uma perna só, ("mãe da rua"). O denominado "mãe da lata", não me recordo bem, mas igual aos outros implicava em delicadezas físicas... Esses inofensivos folguedos, não muito diferentes do futebol americano ou do rúgbi, mas sem nada que nos protegesse eram um suplício, verdadeiro terror para os moradores da Stella. A implicância, verdadeira aversão, era por nós incompreendida, pois apenas vez ou outra uma janela era quebrada; os jardins das casas danificados; um carro mal estacionado era amassado; um incauto transeunte atingido; ou a educação e a sensibilidade dos moradores eram agredidas pelo nosso palavreado pouco respeitoso, próprio das contendas esportivas, que não raras vezes se transformavam em contendas físicas. Nós brincávamos, mas também brigávamos, quer entre nós quer com as turmas de outras ruas, ou mesmo de outros bairros. As brigas por vezes eram com hora marcada. Realmente, não eram duelos, mas marcávamos hora e local para acertarmos as nossas diferenças. O local sempre, ou quase sempre era o mesmo. O já mencionado campo do Olímpicos da Vila Mariana. As brigas tinham um ritual, uma liturgia. Fazia-se um risco no chão, quem primeiro ultrapassasse a linha divisória estava sujeito a tomar o primeiro tapa. Na realidade, quase todas as brigas não passavam dos atos preparatórios, pois eram raros os que atravessavam a fronteira. Depois de algum tempo de ofensas e bravatas, os adversários se cansavam e iam embora. Mas, quando as brigas efetivamente ocorriam ou no "campinho" ou na rua, ou em festas, aliás, nestas eram muito comuns, elas eram incruentas. Naqueles românticos tempos não se matava, apenas se exercitava. Quando brigávamos entre nós, então, sempre havia a posterior confraternização regada à cerveja.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Bonito moço

A benevolência das pessoas de mais idade é extraordinária. E, da benevolência brota o carinho, a gentileza, e o afeto que tanto bem faz e dos quais a atualidade está tão carente. A respeito, lembro-me de um fato ocorrido em meados de 1965. Eu cursava o primeiro ano do Direito da PUC, quando fui jantar na casa do então colega, hoje amigo-irmão, Alberto Antonio Pascarelli Fasanaro. Morava ele na Av. São João - à época ainda lá se morava, e bem - nas imediações da rua General Olímpio da Silveira, com sua mãe viúva, Dona Hermínia. Antecipo-me para dizer que era ela uma exímia cozinheira, que é, aliás, uma outra característica das pessoas mais velhas, e também um atributo das descendentes de italianos. Não me lembro exatamente o que foi servido no jantar. No entanto, recordo-me que foi, dentre outros pratos, servida uma massa magnífica, destas que feitas em casa, possuem aroma e sabor que devem ser entronizados no altar dos manjares divinos, pois são superiores aos padrões comuns e inatingíveis por esses. Aliás, no curso de uma longa amizade, Dona Hermínia brindou-me com inesquecíveis pratos, todos eles valorizados pelo tempero da afeição e do carinho. No dia em que fui jantar pela primeira vez em sua casa, Alberto e eu tomamos o famoso ônibus Penha-Lapa, que cruzava São Paulo, ligando a zona Leste à zona Oeste. Longo caminho, mesmo tendo tomado a condução no centro da cidade, onde estávamos. Longo e sofrido trajeto. Por volta das dezoito horas o ônibus estava, como sempre, repleto de passageiros, que se espremiam e se cotovelavam sem trégua. Dentre esses os dois calouros de Direito, famintos e impacientes. Não é preciso dizer que nenhum dos dois possuía automóvel. Carro, à época, era privilégio de poucos. Assim que as apresentações foram feitas, Dona Hermínia virou-se para o filho e disse: "bonito moço", referindo-se a mim. Essa gentil e amável expressão, uma manifestação sincera e verdadeira da parte de uma senhora que demonstrou possuir esmerada sensibilidade e apurado senso estético, acompanha-nos há mais de quarenta anos. Realmente, Alberto, que na ocasião ficou visivelmente enciumado e já tomado por indisfarçável inveja do seu novo amigo, demorou a convidar-me para um segundo jantar. Por outro lado, no curso de todos esses anos, costuma dizer, assim que eu conto para alguém a memorável passagem, e eu a conto sempre que posso, que a mãe já naquela ocasião possuía grave deficiência visual... Esse episódio singelo, ingênuo adquiriu um especial significado para mim, pois o "bonito moço" na realidade passou a expressar a benquerença e o carinho com que Dona Hermínia brindou-me durante toda a vida. E, como é confortador, nos dias atuais, saber-se querido e benquisto por pessoas puras, desinteressadas, movidas exclusivamente por sentimentos nobres e elevados, como era o seu caso. Espero que Dona Hermínia, de onde estiver, e todos sabemos o local do seu repouso, continue a achar-me bonito, mesmo contrariando o filho Alberto.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O anjo gordo

Ao contrário do Anjo Torto de Drumond, o nosso Anjo Gordo jamais disse a alguém "vá ser gauche na vida". Sua figura física era de quem ajudava, amparava e protegia. Um gordo, no corpo e na alma. Não tenho memória nítida da sua infância. Lembro-me, no entanto, eu tinha oito anos, que a sua vinda foi motivo de grande júbilo para todos, pois minha mãe não tivera sucesso em duas ou três gravidezes anteriores. Eu que era filho único, mimado ao extremo, perdi a majestade. Devo ter apagado da memória fatos e sensações dos seus primeiros anos de vida. Ele era magro, muito magro, acreditem. Possuía um andador. Não parava. Andava, na verdade corria pela casa enfrentando e superando todos os obstáculos. Cadeiras, mesas, poltronas e sofás não conseguiam detê-lo. No entanto, uma mesa do centro da sala se tornou obstáculo intransponível. Possuía uma quina pontiaguda que o atingiu, ou melhor, foi atingida por ele. Um corte respeitável, acima do nariz, que pelo sangramento não permitia saber se a vista tinha sido lesada. Grande alvoroço, quase pânico. Lembro-me bem desse dia e da marca que ficou em sua testa. Ao contrário do que ocorreu comigo, o seu reduto não era a rua Stella e nem outra nenhuma. Não possuía turma de rua. Seus amigos mais chegados, se bem me lembro, eram nossos primos Celso e Marcos Monteiro Camargo. Notável sempre foi o seu ouvido musical. Herdou esse dom de nossa mãe. Com seis anos tocava piano de ouvido, utilizando apenas o dedão. Aliás, jamais tocou por música. Pela vida afora jamais tocou por música. Captava a melodia e de imediato a reproduzia. Formou-se em Direito em 1976, pela Católica, tendo presidido o Centro Acadêmico 22 de agosto. A advocacia, no entanto, nunca o atraiu. Trabalhou um tempo no escritório que nosso primo Alberto Viégas Mariz de Oliveira e eu instalamos na rua Nestor Pestana, em 1978. Já nessa época estava interessado por turismo e pelo sistema penitenciário. Não saberia dizer quais as razões que o levaram a dedicar-se com tanto empenho e durante toda a vida a uma atividade que nunca esteve nas cogitações e nos projetos de jovens do nosso meio. Sabemos que a sociedade encara a cadeia como a única resposta para o crime e que dentro da cultura repressiva dominante ela exige com ardor e até fanatismo que se reprima o crime, não atacando as suas causas em caráter preventivo, mas reprimindo-o por meio de prisão, de leis mais rigorosas, de ação policial efetiva, mesmo que esta atuação só ocorra após a prática delituosa. José Eduardo trabalhou na Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso durante dezoito anos, em uma primeira fase. Com a mudança de um dos governos, ele foi dispensado juntamente com inúmeros outros dedicados funcionários da FUNAPE. Anos depois, mercê da sensibilidade do Secretário do Sistema Penitenciário, a Fundação recebeu novo impulso e meu irmão voltou a prestar sua colaboração, tendo falecido quando integrava os seus quadros. Essa Fundação ainda hoje desempenha funções relevantes dentro do sistema penitenciário de São Paulo. Aliás, seus objetivos são na verdade os únicos que se alcançados podem efetivamente preparar os detentos para, uma vez em liberdade, tornarem-se ou voltarem a ser elementos prestantes e terem condutas compatíveis com uma vida normal em sociedade. Os objetivos são os de dar trabalho e ensino aos presos, retirá-los da ociosidade, revelando-lhes aptidões e vocações até então desconhecidas, e com isso, despertar-lhes a autoestima. O trabalho com os presos nos deu a dimensão da bondade de José Eduardo. Pertencente a uma família constituída nos moldes burgueses, típica da classe média brasileira, educado dentro de princípios e valores absolutamente antagônicos àqueles que encontrou no meio prisional, não se poderia imaginar tivesse ele vocação para conviver com homens agressores exatamente agressores daqueles mesmos valores. Diria que além de sua aptidão e sensibilidade para trabalhar com presos, com grande afinco e mais do que tudo, com a crença de poder contribuir para a sua recuperação, meu irmão tinha outras "extravagâncias" não propriamente profissionais, mas ocupacionais. Durante algum tempo apitou jogos de futebol. Não era árbitro profissional. Estudou regras, uniformizou-se, possuía apito, enfim preparou-se para atuar e atuou em campos de várzea, em torneios entre faculdades, chegou até a apitar uma preliminar disputada no Estádio do Morumbi, entre equipes juvenis. Outra sua atividade, esta já de natureza profissional, foi o turismo. Chegou a possuir uma agência. Antes mesmo de abrir a agência, fazia viagens como guia para outras empresas. Fez dezenas de viagens muitas delas para o exterior, sendo sempre muito festejados pelos seus passageiros. O interessante é que conhecia muito pouco outras línguas, o que não impedia de desempenhar bem o seu papel. Na qualidade de guia turístico levou um grupo, do qual eu e minha mulher fizemos parte, para a União Soviética, nas Olimpíadas de 1980. Pois bem, ainda no Brasil recebeu um pedido de uma amiga, para que comprasse umas sapatilhas de balé, para uma sua filha. Em Moscou José Eduardo solicitou ao guia local, que falava português, para escrever em um papel indicações que lhe possibilitassem encontrar o endereço da loja. O bilhete estava escrito em russo e seria exibido por meu irmão a alguém que o ajudaria. E, dito e feito. Ele mostrou-o na Praça Vermelha a dois policiais. Estes ao lerem o escrito não contiveram uma estrondosa gargalhada. Para meu irmão uma interminável gargalhada dos dois russos que o olhavam com espanto, tendo contorções de riso. E ele, sem graça, limitava-se a dar pálidos sorrisos. Quando retornou ao hotel, após fazer a incômoda compra, soube da peça que o guia lhe pregara. Estava escrito no bilhete : "sou uma bailarina brasileira. Quero comprar sapatilhas na rua". Note-se que à época José Eduardo pesava uns 140 quilos.
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Um apaixonado fiel

Uma das características mais acentuadas da personalidade de meu pai era a fidelidade às suas paixões. Era um apaixonado de entrega absoluta, sem subterfúgios, reservas ou freios que o inibissem. Situações e eventos desde os mais relevantes aos mais singelos eram por ele incorporados e integrados em sua memória, em suas afeições e saudades e passavam a ser lembrados e reverenciados, com frequência. Se acontecimentos os mais variados criavam vínculos inesquecíveis com meu pai, era no relacionamento pessoal que sua paixão aflorava de forma plena e a entrega era absoluta. As pessoas ingressavam no seu íntimo e ficavam cobertas pela sua generosidade e capacidade de compreender o ser humano, colocando-se pronto para proteger e amparar quem dele necessitasse. Mas, voltando às afeições de meu pai, lembro-me do carinho com que se referia a alguns dos automóveis que possuiu durante sua vida: um Chevrolet, um Nasch e um Ford Prefect. O Chevrolet, fabricado em algum ano da década de trinta, foi comprado por meu pai no final dos anos quarenta. Lembro-me que como auxiliar da partida havia uma manivela colocada na frente do carro e que era manualmente acionada, todas as vezes que o motor de arranque não funcionava. E, não eram poucas as vezes que isso ocorria. O Prefect vivia no mecânico. Era surpreendentemente duro, péssimo molejo, suspensão praticamente inexistente. Por tal razão, papai brincava que fazia questão de colocar sua sogra, minha avó, no banco de trás, para que quando passasse por buracos ela batesse a cabeça no teto do carro. Era mesmo um automóvel próprio para se transportar a sogra no banco de trás. O Nasch recorda-me as frequentes viagens que fazíamos a Santos onde moravam meus tios Maria Benedita (Bina) e Gil Ribeiro de Mendonça. Na volta, era inevitável que ao subir a serra o velho carro fervesse. E como fervia. Minha mãe, precavida, levava uma pequena panela, na verdade era um pequeno penico, que possuía dupla serventia, a natural e a de saciar o sedento carro. A água era encontrada nas diversas bicas existentes na Anchieta. No entanto, mesmo com o carro esquentando inúmeras vezes, a panela-penico era pouco usada. Ela servia para uma ou duas enchidas do enorme radiador. Ocorria que, acometido de grande irritação, meu pai arremessava a dita cuja, precipício abaixo e lá ficávamos nós sem panela, sem água e sem carro, pelo menos até que ele esfriasse o suficiente. Esse fato ocorria em quase todas as viagens. Haja panela !!! Outro fato repetido nas viagens a Santos era a advertência que papai fazia quando estávamos para entrar no túnel da serra: "abaixem a cabeça". Nossas queridas Juraci e Judith, que se revezavam como empregadas de casa, obedeciam ao patrão e permaneciam de cabeça baixa até a que a contra ordem fosse dada. A paixão para papai tinha um componente indissociável que era à fidelidade. Jamais abandonava ou trocava de paixões, incorporava as novas e conservava as antigas. Viúvo se mostrou marido amantíssimo, mas manteve viva e reverenciada a memória de Carmen Lúcia, minha mãe. Lecionou por décadas nas Faculdades de Direito de Bauru e na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da qual foi Professor Titular de Direito Processual Civil, defendendo a tese "Substituição Processual". Ainda no magistério foi diretor da Faculdade de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas. No entanto, foi até o fim dos seus dias um devoto das Arcadas e do Centro Acadêmico Onze de Agosto. Um dos fatos dos quais mais se orgulhava era o de ter pertencido à turma de 1946, para ele "gloriosa". Propagava aos quatro ventos ter sido ela a "melhor" turma que já passara pela quase bicentenária Faculdade. Outra prova da afeição que papai dedicava aos acontecimentos, instituições e pessoas que interferiram na sua vida. Apaixonado pela magistratura, a advocacia não abandonava seu espírito, suas recordações e até as suas preocupações. Vestia a toca no corpo e envergava a beca na alma. Acompanhei de perto a sua gestão como Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, que constituiu sem dúvida a sua razão maior de vaidade, na sua carreira de advogado. Nessa época tive uma preciosa lição de desprendimento e de preocupação para com os interesses da advocacia. A ASSP era dirigida por uma gama de abnegados, que em detrimento de suas bancas e muitas vezes da própria família a geriam com invulgar dedicação. Nessa época a grande entidade não havia ainda atingido a sua pujança atual. As dificuldades materiais colocavam em permanente risco o seu futuro. Lembro-me que a compra do imóvel de sua sede no Largo de São Francisco, quando papai ocupava um cargo em sua diretoria, pode se dar em razão dos avais fornecidos pelos seus diretores. Posteriormente, já com outros diretores, o fato se repetiria quando da aquisição da sede da Francisco Cruz. No curso de sua vida meu pai trabalhou em confortáveis escritórios e gabinetes, mas tinha um apreço especial pelo acanhado escritório da Praça da Sé, n. 399. Lá eu comecei a trabalhar em 1961 ou 62. Papai havia saído do escritório de meu tio José Augusto Mariz de Oliveira, com quem trabalhara desde os quinze anos, para instalar-se no 5º andar da Praça da Sé, junto com Flávio de Freitas Gouveia, em 1957. Formaram a dupla "Macaco" e "Coelho", como eram conhecidos desde a época de Faculdade. O palco de suas apresentações diárias, era o Fórum - então instalado no velho prédio do Tribunal de Justiça - Eu deliciava-me com as histórias que os advogados e funcionários, que com eles conviveram, contavam a respeito das brincadeiras, gozações futebolísticas, provocações que norteavam as relações forenses de então. O escritório da Praça da Sé, ainda lhe era muito caro, pois o Professor José Frederico Marques, o inexcedível processualista e penalista, ao aposentar-se como Desembargador, foi para lá exercer a advocacia, em sociedade com papai. Posteriormente, nós, eu já com ele trabalhava, mudamos para o 6º andar, onde estava instalado o escritório do Dr. Henri Couri Aidar e de seu filho Carlos Miguel. A extraordinária capacidade de envolvimento emocional de meu pai, infelizmente, também constituía uma fonte de sofrimento e de amargura. Embora homem experiente e dotado de extraordinária inteligência, em não poucas ocasiões chegava a mostrar boa fé, crença e certa ingenuidade na reciprocidade de uma amizade, que o impediam de enxergar a realidade com clareza. Esta, como sabemos, não raras vezes é marcada pela deslealdade, pela ingratidão, pela supremacia dos interesses e pelo egoísmo. Ao percebê-la meu pai era tomado de grande amargura. Exatamente porque a sua entrega às amizades era total, não conseguia superar a decepção, para encarar com pragmatismo e mesmo com cinismo aquilo que lhe era inaceitável no ser humano. Dentre outras de suas características, esta sua dificuldade em assimilar os desgostos foi plenamente herdada por mim.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A importância das ruas

Não é sem razão que a rua ocupa lugar de destaque não só nas lembranças como na formação de todos aqueles que, sem serem seus moradores, as frequentaram e as frequentam com alguma assiduidade. Eu me refiro à rua como entidade concreta, com existência física, palpável, detectável, e ao mesmo tempo entidade abstrata, pois, impessoal, atemporal e sem localização certa - qualquer rua - que pairando acima dos sujeitos, proporciona um rico aprendizado da vida e dos homens. Eu me refiro à voz das ruas, que em verdade é a voz do mundo, pelo menos do mundo que está ao nosso alcance. Voz que nos ensina nos coloca diante de uma realidade sem máscara, sem subterfúgio, sem intermediários. Rua que se contrapõe à clausura a que se submete o homem moderno. Clausura representada pelo automóvel e pelas grades, que retiraram o homem das ruas. Será que perdemos as ruas? Na rua aprende-se a sair de si e a olhar ao redor. Do interior para o exterior. Da imagem para a realidade. Lembro-me de haver lido que a obra "Libertinagem" revelou uma transformação na poesia de Manuel Bandeira, em razão da vivência do poeta na Rua do Curvelo, no morro do mesmo nome, localizado no Rio de Janeiro. Segundo seu amigo, o poeta Ribeiro Couto, essa rua mostrou a Bandeira "aquilo que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir: a rua". Ainda, a respeito, a escritora Lúcia Miguel Pereira disse que o referido livro representou para o poeta a vitória da "vida exterior sobre a interior". E, o próprio Bandeira confirmou que a Rua do Curvelo trouxe para a sua poesia "o elemento de humildade cotidiana". É exatamente essa libertação dos grilhões interiores que a rua proporciona, por meio do conhecimento da "vida circundante". Retira-nos do casulo do nosso interior, nos torna mais simples, humildes e solidários. E, evidentemente, mais sábios. Trata-se da sabedoria haurida do convívio democrático das ruas. Nos bares, nas padarias, nos pontos de espera das conduções, dentro dos táxis, no jornaleiro, no engraxate, nos supermercados. É claro que para se aproveitar a sabedoria das ruas é preciso conversar, ouvir, conviver com as pessoas. É imprescindível ter vontade de se comunicar, trocar impressões, afetos, interagir. Quem estiver ensimesmado, não gostar de gente, e só de si, quem enfim não se sentir integrante dessa fascinante raça humana não aproveitará a rua. Quem na literatura brasileira melhor retratou a rua foi João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto, jornalista, literato, membro da Academia Brasileira de Letras, e festejado cronista carioca do início do século passado. Seu livro "A Alma Encantadora das Ruas" é uma coletânea de crônicas que abordam inúmeros aspectos da vida extraídos das ruas, dos seus acontecimentos, dos personagens que por elas transitam, dos dramas humanos que as têm como palco, das particularidades de várias delas, enfim é um extraordinário repositório da vida vivida nas ruas. Eu, da minha parte, posso garantir tê-las curtido e com elas muito aprendido. Quando me recordo das ruas de São Paulo e por elas ocasionalmente passo, sinto um misto de frustração, melancolia e vacilações de memória. Frustro-me porque as ruas visitadas não são mais as minhas ruas. Fico melancólico pelas recordações que me vem à mente, acompanhadas por uma saudade terna, aconchegante que aquece a alma. E, a memória passa a me preocupar, porque não consigo reproduzir mentalmente as ruas tal como eram no passado e que não guardam identidade com as do presente. O escritor Antônio de Alcântara Machado falando de São Paulo afirmou que "aqui as casas vivem menos do que os homens e se afastam para alargar as ruas".
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Guardanapo democrático

Em uma de suas crônicas, João do Rio disse que o guardanapo do garçom carioca era um guardanapo democrático. O nome da crônica é "O guardanapo Carioca". O grande cronista das cenas cariocas do início do século passado dessa feita fixou-se no guardanapo, que, no seu dizer, é o "guarda de honra da alimentação das casas de pasto". Com sua extraordinária verve, Paulo Barreto (João do Rio) conseguiu, mais uma vez, escrever sobre um fato insignificante, que não mereceria a atenção de um jornalista, um literato ou mesmo de um cronista. Dizer o que a respeito de um pedaço de pano ou de papel, cuja utilidade limita-se à higiene dos lábios? Por vezes limpa uma mancha na gola do paletó, na gravata. Raramente, mas acontece, sua utilidade sofre uns desvios e ele é usado para dar brilho aos sapatos do freguês; limpar a boca do garçom que furtou um naco do prato do cliente, ou se dá a ele qualquer outra serventia menos normal. No entanto, ao ler João do Rio passei a entender o tema guardanapo como perfeitamente adequado a uma crônica. O escritor, em um restaurante carioca, dialoga com um guardanapo, que procura demonstrar-lhe a sua natureza democrática e o relevante papel social que desempenha. Realmente, o guardanapo da crônica é democrático e se considera um democrata, pois ele é único. Ou melhor, ele é o único que serve o dia todo a todos. E esclarece ser o único porque seria uma loucura, com o preço das lavanderias, ter um guardanapo para cada cliente. Por tais razões acha-se "incomparável, o incomparável guardanapo carioca". Embora distante no tempo, cabe um veemente protesto à afirmação do guardanapo de João do Rio, no sentido de ser ele incomparável. Não, ele não o é. Eu conheci um igualmente democrático. E, era paulista. Paulista de quatrocentos anos. Habitava a Rua Benjamin Constant, especificamente um restaurante onde se comia sardinha frita e se tomava cerveja casco azul, magistralmente gelada em uma geladeira antiga, ou era um frízer? Não me lembro, de aço, ou era de alumino? Falhas de memória à parte, a sardinha era estupenda. Daquelas portuguesas de autenticidade induvidosa. Será? Pouco importa. Eram dignas de ininterruptas homenagens, por parte dos fregueses que as comiam sem intervalos. Assim, as homenageavam. Em verdade, entendo que o guardanapo paulista era mais democrático do que o carioca. Ele não dependia do garçom. Não era por ele levado de mesa em mesa. Passava de mesa em mesa pelas mãos do povo. O povo era os fregueses, que exerciam o poder soberano sobre ele, sem intermediação do garçom. Democracia direta. Cada um que o usava, passava ao outro. E, assim havia plena isonomia na sua utilização. Todo poder era do povo e para o povo. Esqueci de dizer que as sardinhas eram comidas com a mão, fato que mais realçava a importância desse indispensável instrumento de higiene...
segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Feijoada : comida dos escravos ?

Sempre ouvi dizer que a nossa feijoada, um dos símbolos da cozinha pátria, era um prato composto por restos de comida aproveitados por escravos. Se tal versão fosse verdadeira nenhuma, rigorosamente nenhuma, importância teria. Obviamente o fato não retiraria a sua condição de grande iguaria. Apenas demonstraria que dos sofridos negros não haviam retirado a inata aptidão para a refinada arte da culinária. Pois bem, mas essa versão fruto da nossa baixa estima, reflexo da arraigada mania de subestimar, minimizar e desvalorizar o que é nosso não encontra nenhuma sustentação histórica. Pura criação da elite ou da pseuda elite anti verde amarela. Aliás, nunca se raciocinou a respeito dessa lenda que liga a feijoada aos negros, especificamente aos restos de suas refeições. Aceitou-se a versão não como lenda mas como verdade, sem se observar a sua impossibilidade material. Como se sabe a feijoada é composta de feijão preto e de uma grande variedade de carnes. Ora, é difícil se crer que sobrasse comida suficiente para a elaboração de um outro prato. Os escravos comiam feijão é bem verdade, mas feijão bichado. Claro que havia variações alimentares de região para região do país, assim como de proprietário para proprietário, dependendo do seu grau de humanidade. Em verdade, como bem realçou Gabriel Bolaffi no livro "A Saga da Comida", a crença de que a feijoada fosse um prato de escravos é inverossímel. Segundo ele, em primeiro lugar não há registro nesse sentido em nenhuma obra sobre a Colônia ou sobre o Império. Por outro lado, é improvável que nas fazendas, boa parte delas contando com várias dezenas de escravos, houvesse condições de se fornecer carnes em quantidade suficiente para o preparo da feijoada que a todos alimentasse. Diz o autor: "imagine quanto lombo e quantos pernis a casa-grande teria de consumir para que duas orelhas,quatro patas, um focinho e um rabo, alimentassem tanto escravo. Nem que fosse uma feijoada muito rala." O mesmo autor acredita que a feijoada tenha surgido como um prato da preferência dos operários e dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda hoje, em um dia específico da semana, quarta feira, comerciários, bancários, industriários, funcionários públicos e tantos outros trabalhadores tem nos bares e restaurantes mais populares à sua disposição o saboroso prato. No entanto, não são apenas eles que cultivam o hábito da feijoada, pois as classes mais privilegiadas também o fazem, geralmente aos sábados. Não se esqueça que ela constitui o prato símbolo da nossa culinária, e como tal é um instrumento de relacionamento, de união, de comemoração, enfim um símbolo de cordialidade, de brasilidade. Não há uma explicação razoável, racional para a existência dessa idéia quanto à origem da feijoada. Pode-se no entanto atribui-la a mania nacional de desprestigiar os nossos hábitos, costumes, modo de ser, nossa cultura enfim. Relegando o nosso prato símbolo à comida de escravos se pretendeu mostrar que até na culinária a nossa capacidade é reduzida, atrofiada, minguada, pois ele era composto de restos de comida indesejada pelas classes dominantes e como tal poderia ser cedida aos escravos. E, falando em feijoada não se pode esquecer da brasileiríssima caipirinha. Também ela e a sua matéria prima, a não menos verde e amarela cachaça, sempre receberam das elites um inescondível desprezo. O desprezo era às claras, mas às escondidas elas eram ingeridas, pelos componentes das elites envergonhadas. Só depois de muitos séculos, a cachaça passou a ter algum espaço e isso porque passou a ser apreciada por estrangeiros. Hoje se importa cachaça em volumes razoáveis. Precisou o estrangeiro gostar para que nos, embora ainda timidamente, assumíssemos a nossa aguardente. Resta saber quando nos assumiremos como nação orgulhosa de si.