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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Não é de hoje

É profunda e está arraigada em meu íntimo, a implicância pelo uso do inglês nas conversas e escritos correntes, mas principalmente por inúmeros setores profissionais, em nosso país. Eu não sei exatamente quem são os responsáveis por uma atividade que usa e abusa de anglicismos. Aliás, não se trata de anglicismo. As palavras não derivam do inglês, pois elas são o próprio inglês. A atividade a que me refiro é a de dar nome a produtos; a lojas comerciais; é a de redigir folhetos comerciais; escrever em cartazes e em faixas de propaganda; escrever em caminhões de entrega; escrever publicidades para televisão ou colocar o fundo musical dessas publicidades, dentre outros abusos. Até em uma cidade do interior, foram colocadas nas ruas em vez de Pare o inglês STOP, talvez para mostrar tratar-se de um local frequentado por turistas... Presumo que essa ampla atividade esteja afeta ao setor publicitário. Este setor abrange desde as grandes agências, até aqueles profissionais que trabalham para as micro empresas. A adoção de nomes próprios derivados do inglês ou mesmo nomes de batismo tipicamente ingleses ou americanos virou uma moda. Basta que se verifique o nome de inúmeros jogadores de futebol da atualidade: richardson; welington; robson; cleverson e tantos outros. Merecem figurar na escrita em minúsculo, não pelos seus portadores ou por seus pais, os responsáveis, mas, como protesto. Bobagem? Sei lá, mas deixa assim. Não atino com as razões desse estrangeirismo batismal. O que será que leva os pais a essa opção macaquiana, desprovida de qualquer sentido? Será que os filhos por carregarem nome estrangeiro estarão fadados ao sucesso na vida? É isso que pensam? Não sei. Sei sim que no caso específico dos jogadores de futebol o sucesso lhes advém dos pés e não do nome. A utilização de palavras estrangeiras, na verdade o inglês, sempre o inglês, não se resume àquelas que não tem correspondência em português ou mesmo tendo, estão elas de tal maneira vinculadas ao seu significado que traduzi-las seria alterá-lo. Não, esse costume ultrapassa aquelas hipóteses. E, esse mau hábito não é de hoje, basta se recorrer à música popular para se verificar que já nas décadas de vinte e trinta o uso do inglês era moda. Duas músicas extraordinárias contendo um fino humor ironizam o péssimo hábito. Lamartine Babo compôs e Joel de Almeida gravou "Canção para Inglês Ver". E Carmem Miranda "Good-Bye", composta por Assis Valente. A música de Lamartine é hilária, ironiza o uso de expressões estrangeiras misturando-as com palavras e expressões nacionais que nada tem a ver entre si. As frases da composição não guardam nenhum nexo e nenhuma lógica umas com as outras. Representam um verdadeiro non sense. A fina inteligência do compositor, a sua aguda percepção da realidade e seu refinado senso de humor mostram que a utilização desnecessária da língua estrangeira é responsável por uma comunicação confusa e desarticulada entre as pessoas e não expressa com fidelidade o pensamento, a mensagem que se quer transmitir. A outra música, cantada com graça e expressividade por Carmen Miranda, mostra que especialmente os incultos são os que se servem das palavras em inglês. Assim, o mulato é ironizado na música, pois, exatamente para mostrar cultura que não possui, usa expressões inglesas e as emprega mal. A música o aconselha a deixar "a mania do inglês" pois "fica tão feio para você mulato frajola que nunca frequentou as aulas da escola". Carmen Miranda canta não ser mais "boa noite nem bom dia e sim good morning ou good night". No entanto, afirma que "ensinaremos cantando a todo mundo o b a ba, o b e be e o b i bi assumindo um compromisso com a nossa língua antes que a vida se vá". Nos dias de hoje há, com relação à composição de Assis Valente, "Good-Bye", uma acentuada diferença. Não é mais o "mulato frajola", o homem inculto, mas sim os da elite que fazem questão de substituir o português pelo inglês, numa triste demonstração de falta de alta estima nacional, pelo desprezo em relação ao que de mais expressivo, significativo e identificador um povo possui, que é a sua própria língua. Há, também, uma música de Noel Rosa, chamada "Não tem Tradução", em que o poeta da Vila faz uma crítica, nos versos finais, a agressão contra a nossa língua representada pelo uso do inglês. Afirma que as "rimas do samba não são I love You" e que "esse negócio de alô, alô boy e alô, alô Jonny só pode ser conversa de telefone". O jornalista, escritor e teatrólogo Nelson Rodrigues, grande frasista que foi, dizia que nós brasileiros somos "uns narcisos às avessas. Cuspimos na própria imagem." Um antropólogo e estudioso da questão do negro no Brasil, cujo nome não me recordo, afirmou que a adoção do padrão estético europeu representava um "fenômeno patológico da psicologia brasileira." Correta observação. Esta nossa patológica tendência de incorporar padrões estrangeiros perdura nos dias de hoje. Antes o país tinha como paradigma a França, hoje são os Estados Unidos. O país e o continente mudaram, mas permaneceu a incompressível e penosa doença.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A amada rebelde

Seu amor à vida era extraordinário. Doente cardíaca desde os dezoito anos, jamais se considerou incapacitada para atividades que normalmente não eram desempenhadas por cardíacos, algumas até especialmente proibidas pelos médicos. Estamos falando dos anos quarenta, cinquenta, época de escassos recursos cardiológicos. Ela possuía a válvula mitral obstruída, em razão de uma infecção das amídalas. Consta das crônicas familiares que minha avó, viúva e mãe de três filhos, não permitiu que ela fosse operada. A infecção causou-lhe uma estenose mitral, que, no entanto, não a impedia de fazer nada, absolutamente nada. Tocava com perfeição violão e cantava, cantava muito bem. Meu irmão José Eduardo herdou o dom musical de mamãe. Eu, ao contrário, recebi o legado da desafinação de meu pai. Mamãe não se conformava com a minha limitação musical. Insistiu com o violão, com a sanfona e por fim como derradeira tentativa, tentou ensinar-me pandeiro. Tentativa também frustrada. Os médicos lhe impuseram, no correr dos anos, várias proibições: tocar sanfona; guiar automóvel durante muito tempo; subir escada com frequência, enfim deveria evitar maiores esforços. Até bala de coco ela ficou impedida de fazer. E como eram maravilhosas as suas balas, tanto as de coco quanto as de café. Para quem não sabe, há esforço físico na confecção de balas de coco. Quando o doce fica pronto e no ponto, deve-se esticar ao máximo a massa para que ela se transforme em tiras, que depois serão cortadas para surgirem as balas. Ela teimava e não cumpria os preceitos proibitórios. Todos nós em casa, especialmente duas irmãs, Juracy e Judite, que durante anos e anos se revezaram trabalhando conosco, éramos seus cúmplices, co-autores de suas peraltices. Até o engraxate de uma barbearia de nossa rua colaborava com as extravagâncias de minha mãe. Ele entrava nos botequins das imediações e como se fosse para o seu consumo, comprava torresmo e sardinha frita, "iguarias" que ela adorava. Percebe-se que também em relação à alimentação ela não tinha nenhum cuidado. Uma ocasião mandou o sofá da sala reformar. Ao devolvê-lo, o tapeceiro revelou uma descoberta, para ele muito preocupante: ao trocar o tecido encontrara uma dezena de pílulas de remédios, enfiados nas dobras do sofá, que ele supunha terem sido escondidas por mim. Mamãe recebeu e agradeceu a notícia com simulada preocupação, falou que adotaria providências e, na verdade, ficou exultante, pois a sua "arte", na verdade a sua rebeldia contra as prescrições médicas, não foi e nem seria descoberta, porque surgira o "culpado". Da sua amada figura, não posso desassociar dois objetos: um violão e um automóvel da marca Nasch. O violão a acompanhou por toda a vida. Embora tocasse piano e acordeão, o violão foi o instrumento de sua preferência. Havia entre os dois, mamãe e o violão, uma permanente vinculação e as pessoas logo faziam uma associação de ideias: como vai sua mãe? Sempre alegre? Tocando muito violão? E, não raras vezes, diziam terem visto ou ouvido um violão e lembram-se dela. A identidade, na verdade, era a alegria que ela irradiava quando solicitada a tocar o instrumento. Violão é um instrumento alegre, tal como o pandeiro, a sanfona, a cuíca, o reco-reco. Todos instrumentos genuinamente representativos da música brasileira, e que contribuem para aproximar pessoas, constituir amizades, fazer nascer afetos. Em torno de um violão confraterniza-se, solidariza-se, ama-se. O velho Nasch, um carro enorme, preto, com direção vermelha, estofado de couro e muito espaçoso era dirigido por ela em uma época escassa de mulheres ao volante. Não se limitava a utilizar o carro para seu transporte. Dava carona às amigas do bairro, onde o automóvel ainda era privilégio de poucos. Não raras vezes levava pessoas a médicos ou a outros locais de acesso urgente e difícil. Houve uma ocasião, memorável para todos os participantes, que minha mãe conduziu-nos a um campo de futebol localizado no Ibirapuera. Na verdade ela levou o time inteiro, onze meninos que o integravam. E mais, junto aos pés da motorista estava o material completo da equipe, incluindo a bola. Durante toda a sua vida minha mãe foi rebelde às prescrições médicas. Pouco tempo antes de falecer fez uma viagem à Belo Horizonte de automóvel, para um casamento. Foi com minha mulher e com ela revezou-se na direção. Achamos estranho que o médico, querido amigo Geraldo Rocha Melo, houvesse permitido a longa viagem de carro. No entanto, ela garantira que estava autorizada a viajar. Indagado, o médico disse que em face da sua insistência minha mãe poderia viajar desde que fosse e voltasse de avião. Mais uma vez ela se rebelara e nos enganara. Sua partida definitiva guardou coerência com a sua vida. Sempre viveu intensamente e morreu vivendo. Com efeito, faleceu quando estava jantando em um restaurante de Montevideo onde fora com parentes. Não sabemos se desta vez ela nos enganou ou não, pois não conferimos.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010

As nossas crianças e as outras

Dias atrás, estava observando, durante uma reunião familiar, o carinho, a ternura, as preocupações que cercam as crianças, aquelas que já integram a grei e às que vão chegando. Então passei a meditar na absurda diferença existente entre as nossas crianças e as outras. As outras são as pobres, as desvalidas, as carentes de tudo, a começar de uma família estruturada, passando por alimentação, saúde, estudo, lazer e terminando com o afeto, os cuidados e as atenções que toda criança merece e que lhe preserva a inocência e lhe incute auto estima e estima pelos outros. Verdadeira vergonha nacional, as crianças carentes e as abandonadas denotam a insensibilidade de uma parte considerável de nossa sociedade. Com certeza a questão da criança é o reflexo mais cruel do trágico desequilíbrio social existente no país. Há alguns anos, um motorista, que com extraordinária perícia evitou atropelar um menino de rua, exclamou em seguida: "não há nada melhor do que criança, o Sr. não acha?" Pois é, eu acho, no entanto, parece que nem todos compartilham de tal opinião. A existência por si só de uma infância abandonada demonstra o pouco caso, o egoísmo, a indiferença de governos e da sociedade como um todo. A questão não se circunscreve, no entanto, ao abandono material. Falta, na verdade, o afeto, o amor pela criança alheia, que dedicamos às nossas. Não me refiro, evidentemente, na mesma graduação e intensidade, falo sim, do afeto, do amor que um ser humano deve a outro e se exterioriza na forma de um afago, de um carinho, de uma atenção que seja. A respeito, lembro-me de um episódio que muito me marcou. Perto de casa, diariamente, a menina se postava no mesmo farol. Vendia sempre os mesmos doces, enquanto carregava no colo o pequeno irmão. Minha mulher, também, diariamente, a cumprimentava e ambas conversavam durante o tempo em que o farol permanecia vermelho. Esses pouco instantes diários despertaram a afeição da motorista e a confiança da menina. Quando se encontravam, ela abria um largo e simpático sorriso, como querendo demonstrar a sua alegria por estar sendo alvo do interesse e da atenção de alguém. Parece pouco diante do muito a fazer, mas é muito diante do pouco que se tem feito. As crianças das classes menos favorecidas, desde sempre, estão crescendo mal: desnutridas, abandonadas, sem afeto, sem saúde, sem educação, exploradas e convivendo com a violência dentro e fora do lar, quando há lar. Cresceram assim diante dos nossos olhos, e nós nada fizemos, a não ser clamar por punição para aqueles que se tornaram trombadinhas e precoces criminosos. A verdade é que a sociedade, de um modo geral, só se preocupa com o menor porque ele está assaltando. Estivesse ele quieto debaixo das pontes e dos viadutos amargando as suas carências e os seus sofrimentos, continuariam esquecidos e excluídos. E, essa preocupação com os menores que cometem infrações, ao invés de ser direcionada para as causas dessa conduta, procurando eliminá-las, limita-se à grita generalizada por punição, por castigo, de preferência por uma ação que os coloque longe dos nossos olhos. Lembro-me que há alguns anos os jornais deram destaque à notícia de que a Praça da Sé estava voltando a ser o local aprazível de outrora. A providência tomada para isso foi afastar do marco zero da cidade todas as crianças que por lá perambulavam. As crianças estavam fora e isso bastava para que a Praça voltasse a ser nossa. Ela estava salva. Pouco importava a permanência dos marreteiros; dos pregadores da bíblia; dos comedores de faca e fogo; dos ciganos, especuladores do futuro; dos poetas repentistas; dos vendedores das saudáveis guloseimas. Até os trombadões permaneceram. Aliás, deve ter sido mais fácil remover os menores do que deter os parrudos trombadões. Apesar da freqüência garantida de todos esses habitues, o problema da Praça estava resolvido, pois os incômodos menores estavam fora. Recorda-se que em determinada ocasião uma competente e zelosa autoridade embarcou dezenas de menores em vários ônibus e os levou para fora das fronteiras do Estado. No Rio de Janeiro, a providência adotada teve caráter definitivo: as crianças foram mortas na Candelária. Em Belo Horizonte, também há algum tempo, uma operação militar foi montada para tirar das ruas cerca de quinhentos menores. A imprensa exibiu fotos de crianças de até quatro anos, muitas com chupeta na boca, sendo colocadas em camburões pelos soldados da milícia mineira, que souberam respeitar as crianças deixando-as com as suas chupetas... Parece que atualmente o objetivo de riscar as crianças carentes dos mapas urbanos já não está mais nos planos dos defensores das nossas urbes e da nossa incolumidade física. Chegou-se à conclusão que essa é uma providência inócua. As crianças retiradas daqui ou dali, passam a habitar lá ou acolá. Saem da Sé, vão para a Praça Ramos ou para a Praça República. Mortas na Candelária, renascem em Copacabana. Presas em Belo Horizonte, ressurgem em Confins. Lamentavelmente, em substituição a essas providências migratórias, nada absolutamente nada se tem feito, salvo uma ou outra ação isolada. Não há uma grande mobilização social, um plano governamental e nem mesmo promessas são ouvidas, sendo certo que as crianças não são mais lembradas sequer como instrumento de demagogia e de mentiras eleitorais.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma turma solidária

A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco sempre exerceu sobre mim um grande fascínio. Não me formei na velha Academia. Barrou-me um vestibular para o qual eu estava preparado. Minha letra impediu a minha aprovação. Acredito que com um pouco de boa vontade o examinador não teria colocado sobre a minha dissertação de português um implacável carimbo: ilegível. Soube da fatídica carimbada pelo saudoso amigo Fued Temer, eminente advogado e professor do Largo. Mais benevolente em face de uma letra talvez melhor cuidada, o examinador da Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo aprovou-me na prova de português como o fizeram os demais examinadores. A letra nas outras provas não foi levada em conta, pois os outros exames foram orais... Tive na Católica uma intensa vida universitária marcada por memoráveis atividades acadêmicas e por uma incansável militância política. Construí amizades imorredouras; conheci minha mulher; aprendi Direito com inesquecíveis mestres; enfim nenhuma queixa do velho convento da Rua Monte Alegre, onde está localizada a Faculdade, ao contrário, afeto e saudade são os sentimentos que me unem à querida Católica. No entanto, embora lá não tenha estudado, minha afeição pela Faculdade do Largo de São Francisco é a mesma, caso lá tivesse me formado. Note-se que a Academia não é daqueles que lá se formaram. Não, ela é de todos, é um símbolo, adquiriu um caráter universal. O bacharel em direito está impregnado do espírito das arcadas. Liberdade, culto do espírito, solidariedade, humanismo, poesia, democracia, amor ao próximo, justiça social, são valores cultuados e cultivados desde sua fundação. A alma das arcadas é a nossa alma, os ideais são os acalentados por seus estudantes por quase dois séculos são os nossos ideais. Eu também estou ligado à velha Academia por hereditariedade. Eu nasci quando papai cursava o quarto ano. Assim, no final de 1946, quando ele se formou, eu tinha um ano e meio, e pude assistir à sua missa de formatura. Em determinada ocasião papai me levou ao Centro Acadêmico Onze de Agosto. Eu ainda não fizera um ano. Os estudantes entretidos com a sinuca, o carteado, o jogo de dados e outras atividades não menos nobres e dignificantes, pararam para recepcionar pai e filho. Segundo consta, papai confiante no espírito paternal de seus colegas, deixou-me passar de colo em colo, até que me perdeu de vista, fato que mobilizou a estudantada, que pressurosa passou a procurar-me. Logo me encontram nada menos do que dentro da geladeira. Com o passar dos anos, dois estudantes da época reivindicavam, orgulhosos, a autoria da façanha: Anacleto Raposa Holanda e Kleber de Menezes Dória. Um tachava o outro de mentiroso, usurpador do memorável feito. Outro fato merece ser mencionado. Os estudantes de então, numa demonstração de solidariedade e preocupação com a infância, todas as noites após obrigatórias tertúlias etílicas no bar do Onze de Agosto, postavam-se sob a janela de um jovem e inexperiente casal residente na Rua do Riachuelo, para recordar-lhes o dever de alimentar o recém nascido, filho do casal. O alerta era candente, feito na forma de uma ordem impostergável. "Macacão acorda para dar leite para o macaquinho". A repetição da ordem provocava dois efeitos: a minha pronta amamentação e a pronta reação do pai do "macacão", meu avô, vez ou outra chamado de "macaco velho", que saía à janela e ameaçava de morte os solidários e preocupados acadêmicos.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A cachaça salvadora

O caso que seria julgado era dativo. Mais um dentre os inúmeros para os quais fui nomeado durante os primeiros anos de exercício profissional. Quero consignar a minha gratidão ao instituto da advocacia dativa, dirigida à defesa de réus pobres, que era utilizada pelos juízes não só do Tribunal do Júri, como das varas singulares. O número de Procuradores do Estado, lotados na procuradoria de Assistência Judiciária, era insuficiente para o atendimento da grande quantidade de acusados carentes. Mercê dessas nomeações eu e todos os advogados da minha e das gerações anteriores, tiveram a possibilidade de desenvolver-se na advocacia criminal, especialmente na Tribuna do Júri. Por outro lado, nós pudemos entrar em contato com um Brasil que mal ou que nada conhecíamos. Refiro-me ao Brasil da pobreza, do analfabetismo, das carências de toda ordem. Soubemos que os valores que nos norteavam e ainda norteiam não são os valores comuns a todos os brasileiros. Na defesa de migrantes, que constituíam a maioria dos defendidos, tomamos ciência da existência de outros valores, por eles seguidos à risca. A ofensa a um desses valores justificava pronta e vigorosa reação de conseqüências imprevisíveis ou até previsíveis. Lembro-me, como exemplo, do acusado de alcunha "cabeça de porco" que assassinara a vítima porque esta lhe dissera ter o "corpo fechado". Como o acusado duvidava desse atributo corporal da vítima, esta para evitar maiores discussões que poderiam terminar em tragédia, fez um repto: "pode atirar, eu provarei que tenho o corpo fechado". A crença da vítima era real, na blindagem de seu corpo. Bastou o desafio para que o cético réu acionasse o seu revólver e dissipasse a dúvida existente. No entanto, o caso que eu quero narrar não diz respeito à motivação do delito, mas a um aspecto levantado durante o julgamento, e relacionado às condições econômicas dos protagonistas. Eu fora nomeado defensor dativo de um devedor inadimplente, que matara a vítima credora. O notável e saudoso promotor Victor Lopes Teixeira, um dos acusadores mais temidos do Primeiro Tribunal do Júri, esperou a minha fala para lançar um argumento que lhe soava decisivo para a condenação. Passou a dar ênfase a um fato que, no seu entender, demonstrava que o acusado possuía boas condições financeiras, contrapondo-se à minha argumentação, no sentido de que o réu era de extrema pobreza. Realmente, procurei mostrar as dificuldades pelas quais passava o acusado, e que colocavam em risco a sua e a sobrevivência de sua família, fato este que impedia o pagamento da dívida. A vítima não convencida da má situação econômica do acusado, em uma das vezes que foi lhe cobrar, ofendeu-lhe impiedosamente e procurou agredi-lo. Este reagiu, prontamente, tomado de grande indignação, e praticou o homicídio objeto do julgamento. O inesquecível amigo Vitão, como era chamado o extraordinário "parquetier", procurava embasar a acusação em sólidos argumentos jurídicos, bem como na matéria fática existente nos autos. Quanto aos fatos enfatizou as boas condições do acusado. No entanto, não o fez com base em provas convincentes. Utilizou, na verdade, um único argumento, parcialmente verdadeiro, mas que possuía uma premissa falsa e uma conclusão errada. A premissa verdadeira: o acusado diariamente parava na padaria vizinha à sua residência e tomava um "rabo de galo". A premissa falsa: o promotor afirmava com convicção que "rabo de galo" era composto por vermute e por uísque. A conclusão errada, por influência da premissa falsa: o elevado custo da bebida, que induzia à "riqueza" do acusado. Em face dessa alegação, solicitei um aparte, prontamente concedido: - Vossa Excelência é um grande promotor, um profundo conhecedor de Direito Penal e um professor emérito, mas de cachaça entendo eu : rabo de galo é uma mistura de pinga com vermute. Em seguida olhei para os jurados e verifiquei que quatro deles balançavam afirmativamente a cabeça, concordando com a minha etílica explicação. Minha tese foi acolhida pela maioria dos jurados e o réu foi absolvido: legítima defesa da honra.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A coragem do livre pensador

Atuei muito pouco na Justiça Militar. Formei-me em 1970 e à época grandes advogados defendiam presos políticos, perante os Tribunais castrenses. Inúmeros eram os processos mensalmente instaurados, oriundos dos inquéritos das Comissões Gerais de Investigação e de outros órgãos da repressão. A esses colegas, militantes de todos os Estados da Federação, devemos tributar nosso mais profundo respeito, pela sua coragem e pelo seu desprendimento postos à prova em embates profundamente desiguais travados perante órgãos do judiciário que nem sempre primavam pela imparcialidade. Não raras vezes esses advogados eram igualados aos próprios clientes, pois defensor de subversivo, subversivo era. Minha atuação na Justiça Militar, como disse, foi insignificante, pois limitou-se à defesa de um único acusado. Uma única causa, no entanto, proporcionou-me riquíssima experiência profissional e valiosa contribuição para minha formação pessoal, mercê do convívio com um homem excepcional, o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto. Com 69 anos de idade, ele fora, em abril de 1972, denunciado perante a Segunda Auditoria Militar, sob a acusação de haver incitado alunos da Faculdade de São José dos Campos, onde lecionava História da Educação, "à subversão da ordem política vigente no país, quer de forma sorrateira, inoculando no espírito dos desavisados o germe da guerra psicológica e subversiva, no ensinamento preconcebido e deturpado da doutrina marxista, quer de forma ostensiva, ao mandar que os alunos se sublevassem, por ocasião da morte do estudante Edson Luiz". A acusação o rotulou de "velho militante comunista", fato por ele não negado em seu interrogatório, o que, por si só, já demonstrou a sua coragem e retidão de caráter. Para ele, se tal circunstância o incriminasse, pouco se lhe daria, pois preferiria arcar com as conseqüências de uma condenação, do que negar as suas convicções ideológicas. Negou, isso sim, e o fez veementemente, qualquer ação de incitação à luta armada ou qualquer espécie de sublevação. A denúncia foi julgada improcedente, por unanimidade, após a defesa por mim produzida e a manifestação do procurador Henrique Vailate que postulou a absolvição do acusado. O processo instaurado contra o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto representou, à época, a indisfarçável aversão do poder político de então pela liberdade de pensamento. A prova oral constante dos autos, mesmo aquela produzida a pedido do MP, realçou os aspectos exclusivamente didáticos das exposições e mesmo das digressões políticas feitas pelo Professor. Ficou patente que a sua divergência com o governo dito revolucionário se situava no campo ideológico e no que representava de afronta à democracia. A prova demonstrou, outrossim, e seus livros já mostravam, que embora de formação marxista, Hadock Lobo era um democrata e acima de tudo um humanista. As críticas que fazia a ações concretas do governo, como, por exemplo, à Lei de Diretrizes e Bases, possuíam forte embasamento fático e teórico e tinham sempre um acentuado sentido construtivo. Sempre reconheceu a grande influência de Marx, especialmente no que tange à importância dos fatores econômicos na evolução da humanidade. Jamais no entanto fez proselitismo da doutrina marxista em sala de aula. Verberava sim as vergonhosas diferenças sociais marcantes em nossa realidade passada e presente e ressaltava como um dos seus preponderantes fatores a quase inexistente distribuição de renda. Como livre pensador, envolveu-se em inúmeras e célebres polêmicas sempre defendendo os postulados éticos e humanistas como os norteadores das atividades e das condutas humanas. E possível que seu notório ateísmo deve ter refletido no processo a que respondeu, pelo menos na acusação que lhe deu início. Tenho, hoje, absoluta certeza que a sinceridade demonstrada durante o julgamento, a sua transparente honestidade de propósitos e o seu elevado porte intelectual, somados à carência de apoio probatório para a imputação contra si feita, constituíram fatores preponderantes para a sua absolvição. Parece-me ter sido esse um caso emblemático. Os governantes procurando punir um homem de pensamento, que o extemava com denodo e independência, mas, aos olhos dos detentores do poder, com insolência e petulância. Assistiu-se a um confronto da cultura, da inteligência, da liberdade de pensamento e do destemor com o obscurantismo, o arbítrio e a violência. Prevaleceu o senso de justiça do juiz auditor, dos juízes militares e do próprio acusador, que se renderam à força da coragem, do caráter, do intelecto de um homem verdadeiramente singular.
segunda-feira, 26 de julho de 2010

Prendam esse moleque

Não havia prazer maior do que ir ao Pacaembu assistir a uma partida de futebol. Saíamos cedo de casa, horas antes do início do jogo. Íamos de bonde até a Avenida Angélica e de lá descíamos a pé até o estádio. Pegávamos a condução no Paraíso. Durante o percurso nós nos maravilhávamos com os palacetes que ainda ornamentavam a avenida. A volta fazíamos pela mesma Paulista, só que andando. Percorríamos quase três quilômetros até nossas casas, localizadas nas ruas Cubatão, Stela e Correa Dias. O número de participantes dessas excursões futebolísticas variava de acordo com a partida. Normalmente, éramos cinco ou seis torcedores do São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Apesar de estarmos nos anos sessenta, salvo engano, não havia nenhum santista. Cada um de nós ia ao Pacaembu quando jogava o seu respectivo time. No entanto, por vezes, assistia-se a partidas de outros times e sempre se torcia contra aquele para o qual torciam os amigos que nos acompanhavam. Tudo nos encantava e nos divertia. O Pacaembu à época nos parecia o maior estádio de futebol do mundo. Não conhecíamos o Maracanã (eu fora uma vez, com dez anos) e o Morumbi estava incompleto. Havia nos arredores do estádio e durante os espetáculos, um clima de alegria, expectativa e emoção. Talvez não haja grande diferença com o que ocorre nos dias de hoje, só que nós éramos os protagonistas e víamos tudo sob a ótica do entusiasmo, da novidade, da aventura. Emprestávamos ao que fazíamos uma grande dose de romantismo, de ingenuidade e pureza. Nossa faixa etária variava dos doze aos quinze anos. Era uma época de menos brigas nos campos de futebol. Quando ocorriam não eram cruentas, não se matava. Brigava-se para, em não raras vezes, confraternizar-se em seguida. Como a violência não tinha presença constante, vendia-se cerveja no Pacaembu. Nós estávamos nos iniciando nos vícios que, segundo achávamos, nos transformariam em homens: beber e fumar. Assim, comprávamos uma cerveja para dois, que era acompanhada dos deliciosos sanduíches de salame que vinham em cestas, trazidos por vendedores que passavam por entre as cadeiras. Para arrematar, sorvete picolé da Kibon. Nos jogos, talvez o que menos importasse fosse o resultado das partidas. Incluídas as gozações, mesmo com o time derrotado, as tardes ou as noites no Pacaembu eram gloriosas. No entanto, nós atingíamos a glória suprema e a indescritível felicidade quando conseguíamos entrar no vestiário, após rompermos o bloqueio da porta que a eles dava acesso. A visão dos craques, mesmo que despidos, o ambiente dos vestiários e até o cheiro de óleo canforado nos fascinava. Certa noite, a tentativa de entrar no vestiário do São Paulo foi frustrada por alguém que me deu um forte empurrão, o que mereceu da minha parte um enérgico ponta pé no "agressor". Não imaginava tratar-se de um delegado de polícia, que de imediato gritou: "prendam esse moleque". A prisão não se concretizou graças à providencial intervenção do emérito são-paulino Onei Raphael Pinheiro Oricchio, um querido e saudoso amigo de meu pai e meu. Anos e anos após o episódio, eu ocupava a Secretaria de Segurança Pública quando fui procurado por um delegado de polícia que pleiteava algo, talvez uma promoção. Ao vê-lo não tive dúvidas em reconhecer o meu quase carcereiro daquela noite. Tratava-se do Dr. Lisandro Bártholo, um ex-jogador do São Paulo e na ocasião um respeitado "cardeal" da polícia paulista. Num primeiro momento ficou lívido ao saber que o "moleque" para quem dera voz de prisão na porta do vestiário, passados quase trinta anos, era o Secretário de Segurança, seu chefe e responsável pelo atendimento ou não de sua reivindicação. Passado o susto, rimos gostosamente e Lisandro passou a ser um bom amigo. Saudades do velho Lisandro.
segunda-feira, 12 de julho de 2010

Duelo no Júri

Fascinado pela advocacia criminal, ainda estudante, desejava assistir a uma sessão do Tribunal do Júri. Estudava pela manhã, trabalhava à tarde no escritório de meu pai e à noite exercia as honrosas funções de foca na sucursal do jornal "O Globo", assim amarguei por bom tempo a frustração do desejo irrealizado. Surgiu, então, a oportunidade e lá estava eu, confesso que tocado pela emoção, no Segundo Tribunal do Júri de São Paulo. Procurei colocar-me no plenário de modo a não perder um lance dos debates, uma só palavra, um mero gesto que fosse, uma contração facial. Enfim, eu queria registrar todos os eventos do julgamento, passo a passo, minuto a minuto como se aquele fosse uma oportunidade única de estar em contacto com a grande instituição democrática, instrumento de consagração dos grandes nomes da advocacia. O promotor, Antonio Carlos Penteado de Moraes, e o advogado Hermenegildo Valente defrontavam-se. Presidia a Sessão o Magistrado José Fernandes Rama, que, posteriormente, precisamente no dia 8 de julho de 1970, iria presidir o meu primeiro júri. Ambos, acusador e defensor, eram dotados de invulgar cultura e oratória primorosa, tiveram nesse dia uma de suas mais brilhantes atuações. Esta foi a opinião de tantos quantos já os conheciam e lá estavam presentes. Nenhum aspecto da prova foi esquecido. Ao lado de argumentações pertinentes e expostas com objetividade e clareza, houve apartes oportunos e inteligentes de ambos os lados. As imagens e as metáforas ricas e bem construídas emprestaram aos discursos uma beleza de obra de arte. O Segundo Tribunal do Júri da Capital, onde se realizou o julgamento estava instalado no quarto andar do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo. As sessões tinham início às 13 horas. Instalavam-se com quinze jurados ou mais, dos quais eram sorteados sete que atuariam como julgadores. Número menor de quinze, caso houvesse sessão, provocava a nulidade do julgamento. Aliás, o sistema é o mesmo até hoje. A esse respeito, ocorre-me um fato que passou a compor o longo e delicioso anedotário do júri. Um célebre advogado, contumaz vencedor das pugnas forenses, não se mostrou minimamente abatido quando um seu cliente, em rumoroso julgamento, foi condenado pelo Tribunal do Júri, tendo-lhe sido aplicada elevada pena, pelo Juiz Presidente. Não obstante o abatimento do réu e de seus familiares, bem como da grande repercussão da sua derrota, ele mostrava-se tranquilo e absolutamente confiante no êxito do recurso que seria interposto. E, com efeito, julgado o mesmo recurso recebeu provimento do Tribunal de Justiça que anulou a sessão do Júri. Descobriu-se, posteriormente, que a confiança do festejado defensor tinha uma razão: o cartorário responsável elaborou a ata de instalação da sessão do Júri registrando a presença de apenas treze jurados, quando a lei, como se disse, exige a presença no mínimo de quinze sob pena de nulidade. Naqueles tempos, havia uma perfeita sintonia entre a defesa e o funcionalismo do Fórum... Mas, voltando ao primeiro Júri que assisti, na defesa atuava o advogado e procurador do Estado Hermenegildo Valente, lotado na Procuradoria de Assistência Judiciária, órgão voltado para a assistência dos réus pobres. O acusador público era o Promotor Antonio Carlos Penteado de Moraes, que, após aposentar-se, veio a advogar no escritório de José Carlos Dias. Ambos excelentes oradores, dotados de inúmeros recursos retóricos, conhecedores da prova e, acima de tudo, primorosos argumentadores. A acusação desenvolveu-se ao meio de apartes veementes do defensor, de respostas por vezes irritadas do acusador e entremeada por acaloradas discussões. Momentos houve nos quais imaginei que ambos partiriam para o desforço físico, tal o empenho, a eloquência, o ardor com que expunham os seus argumentos. Quando a defesa terminou o seu discurso, o Juiz Presidente, antes de passar a palavra ao Promotor para a réplica, concedeu um intervalo. O Segundo Tribunal do Júri estava localizado no quarto andar do vetusto prédio da Praça Clóvis onde está localizado o Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse andar como nos demais há uma mureta que dá para as escadas e para um vão livre. Pois bem, no intervalo vi que advogado e promotor estavam encostados nessa mureta e gesticulavam e falavam sem descanso, dando-me a nítida impressão que trouxeram para fora do Plenário a acalorada discussão que haviam travado minutos antes. Preocupei-me com aquela cena. Eu não conhecia os costumes, os personagens, as nuances e peculiaridades do Júri, por isso tive receio que os para mim ferrenhos adversários, se agredissem e despencassem pelo vão do andar. Entre cauteloso e apressado, fui me aproximando para tentar, embora fosse grande ousadia, evitar que a discussão se transformasse em luta corporal. No entanto, para meu espanto e alívio, ao chegar perto de ambos constatei que a cena belicosa na verdade não passava de uma "exibição musical": Ambos cantavam uma valsa chamada "Naná", ou será uma outra, não sei, também pouco importa, importa sim que eles cantavam, simplesmente cantavam. Permaneci algum tempo junto aos dois grandes tribunos, mas maus cantores.