Futebol, mercado da SAF e interesse coletivo
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Atualizado em 8 de abril de 2025 15:26
"Private interests must be made subservient to the general interests of the community". A frase foi utilizada pelo juiz da Suprema Corte norte-americana, Samuel Miller, em emblemático caso julgado em 1873 (Slaughter-House Cases), que envolvia, de um lado, um grupo de açougueiros de New Orleans e, de outro, o Estado da Louisiana, que havia promulgado uma lei que impunha a centralização de abate em apenas um abatedouro.
Tentava-se, com ela, evitar que animais fossem esquartejados onde bem cada esquartejador quisesse e que as sobras de mais de 300.000 animais fossem despejadas, anualmente, no Rio Mississipi, principal fonte de água potável (drinking water) da cidade.
O grupo de inconformados pretendia afastar a legalidade da lei com base na 14ª emenda à Constituição, idealizada para proteger e estender direitos constitucionais à comunidade afro-americana. A extensão, porém, de direitos atribuídos originalmente a cidadãos às companhias não consistia em novidade, como explica em detalhes Adam Winkler, no excelente livro "[w]e the corporations - how american businesses won their civil rights" (Liveright Publishing Corporation).
A tese apenas se moldava ao conteúdo da emenda, pois, desde os primórdios da colonização e, sobretudo, após a independência, a colônia e o país foram marcados pela dominação e influência de companhias, tais como a Virginia Company of London, a Massachusetts Bay Company e a East India Company, que souberam defender posições e pleitear direitos. O embate envolvendo a extensão de direitos individuais às corporações pautou a Suprema Corte e oscilou em função das correntes políticas (que opunham dois "founding fathers", Alexander Hamilton e Thomas Jefferson) que ascendiam ao poder e, consequentemente, influenciavam a composição da corte.
O que se pretendia, naquele momento, era, mais uma vez, afastar a competência dos tribunais estaduais, geralmente compactuantes com as políticas locais, para decidir o caso - como já se conseguira em outras oportunidades, a exemplo do paradigmático litígio conhecido como Bank of the United States v. Deveaux, de 1809 -, apesar de, como escreve Adam Winkler, a "[e]menda não ter sido concebida para resolver o descontentamento de açougueiros brancos com atos de regulação econômica".
A ideia de preponderância do interesse comunitário sobre o particular, sem que se promova o afastamento de direitos individuais e da livre iniciativa, e ainda se mantenha o respeito a contratos - e, em especial, sem que se estatizem os meios de produção ou, para o que interessa neste texto, os meios de prática futebolística - ressurgiu, recentemente e em outro contexto, no berço do liberalismo e do mercantilismo contemporâneo, a Inglaterra.
Apesar da abertura do mercado do futebol ao capital privado, local e internacional, a preocupação com o interesse coletivo vem pautando o debate, por conta da exposição a que se submeteram os times locais. No âmbito da Premier League, entidade privada controlada pelos próprios times, foi instituído o OADT - Owners' and Directors' Test - "que tem como propósito assegurar que a pessoa que detenha participação em um time (ou o administre), acima de determinado percentual, ateste o preenchimento de padrões, sem os quais não estará habilitado à consumação de uma aquisição (ou à posição de administrador)" 1.
Mas a preocupação pulou o muro da autorregulação e alcançou o Estado inglês, que reconheceu a relevância do futebol na sociedade; mais do que isso: reconheceu a sua essencialidade em certas comunidades, que giram ao redor de times e dos jogos que acontecem aos finais de semana. O próprio Rei Charles já expressou a preocupação real e indicou que o parlamento iria legislar a respeito do futuro dos clubes de futebol no interesse das comunidades e dos torcedores.
Paradoxalmente, talvez não exista, no planeta, um país mais identificado com o futebol do que o Brasil, por motivos esportivos e sociais. E talvez não exista, neste país, uma atividade que empreste, com encargos impagáveis, alguma (ou ilusória) esperança a parte da população desfavorecida, que aposta o futuro na profissionalização de crianças e adolescentes no futebol.
E talvez também não exista, no mesmo planeta, uma perspectiva tão alvissareira como a criada pela lei da SAF, que abriu a possibilidade, após mais de um século de dominação cartolarial, de implementação de um modelo receptivo à captação de recursos e à implementação de técnicas avançadas de governo e de controle, em ambiente regulado.
Mas talvez também não exista, dentre os países do planeta, em especial os países relevantes no planeta do futebol, um que, como o Brasil, ao mesmo tempo não perceba a importância econômica que o esporte passou a ter e se esforce tanto para, senão destruir, inibir o seu desenvolvimento.
Em mais um paradoxo, o Brasil está, no entanto, à frente da Inglaterra, em matéria legislativa. A lei da SAF instituiu uma série de instrumentos que visam à segurança sistêmica - apesar da intranquilidade, local e internacional, provocada por decisões judiciais oportunísticas, que tendem (ou deveriam) ser reformadas em tribunais superiores. Mas ainda falta uma inequívoca política de Estado que conduza e conforte o mercado em formação e que contribua para a inocorrência, como se viu séculos atrás em Nova Orleans, de eventos carregados de externalidades negativas, prejudiciais à coletividade.
Nenhum governo brasileiro, independentemente de sua ideologia ou corrente política, percebeu, até o presente ano de 2025, o tamanho que o mercado do futebol pode alcançar e como ele serviria aos interesses nacionais, sob a forma de softpower e de gerador (e distribuidor) de riquezas.
A conivência com o modelo de apropriação patrimonialista, em todos os planos, inclusive de acesso e transmissão do futebol (que só agora começa a ser desafiado), não encontra respaldo na sociedade e no sistema, em especial na Constituição. Porém, enquanto ela não for substituída pela ação, sobretudo voltada ao interesse comum - respeitando-se os interesses, os movimentos e os negócios individuais legítimos -, o futebol brasileiro permanecerá a serviços de poucos agentes que lucram com a contaminação e degradação do sistema.
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1 Disponível aqui. Acesso em 7/4/25.