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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
quarta-feira, 25 de junho de 2025

O Peru, o Brasil, a gastronomia e o futebol

Paira mesmo entre gastrônomos o dogma de que o Brasil, com destaque para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, é um centro gastronômico mundial, dotado de restaurantes especiais, criatividade, produtos e tradição. Em termos midiáticos, a dogmática não se sustenta. Duas referências confirmam a proposição. Desde que iniciou sua aventura pelas mencionadas cidades, o secular Guia Michelin1 ainda não encontrou um restaurante que merecesse as cobiçadas três estrelas, que indicam a excepcionalidade do local, merecedor de uma viagem por si, independentemente de qualquer outra atração. Ademais, na edição de 20252, apenas três estabelecimentos em São Paulo e outros dois no Rio de Janeiro receberam duas estrelas, que reconhecem a excelência e o merecimento de um desvio de rota. A lista do 50 Best3, uma publicação digital que ajuda a democratizar a informação sobre restaurantes, divulgada no dia 19.6.20254, elegeu 4 restaurantes latino-americanos entre os 10 melhores do planeta; nenhum brasileiro. Dentre eles, dois peruanos, sendo um deles considerado o melhor do mundo. O único brasileiro entre os 50 melhores ocupa a 27ª posição. Aliás, outro peruano, que não consta da lista atual, já havia alcançado o topo, em 2023. Jamais um restaurante brasileiro foi reconhecido como o melhor.  Quem acompanha a cena peruana costuma reconhecer os atributos que contribuíram para formar a convicção (ou a impressão) de que, nesse país de aproximadamente 35 milhões de habitantes, acontece algo diferente: uma geração talentosa e trabalhadora, heterogenia racial, produtos locais e peculiares, pesquisas e propaganda, muita propaganda. A ênfase na propaganda não diminui a qualidade e a importância da gastronomia peruana, mas reforça a eficiência organizacional do setor que compete regional e mundialmente com outros países, pelo consumidor internacional. Foi assim, com a reunião de todos aqueles atributos, que o país vizinho se tornou uma referência da culinária e um destino de comensais oriundos de diversas localidades do planeta. A Copa do Mundo de Clubes, realizada nos Estados Unidos da América, país que desde os anos 1970 tenta, sem êxito, protagonizar e dominar o esporte mais praticado no mundo, causou certa comoção no público brasileiro e na imprensa brasileira, pelos resultados positivos inicialmente obtidos pelos times nacionais, em tese (e na prática) menos estrelados e competitivos do que os europeus. O novo formato de copa oferece uma experiência diferente, consistente na reunião de diversos times regionais, que não formam uma federação ou um grupamento com fins comuns, mas que, pelas origens, acabam sendo integrados para finalidades comparativas - e de medição de força. Em tal sentido, apesar de se tratar de mero exercício de futurologia, John Textor, o controlador do Botafogo, um dos times brasileiros participantes, afirmou que, em sua opinião, um representante da América do Sul fará a final da Copa. Talvez. Mesmo que a profecia não se realize, o momento deveria chamar atenção dos governantes e dos dirigentes brasileiros. Ao contrário da indústria gastronômica - e da cena peruana -, o futebol em geral e especialmente o futebol brasileiro estão presentes direta ou indiretamente na vida de parte relevante da população mundial: são aproximadamente 3,5 bilhões de torcedores5 que os acompanham sem necessidade de esforço específico por parte das autoridades ou de dirigentes futebolísticos. Nesse ambiente, a FIFA indica que, em 20246, o país com maior número de transferências foi o Brasil, com 2.350 jogadores (o segundo colocado foi a Argentina, com 1.217), e os valores envolvendo jogadores brasileiros também ficaram no topo, com a marca de USD 1,9 bilhão, seguidos pelos franceses, que atingiram USD 926,9 milhões. Mesmo que um torcedor do Laos ou de Moçambique não acompanhe o futebol no Brasil, ou que um brasileiro não jogue em seu time local, se ele acompanhar o futebol europeu, o que é intuitivo, deverá se deparar, no time de preferência ou em seu rival, com brasileiros. Apesar disso tudo, o Brasil, nos últimos anos, passou por um terrível processo de deterioração de imagem - e de marca -, além de uma evolução de receitas, de modo geral, em ritmo inferior à dos times europeus, que se tornaram referências e destinos de jogadores de países de outros continentes. O complexo de vira-lata atingiu patamar de certeza e se tornou uma verdade, apesar da inverdade. Nenhum clube sul-americano (incluindo-se, obviamente, brasileiro), mesmo que venha a avançar e, eventualmente, ganhar a Copa do Mundo, tem orçamento comparável aos orçamentos dos pares da Europa. A maior receita de um europeu está muito distante da maior de um sul-americano, bem como a diferença da segunda receita de cada região é enorme, e assim sucessivamente. Apesar disso, no que se refere ao Brasil, alguns movimentos iniciais e não conectados, como a lei da SAF e a lei do mandante, começaram a reanimar o sistema (que ainda está longe de atingir um nível aceitável de tamanho e importância), em função da qualidade de jogadores produzidos localmente, da tradição de seus clubes e do tamanho da torcida local - isso sem contar as possibilidades (ou necessidades) de internalização e a conquista de parte do consumidor mundial. Ao contrário do enorme esforço peruano para criar uma indústria gastronômica e um fluxo internacional de turistas por conta de uma atividade restritiva (e de elite), o Brasil domina as técnicas do mais popular esporte do planeta, que acessa bilhões de aparelhos (celulares, televisões etc.) e de pessoas, e poderia ser um de seus softpowers. As perspectivas grandiloquentes não aguçaram, até agora, o interesse de qualquer Governo brasileiro, que não reconheceu - e não reconhece - a importância do futebol para o país e sua gente, mais necessitada. Uma pena, pois, enquanto a inércia governamental (ou estatal) prevalece, outros países avançam e dominam posições que deveriam ser brasileiras - e, com isso, se apropriam de ativos e de receitas que também deveriam contribuir para o desenvolvimento da Nação. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
Neste último artigo da série (que complementa os dois textos anteriores), abordam-se determinados aspectos da lei das sociedades desportivas portuguesa (lei 39/23, de 4/8) inseridos em capítulos denominados "disposições comuns", "fiscalização, regulação e supervisão", "contraordenações" e "disposições finais e transitórias". O art. 26º dispõe sobre a publicidade da sociedade desportiva e determina a publicação na respectiva página na internet do contrato social consolidado, das contas dos últimos três anos, da composição dos órgãos de administração e de fiscalização, dos contatos oficiais, dos dados relevantes relacionados ao cumprimento de deveres de transparência e de determinadas comunicações com os sócios. Dentre os deveres previstos na lei, inclui-se o dever atribuído à pessoa ou entidade que passar a deter participação qualificada no capital social ou se tornar a maior acionista da sociedade desportiva, de informar o fato à própria sociedade empresária e à federação desportiva, que deverão publicar o conteúdo em suas páginas na internet. Ademais, a pessoa ou entidade enquadrada deverá identificar o beneficiário efetivo (final) da participação, mesmo que se sujeite a lei estrangeira (ou seja, mesmo que seja domiciliado ou residente no exterior). As sociedades desportivas são fiscalizadas - mediante a realização de inquéritos, inspeções, sindicâncias e auditorias externas -, pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, sem prejuízo do disposto no Código das Sociedades Comerciais, no Código dos Valores Mobiliários e demais legislações aplicáveis. Os titulares de ações e os administradores de sociedades desportivas devem ser pessoas com idoneidade. Considera-se idoneidade, segundo a lei, a aptidão para o exercício de determinada função, aferida pela probidade, por características pessoais, pelo modo de atuação e pela situação profissional e financeira. O art. 32º discorre sobre avaliação de idoneidade, apreciação de idoneidade e presunção de idoneidade. A lei estabelece que será idônea a pessoa que, cumulativamente, preencher os seguintes requisitos: "a) Seja maior não afetada por qualquer incapacidade de exercício; b) Não seja devedora de qualquer sociedade desportiva; c) Não tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por crimes em matéria de dopagem, pelos crimes previstos no regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva e no regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, até cinco anos após o cumprimento da pena; d) Não tenha sido sancionada por crimes praticados contra o património de sociedades desportivas ou clubes desportivos, até cinco anos após o cumprimento da pena, salvo se sanção diversa lhe tiver sido aplicada por decisão judicial; e) Não tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem, branqueamento de capitais, associação criminosa, terrorismo, furto, abuso de confiança, burla, extorsão, infidelidade, abuso de cartão de garantia ou de crédito, usura, emissão de cheque sem provisão, falsificação de documento, insolvência dolosa, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, abuso sexual de crianças, tráfico de pessoas ou auxílio à imigração ilegal, até cinco anos após o cumprimento da pena". A pessoa que pretender adquirir participação qualificada deverá demonstrar capacidade econômica para o investimento e procedência dos meios. O art. 33º prevê que a sociedade desportiva que não estiver com a situação tributária e contributiva regularizada por um período superior a três meses seguidos ou seis intercalados, no mesmo ano civil, ficará sujeita a sanções desportivas, aplicáveis pela respectiva federação. Aliás, o art. 28º estabelece que o regime fiscal das sociedades desportivas consta de lei especial (lei 103/1997, de 13/9)1, aplicando-se, nas omissões, as leis tributárias gerais portuguesas. O capítulo VIII, denominado contraordenações, é dividido em: coimas, que se referem a sanções pecuniárias decorrentes de inobservâncias da lei; sanções acessórias, que envolvem, dentre outras, a inibição ao exercício de funções administrativas na sociedade desportiva; medidas cautelares, abrangendo, por exemplo, a suspensão preventiva de atividade ou função; responsabilidades pelas contraordenações, em que se identificam responsáveis ou se atribuem responsabilidades pelas ilicitudes; e outros subcapítulos que versam sobre elementos pessoais, formas de infração, cumprimento do dever violado, prescrição, custas e impugnação judicial. Assim se conclui a série de textos sobre a lei portuguesa, que oferece interessante material de análise, estudo e comparação com o modelo brasileiro. 1 Disponível aqui. Acesso em 17/6/25.
Em complemento ao artigo apresentado há uma semana neste espaço, trata-se, desta vez, de aspectos relacionados à governação, aos deveres e ao funcionamento da sociedade desportiva em Portugal. De lá para cá, uma novidade: a seleção nacional portuguesa tornou-se, no dia 8 de junho, bicampeã da Copa das Nações, reafirmando-se como uma das principais forças europeias. À falta de dados empíricos, favoráveis ou contrários, não seria descabido associar a reafirmação vitoriosa ao processo interno de organização da atividade no país, sobretudo por intermédio da iniciativa legislativa. Mas não sendo este o propósito do texto, volta-se à apresentação do conteúdo da lei 39/20231. A sociedade desportiva deve ser administrada por órgão composto pelo número de membros previsto no estatuto, devendo ao menos dois ser membros executivos (ou apenas um, se se tratar de sociedade unipessoal). Além disso, um dos executivos deve atuar em regime de exclusividade. A identidade dos administradores deve ser reportada anualmente à entidade de administração do esporte e, se aplicável, à liga da qual a sociedade desportiva participe. Caso a sociedade desportiva tenha ações admitidas à negociação em mercado regulado, a comunicação de identificação esportiva não será aplicável. O artigo 20º estabelece que a proporção de pessoas de cada sexo não pode ser inferior a 33%, incluindo membros executivos e não executivos (observado, para companhias listadas, o disposto na lei 62/2017, de 1º de agosto).     Assim como ocorre na Lei da SAF, o art. 21º estabelece uma lista de incompatibilidades e considera nula a indicação de:   "a) [...] titulares de órgãos sociais de federações, ligas profissionais, associações desportivas regionais ou distritais, de outras sociedades desportivas ou clubes desportivos, salvo no caso do clube desportivo fundador; b) Quem detenha capital social, direta ou indiretamente, de outra sociedade desportiva participante em competições nacionais da mesma modalidade; c) Os praticantes desportivos profissionais, membros de equipas técnicas e árbitros, em exercício, da respetiva modalidade; d) Quem possua ligação a empresas ou organizações que explorem, promovam, negoceiem, organizem, conduzam eventos ou transações relacionadas com apostas desportivas; e) Quem, na mesma época desportiva, tenha ocupado cargos de administrador ou gerente em outra sociedade desportiva constituída no âmbito da mesma modalidade; f) As pessoas singulares ou coletivas que se dediquem à atividade, ocasional ou permanente, de intermediação de jogadores e treinadores; g) As pessoas singulares que, por força de relações pessoais ou profissionais, possam gerar uma situação, real, aparente ou potencial, suscetível de originar interesses incompatíveis daqueles que estão obrigados a defender; h) Pessoas estreitamente relacionadas com as referidas nas alíneas anteriores".  Consideram-se pessoas estreitamente relacionadas:  "a) Cônjuge, unido de facto ou parente em 1.º grau, no caso de pessoas singulares; b) Sociedade na qual uma das pessoas ou entidades referidas no número anterior ou um familiar próximo referido na alínea anterior: i) Detém uma participação qualificada ou direitos de voto; ii) Pode exercer uma influência significativa; ou iii) É membro do órgão de administração."  A lei portuguesa também trata de deveres de transparência. Os titulares de participações qualificadas devem ser comunicados às entidades fiscalizadoras, à federação desportiva e, se o caso, à liga. A comunicação compete à sociedade desportiva, observados certos procedimentos previstos na lei2. Em relação ao funcionamento, os acionistas ou sócios terão preferência para participar de aumentos de capital. Além deles, os associados do clube fundador, mesmo que não sejam acionistas, também poderão preferir aos demais, caso exista previsão estatutária. O artigo 23º ainda prevê que a subscrição pelo público em geral pode se realizar em condições mais onerosas àquelas previstas aos associados do clube em transformação ou fundador. O legislador português tomou cuidado com a preservação de ativos da sociedade desportiva, incluindo intangíveis, ao prever que a alienação ou a oneração de bens imobiliários que representem mais de 20% do ativo, bem como de símbolos, incluindo o emblema e equipamentos, sigam ritos próprios, previstos no art. 24º, devendo-se, assim, obter a autorização da assembleia geral ou do sócio único, se o caso. Por fim, o art. 25º impõe limites ao exercício de direitos de sócios, quando se verificar participação em mais de uma sociedade, nos seguintes termos: "(...) os direitos de titulares de ações ou quotas em mais do que uma sociedade anónima desportiva que tenham por objeto a mesma modalidade desportiva só podem ser exercidos numa única sociedade, com exceção dos direitos à repartição e perceção de dividendos e à transmissão de posições sociais. 2 - A restrição prevista no número anterior aplica-se, igualmente, a sociedades relativamente às quais a sociedade anónima desportiva e o acionista se encontrem em relação de domínio ou de grupo". (grifou-se)  Cabe a cada acionista o dever de informar aos destinatários da informação, quais sejam, cada sociedade desportiva, a federação desportiva e, se o caso, a liga, sobre as participações detidas em sociedades desportivas. A lei ainda admite a alteração da escolha quanto à sociedade na qual os direitos de sócio serão exercidos, desde que se obtenha autorização da federação desportiva, e nos termos definidos por ela. No próximo - e último - texto da série serão apresentados outros aspectos relevantes (e interessantes) a respeito da sociedade desportiva em Portugal. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 10 de junho de 2025. 2 "Artigo 22.º Deveres de transparência (...) 2 - A comunicação referida no número anterior deve ser feita pela sociedade desportiva até ao início de cada época desportiva ou no prazo fixado em regulamento, dela devendo constar: a) A identificação e discriminação das percentagens de participação e dos direitos de voto detidos por cada titular; b) A identificação e discriminação de toda a cadeia de pessoas e entidades a quem a participação deva ser imputada, independentemente da sua eventual sujeição a lei estrangeira, bem como a identificação do beneficiário efetivo dessa mesma sociedade, de acordo com os termos estabelecidos no artigo 30.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo; c) A indicação de eventuais participações, diretas ou indiretas, daqueles titulares noutras sociedades desportivas. 3 - A informação referida no número anterior deve ser renovada e atualizada, no prazo de 15 dias úteis, contados da celebração da respetiva transmissão de propriedade ou de uso, consoante o que ocorra em primeiro lugar. 4 - A identificação dos titulares ou usufrutuários, individuais ou coletivos, de participações no capital social de sociedade desportiva e toda a cadeia de pessoas e entidades a quem cada participação deva ser imputada são comunicadas à federação desportiva da respetiva modalidade ou, no caso das sociedades desportivas participantes em competições profissionais, à respetiva liga profissional, sendo criada para o efeito uma base de dados, em conformidade com o disposto no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, designadamente o respeito pela finalidade da recolha dos dados, sem prejuízo do cumprimento dos deveres declarativos previstos legalmente. 5 - As entidades às quais é permitido o acesso aos dados a que se refere o número anterior devem limitá-lo aos casos em que este seja necessário para conhecimento da identidade dos titulares ou usufrutuários de participações sociais e ao cumprimento das finalidades de promoção da transparência, integridade e credibilidade das competições desportivas, e não devem utilizar a informação para fins diversos dos que determinam a recolha, devendo o tratamento da informação prestada ser realizado em estrita observância ao RGPD. 6 - A violação do disposto no presente artigo constitui contraordenação muito grave. 7 - A reincidência na violação do disposto nos números anteriores determina a aplicação de sanções de natureza desportiva, nos termos regulamentares aprovados pela federação desportiva da respetiva modalidade ou, no caso das sociedades desportivas participantes em competições profissionais, pela respetiva liga profissional. 8 - O disposto nos números anteriores não é aplicável à sociedade desportiva cujas ações estejam admitidas à negociação em mercado regulamentado, à qual se aplica o regime previsto no Código dos Valores Mobiliários. 9 - O registo e publicidade das sociedades desportivas regem-se pelas disposições constantes da legislação aplicável às sociedades comerciais, devendo a conservatória do registo comercial, oficiosamente e a expensas daquelas, comunicar às entidades referidas no n.º 4 a sua constituição, os respetivos estatutos e suas alterações".
Crise no futebol não é uma característica exclusiva do Brasil. Outros países enfrentaram problemas sistêmicos e encontraram saídas próprias, em função de suas realidades, na maioria dos casos, de natureza legislativa. Os principais modelos mundiais, especialmente europeus, foram estudados antes da proposição do anteprojeto da lei da SAF. Nenhum foi copiado; eventualmente, alguma solução sofreu adaptação ao ambiente local. O produto, concebido para situação do país - e de seus clubes -, justifica o sucesso, consubstanciado na quantidade de SAFs existentes. Apesar disso, e ao mesmo tempo de modo paradoxal, ainda persiste em alguns clubes brasileiros, ou melhor, sobretudo em alguns dirigentes dominantes de certos clubes, a aversão ao novo - mesmo que o novo seja necessário. O tema de hoje - e de colunas futuras - envolve a análise dos modelos adotados em países relevantes no plano esportivo. Esse exercício talvez ajude a fixar a ideia de que a SAF, no Brasil, não representa uma invenção tropicalista. Mais do que isso: apesar de não consistir em uma solução mágica para problemas conjunturais ou estruturais, consiste numa condição necessária para que times se reorganizem, passem a se submeter a um novo modelo de propriedade, arquitetem suas formas de governação e protagonizem no plano esportivo. Inicia-se com Portugal. A lei 39/23, de 4 de agosto1, estabelece o regime jurídico das sociedades esportivas e revoga o decreto 10/13. Nota-se, logo na partida, que o caminho português é diferente do brasileiro. Lá se estabelece o regime jurídico de sociedades que atuam em modalidades de competições esportivas, e não em competições futebolísticas, apenas. Porém, a reforma de 2023 apresenta soluções que, ao que parece, foram influenciadas pela legislação brasileira. Se não foram, assemelham-se, por acaso.    Entende-se por sociedade desportiva "a pessoa coletiva de direito privado, constituída como sociedade comercial, cujo objeto consista na participação, numa ou mais modalidades, em competições desportivas, na promoção e organização de espetáculos desportivos e no fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva da modalidade ou modalidades que estas sociedades têm por objeto, sob a forma de sociedade por quotas ou sociedade anónima". A participação em competições esportivas é reservada às sociedades desportivas. Se a sociedade desportiva tiver por objeto a pluralidade de modalidades, o clube que a constituir pode ser titular de apenas uma; mas poderá participar de outras sociedades esportivas, desde que cada uma tenha por objeto uma única modalidade ou, tratando-se da mesma, se se diferenciarem por gênero. A sociedade desportiva pode ser constituída: "a) de raiz; b) por transformação de um clube esportivo; c) pela personalização jurídica de uma equipa de um clube desportivo que participe ou pretenda participar em competições esportivas". A lei proíbe a fusão entre sociedades esportivas, exceto se também houver fusão entre os clubes (ou times). Em decorrência da constituição da sociedade esportiva, devem ser transferidos para ela (i) os direitos de participação no quadro competitivo em que estava inserido o clube desportivo fundador, (ii) os contratos de trabalho desportivos e (iii) os contratos de formação desportiva relativos a praticantes da modalidade ou modalidades que constituem objeto da sociedade constituída. Paralelamente, o clube e a sociedade esportiva devem regular a utilização (i) das instalações, (ii) da propriedade industrial e (iii) de outros sinais distintivos de comércio. No âmbito da constituição, o clube fundador deve estabelecer por escrito inventário de direitos e obrigações transferidos, que será avaliado por revisor de contas. Passivos transferidos devem ser acompanhados da transferência de ativos de valor, ao menos, equivalente aos passivos.   Após a constituição, a sociedade desportiva representará ou sucederá o clube desportivo que lhe deu origem nas relações com a federação desportiva de sua modalidade de prática. A denominação das sociedades esportivas deverá conter a modalidade que praticará, se for apenas uma, e a abreviatura indicativa do tipo societário adotado: SAD; SDQ, Lda.; ou SDUQ, Lda. (conforme seja uma sociedade anônima, sociedade anônima unipessoal, sociedade por quotas ou sociedade unipessoal por quotas). A lei estabelece, ademais, capitais mínimos, no momento da constituição: 250 mil euros, para sociedades que participem da 1ª Liga e 50 mil euros, para as participantes da 2ª Liga. A sociedade que ascender de Liga deverá ajustar o capital, previamente ao seu ingresso. Para sociedades que participem de outras competições, o capital social mínimo também será de 50 mil euros. O art. 11 trata da participação do clube fundador na sociedade esportiva. Se a constituição decorrer de transformação ou for de raiz, o percentual será de 5% e as quotas ou ações do clube conferirão direitos especiais2. Mencionado artigo ainda trata da possibilidade (i) de o estatuto da sociedade desportiva sujeitar deliberações assembleares à autorização do clube fundador e (ii) de o clube fundador constituir uma sociedade gestora de participações. A lei estabelece que as ações de emissão das sociedades anônimas desportivas são de duas categorias: A e B. Categoria A se destina apenas ao clube fundador, na hipótese de constituição derivada da "personalização jurídica de uma equipa de um clube desportivo que participe ou pretenda participar em competições desportivas". Na hipótese de constituição de sociedade por quotas, uma quota com direitos especiais deverá pertencer ao clube fundador. A pessoa que detiver participação qualificada numa sociedade desportiva não poderá ter participação qualificada em outra sociedade que participe em competições nacionais relacionadas à mesma modalidade. O conceito de participação qualificada é definido no Código dos Valores Mobiliários3. Ademais, uma sociedade desportiva não pode participar do capital de outra sociedade desportiva. No próximo texto da série serão apresentados aspectos relacionados à governação, deveres e funcionamento da sociedade anônima desportiva em Portugal.   1 Disponível aqui. Acesso em 3/6/25. 2 "a) O direito de veto das deliberações da assembleia geral que tenham por objeto a fusão, cisão ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube desportivo, designadamente, emblema, equipamento, logótipos e outros sinais distintivos de comércio; b) O poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração e de fiscalização, com direito a participar em todas as reuniões e com direito de veto das respetivas deliberações com objeto idêntico ao da alínea anterior". 3 Conforme art. 16 do Código dos Valores Mobiliários, é considerado titular de participação qualificada aquele que atingir ou exceder 5% dos direitos de voto vinculados ao capital social de uma sociedade emitente de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado de valores mobiliários.
quarta-feira, 28 de maio de 2025

Quanto vale a seleção brasileira de futebol?

Quanto vale a seleção brasileira de futebol? A pergunta pode parecer estranha, pois se trata de uma atividade exercida por uma associação sem fins econômicos, a CBF - Confederação Brasileira de Futebol, que não está à venda. Mesmo assim, ela poderia ser precificada. Eventual preço, ou melhor, o debate sobre como precificar e, consequentemente, as projeções de preços serão objeto de outro texto. Para responder à questão, entretanto, retoma-se a ideia, já proposta nesta coluna, de criação de uma nova companhia pela CBF (associação), aqui denominada CBF S.A., que receberia os ativos relacionados à seleção de futebol e que seria integralmente detida pela própria CBF, conforme ilustração abaixo:   Na sequência, federações, clubes e SAFs subscreveriam aumentos de capital e passariam a ser acionistas da CBF S.A., em conjunto com a CBF. A permanência da CBF no capital da CBF S.A., a qualquer momento de sua existência, seria condição para resguardar a história e a tradição da seleção, e a CBF seria titular de direitos especiais e de vetos em relação a matérias essenciais. Com a entrada dos novos acionistas (federações, clubes e SAFs), a estrutura societária ficaria assim:     Na sequência, os acionistas poderiam escolher entre dois caminhos: (i) abrir o capital da CBF S.A., momento em que federações, clubes e SAFs venderiam suas ações e embolsariam, dependendo das participações que tivessem, bilhões de reais; ou (ii) vender suas ações a acionista estratégico, que contribuiria, ao lado da CBF, para o desenvolvimento da seleção brasileira e, ao mesmo tempo, direcionaria, sob as mesmas premissas, bilhões de reais a federações, clubes e SAFs. Parcela dos recursos também poderia ir para a CBF em contrapartida de eventual venda de parte das ações de sua titularidade, sem perda de direitos especiais e vetos, mencionados acima. Após um ou outro movimento, a estrutura da CBF S.A. passaria a ser a seguinte:   No plano societário, o caminho para que se promova uma das mais deslumbrantes, atrativas e singulares operações da história do mercado planetário de capitais, está traçado. Mas, resgatando-se a pergunta inicial, que ainda não será respondida aqui: quanto valeria, ou quanto poderia valer a seleção brasileira? Mais: quanto a CBF, federações, clubes e SAF's poderiam receber? As respostas deverão ser construídas a partir de números ou dados da CBF, nos quais se guarda o potencial da seleção brasileira, isoladamente considerada. Em 2024, por exemplo, a CBF arrecadou R$ 1.302.334.000,00 (um bilhão, trezentos e dois milhões, trezentos e trinta e quatro mil reais), reportou custos com o futebol de R$ 1.078.732.000,00 (um bilhão, setenta e oito milhões, setecentos e trinta e dois mil reais)1 e, após despesas operacionais e outros resultados operacionais, gerou um resultado antes de tributos de R$ 167.601.000,00 (cento e sessenta e sete milhões, seiscentos e um mil reais). Não é muito difícil extrair dos números as contribuições da seleção, em todas as linhas de receitas, como de patrocínios, direitos de transmissão e comerciais, bilheteria e premiações, registros e transferências, programa de desenvolvimento e CBF Academy. Também não será difícil isolar as destinações de custos e despesas da própria seleção brasileira de outras, relacionadas às demais atividades da CBF; e, ao final, chegar-se às contribuições da seleção brasileira para o resultado da CBF e, consequentemente, ao seu valor. A partir daí, a precificação poderia ser feita levando em conta algumas (ou todas) as seguintes referências, dentre outras: (i) valor de ligas internacionais, inclusive de modalidades distintas; (ii) valor de clubes internacionais, negociados em bolsa ou não; (iii) valor de empresas esportivas, negociadas em bolsa ou não; (iv) empresas brasileiras de alta rentabilidade; ou (v) projeções de fluxo de caixa, considerando os valores que serão destravados com a passagem ao modelo empresarial. Ao que parece, e isso será indicado em texto futuro, o futebol brasileiro poderia gerar, do "nada", bilhões de reais, que seriam destinados ao desenvolvimento do futebol e à construção do maior mercado do planeta. Nada além disso. _____________ 1 Do total, R$ 734.119.000,00 (setecentos e trinta e quatro milhões, cento e dezenove mil reais) foram destinados para contribuição ao fomento do futebol nos Estados e competições.
quarta-feira, 21 de maio de 2025

A CBF, os clubes, a liga de clubes e o Brasil

A CBF - Confederação Brasileira de Futebol é uma associação civil. Associações civis são regidas pelo Código Civil e se constituem pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos1. A CBF foi constituída há décadas, por pessoas físicas ou jurídicas2, que podem ou não estar presentes. Surge, então, a dúvida: quem são, atualmente, os associados formais da CBF?  O tema da titularidade, ou da ausência dela, foi resolvido pelo sistema estatutário de alocação de poder entre federações e clubes. Federações votam em todas as assembleias; clubes, em algumas. Nas assembleias em que os clubes votam, o colégio eleitoral é submetido a votos plurais desiguais, com atribuição de peso 3 às federações, peso 2 aos clubes que estiverem na série A e peso 1 (portanto, sem privilégio de fator de multiplicação) aos clubes que estiverem na série B3. Ou seja, as 27 federações juntas computam 81 votos, enquanto os 40 clubes de ambas as séries somam 60 votos (40 da série A e 20 da série B). Dessa forma, toda federação vale mais do que qualquer clube e, entre as federações, todas têm o mesmo peso. A federação de São Paulo ou do Rio de Janeiro, cujos principais clubes reúnem milhões de torcedores - e dezenas de títulos nacionais -, valem o mesmo que federações sem tradição e sem clubes representativos (que jamais participaram da série A ou, mesmo, da B). Nesse sistema, federações e clubes que reúnem milhões ou dezenas de milhões de torcedores são arrastados pelos interesses federativos e, na prática, sujeitam-se a interesses políticos dissociados dos propósitos que justificaram - e justificam - a própria existência da associação (pois as próprias regiões sem tradição não aparentam reagir ao distanciamento estrutural esportivo). A política ditou, nos últimos anos - ou pelo menos nas últimas duas décadas - o debate, sempre de modo negativo: corrupção, assédio, intervenção e interesses individuais em sobreposição a interesses coletivos (e nacionais). Paralelamente, a CBF se beneficia de um modelo de negócios único, mesmo não sendo formalmente uma empresa: (i) dispõe de milhões de consumidores-torcedores cativos, em relação aos quais ela não precisa gastar um real para conquistá-los ou mantê-los; (ii) a representação de um país e de seu povo, sem pagar um centavo de royalty; (iii) a utilização das cores da bandeira e da própria bandeira, bem como do hino nacional, sem pagar um centavo de royalty; (iv) a utilização esporádica, porém recorrente, das relações e dos ativos dos clubes (jogadores), sem a devida contrapartida e sem custos de formação, trabalhistas, previdenciários, estruturais e de outras naturezas; e (v) o gozo de incentivos e benefícios estatais, como imunidades ou isenções tributárias. Esse estado de coisas deveria levar a um necessário debate público a respeito da natureza e, em especial, das funções esportiva, social e econômica de entidades como a CBF, e da necessária fixação de políticas públicas que, sem intervir no funcionamento da atividade - e das próprias entidades -, ditem os rumos de um sistema nacional. Que não se afirme que essa proposta poderia afrontar o sistema internacional do esporte e ameaçar a coexistência das estruturas estatal, de um lado, e futebolística, de outro, comandada pela Fifa, e ocasionar reações e sanções. Se todo país é soberano para, por exemplo, instituir regime tributário favorecido incidente sobre a atividade, caso do Brasil, também o será para eliminar favorecimentos ou incentivar movimentos estruturantes, se e quando a função social (e esportiva) não se realizar. Assim, como se diz coloquialmente, do atual limão, o Estado brasileiro tem a oportunidade de produzir a mais doce limonada: o incentivo para formação da liga de clubes, sem interferir no funcionamento da CBF ou na regulação proveniente da Fifa. Aliás, a relevância e a urgência são evidentes, pois o sistema já atestou a sua incapacidade de prover uma solução que atenda ao interesse dos clubes - e, consequentemente, do povo-torcedor, e da nação. A liga de clubes deveria, no plano interno, deixar de ser uma abstração normativa, prevista em lei e no estatuto da CBF, e se constituir em instrumento de desenvolvimento esportivo e de afirmação do futebol como uma das atividades mais pujantes, inclusivas e representativas da cultura nacional; e, no plano externo, se posicionar e se afirmar como poderosa forma de soft power, com acesso (irrestrito) a televisões, smartphones e computadores espalhados pelo globo - como os norte-americanos fazem com o cinema, os sul-coreanos com o K-pop e os ingleses com a Premier League. Não resta dúvida, diante desse cenário, que o desenvolvimento do futebol brasileiro e a constituição de uma liga de clubes interessa ao Brasil - muito além de governos ou partidos - e que o Estado tem legitimidade e competência para promover as políticas necessárias para atingir objetivos rápidos e grandiosos. Dois movimentos (dentre outros que já foram abordados neste espaço e serão resgatados oportunamente) poderiam (ou deveriam) ser implementados: (i)              a criação de um regime especial, inclusive tributário, para incentivar a formação da liga de clubes, sob a forma de sociedade anônima do futebol, que se submeterá a normas incontornáveis de governança, controle, fiscalização, publicidade e responsabilidade; e (ii)           a criação de um órgão, ligado à Presidência da República, com a missão de instituir um plano nacional de desenvolvimento do futebol, para criação do maior mercado do planeta, com preocupações esportivas, educacionais, sociais e econômicas, que contaria com um Conselho composto por agentes públicos como o ministro dos Esportes, o ministro da Fazenda e o presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, e representantes do setor futebolístico e da sociedade, como o presidente da CBF, o presidente da Liga, o presidente da B3, dentre outros.  Com esses movimentos o país poderá recuperar, quem sabe em 2 anos, o protagonismo perdido nos últimos 20 anos, e projetar mundialmente um modelo que se sobreponha às mazelas que sabotam o futebol e o País.  ___________ 1 Código Civil: Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos. 2 Em tese, as federações estaduais deveriam ser associadas; mas, em análise de alguns balanços disponíveis, não se localizou título patrimonial da CBF em conta do ativo.  3 Estatuto Social da Confederação Brasileira de Futebol (2017): "Art. 33 - A Assembleia Geral Administrativa, poder de jurisdição máxima da CBF, compor-se-á das Federações filiadas no pleno gozo de seus direitos estatutários e que atendam às exigências da legislação esportiva. "Art. 34 - A Assembleia Geral, de natureza administrativa, na qual cada Federação filiada terá direito a um voto, reunir-se-á ordinária e extraordinariamente, observadas as normas deste Estatuto. (...). "Art. 40: A Assembleia Geral, de natureza eleitoral, reunir-se-á quadrienalmente, nos 12 (doze) meses anteriores ao término do mandato em exercício, para eleger, em votação secreta, o Presidente e os 8 (oito) Vice-Presidentes da CBF, bem como os membros do Conselho Fiscal, que serão empossados quando da realização da Assembleia Geral Ordinária que vier a se realizar subsequentemente ao término do mandato em curso, sendo o Colégio Eleitoral composto exclusivamente pelas: I - Federações filiadas, que englobam o conjunto de clubes profissionais e não profissionais, e ligas municipais de futebol integrantes de cada unidade federativa, tendo cada uma delas um voto com peso 3 (três); II - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 2 (dois); III - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 1 (um)".
quarta-feira, 14 de maio de 2025

Das encruzilhadas do futebol brasileiro

Quando tudo indicava já adormecida e consolidada a sucessão na CBF com a eleição de Ednaldo Rodrigues, uma reviravolta trouxe novo e indigesto capítulo para a história, com o questionamento judicial do termo de acordo no qual aparentemente um dos seus signatários não dispunha do pleno gozo das faculdades mentais para firmá-lo. O Tribunal Superior, que já homologara tal acordo, foi instado por alegações de falsidade documental e encontrou uma saída olímpica através da decisão do ministro relator nos limites da tecnicidade e daquilo que processualmente falando lhe era razoável fazer, assim devolvendo a matéria para investigação pelo Tribunal de origem no Rio de Janeiro. Não é novidade que a entidade máxima do futebol brasileiro possua um vasto histórico de controvérsias, desmandos e desacertos. Um simples olhar para o último meio século nos evidencia, a partir da administração de João Havelange, a transformação de uma organização quase amadora em uma sólida sociedade empresarial, alavancada a partir dos anos 1970 pela forte entrada de um novo capital no futebol através dos contratos de televisão, dos fornecedores de material esportivo e da publicidade em geral, e ainda da ampliação da influência política na sua administração e trajetória. Assim vimos a época do "onde a arena vai mal, mais um time no nacional", o arrego no ano de 1987 que resultou na Copa União, a CPI da Nike, a derrocada de Ricardo Teixeira, o envolvimento de ex-presidentes no Fifagate, assédio sexual, o flerte inadequado com a Corte Suprema e a atual sensação de vacância pelas várias trocas havidas no comando. E, como se não bastasse, agora com o ineditismo da possível fraude de documentos; o que veremos nos próximos tempos é certamente uma série de novas "idas e vindas" de despachos, liminares e recursos, mantendo a direção da CBF "sub judice" e o cenário de acefalia no comando e nas diretrizes da entidade, tendo no horizonte a Copa de 2026. Para além da participação na próxima Copa do Mundo com a comprometida preparação em curso (mesmo a seleção tendo agora um novo treinador), o futebol brasileiro e a sua entidade máxima notadamente não dispõem de qualquer plano fora o fisiologismo, nem tampouco tem dimensão da responsabilidade social que tem com a nação, quem lhe outorga os símbolos e as propriedades, a seleção brasileira por exemplo: em verdade, urge um basta no continuísmo e uma guinada para reverter o quadro de letargia e clientelismo que insiste em nortear os caminhos do nosso futebol, algo que obviamente não é fácil, porém se faz imperioso. A cooptação da totalidade das federações e dos clubes das séries A e B alcançou o ápice na eleição por aclamação ocorrida em março passado, desde quando os clubes de modo dissimulado manifestam concordância com a gestão ou, quando cobrados, sustentam que mesmo somados não reúnem quórum para pensar em mudança. Pura conveniência e vassalagem, um tipo de parceria na conduta lesa pátria por parte de quem deveria exigir as modificações na direção organizacional, fundamentalmente para permitir aos clubes que regulem e liderem por si só uma parcela do seu próprio negócio. Nos últimos 5 anos, a estrutura da indústria do futebol tem se revigorado com os novos modelos e ferramentas que alteraram o "modo e o meio", impactando diretamente as formas de gestão, em especial a dos clubes isoladamente (atual divisão dos direitos de TV, possibilidade de transformação em SAF, investimentos e regulamentação das Bets, novos patamares de patrocínio e premiação, entre outras novidades e ativações). O mercado foi turbinado pelos investimentos das SAF e pelos aportes pesados das Bets, além do incremento dos direitos transmissivos após a regulamentação dos mandantes, e assim a maioria dos clubes tem experimentado um hiato episódico com uma grande afluência de recursos (o que não exclui a elevação de dívidas no período e as deficiências nos controles internos e na governança, inclusive entre os 2 ou 3 dos mais badalados). Em que pese o auspicioso e positivo recorte econômico financeiro, algo a ser bastante comemorado, existe também seu lado perverso, pois a farta disponibilidade de recursos conduz invariavelmente à miopia, exatamente o que ocorre no âmbito das duas ligas. E dentro delas, muito longe da unanimidade que foi alcançada para eleger o mandatário da entidade máxima do nosso futebol, nem mesmo se logrou superar definitivamente a discussão de "mais valia" promovida entre seus membros de modo contraproducente há 5 anos, frustrando o objetivo de desenvolver e aperfeiçoar em todos os seus aspectos o que seria o pretendido novo mercado, cuja formação passa por embates, rupturas e a permanente interlocução com a direção da CBF, seja ela com quem for (ou vier a ser). Há muito o que fazer para formatar um modelo viável e próspero, sendo imprescindível o alinhamento dos clubes e da CBF para trabalharem no enfrentamento de temas como a organização de alguns campeonatos por ligas, um modelo de fair play financeiro, a questão dos gramados, a obsolescência do nosso VAR, a violência, o calendário, a perda da atratividade, os efeitos mercadológicos das transições geracionais, licenciamentos conjuntos, os games e E-Sports, entre outros assuntos de estratégia e governança. Sem contar principalmente a necessária revisão do produto para melhorar a experiência do consumo interno e para fins de exportação, afinal, não dá mais para tolerar o tanto que tem de reclamação em campo a cada partida, a constante perda do tempo de jogo e a vergonha das simulações, como tomar pontapé na canela e rolar com a mão no rosto. É preciso que seja alterado o estado atual das coisas, a fim de subtrair o viés político na direção do futebol brasileiro possibilitando oportunidade de ressignificação da entidade máxima e do seu objeto, assim reforçando a atribuição da competência institucional das seleções brasileiras, registros e filiações, junto da permissão de organização para a Liga e reserva da organização de algumas competições com reciprocidade quanto à inclusão dos clubes que disputarem suas próprias ligas (Clube Série A/B na Copa do Brasil, p. ex.). A hora é de evoluir, de refletir e planejar, não há mais espaço para seguirmos apenas nos valendo daquela bengala de sermos o único pentacampeão do mundo, de sermos detentores do futebol arte ou de acreditar de forma simplista que num piscar de olhos seremos "Top 3" das ligas do mundo: o momento de agir chegou e todos os atores têm responsabilidade pela mudança, sob pena de continuarmos sendo a "eterna promessa." 
O show do milhão é um programa de perguntas e respostas protagonizado, em sua origem, pelo apresentador Silvio Santos, e veiculado na emissora que ele criou e controlou por décadas: o SBT. O participante que respondesse corretamente às perguntas que eram propostas poderia ganhar a cifra título do programa. Apesar da distribuição esporádica de dinheiro, o show explorava a dificuldade alheia e exalava crueldade; características, aliás, de outras atrações que compuseram as grades dominicais da televisão brasileira, como o "topa tudo por dinheiro". De todo modo, parecia à população que ali se convertia cidadãos comuns em milionários. "A crônica de uma morte anunciada" é uma das obras de um dos maiores escritores da história, Gabriel García Márquez, premiado com o Nobel de Literatura em 1982, ano em que, por coincidência, o mais encantador time de futebol se formou, perdeu e decaiu: a seleção brasileira, de Telê Santana. Narra-se, na obra, um evento de desfecho inevitável: a morte de determinado personagem, cuja sentença já fora anunciada por dois outros personagens, e se tornara de conhecimento dos moradores do povoado, que não a impediram ou preveniram a vítima. A atual situação do futebol no Brasil pode ser explicada por diversos prismas, ângulos, perspectivas ou quaisquer outros parâmetros, desde que se tenha alguma, e não necessariamente muita, criatividade. E, assim, ela também pode ser compreendida pela câmera do show do milhão ou pela pluma mágico-realista do escritor colombiano. Mais, até: pela fusão de conceitos ou de mundos tão distantes, ética, moral e ideologicamente, como os de Silvio Santos e de Gabriel García Márquez. O ponto de partida é a safra de demonstrações financeiras dos exercícios de 2024 de alguns dos principais times brasileiros. E aí se revela o show de dívidas bilionárias (ou que encostam no bilhão). Alguns exemplos se destacam: Corinthians1, Cruzeiro2, São Paulo3, Vasco4 e Santos5, dentre outros. Desde que as porteiras se abriram, com casos de clubes tradicionais que até hoje pagam o preço de erros que levaram a endividamentos extremos, outros clubes, conduzidos por dirigentes eleitos em ambientes políticos (sem freios internos, a despeito de normas estatutárias), adotaram o mesmo caminho, e passaram a colecionar problemas que demandarão muitos anos (eventualmente mais de década) para solucionamento. Gostaram, enfim, do show do endividamento bilionário.   Ao mesmo tempo, a sociedade, como um todo, parece inebriada com a situação e aceita, como algo normal, a acumulação de dívidas e contingências, por entidades sem fins econômicos - ou que nelas tiveram origem -, sem donos e sem entes responsabilizáveis. Daí a inevitabilidade da socialização do problema. Sim, pois passivos de tais magnitudes costumam ser pagos com recursos de terceiros, por via (i) de aportes de capital, oriundos de credores ou de sócios (investidores), (ii) de financiamentos para equalização da crise, ou (iii) de redução forçada e parcelamento de dívidas, à conta de credores, em ambientes de negociações coletivas, como a recuperação judicial. Ao contrário do que se narrou na obra de Gabriel García Márquez, o cenário não anuncia, por enquanto, uma ou algumas mortes, apesar de que, na história, certos times que tiveram relevância, desapareceram ou se tornaram zumbis associativos. O cenário indica, porém, uma perigosa aceitação ou normalização de situações extremas, que abalam a capacidade operacional, organizacional e reputacional de instituições históricas, além da relação entre elas e seus torcedores.   Esse estado de coisas reforça a tese que vem sendo sugerida neste espaço, consistente na necessidade de revisão do modelo de futebol, que passa pela concepção de políticas voltadas à formação (desde a infância até o fim da profissionalização), gestão, organização, investimento, tributação, afirmação e divulgação de um produto universal. Não se trata mais de movimento prevencionista, pois a crise, aparentemente sistêmica, já se instalou; mas de um trabalho, inicialmente, de contenção e correção, a fim de evitar uma catástrofe, e, na sequência, de redirecionamento ou de direcionamento (pela ausência histórica de uma política de Estado) que viabilize a construção de ambiente saudável, sustentável, eficiente e contributivo. O Estado foi leniente, ao longo de décadas, com o sistema, e o sistema, que deveria se autorregular e se resolver, sem a intervenção (legislativa) do Estado, o usou em benefício de poucos - e em detrimento de muitos. É preciso dar um basta, antes que, mais uma vez, a sociedade pague a conta. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3Disponível aqui. 4Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
quarta-feira, 30 de abril de 2025

Tite e o direito de não trabalhar

Tite foi elogiado pela coragem de reconhecer que não tinha condições psicológicas para aceitar um desafio ao mesmo tempo grandioso e complexo, proposto pelo time que o projetou ao panteão dos treinadores e à seleção brasileira. Ele podia ter apresentado outra justificativa, mas preferiu revelar sua intimidade, ou melhor, sua falibilidade - característica, aliás, inerente a ser humano. Como também caracteriza a raça humana a capacidade de superação, sempre enaltecida para glorificação de personagens. Acontece com frequência em transmissões de grandes eventos, como os jogos olímpicos, para enfatizar, por exemplo, as dificuldades de esportistas humildes que atingem o pódio. No caso de Tite, a superação será de outra ordem, pois o obstáculo, desta vez, não é material. Mas o final do roteiro já se pode, com algum nível de certeza, antecipar: o retorno em alguns meses à direção de time de primeira linha, mais um título e a reverência. Um (quase) conto de fadas, ou melhor, de futebol. Mesmo que, hipoteticamente, o final não seja tão feliz, e a sua questão pessoal se aprofunde e o afaste por mais tempo dos gramados - algo que, imagino, ninguém deseja; ao contrário -, ainda assim ele terá, por seus méritos, todos os meios para encontrar um desfecho adequado ao seu desafio. Poucos brasileiros têm direito ao que ele tem: (direito) de, em algum momento da carreira profissional, optar por não trabalhar, provisória ou definitivamente. Mais do que isso: a maioria enfrenta algum tipo de obstáculo ou de drama, digno de ser retratado no Fantástico, para sustentar casa, família e eventualmente amigos. No âmbito do futebol acontece o mesmo, desde a infância até o final do profissionalismo. Em quase todos os casos, não há opção, além de seguir. Importante: não se pretende, aqui, promover uma crítica a Tite; ele é privilegiado pelo seu próprio suor e pode (e deve) aproveitar sua situação, em seu interesse. A provocação tem outro propósito: a fragilidade do sistema esportivo, construído sobre a irrealidade da superação permanente. Semana passada ouvi do presidente de um clube brasileiro, muito bem-organizado - cujo nome se mantém preservado porque a conversa ocorreu em ambiente privado -, que o sistema em geral esquece que jogadores são pessoas como quaisquer outras, formadas por histórias próprias, que carregam seus problemas, seus fantasmas, seus desejos e suas obstinações. Nada mais óbvio e, ao mesmo tempo, mais ignorado.   Na mesma oportunidade ele narrou alguns episódios de saúde, inclusive de natureza psicológica, que afetam seus atletas, parentes de atletas e, até, animais de estimação, que repercutem em atuações e, com frequência, no ambiente clubístico; situações que, perante torcedores, são invisíveis pois apenas importam o resultado e as imagens idealizadas. Aí surge, então, um dilema: como internalizar problemas pessoais em atividades que, por definição, são competitivas e absorvem a teoria do mais forte? Há casos, muitos, de apostas na recuperação física ou psicológica de jogador. Alisson, do São Paulo, atualmente titular absoluto, relatou, após a conquista do título da Copa do Brasil, que vivera um drama pessoal e que chegara a pensar em parar de jogar (e se suicidar). Calleri, jogador do mesmo time, também externou, em certos momentos, tristeza ou depressão, por eventos alheios ao campo. Dezenas ou centenas de narrativas parecidas poderiam ser listadas, algumas já conhecidas, outras a se revelar. Situação como a de Tite, com a qual a sociedade passou a conviver e aceitar, em diversas profissões, também acontece aos montes no futebol, mas o protagonista cai no esquecimento e é devolvido para o ambiente de onde veio, geralmente sem formação e preparo para se recuperar e recomeçar a vida profissional, esportiva ou em outra função. E assim ele se perde, com frequência, em vícios ou na tristeza, aprofundada pelo esquecimento.  A imagem é triste. Dramática. Desumana, talvez. Menos do que uma certa reverência à atitude de Tite, que não tem nada de heroica, a sua recusa ao trabalho deveria servir, aí sim, para uma profunda reflexão público-privada a respeito da formação e educação de atletas e da criação de políticas voltadas à inserção pré e pós-carreira.
Clubes de futebol foram beneficiados por um modelo legislativo arquitetado para evitar a intromissão do Estado autoritário e manipulador na organização do esporte. O inciso I do art. 2171 da Constituição Federal criou, assim, um muro protetivo, que pretendia, após décadas de ditadura, atribuir à sociedade civil a prerrogativa organizacional e funcional da atividade esportiva. Havia, naquele momento, a esperança, ou melhor, a convicção de que pessoas (de bem) saberiam reconduzir o país, em todos os planos, a partir de princípios que pareciam, em si, suficientes para materialização de propósitos discursivamente eloquentes. O (compreensível) equívoco em relação ao modelo, motivado pelo momento político - e pela convicção nas intenções -, resultou no isolamento, dentro de associações esportivas, de castas que não tinham - e na maioria das vezes ainda não têm - propósitos ou atributos para desempenho de funções exercidas privadamente, mas que denotam incontornável interesse público. Talvez tenha faltado, aos idealizadores do modelo, naquele momento de esperança, o realismo lindamente expressado pelo poeta moçambicano Jorge Rebelo, sobre a natureza das gentes (ou das revoluções): "não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós". Pois, como ele escreve, ao assumir que "dos que vieram e conosco se aliaram muitos traziam sombras no olhar, motivos ocultos, intenções estranhas", deveria estar evidente que o propósito "para alguns outros era uma bolsa"; uma bolsa vazia, que esperavam enchê-la. O mencionado inciso I do art. 217 da CF, baluarte do associativismo supostamente livre, gerou, ao contrário do propósito originário, um sistema de confinamento e autoproteção, que se expandiu entre as diversas estratificações clubísticas, titulares ou não do poder de mando (e de controle), e exacerbou a gana patrimonialista, raiz da crise sistêmica do futebol. Eis o cenário: associados de clubes bajulam por privilégios; dirigentes digladiam pelo poder (e pelas regalias inerentes às posições) e se afirmam por intermédio da concessão de privilégios; e a torcida vive em estado de ciclotimia, oscilante entre a euforia (propagandística ou de resultado) e a resignação (decorrente do discurso dissimuladamente responsável, o qual, na maioria das vezes, encobre a incerteza ou a impossibilidade de títulos). A esse cenário se soma a incompreensão (e a incompetência) estatal, que, dentro de seus limites constitucionais, movimenta-se oportunisticamente e, no mais, lava as mãos, como se o fracasso esportivo nacional não lhe pertencesse. O pertencimento, porém, é inafastável; tal estado de coisas decorre justamente da leniência generalizada com a irresponsabilidade, inclusive fiscal. Exemplos não faltam. Dois dos três maiores times do Estado de São Paulo, Corinthians e São Paulo, ilustram as preocupações. O primeiro ostenta em torno de 30 milhões de torcedores2 e, o segundo, 20 milhões. A soma resulta na impressionante cifra de 50 milhões de torcedores, maior do que a população de todos os países europeus, com apenas seis exceções: Rússia, Turquia, Alemanha, França, Inglaterra e Itália. E como podem esses times, dotados de torcedores-consumidores perpétuos, e beneficiários de um sistema tributário paternalista, acumularem dívidas da ordem de R$ 3,5 bilhões3-4? Pior: dívidas dificilmente solucionáveis sem a realização de transações tributárias (portanto, à conta do contribuinte) e de movimentos bruscos, como o regime centralizado de execuções ou a recuperação judicial, que implicarão, necessariamente, algum tipo de socialização do problema com credores de todas as naturezas. Mais: como podem as mazelas se multiplicar ao longo de anos, passando de grupo de interesse a grupo de interesse, e se intensificar a despeito da configuração interna de poder? A situação não é privilégio (ou desvantagem) dos times paulistas; a crise se espalha por todas as regiões e dificulta (ou inviabiliza) a formação de uma "indústria" que deveria contribuir, inclusive orçamentariamente, para o desenvolvimento interno e para afirmação externa da Nação. Certamente se usará, em contestação, o exemplo do Palmeiras, o único grande time do Estado em boas condições. Mas a excepcionalidade de sua situação serve para confirmar a regra, pois decorre de uma sequência de fatores não replicáveis: duplo mecenato, inaugurado com Paulo Nobre e seguido por Leila Pereira/Crefisa, e estabilização política provisória (decorrente da limitação estatutária à reeleição), viabilizada pelo exercício do poder econômico - além, evidentemente, da coleção de acertos administrativos da atual presidente. Enfim, a propaganda, no atual estágio de crise do futebol, que passou a se inserir em uma rede global de negócios e interesses, não solucionará problemas materiais, econômicos e patrimoniais, mesmo que, eventualmente, se alcance, geralmente com o agravamento da crise, algum êxito esportivo. O modelo se esgotou. É preciso repensar, de forma sistêmica, o futebol no Brasil. E para o Brasil.    __________ 1 "(...) Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; (...)" 2 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025. 3 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025. 4 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025.
O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu levantamento com o propósito de mapear as condições mais relevantes de operações societárias que envolveram determinados clubes e suas SAF's. Nesse primeiro ensaio, embrião de futura pesquisa que deverá abraçar todas as operações ocorridas em times das séries A a D do campeonato brasileiro de futebol, foram selecionados sete casos: (i) Associação Portuguesa de Desportos; (ii) Botafogo de Futebol e Regatas; (iii) Club de Regatas Vasco da Gama; (iv) Clube Atlético Mineiro; (v) Coritiba Foot Ball Club; (vi) Cruzeiro Esporte Clube; e (vii) Esporte Clube Bahia. Escolheram-se, inicialmente, três aspectos principais para catalogação e consolidação: (i) tipo de operação (algo que já constara da 2ª Pesquisa do IBESAF, cujo resultado foi publicado neste espaço1); (ii) condições gerais da operação; e (iii) tratamento/destinação de equipamentos esportivos, como estádios e centros de treinamento.  Os pesquisadores João Vítor Codelo e Iago Espírito Santo acessaram e utilizaram apenas informações públicas, disponíveis a qualquer pessoa, em sítios e mídias dos próprios clubes envolvidos e na imprensa em geral. Não consultaram, portanto, qualquer documento celebrado pelas partes envolvidas nas operações e, por enquanto, também não formularam perguntas para esclarecimentos dos clubes ou investidores. A técnica empregada não compromete o resultado, ao contrário, pois os pesquisadores se depararam com um conjunto informacional relevante e coerente, entre as diversas fontes públicas acessadas. O resultado obtido, ainda que a partir de uma base relativamente pequena, porém, envolvendo clubes expressivos e as sete maiores negociações realizadas com base na Lei da SAF, já indica a recorrência de algumas práticas jurídicas e negociais, que podem servir como referências, positivas ou negativas, conforme o caso, e adaptáveis, ou não, a situações futuras. Destaca-se que a transferência de ativos do clube para a SAF se operou, em todos os casos, via drop-down. A coincidência, por razões jurídicas já explicadas neste espaço em textos anteriores, para por aí. Em relação aos outros dois quesitos, há, sim, recorrência, mas o resultado, plotado abaixo, indica que as modelagens atendem às características do clube, ao perfil do investidor e à combinação, ou não, do negócio esportivo com o imobiliário - negócio esse que, em regra, costuma extrapolar o interesse apenas futebolístico e tratar o equipamento esportivo como uma unidade específica de negócios a desenvolver. Além disso, a inclusão do centro de treinamento, local que, ao contrário do estádio ou arena, costuma ter finalidade única, também varia em função das perspectivas econômicas do negócio. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 14 abr. 2025.
quarta-feira, 9 de abril de 2025

Futebol, mercado da SAF e interesse coletivo

"Private interests must be made subservient to the general interests of the community". A frase foi utilizada pelo juiz da Suprema Corte norte-americana, Samuel Miller, em emblemático caso julgado em 1873 (Slaughter-House Cases), que envolvia, de um lado, um grupo de açougueiros de New Orleans e, de outro, o Estado da Louisiana, que havia promulgado uma lei que impunha a centralização de abate em apenas um abatedouro.  Tentava-se, com ela, evitar que animais fossem esquartejados onde bem cada esquartejador quisesse e que as sobras de mais de 300.000 animais fossem despejadas, anualmente, no Rio Mississipi, principal fonte de água potável (drinking water) da cidade.  O grupo de inconformados pretendia afastar a legalidade da lei com base na 14ª emenda à Constituição, idealizada para proteger e estender direitos constitucionais à comunidade afro-americana. A extensão, porém, de direitos atribuídos originalmente a cidadãos às companhias não consistia em novidade, como explica em detalhes Adam Winkler, no excelente livro "[w]e the corporations - how american businesses won their civil rights" (Liveright Publishing Corporation).   A tese apenas se moldava ao conteúdo da emenda, pois, desde os primórdios da colonização e, sobretudo, após a independência, a colônia e o país foram marcados pela dominação e influência de companhias, tais como a Virginia Company of London, a Massachusetts Bay Company e a East India Company, que souberam defender posições e pleitear direitos. O embate envolvendo a extensão de direitos individuais às corporações pautou a Suprema Corte e oscilou em função das correntes políticas (que opunham dois "founding fathers", Alexander Hamilton e Thomas Jefferson) que ascendiam ao poder e, consequentemente, influenciavam a composição da corte.  O que se pretendia, naquele momento, era, mais uma vez, afastar a competência dos tribunais estaduais, geralmente compactuantes com as políticas locais, para decidir o caso - como já se conseguira em outras oportunidades, a exemplo do paradigmático litígio conhecido como Bank of the United States v. Deveaux, de 1809 -, apesar de, como escreve Adam Winkler, a "[e]menda não ter sido concebida para resolver o descontentamento de açougueiros brancos com atos de regulação econômica".  A ideia de preponderância do interesse comunitário sobre o particular, sem que se promova o afastamento de direitos individuais e da livre iniciativa, e ainda se mantenha o respeito a contratos - e, em especial, sem que se estatizem os meios de produção ou, para o que interessa neste texto, os meios de prática futebolística - ressurgiu, recentemente e em outro contexto, no berço do liberalismo e do mercantilismo contemporâneo, a Inglaterra.  Apesar da abertura do mercado do futebol ao capital privado, local e internacional, a preocupação com o interesse coletivo vem pautando o debate, por conta da exposição a que se submeteram os times locais. No âmbito da Premier League, entidade privada controlada pelos próprios times, foi instituído o OADT - Owners' and Directors' Test - "que tem como propósito assegurar que a pessoa que detenha participação em um time (ou o administre), acima de determinado percentual, ateste o preenchimento de padrões, sem os quais não estará habilitado à consumação de uma aquisição (ou à posição de administrador)" 1.  Mas a preocupação pulou o muro da autorregulação e alcançou o Estado inglês, que reconheceu a relevância do futebol na sociedade; mais do que isso: reconheceu a sua essencialidade em certas comunidades, que giram ao redor de times e dos jogos que acontecem aos finais de semana. O próprio Rei Charles já expressou a preocupação real e indicou que o parlamento iria legislar a respeito do futuro dos clubes de futebol no interesse das comunidades e dos torcedores.  Paradoxalmente, talvez não exista, no planeta, um país mais identificado com o futebol do que o Brasil, por motivos esportivos e sociais. E talvez não exista, neste país, uma atividade que empreste, com encargos impagáveis, alguma (ou ilusória) esperança a parte da população desfavorecida, que aposta o futuro na profissionalização de crianças e adolescentes no futebol.  E talvez também não exista, no mesmo planeta, uma perspectiva tão alvissareira como a criada pela lei da SAF, que abriu a possibilidade, após mais de um século de dominação cartolarial, de implementação de um modelo receptivo à captação de recursos e à implementação de técnicas avançadas de governo e de controle, em ambiente regulado.  Mas talvez também não exista, dentre os países do planeta, em especial os países relevantes no planeta do futebol, um que, como o Brasil, ao mesmo tempo não perceba a importância econômica que o esporte passou a ter e se esforce tanto para, senão destruir, inibir o seu desenvolvimento.  Em mais um paradoxo, o Brasil está, no entanto, à frente da Inglaterra, em matéria legislativa. A lei da SAF instituiu uma série de instrumentos que visam à segurança sistêmica - apesar da intranquilidade, local e internacional, provocada por decisões judiciais oportunísticas, que tendem (ou deveriam) ser reformadas em tribunais superiores. Mas ainda falta uma inequívoca política de Estado que conduza e conforte o mercado em formação e que contribua para a inocorrência, como se viu séculos atrás em Nova Orleans, de eventos carregados de externalidades negativas, prejudiciais à coletividade.  Nenhum governo brasileiro, independentemente de sua ideologia ou corrente política, percebeu, até o presente ano de 2025, o tamanho que o mercado do futebol pode alcançar e como ele serviria aos interesses nacionais, sob a forma de softpower e de gerador (e distribuidor) de riquezas.  A conivência com o modelo de apropriação patrimonialista, em todos os planos, inclusive de acesso e transmissão do futebol (que só agora começa a ser desafiado), não encontra respaldo na sociedade e no sistema, em especial na Constituição. Porém, enquanto ela não for substituída pela ação, sobretudo voltada ao interesse comum - respeitando-se os interesses, os movimentos e os negócios individuais legítimos -, o futebol brasileiro permanecerá a serviços de poucos agentes que lucram com a contaminação e degradação do sistema.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 7/4/25.
quarta-feira, 2 de abril de 2025

Quem pode ser acionista de SAF?

Esse foi um tema que surgiu durante todo o processo de concepção, proposição, debate, crítica, negociação e aprovação da Lei da SAF: deveria ser instituída uma lista de pessoas autorizadas a investir em SAF? Alternativa e inversamente, a lista poderia indicar apenas as pessoas que não se qualificariam como potenciais investidoras? Sempre houve - e ainda há - uma legítima preocupação com a preservação de um dos maiores patrimônios do país, o futebol, apesar do esforço hercúleo que se empreende, há décadas, para destruí-lo. Aliás, não fossem alguns movimentos isolados, como a Lei da SAF e a Lei do Mandante, talvez a destruição já tivesse abalado o sistema. Mas, é justamente no atual sistema que reside o problema: o futebol, dentro de cada clube (ou seja, de cada associação sem fins econômicos), passa de mão em mão (ou de grupo em grupo), dentro de uma lógica patrimonialista e irresponsável. O dono da vez, eleito pela assembleia geral de associados (a qual, por sua vez, não representa a torcida), isolada ou conjuntamente com pequeno grupo de seguidores, concentra poder, geralmente inabalável, para, como já indicado acima, agir soberanamente sem ter investido um centavo de real no clube (apesar de investir em campanha de eleição). E, como a história demonstra, o dono de fato, se tiver habilidade política (ou força para se impor por via do temor reverencial ou do medo), conduz os órgãos internos, do conselho deliberativo à assembleia geral, passando pelo conselho fiscal, no sentido de satisfazer seus planos e ego. Se o dirigente for qualificado, o time pode ir bem; se for ruim, costuma deixar uma situação periclitante. Em qualquer caso, a cada eleição, promove-se uma espécie de loteria gerencial, cujo resultado, para o time e para torcida, se enquadra no campo da álea.    Pior: os donos de fato ainda constroem a falsa narrativa de que seus times são diferentes, especiais mesmo, e que jamais terão proprietários, quando, na verdade, eles o são (na posição de representantes de uma estrutura associativa dispersa e incapaz de controlar, fiscalizar e sancionar condutadas irregulares, e que concede a eles a prerrogativa de disporem dos recursos alheios como querem). Por isso que qualquer torcedor, que não seja associado e membro da diretoria, não pode acessar o centro de treinamento do seu time do coração. Porque ele é apenas um torcedor, manipulado pelo discurso fácil que se reproduz, como dogma, desde sempre. Não se pretende, aqui, propor que o torcedor acesse livremente os equipamentos utilizados pelos jogadores; seria o caos. Apenas se apresenta a realidade para conectá-la com o tema deste artigo: a qualificação para ser acionista de SAF. A Lei da SAF, inclusive nesse aspecto, oferece mais segurança ao sistema, ao impor ao acionista (e aos administradores da SAF) uma série de obrigações que não são, nem de longe, aplicadas ao modelo clubístico. O contexto apresentado acima contribuiu para que, no âmbito da construção da Lei da SAF, se evitasse o caminho do populismo e a criação de barreiras abstratas para situações concretas, barreiras essas que dificilmente se aplicariam quando devessem se aplicar, e que serviriam para criar mais e novos problemas e inseguranças. Lembre-se, ademais, que nenhuma operação de SAF acontecerá se os associados do respectivo clube não autorizarem, em assembleia geral, a proposta formulada pela diretoria e, necessariamente, recomendada pelos seus órgãos internos, como o conselho deliberativo. Se a diretoria negocia, assina e submete aos seus órgãos internos e a assembleia aprova, mesmo num ambiente de poder cartolarial (escolhido e mantido pelos próprios associados), deveria a lei, ainda assim, impor barreiras regulatórias ou legislativas, e definir que, exemplificando, o russo pode, mas o ucraniano não (ou vice-versa); que o fundo árabe não pode, mas o norte-americano, sim (ou vice-versa); que uma companhia aberta brasileira pode, mas uma sediada no Caribe, não; e assim por diante? Ainda: a lei deveria levar em conta a qualidade e a (boa ou má) intenção dos dirigentes responsáveis pela negociação e formação de uma SAF, assumindo a eventual incapacidade de decidir de modo adequado e no interesse do time? O modelo brasileiro, plasmado na Lei da SAF, afasta, por um lado, o intervencionismo estatal em relação aos atributos de eventual investidor, mas, de outro, impõe instrumentos de verificação, controle e sanção mais efetivos dos que aqueles praticados às companhias em geral, envolvendo, inclusive, a afetação de direitos políticos e econômicos. Daí a possibilidade, em tese, de qualquer pessoa, física ou jurídica, e dentre as jurídicas, qualquer sociedade, personificada ou não, aberta ou fechada, com controle concentrado ou difuso, nacional ou estrangeira, e ainda qualquer ente despersonalizado, como fundo de investimento, deterem participação em SAF, desde que, em qualquer caso, como já indicado, observem os requisitos instituídos pela Lei da SAF e demais leis que incidam no caso concreto (que incluem, dentre outros, técnicas avançadas de governança, não concentração e observância de normas anticorrupção).
O InfoMoney divulgou interessante pesquisa sobre o ambiente da SAF1. Aliás, não apenas o conteúdo é interessante, como também o fato de o tema interessar ao veículo de imprensa, especializado em noticiário econômico. Trata-se de mais um reflexo de que a Lei da SAF, de autoria do Senador da República e ex-Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, "pegou" (como se diria, popularmente, sobre a eficácia de uma lei). Há diversos motivos que explicam o interesse, dentre os quais: a existência de 99 SAF's2, além de outras sabidamente a caminho; e, na ótica do mercado, as perspectivas que as companhias do futebol passaram a oferecer para realização de uma gama de alocações (ou investimentos) em ativos atrelados à atividade futebolística. Opera-se, com efeito, nesse ambiente etéreo chamado mercado, um movimento, não coordenado, cuja amplitude ainda não foi compreendida pelos torcedores e pela imprensa em geral, que deverá modificar de modo substancial as forças e as características do esporte no Brasil. Gestores de fundos, investidores, banqueiros e empresários, dos mais variados perfis, estão empreendendo movimentos táticos e estratégicos para se posicionarem ou se fortalecerem no novo mercado do futebol. Até o maior banco privado do país comunicou a sua entrada. A Lei da SAF oferece um arcabouço único, cuja previsibilidade está em processo de construção, sem paralelo em qualquer outro país, inclusive no que se refere ao sistema comunicacional de seus atos: primeiro porque se aplica à SAF todo o ferramental oferecido a qualquer sociedade anônima pela Lei 6.404/1976 ("Lei das Sociedades por Ações"); segundo porque a Lei da SAF amplia, em relação especificamente a toda e qualquer SAF, a régua de exigências para atuação no ambiente em que clubes (originalmente os proprietários do futebol) e investidores se encontram e relacionam. Tanto as normas da lei geral (ou seja, da Lei das Sociedades por Ações) como as da lei específica (da Lei da SAF) são inafastáveis, formando um conjunto normativo único, que oferece, em relação às primeiras, quase 50 anos de doutrina e jurisprudência, e, quanto às segundas, um esforço de determinação semântica e de pacificação. Daí o resultado apurado pelo InfoMoney, no sentido de que: 60% dos torcedores avaliam positivamente o modelo de SAF; e, dentre os times que atuam como SAF, as aprovações no âmbito de Vasco e Galo são de 63,6% e 60,8%, respectivamente. Por outro lado, as torcidas dos dois clubes mais poderosos dos últimos anos, Flamengo e Palmeiras, são as mais resistentes à alteração de natureza jurídica. A pesquisa vai além e traça interessante mapa, ao, por exemplo, apresentar um recorte por idade e constatar que a faixa entre 18 e 24 anos é mais aderente ao modelo da SAF, seguida, em segundo lugar, pela faixa que compreende 25 e 34 anos.   Porém, apesar de o resultado geral ser positivo, poderia (e deveria) ser melhor, não fossem as falhas no trato do tema, nos níveis estatal e privado. No nível estatal porque ainda não se percebeu a grandeza da Lei da SAF e os resultados sociais e econômicos que ela traz e poderá trazer ao país e à sociedade como um todo. No privado porque, de um lado, clubes olham para ela (apenas) como via de salvação para suas dificuldades financeiras imediatas ou como via necessária para não se apequenarem diante de clubes mais ricos ou de times que mudaram de patamar após a passagem para o modelo de SAF; enquanto os financiadores e investidores também se preocupam (apenas) com os seus financiamentos e respectivos retornos. Não se pretende, aqui, investigar culpas ou erros; ao contrário, o propósito envolve a conscientização da urgência de compreensão, pública e privada, do fenômeno, que já deixou de ser pequeno e, no curto prazo, deverá abraçar senão todos, mas praticamente todos os principais times brasileiros. O processo de orientação, instrução e formação de consciência cabe, assim, a todos os agentes que gravitam ou se relacionam no sistema, inclusive - e especialmente - ao Estado, que introjetou a Lei da SAF no sistema, mas jamais se preocupou em apontar o norte e propor planos e metas nacionais. A falta de orientação e de informação ainda inebria, para o bem ou para o mal, o torcedor incauto, que ora aposta na SAF como uma vara de condão, com poderes mágicos de transformação (algo que, definitivamente, a Lei da SAF jamais ofereceu), e ora reage, passionalmente, como uma ameaça existencial ao time. Acerta a maioria dos torcedores brasileiros ao aprovar a SAF, mas seria importante que individual e coletivamente compreendessem, de maneira sólida, os motivos.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 25 de março de 2025. 2 Disponível aqui. Acesso em 25 de março de 2025.
O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu o mapeamento dos meios adotados para a constituição de sociedades anônimas do futebol ("SAF's") que, na temporada de 2025, fazem parte das séries A, B, C e D do campeonato brasileiro de futebol. Os meios estão previstos nos artigos 2º e 3º da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF"). O art. 2º lista três hipóteses: (i) transformação do clube ou pessoa jurídica original; (ii) cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do patrimônio cindido à SAF; ou (iii) iniciativa originária de pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento. O art. 3º prevê mais um meio, consistente no drop down, que se opera mediante a transferência de patrimônio relacionado ao futebol de clube ou pessoa jurídica original para integralização de capital da SAF. Esses são, portanto, os 4 caminhos identificados na Lei da SAF.  No mapeamento e levantamento das informações, os pesquisadores Riccardo Stefano Malarenko Scarcella e Iago Fernandes Espírito Santo utilizaram as ferramentas de consulta empresarial disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, inclusive aquelas oferecidas pela Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - Redesim, sob a regulamentação e fiscalização do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI, juntamente com informações retiradas de notas oficiais e documentos societários disponibilizados nos sítios eletrônicos dos pesquisados. O universo é composto por 30 sociedades anônimas do futebol disputantes, como indicado acima, das séries A, B, C e D do campeonato brasileiro em 2025, distribuídas entre as seguintes unidades federativas: No processo de identificação do meio adotado, os pesquisadores não se restringiram ao texto formal utilizado no ato de constituição, e foram além, para capturar a verdadeira consistência do meio. Isto porque não é incomum a utilização da expressão cisão (prevista no art. 2º da Lei da SAF) quando, na prática, se realiza um drop down (na forma do art. 3º). Nesse sentido, o resultado indica a conclusão a respeito da materialidade constitutiva de cada SAF. Além disso, como não foi possível acessar as informações de 7 SAF's, o contingente utilizado na compilação compreende 23 casos. Os gráficos abaixo plotam as informações coletadas e produzidas (referentes, portanto, a 23 de 30 SAF's): (i) Em relação aos meios de constituição, 15 SAF's foram constituídas por drop down1, 4 por transformação do tipo societário (ou associativo) e 4 por iniciativa de pessoa natural, pessoa jurídica ou fundo de investimento (portanto, nenhuma pelo caminho da cisão), conforme o seguinte gráfico: (ii) Em relação à natureza do constituinte da SAF (ou seja, se a SAF foi constituída por clube, sociedade empresária ou via originária), o resultado é o seguinte: (iii) Em relação aos meios de constituição dentre os times de mesma divisão, o cenário é o seguinte: A pesquisa do IBESAF apresenta, por fim, a seguinte tabela que indica as informações de cada SAF analisada, seguindo a ordem das divisões (maior para menor) e, dentre elas, ordem alfabética. __________ 1 No caso do A.C. Esportes S.A.F. (Athletic - MG), foi acessado apenas o organograma societário (e não o ato constitutivo), disponibilizado no sítio oficial do clube, e, dele, se presumiu que a constituição se operou via drop down.
quarta-feira, 12 de março de 2025

Não quero ter razão sobre Neymar

Este texto foi mentalmente concebido semanas antes do jogo do último domingo, 9 de março, entre o Santos e o Corinthians, e escrito após o seu desfecho. A ausência de Neymar e o resultado não influíram (ou não deveriam influir) no conteúdo de que se trata abaixo. A motivação dessa concepção decorreu da festa de apresentação do jogador à torcida santista, ocorrida em 31 de janeiro, que provocou toda sorte de reações e provocações. Pessoas ficaram indignadas com as imagens que circularam nas redes sociais nas quais ele celebrava o momento com representantes da direita ou da extrema-direita (que reforçariam suas posições ideológicas); já outras não se conformaram com a participação de ícones de pautas humanistas ou identitárias nas festividades.   Correndo o risco de cair no erro de Tite (mas por motivos diversos), que justificou a convocação de Daniel Alves à Copa de 2024 por uma suposta transcendência em relação ao futebol, os debates sobre Neymar há tempos envolvem muito mais do que futebol. Não se trata de uma transcendência, pois o futebol é maior do que qualquer jogador, por mais expressivo que tenha sido, mas de um posicionamento que gera paixões e ódios, independentemente do que ele faça (ou não faça). Neymar passou a conotar e a denotar muitas coisas, até mesmo políticas e ideológicas.     A posição que ocupa não aconteceu por acaso e não provém apenas de suas qualidades técnicas; tem muito a ver com o personagem que passou a representar, que não deixa de ser um personagem de si próprio, e de atitudes que o confundem, para o bem e para o mal, com um popstar (o que, de fato, ele é). Apesar de suas polêmicas (saída prematura do Barcelona, aparente pouca empatia com Paris, atuação fantasma na Arábia Saudita, ausência no jogo contra o Corinthians etc.), continua a ser e talvez sempre seja um dos maiores fenômenos midiáticos do século. O acúmulo de centenas de milhões de seguidores nas redes sociais confirma a proposição. E aí surgem os principais debates sobre o que ele é e o que poderia ser, em diversos planos, tais como esportivo, político e social. Invariavelmente se transferem a ou se projetam em Neymar as condutas que, sob a perspectiva dos debatedores, eles as realizariam se fossem Neymar: focar e treinar mais, para ganhar o prêmio de melhor do mundo; dedicar-se à seleção e à conquista de uma copa; apoiar pautas progressistas; envolver-se em projetos sociais; dentre outras. Aqui sim se revela um dilema de transcendência, pois o exercício que se faz, ao se colocar no lugar de outra pessoa, não leva em conta as distintas realidades e toda a carga social, emocional e educacional que separam o crítico e o criticado. Mesmo que, eventualmente, provenham das mesmas origens, ainda assim a apropriação da personalidade, para efeitos de especulação de condutas imaginárias, falha pela falta de contato com a realidade criticada. A verdade é que, no início de sua trajetória, sabidamente humilde, ninguém ou quase ninguém estava lá para contribuir para sua formação e ascensão, exceto, com as limitações que tinham, seus próprios parentes; assim como quase ninguém está lá para apoiar milhares (ou milhões) de crianças de comunidades brasileiras, que provavelmente não atingirão seus sonhos de transformação em jogadores e, muito precocemente, se depararão com subempregos ou empregos que não desejaram.   Mais: quando um egresso da base rompe a bolha e se projeta sobre a sociedade, a sociedade reage e passa a cobrar-lhe atitudes que ela não lhe proporcionou; nem ou muito menos o Estado, que se revelou, desde a sua concepção brasileira, incapaz de solucionar o problema da desigualdade originária e da distribuição de educação e de saúde, apesar das montanhas de recursos arrecadados cotidianamente para financiamento de uma burocracia (executiva, legislativa e judiciária) ineficiente e, não raro, ultraprivilegiada. Apesar disso tudo, na minha visão, Neymar poderia ser diferente, em muitas coisas. Não apenas na minha, mas de outras pessoas também. E o que isso importa, na prática? Nada. Inclusive porque, muito provavelmente, para milhares de (outras) pessoas, está tudo em ordem com as suas decisões e posições. Aliás, em um ambiente tão polarizado, ele passou a sintetizar, para um lado ou para outro, os desejos e as aversões dos polos, de modo que, para onde for, encontrará elogios, apoios, resistências e críticas. Neymar, como produto, é um sucesso planetário e lucrativo. Não apenas como produto, mas como jogador também. Ainda não foi campeão do mundo, e daí? Zico e Sócrates também não foram. Azar da copa do mundo, como diria o jornalista Fernando Calazans. Isso não diminui as suas qualidades técnicas, quase divinas, e as perspectivas de negócios atuais e futuros de suas empresas, pois, em algum momento, ele, ou melhor, sua equipe, chefiada por Neymar Pai, adotou um caminho que, empresarialmente, é e deverá continuar a ser muito exitoso. Neymar já poderia ter deixado o campo há muito tempo, mas se mantém ativo. Talvez porque ainda sonhe com a copa do mundo ou porque ainda reste alguma vontade de jogar. Ou simplesmente porque faz parte do projeto de desenvolvimento dos produtos Neymar. Ou, quem sabe, um pouco de cada. Isso tudo (sem fidelidade a um dos elementos) é Neymar. Para alegria e idolatria de muitos e aversão e repúdio de outros; combinação que, ao final, o tira do pedestal e, nas palavras de Mario Vargas Llosa, escritas em relação a Victor Hugo, o humaniza: "hacen mal los biógrafos explorando estas intimidades sórdidas y bajando de su pedestal al dios olímpico? Hacen bien. Así lo humanizan y rebajan a la altura del común de los mortales, esa masa con la que está también amasada da carne del genio. Victor Hugo lo fue (...) una de las más ambiciosas empresas literarias del siglo XIX (...). Pero también fue un vanidoso y un cursi (...)." Os biógrafos não precisarão mostrar as patologias do ser humano Neymar, pois ele não faz questão de escondê-las, no presente, como se vivesse - e de alguma forma vive - em um permanente (e inconsequente) reality show; e, mesmo assim, consegue atrair multidões, incluindo, no limite, ideólogos, que se despem de suas ideologias para ver um dos maiores gênios do século jogar.  
O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu a 1ª atualização do mapeamento das sociedades anônimas do futebol constituídas desde o advento da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF"). Além disso, aproveitou para mapear a data de constituição de cada SAF e, a partir do resultado, plotar gráficos que ajudassem a identificar (ou não) tendências. No trabalho de atualização, os pesquisadores Iago Fernandes Espírito Santo e Fernanda de Brito Freire do Nascimento utilizaram as mesmas ferramentas de consulta empresarial disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, inclusive aquelas oferecidas pela Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), sob a regulamentação e fiscalização do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI). Mantiveram, portanto, a denominação empresarial como critério de pesquisa, e procuraram todas as sociedades que possuíam em sua denominação os termos "Sociedade Anônima do Futebol" ou a sigla "S.A.F.", conforme dispõe o art. 1°, §3º, da Lei da SAF.1 Importante: a busca não privilegiou times que estivessem em alguma divisão do campeonato brasileiro; de modo que toda SAF, qualquer que seja a sua atuação ou relevância esportiva, foi catalogada. Outro dado importante: a data de corte (pois sempre haverá uma) é 10 de janeiro de 2025. Eventuais novas sociedades anônimas do futebol, registradas a partir de tal data, não foram capturadas pela 1ª atualização da pesquisa. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. ____________ 1 Art. 1°, §3º - A denominação da Sociedade Anônima do Futebol deve conter a expressão "Sociedade Anônima do Futebol" ou a abreviatura "S.A.F."
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Sobre Adriano (o ex-imperador) e o Brasil

A vida é muito curta para desperdiçá-la com livros medianos ou ruins. O problema é que há milhares de livros muito bons ou magníficos, que poderiam ocupar todos os dias (e noites) da vida de um leitor dedicado. Outro problema, ainda maior, é a escassez de tempo para dedicação, mesmo que não exclusiva, à leitura: trabalho, família, esportes e outras atividades prazerosas ou necessárias disputam o "bem" mais precioso de todo ser humano. Por tais motivos, a escolha de leitura ou de releitura de obras essenciais não é uma tarefa simples. Toda escolha implica, necessariamente, muitos preterimentos, alguns temporários, outros, talvez, eternos, pois a lista de desejos somente aumenta, com novos lançamentos ou relançamentos. Livros que envolvem futebol, por razões particulares, integram uma lista à parte, que é vencida, ou melhor, atacada (mesmo que não façam parte dos livros magníficos), sem método ou cronologia; a atração é passional, sobretudo. Não quer dizer que não sejam bons; ao contrário. Mesmo que não se enquadrem na categoria de alta literatura.      Nessa lista, e atrás de outros títulos, estava "Adriano: meu medo maior" (Planeta do Brasil, 2024). Considerando, ainda, a outra e maior lista, que reúne todos os demais temas de interesse, achei que o livro não seria lido antes de 2027. Mas não foi o que ocorreu, por "culpa" do músico Nando Reis, que o recomendou enfaticamente. Para não interromper as leituras em curso ou para não furar a fila, criei um subterfúgio, introduzindo-o em momentos em que, de modo regular, não estaria lendo (o que significa que o lia, inicialmente, enquanto fazia outra coisa, como andar na rua). E logo me deparei com a pressa de vencer as quase 500 páginas de um relato em primeira pessoa que poderia, não fossem detalhes ou eventualidades (sorte ou azar), não ter existido. Ou ter tido um desfecho monumentalmente distinto. Trata-se, a propósito, de um relato que, respeitadas as muitas peculiaridades, poderia se assemelhar a outros que, conforme o imaginário ou os padrões dominantes, tiveram final feliz: pobreza, dificuldades, esforços, superações, sucesso, riqueza, aproveitamento do sucesso associado à idolatria e legado. Tais roteiros, com final feliz, são conhecidos do grande público e explorados, em diversas circunstâncias e atividades, em programas de televisão ou em matérias sensacionalistas, para lembrar que o trabalhador que ralar loucamente e se enquadrar no sistema pode, sim, conquistar seu espaço dentre os privilegiados. Mas, com Adriano, os capítulos que se seguiram à queda do seu império futebolístico foram mais mundanos (ainda assim, notáveis). A narrativa se torna mais rica justamente por conta de tantas idiossincrasias e, em especial, pelo aparente descaso com a manutenção de certos símbolos que imperam em nossa sociedade capitalista e elitista. Ele foi o que, na infância, poucos concebiam que fosse; mas deixou de ser, após o estrelato, o que a maioria apostava que seria.    Apesar de tudo, Adriano teve a oportunidade de escolher entre se tornar um produto midiático e "monetizável" - e construir um império econômico - ou manter as origens; isso mesmo após os dilemas, as crises e o fim prematuro de sua carreira.   Talvez não tenha sido uma escolha, mas uma consequência de fatores ou eventos pessoais, psicológicos e de outras naturezas, que o levaram a seguir um caminho que a imprensa, os agentes que integram o sistema do futebol e os seus fãs não imaginavam (e, por isso, ainda ficam perplexos; afinal, ele poderia ter ganhado Copa do mundo, bola de ouro e muito, muito mais dinheiro). Pouco importou (ou importa), para Adriano: ele foi e continua sendo, Adriano, o imperador de suas decisões.   Ao contrário dele, a maioria dos meninos e meninas que nasce e vive em comunidades, de qualquer localidade ou região do país, passa longe de ter alguma perspectiva transformadora, social e econômica. Isto fica evidente quando Adriano relata a percepção que teve ao ser inscrito na escolinha de futebol do Flamengo, graças ao esforço quase sobre humano (para não dizer desumano) de sua família, especialmente de sua mãe e sua avó: "(...) não é que eles eram diferentes. Eu é que não era igual a ninguém. Todo mundo com cara de riquinho. Dando risada à toa. Correndo na maior alegria como se fossem amigos desde a maternidade. Mulheres vestidas de branco na arquibancada. Mães emperiquitadas empurrando uns carrinhos que eu nunca tinha visto antes. Eu era o estranho naquele lugar. Isso ficou claro desde o primeiro minuto (...)". Era e continua sendo. A narrativa confirma, aliás, o que se defende neste espaço (não de modo singular, pois consiste, também, na bandeira de outras pessoas que lutam por uma sociedade mais justa): em países marcados pela desigualdade, o futebol talvez seja a única esperança de parcela relevante das populações desfavorecidas. E, como não há lugar para todos dentro de campo, ele deveria ser a via de conexão e de flutuação entre as camadas sociais. Adriano, enfim, é um vencedor, em função de seu talento, evidentemente, mas, também, da vontade de sua mãe e de sua avó, e da sorte - como ele narra no livro. E uma exceção; que poderia se tornar regra se houvesse real interesse do Estado e da iniciativa privada na adoção de políticas e projetos voltados à educação e à inserção social pelo futebol.
O ufanismo que tomou conta de parcela das elites econômica e cultural do país, por motivos distintos1, revela (apenas) a necessidade - e a urgência - de promoção de debates a respeito da criação de políticas públicas voltadas não apenas à afirmação de um povo que, apesar de sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade (e disso deve mesmo orgulhar-se), ainda tem muito a divulgar e, mais importante, produzir - e, assim, assumir uma posição mais vigorosa (ou, como talvez escrevesse Nelson Rodrigues, menos viralatista). Especialmente porque os eventos que despertaram as reações mais ou menos contundentes decorreram de excepcionalidades, e não de ações estruturantes. João Fonseca, o jovem tenista que fez o país relembrar as glórias de Gustavo Kuerten - e provocar desnecessárias comparações -, e projetar uma nova era de conquistas próprias, que podem (ou devem) levar o hino e a bandeira do Brasil ao topo, será, quando os seus feitos se confirmarem, uma eventualidade histórica (ou estatística): não se trata, evidentemente, de uma crítica a ele ou à competente equipe que o circunda, mas da constatação de que, até o presente ano de 2025, apenas uma brasileira, Maria Esther Bueno, e um brasileiro, o já mencionado Gustavo Kuerten, venceram Grand Slams em simples profissionais. Muito pouco, ou melhor, nada, para um país que, conforme censos atuais, ocupa a sétima posição no ranking de maiores populações (em torno de 220 milhões de habitantes2) e a décima entre as maiores economias (atrás, apenas, de EUA, China, Alemanha, Japão, Índia, Reino Unido, França, Itália e Canadá)3. A partir do momento em que a vibrante promessa ampliar a lista de ganhadores, algo que, sem dúvida, o país aplaudirá, a contabilidade ainda assim persistirá em níveis diminutos, em números absolutos ou em relação à potencialidade latente. Estar-se-á, novamente, diante de fato isolado, viabilizado pelas condições financeiras e perspicácias planificadoras de seus familiares, que souberam, com recursos próprios ou de terceiros, oriundos de seus contatos pessoais e profissionais (algo não reproduzível, em especial para jovens de classes desfavorecidas), traçar os rumos de uma carreira. Os títulos de João Fonseca, que já se acumulam e se acumularão, não têm (e talvez jamais terão), portanto, nada a ver com um projeto de desenvolvimento do país, que o enchesse de orgulho (novamente, nenhuma crítica ao tenista e seus planificadores), e serão, mesmo que vestidos de verde e amarelo, vitórias particulares. Na mesma linha, o emocionante sucesso do necessário "Ainda Estou Aqui" (não apenas pela recompensação a uma família violentada pelo Estado, mas, também, pelo momento do reconhecimento), protagonizado por Fernanda Torres, provocou manifestações (compreensivelmente) fanáticas, sobretudo em reação aos ataques ideológicos de que o filme e a atriz foram vítimas, que expôs ao Brasil e ao mundo os horrores do regime militar. Os números brasileiros, no âmbito da premiação - se é que importam -, também são ínfimos: antes de "Ainda Estou Aqui", pouco mais de uma dezena em diversas categorias e em todos os tempos4, e nenhuma vitória. As novas indicações descortinam, na verdade, uma incômoda realidade: a excepcionalidade do fato. Nesse ponto (ou nessa esquina) João Fonseca e Fernanda Torres se encontram para: (i) simbolizar o orgulho de alguma coisa, apropriado por cada orgulhoso em função de sua própria perspectiva; (ii) lembrar que, dramaticamente, tardará para que surjam outros Joãos e Fernandas, enquanto não se promoverem políticas públicas efetivas e apoios privados desinteressados e em larga escala, ao desenvolvimento educacional, social e econômico; e (iii) acalentar a esperança de que, apesar da fissura social e política, ainda se vive no (eterno) país do futuro. Também naquela esquina outras pessoas poderiam se encontrar com João Fonseca e Fernanda Torres: os futebolistas que, em sua grande maioria, provieram de classes desfavorecidas, tiveram pouco tempo ou oportunidade para estudar e são, mesmo quando bem-sucedidos, excluídos social e culturalmente (as poucas exceções costumam ser brancas e nascidas em ambientes mais privilegiados). Poderiam, mas não se encontrarão naquela esquina porque, inversamente ao que se produziu com João Fonseca e Fernanda Torres, seus feitos, eventualmente semanais, são desconsiderados (ou mesmo ignorados), exceto pela imprensa especializada ou quando acompanhados de algum drama ideológico, físico, racial ou identitário. Talvez se afirme que a apropriação do futebol pelo Regime Militar, na Copa de 19705, tenha deixado rasgos ainda não cicatrizados, que impedem a construção de uma relação simbiótica (ou que não se restrinja à preferência clubística); algo que, apesar de tentador, não faria (e não faz) o menor sentido e não deixaria de escancarar que, na verdade, desde que bolas foram involuntariamente chutadas para fora das fábricas de trabalhadores brancos e europeus, e caíram nos pés da população preta e afim, promoveu-se uma inversão hierárquica jamais revertida e aceita - e cujo inconformismo se expressa, cotidianamente, em atos racistas em campos de quase todos os países. Não!, a dificuldade que o país e suas elites têm com os futebolistas, ou melhor, com a perspectiva de inserção e ocupação de espaços, não se associa a 1970 ou à ditadura pois, assim fosse, não se teria operado, talvez como (realmente) nunca, a união nacional pela seleção de 1982, protagonizada por Sócrates, Zico, Falcão e Eder, aliás, possivelmente, a mais "branca" e intelectualizada (ou educada) desde 1950. Enfim, João Fonseca e Fernanda Torres devem ser celebrados; mas, ao mesmo tempo, devem servir para que o Estado e a iniciativa privada se conscientizem de que o país carece de políticas e iniciativas consistentes com a sua grandeza (ao menos física). Mais: que o país insiste em desprezar uma de suas maiores riquezas, o futebol, atividade umbilical e visceralmente atrelada ao seu povo (que há décadas vem se espalhando, apesar de tudo, entre times localizados em dezenas de países), e que deveria se projetar como instrumento de inserção e desenvolvimento, e como o principal softpower brasileiro. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
1. Breve introdução Semanas atrás, a imprensa especializada noticiou e publicou os termos de uma eventual operação que o SPFC estaria entabulando com determinado investidor internacional (Evangelos Marinakis). Após alguma agitação, o tema deixou de repercutir. Olhando de fora, o silêncio talvez decorresse por um de dois motivos: a negociação, se efetivamente estivesse em curso, esfriou; ou passou a ser conduzida com maior rigor de sigilo. Parece que se aplica a segunda hipótese, pois, em reunião extraordinária do conselho deliberativo do SPFC, ocorrida no dia 28 de janeiro, o tema da negociação teria sido abordado. Qualquer que seja o motivo, e mesmo que seja outro, não listado acima, este texto promove uma análise das supostas bases negociais, de modo a contribuir, construtivamente, para o debate a respeito do presente e do futuro do SPFC. Parte-se, portanto, da premissa de que o SPFC estaria estudando alternativas de financiamento da atividade futebolística para, além de enfrentar as obrigações de curto e médio prazos, viabilizar uma estrutura que pudesse manter o time competindo, com sustentabilidade, em alto nível e no topo de tabelas. A realização de eventuais movimentos talvez se justifique, ainda mais, em nossa opinião, pelo advento da lei 14.193/21 ("lei da SAF"), que resultou - e ainda resultará - no fortalecimento de clubes que, antes, tinham dificuldade de se equiparar ao orçamento e às perspectivas do SPFC. 2. O desafio O ponto de partida da análise é o orçamento de 2025. O orçamento costuma expressar projeções de entradas e saídas, que podem ou não se confirmar em função de diversas variáveis futuras, e costuma ser construído com base em ocorrências passadas e eventos que, em princípio, deveriam (ou poderiam, com alguma segurança) se realizar. Nesse cenário de projeções (e, necessariamente, de algumas incertezas), o orçamento projeta a contratação de mais de R$ 200 milhões em novas dívidas (ou empréstimos). Os recursos seriam utilizados, em conjunto com parte da geração de caixa de 2025 (proveniente de direitos de arena, patrocínio, negociação de jogadores etc.), para atender obrigações da ordem de R$ 350 milhões1, que vencem em 2025. Contudo, o SPFC estruturou, recentemente, uma operação envolvendo um FIDC -  Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, que restringe, como costuma acontecer em tais estruturações, a liberdade gerencial para realização de certos negócios, em especial para contrair dívidas. No caso, empréstimos superiores a R$ 10 milhões por trimestre devem ter anuência do comitê de crédito do FIDC2. Assim, a negociação de parte do Centro de Formação de Atletas Presidente Laudo Natel, ou seja, a categoria de base conhecida como Cotia, poderia contribuir para o solucionamento de parcela da dívida que vencerá em 2025. 3. Sobre a operação No âmbito da operação com Cotia, o SPFC receberia uma parcela imediata (aparentemente decorrente da venda de parte de Cotia), que seria destinada à amortização de dívidas, estimada em aproximadamente R$ 2403 milhões, montante que ainda seria insuficiente para cobrir os vencimentos previsto para 2025, da ordem, como visto, de R$ 350 milhões. Para fechamento das contas de 2025, o SPFC dependeria da confirmação de um orçamento ambicioso, que prevê cerca de R$ 150 milhões em negociação de jogadores4. Adicionalmente, como o valor recebido seria utilizado para amortizar apenas os vencimentos de 2025, o endividamento total do clube permaneceria em nível semelhante ao registrado ao final do exercício de 2023, refletindo uma situação financeira ainda crítica5. A operação que circulou implicaria, ademais: (i) a manutenção pelo SPFC do controle das operações de Cotia, de modo que o investidor deteria uma participação minoritária em um veículo que fosse proprietário de empresa conjunta; (ii) uma transferência de recursos diretamente ao SPFC, parte destinada à amortização de dívidas (conforme antecipado acima) e parte destinada a investimentos incrementais no futebol, bem como investimentos diretos em Cotia; e (iii) um fluxo de caixa periódico oriundo de Cotia para financiar as atividades do futebol profissional (sob a forma expectativa de dividendos). Em troca desse conjunto de coisas, o SPFC passaria a conviver com um sócio relevante e líquido, em uma estrutura que, por um lado, poderia ajudar a alavancar novos negócios, mas, de outro, obstaculizar outras operações mais audaciosas (ao menos com terceiros). 4. Pontos de atenção De todo modo, alguns aspectos merecem destaque e, sobretudo, atenção, para que, ao invés de solução, a operação não se transforme em problema maior do que os desafios existentes: Saída de capital para o investidor: Em outras estruturas de vendas de participações em empresas futebolísticas para investidores de longo prazo - cujo perfil parece ser o do investidor em Cotia -, como nos casos do Bahia com o Grupo City ou do Liverpool com a Fenway Sports Group, os resultados gerados pela operação são normalmente reinvestidos na própria atividade, com o propósito de promover um ciclo virtuoso de crescimento sustentável. Nesses modelos, o principal retorno financeiro do investidor costuma ser obtido no momento da venda futura do ativo pelo investidor (ou seja, da venda das ações de emissão da SAF ou da sociedade empresária constituída para organizar e operar o futebol), o que o incentiva a apostar no crescimento e valorização do time. Já no caso de eventual negócio envolvendo Cotia, o pagamento de dividendos periódicos ao SPFC e ao investidor, referentes às respectivas participações na sociedade - algo que somente poderá ocorrer, de acordo com a legislação societária, se a SAF ou a sociedade empresária, conforme o caso, apurar lucros -, restringiria a capacidade de reinvestimento na própria estrutura de Cotia, podendo comprometer seu desenvolvimento (e os próprios planos traçados pelas partes); Conflitos de interesses: A operação poderia criar três conflitos principais entre o SPFC e o investidor, que merecerão um rigoroso e detalhado tratamento contratual: (i) primeiro, no aproveitamento de atletas: enquanto o SPFC deveria ter a tendência de se aproveitar esportivamente, ao menos por algum tempo (ou temporada), das revelações, o investidor, que não se beneficiará do aproveitamento clubístico, por não participar da operação do futebol profissional, tenderia a priorizar negociações rápidas para potencializar seu retorno financeiro; (ii) segundo, no âmbito do modelo atual, um atleta gerado em Cotia sobe automaticamente para o profissional, sem pagamento de contrapartida (além da própria formação), mas, no modelo em análise, parece não ter ficado claro se o SPFC, que deixaria de ser proprietário único de Cotia, teria que pagar para utilizar, sob qualquer forma (inclusive para celebração de contratos esportivos), algum atleta e, se o caso, em que bases (que podem ser beneficiadas ou privilegiadas em relação a terceiros ou nas bases de mercado); e (iii) por fim, considerando que o investidor é proprietário de outro time, poderia haver interesse na negociação prioritária de atletas formados em Cotia, em preferência ao SPFC, eventualmente a preços maiores do que o SPFC teria condição de arcar, porém, inferiores aos que outros times estariam dispostos a bancar; Desembolso para a recompra: Caso o SPFC deseje, após a consumação da operação, retomar a propriedade integral de Cotia, precisaria, caso os contratos assim estabeleçam, recomprar as ações detidas pelo investidor, envolvendo um desembolso financeiro significativo. Embora a definição prévia de valores de recompra possa favorecer o comprador em caso de sucesso do negócio, ela também o prejudica em cenários adversos. Independentemente disso, o direito de recompra é essencial para proteger o futuro do SPFC e sua ausência poderia inviabilizar a retomada integral das categorias de base ou uma eventual operação mais audaciosa, envolvendo, ou não, uma SAF; Opção de conversão para o investidor: Aparentemente, a operação contemplaria a concessão de uma opção ao investidor, para converter sua participação em Cotia em uma sociedade empresária futura do SPFC, seja ela SAF ou não. Esse tipo de instrumento - portanto, a opção de conversão - tende a diminuir (ou afastar) a atratividade para outros projetos que envolvam possíveis investidores de capital, podendo colocar o SPFC numa situação de refém do sócio minoritário de Cotia. Em contrapartida, a priorização do direito de recompra do SPFC sobre o direito de conversão do investidor poderia diminuir os efeitos da sua concessão; Financiamento da operação após o período de aportes: Outro ponto crucial consiste na fixação dos meios de financiamento de Cotia após o término do período de aportes programados. Para garantir a manutenção do mesmo nível de investimentos no futuro, seria necessário reduzir a distribuição de dividendos, direcionando parte desses recursos para sustentar as operações e investimentos futuros. Além disso, caso a operação demande recursos que não possam ser supridos por financiamentos de terceiros (debêntures, notas comerciais, empréstimos etc.), os sócios, como regra geral, suprem com recursos próprios (ou mediante a obtenção de empréstimos pessoais) as necessidades da sociedade. Sócios que não conseguem acompanhar as demandas de capital costumam ser diluídos. Caso, portanto, a estrutura de Cotia eventualmente não seja autossuficiente, o SPFC poderia enfrentar um de três cenários: direcionar recursos do profissional para Cotia; obter outros empréstimos (desde que não esteja impossibilitado por instrumentos como os do FIDC); ou reduzir sua participação na sociedade.    5. Conclusão Caso a operação envolvendo Cotia se realize, com base nas premissas adotadas neste texto, ela não deverá solucionar, de modo estrutural e definitivo, os desafios financeiros do SPFC e pode trazer, a depender das condições negociadas, obstáculos operacionais e desafios ainda maiores para implementação de uma operação de grandes dimensões. Por outro lado, caso não se realize, o SPFC também terá, pela frente, um cenário bastante desafiador. Daí a inevitabilidade das seguintes indagações: O que o SPFC fará para perpetuar sua relevância esportiva se não promover uma operação estrutural, como fizeram, aliás, quase todos os times relevantes do planeta, e, se a promover, quais seriam as condições ideais? A operação apenas com Cotia seria o caminho adequado? Quais seriam as alternativas viáveis à operação de Cotia para solucionamento dos desafios financeiros do clube, preservando sua sustentabilidade e gerando alinhamento de interesses de curto, médio e longo prazos? Quem seria o parceiro (ou sócio) estratégico ideal para o SPFC6, considerando sua relevância histórica e importância nos cenários esportivos brasileiro e mundial, e levando em conta, além de Cotia, uma operação de grandes dimensões? 1 Montante composto de: parcelamento tributário; pagamento de atletas, clubes e intermediários; pagamento de acordos cíveis e trabalhistas; amortização de empréstimos; e amortização do FIDC. 2 Cf.: Disponível aqui; e aqui. 3 Correspondentes a 40% dos ingressos referentes à operação de Cotia. 4 Caso a operação se concretize, o SPFC deixará de receber a totalidade da receita com negociações de atletas formados em Cotia, de modo que, se a divisão de resultados se projetar sobre atletas contemplados no orçamento, a meta para 2025 poderá ficar mais desafiadora. 5 Nesse contexto, a operação envolvendo Cotia teria servido, em tese, como um mecanismo para cobrir os déficits recentes, notadamente de 2024, sem oferecer uma solução estrutural para os problemas financeiros do clube. 6 Que poderia ser o próprio investidor, em função de premissas que vierem a ser estabelecidas pela diretoria do SPFC.
Na semana seguinte às conquistas do Botafogo, propiciadas pela Lei da SAF e pelas perspectivas que ela criou, e que se confirmam com a existência de 95 sociedades anônimas do futebol e os casos de sucesso que se somam - como os do próprio Botafogo e do Bahia -, o Brasil poderia ter que explicar aos 150 milhões de torcedores, aos clubes que estão em processo de mudança de modelo, às SAF's existentes, aos investidores que confiaram no País, aos investidores que estão planejando desembarcar e ao mundo, em geral - que já enxerga o futebol brasileiro como a próxima grande liga -, que as expectativas não se confirmariam. Mas o Governo pode reverter essa possibilidade e, mais importante, deixar sua marca na construção do maior mercado do planeta.   Não se trata de alarmismo, mas das consequências que a reforma tributária poderia provocar, de modo devastador, na construção que se vem erigindo, desde a iniciativa alvissareira do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, autor da Lei da SAF, e da atuação do Relator da Lei da SAF, Senador Carlos Portinho; lei que, como poucas outras - talvez na história -, atingiu, em tão pouco tempo, efeito tão benéfico à sociedade. Explica-se: conforme nota técnica divulgada semanas atrás pelo IAT - Instituto de Aplicação do Tributo e pelo IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol, o PLP 68/24, que regulamenta a reforma tributária, eleva de modo significativo a carga tributária incidente sobre a SAF, com aumento representativo de aproximadamente 120% em relação à estrutura atual. Importante, muito, muito importante: jamais se defendeu - e não se defenderá - que a SAF não contribua para a arrecadação pública. Aliás, seu surgimento serviu justamente para romper com um modelo secular, patrocinado pelo Estado, que concedeu aos clubes sem fins econômicos, imunidades, isenções, perdões e outras regalias, à custa da sociedade, em troca, na prática, de nada. A Lei da SAF propôs um eficiente regime especial - o TEF -, indutor da formação de um novo mercado, que estimulará a multiplicação de relações jurídicas, as quais atrairão a incidência da norma tributária e, consequentemente, o aumento de arrecadação. Funciona assim: 5% da receita da SAF deve ser mensalmente recolhida para o erário, sem qualquer formalidade ou complexidade, evitando-se planejamentos, compensações ou evasões. A partir do início do 6º ano, a alíquota será reduzida para 4% e a base de cálculo majorada, com a absorção de negociação de jogadores. Ou seja, o regime especial reverte (e, no caso da SAF, reverteu) uma enorme complexidade que, até agora, se mostrou vencedora. A arrecadação é distribuída entre IRPJ, CSSL, PIS, COFINS e determinadas contribuições previdenciárias. Com o fim de PIS e COFINS, e a criação do CBS e do IBS, a proposta contida no PLP 68/2024 consiste na majoração imediata da base e, pior, acréscimo para 8,5% da receita. Trata-se, pois, de aumento colossal, levando-se em conta, sobretudo, que o recolhimento se calcula sobre receita mensal, e não lucro, e desconsidera custos e despesas. Por esses motivos, o IAT e o IBESAF sustentaram, publicamente, e defendem, com razão, a aprovação da Emenda 1.950 (ao PLP 68/2024), que estabelece o seguinte: "Art. 292. ....................................................................................................... .......................................................................................................................... § 4º ............................................... .................................................................... I - 3% (três por cento) para os tributos federais unificados de que tratam os incisos I a III do § 1º; II - 1% (um por cento) para a CBS; e III - 1% (um por cento) para o IBS, sendo: ........................................................................................................................ " Note-se, portanto, que a Emenda 1.950 propõe a redistribuição da arrecadação, e não a supressão ou redução, no âmbito da Reforma Tributária. Uma solução justa, que preserva os avanços promovidos pela Lei da SAF e que reforça a confiabilidade institucional - algo que, definitivamente, o País precisa. Mais: por conta do aumento da base de cálculo, ainda resultará no aumento de arrecadação, com a mesma alíquota. De modo que não há, sob qualquer ângulo, razão para majorá-la. Enfim, o Governo tem em suas mãos a oportunidade histórica de viabilizar um modelo alternativo ao associativismo, como forma preponderante de organização do futebol - que não contribui para arrecadação pública - e, em sentido contrário, de reforçar a relevância do desenvolvimento da empresa futebolística brasileira, que, como nenhuma outra, pode cumprir funções de inserção social e de desenvolvimento econômico, além de exercer o papel de principal softpower nacional.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O Botafogo, o Brasil e a omissão do Estado

No ambiente do futebol, especialmente do brasileiro, que é pautado pela cultura do curtíssimo prazo, não se costuma tolerar a planificação que não tenha como objetivo imediato o resultado dentro de campo; mesmo que o imediatismo comprometa a estrutura e a saúde financeira do time. Ano passado, por exemplo, pouco mais de um ano do investimento realizado por John Textor e da revolução gerencial que se introduzia na SAF Botafogo, com a reunião de executivos ultra qualificados, houve quem dissesse que o projeto fracassara, apesar de o time não ter conquistado o campeonato brasileiro de 2023 (apenas) em função da perda de um pênalti. O que se construía, porém, era um projeto que ia muito além de um improvável título, logo no início da jornada. Na Libertadores de 2024, motivo justificado da atual euforia botafoguense, o caminho nem sempre foi suave, e o desfecho glorioso correu riscos reais em diversos momentos. Para não ir muito longe, após impor ao SPFC, nas quartas-de-final, o maior massacre já sofrido pelo time paulista em Libertadores, e ainda assim não marcar um gol, o Botafogo poderia ter sido derrotado, no Rio de Janeiro, não fosse certa oportunidade desperdiçada por Calleri no final da partida; e, dias depois, no Morumbi, ainda poderia ter sido desclassificado, não tivesse Lucas perdido um pênalti e, outra vez, Calleri deixado de marcar mais um gol feito. A grande final, em Buenos Aires, contra a SAF do Galo, se revelou ainda mais tortuosa, em decorrência da expulsão, após poucos segundos do início da partida, de jogador que sustentava o sistema de marcação do time. Naquele momento, os grupos de WhatsApp não paravam de circular manifestações de incredulidade e de sentenciamento de mais um tropeço histórico. Talvez, com alguma razão, pois, como mencionado, em ato premonitório, por determinado dirigente sul-americano ao Vice-Presidente Executivo do Botafogo, Jonas Decorte Marmello, na véspera do jogo, uma expulsão em final antes de 15 minutos do início representaria, estaticamente, chance de quase 100% de derrota. O que ocorreu, ao contrário, e o planeta viu, foi uma vitória épica, que segundo Nizan Guanaes, Shakespeare não seria capaz de dramatizar, e, em minha opinião, Homero não saberia converter em elementos de batalha. A narrativa deste artigo poderia soar oportunista, após o título, se a origem do atual sucesso do Botafogo não tivesse sido objeto, direta e indiretamente, de dezenas (ou melhor, centenas de outros artigos), nesta coluna, em defesa, incialmente, do Projeto de Lei e, finalmente, da própria Lei da SAF, de autoria do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, que foi (e é) a razão de o Botafogo ter inaugurado novo período de glórias. Voltando, agora, ao plano da razão, a Lei da SAF - instrumento inaugural de uma política pública que se constrói, infelizmente, à margem da atuação de Governos (e já são 4 Governantes, desde a inauguração do debate, alheios ao processo), e que ganhou inestimável reforço com a publicação do Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023 - ofereceu uma perspectiva única na história do esporte, no país. Sim, perspectiva que consiste na possibilidade de construção de um sistema integrativo, que aproxima detentores de capitais e proprietários seculares do futebol - os clubes -, dentro do qual se oferece um conjunto de atributos, como segurança jurídica, previsibilidade e possibilidade de cálculo, com maior precisão, do risco empresarial. Antes que se comece a criticar uma inexistente visão unicamente mercantilista, aquele sistema, que deve ser eficiente e gerador de riquezas, para aumento do bem-estar coletivo e da distribuição de renda, representa, em país tão desigual como o Brasil, a mola propulsora de inserção social e econômica das camadas menos favorecidas. Mais do que isso: também se apresenta como o mais poderoso instrumento de soft power brasileiro, capaz de entrar em bilhões de televisões e smartphones espalhados em todos os países.   Essas são, pois, as perspectivas que já deveriam ter sido compreendidas e estimuladas, pelo Estado e seus Governos, especialmente por meio da construção de adequado arcabouço legislativo e regulatório, em benefício do desenvolvimento do povo e da nação. Aliás, recente estudo do IBESAF apurou a existência de 95 sociedades anônimas do futebol, dentre pequenas e grandes, localizadas em dezenas de municípios. O número é expressivo, mas ainda incipiente: dos 20 times que participaram da série A do campeonato brasileiro de 2024, 8 adotaram a forma societária; dos 20 da B, 3; dos 16 da C, 6; e, finalmente, dos 64 da D, 7. E toda e qualquer SAF, por enquanto, ainda traça o seu o caminho solitário, sem um plano à altura das contrapartidas que, reunidas, poderiam proporcionar à sociedade.   Há muito a fazer, no plano coletivo. E é esta a lição que agentes públicos, de membros do Executivo aos do Judiciário, passando pelos Congressistas e Reguladores, poderiam - ou deveriam - captar: o futebol não é apenas um esporte, mas uma das vias de ressignificação da nossa sociedade. E assim deveriam se compor para defender e oferecer o ferramental necessário para formação e afirmação do mais pujante mercado do futebol do planeta - além de se aproveitarem do momento para expor posts e comentários que se perderão no infinito das redes sociais. 
quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O Mapa da SAF no Brasil: já são 95

O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu sua primeira pesquisa, consistente no mapeamento das sociedades anônimas do futebol constituídas desde o advento da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF"). Os pesquisadores Iago Fernandes Espírito Santo e Fernanda de Brito Freire do Nascimento utilizaram ferramentas de consulta empresarial disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, inclusive aquelas oferecidas pela Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), sob a regulamentação e fiscalização do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI). Adotou-se a denominação empresarial como critério de pesquisa e foram examinadas todas as sociedades que possuíam em sua denominação os termos "Sociedade Anônima do Futebol" ou a sigla "S.A.F.", conforme dispõe o art. 1°, §3º, da Lei da SAF.1 Os resultados obtidos são interessantes (ou, mesmo, impactantes): em pouco mais de três anos, o país já coleciona 95 SAF's, distribuídas da seguinte forma: (i) Em relação à região: 40 com sede no Sudeste; 21 no Sul; 13 no Centro-Oeste; 17 no Nordeste; e 4 no Norte.  (ii) Em relação às unidades da Federação: as SAF's estão distribuídas entre 20 Estados e o Distrito Federal, sendo: 21 em São Paulo; 15 no Paraná; 11 em Minas Gerais; 7 na Bahia; 6 no Rio de Janeiro; 5 em Santa Catarina; 5  em Goiás; 4 no Rio Grande do Norte; 4 no Distrito Federal; 3 no Ceará; 2  no Espírito Santo; 2 no Mato Grosso; 2 no Mato Grosso do Sul; e 1 em cada um dos seguintes Estados: Acre; Amazonas; Pernambuco; Pará; Paraíba; Rio Grande do Sul; Roraima; e Sergipe.  (iii) Em relação ao momento esportivo2: 8 disputam a 1ª divisão do Campeonato Brasileiro; 3 disputam a 2ª divisão do Campeonato Brasileiro; 6 disputam a 3ª divisão do Campeonato Brasileiro; 7 disputam a 4ª quarta divisão do Campeonato Brasileiro; e 71 não estão qualificadas para o Campeonato Brasileiro. A pesquisa do IBESAF apresenta, ademais, o mapa da SAF, com a indicação de cada uma delas, conforme planilha abaixo:  Clique aqui para conferir. A pesquisa revela, portanto, que a Lei da SAF integra o grupo das leis que "pegaram", apesar da resistência que se verificou durante a sua tramitação e das tentativas de fragilizá-la, após o seu advento.  __________ 1 Art. 1°, §3º - A denominação da Sociedade Anônima do Futebol deve conter a expressão "Sociedade Anônima do Futebol" ou a abreviatura "S.A.F.". 2 A pesquisa foi concluída antes da definição dos rebaixamentos ou acessos dos campeonatos de 2024.
Em meio ao conflito político protagonizado por Javier Milei e a Asociación del Fútbol Argentino - AFA, narrado em artigo publicado no dia 06 de novembro, cabe agora analisar pontos essenciais dos três decretos editados pelo governo argentino relacionados ao tema SAD - Sociedade Anónima Deportiva: O DNU 70/23, o DNU 730/24 e o DNU 939/24. O Decreto de Necesidad y Urgencia (DNU 70/23), promulgado no final de 2023, tinha como propósito estabelecer medidas econômicas de caráter emergencial para enfrentamento da grave situação fiscal e financeira do país. Dentre medidas como a eliminação de subsídios objetivando redução dos gastos públicos e ajustes na política cambial para controlar a inflação e estabilizar o valor da moeda, surgiram, em seus arts. 331 a 345, alterações relevantes na Ley de Deporte (Ley 20.655/74) que cultivaram o confronto político entre o poder executivo e a AFA. O DNU 70/23, em sua essência, refletia promessas de campanha de Javier Milei, que prometia buscar soluções rápidas e eficazes para os desafios fiscais e financeiros do país. Entre tais soluções, foi introduzida a SAD. Aliás, não apenas a SAD como outros tipos societários foram autorizados a operar no ambiente esportivo, conforme se depreendia do art. 334, que substituía o art. 19 da Ley de Deporte ao dispor que: "Se consideran asociaciones civiles deportivas integrantes del Sistema Institucional del Deporte y la Actividad Física, a las: a) Personas jurídicas previstas en el artículo 168 del Código Civil y Comercial de la Nación, que tienen como objeto la práctica, desarrollo, sostenimiento, organización o representación del deporte y la actividad física (...); (b) Personas jurídicas constituidas como sociedades anónimas reguladas en la Sección V de la Ley 19.550 y sus modificatorias, que tienen como objeto social la práctica, desarrollo, sostenimiento, organización o representación del deporte y la actividad física (...)". O Decreto ia além, proibindo quaisquer obstáculos ou dificuldades para que sociedades empresárias se filiassem a associações, federações ou confederações esportivas[1]. Ainda, em seu art. 345, foi imposto prazo de um ano para que associações, federações ou confederações modificassem seus estatutos para adequação ao implemento da SAD e demais sociedades empresárias. A AFA, entidade resistente à introdução de empresas no sistema futebolístico, ajuizou ação com o propósito de revogar os efeitos dos artigos referentes à Ley 20.655/74, contidas no DNU 70/23. Diante do revés judicial, Javier Milei editou o DNU 730/24, para reiterar, em seus oito artigos, o conteúdo do DNU 70/23. Ademais, reafirmou a possibilidade de adoção da forma empresarial, em especial a sociedade anônima, por entidades que tivessem como objeto social la práctica, desarrollo, sostenimiento, organización o representación del deporte y la actividad física. Ainda, em seu art. 2º, renovou o impedimento à imposição de barreiras pelas associações, federações e confederações desportivas e, por intermédio do art. 5º, anunciou que o prazo de um ano para adequação dos estatutos seria contado a partir da data de início de vigência do decreto. A AFA reagiu novamente e, no âmbito judicial, obteve nova decisão revogatória dos efeitos do DNU 730/24. Daí a iniciativa de Javier Milei de redirecionar o ataque, mediante a edição do DNU 939/24, para afetar benefícios fiscais concedidos a clubes desde 2003. Conforme conteúdo do decreto, o sistema tributário vigente em relação ao pagamento de contribuições pessoais e contribuições patronais correspondentes aos jogadores de futebol, membros do corpo médico, técnico e auxiliar que assistem às equipes que jogam futebol profissional em qualquer categoria, além de demais profissionais dependentes da AFA e dos clubes que participam dos torneios organizados pela referida associação nas divisões "Primeira 'A', Nacional 'B' e Primeira 'B'", teria provocado uma situação de preocupante desfinanciamento dos regimes de segurança social - atribuindo prejuízo aos cofres públicos da ordem de ARS$ 7,1 bilhões (em torno de R$ 41 milhões). Composto por apenas quatro artigos, inseriu-se, no art. 1º, prazo de seis meses para o encerramento do regime fiscal em vigor. No art. 2º, criou-se comissão composta por representantes dos clubes, AFA e governo, a ser presidida por representante do Ministério da Justiça, para discutir a adequação e reformulação do regime, "tornando-o eficiente, suficiente e sustentável para substituir o regime que se encerrará de acordo com o disposto no art. 1º". Finalizando, nos arts. 3º e 4º, decretou-se a entrada em vigor do decreto no dia de sua publicação no Boletín Oficial de la República Argentina e o envio do documento à Dirección Nacional del Registro Oficial para arquivamento. Apesar de seu breve conteúdo, o DNU 939/24 trouxe disposições que deverão produzir novos capítulos nessa novela. Qualquer que seja o desfecho, por enquanto, os maiores (e, talvez, únicos perdedores) são os times e os torcedores argentinos. ________ 1 DNU 70/23 - "Artículo 335. Incorpórase como artículo 19 ter a la Ley 20.655, el siguiente: 'Artículo 19 ter.- No podrá impedirse, dificultarse, privarse o menoscabarse cualquier derecho a una organización deportiva, incluyendo su derecho de afiliación a una confederación, federación, asociación, liga o unión, con fundamento en su forma jurídica, si la misma está reconocida en esta ley y normas complementarias'."
quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Milei x AFA: Sociedade Anónima Deportiva (SAD)

Cerca de um mês após a eleição de Javier Milei à presidência da Argentina foi publicado, por meio do Diário Oficial da República Argentina, no dia 20 de dezembro de 2023, o polêmico DNU - Decreto de Necesidad y Urgencia 70/23. Intitulado como "Bases para la Reconstrucción de la Economía Argentina" e popularmente conhecido como "megadecreto", o DNU 70/23 foi composto por 366 itens, dentre os quais, alguns interessam ao propósito deste texto. Javier Milei tornou-se um defensor da instituição da SAD - Sociedade Anónima Deportiva no futebol argentino, possivelmente influenciado pelo modelo espanhol e, mais recentemente, incomodado com os resultados positivos que a Lei da SAF trouxe ao ambiente brasileiro e aos seus clubes. Daí a proposta de alteração e revogação de uma dezena de artigos da Ley de Deportes (Ley 20.655/74), inclusive alguns que geraram embate imediato com a AFA - Asociación del Fútbol Argentino e suas lideranças políticas: em especial, a possibilidade de clubes organizados sob a forma de associações civis se constituírem ou se transformarem em sociedades anônimas. Importante: Os estatutos da AFA proíbem a constituição e a existência de sociedades empresárias no ambiente do futebol argentino. Em reação às pretensões de Javier Milei, o atual (e recentemente reeleito) presidente da AFA, Claudio "Chiqui"  Tapia, comandou movimento que contou com esmagadora maioria dos clubes argentinos, e que resultou, no início do segundo semestre de 2024, na suspensão judicial dos efeitos do decreto presidencial, que, em sua redação original, previa prazo de um ano para que AFA e demais federações argentinas futebolísticas adaptassem seus estatutos para o recebimento da SAD. Javier Milei não aceitou o golpe e editou novo Decreto de Necesidad y Urgencia 730/24, publicado em agosto de 2024, no qual reiterou a possibilidade de os clubes argentinos passarem do modelo associativo ao empresarial, e reinseriu o prazo de um ano para adaptação dos estatutos das federações nacionais. Além disso, foi decretado que as entidades de administração do esporte não poderiam sancionar clubes que optassem pela adesão ao modelo empresarial. Após ajuizamento de medida cautelar pela AFA, a Justicia Federal de Mercedes ordenou a suspensão imediata dos efeitos do DNU 730/24 - impondo nova derrota ao presidente argentino. Parte da mídia nacional já considerava o assunto concluído até que, menos de um mês atrás, no dia 21 de outubro de 2024, o embate tomou novos rumos. Por via de outro decreto executivo, o DNU 939/24, Javier Milei dirigiu-se aos benefícios fiscais instituídos pelo então presidente Eduardo Duhalde (seguido por seu sucessor Néstor Kirchner), em meados de 2003, por meio do DNU 1212/03. Em síntese, o DNU 1212/03, diante de crescente crise financeira que culminou no aumento exponencial de endividamento dos clubes argentinos, instituiu regime tributário de cobrança e retenção do percentual de 2% da receita total da venda de ingressos, transferências de jogadores e direitos de transmissão para pagamento e quitação de valores referentes a contribuições pessoais e contribuições patronais dos funcionários dos clubes pertencentes à AFA - posteriormente elevado para 6,5% por Kirchner, em 2005, após melhora na situação de crise. Houve, ainda, em 2019, diante da administração executiva do ex-presidente Mauricio Macri, outro defensor declarado da SAD, novo aumento no percentual do regime de benefícios fiscais para 6,75% (incluindo também receitas de patrocínio dos clubes, previamente não incluídas na base de cálculo). O embate teve também capítulo protagonizado pelo ex-presidente Alberto Fernández com seu DNU 510/23, no final de 2023 (época na qual estava em campanha eleitoral contra Javier Milei), momento em que buscou a ampliação dos benefícios anteriormente reduzidos por Mauricio Macri, instituindo sistema para refinanciamento de dívidas acumuladas em decorrência das alterações de 2019. Agora, Javier Milei ataca ponto sensível aos clubes, o benefício tributário, e justifica a medida com argumento que afeta toda população - neste momento, abalada pelas intensas medidas promovidas pelo próprio Presidente: perda de ARS$ 7,1 bilhões (em torno de R$ 41 milhões) aos cofres públicos somente entre os meses de novembro de 2023 e abril de 2024, de modo que "portanto, é necessário modificar as condições atuais do regime para evitar a expansão do desfinanciamento do sistema". Parece, pelo exposto, que a disputa política entre Javier Milei e AFA está longe de se terminar. Enquanto isso, os clubes argentinos perdem a oportunidade de acessar os mercados financeiro e de capitais e de se reposicionar como grandes forças do futebol sul-americano - e mundial.
A Galeria Nacional de Arte de Washington ("Galeria Nacional") inaugurou1 uma interessantíssima exposição denominada Paris 1874, na qual explora a importância de outras duas exposições que ocorreram em Paris, em 1874: uma, promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas Pintores, Escultores e Gravuristas ("Sociedade Anônima dos Artistas"), em um espaço comercial localizado no Boulevard dos Capuchinos; e, outra, realizada no Palácio das Indústrias, que hospedava o Salão Anual, considerado o mais importante evento permanente de arte da época - e que havia sido instituído, aliás, desde o século XVII.  A exposição promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas apresentou em torno de 200 obras, concebidas por 31 artistas, e atraiu, durante o mês, número estimado de 3.500 pessoas; ao passo que a grande exposição oficial recebeu, em 2 meses, ao redor de 500.000 pessoas, que puderam apreciar 3.701 obras, produzidas por mais de 2.000 artistas2. Os artistas reunidos na Sociedade Anônima dos Artistas ofereciam, com suas obras e proposições, uma espécie de revisão dos conceitos que, há décadas (ou séculos), dominavam o ambiente artístico, como a glorificação do passado, temas espiritualmente superiores e/ou que, de algum modo, elevavam as tradições e os feitos franceses.  O vetor daquela sociedade artística - mais preocupada com temas da contemporaneidade como lazer (e prazer), cafés (e vida noturna) e homens e mulheres da sociedade; além da adoção de traços menos precisos, destaque à luz do dia (com pinturas feitas ao ar livre) e cores vivas -, que viria a ser identificada como impressionista, confrontava a própria essência do Salão e da elite econômica e cultural.  Apesar de as obras impressionistas não terem sido bem aceitas inicialmente, tanto no Salão (que as rejeitou), como na crítica e na sociedade consumidora, elas rapidamente revelaram valores técnicos, estéticos e éticos que transformariam, sem exagero, o cenário local e mundial.  Não deixa de ser impactante (e cruel), em tal sentido, a composição (e o resultado) da atual exposição em cartaz na Galeria Nacional. Apesar da apresentação de quantidade relevante de obras oriundas do Salão de 1874, muitas delas em maiores formatos do que as obras provenientes da Sociedade Anônima dos Artistas, o tempo fez muito bem aos impressionistas, mas parece ter reduzido as pinturas de Salão a um necessário momento evolutivo da história (sem desprezar a inegável técnica e beleza pictórica de algumas delas).  A comparação se mostra ainda mais cruel ao espectador que deixa a exposição e se dirige às salas opostas do mesmo corredor da Galeria Nacional, que abriga (nada mais, nada menos do que) a maravilhosa coleção permanente de obras impressionistas, representada, dentre outros (e outras), por Manet, Monet, Renoir, Cézanne, Degas, Pissaro, Sisley e Morisot.   A impressão que se dá, aliás, é de que, com exceção de poucas obras-primas impressionistas que se integraram à exposição Paris 1874, os realizadores preferiram mostrar obras não tão conhecidas, uma espécie de seleção reserva, para não humilhar os artistas do Salão. Mas não foi isso. O mote da exposição, o ano 1874, ditou o recorte, e, assim, se promoveu a comparação conforme produções de mesma época e para semelhantes finalidades.  De todo modo, os impactos são facilmente identificáveis: enquanto a importância dos impressionistas ainda se intensifica com o passar dos anos, os pintores daquele Salão de 1874 que resistiram ao tempo permanecem em salas pouco concorridas de alguns museus.  O relato pode, sem muito esforço, ser comparado à situação do futebol brasileiro e adaptado ao período que vai de 2021 a 2024.  Em 2021, a lei da SAF, de autoria do senador da república e presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, foi promulgada e o establishment a ignorou - e, dissimuladamente, a repudiou.  Forças reacionárias ainda tentaram desidratá-la, mas eventos como o investimento de Ronaldo Nazário, no Cruzeiro, de John Textor, no Botafogo e do City, no Bahia, anunciaram a sua irreversibilidade, de modo que, desde 2021, o sistema jurídico passou a propiciar o convívio de dois modelos: o clubismo, originado no século XIX; e o empresarial, plasmado na SAF (uma alternativa do século XXI).    Apenas três anos após o surgimento da lei da SAF (portanto, curto prazo para absorção de nova lei e de nova via de organização empresarial, e mais de 70 sociedades anônimas do futebol constituídas), o ambiente já demonstra uma transformação que, além de irreversível, talvez reduza ou apequene, no plano esportivo, times que, no passado ou no presente, foram ou são protagonistas.  Os resultados, até o momento, da edição 2024 da mais importante competição do planeta para sul-americanos, a Copa Libertadores, impressionam e reforçam a pertinência da comparação com a situação de 1874.  Duas SAFs bateram dois clubes brasileiros nas quartas de final e, na sequência, humilharam, em seus jogos de ida da fase semifinal, os respectivos adversários estrangeiros, que são, nada mais, nada menos, do que River Plate e Penarol, tradicionalíssimos clubes da Argentina e do Uruguai, principais rivais, em geral, dos brasileiros.  O enfrentamento não está concluído e pode, eventualmente, ser revertido. A despeito disso, as SAFs já começam a demonstrar força, planejamento, estrutura, recursos e consistência - inclusive as que não se propõem a ser protagonistas nacionais, mas relevantes localmente e competitivas, em plano maior.  Soa, pois, o alarme para os times que acreditam que, pelas suas glórias do passado e tamanho de suas torcidas, não deixarão de protagonizar o cenário do futebol (em especial para os que, apesar desses atributos, já são - ou estão - coadjuvantes).  Enfim, a arte, mais uma vez (e sempre), também por vias improváveis, revela os caminhos da humanidade (e do futebol).  _________ 1 A exposição foi apresentada, anteriormente, no Musée D'Orsay, em Paris.  2 As informações numéricas e cronológicas foram extraídas dos textos explicativos da exposição e de suas obras, bem como do catálogo: Paris 1874 - The Impressionist Moment, Dist: Yale University Press. 
A fenomenal obra épica Three Kingdoms1 narra os acontecimentos que levaram ao fim da Dinastia Han, cujos integrantes imperaram na China do ano 206 a.C. ao ano 220 d.C. Ao cabo do período, insurreições de diversas origens e naturezas abalaram o império que, "dividido há muito tempo, deve se reunir; reunido há muito tempo, deve se dividir". Chegara, aparentemente, o tempo de nova divisão, para posterior reunião. Em determinada batalha pela manutenção da Dinastia, um jovem guerreiro apoia, voluntariamente, um arrogante lorde e líder militar, e o ajuda a evitar iminente fracasso, diante de uma falange "messiânica". O apoio, que foi fundamental para o desfecho favorável ao lorde, não suavizou a sua arrogância, e o lorde, ao saber que o jovem não ostentava título de alta patente, não o reconheceu como salvador da batalha. Tempos depois, o mesmo lorde comandou um golpe para destronar o legítimo sucessor do império e para empossar, no lugar, o irmão mais novo do destronado, que provinha de uma relação extraconjugal do então Imperador (o conceito não é preciso, pois as relações do Imperador não eram consideradas incestuosas). O jovem guerreiro, convocado agora pelas forças de resistência para reverter o golpe, reclamou ao líder do movimento por tê-lo impedido, naquela oportunidade, de matar o lorde, que se convertera no traidor. E afirmou que o império estaria protegido, se o usurpador tivesse sido abatido quando a oportunidade se apresentou. O líder da resistência, então, respondeu: lide com o presente. No Brasil, o presente do futebol é a formação do sistema que tem, como núcleo, a SAF, criada pela lei 14.193, de 06 de agosto de 2021, de autoria do presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco. Mesmo os clubes que insistem em se manter no passado, sob a forma de associações civis, menos por convicção e mais por oportunismo (ou dificuldades políticas internas), não conseguem evitar, interna ou externamente, o debate. Não passar ao modelo de SAF é uma decisão tão relevante (e fundamental) como, ao contrário, decidir pela passagem. A aparente omissão significa, pois, uma ação negativa, com impactos que podem ser expressivos. Clubes tradicionais, que batalham há anos contra endividamentos crescentes, resultados insatisfatórios e, em alguns casos, contra o rebaixamento, viram, por outro lado, o ressurgimento (ou mesmo surgimento) de tradicionais ou novas forças, que já estão mudando o panorama do esporte no Brasil, dentre as quais o Botafogo, o Galo, o Cruzeiro e o Bahia. Como se repete neste espaço, já são mais de 70 SAF's no país e outras estão a caminho (inclusive algumas expressivas em relação ao tamanho da torcida). Não se teria iniciado a formação desse ambiente e, mais importante, ele não se desenvolverá, para se tornar, como se pretende, o maior mercado do futebol do planeta, sem a atuação do Estado, de um lado, como provedor de um arcabouço jurídico adequado e confiável, e, de outro, do Mercado, como provedor de capitais e financiador da empresa futebolística, atuante em ambiente adequadamente regulado. Nesse sentido, como a curta experiência já nos ensina, nada teria acontecido - apesar do passivo social e econômico que o futebol, historicamente, vem acumulando à conta da sociedade -, sem a participação do Estado, em seus papeis de legislador e regulador da atividade econômica do futebol. Não se trata, como muitas vezes também se repetiu neste espaço, de intervenção; ao contrário. O surgimento da lei da SAF e, na sequência, a publicação do Parecer de Orientação n. 41, de 21 de agosto de 2023, pela CVM, demonstram que a ocorrência de incentivos adequados pode contribuir para o desenvolvimento econômico e social da Nação, mesmo em setores que, injustificadamente, não fizeram ou fazem parte da agenda política prioritária. O mercado do futebol (ou do esporte, em geral) ainda é incipiente e pouco compreendido, no Brasil. Paradoxalmente, apesar da paixão clubística, ostenta uma certa antipatia, sobretudo no plano governamental, causada pelo antigo regime cartolarial - e seus injustificáveis benefícios -, que insiste em se agarrar no arcaico modelo associativo, como agente de organização e (sub)desenvolvimento empresarial.   Esse é o contexto do debate que ocorreu ontem, dia 22.10.24, em uma das mais prestigiosas universidades do planeta, a Georgetown University.   Sob organização do Brazilian Law Association, do Center on Transnational Business Law e da FGV, e com a presença do presidente da CVM e de representantes da SEC, os modelos brasileiros, tanto o antigo quanto o contemporâneo, foram expostos e debatidos, revelando que, com os direcionamentos e os aperfeiçoamentos que são propostos neste espaço, o país irá, de modo mais rápido do que se podia imaginar, atingir um nível de excelência legislativa e regulatória, sem precedente na história do mercado do futebol. _____ 1 Guanzhong, Luo: Foreign Languages Press, Beijing, China, 1995, p. 78.
O futebol não acabará, evidentemente. Mas passou e ainda passará por transformações que o levarão a um reenquadramento na sociedade. Coisas boas e ruins ficaram para trás; não voltarão, apesar de eventual saudosismo. Outras, também boas ou ruins, passaram a fazer parte do cotidiano.   Exemplos: A área popular, reservada aos torcedores que se integravam ao espetáculo, conhecida como geral; a arquibancada de concreto; e a hiper lotação em jogos decisivos, de times com grandes torcidas, restam apenas nas memórias de torcedores que, logo mais, por decurso de tempo, também não terão memórias. Aqueles hábitos, a bem da verdade, não fazem sentido nos dias de hoje. O desconforto, envolvendo o ato de participar de um evento esportivo, não tem sentido. Basta comparar um automóvel santana quantum (ou um monza), produzido nos anos 80/90, que foi símbolo de status, com um audi atual, mesmo de menor porte (portanto, que nem mesmo seja um carro considerado topo de linha). O hiato é intransponível. A mesma sensação, ou algo parecido, revela-se na comparação entre o antiquado estádio e a nova arena. O problema não é o conforto, mas a exclusão do torcedor comum, que escolhia o futebol como único (ou quase) único meio de lazer e de inserção social. Era lá, na geral ou na arquibancada, desconfortável para pobre e rico, que se integrava com a família (talvez em grande parte com membros do sexo masculino) e, em comunhão, extravasava. Faltou sensibilidade aos governantes para ditar normas que não impedissem o progresso, mas, ao mesmo tempo, impedissem, aí sim, a acentuação da exclusão e da desigualdade entre torcedores. Mais, ainda: a fidelização de torcedores abastados, atraídos pela transformação da experiência futebolística - propiciada pelos programas de sócio torcedor -, também criou níveis de preferencialistas que empurram para longe a chance de reintegração popular. Para parte relevante da população, portanto, a alegria de ir ao campo chegou, prematuramente, ao fim. A história, para ela, será contada a partir das telas de televisões espalhadas em bares, mercados e outros espaços públicos. Outra mania parece atentar contra a razoabilidade e o sentimento de orgulho e pertencimento: o uso da camisa do time de coração. Na esteira da proibição de torcidas rivais em estádios e arenas paulistas, que priva o torcedor de um dos mais lindos espetáculos da terra - o contraste de torcidas e os gritos de apoio e de provocação -, surge a mania, em alguns estabelecimentos, de proibir a entrada com camisas de futebol, exceto de times estrangeiros ou irrelevantes. É verdade que a razoabilidade não faz parte de todo ser humano, ao contrário, e, daí, advém a possibilidade de ocorrência de tensões pelo simples uso de uma camisa de time adversário, dentro ou fora de estádios, inclusive em ambientes neutros, como restaurantes e casas de show. Mas nada justifica, numa sociedade supostamente livre, a proibição de uso, como vem se espalhando por diversos locais da cidade de São Paulo. Recentemente, por exemplo, presenciei a contenção de um inofensivo adolescente, que levava sua namorada a um show de rock em importante (e cara) casa de espetáculo, que somente teve o acesso autorizado após outra pessoa emprestar-lhe um casaco para cobrir as cores do time. Não se trata, pois, de ambiente que exige certo código de vestimenta, mas que autoriza quase todos os estilos, eventualmente exuberantes, exceto camisas de futebol. Isso tudo me faz lembrar de uma conversa com importantíssimo ex-jogador, a respeito do impacto das mídias sociais e da extrema exposição de jogadores atuais. Em poucas palavras, ele disse que, no seu tempo (o saudosismo é inevitável), só se pensava em jogar bola. Entre partida e outra, o atleta jogava bola. Na folga, mais bola. E quando se encerrava a carreira profissional, o jogo de bola mantinha-se como referência e estilo de vida. Atualmente, ele completou, o aspirante pretende tornar-se jogador - e aproveitar as vantagens da posição -, e não jogar. O evento futebolístico, não raro, atrapalharia as campanhas publicitárias, as manifestações midiáticas, os romances e outras atividades pessoais. Claro que se abordavam, na conversa, os poucos escolhidos, que atingem o olimpo, e não o jogador cotidiano, que corre, em curta carreira, pela comida que colocará na mesa da família. Há, sem dúvida, excessos nessas proposições. Talvez um ponto de indignação com as distâncias salariais, entre gerações. Mesmo assim, também há uma inquietante verdade: o mundo mudou e, com as mudanças, o futebol, no Brasil, mantém-se no terceiro mundo, em relação à adoção de técnicas de organização da empresa futebolística e de campeonatos (ainda não se viabilizou a liga de clubes, organizada pelos clubes), mas flerta com o primeiro mundo na ligação com seus torcedores-consumidores e com as técnicas de propaganda e marketing. Enquanto isso, o torcedor comum fica fora do estádio (ou arena) e não pode vestir-se, em certas situações, com a camisa de seu clube; mas poderá ostentar, com orgulho ou complexo de vira-lata, a camisa do Real, do Barcelona, do PSG ou de outro apropriador das esperanças brasileiras (na posição de colonizador da contemporaneidade). Parece, enfim, que há muita coisa fora da ordem, no estranho mundo novo que habitamos.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Fair play financeiro indutor das boas práticas

Voltou à ordem do dia recentemente o debate sobre a adoção do Fair Play financeiro pelo futebol brasileiro, motivado dessa vez por manifestações da classe dirigente, em especial de Presidentes dos clubes e da SAF que ocupam as primeiras colocações no atual Campeonato brasileiro (Brasileirão 2024). Sejam por questões meramente esportivas, em razão de resultados e rendimento, como também sob aspecto essencialmente financeiro, notadamente por uma contratação de grande impacto feita por um clube com reconhecida dificuldade financeira, o fato é que o tema, ao menos para os cartolas que vimos se manifestar, novamente ganha corpo e desperta a intenção para que lhe seja dado tratamento com vistas à implementação. É verdade que o Fair Play financeiro é um instituto de fácil adesão, dificilmente alguém será contra sua adoção. Porém, simpático que é, passível de armadilhas, principalmente se a discussão não ocorrer de forma densa, criteriosa, sobretudo no interesse de todo o ecossistema e não casuisticamente no atendimento de um ou outro grupo envolvido. A questão por óbvio é complexa e exige de início o entendimento sobre as definições e os formatos que se pretende adotar, merecendo atenção basicamente o espírito que irá nortear sua aplicação no futebol brasileiro, os conceitos práticos que serão adotados e os mecanismos de controle, observando-se para tanto a realidade atual da indústria futebolística brasileira, com suas recentes evoluções e as antigas mazelas. Quando se fala do espírito a ser empregado para o Fair Play, quer se dizer qual será o viés a ser empreendido, isto é, tratando da maior competitividade por exemplo ou mais essencialmente da questão financeira e contratual, diga-se orçamento e o cumprimento pontual das obrigações sob pena de restrição no acesso ao mercado de transferências. É difícil encontrar uma modelagem que contemple ambos objetivos, o Fay Play não trata propriamente de um processo para tentar igualar os competidores, o viés financeiro é o aspecto de maior relevância para definições normativas, em um cenário que demandará cautela e profundidade na análise da atual estrutura dos agentes do mercado e as suas possibilidades e obrigações, visando construir um modelo seguro, justo e sustentável. Entre os desafios, a coexistência num mesmo ambiente de agremiações com diferentes características, já que operam no mesmo ecossistema os clubes associativos, as SAFs e também algumas organizações multiclubes, cada qual com suas especificidades: como por exemplo sujeitar uma associação civil que honra todos compromissos em dia e não tem obrigação legal de distribuir dividendos, tão só em reinvestir-se, ao teto de gastos? Como disciplinar as diferenças contábeis em transferências interclubes do mesmo grupo econômico sem ofensa aos princípios do Fair Play que vier a ser adotado? De que forma restringir movimentações no mercado para devedores, se de fato for considerado que qualquer dívida exigível e inadimplida é razão suficiente para sancionamento? Enfim, a abordagem é ampla, o economista César Grafietti, consultor e especialista sobre o tema, já propôs bons modelos para a CBF, dirigentes estatutários e executivos de futebol. Outro importante pilar da possibilidade de sucesso da pretendida adoção do Fair Play será a definição de meios e formas de controle do seu cumprimento se implementado, ou seja, a quem caberá a fiscalização e o possível sancionamento, e também a atuação dos próprios agentes diretos (os competidores), consideradas as suas idiossincrasias e a falta de coesão e tenacidade que sempre apresentam nas poucas vezes que se cotizam pretendendo construir qualquer processo em nome e em favor do seu próprio mercado. Obviamente, a atribuição fiscalizatória deverá caber a quem organiza, vale dizer, para o futebol brasileiro e sua realidade atual seria a CBF, e aqui já se identifica um entrave na medida em que com atuação notadamente política, dificilmente se disponibilizaria para intervir na qualidade de controladora, até um contra senso às suas fontes de receita. No mundo ideal, uma liga organizadora das competições teria, para além do interesse, a legitimidade necessária para liderar a função, o que no caso do atual futebol brasileiro exigiria a adaptação para a realidade de duas ligas, algo também sensível posto que cada qual conta com sua fonte de receitas próprias, bastante distintas entre si. Enfim, é claro que não é ou será fácil! A questão é sobre o tema avançar, especialmente que ele vislumbre e busque uma equação que traga equilíbrio ao ecossistema, que tenha seu fundamento no cumprimento das diversas obrigações de pagar sem que ocorram atrasos ou calotes, uma vez que a intenção deve ser a formatação de um mercado que opere financeiramente de modo sustentável e responsável, o que por si só fortalecerá o negócio trazendo-lhe credibilidade e, via de consequência, mais dinheiro e resultado econômico, tornando-o assim cada vez mais bem visto e desejado pelos investidores. É recomendável portanto que seja mirado como objetivo o controle do endividamento, a partir do qual poderá ser solidificado o modelo, naturalmente passível de revisões e ajustes tempos após implantado. O Fair Play financeiro do futebol, nesta toada, induzirá os clubes à adoção das boas práticas, fazendo valorizar o mercado, como já mencionado. Orçamentação, mapeamento dos riscos, integridade. Cumprimento rigoroso de todos compromissos, conformidade às normas e regulamentos. Adoção de novas políticas, incidência da agenda ESG à rotina dos clubes. É necessário o entendimento que a adoção do Fair Play financeiro poderá, entre outros benefícios, contribuir decididamente para a consolidação das boas práticas de gestão pelos competidores, algo que trará no tempo ótimos frutos para o novo mercado futebolístico brasileiro que está sendo desenhado.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024

SAF, Botafogo, São Paulo, Galo e Fluminense

Em um hipotético campeonato brasileiro com vinte sociedades anônimas do futebol, apenas uma será campeã e, na outra ponta, quatro cairão para a divisão inferior. Assim, a simples passagem de modelo clubístico ao de SAF não garante resultado ou título. São necessárias, ademais, soluções para seis perguntas: o que o time foi; o que é; o que pretende ser; como atingirá o propósito; com quem; e com quais recursos. Daí se extrai a seguinte proposição: SAF não é condição suficiente para o protagonismo no âmbito do futebol brasileiro contemporâneo. Mas esta proposição não pode ser isolada de outra, que lhe completa (em uma relação simbiótica complementar): apesar de não ser suficiente, a SAF passou a ser condição necessária. Isso também não quer dizer que todos os times, para que sejam viáveis, devam abandonar o clubismo. Alguns, não muitos, ainda resistirão, pois, em ambiente historicamente desigual, a redução da desigualdade não se alcança com passe de mágica - ou com o advento de uma lei. Decorre de processo, eventualmente estimulado, aí sim, por uma lei. De modo que a comodidade, oriunda do poder econômico-futebolístico, justifica (ou justificará) os exemplares inerciais.  Aliás, anos (ou décadas) atrás, em função da limitação das fontes de receitas, os hiatos entre grandes e pequenos times eram menos perceptíveis - talvez exceto pelo tamanho da torcida - e, por isso, viabilizavam a existência, em certo plano de igualdade, de clubes periféricos: Guarani, Ponte Preta, Portuguesa e Juventus, em São Paulo; Bangu e América, no Rio de Janeiro; dentre outros. Entre os chamados grandes, a situação gerava uma maior percepção de pertencimento a um seleto e inabalável grupo de elite, que se manteria em pedestal a despeito de eventuais (ou constantes) desmandos cartolariais - e de outras condutas inomináveis, que abalaram os alicerces de alguns desses times. Quando a Lei da SAF surgiu, em 2021, o cenário, historicamente romantizado - da mesma forma que uma certa elite intelectual insiste em romantizar a pobreza - dera lugar a um palco de dívidas e crises políticas, patrimoniais e financeiras. Surgia, então, uma nova e democrática alternativa, que não exigia o rompimento com o modelo formal existente, mas apontava para o futuro, com uma solução já para o presente. Não devia ser uma surpresa que os clubes integrantes da elite, ou, talvez, seus dirigentes e controladores, hesitassem - como alguns ainda hesitam -, logo no início, em mudar os rumos de suas histórias; assim como também não devia surpreender o fato de os clubes mais carentes em recursos ou em situação de crise aguda se aproveitarem da novidade para reconstruir suas trajetórias. Pois, em linha com o que vem sendo defendido nesta coluna há alguns anos, em especial a partir do surgimento da Lei da SAF, as forças do "novo" futebol brasileiro tendem a se expressar pelos times que tiveram (ou venham a ter) capacidade de atrair apoio intelectual, financeiro e relacional, e de empregar esse conjunto de coisas em prol de um projeto reabilitador, libertador e transformador. De modo simplista, e isolando algumas pouquíssimas exceções como o Palmeiras e, apesar da crise momentânea, o Flamengo, os demais clubes podem se dividir em dois grandes grupos (por motivos não necessariamente voluntários): um, que luta para afirmar que o passado pode ser maior do que o futuro (com as mesmas técnicas arcaicas daquele período glorioso); e, outro, que, sem romper ou negar o passado, a tradição e a relação com a torcida, projeta um caminho (ou, ao menos, um propósito) de novas tecnologias - e conquistas. A fase de quartas de finais da Libertadores, coincidentemente, ilustra bem a situação: dos enfrentamentos entre brasileiros, duas sociedades anônimas do futebol venceram duas associações sem fins econômicos, dentro e fora de campo. Poderia ter sido diferente? Sim, mas não foi. Os motivos de campo podem ser demonstrados com maior autoridade pelos jornalistas e comentaristas especializados; já os motivos exteriores se associam, em grande parte, às técnicas providenciadas pela Lei da SAF. O Botafogo, que trafegava com desenvoltura e persistência pela parte baixa da tabela (e pela série B), tornou-se, desde o segundo ano de modelagem empresarial, umas das forças do país, e conseguiu, mesmo com a quebra de expectativa do campeonato de 2023, manter a estrutura para voltar a brigar pelo título que deixou escapar - além de atingir uma posição histórica na mais importante competição do planeta, com exceção, ou não, da Champions League: a Libertadores da América. O Galo, por via diversa, passou a trilhar o caminho traçado por bem-sucedidos empresários locais sem, contudo, perder a essência esportiva e a identificação com a torcida. Mais: além de nova arena, introduziu técnicas de direito societário e instrumentos de mercado de capitais ao ambiente do futebol. Seu protagonismo, no cenário atual, é incontestável.   Ganhem ou não seus próximos confrontos - para o futebol brasileiro e para o país seria bom que ganhassem -, Botafogo e Galo expressam a ponta do iceberg que poderá se revelar, com a intensificação e afirmação do benfazejo ambiente introduzido pela Lei da SAF. Algo que deveria alertar barcos e navios que o circundam, para evitar catástrofes de natureza "titânica".