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Show do bilhão e a crônica de uma crise anunciada

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Atualizado em 6 de maio de 2025 14:49

O show do milhão é um programa de perguntas e respostas protagonizado, em sua origem, pelo apresentador Silvio Santos, e veiculado na emissora que ele criou e controlou por décadas: o SBT. O participante que respondesse corretamente às perguntas que eram propostas poderia ganhar a cifra título do programa.

Apesar da distribuição esporádica de dinheiro, o show explorava a dificuldade alheia e exalava crueldade; características, aliás, de outras atrações que compuseram as grades dominicais da televisão brasileira, como o "topa tudo por dinheiro". De todo modo, parecia à população que ali se convertia cidadãos comuns em milionários.

"A crônica de uma morte anunciada" é uma das obras de um dos maiores escritores da história, Gabriel García Márquez, premiado com o Nobel de Literatura em 1982, ano em que, por coincidência, o mais encantador time de futebol se formou, perdeu e decaiu: a seleção brasileira, de Telê Santana.

Narra-se, na obra, um evento de desfecho inevitável: a morte de determinado personagem, cuja sentença já fora anunciada por dois outros personagens, e se tornara de conhecimento dos moradores do povoado, que não a impediram ou preveniram a vítima.

A atual situação do futebol no Brasil pode ser explicada por diversos prismas, ângulos, perspectivas ou quaisquer outros parâmetros, desde que se tenha alguma, e não necessariamente muita, criatividade. E, assim, ela também pode ser compreendida pela câmera do show do milhão ou pela pluma mágico-realista do escritor colombiano.

Mais, até: pela fusão de conceitos ou de mundos tão distantes, ética, moral e ideologicamente, como os de Silvio Santos e de Gabriel García Márquez.

O ponto de partida é a safra de demonstrações financeiras dos exercícios de 2024 de alguns dos principais times brasileiros. E aí se revela o show de dívidas bilionárias (ou que encostam no bilhão). Alguns exemplos se destacam: Corinthians1, Cruzeiro2, São Paulo3, Vasco4 e Santos5, dentre outros.

Desde que as porteiras se abriram, com casos de clubes tradicionais que até hoje pagam o preço de erros que levaram a endividamentos extremos, outros clubes, conduzidos por dirigentes eleitos em ambientes políticos (sem freios internos, a despeito de normas estatutárias), adotaram o mesmo caminho, e passaram a colecionar problemas que demandarão muitos anos (eventualmente mais de década) para solucionamento.

Gostaram, enfim, do show do endividamento bilionário.  

Ao mesmo tempo, a sociedade, como um todo, parece inebriada com a situação e aceita, como algo normal, a acumulação de dívidas e contingências, por entidades sem fins econômicos - ou que nelas tiveram origem -, sem donos e sem entes responsabilizáveis.

Daí a inevitabilidade da socialização do problema. Sim, pois passivos de tais magnitudes costumam ser pagos com recursos de terceiros, por via (i) de aportes de capital, oriundos de credores ou de sócios (investidores), (ii) de financiamentos para equalização da crise, ou (iii) de redução forçada e parcelamento de dívidas, à conta de credores, em ambientes de negociações coletivas, como a recuperação judicial.

Ao contrário do que se narrou na obra de Gabriel García Márquez, o cenário não anuncia, por enquanto, uma ou algumas mortes, apesar de que, na história, certos times que tiveram relevância, desapareceram ou se tornaram zumbis associativos.

O cenário indica, porém, uma perigosa aceitação ou normalização de situações extremas, que abalam a capacidade operacional, organizacional e reputacional de instituições históricas, além da relação entre elas e seus torcedores.  

Esse estado de coisas reforça a tese que vem sendo sugerida neste espaço, consistente na necessidade de revisão do modelo de futebol, que passa pela concepção de políticas voltadas à formação (desde a infância até o fim da profissionalização), gestão, organização, investimento, tributação, afirmação e divulgação de um produto universal.

Não se trata mais de movimento prevencionista, pois a crise, aparentemente sistêmica, já se instalou; mas de um trabalho, inicialmente, de contenção e correção, a fim de evitar uma catástrofe, e, na sequência, de redirecionamento ou de direcionamento (pela ausência histórica de uma política de Estado) que viabilize a construção de ambiente saudável, sustentável, eficiente e contributivo.

O Estado foi leniente, ao longo de décadas, com o sistema, e o sistema, que deveria se autorregular e se resolver, sem a intervenção (legislativa) do Estado, o usou em benefício de poucos - e em detrimento de muitos.

É preciso dar um basta, antes que, mais uma vez, a sociedade pague a conta.

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