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Virtude e fortuna - a história da SAF e a revolução do futebol brasileiro

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Atualizado em 8 de outubro de 2025 12:31

A aprovação da lei da sociedade anônima do futebol (lei 14.193/21) e a adoção do modelo por mais de uma centena de clubes em apenas quatro anos marcam o início de uma verdadeira revolução na estrutura do futebol brasileiro.

Para compreender esse processo sob a ótica de Nicolau Maquiavel, é útil recorrer aos conceitos de fortuna e virtù expostos em O Príncipe. Em termos maquiavelianos, virtù refere-se às habilidades, à astúcia e à competência do governante (ou líder) para alcançar seus objetivos, enquanto fortuna diz respeito à sorte, ao acaso e às circunstâncias externas que escapam ao controle direto. Maquiavel argumenta que o sucesso político depende da conjugação desses dois fatores: um líder eficaz deve aproveitar a fortuna favorável com virtù, ajustando suas ações ao contexto para obter êxito.

A virtude, portanto, diz respeito às características pessoais do líder que se incumbe de realizar determinado empreendimento. E, nesse caso, por mais que o processo de construção da SAF tenha contado com diversas figuras importantíssimas, o líder originário e fundamental chama-se Rodrigo Monteiro de Castro.

Conheci Rodrigo em uma reunião de um grupo político do São Paulo Futebol Clube, quando eu ainda achava que valia minimamente a pena gastar tempo com política interna de clube. Naquele dia, sabendo tratar-se de um brilhante advogado de direito societário, abordei-o sobre a necessidade de modernização dos estatutos do nosso time do coração. A resposta de Rodrigo foi cortante: "Mudar os estatutos de um único clube é como despejar uma garrafa de um litro de água no Rio Tietê. Em poucos segundos, a água limpa vai se misturar com a água suja. Precisamos, na verdade, pensar em uma lei que incentive os clubes a adotar o modelo das companhias." Respondi: "Mas nós não somos parlamentares; como uma lei proposta por nós será aprovada?" Ele então me convidou a pensar no texto junto com ele - e me colocou na maior aventura de toda a minha vida. Eu, sempre cético; Rodrigo, sempre determinado.

Ali nasceu a ideia central da lei da SAF. A maior virtude de Rodrigo, enquanto líder da iniciativa, foi acreditar que a mudança tão necessária seria também possível - e persistir mesmo nos momentos em que tudo indicava que nada iria acontecer... como sempre dizia eu.

Meses depois, lançamos, em coautoria, o livro Futebol, Mercado e Estado (...), no qual estão os pontos fundamentais da ideia da SAF, além do seu projeto de lei original. No lançamento, muita gente nos prestigiou - mas a enorme maioria acreditava que aquilo não sairia do papel. Depois, com a participação de colegas brilhantes como Tácio Lacerda Gama, Juliana Bumachar, Marcelo Sacramone e Carlos Eduardo Ambiel, lançamos ainda outros dois livros sobre SAF.

Com o projeto de texto legal redigido e registrado, encontramos o deputado Otávio Leite, que se interessou em apresentar o PL à Câmara dos Deputados, em meados de 2015. O deputado também teve papel fundamental ao ter a coragem de propor um projeto que previa uma mudança potencialmente mal-recebida por dirigentes aferrados a seus postos e poderes - como de fato ocorreu.

Entre 2015, quando a primeira versão do texto foi escrita, e sua aprovação, em 2021, houve raros dias em que Rodrigo Monteiro de Castro não realizou ao menos uma ação efetiva pela aprovação da SAF. Foram inúmeros encontros com jornalistas, dirigentes e colegas operadores do Direito, além de viagens a Brasília para discutir com parlamentares e demonstrar como o futebol brasileiro precisava de uma mudança profunda e urgente. Quando o PL da SAF foi à votação, "SAF" já não era apenas mais uma sigla estranha para a opinião pública e os parlamentares. Graças a todos esses encontros, ao tempo e aos recursos investidos - dos quais tive a sorte de participar na maioria - recebemos críticas e sugestões que foram acolhidas e realmente melhoraram o texto.

Rodrigo Monteiro de Castro foi o abnegado que mais fez - e segue fazendo - pelo futebol brasileiro entre aqueles que nunca chutaram uma bola, treinaram um time ou dirigiram uma entidade. Ao lado de sua virtude, veio a fortuna que, em vários momentos, agraciou a ideia da SAF. O destino, de fato, conspirou pela revolução do futebol brasileiro.

A maior fortuna foi termos encontrado, no senador Rodrigo Pacheco, o entendimento e o senso de urgência sobre o projeto da SAF. Primeiro, o senador foi o autor do texto do PL que efetivamente se tornou a lei da SAF. Depois, ao tornar-se presidente do Senado, pautou a votação do projeto e, graças à sua proverbial capacidade de diálogo e articulação, aprovou-o por unanimidade.

Com o então presidente do Senado, a SAF encontrou, entre parlamentares, o apoio essencial de que necessitava. Durante a tramitação da lei no Congresso Nacional, as atuações dos relatores - no Senado, Carlos Portinho, e na Câmara, Fred Costa - foram decisivas. A fortuna também bafejou o futebol brasileiro quando, no momento da votação do PL no Senado, estava presente o senador Romário, que fez um pronunciamento detalhado e preciso sobre o tema, com a autoridade de quem foi um dos maiores jogadores de todos os tempos.

Na sanção presidencial, o veto ao regime tributário especial proposto pela então presidência da República poderia ter colocado tudo a perder, criando uma carga tributária que desestimularia a adoção do modelo. E, novamente, o futebol brasileiro teve sorte: o senador Carlos Portinho liderou o movimento que derrubou o veto e tornou a SAF economicamente viável.

O Cruzeiro não foi a primeira SAF, mas a atenção conferida ao seu processo de constituição - seja por se tratar de um clube gigante do futebol brasileiro, seja pela presença de outro gênio dos campos, Ronaldo, como investidor - atraiu ainda mais a atenção da opinião pública em favor do movimento. O Cruzeiro vinha de um período de enormes dificuldades e, menos de quatro anos após a adoção da SAF, voltou a liderar competições e a reassumir o protagonismo que nunca deveria ter perdido.

E tantos outros clubes, que vinham enfrentando enormes dificuldades, se reestruturaram a partir da SAF. Quem, em 2022, por exemplo, afirmaria, numa conversa com amigos, que em 2024 o Botafogo SAF seria campeão brasileiro e da Taça Libertadores no mesmo ano?

Em 30/7/25, neste mesmo espaço, Rodrigo Monteiro de Castro publicou um estudo do IBESAF, por ele liderado (incansável que é), apontando que já existem 117 SAFs no Brasil. Muitas indicaram o caminho da recuperação para diversos clubes. Outras recolocaram grandes clubes - como Botafogo, Cruzeiro e Bahia - de volta ao cenário das grandes competições. Outros, como o Coritiba, enfrentaram dificuldades no início, mas estão entrando nos trilhos, enquanto o Mirassol reverte os prognósticos com sua ótima campanha na Série A.

E o Vasco? O Vasco e suas dificuldades servem para mostrar que a SAF não é uma "varinha mágica" e que o processo de constituição deve contar com estudos profundos na escolha dos parceiros e na celebração dos contratos - mas mesmo isso é uma lição que serve para aprimorar os modelos.

O futebol brasileiro, que tanto encantou o mundo com seus craques geniais e suas conquistas, encontrou em virtù e fortuna o caminho pavimentado para uma revolução que já está em curso e poderá recolocá-lo no lugar de destaque no esporte mais popular do planeta. Na linda Florença, que tanto aprecia a arte e a beleza, Nicolau Maquiavel sorri satisfeito.