Negócios com partes relacionadas: Da necessidade de enfrentamento do tema no âmbito da SAF (e dos clubes de futebol) - Parte II
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Atualizado em 16 de setembro de 2025 15:46
Desde a inauguração desta coluna, há quase dez anos, poucos temas geraram tanto interesse como o tema da semana passada, que é mais uma vez aqui abordado.
O interesse, porém, conforme mensagens recebidas pelo autor, revela, como tem acontecido em debates sobre SAF, uma conotação negativa (ou preconceituosa).
Em resumo, aponta-se, com frequência, que negócio entre partes relacionadas do controlador da SAF, e a própria SAF, sinaliza mais uma (suposta) anomalia do sistema, em desfavor do clube, geralmente sócio minoritário da SAF, que não se aproveita de tal negócio.
Ou seja: assume-se que além da apropriação de riqueza (ou de patrimônio) por parte de terceiro, que, de alguma forma, beneficia, direta ou indiretamente, o controlador da SAF, o clube ainda se prejudica por não participar do resultado útil negociado.
Há nessa visão um equívoco de origem - e, ao mesmo tempo, uma inclinação pessimista ou tendenciosa em relação à Lei da SAF e à própria SAF.
O fenômeno - ou a prática - de negócios com partes relacionadas não foi inaugurado com o advento da mencionada lei e, muito menos, no âmbito de qualquer SAF. Ao contrário.
Parte relacionada, como se apontou no texto publicado semana passada, é a "pessoa física ou jurídica que está relacionada com determinada entidade, seja uma sociedade empresária, uma associação sem fins econômicos ou de outra natureza (ou seja, em princípio, uma SAF ou um clube)"; e negócio com parte relacionada consiste na "transferência de recursos, serviços ou obrigações entre uma entidade que reporta a informação e uma parte relacionada, independentemente de ser cobrado um preço em contrapartida".
Assumindo, portanto, que tanto o clube sem fins econômicos como a SAF são, para efeitos de enquadramento, as entidades reportantes, ou melhor, as entidades geradoras de oportunidades e contratantes ou fornecedoras de produtos ou serviços que podem ter, como contraparte, uma parte relacionada, é dentro do clube, de modo geral, que o ambiente para desvios de conduta se revela mais fértil pela ausência de legislação repressiva, pela inexistência de normas autorregulatórias e, do ponto de vista prático, pela ineficácia dos instrumentos estatutários (quando existentes).
Clubes fazem parte da tecitura social desde o século retrasado; a introdução da SAF no sistema - com uma reforçada estrutura de governação - ainda não completou cinco anos. E negócios da natureza aqui estudada são parte do cotidiano clubístico desde a fundação do modelo.
Não é incomum, aliás, que presidentes estatutários de clubes sejam submetidos, após o término de seus mandatos, a procedimentos disciplinares, que culminam em algum tipo de sanção, invariavelmente associada a eventos de gestão temerária e condutas afins; mas, ao que se sabe, inexistem acusações, julgamentos e condenações pelos atos capturados pelo conceito de negócio com parte relacionada.
Lembre-se, ademais, que, no âmbito da associação sem fins econômicos, que não tem um dono e o poder de mando e de alocação de recursos é imputado, por um processo político, a um associado (ou a pequeno grupo de associados), que o exerce sem contrapartida financeira ou risco patrimonial, o incentivo para extração de valores é incomparavelmente maior do que o incentivo existente no âmbito da SAF.
Considerando uma hipotética SAF cujo capital seja distribuído entre investidor, com 90%, e clube, com 10%, para cada negócio com parte relacionada realizado sem a devida justificativa e a necessária justa contrapartida, o investidor se beneficia, em tese, de apenas 10% do todo, pois 90%, se convertidos em lucro, seriam destinados a ele.
Quando a situação se opera dentro do clube, para cada real malversado, em negociações indevidamente verificadas pelos sistemas de controle, a totalidade da malversação beneficiará algum terceiro, consistente em uma parte relacionada, em desfavor justamente do clube, que é prejudicado pelo todo (e não pela proporcionalidade).
Mais: a SAF tem objetivo específico, qual seja, o futebol, enquanto a associação sem fins econômicos, na maioria dos casos, além de uma série de outros propósitos, como o desenvolvimento de modalidades esportivas amadoras, também se dedica à organização de eventos sociais, que podem ser utilizados, todos ou alguns deles, para finalidades indesejadas.
A crise da maioria dos clubes, ainda mais injustificável, em determinadas situações, pelo tamanho de suas torcidas e de suas receitas, invoca um problema que antecede a Lei da SAF e a SAF, que são, estas, ao mesmo tempo, (possível) solução e vítimas tardias do associativismo corrosivo.
No plano da SAF, os dilemas emergem e podem ser enfrentados, sob diversas óticas, como a contratual ou a regulatória, e os eventuais infratores, mesmo com base no arcabouço jurídico existente, sujeitam-se a uma estrutura de responsabilização prevista na legislação societárias.
Eis, pois, a diferença de perspectiva: com a SAF, vislumbram-se caminhos para reforçamento da higidez sistêmica, ao contrário do secular e hermético associativismo, que é dotado, não por acaso, de instrumentos de autoproteção e de proteção de indivíduos, em detrimento da coletividade.

