Negócios com times do mesmo grupo econômico: um desafio para a FIFA
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Atualizado em 2 de setembro de 2025 15:29
A Lei da SAF (lei 14.193/2021) está transformando o modelo de propriedade do futebol no Brasil. Antes dela, o proprietário do futebol era, em quase todos os casos, um clube, que é, juridicamente, uma associação civil sem fins econômicos. No nível do clube, não existe um dono, mas diversos donos, que adquirem títulos associativos e, com eles, o direito de votar. Cada título confere direito a um voto. Associados milionários, ricos, de classes média ou baixa se equiparam, em tese, em peso, importância e influência.
Na prática, porém, sobressaem-se as pessoas, independentemente de suas condições financeiras, ou os grupos de pessoas, que compreendem o funcionamento político da associação e arregimentam votos em torno de uma liderança ou uma chapa. Mais: que utilizam o processo eletivo, direto ou indireto, conforme o caso, para dominar a instituição e, em última análise, definir a alocação de seu patrimônio (logo, de seus recursos disponíveis e futuros).
O sistema que norteia o associativismo contempla a entrega do todo a uma ou poucas pessoas, sem contrapartidas econômicas e, pior, sem freios eficientes para impedir desmandos e outras coisas mais. As falhas sistêmicas mostraram-se muito mais imponentes do que suas eventuais virtudes, e contribuíram para a acumulação de dívidas e para o sucateamento da indústria do futebol.
Após décadas de monopólio do associativismo como forma de organização da atividade e após tentativas malsucedidas, contidas nas Leis Zico e Pelé (Leis nº 8.672/1993 e 9.615/1998, respectivamente), operou-se, no Brasil, a iniciação de um processo de redefinição do modelo de propriedade, viabilizador do acesso a capitais, por intermédio da sociedade anônima do futebol (SAF).
Essa é, aliás, uma das características da sociedade anônima, tipo societário do qual a SAF (como subtipo) faz parte: a sujeição a um chassi regulatório que a habilita a acessar recursos para financiar suas atividades. Desde o advento da Lei da SAF já se constituíram, no país, 117 exemplares, com as mais distintas características ou finalidades, que acessaram investidores com distintos perfis.
Um modelo de negócios consiste na integração de uma SAF, que por definição é uma companhia constituída no Brasil e sujeita às leis brasileiras, a um grupo de outros times (ou sociedades), de origem local ou internacional.
O caso mais emblemático é o do Bahia, que se integrou ao poderosíssimo Grupo City e, desde então, apesar da pouca atenção midiática, vem, ano após ano, se afirmando como uma expressiva força nacional.
O Botafogo é outro exemplo. A Eagle, companhia controladora da SAF Botafogo, controlava ou participava de outras sociedades, sediadas em outros países, que, localmente, comandavam times com maior ou menor tradição.
Sem levar em conta a conceituação brasileira de grupo de sociedades, até porque a situação envolve múltiplas jurisdições, a estrutura de capital e os propósitos empresariais, os dois casos são muito distintos. Grupo City e Eagle se tocaram, se é que se tocaram, apenas na perspectiva de comandar times espalhados por diferentes países.
Mesmo com diferenças, manejos intragrupo podem ocorrer no interesse do controlador e, consequentemente, em desfavor de um dos integrantes do grupo. Essa situação não implica, necessariamente, uma ilicitude. Ao contrário: a Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/1976) admite, nos termos nela estabelecidos, a constituição de grupo, por convenção, e a submissão de interesses das controladas à sociedade de comando.
Mas, no plano do futebol, sobretudo de estruturas internacionalizadas, além de o interesse individual, em tese, não convergir com o do comandante - ou seja, com a perspectiva grupal -, eventuais decisões podem causar danos imediatos e irreversíveis, como, eventualmente, o esvaimento da esperança de título. Por exemplo, com a transferência de jogador fundamental para outro time do grupo em momento crucial da temporada.
Por outro lado, a própria perspectiva de título talvez advenha, exclusivamente, da atuação e dos investimentos do comandante, emprestando-lhe certa legitimidade para arbitrar sobre a decisão mais adequada, esportiva ou economicamente. Tanto no Bahia como no Botafogo, as novas projeções de competividade, em relação ao primeiro, e os títulos conquistados, ao segundo, seriam apenas sonhos (ou devaneios) sem a Lei da SAF e as estruturas societárias dela derivadas.
Esses cenários revelam que não há solução óbvia ou única para a problemática. Cada caso é um caso e envolve, inevitavelmente, características singulares. Mas já há, sem dúvida, no Brasil e no exterior, um desafio que pode se agigantar.
O desafio deve ser analisado sob três perspectivas distintas: contratual, legislativa ou (auto)regulatória.
No âmbito contratual, o receptor de um investimento pode impor restrições à atuação do investidor, condicionando a imposição à consumação do negócio. Em outras palavras, determinando que, sem as imposições, não seguirá com as negociações. Essa posição será eficaz se (i) o clube tiver condição de prescindir do investimento, em caso de recusa, (ii) o investidor tiver escolhido aquele time para compor seu grupo e (iii) não houver alternativa de investimento em outro time.
Se houvesse, porém, uma norma estatal de natureza intervencionista, que impedisse ou restringisse certos negócios, apesar da proteção em abstrato do clube investido e do afastamento do custo e do desgaste da negociação, jamais se abrangeriam todas as situações e, pior, o resultado implicaria o afugentamento de investimentos relevantes, como os do Grupo City.
O tema pode, ainda, ser avaliado sob o ângulo regulatório, aí sim direcionado a soluções sistêmicas, supraestatais e, na medida do possível, orientadoras de condutas dos agentes regulados.
Nesse plano, parece-me que somente a FIFA tem autoridade - e competência regulatória - para arquitetar um modelo de alcance e eficácia globais.