A Argentina, o Brasil e o poder econômico europeu
quarta-feira, 2 de julho de 2025
Atualizado em 1 de julho de 2025 14:28
Não mencionarei o nome da criança que me fez refletir sobre alguns conceitos durante a final da Copa do Mundo de 2022, para poupá-la. Ela não escondia a preferência pela França; eu pendia para a Argentina, por um motivo extrafutebolístico: o suposto vínculo regional.
E foi com essa suposição que provoquei a criança a celebrar certo gol da seleção argentina, por ser oriunda de país sul-americano, inferiorizado pela incontornável e eterna convicção colonialista europeia, e por outros motivos mais, os quais pareciam um blábláblá sem sentido aos ouvidos dela.
Ao cabo do meu inoportuno sermão, proferido enquanto o jogo seguia em ritmo incomum para uma final de copa do mundo (assemelhando-se, em certos momentos, a uma pelada varzeana, pela irresponsabilidade tática e pela prevalência da vontade sobre a estratégia), ela, com os olhos na tela e sem se dirigir a mim, disse: "os franceses são pretos como os brasileiros e jogam como os brasileiros. Os argentinos se acham europeus e desprezam o Brasil. Você devia torcer para a França".
A construção infantil, realizada sem malícia e influenciada pelos excessos que o ambiente futebolístico tolera (ou tolerava, como o tratamento preconceituoso dispensado com frequência a jogadores brasileiros), apresentava aparentes contradições, que não importam, neste momento.
Aquele diálogo, que estava esquecido (ou armazenado) até a presente copa do mundo de clubes, foi reavivado pela exposição das diferenças econômicas e qualitativas entre times europeus e sul-americanos - e suas motivações.
Mais: também pela percepção de que as estruturas de poder no Brasil e na Argentina, apesar de suas diferenças, abraçaram-se para preservar sistemas futebolísticos arcaicos e dominados por interesses antinacionais e patrimonialistas, enquanto ambos os Estados se dobraram a tais interesses (isso quando não participaram, diretamente ou por meio de seus agentes, da apropriação das perspectivas - e do futuro, que vem a ser o presente - do futebol).
Consequentemente, além de terem oferecido, como se fossem colônias, os elementos (e os talentos) para que times europeus se equipassem, foram incapazes de desprender-se de suas estruturas de privilégio e adotar modelos que competissem num ambiente cada vez mais competitivo e ao mesmo tempo oligopolista.
A situação argentina é mais grave do que a brasileira - apesar de sua seleção ser a atual campeã do mundo - como demonstra o fracasso de seus principais times. E como vem demonstrando, há anos, pela preponderância brasileira na Copa Libertadores.
Lá se trava, aliás, uma guerra entre o atual Presidente do país e o presidente da AFA, associação que comanda o esporte, pela liberdade de definição do modelo jurídico de propriedade do futebol.
Enquanto o primeiro tenta romper com o monopólio (ou ditadura) do associativismo, e assim viabilizar o acesso de times a capitais, o segundo o defende com todas as forças, inibindo, de maneira inversa, o ingresso de recursos que poderiam financiar a retomada do protagonismo ou do co-protagonismo regional e, quem sabe, mundial.
O êxito de Palmeiras e Fluminense - por enquanto, especialmente do Fluminense, que passou para as quartas após derrubar um poderoso clube europeu -, revela a um só tempo as oportunidades que são ignoradas, há anos, pelos respectivos poderes públicos, de reformular os sistemas jurídicos para afirmação da atividade futebolística, e a viabilidade de criação, no hemisfério sul, precisamente na América do Sul - continente reduzido a exportador de jogadores -, de ambientes ou mercados comparáveis ou superiores esportiva e economicamente aos europeus.
O mesmo êxito, e sobretudo se ainda se intensificar com a possível passagem de um ou dos dois times brasileiros às fases seguintes e finais, não pode turvar a visão geral em relação à realidade: ao fim da copa, ambos voltarão ao Brasil com receitas não recorrentes, que ajudarão no direcionamento dos objetivos imediatos (e eventualmente mediatos), mas continuarão a atuar em um campeonato cujos jogadores saem muito cedo para os mercados europeus e retornam ao final de suas carreiras, para suprir lacunas deixadas pela falta de acesso a recursos, falhas no modelo de propriedade e fragilidades das técnicas de governação.
Ainda pior na Argentina, cujo status quo demoniza as formas jurídicas e econômicas que a transformaram, em conjunto com o Brasil, de modo geral, em um país periférico.
A copa do mundo de clubes deveria servir, enfim, para além da alegria das torcidas do tricolor carioca e do palmeiras, para que os dirigentes do Brasil e da Argentina acordassem para as riquezas sobre as quais estão sentados, ao invés contemplarem o horizonte (ou a Europa) de binóculos.