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O Peru, o Brasil, a gastronomia e o futebol

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Atualizado em 24 de junho de 2025 10:33

Paira mesmo entre gastrônomos o dogma de que o Brasil, com destaque para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, é um centro gastronômico mundial, dotado de restaurantes especiais, criatividade, produtos e tradição. Em termos midiáticos, a dogmática não se sustenta.

Duas referências confirmam a proposição.

Desde que iniciou sua aventura pelas mencionadas cidades, o secular Guia Michelin1 ainda não encontrou um restaurante que merecesse as cobiçadas três estrelas, que indicam a excepcionalidade do local, merecedor de uma viagem por si, independentemente de qualquer outra atração.

Ademais, na edição de 20252, apenas três estabelecimentos em São Paulo e outros dois no Rio de Janeiro receberam duas estrelas, que reconhecem a excelência e o merecimento de um desvio de rota.

A lista do 50 Best3, uma publicação digital que ajuda a democratizar a informação sobre restaurantes, divulgada no dia 19.6.20254, elegeu 4 restaurantes latino-americanos entre os 10 melhores do planeta; nenhum brasileiro. Dentre eles, dois peruanos, sendo um deles considerado o melhor do mundo. O único brasileiro entre os 50 melhores ocupa a 27ª posição. Aliás, outro peruano, que não consta da lista atual, já havia alcançado o topo, em 2023. Jamais um restaurante brasileiro foi reconhecido como o melhor. 

Quem acompanha a cena peruana costuma reconhecer os atributos que contribuíram para formar a convicção (ou a impressão) de que, nesse país de aproximadamente 35 milhões de habitantes, acontece algo diferente: uma geração talentosa e trabalhadora, heterogenia racial, produtos locais e peculiares, pesquisas e propaganda, muita propaganda.

A ênfase na propaganda não diminui a qualidade e a importância da gastronomia peruana, mas reforça a eficiência organizacional do setor que compete regional e mundialmente com outros países, pelo consumidor internacional.

Foi assim, com a reunião de todos aqueles atributos, que o país vizinho se tornou uma referência da culinária e um destino de comensais oriundos de diversas localidades do planeta.

A Copa do Mundo de Clubes, realizada nos Estados Unidos da América, país que desde os anos 1970 tenta, sem êxito, protagonizar e dominar o esporte mais praticado no mundo, causou certa comoção no público brasileiro e na imprensa brasileira, pelos resultados positivos inicialmente obtidos pelos times nacionais, em tese (e na prática) menos estrelados e competitivos do que os europeus.

O novo formato de copa oferece uma experiência diferente, consistente na reunião de diversos times regionais, que não formam uma federação ou um grupamento com fins comuns, mas que, pelas origens, acabam sendo integrados para finalidades comparativas - e de medição de força. Em tal sentido, apesar de se tratar de mero exercício de futurologia, John Textor, o controlador do Botafogo, um dos times brasileiros participantes, afirmou que, em sua opinião, um representante da América do Sul fará a final da Copa.

Talvez. Mesmo que a profecia não se realize, o momento deveria chamar atenção dos governantes e dos dirigentes brasileiros.

Ao contrário da indústria gastronômica - e da cena peruana -, o futebol em geral e especialmente o futebol brasileiro estão presentes direta ou indiretamente na vida de parte relevante da população mundial: são aproximadamente 3,5 bilhões de torcedores5 que os acompanham sem necessidade de esforço específico por parte das autoridades ou de dirigentes futebolísticos.

Nesse ambiente, a FIFA indica que, em 20246, o país com maior número de transferências foi o Brasil, com 2.350 jogadores (o segundo colocado foi a Argentina, com 1.217), e os valores envolvendo jogadores brasileiros também ficaram no topo, com a marca de USD 1,9 bilhão, seguidos pelos franceses, que atingiram USD 926,9 milhões.

Mesmo que um torcedor do Laos ou de Moçambique não acompanhe o futebol no Brasil, ou que um brasileiro não jogue em seu time local, se ele acompanhar o futebol europeu, o que é intuitivo, deverá se deparar, no time de preferência ou em seu rival, com brasileiros.

Apesar disso tudo, o Brasil, nos últimos anos, passou por um terrível processo de deterioração de imagem - e de marca -, além de uma evolução de receitas, de modo geral, em ritmo inferior à dos times europeus, que se tornaram referências e destinos de jogadores de países de outros continentes. O complexo de vira-lata atingiu patamar de certeza e se tornou uma verdade, apesar da inverdade.

Nenhum clube sul-americano (incluindo-se, obviamente, brasileiro), mesmo que venha a avançar e, eventualmente, ganhar a Copa do Mundo, tem orçamento comparável aos orçamentos dos pares da Europa. A maior receita de um europeu está muito distante da maior de um sul-americano, bem como a diferença da segunda receita de cada região é enorme, e assim sucessivamente.

Apesar disso, no que se refere ao Brasil, alguns movimentos iniciais e não conectados, como a lei da SAF e a lei do mandante, começaram a reanimar o sistema (que ainda está longe de atingir um nível aceitável de tamanho e importância), em função da qualidade de jogadores produzidos localmente, da tradição de seus clubes e do tamanho da torcida local - isso sem contar as possibilidades (ou necessidades) de internalização e a conquista de parte do consumidor mundial.

Ao contrário do enorme esforço peruano para criar uma indústria gastronômica e um fluxo internacional de turistas por conta de uma atividade restritiva (e de elite), o Brasil domina as técnicas do mais popular esporte do planeta, que acessa bilhões de aparelhos (celulares, televisões etc.) e de pessoas, e poderia ser um de seus softpowers.

As perspectivas grandiloquentes não aguçaram, até agora, o interesse de qualquer Governo brasileiro, que não reconheceu - e não reconhece - a importância do futebol para o país e sua gente, mais necessitada. Uma pena, pois, enquanto a inércia governamental (ou estatal) prevalece, outros países avançam e dominam posições que deveriam ser brasileiras - e, com isso, se apropriam de ativos e de receitas que também deveriam contribuir para o desenvolvimento da Nação.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.