Tite e o direito de não trabalhar
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Atualizado em 29 de abril de 2025 13:57
Tite foi elogiado pela coragem de reconhecer que não tinha condições psicológicas para aceitar um desafio ao mesmo tempo grandioso e complexo, proposto pelo time que o projetou ao panteão dos treinadores e à seleção brasileira. Ele podia ter apresentado outra justificativa, mas preferiu revelar sua intimidade, ou melhor, sua falibilidade - característica, aliás, inerente a ser humano.
Como também caracteriza a raça humana a capacidade de superação, sempre enaltecida para glorificação de personagens. Acontece com frequência em transmissões de grandes eventos, como os jogos olímpicos, para enfatizar, por exemplo, as dificuldades de esportistas humildes que atingem o pódio.
No caso de Tite, a superação será de outra ordem, pois o obstáculo, desta vez, não é material. Mas o final do roteiro já se pode, com algum nível de certeza, antecipar: o retorno em alguns meses à direção de time de primeira linha, mais um título e a reverência. Um (quase) conto de fadas, ou melhor, de futebol.
Mesmo que, hipoteticamente, o final não seja tão feliz, e a sua questão pessoal se aprofunde e o afaste por mais tempo dos gramados - algo que, imagino, ninguém deseja; ao contrário -, ainda assim ele terá, por seus méritos, todos os meios para encontrar um desfecho adequado ao seu desafio.
Poucos brasileiros têm direito ao que ele tem: (direito) de, em algum momento da carreira profissional, optar por não trabalhar, provisória ou definitivamente.
Mais do que isso: a maioria enfrenta algum tipo de obstáculo ou de drama, digno de ser retratado no Fantástico, para sustentar casa, família e eventualmente amigos. No âmbito do futebol acontece o mesmo, desde a infância até o final do profissionalismo. Em quase todos os casos, não há opção, além de seguir.
Importante: não se pretende, aqui, promover uma crítica a Tite; ele é privilegiado pelo seu próprio suor e pode (e deve) aproveitar sua situação, em seu interesse. A provocação tem outro propósito: a fragilidade do sistema esportivo, construído sobre a irrealidade da superação permanente.
Semana passada ouvi do presidente de um clube brasileiro, muito bem-organizado - cujo nome se mantém preservado porque a conversa ocorreu em ambiente privado -, que o sistema em geral esquece que jogadores são pessoas como quaisquer outras, formadas por histórias próprias, que carregam seus problemas, seus fantasmas, seus desejos e suas obstinações. Nada mais óbvio e, ao mesmo tempo, mais ignorado.
Na mesma oportunidade ele narrou alguns episódios de saúde, inclusive de natureza psicológica, que afetam seus atletas, parentes de atletas e, até, animais de estimação, que repercutem em atuações e, com frequência, no ambiente clubístico; situações que, perante torcedores, são invisíveis pois apenas importam o resultado e as imagens idealizadas.
Aí surge, então, um dilema: como internalizar problemas pessoais em atividades que, por definição, são competitivas e absorvem a teoria do mais forte?
Há casos, muitos, de apostas na recuperação física ou psicológica de jogador. Alisson, do São Paulo, atualmente titular absoluto, relatou, após a conquista do título da Copa do Brasil, que vivera um drama pessoal e que chegara a pensar em parar de jogar (e se suicidar). Calleri, jogador do mesmo time, também externou, em certos momentos, tristeza ou depressão, por eventos alheios ao campo.
Dezenas ou centenas de narrativas parecidas poderiam ser listadas, algumas já conhecidas, outras a se revelar.
Situação como a de Tite, com a qual a sociedade passou a conviver e aceitar, em diversas profissões, também acontece aos montes no futebol, mas o protagonista cai no esquecimento e é devolvido para o ambiente de onde veio, geralmente sem formação e preparo para se recuperar e recomeçar a vida profissional, esportiva ou em outra função. E assim ele se perde, com frequência, em vícios ou na tristeza, aprofundada pelo esquecimento.
A imagem é triste. Dramática. Desumana, talvez.
Menos do que uma certa reverência à atitude de Tite, que não tem nada de heroica, a sua recusa ao trabalho deveria servir, aí sim, para uma profunda reflexão público-privada a respeito da formação e educação de atletas e da criação de políticas voltadas à inserção pré e pós-carreira.