A CBF, os clubes, a liga de clubes e o Brasil
quarta-feira, 21 de maio de 2025
Atualizado em 20 de maio de 2025 16:47
A CBF - Confederação Brasileira de Futebol é uma associação civil. Associações civis são regidas pelo Código Civil e se constituem pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos1. A CBF foi constituída há décadas, por pessoas físicas ou jurídicas2, que podem ou não estar presentes. Surge, então, a dúvida: quem são, atualmente, os associados formais da CBF?
O tema da titularidade, ou da ausência dela, foi resolvido pelo sistema estatutário de alocação de poder entre federações e clubes. Federações votam em todas as assembleias; clubes, em algumas. Nas assembleias em que os clubes votam, o colégio eleitoral é submetido a votos plurais desiguais, com atribuição de peso 3 às federações, peso 2 aos clubes que estiverem na série A e peso 1 (portanto, sem privilégio de fator de multiplicação) aos clubes que estiverem na série B3.
Ou seja, as 27 federações juntas computam 81 votos, enquanto os 40 clubes de ambas as séries somam 60 votos (40 da série A e 20 da série B). Dessa forma, toda federação vale mais do que qualquer clube e, entre as federações, todas têm o mesmo peso. A federação de São Paulo ou do Rio de Janeiro, cujos principais clubes reúnem milhões de torcedores - e dezenas de títulos nacionais -, valem o mesmo que federações sem tradição e sem clubes representativos (que jamais participaram da série A ou, mesmo, da B).
Nesse sistema, federações e clubes que reúnem milhões ou dezenas de milhões de torcedores são arrastados pelos interesses federativos e, na prática, sujeitam-se a interesses políticos dissociados dos propósitos que justificaram - e justificam - a própria existência da associação (pois as próprias regiões sem tradição não aparentam reagir ao distanciamento estrutural esportivo).
A política ditou, nos últimos anos - ou pelo menos nas últimas duas décadas - o debate, sempre de modo negativo: corrupção, assédio, intervenção e interesses individuais em sobreposição a interesses coletivos (e nacionais).
Paralelamente, a CBF se beneficia de um modelo de negócios único, mesmo não sendo formalmente uma empresa: (i) dispõe de milhões de consumidores-torcedores cativos, em relação aos quais ela não precisa gastar um real para conquistá-los ou mantê-los; (ii) a representação de um país e de seu povo, sem pagar um centavo de royalty; (iii) a utilização das cores da bandeira e da própria bandeira, bem como do hino nacional, sem pagar um centavo de royalty; (iv) a utilização esporádica, porém recorrente, das relações e dos ativos dos clubes (jogadores), sem a devida contrapartida e sem custos de formação, trabalhistas, previdenciários, estruturais e de outras naturezas; e (v) o gozo de incentivos e benefícios estatais, como imunidades ou isenções tributárias.
Esse estado de coisas deveria levar a um necessário debate público a respeito da natureza e, em especial, das funções esportiva, social e econômica de entidades como a CBF, e da necessária fixação de políticas públicas que, sem intervir no funcionamento da atividade - e das próprias entidades -, ditem os rumos de um sistema nacional.
Que não se afirme que essa proposta poderia afrontar o sistema internacional do esporte e ameaçar a coexistência das estruturas estatal, de um lado, e futebolística, de outro, comandada pela Fifa, e ocasionar reações e sanções. Se todo país é soberano para, por exemplo, instituir regime tributário favorecido incidente sobre a atividade, caso do Brasil, também o será para eliminar favorecimentos ou incentivar movimentos estruturantes, se e quando a função social (e esportiva) não se realizar.
Assim, como se diz coloquialmente, do atual limão, o Estado brasileiro tem a oportunidade de produzir a mais doce limonada: o incentivo para formação da liga de clubes, sem interferir no funcionamento da CBF ou na regulação proveniente da Fifa.
Aliás, a relevância e a urgência são evidentes, pois o sistema já atestou a sua incapacidade de prover uma solução que atenda ao interesse dos clubes - e, consequentemente, do povo-torcedor, e da nação.
A liga de clubes deveria, no plano interno, deixar de ser uma abstração normativa, prevista em lei e no estatuto da CBF, e se constituir em instrumento de desenvolvimento esportivo e de afirmação do futebol como uma das atividades mais pujantes, inclusivas e representativas da cultura nacional; e, no plano externo, se posicionar e se afirmar como poderosa forma de soft power, com acesso (irrestrito) a televisões, smartphones e computadores espalhados pelo globo - como os norte-americanos fazem com o cinema, os sul-coreanos com o K-pop e os ingleses com a Premier League.
Não resta dúvida, diante desse cenário, que o desenvolvimento do futebol brasileiro e a constituição de uma liga de clubes interessa ao Brasil - muito além de governos ou partidos - e que o Estado tem legitimidade e competência para promover as políticas necessárias para atingir objetivos rápidos e grandiosos.
Dois movimentos (dentre outros que já foram abordados neste espaço e serão resgatados oportunamente) poderiam (ou deveriam) ser implementados:
(i) a criação de um regime especial, inclusive tributário, para incentivar a formação da liga de clubes, sob a forma de sociedade anônima do futebol, que se submeterá a normas incontornáveis de governança, controle, fiscalização, publicidade e responsabilidade; e
(ii) a criação de um órgão, ligado à Presidência da República, com a missão de instituir um plano nacional de desenvolvimento do futebol, para criação do maior mercado do planeta, com preocupações esportivas, educacionais, sociais e econômicas, que contaria com um Conselho composto por agentes públicos como o ministro dos Esportes, o ministro da Fazenda e o presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, e representantes do setor futebolístico e da sociedade, como o presidente da CBF, o presidente da Liga, o presidente da B3, dentre outros.
Com esses movimentos o país poderá recuperar, quem sabe em 2 anos, o protagonismo perdido nos últimos 20 anos, e projetar mundialmente um modelo que se sobreponha às mazelas que sabotam o futebol e o País.
1 Código Civil: Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.
2 Em tese, as federações estaduais deveriam ser associadas; mas, em análise de alguns balanços disponíveis, não se localizou título patrimonial da CBF em conta do ativo.
3 Estatuto Social da Confederação Brasileira de Futebol (2017):
"Art. 33 - A Assembleia Geral Administrativa, poder de jurisdição máxima da CBF, compor-se-á das Federações filiadas no pleno gozo de seus direitos estatutários e que atendam às exigências da legislação esportiva.
"Art. 34 - A Assembleia Geral, de natureza administrativa, na qual cada Federação filiada terá direito a um voto, reunir-se-á ordinária e extraordinariamente, observadas as normas deste Estatuto. (...).
"Art. 40: A Assembleia Geral, de natureza eleitoral, reunir-se-á quadrienalmente, nos 12 (doze) meses anteriores ao término do mandato em exercício, para eleger, em votação secreta, o Presidente e os 8 (oito) Vice-Presidentes da CBF, bem como os membros do Conselho Fiscal, que serão empossados quando da realização da Assembleia Geral Ordinária que vier a se realizar subsequentemente ao término do mandato em curso, sendo o Colégio Eleitoral composto exclusivamente pelas: I - Federações filiadas, que englobam o conjunto de clubes profissionais e não profissionais, e ligas municipais de futebol integrantes de cada unidade federativa, tendo cada uma delas um voto com peso 3 (três); II - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 2 (dois); III - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 1 (um)".