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Migalha Trabalhista

Textos direcionados a comentar novidades legislativas que possam propiciar uma visão contemporânea sobre assuntos que estejam na ordem do dia na área trabalhista/sindical.

Ricardo Calcini
1. Da natureza jurídica das exigências do §1º-A, I, II E III do art. 896 da CLT A lei 13.015/2014 criou mais pressupostos para apreciação do recurso de revista por uma das Turmas do TST. Dentre eles, um dos que mais causam polêmicas é o § 1º-A e incisos do art. 896 da CLT. Pressupostos extrínsecos recursais são aqueles de natureza meramente formal e que podem ser analisados de modo objetivo, tais como a tempestividade, a adequação do recurso à previsão legal, a regularidade da representação processual e o preparo que, no caso dos processos trabalhistas, se refere às custas processuais e ao depósito recursal. No voto proferido no processo RR 351-42.2014.5.09.0022, o ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, integrante da 8ª turma do TST, declara que"a indicação do trecho da decisão recorrida que consubstancia o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista constitui pressuposto formal de admissibilidade, indispensável à verificação da insurgência em face do acórdão recorrido". (g.n.) Por sua vez, pressupostos intrínsecos recursais dizem respeito à própria existência do direito de recorrer, isto é, por meio da análise de tais requisitos se verifica se a parte pode interpor ou não o recurso. Citamos como exemplos a legitimidade, o interesse recursal, a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, como é o caso da (in) existência de sucumbência. Ao proferir o voto nos autos do processo AIRR-0002763- 24.2012.5.02.00170, o Min. Cláudio Brandão, integrante da Eg. 7ª turma do TST, exarou seu posicionamento no sentido de que as exigências previstas no art. 896, §1º,-A, CLT ostentam natureza de pressuposto intrínseco recursal. Com o devido respeito, ao nosso sentir, as exigências previstas nos incisos I, II e III, do § 1º-A, art. 896 da CLT, ostentam natureza de pressuposto extrínseco recursal, na medida em que possuem contornos meramente objetivos e formais para análise da viabilidade do recurso. A regularidade formal se distingue, a título de exemplo, do prequestionamento em si, da análise de possível violação legal ou constitucional, da especificidade de arestos trazidos a cotejo de teses, os quais são caracterizados como efetivos pressupostos intrínsecos do Recurso de Revista. Reforça nossa conclusão as previsões do inciso I, "b" e IV, "a", da súmula 337/TST, que tratam de questões formais inerentes à comprovação de dissenso pretoriano para fins da alínea "a" do art. 896 CLT, porquanto exigem da parte recorrente o apontamento do trecho da decisão recorrida e a fundamentação da violação da lei e ou da CF. Há quem diga que os incisos da Súmula 337/TST tratam de questões intrínsecas, como é o caso da especificidade de arestos trazidos à colação à luz das súmulas 23 e 296/TST. Dessa forma, a identificação da natureza jurídica das exigências advindas no § 1º-A e incisos do art. 896 da CLT se mostra essencial à advocacia trabalhista, na medida em que se admite a revisão dos pressupostos extrínsecos do recurso de revista por meio de Embargos à SBDI-I (Súmula 353/TST), conquanto a revisão dos pressupostos intrínsecos, a rigor, não é mais passível de revisão no âmbito do TST desde a alteração da redação do art. 894 da CLT, conferida pela Lei nº 11.496/2007. 2. Do prequestionamento e da indicação/transcrição do trecho da decisão recorrida Denomina-se prequestionamento o debate prévio, na decisão impugnada, de determinada matéria objeto de recurso. Visa, notoriamente, vedar a inovação recursal para que o processo chegue a um termo. O prequestionamento é decorrência lógica das próprias hipóteses de cabimento do recurso de revista, já que não é possível vislumbrar violação à dispositivo de lei ou da Constituição Federal se o conteúdo do artigo de lei ou constitucional não foi objeto de análise pela decisão recorrida. A lei 13.015/14 inseriu o inciso I do § 1º-A, no art. 896 da CLT. Tal dispositivo exige que a parte recorrente indique o trecho da decisão recorrida em que há o debate prévio (prequestionamento) da matéria impugnada na minuta do apelo revisional de natureza extraordinária. Frise-se que nosso destaque à palavra "indicação" é de suma relevância, porquanto em que alguns precedentes de Turmas do TST, ao interpretar as alterações promovidas pela lei 13.015/2014, vêm imprimindo ao verbo "indicar" o mesmo significado do verbo de "transcrever". Nesse sentido: TST-AIRR-0001995-59.2012.5.15.0010, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 10/04/2015. Respeitosamente, o verbo "indicar", segundo os Dicionários Houaiss e Michaelis, não é sinônimo do verbo "transcrever". A adoção do sinônimo causou discussão em diversas Turmas do TST que, ao analisarem o Recurso de Revista interposto na vigência da Lei 13.015/14, passaram expressamente a fazer tal distinção esclarecendo as balizas da nova exigência. Nesse prumo: TST-AIRR - 44-54.2010.5.09.0014, Rel. Min. Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/03/2015. Destarte, em razão da inexistência de um consenso interpretativo, em meados do ano de 2018 a SBDI-I do TST firmou entendimento que a simples indicação das páginas correspondentes, paráfrase, sinopse, transcrição integral do acórdão recorrido, do relatório, da ementa ou apenas da parte dispositiva, não é suficiente para atender o requisito previsto no § 1º-A, I do art. 896 da CLT:TST-E-ED-RR-0000242-79.2013.5.04.0611, SBDI-I, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 25/5/2018. Com o devido respeito ao entendimento sufragado pela SBDI-I do TST, não se pode transmudar a vontade do legislador, pois a lei, enquanto linguagem técnica que é, exige do intérprete a extração do seu real significado. Parece-nos claro que não há previsão legal que exija a transcrição do trecho da decisão recorrida. Logo, concessa vênia, não pode o intérprete exigi-la nos julgados. Ao nosso sentir, a melhor exegese do § 1º-A, I, do art. 896 da CLT, é no sentido de que apenas a minuta recursal que não tece qualquer referência ao trecho da decisão recorrida desatende os critérios legais, conforme conclusão que vem sendo adotada pela 8ª Turma do TST: TST-AIRR-0021442-12.2013.5.04.0331, Rel. Min. Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/10/2015; TST-AIRR-0000127-23.2012.5.20.0005, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/10/2015. A conclusão adotada pela 8ª Turma do TST decorre da previsão do artigo 896, §11, da CLT, que, em consonância com os ditames do Novo Código de Processo Civil, pautado no princípio da instrumentalidade das formas, permite que as pequenas falhas de forma sejam relevadas pelo juízo regional de admissibilidade da revista. Apesar do claro abrandamento da previsão legal advinda com a alteração legislativa moldada no CPC/15, há precedentes do TST que entendem pela inaplicabilidade do § 11 quanto à análise do atendimento das exigências do § 1º-A, I, art. 896, da CLT, ao fundamento de se tratar de defeito formal grave. Nesse sentido, o voto do min. Maurício Godinho Delgado nos autos do processo TST-ED-AIRR-0000738-46.2011.5.15.0135 em que decide que "a própria lei nº 13.015/2014 instituiu a necessidade de se demonstrar a existência da tese jurídica do acórdão recorrido, de modo que não há como não reputar a sua ausência como um defeito formal grave. Inaplicável, no presente caso, o teor do §11 do art. 896 da CLT." (g.n) Além de a lei 13.015/14 criar novas exigências e dificuldades para a parte recorrente, indene de dúvidas que as interpretações adotadas pelo C. TST caminham no sentido de praticamente inviabilizar o acesso das partes à cognição extraordinária.  3. Do trecho da decisão recorrida Outra questão que tem sido objeto de grande controvérsia na jurisprudência do TST diz respeito ao significado de "trecho da decisão recorrida". Isso porque a expressão guarda certo grau de subjetivismo gerando insegurança aos advogados, quando da elaboração da revista, no que diz respeito ao atendimento deste requisito legal. Ao nosso sentir, a expressão "trecho da decisão recorrida" pode ser interpretada como um excerto, um fragmento ou uma parte da decisão recorrida que demonstre a manifestação jurisdicional a quo a respeito da tese combatida em sede de revista. Isto é, que a parte demonstre na minuta recursal o devido prequestionamento da matéria impugnada. A controvérsia se instaura porque alguns julgados do TST tem entendido que a transcrição do inteiro teor do acórdão recorrido desatende a exigência legal que exige apenas o trecho da decisão recorrida: TST-Ag-AIRR-00000033-60.2014.5.02.0020, Rel. Des. Convocado Marcelo Lamego Pertence, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/06/2017. E mais. Há ainda precedentes no sentido de que a indicação/transcrição do trecho da decisão deve constar do tópico específico de cada matéria impugnada, não atendendo o requisito legal a transcrição em outros tópicos ou no início da peça recursal: TST-AIRR-0100970-39.2017.5.01.0008, Rel. Min. Alexandre Agra Belmonte, decisão monocrática, DEJT 30/06/2020; TST-AIRR - 10607-89.2014.5.15.0050, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, 6ª Turma, DEJT 2/12/2016. Concessa vênia, não há como se negar de que se trata de dois preciosismos por parte do TST, característicos da jurisprudência defensiva formada quanto à admissibilidade do recurso de revista, uma vez que a redação do § 1º-A e incisos do art. 896 da CLT não fazem nenhuma restrição quanto à possibilidade de transcrição na íntegra da fundamentação da decisão recorrida, muito menos determina o local da peça processual em que deverá constar a referida indicação/transcrição. Respeitosamente, o Tribunal Superior do Trabalho não pode punir a parte que age com cautela e transcreve a íntegra da decisão recorrida em qualquer tópico recursal que se encontre. A longínqua jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas, inclusive do próprio TST, admitia a formação do instrumento com a cópia integral dos autos principais e nem por isso deixava de conhecer dos agravos de instrumentos em que se acostavam mais peças do que as exigidas pelo art. 897, "b", §5º, I, CLT. Ora, como diz o velho brocado jurídico: quem pode o mais, pode o menos! Dessa forma, a indicação de um trecho longo, por cautela e excesso de zelo do recorrente, independentemente de onde constar nas razões recursais, não pode acarretar a mesma consequência da falta de indicação ou da inexistência de transcrição de trecho qualquer da decisão impugnada. Ora, se há indicação ou transcrição na íntegra, seja em qual local do recurso constar, obviamente nela contém o trecho da decisão recorrida, ainda que a maior e, por tal razão, atende a vontade do legislador que é de facilitar o trabalho do magistrado relator. Há ainda precedentes turmários do TST que entendem não atendidos os critérios legais nas hipóteses de transcrição de um trecho muito curto do acórdão recorrido que não demonstra o prequestionamento da matéria combatida: TST-AIRR-0000301-68.2012.5.05.0031, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, 1ª Turma, Data de Publicação DEJT 27/04/2018; TST-AIRR-0002763-24.2012.5.02.0017, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 12/02/2016. Para tais hipóteses, estamos de acordo que a indicação ou transcrição de um trecho demasiadamente curto e que não engloba todas as razões de decidir da decisão recorrida inviabiliza o conhecimento da revista, pois além de não demonstrar o devido prequestionamento da matéria veiculada, prejudica a análise judicial ad quem se o recurso combateu todos os fundamentos jurídicos adotados pela decisão a quo (Súmula 422/TST). Logicamente, tal raciocínio não se aplica aos casos em que há transcrição na íntegra da decisão impugnada via recurso de revista pelas razões já mencionadas. Interessante perceber que se há transcrição da íntegra, o TST entende desatendida a exigência legal. Se a transcrição é curta, da mesma forma. Paira no ar a insegurança jurídica da parte na elaboração das razões de revista. Com o devido respeito aos entendimentos contrários, entendemos que a vontade do legislador não deixa margens de dúvidas: se a indicação ou transcrição realizada pelo recorrente é pertinente ao objeto do recurso, independentemente do local em que constar na peça processual, e em havendo fundamentação em torno dos dispositivos legais ou constitucionais tidos como violados ou ainda à questão objeto da divergência jurisprudencial, não há como se obstar a análise do apelo com base no art. 896, §1º-A, I, II, III, da CLT. 4. Da conclusão  As exigências advindas com o § 1º-A e incisos do art. 896 da CLT apenas reforçam nossa conclusão de que nos últimos anos todas as alterações legislativas advindas no processo trabalhista, notadamente no que diz respeito à recorribilidade extraordinária, são no sentido de reduzir a demanda nos tribunais superiores. No artigo intitulado "Apontamentos sobre a lei 13.015/14 e impactos no sistema recursal trabalhista", o ministro aposentado do TST João Oreste Dalazen, na condição de um dos integrantes da Corte na época da edição da lei, é taxativo ao consignar que "como salta à vista, a lei 13.015/14 visou a inibir novos recursos de revista para o Tribunal Superior do Trabalho. Na senda da evolução histórica do sistema de recursos trabalhistas, recrudesceu os filtros destinados, sobretudo, a dificultar ainda mais o conhecimento do recurso de revista, mediante agravamento das exigências formais ou pressupostos intrínsecos de admissibilidade. Não é uma lei, pois, que se preocupe com todo o sistema recursal trabalhista: ao contrário, tem por objeto precipuamente os recursos da competência funcional do Tribunal Superior do Trabalho, em especial o recurso de revista". (g.n) Não bastasse a desnecessidade de "indicação/transcrição" pela parte recorrente do trecho (ou da íntegra) da decisão recorrida, porque em realidade, a tarefa de aferir o devido prequestionamento da matéria compete ao magistrado - e não às partes - dentro das atribuições do juízo de admissibilidade recursal, os precedentes turmários demonstrados restringem ainda mais o acesso do jurisdicionado à cognição extraordinária. Os jurisdicionados compreendem perfeitamente a grande demanda que atualmente tramita nos Tribunais Superiores. Todavia, as lides trabalhistas travadas em nossa sociedade dizem respeito à vida, à própria subsistência e à propriedade das pessoas. De modo que as partes esperam o abrandamento de regras adjetivas para que o mérito das causas seja objeto de reanálise em via recursal, exatamente como previu o legislador do novo Código de Processo Civil elaborado em consonância com o princípio da instrumentalidade das formas, e também do próprio legislador trabalhista ao inserir em nosso ordenamento o § 11 no art. 896 da CLT.
No presente artigo*, vamos abordar os requisitos e limitações do seguro garantia judicial no processo do trabalho. A partir da interpretação lógico-sistemática da legislação em vigor, demonstraremos que não há direito subjetivo do devedor trabalhista no uso indiscriminado do seguro garantia judicial, estando sujeito a uma série de condicionantes impostas não só pela legislação processual, mas também pelo Ato Conjunto 01/2019 do CSJT e TST. O atual CPC de 2015 trouxe uma novidade nas execuções, permitindo a substituição da penhora em dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, conforme previsão do §2º do artigo 835 do CPC: "para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento". O seguro garantia judicial é o contrato pelo qual a seguradora presta a garantia de adimplemento da obrigação de pagar do devedor no processo judicial, nos limites da apólice. Esta espécie securitária equipara-se a dinheiro para fins de garantia do juízo da execução, assegurando ao devedor não ter seus bens expropriados sem uma decisão terminativa da fase executória, tratando-se, em tese, de meio menos oneroso, porquanto permite ao devedor manter o valor da execução em capital de giro enquanto discute questões da execução, notadamente eventual impugnação à sentença de liquidação (art. 884, §3º, CLT). Todavia, em que pese a possível vantagem ao devedor, não se pode olvidar que tal procedimento acarreta-lhe maior custo, na medida em que não lhe retira a obrigação de pagar a dívida, tendo ainda o custo adicional de contratação da fiança ou do seguro garantia. Conforme advertem Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery, "a jurisprudência do STJ tem sido hostil à substituição por fiança, tendo em vista que conduziria a execução em sentido contrário ao da sua finalidade natural de entregar dinheiro ao exequente. Por outro lado, se prestada a garantia por banco, ela equivale a dinheiro. No caso do seguro, o juiz deve avaliar a prova da garantia produzida pelo devedor juntamente com o requerimento [...]"1. Neste sentido, conforme entendimento do STJ, "a substituição da garantia em dinheiro por outro bem ou carta de fiança somente deve ser admitida em hipóteses excepcionais e desde que não ocasione prejuízo ao exequente, sem que isso enseje afronta ao princípio da menor onerosidade da execução para o devedor". (REsp 1090864 RS - 4ª Turma - Relator Ministro Massami Uyeda - Data de julgamento: 10.05.2011). É bem de ver que, no âmbito processual civil, a excepcionalidade da substituição da penhora em dinheiro é o vetor de aplicação do §2º do artigo 835 do CPC. No âmbito da Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80), o art. 9º, inciso II, com a alteração dada pela lei 13.043/2014, prevê a possibilidade de o executado oferecer fiança bancária em valor correspondente ao montante do débito, com os acréscimos legais, a título de garantia do juízo da execução. Debruçando-se sobre esta norma dos executivos fiscais, a jurisprudência consolidada do STJ2 estabeleceu as seguintes balizas, as quais podem servir de referencial para o ramo jurisdicional trabalhista especializado: (1) a substituição da penhora de dinheiro por fiança bancária, por iniciativa do devedor, só pode ser feita apenas quando este demonstrar, com provas concretas, a sua necessidade imperiosa; (2) não existe o princípio da maior conveniência em favor do devedor; (3) a garantia da execução fiscal por fiança bancária ou seguro garantia não pode ser feita exclusivamente por conveniência do devedor, o que só poderá ser admitido se a parte devedora, concreta e especificamente, demonstrar a necessidade de aplicação do princípio da menor onerosidade. Portanto, segundo a firme jurisprudência do STJ, a partir de uma análise lógico-sistemática do ordenamento jurídico, sempre em atenção à efetividade da execução e ao princípio do favor creditoris inerente à finalidade da execução patrimonial, o devedor não possui direito potestativo de substituição de dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, devendo sempre serem observadas as circunstâncias do caso concreto devidamente justificadas, sob pena de se conferir proeminência à execução menos onerosa para o executado em franco prejuízo da satisfação integral e rápida do crédito exequendo. Em suma, não há, em abstrato, preponderância do princípio da menor onerosidade para o devedor sobre o da efetividade da tutela executiva, uma vez que o princípio do meio menos gravoso ao executado deve sempre se compatibilizar com o princípio da primazia do credor, pelo qual a execução se faz no interesse do credor (art. 797 do CPC). Na seara processual trabalhista, a lei 13.467/2017 permitiu a substituição do depósito recursal por fiança bancária ou seguro garantia (art. 899, §11, CLT), assim como passou a permitir a garantia do juízo em execução por tal modalidade (art. 882 da CLT). Cabe ressaltar que as duas normas celetistas mencionadas apenas preveem uma possibilidade de se garantir o juízo da execução com seguro garantia sem adentrar em maior detalhamento, cuja redação aproxima-se da Lei dos Executivos Fiscais. Abre-se espaço, assim, para a aplicação das balizas jurisprudenciais fixadas pelo STJ no âmbito da execução trabalhista, mormente diante da regra de subsidiariedade do art. 889 da CLT e da máxima de hermenêutica jurídica de aplicação lógico-sistemática do ordenamento jurídico, e não apenas da incidência isolada de certa norma legal no caso concreto. Essa alteração legislativa trouxe vários questionamentos no âmbito recursal trabalhista, haja vista que muitos julgados deixaram de conhecer de recursos em razão da juntada de apólices de seguro garantia com prazo determinado ou que não continham especificamente o número do processo (o que autorizava, em tese, a utilização de uma mesma apólice em vários processos), inviabilizando a efetiva garantia do juízo, não cumprindo a finalidade do instituto do depósito recursal. Diante das divergências, o CSJT e o TST editaram o Ato Conjunto nº 01 de 16/10/2019, regulamentando o seguro garantia e fiança bancária em substituição ao depósito recursal e para garantia da execução. Apesar do necessário rigor para permitir a substituição da penhora em dinheiro por fiança ou seguro garantia, tal como se exige na execução fiscal, a jurisprudência do TST tem admitido como se fosse um direito potestativo do réu, assim como a regulamentação do instituto no âmbito da Justiça do Trabalho foi mais branda, em franco detrimento e enfraquecimento da jurisdição executiva trabalhista, permitindo a adoção de tais meios de garantia dispensando a comprovação da necessidade imperiosa da substituição como meio menos oneroso. Com efeito, o TST possui entendimento de que "a carta de fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito em execução, acrescido de trinta por cento, equivalem a dinheiro para efeito da gradação dos bens penhoráveis, estabelecida no art. 835 do CPC de 2015" (OJ nº 59 da SDI-2). O Ato Conjunto nº 01/2019, de natureza infralegal, visa apenas regulamentar as condições formalísticas de aceitação da apólice do seguro garantia, o que não tolhe a atividade jurisdicional do magistrado de cotejar, no caso concreto, os princípios da efetividade da execução e da menor onerosidade para o executado, com vistas a admitir, ou não, o seguro garantia, tendo sempre em vista que não há direito subjetivo abstrato do devedor, nos moldes da jurisprudência consolidada do STJ acima destacada. Em síntese, em conformidade com o artigo 3º do Ato Conjunto 01/2019, se a parte pretende se utilizar do mecanismo do seguro garantia ou da fiança bancária, deverá contratar seguradora idônea, constando da apólice o valor total corrigido com acréscimo de 30%, com cláusula de manutenção da garantia mesmo que o segurado não tenha efetuado o pagamento de parcelas do prêmio previsto no contrato respectivo. Ademais, devem estar presentes o número do processo a que se refere a garantia, a vigência mínima de três anos, com cláusula de renovação automática, identificação das situações caracterizadoras do sinistro (previstas no art. 10 do Ato Conjunto 01/2019) e endereço atualizado da seguradora. É importante destacar que a apólice não pode conter cláusulas de desobrigação da seguradora de pagar o prêmio (excludente de responsabilidade), tampouco previsão de rescisão, ainda que de forma bilateral, sob pena de impactar negativamente na solvabilidade da garantia do juízo. Nos termos do artigo 4º do Ato Conjunto 01/2019, "as apólices apresentadas permanecerão válidas independentemente do pedido de renovação da empresa tomadora, enquanto houver o risco e/ou não for substituída por outra garantia aceita pelo juízo", isto é, enquanto não houver a substituição da fiança ou seguro garantia por dinheiro no processo, a apólice permanecerá vigente como decorrência da renovação automática. O §1º do artigo 5º do Ato Conjunto 01/2019 estabelece que a idoneidade da seguradora será presumida mediante a apresentação da certidão de regularidade da sociedade seguradora perante a SUSEP. Ocorre que a presunção a que alude o referido dispositivo é relativa (juris tantum), podendo ser elidida por prova em sentido contrário, cabendo ao autor demonstrar em juízo - em contrarrazões (em se tratando de depósito recursal), na contraminuta dos embargos à execução (em caso de garantia do juízo) ou, ainda, no decorrer da execução -  quando o devedor, por simples petição, requerer a substituição do depósito recursal pelo seguro, que a seguradora não tem idoneidade, tratando-se de empresa de "fachada", o que pode ser apurado de diversas formas: a) capital social de baixo valor, isto é, manifestamente incompatível com a atividade econômica; b) integralização do capital social; c) sede da empresa seguradora ou endereço residencial dos sócios em localidades suspeitas, ou, ainda, em endereço de escritórios de contabilidade ou de consultoria. A razão de ser da análise da liquidez da seguradora e de sua idoneidade financeira reside justamente na compreensão de que ela assume a posição de fiadora na garantia do débito no processo executivo, estando, sujeita, inclusive, ao avanço em seu patrimônio da tutela executiva. No mesmo diapasão, em recente julgado, o TST assinalou que "a admissão do seguro garantia judicial não é automática, devendo sua regularidade e idoneidade ser avaliadas pelo juiz, a fim de se evitar a ocorrência de fraude, bem como a existência de cláusulas que possibilitem a frustração do adimplemento do título executivo judicial" (AIRR 101040320155010057 - 3ª Turma - Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado - Data de publicação: 5/6/2020). Se a fiança bancária ou o seguro garantia não atenderem os requisitos do Ato Conjunto, será tido como inexistente o depósito recursal ou a garantia do juízo, sendo denegado seguimento ao recurso no juízo de origem, ou não conhecido, se estiver na instância ad quem, ou, ainda, em sendo caso de garantia à execução, prosseguirão os atos executivos de penhora visando a garantia do juízo (art. 6º do Ato Conjunto 01/2019). A apresentação da fiança ou o seguro garantia deve vir acompanhada do extrato de validação da apólice correspondente, que é obtido através do sítio eletrônico da SUSEP3, sem prejuízo de o juízo conferir sua validade, na forma do §2º do artigo 4º do Ato Conjunto 01/2019. Esta certidão deve ser juntada no prazo do recurso ou dos embargos à execução, sob pena de não processamento, nos termos da Súmula 245 TST. A utilização de uma mesma apólice em mais de um processo, ou a apresentação de apólice falsa ou adulterada, além da deserção do recurso e da não garantia do juízo, caracterizará litigância de má-fé e ato atentatório à dignidade da jurisdição, sem prejuízo da correspondente representação criminal para apuração da possível prática de delito (art. 6º, parágrafo único, do Ato Conjunto 01/2019). Os artigos 7º e 8º do Ato Conjunto 01/2019 vedavam a substituição do depósito recursal ou da garantia do juízo por meio da utilização do seguro garantia, isto é, após a realização do depósito ou da constrição. Contudo, o CNJ no julgamento do PCA-0009820-09.2019.2.00.0000, em 27 de março de 2020, declarou a nulidade dos referidos dispositivos, o que culminou na edição de novo Ato Conjunto do TST e CSJT em 29/05/2020, conferindo nova redação aos referidos dispositivos admitindo a substituição. Deste modo, a rejeição de seguro garantia ou fiança bancária, como depósito recursal ou garantia do juízo, ocorrerá se não observados os requisitos do Ato Conjunto 01/2019, mormente dos artigos 3º a 5º, que contemplam uma vasta gama de peculiaridades, nem sempre observadas no cotidiano forense, sem prejuízo da análise do juízo da efetiva necessidade do réu de substituição. Ainda, não se pode olvidar que não deve ser admitida a substituição quando já julgado o recurso garantido por depósito recursal ou cumprida a finalidade da garantia do juízo. Logo, encerrada a fase de conhecimento não é possível a substituição do depósito recursal por seguro garantia. No mesmo diapasão, transitada em julgado a decisão dos embargos à execução, é incabível a substituição da garantia do juízo por fiança ou seguro garantia, porquanto é o momento processual em que deve ocorrer a satisfação do crédito exequendo, coincidindo com o momento em que se deflagra o sinistro, nos termos do artigo 10 do Ato Conjunto 01/2019. Da mesma forma, havendo delimitação no agravo de petição da parte executada da quantia incontroversa sobre a qual deve prosseguir a execução, nos moldes do § 1º do artigo 897 da CLT, deve-se intimar o executado para efetuar o pagamento desta parte incontrovertida ao exequente, sob pena de caracterizar o sinistro e acionar a seguradora no processo executivo. A execução da quantia incontroversa processar-se-á nos mesmos autos, remetendo-se à instância superior os autos suplementares para julgamento do agravo de petição, ou, ainda, mediante extração de carta de sentença. Transitada em julgado a decisão sobre os embargos à execução, ou o recurso cujo depósito recursal foi substituído por seguro garantia, o devedor será intimado para efetuar o depósito da quantia no prazo legal (art. 880 da CLT). Não havendo cumprimento da ordem judicial, o juízo oficiará a seguradora para que proceda ao pagamento em quinze dias, informando que o devedor não o fez, o que caracteriza o sinistro, sob pena de contra ela prosseguir a execução nos próprios autos, sem prejuízo de eventuais sanções administrativas ou penais pelo descumprimento da ordem judicial, nos termos dos artigos 10 e 11 do Ato Conjunto 01/2019. Por fim, cabe destacar que a seguradora, já incluída na execução na condição de responsável patrimonial no cumprimento da obrigação trabalhista exequenda garantida pela apólice, não poderá veicular questões afetas ao contrato de seguro entre empresa tomadora (devedora) e a seguradora no curso da execução trabalhista, porquanto está-se diante da responsabilidade objetiva, e muito menos ofertar qualquer espécie de defesa em relação ao objeto do processo, por não ser parte legitimada. A lide que se seguir entre segurado e segurador deverá ter sua tramitação no juízo competente, não cabendo à Justiça do Trabalho adentrar no exame do contrato de seguro entre empresa tomadora (devedora) e a seguradora. *Rafael Guimarães é juiz do Trabalho. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor convidado de cursos jurídicos. **Richard Wilson Jamberg é juiz do Trabalho. Professor de Direito Processual do Trabalho na Unisuz. Especialista em Direitos Sociais e em Direito Processual do Trabalho. __________ *Excerto da obra conjunta dos autores do artigo, Execução Trabalhista na Prática, Editora Mizuno, com e-book de degustação disponível para download. 1  NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado, 4ª ed. São Paulo: RT, 2019 (E-book), cit. CPC 835, coment. 6. 2 STJ - AREsp 1547429 SP 2019/0213144-6 - 2ª Turma - Relator Ministro Herman Benjamin - Data de publicação: 25/5/2020. 3 Susep. Acesso em 25/9/2020.
sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Síndrome de Burnout e o trabalho remoto

O Ministério da Saúde descreve a Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional como um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. Aproveitando o mês de setembro e as campanhas do Setembro Amarelo, mês de incentivo à vida, o objetivo deste artigo é demonstrar o que é a Síndrome de Burnout e os impactos no trabalho remoto e como evitar a doença.  Esgotamento profissional Síndrome de Burnout - traduzindo do inglês, "burn" quer dizer queima e "out" exterior - é um conjunto de sintomas que geralmente ocorrem em pessoas sem nenhum histórico de doenças psicológicas ou psiquiátricas. O burnout é desencadeado quando há uma discrepância entre as expectativas e ideais do trabalhador. No estágio inicial da síndrome, o trabalhador sente estresse emocional e desilusões relacionadas ao seu trabalho, sendo que a principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho, comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes. Segundo uma pesquisa da "International Stress Management Association" (ISMA), no Brasil 72% dos trabalhadores brasileiros desenvolveram sequelas desencadeadas pelo estresse. Desses 72%, 32% sofrem de burnout, ao passo que 92% das pessoas com burnout continuam trabalhando. De acordo com o Ministério da Saúde, os principais sintomas relacionados ao burnout são: cansaço excessivo, físico e mental, dor de cabeça frequente, alterações no apetite, insônia, dificuldades de concentração, sentimentos de derrota e incompetência, negatividade constante, fadiga, pressão alta, entre outras. Atualmente, o Tribunal Superior do Trabalho considera a síndrome de Burnout como acidente de trabalho, e, mais, constatado o nexo causal entre a doença e a atividade desenvolvida, será concedido ao trabalhador o benefício de auxilio acidentário (B91), além do direito a estabilidade provisória no trabalho pelo prazo de 12 (doze) meses após a cessação do auxílio-doença-acidentário. Com a pandemia da Covid-19, certo é que milhares de pessoas fizeram a transição para o trabalho remoto. Muitos empregadores se preocupam com a produtividade de seus empregados o que é extremamente natural. No entanto, a maior preocupação que deve ser notada aqui é o problema da Síndrome de Burnout. A linha entre trabalho e casa agora está muito tênue, e aqueles que estão experimentando trabalhar remotamente pela primeira vez têm mais probabilidade de passar por dificuldades com excesso de trabalho e pressão. Afina, a preservação dos limites da saúde mental entre a vida pessoal e a vida profissional nunca tarefa foi tão difícil! E para demonstrar lealdade, devoção e produtividade em razão do trabalho remoto, o trabalhador pode sentir que deve trabalhar o tempo todo, sem pausas. Nesse sentido, muitas pesquisas já constataram que estabelecer um limite entre vida pessoal e profissional é crucial, especialmente para a saúde mental. No entanto, isso vai se tornando cada vez mais difícil, pois, além do isolamento social, a economia radicalmente transformou o significado do trabalhado ideal. Ações recomendadas para evitar que a Síndrome de Burnout aconteça  Na pesquisa da "Harvard Business Review", foram recomendadas três ações para evitar que a Síndrome de Burnout aconteça: (i) Manter limites físicos e sociais: existem maneiras de demarcar a transição entre trabalho e lazer ("boundary-crossing activities"). Colocar as roupas de trabalho no horário de trabalhar e roupas de lazer no horário de lazer pode ser uma boa ideia, afinal, se arrume, se apronte. Substitua seu deslocamento até a empresa por uma caminhada no parque ou até mesmo uma caminhada dentro da sua própria casa antes de sentar-se para trabalhar. (ii) Manter limites temporais o máximo que puder: manter limites temporais pode ser crítico para o bem-estar e para a produtividade no trabalho. Separar um horário comercial para trabalhar pode ser um pouco difícil, os próprios colaboradores podem encontrar um horário que funciona bem para eles. Com ou sem filhos, cada um pode criar seu próprio horário de trabalho. Líderes podem entrar nessa pauta e estabelecer estruturas, coordenação e gerenciamento do ritmo e tempo de trabalho. Ideias como fazer promover videoconferências virtuais ou oferecendo ferramentas como café virtual ou espaços virtuais de trabalho. (iii) Focar no trabalho mais importante: entender que, no atual contexto, não é hora de trabalhar em excesso. Colaboradores devem depositar suas energias em questões prioritárias. Trabalhar o tempo todo não é a melhor solução, visto que o trabalhador médio apenas é produtivo três horas por dia, sem ser interrompido e sem realizar tarefas paralelas. Antes da pandemia, isso já era difícil de se conseguir. Agora, com trabalho e família juntos, a fragmentação do tempo aumenta ainda mais. Colaboradores que se sentem conectados o tempo todo possuem mais riscos de sofrer de Burnout trabalhando de casa. Misturar trabalho com horas de descanso e de lazer podem não apenas ser contraprodutivo, mas também não demonstra ser bom para o bem-estar da pessoa. Todos devem encontrar novas maneiras (e ajudar as outras pessoas a fazerem o mesmo) de separar o tempo de lazer e proporcionar mais espaço mental. Conclusão Em tempos de pandemia e crise econômica no país, as empresas devem ficar atentas às manifestações dos sintomas de esgotamento e excesso de trabalho. É muito importante que os empregadores sejam flexíveis e experimentem diversas maneiras de proporcionar um tempo de trabalho de qualidade, evitando sobretudo a jornada excessiva de seus funcionários. Além de mitigar riscos de passivos trabalhistas de ordem moral e material, deve-se evitar que o colaborador fique doente por ter desenvolvido problemas relacionados à alta pressão de seus superiores mediante a imposição de metas exorbitantes, e que estejam acima da capacidade física e mental do funcionário. Referências Harvard Business Review Home. American Thoracic Society. Ministério da Saúde. *Flávia Alcassa dos Santos é advogada, sócia da Alcassa & Pappert. Especialista em Direito Digital|DPO Data Privacy| Corporate. Membro do Comitê Jurídico da ANPPD® Associação Nacional dos Profissionais de Privacidade de Dados e membro do Comitê Governança, Riscos e Compliance (GRC) na ANADD - Associação Nacional de Advogados do Direito Digital. Certificada pela - EXIN Privacy and Data Protection Foundation. **Milena Pappert é sócia-fundadora do escritório Alcassa & Pappert. Pós-graduanda em Direito Digital pela EPD. Certificada em ISFS | Compliance LGPD | GDPR. Supervisora de Conteúdo Digital da ANADD - Associação Nacional de Advogados do Direito Digital.
Em 14 de agosto de 2020 foi publicada na Argentina a lei 27.555/20 regulando o teletrabalho. Desde 2003 o país é signatário da Convenção n° 177 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - lei 25.800/03 -, assumindo o compromisso de aperfeiçoar as condições de atuação dos empregados que laboram à distância, bem como de implantar uma política de igualdade neste campo. A Constituição argentina assegura a tutela dos trabalhadores em condições dignas e equitativas de atuação1. Guardadas as devidas proporções, consagra os mesmos ideais de isonomia e de igualdade previstos no art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira2. Enquanto no Brasil o Poder Legislativo disciplinou o teletrabalho pela inserção dos arts. 75-A a E ao texto celetário (lei 13.467/17)3, na Argentina a medida ocorreu pelo acréscimo do art. 102 bis à Lei do Contrato de Trabalho (lei 27.555/20)4. No lugar de distinguir os dispositivos introduzidos pela alocação de letras ao lado dos numerais, preservou a numeração do projeto de lei, em desdobramentos do art. 102 bis, começando pelos arts. 1o e 2o, seguindo pelo art. 102 bis e continuando do art. 3o. O art. 102 bis define o contrato de teletrabalho como aquele em que os serviços contratados ocorram no domicílio do empregado, de modo total ou parcial, ou em lugar diverso dos estabelecimentos do empregador, fazendo uso de tecnologia de informação e comunicação. Delega à lei especial a definição dos pressupostos mínimos do contrato de teletrabalho e chancela o ajuste de questões especiais pela via negocial coletiva. A expressão "contrato de teletrabalho", ao invés de "regime", como no art. 75-A da CLT, não traz prejuízo de qualquer ordem na interpretação ou aplicação da lei, pois ela mesma utiliza como sinônimo o termo "modalidade", ao se reportar ao teletrabalho. O texto argentino faz menção aos arts. 21 e 22 da Lei do Contrato de Trabalho, quanto ao objeto do contrato, nos quais são estabelecidos os requisitos da relação de emprego5. Não há exigência de exclusividade de laborar o trabalhador fora das dependências do empregador.  Já o art. 75-B, caput, da CLT, impõe a preponderância da atuação remota, não esclarecendo o critério a ser utilizado, se por unidade de tempo ou de obra. De forma explícita, estabelece não se confundir o teletrabalho com o trabalho externo (art. 62, inciso I, da CLT), nem desconfigurado o regime remoto pelo comparecimento do trabalhador à sede da empresa para realizar tarefas específicas (art. 75-B, parágrafo único, da CLT). Pelo art. 3o são assegurados aos teletrabalhadores idênticos direitos dos empregados presenciais e atribuídos poderes às normas coletivas para disciplinar situações híbridas. Inexiste disposição semelhante na CLT, sendo possível, por uma interpretação sistemática do art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira, defender o mesmo tratamento estabelecido na regra argentina. O art. 4° determina a pactuação da jornada por escrito dentro dos limites legais. As plataformas e softwares adotados no teletrabalho devem estar acessíveis apenas durante o expediente. O art. 5° garante o direito à desconexão digital6, vedando o trabalho em sobrejornada e a comunicação do empregador com o empregado fora do horário contratado, ainda que por mensagens. Em sentido diverso, a CLT exclui o teletrabalhador do campo de incidência de seu capítulo sobre a duração do trabalho. Flagrante e injustificada a afronta ao Princípio da Proibição do Retrocesso Social (art. 7o, caput, da Constituição). O art. 6o prevê o estabelecimento de horários e pausas especiais aos teletrabalhadores responsáveis por menores de 13 anos, pessoas incapazes ou que necessitem de cuidados especiais. A resistência do empregador é reputada presumidamente  discriminatória, sujeitando-o às sanções legais. Não há regra semelhante na CLT, embora a Constituição brasileira (arts. 226 e 227) atribua a todos o dever de tutela da infância e da adolescência, bem como ao Estado a proteção da família. O art. 7o permite a troca do regime presencial pelo remoto, desde que de forma bilateral e por escrito, salvo se devidamente comprovada ocorrência de força maior. A previsão se assemelha àquela do art. 75-C, §1o, da CLT, pela qual o mútuo consentimento é exigido quando o empregado passasse do sistema presencial para o remoto, não o contrário (art. 75-C, §2o, da CLT). O art. 8o da lei argentina assegura o direito de arrependimento do trabalhador, revertendo  o consentimento dado para mudança de regime, de presencial para teletrabalho. Acaso isto venha a acontecer, o retorno ao antigo local de trabalho é preservado e, em sua impossibilidade, garantida a transferência ao posto mais próximo do domicílio do empregado. O descumprimento da obrigação acarreta a violação do dever de ocupação (art. 78 da Lei do Contrato de Trabalho), ensejando o recebimento de salários, mesmo se não prestados serviços. A negativa empresária dá margem à configuração de causa a amparar a despedida indireta ("rescisão" indireta), pondo fim ao contrato. Não há regra similar na CLT. Pelos arts. 9o e 10 é imputado ao empregador o dever de fornecimento dos equipamentos necessários ao teletrabalho, bem como a assunção de despesas de instalação, manutenção, reparos e atualização. Os trabalhadores ficam responsáveis pelo uso exclusivo dos instrumentos, não respondendo por desgaste/depreciação comuns. Acaso o teletrabalho acarrete aumento de despesas de conexão e de serviços de suporte pelo empregado, deve ser assumido pelo patrão, conforme norma coletiva, valores isentos de tributação. Sobre o tema, o art. 75-D da CLT estabelece que o pacto referente à aquisição, manutenção e fornecimento de maquinário deve constar em contrato escrito, não estabelecendo a quem caberia o custeio. Não afasta a responsabilidade patronal, ficando a questão nas entrelinhas, por conta do teor do art. 2o, caput, da CLT. Esclarece não possuírem as utilidades fornecidas natureza salarial (art. 75-D, parágrafo único, da CLT). Já o art. 11 atribui ao empregador a capacitação de empregados em regime de teletrabalho, visando à adequação das condições da prestação de serviços. Faculta o acompanhamento pelos sindicatos e pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social. Sobre a questão, o art. 75-E da CLT prescreve como dever dos patrões a instrução dos trabalhadores quanto a precauções relacionadas à saúde e ao trabalho. Determina a assinatura pelo sujeito subordinado de termo de responsabilidade pelas orientações recebidas (art. 75-E, parágrafo único, da CLT). Novamente, a efetiva tutela do trabalhador brasileiro é deixada na dependência de uma interpretação sistemática do regime de trabalho especial, dando margem a casuísmos e a relativizações. O alcance do conteúdo do art. 75-E da CLT deve se amparar nos Princípios jusambientais da Prevenção e da Informação, bem como na Convenção no 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)7. Merece destaque a garantia pela norma argentina: da igualdade de direitos coletivos entre teletrabalhadores e trabalhadores presenciais (arts. 12 e 13), do reconhecimento da autoridade competente para disciplinar o teletrabalho e da participação sindical neste processo (art. 14), da manutenção de controles de bens e de informações de propriedade do empregador, como também da contribuição do sindicato, salvaguardando a intimidade do empregado (arts. 15 e 16) e a aplicação das regras vigentes no local onde fisicamente ocorrerem os serviços, limitando a contratação de estrangeiros e de não residentes no país (art. 17). Sem dúvida de qualquer espécie, a lei 27.555/20 encontra-se alinhada às diretrizes da Organização Internacional do Trabalho e da Constituição argentina ao disciplinarem o teletrabalho. Cuidado, prevenção e responsabilidade se destacam como eixos fundamentais. Não se apresenta apenas possível, como recomendável, pela centralidade da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho na Constituição brasileira, a utilização da norma do país vizinho como fonte supletiva às regras dos arts. 75-A a E da CLT sobre a matéria, diante do conteúdo do art. 8o da própria CLT. *Oscar Krost é juiz do Trabalho vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 12ª região. Professor, mestre em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB), Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA), autor do blog Direito do Trabalho crítico, além de colaborador de sites, revistas e obras jurídicas. __________ 1 Constituição argentina, art. 14 bis, disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2020. 2 Sobre a aplicação dos referidos dispositivos ao teletrabalho no direito brasileiro, ver KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e 'teletrabalho': diferenciando iguais para reduzir direitos. In ARAUJO, Adriane Reis de; D'AMBROSO, Marcelo José Ferlin.  (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360. 3 O Brasil não é firmatário da Convenção no 177 da Organização Internacional do Trabalho, conforme informado aqui. Acesso em: 28 ago. 2020. 4 Texto da Lei no 27.555/20 disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2020. 5 Os conceitos de empregado e empregador se encontram nos arts. 25 e 26 da Lei do Contrato de Trabalho, sendo feita remissão aos arts. 21 e 22 da mesma lei. Texto disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2020). 6 No Brasil, os debates sobre a existência do direito à desconexão avançam, sem atingir, ainda, o nível das alterações legislativas promovidas na Argentina. A respeito do tema, ver ALMEIDA, Almiro Eduardo; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais do trabalho. 2a edição. São Paulo: LTr, 2016 e GOLDSCHMIDT, Rodrigo; GRAMINHO, Vivian Maria Caxambu. Desconexão: um Direito Fundamental do trabalhador. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020. 7 Sobre tal entendimento, ver SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de (et al.). Reforma trabalhista: análise comparativa e crítica da lei 13.467/17 e da Med. Prov. nº 808/2017 - 2ª a ed. - São Paulo: Rideel, 2018, p. 111-112.
Texto de autoria de Leonardo Soares Bello A fundação de uma entidade sindical tem início com a publicação do edital de convocação para uma Assembleia Geral. Na assembleia a categoria de trabalhadores deliberará sobre a criação da entidade sindical, definindo suas bases de representação e Estatuto Social da entidade, com a eleição dos respectivos componentes da diretoria do sindicato. Após a aprovação do Estatuto, deve ser feito o registro do respectivo instrumento no cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, dando-se a necessária publicidade da fundação e criação da entidade perante terceiros, nos termos do art. 45 do CCB, o qual declara começar a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Note-se que o registro em cartório serve para conferir à entidade sindical a existência legal da pessoa jurídica e respectiva publicidade, nos termos do art. 45 do Código Civil de 2002, inerente aos serviços registrais, conforme dispõe a lei 6.015/73. Contudo, seus efeitos são limitados, pois, até esse momento, a entidade tem apenas a característica de uma associação, não havendo capacidade de representação de sua categoria perante o sistema sindical brasileiro. A efetivação da personalidade jurídico-sindical se volta ao órgão competente para reconhecer a validade da fundação do sindicato e conferir o respectivo registro tratado no inciso I do art. 8º que, como se verá, é o Ministério da Economia. A primeira lei1 a estender o direito de sindicalização a todos os trabalhadores no Brasil, o decreto 1.637 de 1907, declarava a liberdade para a criação de sindicatos profissionais, mas exigia o depósito de seus atos constitutivos "no cartorio do registro de hypothecas do districto respectivo". Foi a partir da Lei de Sindicalização, decreto 19.770, de 19 de março de 1931, com notório cunho intervencionista, visando à integração dos trabalhadores e empregadores através de categorias sob um mecanismo estatal de enquadramento sindical baseado na unicidade sindical, é que o Estado assumiu a tutela das associações sindicais, cuja existência ficava condicionada ao reconhecimento mediante registro no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, controle que se manteve mesmo na breve experiência pseudo-pluralista do decreto 24.694 de 1934. Mas somente no Estado Novo, com o decreto-lei 1.402 de 1939, é que o registro assumiu importância decisiva para transformar as associações sindicais em aparelhos do sistema corporativista como órgãos de colaboração com o Estado. Oliveira Vianna seu ideólogo resumiu na ciranda histórica o grau de subordinação que assumiam: "Com a instituição deste registro, toda a vida das associações profissionais passará a gravitar em torno do Ministério do Trabalho: nele nascerão; com ele crescerão; ao lado dele se extinguirão"2. A Consolidação das Leis do Trabalho de Vargas incorporou à legislação sindical de tutela repressiva o registro com significado de reconhecimento ou credenciamento que assegurava o controle estatal. Desde então, apesar das grandes mudanças ocorridas no país, a organização sindical brasileira não se afastou de forma significativa de suas raízes estatizantes, tendo sofrido a influência de uma ideologia populista de Estado durante o período de redemocratização de 1946 a 1964. Contudo, a partir de 1964, foi redefinida para um estatismo de direita como forma de barrar a ascensão de correntes reformistas, até adquirir uma feição neocorporativista nos anos 80, mantendo-se até a Constituição de 1988. Diz a Constituição Federal de 1988 que é livre a associação profissional ou sindical, não podendo a lei exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, sendo vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical, ressalvado o registro no órgão competente (art. 8º, inciso I). Assim, embora vede ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical, o texto constitucional estabelece a possibilidade de exigência legal do registro no órgão competente, não indicando o órgão destinado a efetuá-lo. Com fulcro na regra constitucional, o Ministério do Trabalho editou a Portaria 3.280, de 6 de outubro 1988, que estabelecia o procedimento para o registro de entidades sindicais, ficando subentendido em suas razões tratar-se de requisito para existência legal destas entidades. Porém, logo foi editada a Portaria 3.301, de 1º de novembro de 1988, que veio a revogar a Portaria 3.280 alterando o entendimento do Ministério do Trabalho que passou a não reconhecer sua competência para realizar o registro sindical3. No entanto, antes de sua revogação, a Confederação Nacional da Indústria - CNI impugnou a Portaria 3.280 através do Mandado de Segurança 29/DF, sendo reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça a competência do Ministério do Trabalho para efetuar o registro, tendo reiterado a ressalva estabelecida pelo art. 8º da Constituição de 1988 quando prevê a necessidade do registro no órgão competente. E foi além, estabeleceu a competência deste órgão ministerial para a verificar a observância ou não da vedação constitucional à existência de organização sindical da mesma categoria profissional em idêntica base territorial. Quando da decisão no MS 29/ DF, já estava em vigor a Portaria 3.301 em sentido contrário. Foi então expedida a Instrução Normativa 5, de 15 de fevereiro de 1990, que acolheu a competência conforme o julgado e regulamentou o registro sindical pelo Ministério do Trabalho, estabelecendo, no entanto, tratar-se de ato provisório e que quaisquer controvérsias surgidas deste ato deveriam ser dirimidas pelo Poder Judiciário. Esta Instrução foi revogada pela Instrução Normativa 9, de 21 de março de 1990, que foi editada no momento de um novo arranjo organizacional da estrutura administrativa do Estado, sendo extinto o Ministério do Trabalho, com a transferência de parcela de suas competências para o Ministério do Trabalho e Previdência Social. Explica-se: a Medida Provisória 150, de 21 de março de 1990, que regulou tal mudança, limitou o rol de competências deste novel ministério, retirando qualquer atribuição para questões sindicais. Assim, a Instrução Normativa 09, partindo dessa ideia, criou em caráter provisório o Arquivo de Entidades Sindicais Brasileiras (AESB), tendo o arquivamento caráter de ato cadastral. Essas duas últimas instruções tinham como objetivo afastar do Ministério do Trabalho (e Previdência Social) a competência para o registro de entidades sindicais, como requisito para aquisição de sua personalidade jurídica, funcionando apenas como arquivo dos seus atos constitutivos. Ocorre que a jurisprudência do STJ era patente em sentido contrário, determinando que além do registro, permanecesse a competência do Ministério do Trabalho para zelar pela unicidade sindical, verificando em seus registros a existência de eventuais entidades sindicais anteriores. Ou seja, somente adquiriria legitimidade de representação a entidade associativa que representasse determinada categoria numa limitada base territorial, ainda não representada por ente sindical anteriormente registrado. E cabia ao Ministério do Trabalho a tarefa de defesa desse sistema através do registro sindical. A IN 09 foi revogada pela Instrução Normativa 1, de 27 de agosto de 1991, que ratificou a existência do Arquivo de Entidades Sindicais Brasileiras (AESB), bem como regulamentou o processo de requerimento de inclusão de entidades sindicais neste arquivo com o intuito de aperfeiçoar o processamento dos pedidos de arquivamento e impugnação de entidades sindicais no AESB, mantendo, no entanto, afastada a natureza do registro como ato constitutivo. Cabe informar que em 1º de setembro de 1992, a IN 2 alterou em questões formais a instrução 1. A análise desses instrumentos normativos demonstra que, aos seus próprios olhos, o Ministério do Trabalho careceria de competência para a prática do ato de registro por falta de disposição legal que regulamentasse o art. 8, I, da CF/1988. Sendo que as inscrições de estatutos sindicais deveriam ser feitas no Cartório de Títulos e Documentos até a edição da referida norma, sob pena de interferência do Poder Público na organização sindical. Permanecia, no entanto, a faculdade das entidades sindicais depositarem seus estatutos no Arquivo de Entidades Sindicais Brasileiras - AESB, criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego apenas para fins de cadastro, não constituindo ato concessivo de personalidade jurídico-sindical. Ao que parece esse cadastro tinha apenas o objetivo de cumprir as diversas decisões judiciais que determinavam que o Ministério do Trabalho realizasse o registro, o que na prática não atingia o objetivo visado. Face ao imbróglio estabelecido, em 3 de agosto de 1992, a Associação Profissional dos Bombeiros Civis após ter o pedido de registro sindical sobrestado pelo Ministério do Trabalho, até que fosse editada a regulamentação estabelecendo a quem competiria realizar o registro, propôs o Mandado de Injunção 144-8/SP para que o STF provocasse o Congresso Nacional a editar a respectiva norma regulamentadora. O entendimento da Suprema Corte, no entanto, foi em sentido oposto. Segundo os ministros do STF - em decisão norteadora que pôs fim à celeuma adrede estabelecida - não haveria lacuna a ser suprimida na regra do art. 8, I, da CRFB/88. A partir da análise do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, podem ser extraídas três grandes conclusões deste julgado: 1. Ficou estabelecida a competência legal do Ministério do Trabalho e Emprego para o registro das entidades sindicais, que desponta como corolário lógico da legislação pré-constitucional. 2. Em seguida, concluiu-se que o Ministério do Trabalho se mantinha como órgão competente para zelar pelo princípio da unicidade sindical 3. Por fim, declarou-se no mandado de injunção que o registro sindical é requisito necessário à aquisição da personalidade jurídico-sindical, e não apenas cadastro de entidades sindicais. Após esse julgamento foi editada a IN 3, de agosto de 1994, que restabeleceu a competência do Ministério do Trabalho para efetuar o registro sindical e criou o Cadastro Nacional das Entidades Sindicais, composto pelos "estatutos das entidades registradas e a especificação: I - das categorias ou profissões representadas pelos sindicatos e respectivas bases territoriais; II - dos grupos de categorias correspondentes às federações; III - dos ramos econômicos ou profissionais concernentes às confederações nacionais". Regulamentando a Instrução Normativa 3, foi editada a Portaria 85, de 27 de janeiro de 1997, que instituiu a Comissão Consultiva do Registro Sindical no âmbito da Secretaria de Relações do Trabalho. Tratava-se de uma comissão tripartite (formada por quatro representantes dos empregados, dos empregadores e governamentais) com a competência de opinar sobre a legitimidade das impugnações aos pedidos de Registro Sindical. Criada a Instrução Normativa 1, de 17 de julho de 1997, a IN 3 e a Portaria 85 foram expressamente revogadas, e há a delegação ao Secretário de Relações do Trabalho da competência do Ministro do Trabalho para praticar todos os atos relativos ao Registro Sindical. Com a edição Portaria 343, de 4 de maio de 2000, que foi alterada pela Portaria 376, de 23 de maio de 2000, a matéria passa a ser regulada por aquela. Em 2003, após diversos julgamentos relativos ao registro sindical, o STF, enfim, fixa sua jurisprudência quanto ao tema através da Súmula 677, estabelecendo a competência do Ministério do Trabalho para proceder registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade, até que a lei viesse a regular a matéria, in verbis: "Até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade". O registro sindical passou a ser regido pela Portaria 186, de 10 de abril de 2008, do Ministério do Trabalho e Emprego, passando o procedimento de pedido de registro e alteração estatutária das entidades sindicais a ser realizado de forma eletrônica. Foi editada, então, a Portaria 326, de 1º de março de 2013, que disciplinou os pedidos de registro das entidades sindicais de primeiro grau, permanecendo vigente a Portaria 186 para as entidades de grau superior. Em 1º de junho de 2018 foi publicada a Portaria MTb 32 que suspendeu os procedimentos de registro sindical por 30 dias. A partir de então foram editadas sucessivas portarias mantendo a suspensão dos procedimentos de registro sindical até 30 de junho de 20204. Com a reforma administrativa implementada pela Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, a competência para o registro sindical passou a ser do Ministério da Justiça e Segurança Pública (art. 37, inciso VI), sendo então editada a Portaria 501, de 30 de abril de 2019, que dispôs sobre os procedimentos administrativos para o registro de entidades sindicais. A MP 870 foi convertida na lei 13.844, de 18 de junho de 2019, que transferiu para o Ministério da Economia a competência para o registro sindical (art. 31, inciso XLI), através da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. O procedimento administrativo para o registro de entidades sindicais atualmente vem regulado pela Portaria SEPRT 17.593, de 24 de julho de 2020, e, ao menos textualmente, não se afastou de forma relevante do procedimento adotado pela antiga Portaria 186. A partir dessa análise histórica do registro sindical no Brasil, verifica-se que o modelo de sindicalismo legal permanece resistindo em sua essência durante várias décadas. E que, em arremate, o Registro Sindical se mantém como mecanismo de intervenção do Estado para resguardar a observância do princípio da unicidade sindical e, por que não, do bom e velho "egoísmo de fração", em que cada categoria legalmente constituída tende ao isolamento na defesa de seus interesses específicos, sem qualquer consciência de classe5. *Leonardo Soares Bello é mestre em Direito. Professor de Direito Coletivo do Trabalho. Auditor-Fiscal do Trabalho. __________ 1 A primeira lei sindical no país foi o Decreto 979 de 1903 que regulava os sindicatos agrícolas. BRASIL. Presidência da República. Decreto 979, de 06 de janeiro de 1903. Disponível aqui. Acesso em: 14. mar. 2012. 2 VIANNA, Oliveira. Problemas de Direito Sindical. Rio de Janeiro: Max Limonad. 1943. pág. 209. 3 A partir daí diversos sindicatos vão ser constituídos por meio de registro no cartório de títulos e documentos e ganhar personalidade jurídica, já que não encontrarão impedimento para o registro de entidade representativa da mesma categoria profissional ou econômica na mesma base territorial; o que gera ainda hoje inúmeras ações entre sindicatos e, não raro, dois sindi­catos convocam um mesmo empregador para negociação coletiva e o notificam para o repasse da contribuição sindical obrigatória. As empresas, por sua vez, se utilizam da ação de consignação em pagamento, para que a justiça decida qual sindicato representa seus empregados, de forma a evitar ter que pagar a contribuição sindical à entidade não representativa. 4 Portaria MTb nº 507, de 12 de julho de 2018; Portaria MTb nº 789, de 26 de setembro de 2018 Portaria MJSP nº 87, de 31 de janeiro de 2019; Portaria SEPRT nº 1.229, de 07 de novembro de 2019; Portaria SEPRT nº 3.203, de 5 de fevereiro de 2020; Portaria SEPRT nº 9275, de 06 de abril de 2020. 5 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1968.
Texto de autoria de Mariana Evelin da Silva Leal Por força dos artigos 220, inciso VIII e 225, ambos da Constituição Federal, o meio ambiente é um direito fundamental e, dentro deste, encontra-se o meio ambiente do trabalho. De acordo com as lições de Ney Maranhão1, é restrito o pensamento de crer que o meio ambiente de trabalho é somente o preciso local da prestação de serviços, devendo ser observada a natureza tríplice na composição dos fatores de risco, qual seja, condições de trabalho, organização e relações interpessoais. Ademais, é dever da empresa a redução de riscos inerentes ao trabalho, conforme preceitua o artigo 7º, inciso XXII, da CF/88. A partir desse panorama é que se mostra relevante a análise das novas facetas que apresentam as questões de saúde e segurança do trabalho em tempos de pandemia da Covid-19 no Brasil. No que tange ao atestado médico, recomenda o Ministério Público do Trabalho, em atenção ao princípio constitucional da função social da empresa, que os empregadores, em geral, devem aceitar a autodeclaração do(a) empregado(a) sobre o seu estado de saúde, relativamente à presença de sintomas da Covid-19, promovendo o afastamento do local de trabalho, como medida de prevenção da saúde pública, sem prejuízo do abono dos dias de faltas. Ainda que se levante a hipótese de eventual má-fé por parte do(a) empregado(a), o próprio MPT ressalta, na Recomendação Nº 1 - PGT/GT COVID-19, que a declaração falsa, além de configurar, em tese, os crimes previstos nos arts. 171 (estelionato) e 299 do Código Penal (falsidade ideológica), poderá sujeitar o(a) empregado(a) às sanções decorrentes do exercício do poder diretivo patronal, quais sejam, advertência, suspensão e/ou dispensa por justa causa. Não vamos adentrar na questão previdenciária, pois, para a finalidade de afastamento superior a 14 dias, ou seja, nas hipóteses mais graves da contaminação e complicações causadas pela Covid-19, alguns documentos formais são exigidos. Objetiva o presente artigo, em realidade, tratar das questões mais corriqueiras que, felizmente, são os casos leves e moderados da doença, os quais não costumam se prolongar por grande espaço de tempo. No plano nacional, a Portaria Conjunta 20/2020 do Ministério da Economia/Secretaria Especial de Previdência e Trabalho indica que a quarentena do(a) empregado(a) que contraiu a Covid-19, mas não apresentou sintomas graves, deve ser de 14 dias. O item 5 do Protocolo publicado em 29/06, pelo Governo de São Paulo sobre o assunto, orienta as empresas nos seguintes moldes: se o funcionário estiver sintomático, permanecer em isolamento domiciliar por 14 dias. Após o isolamento, e com pelo menos 3 dias sem sintomas, o funcionário poderá voltar ao trabalho. As normas atinentes à Covid-19 não mencionam obrigatoriedade de realização de exame médico quando do retorno do afastamento acima indicado. É possível conjugarmos dois fatores para conclusão no sentido de que não há obrigatoriedade legal: o primeiro deles é que o nosso ordenamento jurídico, de maneira geral, estabelece que tal providência deva ser tomada apenas nos casos em que o(a) empregado(a) permanecer ausente por período igual ou superior a 30 dias, em razão de doença de natureza ocupacional ou não; o segundo motivo, mais significativo para a análise, reside no fato de que a OMS e diversas outras autoridades médicas já se posicionaram quanto à improvável transmissibilidade do vírus depois de decorridos os 14 dias dos primeiros sintomas. No que se refere ao exame periódico imposto pelo artigo 168 da CLT, em regra, ele é realizado bienalmente, no caso de empregados(as) que estejam na faixa etária entre 18 a 45 anos. Todavia, não há impedimento para que seja efetivado em prazo inferior, principalmente se considerarmos o contexto de uma pandemia, com vistas a garantir à saúde dos(as) empregados(as) e da própria sociedade civil. O parágrafo 2º do art. 168 da CLT autoriza, ainda, ao empregador, a realização de exames complementares, a critério médico. O resultado deverá ser comunicado ao(à) trabalhador(a). Importante mencionar que o Código de Ética Médica veda a revelação de fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Destarte, quando a doença que o(a) paciente possui representa acentuado risco à comunidade, como é o caso da Covid-19, o fato poderá ser divulgado a terceiros, pois prevalece o interesse público e o direito à saúde pública em detrimento da intimidade/privacidade do(a) paciente. Nesse sentido, sobre a questão do sigilo no âmbito privado das empresas em relação à Covid-19, já foi proferida decisão em sede de Mandado de Segurança (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região / proc. nº 00214913220205040000) autorizando a divulgação do nome da pessoa infectada, desde que com a devida autorização individual e expressa, a fim de que possam ser estabelecidas medidas de proteção às demais pessoas que possivelmente tenham mantido algum tipo de contato direto ou indireto com o(a) infectado(a). Quanto à exteriorização de recusa pelo(a) empregado(a) acerca da divulgação, sob o ponto de vista do direito constitucional do trabalho, entendemos que a oposição deva ser respeitada, pois atrelada ao direito fundamental da intimidade e, ainda, da proteção dos dados pessoais (lembremos que a rigorosa Lei Geral de Proteção de Dados entrará em vigor no próximo ano), isto desde que seja possível à empresa tomar as medidas de prevenção ao contágio e transmissão sem a necessária exposição da imagem do(a) empregado(a). Vale mencionar o art. 6º da lei 13.979/2020, que versa sobre o "enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019", e dispõe que: Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação. § 1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária. O fato é que, na prática, o anonimato certamente ficará bastante fragilizado em razão do obrigatório afastamento da pessoa do local de trabalho e de suas atividades. Dando continuidade às previsões trabalhistas de exames médicos, a Norma Regulamentadora 7 (NR-7) prevê expressamente que o PCMSO deverá considerar as questões incidentes sobre o indivíduo e a coletividade da classe trabalhadora, privilegiando o instrumental clínico-epidemiológico na abordagem da relação entre sua saúde e o trabalho. Isso significa que o(a) médico(a) deve aplicar um "olhar coletivo"2 nas questões relacionadas à segurança e a saúde dos(as) trabalhadores(as), com valorização do controle social, ponto este que se mostra relevante durante a pandemia, até mesmo para fins de estatísticas e contenção da doença. Contribui com essa linha argumentativa o fato de que o MPT já assinalou, com base nas diretrizes divulgadas pelo Ministério da Saúde, que diante da falta de testes de detecção do coronavírus, a verificação da evolução da pandemia será feita pelo método da investigação epidemiológica, e, como é óbvio, a investigação epidemiológica, é realizada a partir de casos notificados (clinicamente declarados ou suspeitos) e seus contatos, com vistas a identificar a fonte de infecção e o modo de transmissão, os grupos expostos a maior risco e os fatores de risco, bem como confirmar o diagnóstico e determinar as principais características epidemiológicas. Ainda acerca da NR-7, esta estabelece que compete ao empregador custear, sem ônus para o(a) empregado(a), todos os procedimentos relacionados ao PCMSO (item 7.3.1.b). No mesmo sentido é a Convenção 155 da OIT, ratificada pelo Brasil: "Art. 21 - As medidas de segurança e higiene do trabalho não deverão implicar nenhum ônus financeiro para os trabalhadores". Surge, assim, a questão da testagem dos empregados e empregadas do âmbito privado. Em julgamento recente, o Tribunal Superior do Trabalho derrubou uma liminar que obrigava instituições bancárias a realizarem testes para a Covid-19 em todo o seu quadro de empregados(as). O Ministro Aloysio Corrêa da Veiga destacou questões afetas à disponibilidade e dificuldade na realização dos ditos exames. Em seguida, a Portaria Conjunta 20/2020, já mencionada no presente artigo, definiu que "não deve ser exigida testagem laboratorial para a Covid-19 de todos os trabalhadores como condição para retomada das atividades do setor ou do estabelecimento por não haver, até o momento, recomendação técnica para esse procedimento". Vimos, assim, que não há obrigatoriedade de testagem em massa no âmbito corporativo. De qualquer forma, igualmente não há vedação para que as empresas disponibilizem testes aos seus empregados e empregadas, desde que pautados pelos princípios constitucionais da preservação da saúde e da precaução e redução dos riscos (na incerteza de o evento lesivo ocorrer, devem ser privilegiadas as medidas para que eles não ocorram), sem qualquer discriminação e, especialmente, tomando o cuidado de colher a autorização individual de cada pessoa, em conformidade com os limites constitucionais à intimidade já discutidos nesse artigo. No entanto, pensamos que, se a empresa possui a capacidade financeira, o ideal seria a realização dos testes, mantendo os(as) trabalhadores(as) protegidos(as) e informados(as), considerando, ainda que os(as) empregados(as) podem levar o vírus para suas residências, transmitindo para pessoas do convício familiar ou comunitário, que muitas vezes se enquadram em algum grupo de risco. Importa, assim, a responsabilidade social da empresa, que tem a assunção dos riscos decorrentes da própria atividade produtiva e deve assegurar um meio ambiente de trabalho saudável. A Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil - e que, portanto, assume caráter vinculante -, prevê em seu art. 16 que deverá ser exigida dos empregadores, na medida do que for razoável e possível, a garantia de que os locais de trabalho não envolvam risco algum para a segurança e a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Referida Convenção, ao conceituar o termo saúde em relação ao trabalho, não se limitou apenas à ausência de doenças, no sentido estrito, mas também aos elementos físicos e mentais que permeiam o assunto segurança e higiene no labor. A alínea "f)" do mesmo diploma internacional sugere ao(à) trabalhador(a) que informe imediatamente o seu superior hierárquico direto sobre qualquer situação de trabalho que, a seu ver e por motivos razoáveis, envolva um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde, sendo que, enquanto o empregador não tiver tomado medidas corretivas, se forem necessárias, não poderá exigir dos trabalhadores a sua volta a uma situação de trabalho onde exista, em caráter contínuo, um perigo grave ou iminente para sua vida ou sua saúde. Por fim, frisamos que o plenário do STF, em sessão realizada por videoconferência no dia 29 de abril, já sinalizou que a Covid-19 poderá ser caracterizada acidente de trabalho, com todos os efeitos trabalhistas e previdenciários daí decorrentes. Essa caracterização dependerá, evidentemente, das circunstâncias do caso concreto, já que a legislação prevê que as doenças endêmicas dependem de alguns requisitos, como o nexo causal. Mas é também pela análise caso a caso que a Justiça balizará suas decisões sobre a responsabilidade das empresas, em observância aos procedimentos que foram adotados na preservação da saúde do seu quadro de empregados(as) e respectivos efeitos de contenção do vírus perante a sociedade civil em geral. *Mariana Evelin da Silva Leal é aluna especial de mestrado em direitos humanos na USP. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela USP (2019) e pela PUC/COGEAE-SP (2016). Professora de Direito do Trabalho no programa de pós-graduação da FMU. Advogada consultiva nas áreas trabalhista e de compliance em direitos humanos & empresas. __________ 1 MARANHÃO, Ney. Poluição labor-ambiental. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2017. Pág. 107. 2 MIRANDA, Carlos Roberto e DIAS, Carlos Roberto. PPRA / PCMSO: auditoria, inspeção do trabalho e controle social. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. 2003. Volume 28.
Texto de autoria de Janaína Gameiro A Medida Provisória 927/20, editada no dia 22 de março deste ano pelo Governo Federal, perdeu a sua vigência no último domingo, 19 de julho, ou, em outras palavras, "caducou". A MP dispôs sobre uma série de medidas trabalhistas propostas pelo Presidente da República para enfrentamento dos efeitos da crise econômica e do estado de calamidade pública decorrentes da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19). Embora o estado de calamidade pública esteja previsto para subsistir até o dia 31 de dezembro, nos termos do decreto legislativo 6/20, as empresas não poderão mais flexibilizar, doravante, as regras trabalhistas até então inseridas na medida provisória para manutenção dos postos de trabalho. Com a perda da vigência da MP 927, as empresas terão que voltar a observar os termos da legislação trabalhista vigente, especialmente em relação aos temas nela previstos, dentre os quais se destacam: o teletrabalho, as férias individuais e coletivas, a prestação de serviço em dias considerados como feriados, o banco de horas negativo, as exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, além dos prazos para recolhimento do FGTS e de vigência das convenções e acordos coletivos de trabalho. Importante observar que todas as medidas adotas durante a vigência da MP serão reputadas válidas, com a produção dos efeitos nela previstos. Todavia, a partir do dia 20/7, ante a caducidade da MP, voltam a viger as regras anteriormente previstas para os temas acima e os demais atinentes às relações de trabalho e emprego. Mas a grande dúvida que fica aos trabalhadores e empresário é a seguinte: e agora, como ficam as questões tratadas pela MP tendo em vista o término de sua vigência? Quais as consequências jurídicas daí advindas? Passaremos a tratar dos principais temas abordados pela MP e as implicações oriundas da perda de vigência da medida, sem, contudo, ter a pretensão de esgotar a discussão que, embora profícua, somente será dirimida quando do seu enfretamento pelo Judiciário Trabalhista. Partiremos, inicialmente, do teletrabalho. Embora a MP 927 não tenha criado tal modalidade de prestação de serviços, na medida em que a CLT já contemplava as regras para a sua adoção, muitas empresas implementaram o trabalho a distância, fora das dependências do empregador, no qual se inclui o "home office". Nos termos da MP, para que o empregador pudesse alterar o regime de presencial para o de teletrabalho, bastaria a comunicação ao empregado com uma antecedência de 48 horas, por escrito ou por meio eletrônico, sem a feitura de acordo individual ou coletivo ou aditamento ao contrato de trabalho. Ainda nos termos da MP, os aprendizes e os estagiários poderiam prestar serviços na modalidade em questão. Agora, para que o empregador possa adotar ou manter a prestação de serviços em "home office", é necessária a anuência do empregado e a elaboração de termo aditivo contemplando a alteração do regime presencial para o teletrabalho. E, mais, embora a CLT determine a observância do prazo de 15 dias para retorno do empregado do regime de teletrabalho para o presencial, é possível firmar o entendimento no sentido de que, se o empregado que já está prestando o trabalho a distância entender que necessita de tempo inferior, prazo menor poderá ser estipulado. Destaque-se, por oportuno, que muitas discussões poderão ocorrer em relação às horas extras prestadas à distância e a cargo de quem ficarão as despesas decorrentes da prestação de serviços fora das dependências do empregador. Em relação às horas extras, a CLT já contemplava previsão a respeito, enfatizando que somente não seriam devidas as horas suplementares no caso de haver a impossibilidade de o empregador fiscalizar e controlar a jornada de trabalho. No que diz respeito ao pagamento das despesas oriundas da prestação de serviços em teletrabalho, a CLT também já previa que as regras deveriam ser previstas em contrato escrito quanto à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária à prestação de serviços na referida modalidade. Em que pesem tais considerações, no tocante às despesas, os tribunais trabalhistas já têm entendido que a responsabilidade é da empresa, detentora dos riscos da atividade econômica. Apesar de a CLT contemplar regras sobre a responsabilidade das despesas e quanto ao sobrelabor na prestação de serviços na modalidade de teletrabalho, não previu a possibilidade de os aprendizes e os estagiários exercerem as suas atividades de tal maneira, o que também implica dizer que não há vedação expressa nesse sentido. Dessa maneira, podemos defender que, se o estagiário e o aprendiz contarem com supervisão técnica enquanto trabalharem à distância, poderão continuar a prestar serviços na referida modalidade, devendo a empresa reunir provas de que a referida supervisão, de fato, ocorria. Num segundo ponto, em relação às férias, tem-se que elas não mais poderão ser concedidas se o trabalhador não tiver completado o período aquisitivo de 12 meses, devendo haver a comunicação acerca da concessão no prazo de, no mínimo de 30 dias, e não mais de 48 horas como permitido pela MP. Quanto às férias coletivas, também volta a valer o quanto disposto na CLT e, em especial, nas negociações coletivas. Mas e nos casos em que o aviso de férias foi dado pelo empregador enquanto a MP estava vigente, com início da fruição para o período posterior, a partir do dia 20/7? Entendemos que haveria a necessidade de o gozo das férias ter se iniciado até o dia 19/7, ainda que o encerramento do descanso anual ocorresse após o término de sua vigência, sob pena de as férias serem reputadas nulas e, por conseguinte, tal ato ensejar o seu pagamento em dobro em eventual demanda trabalhista. Um terceiro aspecto diz respeito à antecipação dos feriados, de modo que tal prática não mais poderá ser adotada pelas empresas. A questão que se coloca aqui é como a empresa deverá proceder no caso de a autoridade estadual ou municipal antecipar feriado que, por sua vez, já foi antecipado pelo empregador durante a vigência da MP? Nesse caso, valerá a antecipação realizada pela empresa, caso em que o empregado poderá trabalhar normalmente, atendidas às demais determinações relacionadas ao funcionamento dos estabelecimentos em tais dias, sem que seja necessário o pagamento diferenciado. Outra questão trazida pela MP e que passa a ser tormentosa com o término de sua vigência diz respeito ao banco de horas. A MP flexibilizou as regras contidas na MP permitindo que, no caso de interrupção das atividades da empresa, a compensação das horas poderia ocorrer no prazo de até 18 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, ou seja, a partir de 01 de janeiro de 2021, desde que estabelecido por meio de acordo individual ou coletivo. A partir de agora, voltam a valer as regras insertas à CLT, sendo de até 6 meses o prazo para compensação, se firmando por acordo individual, ou de 1 ano, se houver negociação coletiva. Todavia, os créditos e débitos a serem considerados para a compensação após o dia 31 de dezembro são somente aqueles computados até o dia 19/7; as horas negativas ou positivas levadas ao banco a partir de 20/7 deverão ser compensadas no período de 6 meses ou 1 ano, a depender do instrumento (individual ou coletivo) que as contemplar. No que tange às exigências administrativas em segurança e saúde do trabalho, notadamente quanto a realização de exames médicos admissionais, periódicos e demissionais, tem-se que, a partir de agora, as empresas devem voltar a realizá-los, levando em consideração que, durante a vigência da MP, a contagem dos dias ficou suspensa. As Comissões Internas de Acidentes (CIPA's) que tiveram os mandatos de seus membros mantidos durante a vigência da MP deverão promover novas eleições, desde que as empresas tenham retomado o funcionamento, uma vez que se exige que a atividade esteja sendo exercida para que haja eleições e posse dos membros respectivos. Caso contrário, considera-se prorrogados os mandatos até a retomada das atividades. Os treinamentos de segurança previstos nas Normas Regulamentadoras também devem ser retomados a partir do retorno das atividades da empresa. Outra questão de grande relevo diz respeito à impossibilidade de as empresas prorrogarem, e até mesmo parcelarem, o recolhimento do FGTS ante o término de vigência da MP. Com o término da vigência da MP, além de não restarem outras alternativas às empresas além daquelas relativas à redução e suspensão da jornada de trabalho previstas na MP nº 936/2020, convertida na Lei nº 14.020/2020, não há a possibilidade de elastecimento do prazo de recolhimento ou de parcelamento do valor devido. Ainda, as convenções e acordos coletivos que tiveram o prazo de vigência encerrado durante a vigência da MP foram automaticamente prorrogados e as regras previstas nos referidos instrumentos continuam em vigor. Entretanto, com a caducidade da MP, não mais tem prevalência o acordo individual sobre o coletivo, sendo retomada a regra contida na CLT e introduzida com a Lei nº 13.467/2017, com a valorização do negociado em detrimento do quanto acordado individualmente ou na legislação. De mais a mais, com a perda de vigência da MP, não poderá haver a reedição da referida medida provisória em 2020, razão pela qual se espera que o Parlamento edite um decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas praticadas enquanto na vigência da MP, tendo o prazo de até 60 dias para fazê-lo. A ausência de votação da MP nº 927 demonstra o posicionamento antagônico do Congresso Nacional ao do Governo Federal, com consequências gravosas ao trabalhador, que se sujeitará à possibilidade de perder o emprego, e, por conseguinte, a sua renda; e também ao empregador, especialmente as empresas de médio e pequeno porte, que não mais poderão se valer da flexibilização das regras previstas na legislação laboral para continuarem existindo e oferendo postos de trabalho. A conclusão final a que se chega é que a perda maior não foi política, com a derrota do Presidente da República perante o Congresso Nacional, mas sim de todos trabalhadores brasileiro, cujos botes ficarão à deriva até que a tormenta ocasionada pela pandemia do coronavírus deixe de produzir efeitos. *Janaína Eichenberger é graduada em Direito pela Universidade Mackenzie São Paulo, pós-graduada em Direito Público pela EPD-Escola Paulista de Direito. Atua como advogada trabalhista nas áreas de contencioso e consultoria. Atuou como professora de redação jurídica em cursos preparatórios para OAB.
Texto de autoria de Paula Bolico Lampert A covid-19 traz a debate a sua natureza endêmica, o que poderia levar à conclusão de que não poderia ser enquadrada no conceito de doença ocupacional e, mais, afastar de plano a possibilidade de incidência das normas de proteção em caso de contágio, em face da previsão do artigo 20, § 1º, "d", da lei 8.213/1991. A doença endêmica representa tipo de enfermidade própria de determinadas regiões do país, em especial no Brasil (Norte e Nordeste). É a enfermidade que "persiste em determinado território ou em certas de suas zonas; é a dependente de causas locais e grassa habitualmente num povo ou numa região; é a expressiva de uma causa habitual"1. Permanece atrelada ao fato de ser própria de região específica, em determinado tempo e espaço2. É "peculiar, usual, comum a um povo e região" podendo ser citadas como exemplo a malária (típica de regiões quentes e pantanosas) e o mal de Chagas (transmitido pelo mosquito barbeiro ou pelo Trypanosoma Cruzi)3. Tem "[...] caráter de endemia; peculiar a um povo ou região; aquela que sem grandes variações de incidências ocorre constantemente em determinada região"4. Para Mozart Victor Russomano, caracteriza-se pela generalização, alcançando elevados índices estatísticos em região ou localidade específica de um país; é a doença que, por força das condições locais, se manifesta habitualmente na população de determinada extensão territorial5. Nessas hipóteses, não há correlação entre a atividade do empregado e a enfermidade, justificada, ainda mais, com as características de pandemia da Covid-19. Contudo, o mesmo dispositivo que repele o caráter ocupacional da doença, contém exceção na sua parte final, representada pela expressão "salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho". Trata-se de expressa ressalva do conceito de doença ocupacional o fato de a sua aquisição haver sido ocasionada pela exposição ou contato direto com a doença em função do trabalho. Para tanto, devem ser considerados os fatores paralelos relacionados aos antecedentes ou à história do trabalho com a doença, duração ou tempo exposto, sensibilidade de cada pessoa. Ivan Kertzman e Luciano Dorea Martinez Carreiro após citarem, como exemplo, a situação em que um empregado, habitante da região amazônica, é picado pelo mosquito transmissor da malária, registram que o fato pode caracterizar doença do trabalho se a exposição ao contato direto com o citado inseto se der por força do seu labor, como em relação aos "caça-mosquitos"6. Distingue-se a endemia, porém, da epidemia. Esta corresponde a um "surto de uma doença acidental e transitória que ataca grande número de indivíduos, ao mesmo tempo, em certo país ou região, com o caráter de extraordinário"7. Observa Bento de Faria que a doença de natureza endêmica pode se manifestar sob a forma epidêmica, em regiões não endêmicas, o que não permitirá afastar a circunstância excludente, em virtude do caráter de extraordinariedade como no episódio fartamente noticiado pela imprensa de ocorrência de inúmeros casos de doença de Chagas em Santa Catarina, no ano de 2005, ou, nessa fase atual da história, a Covid-19, já no estágio de pandemia8. Assim, a doença, mesmo endêmica ou pandêmica, no caso da Covid-19, pode ser considerada de natureza ocupacional quando resulte das condições de trabalho. Exemplo disso é o caso de o empregado transferido de região onde não ainda não existia venha a contrair a doença por trabalhar em local em que esteja disseminada ou quando, mesmo habitando-a, não seja portador da doença e a adquira pelo fato de haver sido exposto ao contágio, como no caso específico dos profissionais de saúde ou dos trabalhadores que executam as atividades de limpeza e higienização dos estabelecimentos de saúde; motoristas de ambulância e carros funerários; trabalhadores em cemitérios, entre outros. Significa afirmar que, anteriormente à etapa de possível contágio generalizado, se um empregado viajasse a serviço para países onde já houvesse essa forma de transmissão, não se pode afastar o caráter ocupacional, pois foi exatamente o trabalho que potencializou a condição de exposição aos fatores de contágio e de risco de contaminação. Por isso, mostra-se relevante identificar-se a data em que, no Brasil, foi declarada a situação de transmissão comunitária, o que ocorreu, oficialmente, no dia 20 de março de 2020, como informa o Ministério da Saúde, pelo fato de existirem, nessa data, 904 casos confirmados em 24 Estados da Federação, além do Distrito Federal. Antes desse fato, havia condições, pelo menos no plano teórico, de ser identificada a origem do contágio, em geral pessoas provenientes de regiões afetadas pela doença. Por isso, tem pertinência o alerta feito por Feijó Coimbra, relacionado à doença degenerativa, mas aplicável às doenças endêmicas, no sentido de que existirão casos em que a índole degenerativa da doença (ou endêmica, acresça-se) não impedirá que seja ela acolhida como fator de risco profissional, sendo necessário, para tanto, averiguar como o trabalho pode ter influído no aparecimento ou no agravamento do mal9. Em outras palavras, se o fator trabalho nada acrescentar às possibilidades de contágio, estar-se-á diante do que se pode denominar de "doença exclusivamente endêmica", e, por conseguinte, terá plena incidência o artigo 29 da MP 927/20; caso contrário, permanecem as regras gerais contidas na lei 8.213/1991, até porque não foram afetadas pela nova disciplina normativa. Em recente decisão liminar, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, suspendeu a eficácia do artigo 29 da MP 927, que determinava que os casos de contaminação pelo coronavírus não eram considerados doenças ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal. Segundo o relator das ADI's 6346, 6348, 6349, 6352, 6354, 6342, 6344, ministro Alexandre de Moraes, "o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco". Também votaram neste sentido os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lucia, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Luiz Roberto Barroso. Portanto, pelo menos até que ocorra o julgamento definitivo do mérito das citadas ADI's, o dispositivo foi extirpado do sistema jurídico, o que faz prevalecer, no tema, as regras previstas na lei 8.213/1991 outrora destacadas. Ao encontro com este entendimento do E. STF, a Juíza da 1ª Vara do Trabalho de Vitória, Estado do Espírito Santo, reconheceu a reintegração de trabalho a uma técnica em enfermagem que foi demitida após retornar de afastamento por ser diagnosticada com COVID-19. A juíza considerou o entendimento da Excelsa Corte no sentido de que a infecção por coronavírus pode ser equiparada à doença ocupacional. Ainda, entendeu a magistrada que é fato notório que os profissionais da área de saúde têm atuado linha de frente para prevenir, combater a propagação e tratar os infectados pelo novo coronavírus no Brasil10. Por todo o exposto, apesar da natureza pandêmica - acima, portanto, da condição de mera endemia -, a covid-19 pode ser qualificada como enfermidade de natureza ocupacional, mais precisamente doença do trabalho, para os casos dos trabalhadores que exercem as suas atividades em ambientes nos quais estejam presentes as possibilidades de contágio, como estabelecimentos de saúde, ambulâncias, necrotérios, hospitais, entre outros. Na mesma linha, pode ser equiparada à natureza ocupacional nas situações de pessoas que, de modo acidental, venham a se contagiar, desde que se faça necessária a comprovação do nexo de causalidade entre a doença e o labor. *Paula Bolico Lampert é advogada trabalhista e pós-graduanda em Direito e Processo de Trabalho e Seguridade Social na Fundação Escola de Magistratura Trabalhista do Rio Grande do Sul - FEMARGS - PORTO ALEGRE/RS. __________ 1 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172. 2 CARVALHO, H. Veiga de. Acidentes do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 52. 3 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Curso de direito infortunístico. 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1992. p. 63. 4 PEDROTTI, Irineu Antonio. Comentários às leis de acidentes do trabalho: área urbana e rural. São Paulo: Universitária de Direito, 1986. p. 45. 5 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à lei de acidentes do trabalho. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. v. I, p. 31. 6 KERTZMAN, Ivan; CARREIRO, Luciano Dorea Martinez. Guia prático da previdência social: tudo sobre sua aposentadoria e demais benefícios. Salvador: JusPodivm, 2003. p. 66. 7 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172. 8 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172. 9 COIMBRA, Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 2001. p. 205. 10 Disponível aqui. Acesso em: 6 de jul. 2020.
Texto de autoria de Felipe Augusto Oliveira Lepper Constantemente o mundo se transforma e passa por mudanças que implicam no cotidiano do ser humano, obrigando-o a se reinventar e se readaptar todos os dias para conviver com tais mudanças, e se amoldar às novas descobertas, tecnologias e, até mesmo, ao modo de viver e trabalhar. Caso não haja essa adaptação pelo homem, e este não acompanhe tal evolução, ficará para trás e inerte perante o assolamento do mercado de trabalho e pelos profissionais mais capacitados. Atualmente, é certo que passamos por sérias transformações, inclusive em âmbito mundial, com a calamidade decorrente pelo novo Coronavírus (Covid-19). Alterações no dia a dia do homem, na forma de viver e na forma de trabalhar são recorrentes e quase sempre somos surpreendidos com novas medidas complementares tomadas pelo governo para que se possamos enfrentar o estado de calamidade pública e não impactar na economia com o aumento do desemprego, garantindo, assim, a continuidade das atividades empresariais e os serviços essenciais, conforme prevê a MP 936/2020. Ocorre que tais medidas impactam diretamente na vida do trabalhador e podem gerar consequências, que inclusive serão abordadas neste presente artigo, e que há grandes chances delas continuarem após a pandemia. O que era de costume para o trabalhador brasileiro, como acordar cedo, pegar o seu carro ou tomar o transporte público, enfrentar o congestionamento diário e chegar ao seu posto de trabalho, escritório ou empresa, hoje se modifica com o isolamento social, permitindo a troca da roupa social ou do paletó pela roupa do pijama, permitindo que o trabalhador continue em sua cama ou sente em sua sala e comece a trabalhar da sua própria estação. Ora, o que depreende, neste atual cenário, é que o distanciamento social - por conta de uma pandemia internacional, mas que se amolda ao avanço tecnológico - está modificando a forma de trabalho, a qual necessita de uma proteção especial para o trabalhador. À medida em que avançamos na tecnologia, sobretudo na forma de comunicação à distância (e-mail, WhatsApp ou até mesmo videoconferência), muito se fala é que se está pisando em solos novos. Estamos diante, portanto, de uma forma de trabalho não desconhecida, até porque já prevista na legislação celetária, porém não muito usual, qual seja, o teletrabalho, insculpido no artigo 75-A, também conhecido como trabalho à distância ou home office. Todavia, o que se pretende abordar e trazer à baila aos colegas juristas e caros leitores são as implicações que esse novo "modus vivendi" trará para a seara trabalhista pós pandemia. Ora, sabemos que hoje o trabalhador que está em sua casa, e que terá pouco acesso ao seu superior, não terá mais a desculpa de falar para o seu chefe que "não fez a tarefa, pois estava ocupado" ou "que tinha muita coisa para fazer". Ao contrário, estando em casa e não tendo que perder tempo em seu deslocamento e trajeto até o trabalho, poderá produzir mais e, inclusive, estará diante de um novo cenário de trabalho, auferido por resultados, e não por horas trabalhadas. Dessa forma, ele terá que comprovar resultados e produtividade, sem que, porém, tenha que cumprir os requisitos das 08hs diárias ou ter controle sobre sua jornada, pois terá controle total sobre sua produção, mas, ao final, terá que cumprir sua tarefa e mostrar resultados em menos ou mais horas diárias. Nesse prumo, em recente notícia veiculada no site da Folha de São Paulo, do dia 14.5.2020, a Excelentíssima Presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministra Maria Cristina Peduzzi, disse que o trabalhador deve vigiar sua jornada. Em vossas palavras, se referia à carga horária de atividades remotas, alegando que "o próprio empregado vai exercer a vigilância sobre sua jornada, e se ela ultrapassar os limites que a lei e a Constituição preveem, ele terá um direito subjetivo seu violado, e poderá ir a Justiça do Trabalho". Com efeito, é sabido que a Constituição Federal, em seu artigo 7º, XIII, dispõe que é direito do empregado ter a jornada de trabalho não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 ( quarenta e quatro) semanais, orientação também contida no artigo 58 da CLT. É cediço, outrossim, que o artigo 74 da CLT define que o horário de trabalho será anotado em registro de empregados, e que o seu parágrafo 2º define que para os estabelecimentos com mais de 20 (vinte) trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e saída, ou seja, fica a cargo do empregador ter a responsabilidade de anotar e controlar o início e término da jornada do empregado. Diante deste novo cenário que nos cerca, com a preponderância do home office adotado já por várias empresas e que assim continuarão pós pandemia, e levando-se em consideração a fala da presidente do TST, deve-se ter maior atenção com os direitos que cercam o trabalhador. Assim, como fica o questionamento inicial, objeto de análise deste estudo, no sentido de como ficarão as horas extras desse trabalhador que estará de home office, levando em conta que a CLT exclui da jornada de trabalho os empregados em regime de teletrabalho, conforme artigo 62, III? Ainda, como fica o artigo 75-A, que trata do teletrabalho, mas que não contempla o pagamento de horas extras? Outro ponto merece ser levantado para que os leitores possam refletir: o trabalhador que terá controle de vigilância de sua jornada e poderá ir à Justiça, caso veja algum direito seu subjetivo violado, poderá também este trabalhador requerer adicional noturno caso faça seu trabalho após as 22 horas, já que não previsão de adicional noturno no artigo 75 da CLT? Para os legalistas a resposta será negativa, pois não está previsto adicional noturno em lei, ao passo que para aqueles que utilizam dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, dirão que se estiver previsto em acordo individual o adicional será aplicado. Nesse sentido, sabendo-se que o trabalho do homem é um esforço físico e mental, e que salário é a contraprestação mínima devida e paga diretamente ao trabalhador pelo empregador, por dia normal de serviço, defende-se aqui a aplicação do adicional noturno caso a atividade laboral seja realizada após o turno diário. Ora, qual trabalhador irá laborar à noite, ou de madrugada, e não vai querer ter seu adicional noturno? Ainda que não tenha previsão expressa quanto à incidência do adicional noturno para os trabalhadores que laboram de suas casas, como são os casos do teletrabalho ou do home office, acredita-se ser direito do trabalhador receber por todo o período que se dispôs a laborar, dispondo de seu esforço físico e mental. Assim, todas as mudanças que passamos, seja para nos adaptarmos às mudanças rotineiras, seja para evoluirmos profissionalmente e nos adaptarmos à velocidade da tecnologia, devemos ter o respaldo da lei, que seguramente não dará conta de toda à evolução que caminha a passos largos, mas que, minimamente, atenda aos anseios do homem e satisfação pessoal. Com certeza, o cenário atual mudou e vai mudar, pós pandemia, a forma como empresas e startups contratarão seus novos funcionários, como olharão para eles, como farão um processo seletivo, visto que não haverá comunicação pessoal, mas por videoconferência. E, mais, como isso irá se refletir ao funcionário, já que a empresa terá menos custos com o empregado, não precisará pagar vale-transporte, por exemplo, não precisará pagar um salário alto, já que o empregado trabalhará de casa e receberá por seus resultados e metas. Ainda, como serão refletidas as horas pós jornada que o empregado laborar, já que não há previsão na CLT. Assim, claro está que sofremos muitas mudanças que devemos estar preparados para passar, senão muitos serão afetados e não se acostumarão com a nova forma de trabalhar. Diante de todo exposto, visível que a crise atual causada pelo Coronavírus trouxe resultados desastrosos abalando o mundo, dizimando vidas e enfraquecendo sólidas economias. Lado outro, trouxe novas formas de trabalho, principalmente em relação aos contratos de âmbito trabalhista, autorizando medidas para que as empresas suspendam os contratos ou diminuam as jornadas de trabalho e os correspondentes salários. Em arremate, devemos estar certos e preparados para o que irá ocorrer após o término da pandemia, pois certo é que se reinventar se tornou parte do cotidiano humano, seja o simples lazer em casa, seja até a própria forma de trabalho para nos mantermos vivos diante de situações desastrosas. *Felipe Augusto Oliveira Lepper é advogado. Bacharel em Direito pela UNIP. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela EPD - Escola Paulista de Direito.
Texto de autoria de Filipe Rodrigues Costa 1. Introdução No dia 1º de abril de 2020, a Presidência da República publicou a Medida Provisória nº 936/2020, que instituiu "o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda". A MP dispõe sobre medidas para a redução dos impactos econômicos causados pelo estado de calamidade pública e pelo combate ao novo coronavírus, a fim de garantir a continuidade das atividades laborais e preservar o emprego e a renda dos empregados. A constitucionalidade da referida MP é objeto de intenso debate jurídico. Já houve, inclusive, o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363/DF, com decisão liminar prolatada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, no dia 6 de abril de 2020, no seguinte sentido: "(...) Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que "[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho [...] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração", para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes. (...)"1. O objetivo do presente artigo é apresentar argumentos jurídicos que fundamentam a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. 2. Declaração do estado de calamidade pública pelo Decreto Legislativo n° 6/2020 Inicialmente, é importante destacar que o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo nº 6/2020, que foi promulgado no dia 20 de março de 2020, e reconheceu o estado de calamidade pública em todo o território nacional até o dia 31 de dezembro de 2020. O Decreto Legislativo nº 6/2020 dispensou o atingimento, pelo Governo Federal, dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898/2019 (Lei das Diretrizes Orçamentárias - LDO) e a limitação de empenho prevista no artigo 9º da Lei Complementar nº 101/2000. É indiscutível a essencialidade deste Decreto, que permitiu ao Governo Federal deslocar mais recursos financeiros para o combate da COVID-19. A dispensa do atingimento da meta fiscal estabelecida na LDO também é medida vital neste momento de calamidade pública, haja vista que as medidas de saúde indicadas para a redução da propagação do novo coronavírus (notadamente o distanciamento social e o fechamento do comércio relacionado às atividades não essenciais) importarão, necessariamente, na drástica redução da arrecadação de impostos pela União, pelos Estados e Municípios. A ausência de flexibilização da meta fiscal poderia ocasionar, em última análise, eventual responsabilização do Presidente da República por crime fiscal. O Decreto nº 6/2020 buscou garantir segurança jurídica ao Governo Federal para a realização das ações necessárias ao combate do novo coronavírus. Tal preocupação é justa, necessária e plausível. Ocorre que, da mesma forma que era necessário permitir que o Estado realocasse seus recursos financeiros para o combate desta nova doença, também era necessário auxiliar as empresas. Isto porque, assim como os Entes Públicos já sofrem as consequências econômicas do distanciamento social e da paralisação e/ou redução de várias atividades econômicas, muitas empresas também foram assoladas com drástica redução de suas receitas. De acordo com levantamento realizado pelo SEBRAE2, as micro e pequenas empresas representam 99,1% dos estabelecimentos registrados no Brasil. Isso significa que a esmagadora maioria das empresas brasileiras possui faturamento anual de até R$ 3.600.000,00. A redução substancial ou total deste faturamento pode inviabilizar a manutenção de muitas desses estabelecimentos. Portanto, creio ser ponto pacífico a necessidade de ajuda às empresas nacionais, sob pena do nascimento de outra crise, de natureza econômica, que poderá ocasionar o fechamento de muitos postos de trabalho. É salutar destacar que a Constituição da República possui como dois dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a saber: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (g.n.) O Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes assim define o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: "(...) a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos45 e a busca ao Direito à Felicidade.46 (...)"3. Bernardo Gonçalves Fernandes conceitua o princípio constitucional do valor social do trabalho da seguinte forma: "(...) Supostamente correlacionado à noção de dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho impõe a abstenção do Estado no que concerne à concessão de privilégios econômicos a uma pessoa ou grupo. Cada indivíduo deve poder compreender que, com seu trabalho, ele está contribuindo para o progresso da sociedade, recebendo a justa remuneração e condições razoáveis de trabalho. (...)"4. Ao consagrar a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como fundamentos, a Constituição da República demonstra sua preocupação em fornecer aos cidadãos as condições de busca da realização pessoal, da felicidade e do acesso ao trabalho e à justa remuneração. A Medida Provisória nº 936/2020 foi publicada exatamente com esses objetivos em vista e buscou fornecer possibilidades legais às empresas e aos empregados para o enfrentamento do estado de calamidade pública. O artigo 1º assim dispõe: Art. 1º Esta Medida Provisória institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. A MP está umbilicalmente ligada ao estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020, e propõe medidas excepcionais, porém, essenciais para a manutenção do emprego e da renda de milhões de empregados. Como já dito, tão importante quanto dar suporte e garantir a atuação do Estado na defesa da saúde e da vida dos cidadãos, é amparar as empresas neste momento de dificuldade, e facultar-lhes a negociação, junto aos empregados, para a manutenção dos empregos e da renda. Reinaldo Garcia do Nascimento e Ricardo Calcini corroboram este entendimento: "(...) É cediço que o Direito é uno, ou seja, não divisível. Contudo, dividimos as áreas para melhor estudo e compreensão didática. O mesmo acontece, inclusive, com as normas jurídicas, que protegem o bem da vida, o ser humano, valores intrínsecos e extrínsecos da sociedade contemporânea. Neste diapasão, estamos diante de uma dicotomia, ou seja, uma parcela de um todo, consubstanciado nos valores defendidos pela Constituição Federal, como a vida, saúde, trabalho, a iniciativa privada etc. (...) Ocorre que em tempos de calamidade pública e de quarentena, o que está em risco não é somente a condição social, mas - e simultaneamente - a atividade econômica desenvolvida pela livre iniciativa, o emprego e a renda do trabalhador. (...)"5. Portanto, a meu ver, as já mencionadas garantias jurídicas, econômicas e sociais fornecidas ao Estado com a promulgação do Decreto Legislativo nº 6/2020 foram espelhadas na Medida Provisória nº 936/2020, o que serve como fundamento para a defesa de sua constitucionalidade. 3. Características da Medida Provisória nº 936/2020 3.1. Objetivos A Medida Provisória nº 936/2020 possui características singulares que reforçam sua importância como alternativa ao combate às consequências econômicas da pandemia do novo coronavírus, e fundamentam a defesa da sua constitucionalidade. Uma dessas características está relacionada aos objetivos da Medida Provisória. O artigo 2º da MP é elucidativo a este respeito: Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º e com os seguintes objetivos: I - preservar o emprego e a renda; II - garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais; e III - reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública. Como já dito no tópico anterior, o cenário de calamidade pública vigente em todo o território nacional, cumulado com o fechamento de estabelecimentos comerciais e a imposição do distanciamento social, impactam fortemente nas receitas de muitas empresas, o que aumenta o sentimento de insegurança tanto dos empregados quanto dos empregadores. Empregadores estão inseguros quanto à manutenção de suas receitas e quanto à própria sobrevivência da atividade comercial; empregados estão inseguros quanto à manutenção dos salários e quanto à manutenção do próprio emprego. A MP foi publicada com o objetivo de amenizar este cenário, ao fornecer ferramentas legais para reduzir o impacto das medidas de saúde pública adotadas, garantir a continuidade das atividades empresariais e garantir o emprego e a renda dos empregados. Tais objetivos estão em perfeita sintonia com os já mencionados fundamentos da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho e da livre iniciativa, dispostos nos incisos III e IV do artigo 1º da Constituição da República. Os objetivos da MP nº 936/2020 também respeitam e atendem os princípios previstos no artigo 170 da Constituição da República: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. A harmonia entre os objetivos dispostos no artigo 2º da MP nº 936/2020 e os fundamentos e princípios dispostos nos incisos III e IV do artigo 1º e no artigo 170, ambos da Constituição da República, é forte fundamento para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória. 3.2. Abrangência Outra característica relevante da MP nº 936/2020 é sua abrangência nacional. O Programa Nacional do Emprego e da Renda, criado pela MP nº 936/2020, fornece possibilidades legais de redução dos impactos causados pelo estado de calamidade pública para as todas as empresas do território nacional, sendo as exceções dispostas no parágrafo único do artigo 3º, a saber: Art. 3º São medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda: I - o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda; II - a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; e III - a suspensão temporária do contrato de trabalho. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos órgãos da administração pública direta e indireta, às empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive às suas subsidiárias, e aos organismos internacionais. (g.n.) As exceções dizem respeito aos Entes Públicos, seus órgãos e empresas, e aos organismos internacionais. Portanto, percebe-se que a MP abrange as empresas privadas de todo o país. A abrangência nacional da MP nº 936/2020 reforça sua relevância no enfrentamento das consequências econômicas do combate ao COVID-19, pois reconhece que todas as empresas instaladas no país podem sofrer algum impacto neste momento excepcional pelo qual passa não só o Brasil, mas todo o mundo. Um dos grandes desafios das legislações que visam garantir a competitividade das empresas nacionais é evitar a valorização de determinadas categorias econômicas em detrimento de outras, o que colocaria em dúvida o alcance do objetivo proposto, pois a valorização de algumas categorias ocorreria ao custo da criação de novas desigualdades econômicas em relação a outras. A criação de leis que favorecem apenas categorias econômicas específicas sempre foi objeto de grandes questionamentos jurídicos e sociais. Entretanto, tais questionamentos não podem ser feitos com relação à Medida Provisória nº 936/2020, em razão de sua abrangência nacional e de sua preocupação de auxiliar todas as categorias econômicas neste momento de incerteza. A abrangência nacional é mais uma característica da MP nº 936/2020 que está em perfeita harmonia com o fundamento constitucional do valor social do trabalho e da livre iniciativa, e objetiva efetivá-lo da forma mais plena possível. Bem por isso, a abrangência nacional da MP nº 936/2020 busca efetivar o disposto nos incisos III e IV do artigo 1º e no artigo 170, ambos da Constituição da República, e reforça a defesa da constitucionalidade desta Medida Provisória. 3.3. Temporalidade A Medida Provisória nº 936/2020 possui aplicação temporária, conforme disposto no caput do artigo 2º: Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º e com os seguintes objetivos: (g.n.) O destaque dado ao caráter excepcional da Medida Provisória é importante para evitar dúvidas quanto à sua duração e aos seus objetivos. Diferentemente de outras medidas provisórias, a MP nº 936/2020 não foi publicada com o objetivo de tornar-se um novo marco nas relações trabalhistas, ou de promover uma "minirreforma" na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a fim de atender interesses de empregados ou de empregadores. Conforme já exposto nos tópicos anteriores, a Medida Provisória tem abrangência nacional e tem o objetivo de colaborar com a manutenção da atividade econômica, do emprego e da renda, tudo isso no período específico de vigência do estado de calamidade pública nacional. A temporalidade da MP nº 936/2020 é exatamente a mesma da vigência do Decreto Legislativo nº 6/2020, o que reforça sua função de norma colaborativa para minimizar os graves efeitos da pandemia do coronavírus. Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais, a fim de evitar o nascimento de uma crise econômica que tornaria ainda mais árdua a tarefa dos Entes Públicos, de afastar a insegurança e de garantir a toda a população o direito à vida, à saúde, à atividade econômica, ao trabalho e à renda. Todos estes são princípios e objetivos previstos na Constituição da República. Como dito, o objetivo da MP nº 936/2020 não é o de se "aproveitar" desse momento singular para reformar as relações trabalhistas, a fim de atender interesses específicos de alguma categoria. O objetivo é fornecer ferramentas temporárias para a manutenção da atividade econômica e dos empregos, específica e excepcionalmente enquanto durar o estado de calamidade pública declarado pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. A temporalidade da Medida Provisória nº 936/2020, que está estrita e inequivocamente atrelada ao Decreto Legislativo nº 6/2020, é mais um fundamento para a defesa de sua constitucionalidade. 3.4. Garantias previstas na Medida Provisória nº 923/2020 A Medida Provisória nº 936/2020 dispõe sobre garantias que merecem ser mencionadas e que reforçam a defesa de sua constitucionalidade. O inciso I do artigo 7º determina a preservação do salário-hora do empregado: Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, observados os seguintes requisitos: I - preservação do valor do salário-hora de trabalho; Tal disposição, aliada às demais características expostas no presente artigo, reforça o objetivo de minimizar as consequências econômicas do estado de calamidade pública. Isto porque não há (e nem mesmo poderia haver) qualquer norma jurídica que impeça a rescisão contratual por iniciativa do empregado ou do empregador. A mera cogitação de alguma norma neste sentido importaria em violação literal do inciso IV do artigo 1º da Constituição da República, que ressalta o valor social do trabalho e da livre iniciativa. Diante da queda no faturamento, muitos empresários vivem o dilema de como sobreviver e quitar todas as obrigações devidas. A redução do quadro de empregados é a opção mais radical, mas que em momentos de crise não pode ser descartada. A MP nº 936/2020 foi publicada com o objetivo de fornecer ferramentas para que os empregadores minimizem a necessidade de rescisão dos contratos de seus empregados. A adoção de medidas que evitam as demissões e mantêm o salário-hora é relevante e salutar. A manutenção do salário-hora demonstra a preocupação da Medida Provisória de evitar abusos por empregadores irresponsáveis e de manter um parâmetro mínimo de negociação para a manutenção da atividade econômica, do emprego e da renda. Fernando Hugo R. Miranda corrobora este entendimento: "(...) Para além da prerrogativa do legislador do estabelecimento de hipóteses de alteração in pejus do contrato, o que já asseguraria, per si, a constitucionalidade da Medida Provisória, não é demais mencionar a razoabilidade material do que proposto na norma. Para além da redução salarial contratual diretamente proporcional à redução da jornada, com a preservação necessária do salário hora, é previsto, em contrapartida, a fixação de um período de garantia de emprego e auxílio governamental. (...)"6. A meu ver, a manutenção do salário-hora deve ser interpretada como o "patamar mínimo civilizatório"7 excepcional, temporário, necessário e exclusivo para este momento de calamidade pública nacional, o que reforça a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. Outro ponto relevante está disposto no artigo 10 da MP nº 936/2020: Art. 10. Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos: I - durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho; e II - após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão. § 1º A dispensa sem justa causa que ocorrer durante o período de garantia provisória no emprego previsto no caput sujeitará o empregador ao pagamento, além das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, de indenização no valor de: I - cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento; II - setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ou III - cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho. § 2º O disposto neste artigo não se aplica às hipóteses de dispensa a pedido ou por justa causa do empregado. O artigo 10 da MP nº 936/2020 dispõe sobre a garantia provisória no emprego dos empregados que receberem o benefício previsto no caput artigo 2º. Trata-se de mais uma disposição que reforça o objetivo de manutenção do emprego neste momento de calamidade pública. A Medida Provisória cria contrapartida importante aos empregadores que tiverem a necessidade de utilizar-se da redução da jornada de trabalho ou da suspensão do contrato de algum empregado: tais empregadores serão obrigados a manter os empregados pelo período previsto no artigo 10 da MP. As possibilidades de garantia de emprego devem ser expressamente previstas em lei ou em instrumento normativo. Cabe citar algumas delas: gestante, acidente de trabalho, membro de comissão interna de prevenção de acidentes (CIPA), dirigente sindical. Tais possibilidades legais visam preservar o emprego em momentos excepcionais da vida do empregado, seja em razão do seu estado de saúde, seja em razão da sua atuação dentro das dependências da empresa. Portanto, a legislação prevê que algumas situações excepcionais ocorridas com o empregado garantem-lhe a permanência no emprego. Este foi exatamente o objetivo da MP nº 936/2020, ao criar nova modalidade de garantia provisória, notadamente em razão da situação ímpar vivida e reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. Portanto, a garantia de emprego prevista no artigo 10 da MP nº 936/2020 é mais um fundamento na defesa de sua constitucionalidade. 4. Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.363/DF Como dito no início deste trabalho, está em curso a ADI nº 6.363/DF, que pretende, em apertada síntese, a declaração da inconstitucionalidade do "uso do acordo individual para dispor sobre as medidas de redução de salário e suspensão de contrato de trabalho". No dia 06 de abril de 2020, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, deferiu parcialmente o pedido liminar e determinou a obrigatoriedade de comunicação dos sindicatos laborais quando da celebração de acordos individuais nos termos da MP nº 936/2020. Ocorre que, em julgamento concluído no dia 17 de abril de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal negou referendo à liminar e afastou a necessidade de aval dos sindicatos para o fechamento dos acordos individuais. O v. acórdão ainda não foi publicado, entretanto, a notícia do resultado do julgamento está disponível no site do Supremo Tribunal Federal. Pede-se vênia para transcrever trecho relevante: "(...) O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a eficácia da regra da Medida Provisória (MP) 936/2020 que autoriza a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais em razão da pandemia do novo coronavírus, independentemente da anuência dos sindicatos da categoria. Por maioria de votos, em julgamento realizado por videoconferência e concluído nesta sexta-feira (17), o Plenário não referendou a medida cautelar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6363, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade". Momento excepcional Prevaleceu a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele entende que, em razão do momento excepcional, a previsão de acordo individual é razoável, pois garante uma renda mínima ao trabalhador e preserva o vínculo de emprego ao fim da crise. Segundo ele, a exigência de atuação do sindicato, abrindo negociação coletiva ou não se manifestando no prazo legal, geraria insegurança jurídica e aumentaria o risco de desemprego. Para o ministro, a regra não fere princípios constitucionais, pois não há conflito entre empregados e empregadores, mas uma convergência sobre a necessidade de manutenção da atividade empresarial e do emprego. Ele considera que, diante da excepcionalidade e da limitação temporal, a regra está em consonância com a proteção constitucional à dignidade do trabalho e à manutenção do emprego. Proteção ao trabalhador O ministro Alexandre de Moraes destacou ainda a proteção ao trabalhador que firmar acordo. De acordo com a MP, além da garantia do retorno ao salário normal após 90 dias, ele terá estabilidade por mais 90 dias. Acompanharam esse entendimento os ministros Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Dias Toffoli (presidente). (...)"8. A maioria dos Ministros do STF destacou a importância da MP nº 936/2020 como ferramenta de manutenção das atividades empresariais, do emprego e da renda dos empregados, e ressaltou o caráter excepcional e temporário da medida como fundamentos para a declaração de sua constitucionalidade. Os argumentos constantes da tese prevalecente no STF corroboram todo o exposto neste artigo. 5. Conclusão Em resumo, o presente trabalho apresentou os seguintes fundamentos para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020: § a ligação umbilical e o espelhamento das garantias jurídicas, econômicas e sociais fornecidas pelo Decreto Legislativo nº 6/2020; § a harmonia entre os objetivos da MP e os objetivos e princípios previstos nos incisos III e IV do artigo 1º e o artigo 170 da Constituição da República; § a abrangência e a temporalidade da MP; § a manutenção do salário-hora e a garantia provisória de emprego previstas na MP; e § o julgamento do Pleno do STF nos autos da ADI nº 6.363/DF, que declarou a constitucionalidade da MP nº 936/2020. Entendo que estes fundamentos, analisados e compreendidos de forma conjunta e em consonância com o estado de calamidade pública vigente no país, são sólidos para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. Referências Bibliográficas FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. e atual. Salvador. Juspodivm, 2017. 1.728 p. MIRANDA, Fernando Hugo R. A constitucionalidade da MP 936/20: A irredutibilidade salarial e a alterabilidade contratual. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. NASCIMENTO, Reinaldo Garcia do; CALCINI, Ricardo. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 - São Paulo: Atlas, 2017, 666 p. *Filipe Rodrigues Costa é graduado em Direito pela PUC-Minas. Especialista em Direito do Trabalho pela UFMG. Advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (PRODEMGE). __________ 1 Disponível aqui. Acessado no dia 16 de abril de 2020. 2 Disponível aqui. Acessado no dia 16 de abril de 2020. 3 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 - São Paulo: Atlas, 2017, p. 35. 4 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador. Juspodivm, 2017, p. 314. 5 NASCIMENTO, Reinaldo Garcia do; CALCINI, Ricardo. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. 6 MIRANDA, Fernando Hugo R. A constitucionalidade da MP 936/20: A irredutibilidade salarial e a alterabilidade contratual. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. 7 Expressão consagrada pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado. 8 Disponível aqui. Acessado no dia 06 de maio de 2020.
Texto de autoria de Janete Aparecida Deste e Fábio Luiz Pacheco Muito apressadamente, em poucos meses, inúmeras alterações ocorreram no mundo do trabalho durante a pandemia (coronavírus |Covid-19) e permanecerão após ela. A pandemia declarada pela OMS - Organização Mundial da Saúde foi internalizada pelo Brasil por adesão ao Regulamento Sanitário Internacional OMS/Brasil, por meio do decreto 10.212, de 30/1/2020, tendo sido declarada a situação como de calamidade pública até 31/12/2020, pelo decreto legislativo 6, de 20/3/2020. A partir desse quadro, foram editados diversos atos normativos com a finalidade de abrandar os impactos graves da pandemia e frear a transmissão do vírus, principalmente com restrições à circulação de pessoas, o que acarretou na impossibilidade de estarem os trabalhadores em seus locais de trabalho, ainda que muitas atividades pudessem e devessem seguir sendo realizadas. Foram, então, publicados novos atos normativos, de apoio às empresas, visando, sobretudo, a manutenção de emprego e renda. De forma repentina, milhares de trabalhadores começaram a atuar, tanto quanto possível, em suas respectivas casas, pois, entre as primeiras medidas anunciadas como atenuantes do impacto da pandemia, incluía-se na MP 927, de 22/3/2020, a adoção do regime de teletrabalho (art. 3º, I). Açodadamente, implementou-se o home office nacional (art. 62, III, da CLT). E, conquanto a CLT, com a alteração promovida pela lei 13.467/17, contenha um regramento sobre o teletrabalho (arts. 75-A a 75-E), a MP 927 trouxe nova disciplina à matéria (arts. 4º e 5º). Veja-se, por outro lado, e até em virtude da urgência imposta, que não houve nenhum treinamento dos empregados quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E da CLT), não sendo fornecidos equipamentos tecnológicos e de infraestrutura específicos (art. 75-D da CLT) e, muito menos, houve alterações contratuais expressas nesse sentido (art. 75-C da CLT). Embora o foco do presente artigo não seja a análise da legalidade do teletrabalho e dos dois regramentos supra, no atual momento pandêmico (doença Covid-19) importante concluir que o aumento do número de teletrabalhadores acarreta muitas consequências, ganhando relevo a ponderação acerca da produtividade do labor remoto. Trabalhar de dentro do lar é, além de conduta muito íntima e ímpar de cada empregado, reveladora da adaptabilidade de cada um nestes tempos de isolamento físico. Ao passo, por exemplo, que há quem facilmente adapte-se à nova rotina, há quem não consiga produzir com qualidade. Desponta, em tal cenário, a chamada "síndrome do caxias", ou seja, o bullying sofrido pelo empregado inteligente, organizado e capacitado. "O melhor burro é o que carrega mais peso"; "o prego que se destaca ganha martelada". Pensamentos assim são caracterizadores de uma espécie de assédio moral, qual seja, por competência ou por produtividade. Esta modalidade de assédio moral caracteriza-se pela exigência de maior produtividade e/ou de atribuição de tarefas mais complexas aos trabalhadores mais competentes, habilidosos e inteligentes. O assédio moral por competência se apresenta, em muitos casos, como um falso "reconhecimento" por parte do empregador (ou chefia). Resulta em desequilíbrio entre o volume de trabalho maior exigido de determinado trabalhador (em face da sua competência, responsabilidade, dedicação, comprometimento, etc), e o volume de trabalho menor requerido de outros trabalhadores que se encontram em idêntica situação funcional e salarial. É modalidade de assédio personalíssima, pois tem em pessoa determinada a sua vítima - diversamente do assédio moral ambiental ou organizacional (direcionado a pessoas indeterminadas). Certo que o assédio por competência é tendente a gerar degradação da saúde física e mental do trabalhador (em face da pressão velada experimentada pelo assediado) e, a nosso ver, passível de indenização compensatória (arts. 186 e 927 do CCB; art. 5º, V e X, da CRFB; Convenção 190 da OIT; Anexo II da NR-17 da Portaria 3.214/87 do extinto MTE). E, nestes tempos de pandemia, em que o teletrabalho "forçado" se tornou a regra, o assédio moral por competência revela-se escancaradamente. Com efeito, seja na iniciativa privada, seja no meio público (no Judiciário, inclusive), é clara a percepção de que há trabalhadores mais preparados e/ou habilidosos frente ao trabalho não presencial. Unindo-se, ainda, a características pessoais como objetividade, organização, atitude, empenho e facilidade em aprender um novo labor virtual, "voilà", estamos diante de um sério candidato a receber grande quantidade de tarefas. Por mais tentador que seja, imperioso é o olhar do empregador (privado ou público) sob o viés do assédio moral por produtividade, ao distribuir as tarefas a seus subordinados. Ressalta-se que no ambiente público a modalidade é ainda mais perversa, uma vez que os vencimentos são idênticos aos que ocupam o mesmo cargo - já que as funções e cargos comissionados são limitados, e não há como "premiar" todos os bons servidores. A razoabilidade na exigência do cumprimento das tarefas e na distribuição delas é a tônica do momento (auge do confinamento social). A preservação do equilíbrio físico e mental no ambiente laboral é obrigação dos empregadores (art. 157 da CLT; art. 19, §1º, da lei 8.213/91; arts. 7º, XXII, 196, 200, VIII e 225, §3º, todos da CRFB; Convenções 148, 155 e 161, todas da OIT), reforçada em várias manifestações recentes da OMS, os quais devem pautar-se pela igualdade entre os membros da equipe, sob pena de exigir-se serviços superiores às forças de cada um, o que tipifica hipótese de falta grave do empregador (art. 483, "a", da CLT). Em conclusão, a situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional decorrente da pandemia (coronavírus) exige alterações significativas na forma de trabalhar, sendo os empregados confinados em seus lares chamados a cooperar para que as atividades produtivas possam ser minimamente mantidas. Mas o teletrabalho deve ser implementado de forma racional e equilibrada, de forma a não sobrecarregar o trabalhador mais competente e produtivo, sob pena de caracterizar-se o denominado assédio moral por competência e o correlato dever do empregador de indenizar o dano moral respectivo. *Janete Aparecida Deste é juíza do Trabalho aposentada do TRT da 4ª região. Professora de Direito Processual do Trabalho e de Direito do Trabalho Titular do JURISJAD, instituição destinada à preparação de candidatos aos concursos da Magistratura Trabalhista e Ministério Público do Trabalho. Advogada. Membro da ASRDT - Academia Sul Riograndense de Direito do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC/RS. **Fábio Luiz Pacheco é juiz do Trabalho Substituto do TRT da 8ª região. Ex-assistente de desembargador (TRT/4ª região). Ex-oficial de Justiça federal da Justiça Federal do RS (TRF/4ª região). Ex-assistente de juiz do trabalho (TRT/3a Região). Ex-chefe de Cartório Eleitoral (TRE/RS). Ex-advogado, ex-assessor jurídico municipal e da Confederação Nacional de Municípios (CNM - Brasília/DF). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/RS. Professor e palestrante.
Texto de autoria de Ricardo Calcini A lei 13.467/2017 trouxe como inovação na Reforma Trabalhista, dentre outras, a possibilidade de substituir o depósito recursal pelo seguro garantia judicial, conforme disposição prevista no artigo 899, §11 da CLT1. O objetivo dessa inovação tem por intuito, por um lado, viabilizar a garantia de futura execução dos créditos trabalhistas já reconhecidos em decisão judicial, ainda que provisória, na esfera da Justiça do Trabalho; e, por outro lado, possibilitar às empresas que os fluxos de seus caixas não sejam comprometidos e que suas atividades empresariais e econômicas não sofram impactos diretos com a indisponibilidade de recursos destinados aos depósitos judiciais, para fins de interposição de recursos como condição ao pleno exercício ao duplo grau de jurisdição e, em última análise, ao acesso à Justiça. Do ponto de vista econômico, o uso do seguro garantia judicial é sem dúvida hoje a melhor alternativa financeira para as empresas, pois evita o comprometimento do capital de giro, possibilitando o uso do dinheiro em investimentos e na continuidade de pagamento de suas obrigações. Contudo, mesmo sem óbice legislativo, à época do início da vigência da Lei Reformista, alguns Tribunais Regionais do Trabalho (TRT's)2, inclusive o próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST)3, não conheciam dos recursos amparados pelo seguro garantia judicial que, por exemplo, tivessem fundamentados em apólices com prazos determinados. Assim, haja vista que referida inovação legislativa apresentou significativa resistência por parte dos Tribunais Trabalhistas quanto ao uso do seguro garantia judicial, bem como pela insegurança jurídica em razão de divergentes entendimentos, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho junto com o Tribunal Superior do Trabalho, além da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, publicaram o Ato Conjunto TST.CSJT.CGJT nº 1, de 16 de outubro de 2019, que estabeleceu regras para a padronização da recepção das apólices de seguros garantias judiciais para substituição dos depósitos recursais. E no tocante à substituição do depósito recursal trabalhista pelo seguro garantia judicial, o citado Ato Conjunto passou exigir, por exemplo, que o valor segurado inicial deve ser igual ao montante da condenação, acrescido de, no mínimo 30%, observados os limites estabelecidos pela Instrução Normativa nº 3 do TST, constituindo-se como pressuposto de admissibilidade recursal. Além disto, as partes e as seguradoras devem observar que a apólice contenha previsão de atualização da indenização pelos índices legais aplicáveis aos débitos trabalhistas4, a manutenção da vigência do seguro mesmo que a empresa esteja em atraso com o pagamento do prêmio nas datas convencionadas, referência ao número do processo judicial, vigência mínima de três anos da apólice, endereço atualizado da seguradora e cláusula de renovação automática. O não cumprimento de aludidos requisitos ensejará o não processamento ou não conhecimento do recurso, por deserção5. Entrementes, o artigo 8º do Ato Conjunto TST/CSJT/CCSJT nº 1/2019 predispunha que "após realizado o depósito recursal, não será admitido o uso de seguro garantia para sua substituição" (g.n.), limitação essa que, segundo dados estatísticos, impedia a movimentação de cerca de R$ 30 bilhões de reais depositados na Justiça do Trabalho. Acontece que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em recente decisão datada do dia 27/3/2020, ao julgar o Procedimento de Controle Administrativo 0009820-09.2019.2.00.0000, anulou o teor do artigo 8º do Ato Conjunto TST/CSJT/CCSJT nº 1/2019 que vedava justamente o uso de seguro garantia judicial em substituição ao depósito recursal trabalhista. Interessante notar que tal decisão do CNJ, antes mesmo do surgimento da pandemia do covid-19, foi no sentido de liberar recursos às empresas para que elas possam aplicar nas suas atividades, para incremento da produtividade, geração de empregos, investimentos e riquezas. Afinal, o seguro garantia judicial é um instrumento idôneo de caução processual, previsto no artigo 835, § 2º, do CPC/15, que deve ser mais e melhor explorado, uma vez que ostenta o atributo da liquidez e agrega, de forma equilibrada, características que, de um lado, asseguram o interesse do credor (e a efetividade da satisfação do seu direito), sem, de outro, sacrificar demasiadamente o devedor. O seguro garantia judicial é, portanto, forma equilibrada de se garantir o juízo, pois, além de preservar os interesses do credor, permite que os bens do devedor, sobretudo o dinheiro, não fiquem "congelados" durante o trâmite do processo, podendo ser utilizados na atividade produtiva, para o bem do devedor e da própria sociedade. E, mais, em novos tempos de Coronavírus, cuja crescente e grave crise econômica é de conhecimento público, todo o influxo de recursos no mercado será muitíssimo bem-vindo, como medida a assegurar liquidez e meios de se manter em funcionamento as atividades produtivas e o emprego de milhares de pessoas. Todavia, na prática, ainda se tem conhecimento que muitos são os Magistrados nos Tribunais que continuam a não autorizar a liberação dos recursos financeiros tão necessários neste momento. Assim, caso haja efetiva recusa da garantia ofertada através de apólice que esteja em conformidade com os requisitos elencados pelos dispositivos legais, estar-se-á diante de manifesta violação a direito líquido e certo, cabendo, portanto, a impetração de legítimo mandado de segurança. E isso para combater o que se convencionou a chamar de "jurisprudência defensiva", pois é cediço que os Tribunais Trabalhistas, desde a vigência da Lei da Reforma, tiveram um aumento expressivo da quantidade de recursos interpostos pelas empresas. E a respeito do mencionado "writ", sabe-se que cada Tribunal possui regramento interno próprio acerca das competências para processamento e julgamento das demandas apresentadas. Desse modo, se confirmada a rejeição pelo Relator do apelo de pedido a ele destinado, para a substituição do depósito recursal trabalhista pelo seguro garantia, é certo que o ato em si não se traduz em efetiva decisão terminativa, passível de sofrer a interposição de agravo interno. Contudo, entende-se que decisão interlocutória é sim objeto de impetração do "mandamus", cuja medida jurídica se apresenta mais adequada. De mais a mais, no âmbito dos Tribunais, entende-se que a respectiva SDI (Seção Especializada em Dissídios Individuais) do Tribunal é quem tem competência funcional para o julgamento do mandado de segurança ajuizado contra ato do Magistrado que, na condição de Relator do apelo que lhe foi distribuído na Turma Julgadora, recusar a substituir o depósito recursal pelo seguro garantia. A par disso, verifica-se que, mesmo que a legislação tenha inovado no sentido de contribuir com a eficácia de medidas jurídicas mais céleres, viáveis e menos onerosas às empresas, como o seguro garantia judicial, na prática o enfrentamento das situações em apreço não corresponde com a expectativa de prestação jurídica proveitosa e conveniente deste instrumento. Pelo exposto, diante do disposto na legislação e considerando o intuito da inovação trazida, que é de viabilizar o uso do seguro garantia judicial de forma eficaz e, assim, atingir a sua finalidade de garantir a execução trabalhista ou substituir o depósito recursal, espera-se que os Tribunais Trabalhistas atendam o intento do preceito legal, trazendo segurança jurídica e possibilitando às empresas seu direito de defesa de forma menos onerosa possível. *Ricardo Calcini é coordenador acadêmico do projeto Migalha Trabalhista (Portal Migalhas). Mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais. Professor de Direito do Trabalho da FMU. Professor convidado de cursos jurídicos e de pós-graduação. Organizador do e-book "Coronavírus e os Impactos Trabalhistas" (Editora JH Mizuno, 2020). Coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019). Coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018). Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Membro do IBDSCJ, do CEAPRO, da ABDPro, da CIELO e do GETRAB/USP. __________ 1 Art. 899 - Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora. [...] § 11. O depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial. 2 TRT-1 - RO: 01000778220165010202 RJ, Relator: CLAUDIA MARIA SAMY PEREIRA DA SILVA, Data de Julgamento: 02/10/2019, Segunda Turma, Data de Publicação: 12/10/2019; TRT-2 00278007820075020033 São Paulo - SP, Relator: IVANI CONTINI BRAMANTE, Data de Julgamento: 14/08/2018, 4ª Turma, Data de Publicação: 24/08/2018. 3 [...] Os casos tratam de seguro apresentado na fase de "conhecimento", quando o mérito do processo ainda está sendo discutido. Na fase de cumprimento de sentença, a utilização de seguro garantia judicial, ainda que com prazo de validade, é aceita com mais tranquilidade, segundo o professor de direito do trabalho Ricardo Calcini. A possibilidade está prevista no Código de Processo Civil (CPC) de 2015. De acordo com ele, não há uniformidade nos tribunais regionais do trabalho sobre o seguro garantia com prazo determinado e nem no TST. "O empresário não sabe de antemão se o recurso será ou não conhecido", afirma. [...] (VALOR ECONÔMICO. TST rejeita substituição de depósito recursal por seguro. Disponível aqui. Acesso em 14 maio de 2020. 4 Para melhor compreensão da discussão existente entre a adoção da TRD ou do IPCA-E como índice de correção dos débitos trabalhistas, recomenda-se a leitura dos comentários ao §7º do art. 879 da CLT na obra "Nova Reforma Trabalhista" (ESA SP Publicações), cuja íntegra do e-book digital pode ser acessada aqui. 5 Art. 6º A apresentação de apólice sem a observância do disposto nos arts. 3º, 4º e 5º implicará: [...]; II - no caso de seguro garantia judicial para substituição a depósito recursal, o não processamento ou não conhecimento do recurso, por deserção.