A mora no projeto de reforma e atualização do Código Civil
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Atualizado em 22 de abril de 2025 15:17
Uma das razões da fragmentação do Direito Privado em Direito Civil e Direito Comercial (hoje, Direito Empresarial) teria sido - é o que afirma boa parte da doutrina, jurídica ou econômica - decorrente da necessidade de um direito mais célere e ágil para o comerciante, um direito independente das fórmulas e das formalidades que, impostas pela legislação civil, dificultavam (e encareciam) o tráfego comercial. A necessidade de um direito com menos amarras é uma das explicações do advento do nosso Código Comercial em 1850 (quando ainda em vigor legislação portuguesa recepcionada), bem antes da entrada em vigor de nosso Código Civil em 1916.
Talvez essa justificativa não mais encontre eco na realidade: a vida civil também tem urgências no exercício da autonomia privada na contratação, no exercício da propriedade e nos projetos familiares. A vida é veloz e urgente para todos em todos os seus papéis. O direito civil contemporâneo já perdeu várias amarras e desburocratizou-se bastante, mas é necessário mais. Cada vez mais. Pois "destravar" o Direito Civil foi uma das diretrizes da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.
De fato, a Comissão preocupou-se em simplificar a regulação da vida pelo Código. Um bom exemplo disso é a transformação do procedimento de habiltação para o casamento em procedimento pré-nupcial. Não se trata apenas de uma questão terminológica, mas de estabelecer um regime jurídico que, sem descuidar da análise de impedimentos matrimoniais, facilite o acesso ao casamento e desburocratize o projeto parental de viver juntos. Neste sentido, extinguem-se os proclamas, aqueles editais que ninguém mais lia, e portanto se mostravam inúteis. Fica mais fácil casar.
Tornar mais claro, mais fácil e mais operável o direito. Essa diretriz aparece, por exemplo, na questão da mora. Todos sabem, na feliz redação dos irmãos Luciano e Roberto Figueiredo (Manual de Direito Civil, Juspodium, 2021, p. 514), que há mora quando "o pagamento não se realiza nas condições de tempo, forma e lugar pactuados". Ou, como nos diz Flávio Tartuce (Direito Civil. Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, Forense, 2024, p.192), a "mora é o atraso, o retardamento ou a imperfeita satisfação obrigacional". Tão importante e relevante é o instituto da mora que o Código Civil a conceitua em seu artigo 394 1
Dentre as várias espécies de mora, a mais comum e cotidiana é a mora temporal do devedor. O não pagamento das dívidas no prazo é a principal espécie de inadimplemento relativo. Logo, o tema do momento do pagamento (ou do não pagamento) deve ser bem regulado.
Destaco, aqui, três breves alterações - talvez fosse melhor dizer: aperfeiçoamentos - em relação ao tratamento da mora na proposta de reforma: (a) o termo inicial da mora; (b) a mora nas obrigações de não fazer e (iii) a mora nas obrigações decorrentes de ilícito.
Em primeiro lugar, o início da mora. Ele está ligado à previsão (no negócio jurídico ou na lei) de termo final do pagamento. Se houver termo fixado, a mora é ex re: acontece no próprio momento do termo. Se não houver termo pré-fixado, ela é ex personae: depende de interpelação do devedor (Código Civil, art. 397 2.
A reforma do Código pretende deixar mais clara a redação do dispositivo e, especialmente, atualizá-lo para os tempos presentes. Eis a redação proposta:
"Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo final, constitui de pleno direito em mora o devedor.
§ 1º Não havendo termo final, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
§ 2º Se as partes não fixarem termo para o adimplemento, o devedor se considera em mora desde sua interpelação.
§ 3º As partes podem admitir, por escrito, que a interpelação possa ser feita por meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, após ciência inequívoca da mensagem pelo interpelado."
Além de melhor precisão terminológica (termo final ao invés de apenas termo, no caput e no parágrafo primeiro), a redação - regulando o que já era amiúde aceito - afasta qualquer dúvida sobre o meio de interpelação que poderá ser utilizado: agora com base legal, podem ser utilizados e-mail ou aplicativo, desde que seja demonstrada ciência da mensagem. Atualiza-se verdadeiramente o Código Civil: as inovações tecnológicas devem ser incorporadas ao direito. E o fato de ser necessário estabelecer, previamente, a forma digital de notificação confirma os valores da autonomia privada e da segurança.
Em segundo lugar, outro tema sobre o qual se propõe um ajustamento na redação da lei refere-se às obrigações negativas (ou de não fazer). O atual Código diz, em seu art. 390 (que se situa nas disposições gerais acerca do inadimplemento das obrigações), que "o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster". Perfeito, não fosse apenas a má localização geográfica do dispositivo, já que a mora passa a ser tratada apenas a partir do art. 394 do Código Civil. Bem por isso, com implicações na interpretação e reflexos no ensino jurídico, a reforma propõe o deslocamento da regra para o art. 394 do Código, na forma de seu parágrafo único:
Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não o receber no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.
Parágrafo Único. Nas obrigações negativas, o devedor incorre em mora desde o dia em que executou o ato em que devia se abster.
Ainda nesse ambiente (o inadimplemento das obrigações de não fazer), há mais. Como bem se sabe, se a obrigação de fazer é de execução instantânea, seu inadimplemento será sempre absoluto: não cumprida a obrigação, ela se transforma em obrigação de dar (indenização) e não há como retornar ao estado anterior.
Mas, nas obrigações de não fazer de execução continuada, é possível a purgação da mora (art. 251 do Código Civil). Com ela, preserva-se o dever de não fazer das prestações futuras. Portanto, pode haver mora nas obrigações de não fazer contínuas. Em consequência, é necessário estabelecer, para estas obrigações, o termo inicial da mora. E essa mora é ex re: não é necessária a constituição do devedor em mora; ela decorre do próprio não cumprimento da obrigação.
Em terceiro lugar, um outro ajuste que parece singelo, mas é importante, especialmente do ponto de vista da sistematização do direito. Quanto às obrigações derivadas de ilícito, o Código Civil dispõe que "Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou" (art. 398). A reforma propõe o seguinte texto:
"Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito extracontratual, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou."
Destaca-se que a regra refere-se à responsabilidade extracontratual (ou extranegocial). A temática remete ao recente debate acerca do prazo da prescrição da pretensão de reparação civil contratual e extracontratual (o que, agora, é resolvido pelo proposto parágrafo único do art. 205):
"Art. 205. A prescrição ocorre em cinco anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
Parágrafo único. Aplica-se o prazo geral do caput deste artigo para a pretensão de reparação civil, derivada da responsabilidade contratual ou extracontratual, e para a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa."
Essas três sugestões de modificações acerca do instituto da mora parecem sem maior importância, e não trazem nenhuma revolução ao direito. Mas elas demonstram o espírito e um dos objetivos da reforma do Código Civil: melhorar, ajustar, acertar. E isso é bom.
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1 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.
2 Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial