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Neurodireitos e cláusulas contratuais abusivas em termos de serviço de neurotecnologias: Desafios e perspectivas

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Atualizado em 10 de outubro de 2025 09:00

Até recentemente, os dispositivos com neurotecnologia estavam restritos a ambientes clínicos, sendo utilizados exclusivamente para rastreamento, diagnóstico e tratamento de doenças. Essa realidade, contudo, vem se transformando rapidamente. Tecnologias como o eletroencefalograma passaram por significativa miniaturização, permitindo sua incorporação em dispositivos vestíveis (wearables) consistentes em relógios, tiaras, óculos, capacetes amplamente acessíveis ao público. Atualmente, esses aparatos são comercializados para finalidades diversas, como entretenimento, educação, bem-estar e até aprimoramento cognitivo, sendo facilmente adquiridos através de plataformas on line, no modelo de consumo conhecido como B2C (Business-to Consumer, ou seja, venda direto da empresa para o consumidor final). 

As neurotecnologias compreendem, entre outras, ferramentas que permitem tanto a medição quanto a modulação da atividade neural. Possibilitam a detecção, registro e observação de propriedades da atividade cerebral, contribuindo para diagnósticos clínicos ou para o controle de interfaces cérebro-máquina, com possibilidade de fornecer feedback em tempo real e realizar estimulação baseada em sistemas de circuito aberto.1

O acesso facilitado ao uso de neurotecnologia trouxe consigo vários desafios éticos e jurídicos especialmente no que concerne à proteção dos neurodireitos, com ênfase especial na autonomia cognitiva e na privacidade mental. Quanto mais dispositivos com essa inovação, maiores as possibilidades de violação. 

A consolidação dos termos de serviço como formas contratuais predominantes nas plataformas e empresas que oferecem serviços baseados em neurotecnologia levanta sérios desafios à proteção dos neurodireitos. Estruturados sob lógica padronizada, unilateral e não negociável, esses contratos impõem ao usuário uma adesão passiva a condições contratuais frequentemente opacas, especialmente quanto à coleta, tratamento e utilização de dados neurais, sensíveis por natureza (o que está vedado expressamente no art. 2.027-O, § 2º, inciso II, do PL 4/25, que tem por objetivo a atualização do CC).

Tal cenário intensifica a assimetria informacional e tecnológica entre fornecedores e usuários, comprometendo elementos estruturantes do direito contratual, como a autonomia privada, a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Ao permitir, de forma pouco transparente, práticas como a inferência de estados mentais, o condicionamento de comportamentos ou a modulação cognitiva, esses contratos colocam em risco direitos fundamentais emergentes, como a privacidade mental e a liberdade cognitiva, exigindo, assim, revisões regulatórias e doutrinárias capazes de reequilibrar a relação contratual no contexto das neurotecnologias.

Neurodireitos e cláusulas abusivas em termos de serviço de neurotecnologias

Neurodireitos são garantias inerentes à personalidade da pessoa natural, que não podem ser renunciadas, limitadas ou transferidas. Têm por escopo proteger - no contexto da utilização de neurotecnologia - a liberdade cognitiva (ou livre arbítrio), a privacidade mental, a integridade mental, a identidade pessoal, o acesso equitativo à ampliação ou aprimoramento cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses ou práticas discriminatórias (Art. 2027-O do PL 4/25). 

Essa definição de neurodireitos inserida no projeto de atualização do CC3 abraçou as ideias de Ienca e Andorno2, que categorizaram as proteções dos neurodireitos em quatro espécies, bem como as ideias de Yuste3 et. al, que estabeleceram quatro prioridades éticas na proteção dos neurodireitos (Mental Privacy, Personal Identity, Cognitive Liberty e Equal Acess & Non-Discrimination).

A intersecção entre termos de serviço, neurotecnologias e neurodireitos demanda análise ética e jurídica rigorosa, pois tais cláusulas, usualmente padronizadas e de difícil negociação, são hoje o principal instrumento de regulação do acesso e uso de neurotecnologias pelos usuários.

Sob a ótica dos fundamentos éticos, impõe-se a proteção da autonomia cognitiva e da privacidade mental. Do ponto de vista jurídico, é indispensável assegurar o consentimento livre e informado, a possibilidade de revogação e o equilíbrio contratual. Deve-se evitar cláusulas abusivas que comprometam tais direitos, na perspectiva dos princípios da boa-fé, da função social do contrato e da proteção à vulnerabilidade do consumidor.

A tensão entre os fundamentos clássicos do Direito Contratual (autonomia e consentimento informado) e as particularidades dos termos de serviço é evidente, e se acentua diante das neurotecnologias. Enquanto o modelo tradicional pressupõe liberdade de negociação e compreensão integral das obrigações assumidas, os termos de serviço, padronizados e impostos unilateralmente, dificultam o pleno exercício dessas garantias.

Os termos de uso das empresas que oferecem produtos ou serviços de neurotecnologia frequentemente contêm cláusulas abusivas que dificultam a tutela dos direitos ligados à proteção jurídica da mente do usuário. Esse problema já se evidencia no modelo contratual: exige-se a aceitação integral das condições, sem qualquer margem de negociação, sob pena de impedir o acesso ao produto ou serviço - o que, por si só, compromete a liberdade cognitiva. A assimetria de informação e de poder é evidente, e princípios como o da autonomia e do consentimento informado - pilares do Direito Contratual e essenciais à proteção de direitos fundamentais - acabam igualmente esvaziados.

Importante destacar que até mesmo quando há o tradicional consentimento para a coleta e armazenamento dos dados, isso, por si só, pode não ser suficiente. Um episódio emblemático ocorrido no Chile em 2023, conhecido como "caso Girard versus Emotiv Inc" demonstrou que, embora Girardi tenha concedido consentimento expresso inicial para o uso do dispositivo Insight e o armazenamento de seus dados cerebrais, a ação judicial e a decisão da Corte Suprema destacaram que, para dados tão sensíveis quanto os cerebrais, o consentimento é um fator importante, mas não absoluto.

A preocupação com a proteção da privacidade e da integridade mental dos indivíduos, impõe requisitos mais rigorosos para o tratamento e a eliminação desses dados, mesmo que o usuário tenha inicialmente consentido com seu armazenamento. O caso sublinha que a autodeterminação informativa, entendida como o direito de controlar a própria informação pessoal, exige mecanismos eficazes para que o usuário possa, a qualquer momento, revogar seu consentimento e solicitar a eliminação de seus dados cerebrais.4

Considerando a natureza dos termos de serviço, é comum que haja cláusulas consideradas abusivas para os titulares dos neurodireitos, de modo que é preciso estabelecer estratégias que possam de pronto identificá-las.

Uma grande dificuldade consiste em garantir que os usuários dos serviços lerão e compreenderão a íntegra dos termos de serviço das empresas de neurotecnologia. A maioria dos termos de serviço são extensos e com vocabulário estritamente técnico, além de serem repletos de cláusulas abusivas. Além disso, os consumidores se sentem impotentes diante dos termos, pois não há possibilidade de influenciar em seu conteúdo, e a opção que lhes resta é aceitar na íntegra, ou não utilizar o serviço ou produto.

Na tentativa de auxiliar o consumidor, foi desenvolvida na Europa a ferramenta CLAUDETTE5, com capacidade de detectar, através de aprendizado de máquina e de forma automatizada, oito categorias de cláusulas potencialmente abusivas presentes nos termos de serviço6: a) escolha da arbitragem antes do ajuizamento de ações judiciais; b) alteração unilateral do contrato por parte do provedor; c) poder unilateral de remoção de conteúdo; d) escolha da jurisdição para disputas, na maioria dos casos, em país diverso da residência do consumidor; e) escolha de legislação estrangeira para reger o contrato; f) limitação de responsabilidade por danos; g) rescisão unilateral do contrato por parte do provedor, podendo suspender ou rescindir o contrato; h) contrato por uso, sem necessidade de clicar 'eu concordo". 

Considerando que as empresas de neurotecnologia possuem sedes em diferentes países, o que torna inerente a transnacionalidade de seus contratos, uma ferramenta importante que pode ser utilizada nos contratos de adesão de serviços de neurotecnologia, visando a preservação dos neurodireitos dos usuários, é a incorporação dos Princípios UNIDROIT na redação de suas cláusulas contratuais. 

No preâmbulo dos Princípios UNIDROIT7 consta que podem ser utilizados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme, para interpretar ou suplementar leis nacionais, e servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais. Em outras palavras, são fontes de interpretação e de inspiração de modelos regulatórios, inclusive para contratos envolvendo neurotecnologia.

Entre os princípios previstos pelo UNIDROIT, destacam-se alguns de especial relevância para a tutela dos neurodireitos. O Princípio da Boa-fé (art. 1.7) impõe às partes uma atuação pautada por honestidade e lealdade, prevenindo abusos na utilização de dados neurais. O Princípio do Consentimento Livre e Informado (arts. 2.1.1 e 2.1.2) garante que o titular compreenda as implicações do contrato, conferindo validade ao consentimento relativo à coleta e ao uso de informações cerebrais. Já o Princípio do Equilíbrio Contratual (art. 3.2.7) assegura a justiça das relações obrigacionais, afastando cláusulas abusivas que possam comprometer direitos em contextos tecnológicos complexos. O Princípio da Responsabilidade e Reparação (art. 7.4.1) fixa critérios de responsabilização por danos, aspecto essencial diante de eventuais violações de neurodireitos ou falhas na proteção de dados neurais. Por fim, o Princípio da Flexibilidade (arts. 6.2.2 e 6.2.3) autoriza ajustes contratuais diante de inovações tecnológicas e novos riscos, preservando os direitos envolvidos sem engessar a inovação.

Esses princípios promovem uma base jurídica sólida para contratos que envolvem neurotecnologias, assegurando proteção aos neurodireitos, ao mesmo tempo em que garantem segurança e previsibilidade para as partes contratantes.

Com o objetivo de mitigar possíveis consequências negativas do avanço não regulado dessas tecnologias, GOERING, et. Al8., propuseram recomendações que, se adotadas, podem reduzir de forma significativa os riscos de danos nas relações contratuais entre usuários e empresas de produtos e serviços de neurotecnologia. Essas recomendações podem ser externadas em cláusulas nos termos de serviços. Dentre elas, é possível mencionar: a) aprimoramento do consentimento informado para neurotecnologias, com linguagem simples, clara e de fácil compreensão, com possibilidade de revisão do consentimento dado; b) criação por padrão de consentimento "opt-in" ativo para coleta e compartilhamento de dados cerebrais, com autorização explícita e ativa; c) criptografia completa de dados cerebrais em todo o seu ciclo de vida (da coleta até o dispositivo de saída); d) restrição do compartilhamento de dados cerebrais (considerando riscos de reidentificação e comercialização).

Além disso, os autores defendem incentivar a responsabilidade comercial no desenvolvimento de neurotecnologias e criar uma comissão internacional ampla, transparente e de reuniões regulares, encarregada de avaliar os avanços na área e definir como a pesquisa em neurotecnologia deve ser estruturada, regulada e fomentada.

Incorporadas a um marco jurídico, essas recomendações podem orientar o desenvolvimento e a aplicação das neurotecnologias de modo a maximizar benefícios, reduzir riscos éticos e sociais e assegurar a proteção da autonomia, da privacidade e da dignidade humanas.

Reflexões finais

Apesar de sua relevância, o tema ainda carece de regulação robusta. Para além da incorporação dos Princípios UNIDROIT na redação das cláusulas contratuais dos termos de serviços das empresas que oferecem serviços ou produtos de neurotecnologia, tendo em vista o caráter transfronteiriço dos pactos, o arcabouço regulatório deve considerar a fragmentariedade do direito9 e a coexistência de pluralidades normativas.

Nesse cenário, os standards técnicos, as premissas de soft law, além de diretrizes e recomendações de organizações como OCDE, ONU, UNESCO e PARLATINO, tornam-se especialmente importantes. Também é fundamental alinhar essas normas com a legislação nacional sobre proteção de dados, direito digital e ética biomédica.

No que concerne à legislação nacional, o debate ganha destaque devido à criação recente, no Senado Federal, da Comissão Temporária para analisar o PL 4/2510, que propõe atualizar o CC. Entre as propostas de revisão, há um artigo dedicado à proteção dos neurodireitos (art. 2027-O). Contudo, uma análise preliminar indica que o foco do legislador está principalmente no uso de neurotecnologias (art. 2027-O, § 1º), embora haja menção à prevenção de práticas discriminatórias baseadas em dados cerebrais, o que implica o uso de inteligência artificial.

Diante disso, recomenda-se que o legislador amplie o texto proposto, incorporando termos e expressões capazes de abranger, além das neurotecnologias, "outras tecnologias emergentes" que também possam violar neurodireitos através da inferência de estados mentais.

A sugestão se justifica exatamente pelo fato de que a abordagem regulatória não pode ser focada estritamente em dados neurais, devendo abranger também toda a gama de biometria cognitiva.

Dados de rastreamento ocular, variabilidade de frequência cardíaca e expressões faciais podem ser processados por algoritmos para inferir estados mentais, o que viola a privacidade mental (MAGEE, P., IENCA, M., & FARAHANY, N)11. A UNESCO fez constar de seu anteprojeto de Recomendação sobre a Ética na Neurotecnologia (2025, p. 8) que é possível obter, mediante várias tecnologias, dados biométricos que informam indiretamente sobre a atividade neural, e podem inferir estados mentais.

_________________________

1 UNESCO. Recomendación sobre la Ética de la Neurotecnología. Paris: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.

2 IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, v. 13, n. 5, 2017. DOI: 10.1186/s40504-017-0050-1. 

3 YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, v. 551, p. 159-163, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.

4 PINO, Francisco. El caso Girardi con Emotiv sobre "neuroderechos". Revista de Derecho de la Universidade Católica de La Santísima Concepción, Concepción, n. 45, p. 136-152, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. 

5 CLAUDETTE: Machini Learning Powered Analysus of Consumes Contracts and Privacy Policies. Machini Learning Powered Analysus of Consumes Contracts and Privacy Policies. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. http://claudette.eui.eu/tools/index.html

6 PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS. In: UNIDROIT. Princípios UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. [S. l.], 2016. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. 

7 GOERING, Sara. et al. Recommendations for Responsible Development and Application of Neurotechnologies. Neuroethics, v. 14, p. 365-386, 2021. DOI: 10.1007/s12152-021-09468-6. 

8 TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais: Constitucionalismo Social na Globalização, 2. Ed., São Paulo: Saraiva, 2016.

9 BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Brasília, 2025.

10 MAGEE, P., IENCA, M., & FARAHANY, N. (2024). Além dos dados neurais: Biometria cognitiva e privacidade mental. Neuron, 9(9), 1-18. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.