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Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, José Fernando Simão, Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
I. Introdução. Enquanto os candidatos intensificam o seu contato - atualmente, sob recomendação, mais virtual do que físico - com seus eleitores, os simpatizantes de cada um dos lados aumentam sua confiança na vitória. Defensores fervorosos de determinado ponto de vista político, alguns eleitores lançam-se ao trabalho de convencimento dos indecisos, procurando demonstrar força de convicção contra os adversários, participando de carreatas e panfletagens. Porém, no meio de todo esse fervor, existem aqueles que buscam um desafio ainda maior e partem para a celebração de compromissos mediante apostas. É interessante notar que com o aumento das redes sociais, cresceu a autonomia de publicação de conteúdo de propaganda eleitoral. Os filtros antes existentes - seja por interesse ideológico, político ou econômico - das empresas detentoras das permissões para transmissão de conteúdo pela televisão ou pelo radio, foram lançados ao chão com o advento dos smartphones. A partir dos atuais e avançados meis de comunicação, respeitados os limites de razoabilidade impostos pelas plataformas digitais, qualquer pessoa poderá publicar sua opinião, mensagens ou imagens de algo que produza. A facilidade de tais expedientes trouxe consigo o estímulo na sua utilização, em volume muito maior do que na eleição anterior, e, certamente, menor do que na próxima, sendo possível encontrar-se stories, feed e mensagens através de aplicativos de comunicação instantânea, onde pessoas esbanjam quantias elevadas de cédulas de real sobre mesas, camas, ou qualquer outro objeto, afirmando que se trata de dinheiro vinculado a uma aposta quanto a vitória do candidato A ou do candidato B, nas eleições municipais que se aproximam. Independentemente da inclinação política ou da região do país em que se encontrem os envolvidos, o ritual seguido é sempre o mesmo: Uma parte apresenta uma determinada quantia e entrega para um terceiro. Da mesma forma, a outra parte repete o ato. O terceiro confere os valores e ambos os celebrantes apertam as mãos, em sinal de concordância e de concretização da relação contratual. Assim, está desenhado o contrato de aposta. Porém, cabível o alerta para um detalhe importante. II. Breves palavras sobre o contrato de jogo ou aposta. Ao tratar sobre o tema, o Código Civil trouxe à lume a abordagem simultânea de dois contratos: o de aposta e o de jogo. Basicamente, a diferença entre um e outro está na participação dos contratantes junto ao evento justificador do enlace. Assim, no contrato de jogo, ambas as partes participam diretamente da partida e, de acordo com o seu esforço ou com sua sorte, aquele que lograr êxito recebe determinada quantia do perdedor. Por sua vez, no contrato de aposta, o resultado justificador do cumprimento da obrigação não possui a participação dos contratantes. A disputa é realizada por terceiros, cabendo aos celebrantes apenas a indicação do vencedor ao final. Atualmente, com a evolução da informática, inúmeros são os sites, sediados em países onde há o permissivo legal, que promovem a realização de apostas esportivas. Voltadas para o resultado das eleições, as pessoas que se expõem nas redes sociais com suas patrimônios em dinheiro, celebram um contrato de aposta, pois, como dito, não possuem a participação direta no resultado da vitória do candidato A ou B. Ainda que se fale que as partes trabalham no convencimento dos eleitores, isso não é elemento justificador para alterar a natureza da aposta em um contrato de jogo, pois não são eles, os celebrantes, os candidatos. Doutrinariamente, é possível classificar os jogos e apostas em ilícitos, lícitos, tolerados e lícitos permitidos. Nestes últimos, tudo ocorre da forma ordinária, com a dívida sendo passível de ser executada, nos moldes determinados pelo art. 814, § 3º, do Código Civil. Para adequá-lo a este parâmetro, faz-se necessário, porém, que haja o atendimento às exigências legais, como, por exemplo, a aprovação por parte da Caixa Econômica Federal. No que se refere aos jogos lícitos tolerados, não haverá a exigibilidade da dívida. Portanto, havendo êxito de qualquer das partes, a obrigação que nasce do trato negocial será natural, não sendo possível impor o cumprimento. A obrigação dela decorrente, portanto, nasce, desde então, como natural, e, consequentemente, sem exigibilidade jurídica, o que não implica reconhecer a sua inexistência (art. 814, CC). Tanto é assim que o próprio Código Civil, ao final do art. 814, afirma que se o pagamento for feito de forma voluntária - indicando, exatamente, a ausência de possibilidade de imposição jurídica - não será possível reavê-lo, por qualificá-lo como existente e válido. A obrigação, neste caso será, então, tida como cumprida, estando quites as partes envolvidas no negócio jurídico. Deve-se fazer um adendo, logicamente, que o pagamento mediante dolo ou feito por pessoa incapaz, não terá validade, cabendo o retorno do montante ao pagador. III. Devo não nego, pago quanto quiser. Certamente, a principal característica dos contratos de jogo ou aposta está estampada no art. 814, do Código Civil, onde consta que a obrigação dele decorrente, nasce com uma característica especial, pois desprovida de exigibilidade jurídica por ser natural. Assim, não haveria como demandar judicialmente o devedor para que se posicione no sentido do cumprimento do avençado. Seria uma opção exclusiva do devedor, posto que caso pretendesse não adimplir, nada lhe seria imputado. É interessante notar que, exatamente por conta da ausência de coerção jurídica, os juros e multas que, em tese, podem existir nas cláusulas contratuais, também não poderão ser cobrados, ante a gravitação jurídica segundo a qual o acessório segue a mesma sorte do principal. Apesar de muitos apresentarem inúmeras resistências ao contrato de jogo ou aposta, não há como negar que o desenho feito pelo art. 814, do C.C., aponta no sentido de uma valorização da perspectiva da confiança a patamar bastante elevado. Isso porque, quando adentra nesse universo, os celebrantes terão a plena consciência de que o cumprimento obrigacional somente será realizado mediante única e exclusiva vontade do devedor. Sua negativa lançará a obrigação ao limbo, pois ausente a coercibilidade protetiva no caso de inadimplemento. A sabedoria popular espelha muito bem essa situação. O conhecido dito popular "devo não nego, pago quando quiser", representa o contorno da obrigação natural e, exatamente, a situação que se envolvem os celebrantes do contrato de jogo ou aposta. Não se trata de invalidade negocial, como se ouve de alguns. Desde que atendidos os requisitos legais, a celebração é plenamente válida, tendo peculiaridades no âmbito, apenas, da coerção quanto ao cumprimento obrigacional. Porém, evitar abusos é sempre uma missão do operador do direito. Neste ponto, é preciso destacar um elemento fundamental trazido pelo art. 814, do Código Civil, pois havendo pagamento voluntário este não poderá ser revisto. Isto significa que havendo o adimplemento da obrigação decorrente da relação negocial, não será possível alegar a ausência da coerção para reaver o valor pago. IV. Uma vez pago, pago está. No que se refere ao pagamento da obrigação vinculada à dívida decorrente da aposta, o Superior Tribunal de Justiça, tem precedente interessante sobre o tema, cuja apreciação ficou sob a relatoria do Min. Humberto Gomes de Barros, da Terceira Turma, quando do julgamento do Resp. 822.922/SP, decidiu que quando houver o adimplemento a partir de cheque, a ausência de provimento de fundos para sua compensação, autoriza o manejo de ação de cobrança, sem que isso represente burla ao quanto determinado na legislação civil. Pode parecer estranha a postura adotada pelo Ministro Relator, mas, na realidade, não há qualquer empecilho quanto a sua incidência. Trata-se de posicionamento que busca reprimir o tu quoque na medida em que, conforme mencionado, não há a exigibilidade do pagamento, porém, quando feito, de forma voluntária, deverá resultar no efetivo adimplemento. A emissão de cheque sem provimento de fundos resultará na quebra da boa-fé, razão esta que justifica a possibilidade da cobrança judicial. Perceba que, neste caso, a demanda não está vinculada, necessariamente, à causa justificadora do título de crédito, mas, sim, alo próprio conteúdo que a ele compõe. Não havia sobre o devedor a obrigação para o pagamento da dívida. A inexigibilidade jurídica, conforme disposto no art. 814, do Código Civil, impõe que o pagamento deve ser feito, sempre, de forma voluntária. Alie-se a isto a perspectiva de que o contrato de aposta é válido, porém revestido de obrigação natural, condição esta que, logo em primeiro plano, não desmorona as estruturas justificadoras do contrato. Em sentido semelhante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, firmou posicionamento no sentido de que "adimplida a obrigação por meio de cheque, ordem de pagamento à vista, cabível a ação de execução para pagamento do título não compensado, sendo despicienda, nessa fase, qualquer discussão a respeito da suposta inexigibilidade da dívida oriunda de jogo de azar, a qual, uma vez adimplida espontaneamente, mostra-se irrepetível, máxime quando não comprovada coação na emissão do título, consoante prevê o artigo 814 do Código Civil" Ao efetuar o pagamento com título de crédito desprovido de fundos, o emitente, como mencionado, rompe com os deveres anexos do contrato, fulminando a boa-fé objetiva constante no art. 422, do Código Civil. Disso implica reconhecer a prática de ato de abuso de direito na perspectiva do tu quoque, posto que estaria ele beneficiando-se de conduta ilícita praticada. Esconder a exigibilidade de um cheque, que figura como um título de crédito de pagamento à vista, somente porque origina-se de dívida de aposta, é causa justificadora de certo desvirtuamento do sistema. Isso porque haveria um duplo benefício ao devedor, pois, primeiramente, seria-lhe conferida a voluntariedade do pagamento diante da condição de obrigação natural e após, mesmo rejeitando-se esta situação de relativo conforto - pois desprovido da imposição jurídica - ele ainda teria a possibilidade de declarar inexigível o título de crédito emitido voluntariamente, ou mesmo não efetuar a cobrança daquele desprovido de fundos. Nesta linha de interpretação, parece claro que aceitar tal posicionamento - adotado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo - seria autorizar a prática de atos qualificados como venire contra factum proprium e tu quoque, respectivamente, causando graves ruídos na base estruturante da eticidade. Mais uma vez, não se pode negar que, a partir de uma leitura inicial, idealizar a quebra da boa-fé numa relação contratual de aposta pode parecer estranho e incongruente. Porém esta impressão é apenas, como dito, inicial, posto que, apesar de toda carga ideológica incidente sobre a aposta - lembre-se que o sistema cuida de dividir a atividade em ilícita, lícita tolerável e lícita permitida - o fato é que trata-se de um contrato taxativo, pois expresso no Código Civil. Para uma análise mais adequada do que se propõe, antes de mais nada, deve-se despir-se dos pré-conceitos vinculados à ideia da aposta. Há, sem dúvidas, uma carga ideológica que atrai boa parte das conclusões erigidas sobre o tema. Discursos que estampam a marca de meio para lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, alimentação do crime organizado, entre outros, já colocam este contrato contra as cordas, antes mesmo do início de qualquer batalha. Não se quer aqui discutir legalidades ou ilegalidades de formas de apostas - como, por exemplo, bingo, caça-níquel, apostas esportivas, entre outras -  mas não se pode fechar os olhos para a situação segundo a qual trata-se de um contrato previsto no Código Civil e, como tal, aceito pelo ordenamento. Submetido aos requisitos de validade do art. 104, do CC, ele ingressará no universo jurídico com a mesma tranquilidade e disposição das modalidades mais ordinárias, como, por exemplo, a compra e venda. Superados os planos da existência e da validade, a referida avença encontra-se apta a produzir seus efeitos. É neste ponto que surge seu traço característico. Ao contrário do que ordinariamente ocorre, no caso do contrato de aposta, a coercibilidade jurídica que se impõe para o cumprimento de qualquer outra relação obrigacional inexiste. Ela já nasce manca, por qualificar-se como obrigação natural. Com isto, por mais lógico que possa parecer, querer-se afirmar que o contrato de aposta é um contrato! e é exatamente por conta desta discutível situação que não se pode negar a incidência dos arts. 421 e 422, do Código Civil, sobre suas diretrizes. Os princípios da função social e da boa-fé fazem-se presentes, incontestavelmente, em todas as fases da avença. Ora, seguindo esta trilha, alcança-se uma conclusão ideal, afinal, não sendo obrigatório o cumprimento da obrigação vinculada ao contrato de aposta, ao efetuar o pagamento o devedor abre mão desta confortável posição para adimplir o quanto constante na cártula. Nasce, então, para o credor uma situação completamente diversa daquela existente inicialmente, pois, enquanto no momento primeiro ele não tinha qualquer perspectiva de receber a prestação ajustada, agora ele tem, para si, a aquiescência do devedor quanto a imperiosidade do cumprimento do que restou ajustado. Tanto assim que o próprio art. 814, do Código Civil, deixa clara a impossibilidade de reaver aquilo que foi pago, salvo nas duas situações legalmente relatadas. Trocando em miúdos, o que se observa por parte do Código é uma preocupação com o comportamento contraditório. Não se aceita que o espectro de mera expectativa, uma vez se concretizado em pagamento, retorne para o status quo ante, salvo nas exceções legais. A base do ditado popular "devo não nego, pago quando quiser", encaixa perfeitamente para o contrato de aposta, mas, uma vez pago, não é possível reavê-lo. No caso de emissão de cheques, o pensamento a ser aplicado deve ser o mesmo. Por se tratar de um título de crédito de pagamento à vista, quando a parte que perdeu a aposta e emite a cártula, ela está transferindo a situação de expectativa para a concretude. O ato de, posteriormente, sustar sua compensação; de buscar a invalidade do pagamento pela simples justificativa de ter sido originário de aposta; ou mesmo a condição de desprovido de fundos, é postura incongruente com os preceitos da boa-fé. Antes que se joguem pedras na Jení, deve-se relembrar quem, em momento algum, se quer analisar quais modalidades de apostas encaixam-se na perspectiva da ilicitude; da licitude tolerada ou da licitude permitida. Os argumentos trazidos palmilham situação segundo a qual a esfera da licitude é assegurada, até mesmo porque, em sentido contrário, o próprio contrato seria invalidado, fulminando toda discussão em questão. Portanto, saber se, por exemplo, em qual das três esferas encontra-se a aposta esportiva, é um corte epistemológico a ser feito em outro ensaio. É interessante notar que a linha de raciocínio a ser desenvolvida seria no sentido de garantir uma proteção do sistema contra a própria conduta abusiva violadora da boa-fé. Isto abre a possibilidade de pleito, inclusive, de demanda indenizatória - art. 187, CC, responsabilidade objetiva - e de tipificação de crime de estelionato, nos moldes estabelecido pela súmula 244, do STJ. Alerte-se, também, que em se tratando de propositura de ação monitória - para casos em que o cheque tenha perdido sua exigibilidade - prescinde prova da causa debendi que deu causa ao título, já que a própria cártula firmada já faz presumir o débito que serve como fato gerador, conforme entendimento do próprio STJ. Diante disto, pode-se afirmar que o cheque é prova suficiente da existência da dívida. Em alusão aos portugueses, precisa-se separar os alhos dos bugalhos, sob pena de chancelar comportamento diverso do desejado pelo ordenamento. Não se pode confundir a inexigibilidade jurídica característica do contrato de aposta com o pagamento feito voluntariamente. Uma vez realizado, passa a ser direito do credor exigi-lo, afinal, ninguém é obrigado a fazê-lo, mas, se o fizer, que faça da melhor forma possível. Antes, porém de encerrar e cometer uma garfe, deve-se lembrar que a linha de entendimento desenvolvida até então, aplica-se, também, para a emissão de cheques anteriormente ao resultado e que, como comumente acontece, permanecem na posse de um terceiro. Exatamente por se tratar de um título de crédito de pagamento à vista, ao atuar desta forma, os contratantes, antecipadamente, posicionam-se no sentido inconteste de cumprir com a obrigação decorrente da avença. Voltando para a perspectiva da transformação da expectativa em concretude, neste caso, a chave foi girada antecipadamente, de forma cautelar e sem que se soubesse quem seria o devedor e o credor. As partes reciprocamente posicionam-se com o desejo inconteste de adimplir uma futura condição de devedor, ainda que, no exato momento da entrega dos cheques ou do dinheiro não se saiba, exatamente, quem assim será. Despindo-se de toda armadura jurídica para adentrar no mundo mais simples possível do trato social, soaria, no mínimo, estranho, até mesmo para o mais incauto, aceitar que, por exemplo, após ter deixado na posse de terceiro determinada quantia, a parte perdedora do contrato de aposta pudesse exigir a devolução do seu dinheiro. Neste caso, o terceiro é um garantidor da incolumidade do bem pertencente a cada um dos apostadores e, ao mesmo tempo, testemunha do desejo de cumprir com a obrigação. Ele, o terceiro, tem o dever de entregar a quantia ao credor do contrato de aposta, obrigação esta que tem como fundamento fático a própria aposta, mas como lastro jurídico outro contrato, que no caso o coloca na situação de depositário fiel, com todas as consequências jurídicas dai decorrentes. Afinal, não se pode esquecer que contratos sempre nascem para ser cumpridos dentro dos limites da autonomia privada que traz consigo, a função social e a boa-fé. A sopa de letrinhas trazida pela boa-fé - no caso com o venire contra factum proprium e o tu quoque - estampa ferramentas úteis ao sistema para evitar abusos na relação contratual. Especificamente no caso da aposta, não podem os navegadores deste imenso mar que é o direito civil, encantar-se com o canto da sereia que desde então desqualifica os elementos morais e a finalidade desse tipo de avença, sob pena de lançar às rochas o barco da razoabilidade. V. Conclusão. Diante de tudo o quanto foi dito, observa-se que o contrato de aposta deve ser encarado como uma relação negocial como qualquer outra. A ausência de exigibilidade jurídica da prestação não desnatura essa condição. A qualidade de natural decorrente da obrigação que surge da avença deve ser analisada com cuidado, posto que, em diversas situações práticas, é possível enxergar uma postura plenamente volitiva por parte de um, ou ambos os contratantes para o cumprimento. A condição confortável assegurada pela obrigação natural é uma postura que deve ser analisada com bastante cautela. A entrega de dinheiro para guarda por terceiros - contrato de depósito - e a emissão de cheques, são posturas que representam o cumprimento da obrigação por parte do devedor, o que atrai para si a aplicação da determinação constante no art. 814, do Código Civil, quanto à impossibilidade de reaver o montante. Trata-se de um grande exemplo trazido pelo legislador vinculado ao princípio da eticidade. De fato, estranho seria se, além da ausência de coercibilidade jurídica no contrato de jogo ou aposta, houvesse ainda a possibilidade de retorno daquilo pago voluntariamente. Pensar desta forma, resultaria na qualificação do negócio jurídico muito próximo da invalidade, desnaturando, por completo esta modalidade do contrato que, além de uma peculiaridade tão forte, carrega consigo, uma pecha social bastante marcante. A razoabilidade é um norte a ser seguido na interpretação e execução dos contratos e situação diferente não poderia ser exigida para o contrato de jogo ou aposta. De fato, a máxima popular do "devo não nego, pago quando quiser" pode ser aplicada de forma bem saliente na avença em questão, porém, não se pode deixar de lado que qualquer manifestação que conduza à identificação do pagamento, faz nascer para o credor a concretização de sua realização, desvinculando-se, completamente, da mera expecta, pois regente o princípio da boa-fé nos tratos negociais. _____________ FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Contratos. v. 4. 10 ed. rev. atual. amp. Salvador: JusPodivm, 2020. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Contratos. vol 4. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2019. GOMES, Orlando. Contratos. 24 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001. STJ. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol 3. 15 ed. São Paulo: GEN, 2020. TJ/DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TJ/MG. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TJ/SP. Tribunal de Justiça de São Paulo. Disponível em: clique aqui; acessado em 31 out 2020. _____________ *Salomão Resedá é doutor e Mestre pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Bahia. Professor Universitário. Membro do Grupo de Pesquisa Serviço de Pesquisa em Direitos e Deveres Fundamentais do Brasil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual IBDCont.
"O direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana." - Tobias Barreto  Neste breve estudo, pretende-se perquirir se o princípio do equilíbrio contratual é uma norma jurídica absoluta, que não comporta relativização, ou se é possível mitigá-lo em relação a algumas categorias contratuais. Um primeiro ponto a destacar é de que vivemos hoje numa sociedade pós-industrial - complexa, plural, globalizada, massificada - largamente desigual e com múltiplos interesses assimétricos. A judicialização é um fenômeno crescente e, ao que parece, sem fim, carreando ao judiciário demandas dos mais variados matizes, engendradas via pretensões individuais e, primacialmente, coletivas, todas elas caracterizadas por um mesmo pano de fundo, isto é, uma mesma 'causa de pedir', que são as notórias desigualdades fáticas e/ou jurídicas presentes na realidade brasileira. Nesse contexto, não é desarrazoado afirmar que o justiça brasileira de há muito presta serviços a quatro grandes 'clientes', seus principais usuários -- o próprio poder público; os bancos; as telefônicas e as operadores de plano de saúde - os quais relutam em agir de forma cooperada e solidária, inclusive em respeito à jurisprudência dominante, posto que, ainda que os tribunais já tenham declarado que determinado cláusula contratual é abusiva, tais fornecedores continuam a praticá-las, fomentando, assim, a litigiosidade. Na vida contemporânea, o contrato não é apenas um poderoso instrumento de circulação de riqueza na economia capitalista, mas também visa a efetivar os valores constitucionais, mediante o adequado sopesamento dos interesses contratados. O contrato, enquanto uma obrigação por excelência, deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança, a exigir das partes uma série de atividades em prol do fim colimado, de modo que seu cumprimento ocorra de maneira mais satisfatória para o credor e menos onerosa para o devedor (COUTO E SILVA, Clóvis V. do, 2018). Em verdade, muito mais do que dissera Enzo Roppo (2009, p. 11) - "o contrato é a veste jurídico-formal de operações econômicas" - na atualidade observa-se sua expansão para outros ramos do direito privado e do direito público, regrando até interesses existenciais e não patrimoniais, como, por exemplo, em sede de direito família (pactos de união estável); em sede de direito das sucessões (pactos de planejamento sucessório); em sede de direito administrativo (convênios ou termos de cooperação); em sede de direito penal (acordos de leniência e delação premiada) e, por fim, em sede de direito processual (negócios jurídicos processuais), num fenômeno denominado de 'pancontratualismo' ou 'contratualização' das relações sociais (SCHREIBER, Anderson, 2018). Numa sociedade consumista, desigual e globalizada, contratualiza-se 'tudo ou quase tudo', o que gera uma litigiosidade exponencial, na qual são postos em disputa interesses conflitantes e assimétricos, reciprocamente amparados em princípios colidentes, como, por exemplo, o princípio do equilíbrio contratual e o princípio do pacta sunt servanda; o princípio da segurança jurídica e o princípio da revisão dos contratos; o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia privada, dentre outros. Ocorre que, em razão dessa ingente litigância contratual, exige-se que o judiciário fique atento à correta aplicação dos princípios contratuais, mediante um fundamentado juízo de discricionariedade, a fim de não descambar para um juízo de arbitrariedade - decisionista, sentimental ou ideológico. Para tanto, convém elucidar a distinta classificação dos contratos. Diferentemente da teoria contratual clássica, típica do Estado Liberal, fundada nos dogmas do voluntarismo e abstencionismo, atrelada à dicotomia direito público/direito privado (summa divisio), com o advento do Estado Social, a partir da primeira metade do século XX, uma nova teoria contratual se impõe, decorrente do dirigismo contratual (publicístico e privado), haja vista que o contrato passa a ter uma finalidade social como instrumento de política econômica, com a adoção de normas imperativas ou cogentes, materializado por uma contratação padronizada e estandardizada do seu conteúdo. As classificações clássica e moderna do contrato coexistem, valendo-se destacar que a classificação tradicional (bilateral/unilateral; oneroso/gratuito; comutativo/aleatório; consensual/real; solene/não solene, etc), própria do século XX, adota uma importante distinção entre contrato paritário e de adesão, que continua sendo utilizada pela classificação moderna do contrato, diante da sua notória relevância prática e dogmática. Já à luz da moderna classificação contratual, uma primeira distinção a ser feita reporta-se à natureza jurídica dos contratos em voga na atualidade, isto é -- o contrato civil, o de consumo e o empresarial -- posto que, a partir dela, chega-se a uma compreensão mais aclarada sobre o largo espectro do contrato. Melhor exemplificando: há contrato civil se na relação jurídica estiverem presentes leigos ou civis, em condições de igualdade jurídico-formal (partes iguais) e que não visem a obtenção de lucro por habitualidade ou profissão; há contrato empresarial se na relação jurídica envolver empresários, isto é, se as empresas celebrantes desenvolvam atividade empresarial movida pela busca do lucro (FORGIONI, Paula A., 2019); e, por fim, há contrato de consumo se as partes contratantes são 'desiguais', quer dizer, são sujeitos da relação de consumo (ratione personae), ou seja, fornecedor e consumidor (arts. 2º, 3º, 17 e 29 CDC) ou se tiver por objeto produtos ou serviços (ratione materiae) (arts. 4º e 5º CDC), independente da área do Direito em que a relação de consumo venha ocorrer, bem como irrelevante se a relação jurídica é contratual ou extracontratual. Ainda sob o âmbito dessa tríplice distinção - contratos civil, empresarial e de consumo - a moderna classificação contratual se desdobra em outras espécies contratuais, na esteira da legalidade civil-constitucional, como, por exemplo, as cláusulas contratuais gerais ou condições gerais dos contratos; o contrato relacional; o contrato cativo de longa duração; o contrato conexo ou rede contratual; o contrato eletrônico; o contrato sob o paradigma da essencialidade e, por último, o contrato empresarial e o contrato existencial, com a ressalva de que todas essas novéis espécies são consideradas contratos de consumo, salvo os contratos civis e empresariais. Contudo, a despeito dessa variada gama de espécies contratuais, afora, ainda, as categorias contratuais atípicas, próprias do século XXI, entende-se que a melhor dicotomia classificatória a ser acolhida é a do jurista Antonio Junqueira de Azevedo (2010), pertinente à distinção entre contrato empresarial e contrato existencial, por ser mais abrangente e racional, na medida que resume em apenas duas categorias o universo da contratualística moderna. De fato, percebe-se que a distinção proposta evidencia as disparidades (fática e jurídica) dos contratantes modernos, uma vez que alberga argumentos que se digladiam e que são reciprocamente fundados na principiologia constitucional, sendo que o contrato empresarial reflete os anseios do mundo empresarial e o contrato existencial se volta à proteção das pessoas físicas economicamente desafortunadas. Em essência, o que se observa é a existência de posições correlatas e antagônicas, ou seja, uma notória assimetria contratual, em que de um lado há uma clara posição de poder (econômico, técnico, jurídico, informativo) e, de outro, uma posição típica de vulnerabilidade. Objetivamente, o presente estudo adota a referida classificação - contrato empresarial e contrato existencial - por ser considerada a mais consentânea com a sociedade pós-moderna do século XXI, a despeito da convivência com a dicotomia do século passado (contrato paritário e contrato de adesão). Assim, em relação ao primeiro (contrato empresarial), entende-se aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial "ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade" (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Dito contrato também é denominado contrato de lucro ou profissional, destacando-se, entre seus caracteres: o risco empresarial, o profissionalismo, o dever de diligência, de organização, a rivalidade e a concorrência (LUPION, Ricardo, 2011). Já em relação ao segundo (contrato existencial), é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010). Efetivamente, todo contrato existencial é um contato de consumo, como, por exemplo, todas as novéis espécies antes referidas, haja vista que têm por objeto bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o seu patrimônio mínimo existencial (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros). Basicamente, a distinção mais precisa entre eles se reporta à intenção ou não do lucro das partes do contrato, assim resumida: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018). Anote-se, ademais, que a citada dicotomia logrou inconteste êxito, na medida em que foi acolhida pelo legislador, pelo menos parcialmente, quando positivou expressamente o contrato empresarial na recente Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19). À luz da referida lei (art. 7º), no contrato empresarial a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda), enfatizando, assim, um dos princípios basilares do ordenamento pátrio, o da segurança jurídica. Dessarte, o contrato empresarial é presumido como paritário e simétrico (art. 421-A CC), pois as partes se acham no mesmo patamar jurídico-formal (contratantes 'iguais'),  caracterizado pela prevalência do princípio da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda) e também reforçado pelo novel subprincípio da intervenção mínima (art. 421 § único CC), além do que somente revisável ou resolúvel em situações especiais. Diferentemente, o contrato existencial não foi positivado pela Lei da Liberdade Econômica, razão por que toda a compreensão acerca do contrato empresarial é inaplicável ao contrato existencial, uma vez que aquele é tido como paritário e, este, é eminentemente de adesão, sendo um contrato de consumo por excelência. Melhor explicando: por 'interpretação inversa' ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), no contrato existencial entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), também em 'diálogo das fontes' com a principiologia consumerista, valendo-se destacar a Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível em prol da manutenção do contrato, sendo o direito à revisão uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), também em conformidade com o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil. No que pertinente ao ponto fulcral deste estudo - o equilíbrio do contrato - registre-se que dentre os três princípios sociais do contrato, o Código Civil previu expressamente o princípio da boa fé objetiva (arts. 113, 187 e 422) e o princípio da função social do contrato (art. 421), fazendo alusão apenas implícita ao princípio do equilíbrio contratual, mediante os institutos do estado de perigo (art. 156,) da lesão (art. 157) e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480), sendo considerado, portanto, o menos estudado na doutrina e o menos referido na jurisprudência. Anote-se, inclusive, que o princípio do equilíbrio do contrato ou da equivalência material é tido como de alcance dogmático reduzido, uma vez que classificado não como um princípio autônomo em si, mas tão apenas um subprincípio dos dois demais princípios sociais do contrato (função social e boa-fé objetiva), a despeito de - ao fim -- buscar o equilíbrio entre as prestações contratadas e evitar "o abuso do poder econômico e a tirania - já anacrônica - do vetusto pacta sunt servanda." (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo, 2014, p. 97-98). De qualquer sorte, relevante observar que, independente de ser catalogado como princípio ou subprincípio, a sua importância normativa é crescente e induvidosa, mormente porque o contrato, na contemporaneidade, não pode servir de instrumento para ruína econômica de qualquer dos contratantes. Conceitualmente, diz-se que o princípio do equilíbrio contratual visa à justiça contratual, à justiça material, no sentido de efetivar a livre iniciativa (o lucro) em consonância com os valores constitucionais, além de aplicável a todo e qualquer contrato, a fim de evitar o desequilíbrio excessivo do contrato. Induvidoso que o princípio do equilíbrio contratual tem como fim reequilibrar o contrato, mormente sob o ângulo econômico, atinente aos sacrifícios (ônus) e benefícios a cargo das partes, considerando que o contrato é um processo dinâmico, complexo, cooperado e solidário, pelo qual se exige das partes uma série de condutas atinentes às suas legítimas expectativas, a fim de alcançar o seu adimplemento (COUTO E SILVA, Clovis V. do, 2018). Contudo, diferentemente do que defende a majoritária doutrina (SCHREIBER, Anderson, 2018), no sentido da preferência pelo dever de renegociar o contrato em geral, o presente estudo sustenta que não há um dever de renegociar amplo e irrestrito aplicável a qualquer espécie contratual. Re vera, entende-se ser perfeitamente lícita uma cláusula contratual que limita ou exclua a tutela do equilíbrio contratual, inclusive transferindo os riscos decorrentes do caso fortuito e força maior, desde quando se trate de um contrato empresarial, mantendo-se incólume o princípio do pacta sunt servanda, valendo-se frisar que tal cláusula é até desnecessária, à vista do disposto na própria Lei da Liberdade Econômica - que, de forma clara, prevê que a revisão/renegociação é apenas excepcional e limitada. No contrato empresarial, pois, a regra é não renegociar, em atenção à segurança jurídica. A outro giro, em sendo caso de um contrato existencial, há um dever de renegociar prima facie, por interpretação contrária/inversa ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana/igualdade/solidariedade, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional. No contrato existencial, pois, a regra é o dever de renegociar, em atenção à principiologia civil/consumerista. Ad summam, entende-se que para a correta solução do caso concreto (justiça contratual), com base num juízo de discricionariedade e não de arbitrariedade, uma primeira medida prática é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio - se empresarial ou existencial - posto que, a partir disso, advirão conclusões jurídicas diversas, assim resumidas: que há uma faculdade de renegociar o contrato empresarial e que há um dever de renegociar o contrato existencial! __________  AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos de pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p.185-186. _________.___________________. São Paulo: Saraiva, p. 186. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2018, p. 21-22. _______________.___________. São Paulo: FGV, 2018, p. 33. EROLES, Pedro. Boa-fé objetiva nos contratos: especificação normativa, cogência e dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125. FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 27. _________.________. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos - teoria geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 4. LUPION, Ricardo. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2011, p. 139-154. ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009. SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 15. ___________.________. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 275-524.
O inadimplemento consiste na mais relevante patologia observada no campo obrigacional. Mantendo-se a prestação possível e útil ao credor mesmo após o descumprimento imputável ao devedor, diz-se relativo o inadimplemento (ou, simplesmente, mora); tornando-se impossível a prestação ou inútil ao credor, o inadimplemento converte-se em absoluto. Apesar de inequivocamente mais grave, o (estudo do) inadimplemento absoluto costuma ser eclipsado pela mora, possivelmente pelo fato de o Código Civil ter a ela dedicar um capítulo próprio (arts. 394 a 401). Talvez por essa razão, questões relevantes ligadas à proteção do credor diante do inadimplemento absoluto ainda careçam de um melhor delineamento em nossa ordem jurídica. Dois são os remédios tradicionalmente reconhecidos ao credor que vê o seu crédito absolutamente inadimplido: a resolução contratual e as perdas e danos (CC, arts. 389 e 475).1 Optando o credor por exercer seu direito potestativo à resolução do contrato, as perdas e danos se somam a eventual restituição devida em razão da extinção do vínculo negocial. Caso não seja cabível a resolução ou o credor opte por manter hígida a obrigação, a impossibilidade ou falta de utilidade, características desta modalidade de inadimplemento, impedem que a prestação originária continue a integrar a estrutura da relação jurídica. Em razão disso, afirma-se que se opera a "conversão da prestação em perdas e danos", importando a "substituição da res debita pelo seu equivalente monetário".2 Este mecanismo, pelo qual a prestação original (supostamente) converte-se em uma indenização substitutiva, é denominado por parcela da doutrina como execução pelo equivalente pecuniário ou cumprimento pelo equivalente.3 Ocorre que, nos termos acima delineados, o sistema de tutela do crédito diante do inadimplemento absoluto revela-se insuficiente para uma adequada proteção ao credor. Com efeito, primeiramente, a resolução contratual não constitui um remédio de aplicação geral, tendo seu âmbito de incidência limitado, de acordo com a doutrina majoritária, aos contratos bilaterais.4 Já as perdas e danos, por força do seu caráter reparatório, não surgem automaticamente a partir do inadimplemento obrigacional, impondo-se apenas quando do incumprimento decorra um dano concreto ao credor, não bastando para tanto a simples ausência da prestação.5 Esta breve explanação é suficiente para demonstrar a possibilidade de, não obstante se verificar uma violação ao direito de crédito consubstanciada em inadimplemento absoluto, o credor restar desprovido de qualquer meio para reagir ao ilícito negocial. Imagine-se a hipótese de descumprimento de uma promessa de recompensa, que, (a) por se tratar de negócio jurídico unilateral, não pode ser resolvida pelo credor, e (b) por não ter ensejado qualquer dano ao promissário, não lhe confere o direito de pleitear perdas e danos. Estaria o direito de crédito, neste caso, totalmente desamparado pela ordem jurídica? Para contornar este problema, parcela da doutrina afirma que todo inadimplemento causa um dano ao credor, consubstanciado no próprio valor da prestação que este deixa de receber (uma espécie de "dano mínimo"), ao qual se somariam eventuais danos ulteriores.6 No entanto, já se objetou, acertadamente, que o valor da prestação não pode ser considerado um dano mínimo automático, pois este valor não traduz necessariamente o efetivo prejuízo experimentado pelo credor. Em outros termos, tal entendimento "violenta o sentido ressarcitório da responsabilidade civil. Distorce um instituto que se destina a eliminar danos. O 'mínimo' pretendido por esta doutrina é um corpo estranho no direito da indemnização."7 O fato de o pagamento de valor equivalente ao da prestação não poder ser incorporado à responsabilidade civil, em razão da apontada incompatibilidade funcional, não significa, contudo, que este valor não é devido ao credor em casos de inadimplemento absoluto. Interessante notar que a doutrina defensora da noção de indenização mínima reconhece que o papel atribuído à responsabilidade contratual seria o de "assegurar e prolongar a função do contrato, assente na criação e na circulação da riqueza".8 E, de fato, o direito de crédito não releva apenas em sua dimensão prestacional, mas representa para o seu titular também, sob o ponto de vista econômico, um valor patrimonial atual.9 Ocorre que a persecução deste valor após o inadimplemento absoluto não representa, como visto, uma forma de reparar os prejuízos concretamente suportados pelo credor, mas sim um meio de lhe garantir um sucedâneo ao cumprimento da prestação - impossibilitada ou inutilizada pelo devedor inadimplente -, permitindo que o crédito originário, que teve sua dimensão prestacional irreversivelmente aniquilada pelo inadimplemento absoluto, possa atuar ao menos em sua dimensão exclusivamente econômica, representada pelo valor "abstrato", de mercado, da prestação inadimplida. Sob esta perspectiva, torna-se possível reconciliar a execução pelo equivalente com a abordagem ainda predominante no campo da responsabilidade civil, que identifica justamente na unidade funcional em torno da reparação do dano o núcleo comum entre as responsabilidades contratual e aquiliana.10 Tal compatibilização não se dá pela atribuição, à responsabilidade contratual, de um caráter abstrato excepcional, contemplando um dano mínimo que não corresponda ao prejuízo efetivamente sofrido pelo credor. Impõe-se, na verdade, reconhecer a autonomia da execução pelo equivalente perante a responsabilidade civil.11 Referida autonomia não se limita ao campo conceitual, projetando importantes consequências na esfera aplicativa. Por se tratar de método alternativo de execução - não em sentido processual, mas em sentido material, vale dizer, de cumprimento -, seu regime é o dos negócios jurídicos, e não o da responsabilidade civil. A conversão da prestação no seu equivalente pecuniário opera uma sub-rogação real,12 de modo a submeter a prestação pecuniária substitutiva, na medida do possível, ao mesmo regime jurídico anteriormente aplicável à prestação originária. Esta solução oferece significativas vantagens sob o ponto de vista da preservação da unidade fundamental ao ordenamento jurídico. A autonomia da execução pelo equivalente permite vislumbrar a racionalidade subjacente ao sistema de proteção ao direito de crédito, que se articula em dois planos: o da tutela específica, que protege o interesse do credor de maneira mais direta e intensa, e o da tutela pelo equivalente, que visa a uma proteção subsidiária do interesse do credor e limitada ao seu aspecto econômico.13 Estas duas modalidades de tutela se manifestam nas relações obrigacionais provenientes de diferentes fontes - o negócio jurídico, o dano injusto e o enriquecimento sem causa14  -, sempre com o mesmo efeito: o de submeter a tutela pelo equivalente a um regime análogo ao incidente sobre a tutela específica. Em termos mais diretos, tem-se que (a) a execução do negócio jurídico (seja ela específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime negocial, (b) a reparação do dano injusto (específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime da responsabilidade civil e, por fim, (c) a restituição do proveito ilegítimo (específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime jurídico do enriquecimento sem causa. Tudo isso sem prejuízo, naturalmente, da possibilidade de se reconhecer, em cada um destes campos, certas peculiaridades à tutela específica e à tutela pelo equivalente. A interpretação tradicional, e ainda majoritária, no sentido de que o inadimplemento absoluto converteria a prestação nascida de um negócio jurídico em uma prestação substitutiva de natureza indenizatória, acaba dando ensejo a uma relação jurídica submetida a disciplina híbrida, combinando aspectos do regime negocial com o regime reparatório, cujos contornos não são claramente definidos, razão pela qual se torna fonte de intensa insegurança jurídica. Toda esta problemática acaba sendo "mascarada" pela atribuição de uma natureza sui generis à responsabilidade contratual, caminho que tem deflagrado novos problemas em matérias que, no passado, não suscitavam maiores dificuldades.15 Resta saber se, apesar das suas vantagens no plano teórico, a autonomia da execução pelo equivalente pecuniário se afigura compatível com o dado normativo. O Código Civil refere-se ao equivalente pecuniário da prestação ao lado das perdas e danos em diversas passagens, especialmente ao disciplinar o inadimplemento das obrigações de dar e de restituir (arts. 234 e 239) e das obrigações solidárias (art. 279), o que poderia servir de indicativo de que o legislador reconheceu a autonomia entre as referidas parcelas. Por outro lado, a omissão do Código ao mencionar o equivalente ao tratar do inadimplemento das obrigações de fazer e não fazer (arts. 247, 248 e 251) e das obrigações indivisíveis (art. 263), bem como as referências a "resolução" ou "conversão da prestação em perdas e danos" (arts. 263 e 271) parecem, em uma primeira leitura, excluir a possibilidade de se considerar a execução pelo equivalente como um remédio distinto da responsabilidade contratual. Preceito que pode ser decisivo nesta questão, contudo, é o artigo 947 do Código Civil, que dispõe: "Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente." A inclusão do dispositivo no capítulo dedicado à indenização (arts. 944 a 954) tem levado parcela da doutrina contemporânea a interpretar o artigo como uma consagração da primazia da reparação específica sobre a reparação em pecúnia.16 É possível elencar, no entanto, ainda que sumariamente, alguns elementos do referido enunciado normativo que depõem contra a sua recondução ao campo da responsabilidade civil: (a) não há menção a dano ou prejuízo, elemento indispensável ao surgimento do dever de indenizar; (b) não se evoca qualquer relação de causalidade; (c) não há referência a qualquer dos critérios típicos de imputação de responsabilidade (culpa ou risco); e (d) o efeito previsto não é o nascimento de um dever de indenizar - a prestação pecuniária contemplada pelo artigo 947 não tem como referencial o valor do prejuízo sofrido pelo credor privado da prestação, mas sim o valor da própria prestação. O preceito, em verdade, se limita a prever como suporte fático a impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor, atribuindo-lhe o efeito de acarretar a substituição da prestação impossibilitada pelo seu valor, em moeda corrente. No mais, ao se referir à impossibilidade de cumprimento da prestação "na espécie ajustada", o dispositivo parece revelar seu propósito de disciplinar as obrigações de fonte negocial, hipótese em que a prestação devida é estabelecida, ao menos em regra, por um "ajuste" (no mais das vezes, verdadeiro acordo de vontades). As obrigações de reparar e de restituir, por sua vez, têm seu objeto definido, também em regra, pela própria lei ou por decisão judicial, e não em um ajuste entre as partes. Tudo a indicar que o artigo 947 deve ser interpretado não como norma de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual), mas sim como norma sobre o incumprimento de relações obrigacionais fundadas em negócios jurídicos, consagrando o instituto da execução pelo equivalente pecuniário. Em conclusão, o que se defende é a necessidade de releitura dos remédios atribuídos ao credor diante do inadimplemento absoluto da obrigação, reconhecendo-se a execução pelo equivalente como remédio autônomo e inconfundível com a responsabilidade civil contratual. Trata-se de interpretação que contribui para uma leitura mais racional de todo o sistema de tutela do direito de crédito e para uma maior segurança jurídica neste campo, além de se revelar compatível com o direito positivo vigente, encontrando guarida especialmente no artigo 947 do Código Civil.17 *Rafael Mansur é mestrando em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduado pela EMERJ. Pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ (UERJ resp). Advogado. __________ 1 "Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. (...) Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos." 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. II. 25ª ed. atual. por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 178. 3 STEINER, Renata C. Reparação de Danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, pp. 356 e ss. 4 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Da Extinção do Contrato. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao Novo Código Civil. v. VI. t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 386. 5 "O inadimplemento da obrigação, portanto, não basta para que a relação obrigacional dê ensejo às perdas e danos. Ainda que tal inadimplemento se afigure culposo ou mesmo doloso, a responsabilidade pelas perdas e danos não nasce sem que haja efetivo prejuízo a ser reparado. Necessário se faz que a parte prejudicada demonstre haver sofrido efetivamente um dano em decorrência do descumprimento da obrigação" (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do Direito Civil. v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 360). 6 "Havendo, entre as partes, uma obrigação específica, cabe ao devedor executar a prestação principal. O dever dele é o bem do credor, atribuído e legitimado pelo ordenamento. Se o devedor não cumpre, é grave: ele está a frustrar, pela sua conduta, precisamente o valor que o Direito atribuía ao credor. Em face do incumprimento, o devedor é automaticamente condenado a indenizar, isto é: a prosseguir, no plano indemnizatório, o dever de prestar principal que inadimpliu" (Menezes Cordeiro, António. Tratado de Direito Civil. v. VIII. Coimbra: Almedina, 2017, pp. 391-392). 7 PEREIRA, Maria de Lurdes; MÚRIAS, Pedro. Obrigação primária e obrigação de indemnizar. In: FREITAS, José Lebre de et al. (orgs.). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida. vol. II. Coimbra: Almedina, 2011, p. 611. Também afirma a incompatibilidade deste valor equivalente ao da prestação com a "finalidade meramente compensatória ou ressarcitória" da responsabilidade civil: MOTA PINTO, Paulo. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo. vol. II. Coimbra Ed., 2008, p. 1501. 8 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil. v. VIII. Coimbra: Almedina, 2017, p. 391. 9 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. t. I. Trad. do alemão por Jaime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958, p. 444). 10 Conforme leciona Carlos Edison do Rêgo MONTEIRO FILHO. Responsabilidade Contratual e Extracontratual: contrastes e convergências no direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 80: "no que tange à natureza dos institutos, dúvidas já não prevalecem sobre a identidade de ratio que preside a temática em apreço, daí poder-se afirmar a unidade essencial da responsabilidade civil. De fato, tanto num caso como no outro, o que se verifica é sempre um dano a clamar por reparação." 11 Posição pioneiramente defendida na doutrina nacional por Francisco Paulo De Crescenzo MARINO. Responsabilidade Contratual. Efeitos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coords.). Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2011, pp. 413-414: "Ao segregar a responsabilidade por perdas e danos da responsabilidade pelo 'equivalente' (isto é, equivalente pecuniário da coisa perdida), a lei, ao menos do ponto de vista literal, tratou as duas 'responsabilidades' como portadoras de naturezas distintas. (...) a opção do legislador brasileiro parece ir ao encontro da teoria que vê, no caso, não a mera extinção da obrigação original com o correlato surgimento da obrigação de indenizar, mas sim a perpetuação da obrigação original, transformada (quanto ao objeto) em equivalente pecuniário." Mais recentemente, a questão foi analisada com verticalidade por Aline de Miranda VALVERDE TERRA. Execução pelo Equivalente como alternativa à Resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, passim. 12 "A execução pelo equivalente conduz (...) à sub-rogação objetiva, consistente na substituição do objeto devido pelo devedor pelo seu valor pecuniário" (VALVERDE TERRA, Aline de Miranda. Execução pelo Equivalente como alternativa à Resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, p. 64). 13 Sobre estas duas modalidades de tutela, explicitando as razões históricas e ideológicas que levaram à prevalência de um modelo centrado sobre a tutela pelo equivalente pecuniário no âmbito do direito privado, cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, pp. 51-55 e 105-107. 14 Adere-se, aqui, à classificação das fontes obrigacionais proposta por Fernando NORONHA. Direito das Obrigações. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 440-441: "O interesse do credor que é tutelado em cada obrigação é suscetível de variações infinitas. Todavia, ele poderá ser sempre classificado em uma das seguintes três categorias: a) interesse na realização das expectativas nascidas de compromissos assumidos por outra pessoa (devedor) em negócio jurídico; b) interesse na reparação dos danos antijuridicamente causados por outra pessoa (devedor), ou, como também se poderá dizer, dos danos resultantes da violação de deveres gerais de não lesar a pessoa nem o patrimônio alheio; c) interesse na reversão para o patrimônio de uma pessoa (credor) dos acréscimos verificados no patrimônio de outrem (devedor), quando juridicamente eles estivessem destinados àquele. (...) As obrigações correspondentes à primeira das três categorias são as negociais; as correspondentes à segunda são as de responsabilidade civil (em sentido estrito); as correspondentes à terceira são as de restituição por enriquecimento sem causa." 15 Basta observar o imbróglio instaurado no Superior Tribunal de Justiça acerca da definição de um prazo prescricional para as pretensões reparatórias oriundas de dano contratual diverso do prazo trienal previsto no artigo 206, §3ª, V, do Código Civil, que teria sua aplicabilidade limitada às hipóteses de responsabilidade aquiliana. A questão parece estar pacificada pela decisão proferida pela Corte Especial no julgamento do EREsp 1.281.594/SP (Rel. p/ acórdão Min. Felix Fischer, j. 15.5.2019), no qual se definiu que "enquanto não prescrita a pretensão central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos (caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao descumprimento do pactuado." Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson SCHREIBER; Rafael MANSUR. A prescrição trienal da responsabilidade contratual. Disponível aqui. Acesso em 17 out. 2020.  16 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe. Código Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 916-917. 17 Este texto sintetiza algumas das conclusões alcançadas em pesquisa, ainda em curso, realizada no âmbito da linha de pesquisa de Direito Civil do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UERJ para elaboração de dissertação de mestrado, sob a orientação do Professor Anderson Schreiber.
As mudanças no modo de conviver no último século podem servir como ponto de partida para as reflexões propostas no título. Estamos vivendo mais. Com a longevidade, avós conseguem conviver com seus netos, terão oportunidade de conhecer seus bisnetos e se manterão no mercado de trabalho por muito mais tempo do que as gerações anteriores. Vivendo mais, passamos a ter outras necessidades, especialmente no campo da saúde e qualidade de vida, pois o acesso aos avanços tecnológicos da vida moderna e as recentes descobertas da medicina têm seu preço. O roteiro por muitos imaginado: concluir estudos, casar, ter filhos, aposentar-se (por poucos anos) antes de morrer, não pode ser pensado como a última opção que deve ser tutelada pelo Estado, diante da atual pluralidade de arranjos familiares, que reflete um momento histórico no qual as pessoas poderão ter vários relacionamentos ao longo de suas vidas, constituindo um retrato familiar muito mais próximo de um mosaico do que de uma vetusta pintura a óleo que costumava imortalizar a imagem da família patriarcal tradicional. Um novo tempo de convivência e necessidades, aliado a um momento em que a incerteza e a proximidade da morte nunca estiveram tão próximas, ante a pandemia do coronavírus, parece propício a um repensar sobre o exercício da autonomia no direito sucessório, matéria que, pelo menos do ponto de vista legislativo, experimentou poucos avanços no Código Civil vigente, quando comparado com o seu antecessor. Será que sob os auspícios de um texto constitucional que consagra a igualdade material, através do qual se consolidou um marco legislativo que reconhece e tutela a vulnerabilidade de diversos grupos de pessoas, ainda devemos interpretar o direito das sucessões sob o ponto de vista da igualdade formal entre os herdeiros? A pequena digressão acima serviu para apresentar o objetivo deste texto: expor os diferentes pontos de vista em matéria de "contratualização" das relações sucessórias. Dito de outro modo: quais os limites e possibilidades para o exercício da autonomia privada no campo do direito das sucessões?  No atual estágio de nosso ordenamento jurídico, seriam admitidas cláusulas contratuais estabelecendo, por exemplo, "pactos de não suceder", vale dizer, renúncia antecipada a direitos sucessórios relativos à sociedade conjugal ou convivencial, em caráter irrevogável? Num momento em que se incentivam os mecanismos de desjudicialização, com o fortalecimento dos métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias, permitindo ainda a solução de questões sucessórias diretamente nos cartórios, não teria chegado o momento de se pensar num direito sucessório mínimo, sujeito à interferência estatal apenas quando estritamente necessário para a proteção de vulneráveis, com amplo espaço para que o titular dos bens decida qual o destino que pretende conferir ao seu patrimônio, quando aberta a sua sucessão? Talvez, caro leitor, você esteja se perguntando: mas não é exatamente isso o que acontece atualmente, com as previsões do CC/02? Quem deseja uma solução diferente das regras dispositivas da sucessão sem testamento pode optar por uma das modalidades de fazer eficaz a sua vontade para depois da morte... Mas quando se constata que arranjos patrimoniais para a sociedade conjugal, como a adoção do regime da separação convencional de bens, só geram efeitos em vida, criando um cenário completamente diferente no momento da sucessão de um dos cônjuges, fica mais fácil perceber que o espaço de autonomia privada no campo sucessório não é tão amplo quando parece. No decorrer dos últimos anos, um movimento doutrinário fez despertar o debate em torno dos institutos do direito das sucessões. Em alguns ordenamentos jurídicos, a discussão tem girado em torno da liberdade de testar, aproximando também nesse aspecto os dois grandes sistemas do direito contemporâneo, o da Common Law e o romano-germânico ou da Civil Law, numa demonstração de que ambos dialogam em busca de segurança jurídica com um maior equilíbrio entre a proteção dos herdeiros necessários e a ampliação da autonomia do autor da herança quanto à destinação dos seus bens após a morte1. No Brasil, para além da temática concernente à sucessão testamentária e, por consequência, à possibilidade de flexibilização ou relativização da herança legítima, o debate assumiu dimensão mais larga para abranger uma série de institutos que se abrigam sob o espectro do que veio a se apresentar como "planejamento sucessório"2. Mais do que um simples pensar sobre como se dará a sucessão no estreito campo da divisão dos bens, o planejamento sucessório trouxe da experiência do direito empresarial, onde acontece com frequência, a práxis relacionada a uma intrincada rede de atos jurídicos que visam tornar mais rápida, mais fácil e dotada de maior efetividade a sucessão da pessoa física.  É possível afirmar que a discussão sobre o tema tem trazido muitas contribuições, em especial por demonstrar que esse planejamento não está voltado apenas a grandes patrimônios. Pelo contrário, é cada vez mais comum a tomada de decisões de pessoas que podem ser incluídas "na classe médica", sobre situações jurídicas que se projetam para o futuro, para o tempo da morte do autor da herança, mas adotadas ainda em vida. Situações as mais diversas e muitas vezes de pouca complexidade, como as que visam apenas à diminuição de custos pela quantidade de atos jurídicos a serem praticados e de impostos a serem recolhidos. O planejamento sucessório tem no testamento um dos seus principais instrumentos, senão o mais importante. Entretanto, inúmeras são as possibilidades de arranjos para essa programação. Mais do que trazer soluções para problemas práticos enfrentados no dia a dia do direito das sucessões, esse movimento vem contribuindo com a releitura de institutos consagrados numa legislação rígida e desenhada para um momento histórico cujas bases socioeconômicas mudaram por completo. A perenidade dos institutos jurídicos não significa o seu engessamento. Faz-se necessário, porém, um repensar considerando as transformações e as contingências que o tempo histórico acarreta. Conforme apontado acima, com poucas modificações, o direito das sucessões no Código Civil de 2002 é voltado não só para uma tipologia familiar que já não é a única; porém, mais que isso, carrega o forte conteúdo moral que predominava na sociedade ainda no início do século XX. De fato, embora fundado na proteção familiar, o fenômeno sucessório se volta à manutenção do patrimônio concentrado em um determinado grupo de herdeiros e, mesmo entre estes, com pouca mobilidade. Como se os "desvios comportamentais" tão combatidos há cem anos, como a ruptura da sociedade conjugal, a formação de novos vínculos familiares e a própria disposição do patrimônio, representassem uma ameaça à pré-falada concentração de riqueza. Não à toa vige até hoje dispositivo que obriga o maior de setenta anos a adotar o regime da separação de bens. Trata-se do inciso II do art. 1641, que até 2010, com o advento da lei 12.344, limitava em sessenta anos a idade para a pessoa escolher o regime de bens sob o qual deseja submeter seu casamento, seu patrimônio, incapacitando alguém que ainda se encontra em idade produtiva, na maioria das vezes alocado no mercado de trabalho, sem justificativa jurídica para tal. Nesse cenário, onde a mobilidade do patrimônio pode ser entendida como risco à sua integralidade para efeitos sucessórios, vários são os dispositivos do Código Civil que fazem interlocução com o Livro das Sucessões e necessitam, ao menos, ser debatidos. É o caso do art. 426, o qual dispõe que "não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". Entre os autores que vêm se dedicando ao tema da "contratualização do direito das sucessões", Mário Delgado destaca seu entendimento sobre a possibilidade de celebração de pactos sucessórios, forte na disposição prevista no art. 1.639 do Código Civil, segundo o qual é lícito aos nubentes estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.  E a outros dispositivos do Código Civil que, na opinião do mesmo autor, concretizam a autonomia patrimonial, soma-se o uso de soluções extrajudiciais em litígios sucessórios, a exemplo da inserção de cláusula compromissória em testamentos e escrituras de partilha, bem como a crescente utilização de compromisso arbitral entre os herdeiros em conflito3.  Aliado a outros doutrinadores, Delgado provoca uma reflexão sobre a atualidade das regras que proíbem a celebração de pactos sucessórios, em especial quando inseridos em pactos antenupciais e contratos de convivência, chamando a atenção para a necessidade de ampliação da autonomia no direito das sucessões, possibilitando-se que seja contornada ou mesmo afastada a vedação legal à disposição contratual prevista no mencionado art. 426 do Código Civil. Indo além, adverte que inexiste norma expressa que proíba a celebração de todo e qualquer tipo de pacto sucessório. As modalidades mais referenciadas pela doutrina nacional seriam a do pacto aquisitivo ou designativo, na qual se institui herdeiro ou legatário através de contrato, distinguindo-se do testamento pelo caráter irrevogável das disposições contratuais; do pacto renunciativo ou "pacto de não suceder", em que é permitido ao herdeiro renunciar à herança do outro pactuante; e a do pacto dispositivo, através da qual é permitido pactuar a sucessão de um terceiro ainda não aberta, a exemplo de uma cessão de direitos hereditários antes da morte do autor da herança.  A interpretação do mencionado art. 426 deveria alcançar apenas o pacto dispositivo, já que as outras duas modalidades não constituem, a rigor, contratos que tenham por objeto herança de pessoa viva. Na Europa continental, Alemanha e França permitem a celebração do pacto renunciativo e, recentemente (2018), Portugal passou a permitir a renúncia a direito sucessório em pacto antenupcial, mais precisamente da condição de herdeiro necessário.  Na visão de Delgado, há diversos pactos sucessórios permitidos no Brasil, aos quais, por um jogo de palavras, é retirada a incidência da norma, como o caso da doação4 causa mortis, que é exatamente um pacto designativo no qual o donatário passa a ser receptor de um direito que adquirirá somente após a morte do doador. A partilha em vida também poderia ser inserida na categoria dos pactos sucessórios. E se essa restrição fosse tão ampla, haveria de se reconhecer a invalidade dos modelos citados como exemplo. "O que não pode ser objeto de contrato é a herança de pessoa viva e não todo e qualquer direito sucessório". Entre os inúmeros doutrinadores infensos à chamada contratualização do direito sucessório encontra-se o professor João Aguirre, o qual defende que a interpretação do art. 426 do Código Civil deve ser mesmo restritiva, dado que o próprio sistema, o ordenamento jurídico brasileiro, está direcionado a essa restrição da ampla liberdade de pactuação, em virtude da tutela dos interesses daqueles sujeitos de direito que o legislador elegeu para objeto de proteção5. Aguirre não reconhece espaço no ordenamento brasileiro para que se possa renunciar a direito sucessório, o que somente poderia acontecer por intermédio de autorização legal expressa mediante alteração legislativa, como ocorreu em Portugal e como previsto em outros sistemas. Assim, o art. 426 proíbe tanto o pacto dispositivo como o renunciativo, havendo norma expressa no próprio Código Civil no sentido de restringir a celebração de pactos sucessórios, além do pacto dispositivo; exemplifica com os arts. 1.808, 1.863 e 1.898, asseverando igualmente que a distinção entre direito sucessório e herança não foi a opção dos Códigos de 1916 e 2002. O estado da arte desse debate está bem delimitado em arquivo disponível na plataforma digital Youtube, contendo reunião do grupo de pesquisas CONREP-Constitucionalização das Relações Privadas, realizada no dia 3 de julho de 2020 com o tema Contratualização do Direito das Famílias e Sucessões e a participação, como expositores, de ambos os professores aqui mencionados6. Para além da posição adotada neste trabalho, a qual, adianta-se, segue o entendimento pela defesa da necessidade de alteração legislativa para a livre pactuação de direitos sucessórios, dos quais a herança é espécie, o debate demonstra o quão rígido é o sistema no que diz respeito à mobilidade patrimonial no direito das sucessões e também no direito das famílias. Os argumentos em defesa de um ou outro posicionamento no debate entre Mário Delgado e João Aguirre se complementam e, dados os seus fundamentos, enriquecem sobremaneira a discussão. Porém, o que se extrai de conclusão - e aqui se destaca o reforço argumentativo trazido pelo primeiro ao referir-se à carga moral que contamina a interpretação e aplicação da norma - é que, a exemplo de Alemanha e França, que dispõem da matéria em seus Códigos, e da alteração levada a efeito em Portugal, necessária será a autorização expressa para a celebração de pactos sucessórios no direito brasileiro, já que à proibição do art. 426 do Código Civil somam-se outros dispositivos voltados a restringi-los. Observe-se que a mudança no direito das sucessões com a releitura de seus institutos, se não é uma opinião unânime, tampouco enfrenta resistência. É um movimento sem volta. A questão a destacar é que a doutrina tem o importante papel de debater e apresentar opções legislativas que se coadunem com a ordem constitucional e atendam à solução das mais diversas questões oriundas da diversidade de situações jurídicas surgidas nos últimos cem anos. Não se trata de lacunas a exigir do aplicador, por exemplo, o uso da metodologia civil constitucional como forma de validar dispositivo do Código Civil que admite interpretação mais dúctil à míngua de outras normas do sistema que tenham por foco a restrição. Pelo contrário, sobram dispositivos infraconstitucionais a indicar que a interpretação restritiva do art. 426 se encontra concorde com o ordenamento vigente. Por isso a alteração legislativa imporá maior segurança jurídica ao sistema. Daí a importância do debate em torno dos limites e possibilidades da autonomia privada no direito sucessório. *Gustavo Andrade é pós-doutorado pela UERJ. Doutor em Direito pela UFPE. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Procurador do município do Recife. Advogado.  **Marcos Ehrhardt Júnior é doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado. __________ 1 Ver por todos: ANDRADE, Gustavo Henrique Baptista. O direito de herança e a liberdade de testar: um estudo comparado entre os sistemas jurídicos brasileiro e inglês. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 2 Ver por todos: TEIXEIRA, Daniele (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020. 3 DELGADO, Mario Luiz. MARINHO JÚNIOR, Jânio Urbano. Novos horizontes para os pactos sucessórios no Brasil. Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Jan./Fev. 2019. 4 Sobre o planejamento patrimonial e o contrato de doação, remete-se à coluna de Felipe Quintella, disponível aqui. Acesso em 12/10/20. Ainda sobre o tema da doação, desta vez entre cônjuges no regime da comunhão universal de bens, deve-se destacar a contribuição de Carlos Eduardo Elias de Oliveira para esta coluna, disponível aqui. Acesso em 7/10/2020. 5 No mesmo sentido, Flávio Tartuce já se posicionou em coluna também publicada pelo Migalhas. Acesso em: 12/10/2020. 6 Disponível aqui. Acesso em: 7/10/2020.
As sociedades de economia mista e as empresas públicas estatais foram inicialmente estruturadas pelo decreto-lei 200/1967, inspirada nos établissements publics franceses1, com o intuito de conferir maior rapidez, qualidade e eficiência a partir de um modelo empresarial em diálogo com o direito administrativo, que fazem parte da Administração Pública Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. O contexto jurídico das sociedades estatais une o direito constitucional, o direito administrativo, com a aplicação de recursos estatais, o direito empresarial, ante as atividades empresariais, normalmente desenvolvidas pelas sociedades estatais2, e o direito civil, na configuração jurídica dos institutos de base desde a constituição à extinção das sociedades estatais. Como o regime jurídico das sociedades estatais é híbrido, deve-se focar na "maior liberdade de atuação possível às estatais no que elas necessitarem para atuarem com eficiência no mercado, mas sem olvidar de mecanismos que evitem que essa liberdade seja desviada, mecanismos que, todavia, não correspondem ao mero retorno ou fortalecimento dos controles típicos da Administração Pública tradicional"3. Por isso, os aspectos relacionados ao regime4-5-6-7 das sociedades estatais8. A Emenda Constitucional 19/1998 alterou os arts. 22, XXVII, e 173 da Constituição Federal de 1988, da hibridez do regime jurídico que cerca as sociedades estatais e, diante da aplicação às empresas públicas e de economia mista e subsidiárias da legislação atinente aos entes da Administração Pública Direta, como a lei 8.666/93 (Licitações e Contratos), lei 8.987/95 (delegação de serviço público à iniciativa privada), lei 10.520/02 (Pregão), lei 11.079/04 (parceria público-privada), lei 12.462/11 (RDC - Regime Diferenciado de Contratações Públicas), entre outras, foi promulgada a lei 13.303/16, a fim de regular o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios9. Nessa linha, a hibridez do regime jurídico das sociedades estatais permite que a lei 13.303/16 seja interpretada "de acordo com a realidade da função econômica com que a gestão pública brasileira, a partir da Carta Fundamental de 1988, tem manejado aquelas empresas"10-11. Esse caldo de cultura de modificação do estatuto jurídico das sociedades estatais traz à baila o estratégico papel que estas pessoas coletivas exercem no cenário brasileiro do século XXI, uma vez que se apresenta na gestão estatal influenciadora de agentes políticos, públicos e privados na seara da ordem econômica, cujas decisões podem produzir efeitos em aspectos ambientais, sociais, jurídicos e econômicos do espaço em que atuam12. Essa autuação, muitas vezes, se verifica no campo licitatório e contratual. Desse modo, a adequada regulação das sociedades estatais passa pela correta compreensão da lei 13.303/16 no âmbito das licitações e dos contratos. Isso porque a lei manteve regulações no âmbito licitatório e contratual com base na experiência legal e concreta da legislação retrocitada, bem como trouxe regulamentos específicos para tema em relação às sociedades estatais. Diante disso, a regra continua sendo licitar, como se infere do art. 71 do decreto-lei 8.945/16, mantendo-se hipóteses de contratação direta13. Destaca-se que o art. 40 da lei 13.303 indica que as sociedades estatais devem manter atualizados o RILC, sendo que as "disposições do regulamento devem basear-se nas normas gerais da Lei n.º 13.303/16, sendo vedado à empresa estatal dispor de modo diverso, porém admitidas soluções procedimentais com elas compatíveis, com o fim de atender às peculiaridades de cada empresa"14. Dentro dos diversos temas que emergirão da referida lei, um tem causado controvérsia, a interpretação do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais: Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei. § 3º Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput . (...) Art. 97. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Como deve ser lido o art. 91, § 3º, da lei 13.303/16? Noutros termos, a lei 13.303/16 aponta ser autoaplicável regime de licitação e de contratação por ela estipulado, salvo quanto aos arts. 31, § 4º, 32, V, § 3º e § 4º, 39, 40, 42, X, 48 e 63-67 da referida lei15, como explica a literatura jurídica: À exceção dessas hipóteses, as normas sobre licitações e contratações da lei 13.303/16 têm eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral, desde a entrada em vigor da lei, aptas, portanto, a produzir efeitos independentemente de norma regulamentar. Aquelas exceções dependem de regulamento para lhes complementar o sentido, e a elaboração desse regulamento é atribuição interna de cada empresa estatal, com o que o direito brasileiro ainda produzirá considerável volume de normas disciplinadoras da atividade contratual dessas empresas, podendo suscitar conflitos interpretativos que terminarão nos tribunais, judiciais e de contas16. Para que não paire dúvida sobre o ponto, a lei 13.303/16 foi promulgada em 30.06.2016 (lei 13.303/16, art. 97), sendo que o prazo de 24 (vinte e quatro) meses de adaptação e de adequação das sociedades estatais já existentes à lei 13.303/16 posto no art. 91, caput "não se trata de "vacatio legis" mas de prazo para adaptação"17. O Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que as sociedades estatais já existentes teriam até 30 de junho de 2018 para realizar as referidas adaptações (TCU, Acórdão n.º 23/2017). Explica a literatura jurídica: Quanto aos contratos e licitações, dispõe o § 3º do art. 91 que permanecem regidos pela legislação anterior, até o final do prazo previsto de vinte e quatro meses da vigência da lei. Assim, a legislação anterior, nesses temas em específico, acaba sendo perpetuada por esses dois anos. Diante da conjuntura em destaque, consideramos um equívoco não aplicar a lei 13.303/16, a partir da sua vigência, quanto às licitações e aos contratos feitos posteriormente à vigência da lei 13.303/16. Tais situações deveriam seguir as suas disposições, e não as normas anteriores, ainda que tenham sido feitos por empresa estatal criada antes da vigência da legislação ora comentada. Não tem sentido esperar que as empresas públicas e as sociedades de economia mista aguardem o prazo de vinte e quatro meses para começar a aplicar a lei 13.303/16 nesse tema, porque, como dissemos, não se trata de "vacatio legis", mas de prazo para adaptação. Apenas correriam pelas regras antigas os negócios os negócios celebrados ou em execução antes da vigência da Lei das Estatais. Nesse caso, não caberia sequer a opção do gestor para aplicação da lei nova. De mais a mais, não faria sentido a publicação da lei com a urgência a que foi submetida, e, de outro lado, se ofertado dois anos para que ela tivesse vigência - seria um contrassenso nesse sentido18. Dessa maneira, a lei 8.666/93 somente deve ser aplicada, no âmbito das licitações e dos contratos das sociedades estatais após a entrada em vigor da lei 13.303/16, nas hipóteses, arts. 41 e 55, III, da lei 13.303/16, conforme, por exemplo, despacho desta DIJUR/COJUR (41000884), nos autos do processo n.º 00111-00006125/2018-79. Nessa senda, o art. 68 da lei 13.303/16 indica que: "Os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta lei e pelos preceitos de direito privado". O TCU, no Acórdão 213/2017, assentou: "Não faz sentido pretender que a Lei 13.303/1016 estabelecesse às empresas estatais limitações maiores do que a Lei 8.666/1993 já estabelece". Explica a literatura jurídica: (...) enfatiza-se que, embora a Lei das empresas Estatais tenha sofrido importante influência da Lei Geral das Licitações, com ela não se confunde. Assim que não se pode cogitar da aplicação subsidiária, como regra. (...) um contrato feito por uma empresa estatal e regulado pelo art. 68 da lei13.303/16 não seria "contrato administrativo", para a concepção por assim dita "clássica" ou "ordinária", mas, sim, típico "contrato da Administração" (...), porque, em tese, despidos do regime derrogatório - cláusulas exorbitantes - , tendo em vista que a regra em questão determina que sejam eles regidos pela própria lei 13.303/16 e pelos preceitos de direito privado. (...) o regime de direito privado não é aplicado de modo supletivo, mas de modo direto, ao lado das disposições da legislação mencionada - a qual, diga-se de passagem, sequer prevê um rol de cláusulas exorbitantes. Assim, o regime dos contratos do direito civil aplica-se como fonte primária do direito, e não de modo supletivo, na hipótese em que a Lei das Estatais não desse conta de disciplinar o tema. Logo, a natureza dos contratos feitos e regidos pela lei 13.303/16 seria típico "contrato da administração". Para sermos ainda mais objetivos, o art. 68 determina que somente possam ser inseridas nos contratos feitos pela empresa estatais as cláusulas que derivam expressamente da lei 13.303/16 e, claro, do direito privado. De modo que tal legislação não permite a importação de norma administrativa que não aquelas já constantes (recepcionadas) na própria lei 13.303/16. Assim, se por um acaso se quisesse mirar uma dita "clausula exorbitante" nos negócios jurídicos feitos pelas empresas estatais, teríamos de procurá-las no âmbito do seu estatuto, ora comentado. Portanto, o art. 68 impõe um traço diferencial marcante entre os contratos feitos pela lei 13.303/16 e pela lei 8.666/93. A origem dessa disparidade reside na possibilidade de  as sociedades de economia mista e de as empresas públicas deterem capacidade gerencial menos rígida e burocrática, como ocorre com as autarquias e as fundações, para que aquelas entidades possam seguir a lógica do mercado, a enaltecer sua competitividade. Logo, é apropriado dizer que as empresas estatais receberam a possibilidade de contratações de forma mais flexível e ágil, adequadas às dinâmicas do mercado no qual estão inseridas, desde que observados os princípios da administração pública19. Não obstante isso, houve divergência quanto à incidência (ou não) da lei13.303/16 às licitações e aos contratos feitos pela Terracap antes da entrada em vigor da Lei das Estatais e que produziam efeitos futuros depois da entrada em vigor da citada lei. Emergiram dois entendimentos no âmbito de diversas sociedades estatais: (i) manutenção até o término do processo licitatório e do contrato dele advindo da legislação anterior; (ii) aplicação da Lei n.º 13.303/16 para os efeitos produzidos pelos processos licitatórios e pelos contratos firmados antes da lei, mas que, sob seu vigor, produzem efeitos. Defendemos, desde sempre, a hipótese de correção do segundo entendimento, com base na perspectiva traçada por Mario Delgado ao interpretar o art. 2.035 do Código Civil (CC): Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. Estabelece o presente dispositivo que os requisitos de validade dos negócios e demais atos jurídicos serão aqueles estabelecidos na lei anterior, mas os seus efeitos, desde que produzidos após a vigência do novo Código, a ele estarão subordinados, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Assim, um contrato celebrado antes de 11 de janeiro de 2003, ainda que uma das partes estivesse, por exemplo, em estado de perigo (art. 156), será válido, ou pelo menos por tal vício não haverá de ser anulado. Entretanto, contratos anteriores, que ainda estejam sendo executados, como nos casos de financiamentos a longo prazo, poderão ser revistos ou resolvidos sempre que, por evento imprevisível, ocorrido após 11 de janeiro de 2003, venham a se tornar excessivamente onerosos para um dos contratantes (art. 478). Nas repactuações que venham a ser realizadas após a entrada em vigor do Código, aplicam-se integralmente todas as novas regras, desde que compreendidas como novo contrato. Imagine-se, em outro exemplo, um contrato de prestação de serviços, de trato sucessivo, onde as partes hajam fixado determinado percentual para o reajuste periódico das parcelas do preço, vindo a lei posterior (por exemplo, plano econômico de congelamento) proibir esse tipo reajuste. Ainda que o reajuste contratual só viesse a ocorrer quando já vigente a lei nova proibitiva, a teor do disposto no caput do art. 2.035, deve ser observada a lei da época da celebração e aplicado o percentual definido no contrato. O pagamento posterior de parcela do preço, quando já estabelecido o respectivo valor em época pretérita, não seria considerado efeito futuro de ato passado, de modo a receber os influxos da lei novata. Trata-se (o reajuste) de fato pendente de realização, porém já definitivamente assentado sob o pálio da lei revogada. A incidência da lei nova, nesse caso, caracterizaria retroatividade de "grau médio". No mesmo exemplo, houvessem as partes previsto apenas a atualização do preço de acordo com certo índice oficial, a ser apurado no mês anterior ao do reajuste, e havendo esse índice sido extinto pela lei posterior, não haveria como se pleitear a manutenção do indexador, pois o facta pendentia ainda não estava definitivamente assentado. Sua ultimação se daria no futuro, quando fosse apurado o percentual do indexador eleito no contrato. Extinto o índice oficial, sem que o ajuste de vontades houvesse estabelecido percentual certo nem outro índice substituto, não haveria possibilidade de se assegurar a sobrevivência da lei revogada, aplicando-se imediatamente a lei nova. Vê-se, aqui, uma situação jurídica de fato passado, cujos efeitos jurídicos ainda não foram consumados, o que possibilita a aplicação imediata da lei posterior. Nos contratos de trato sucessivo, o CC/2002 trouxe, no caput do art. 2.035, verdadeira regra de sobredireito plenamente adequada e consentânea à doutrina de um novo direito intertemporal brasileiro. A ideia de que o contrato, como negócio jurídico realizado sob o império de determinada lei, se enquadra no conceito de "ato jurídico perfeito", para os fins de se furtar à retroatividade da lei nova, é assimilada pelo Código, que inclui, sob a sua regência, tão somente os efeitos futuros dos contratos anteriores, desde que produzidos após a vigência da lei nova e desde que as partes não tenham previsto determinada forma de execução. Caso os contratantes tenham feito essa previsão, fica afastada a incidência imediata da lei. Fica assegurada, assim, como regra geral codificada, a pós-atividade do Código de 1916 no que tange aos requisitos de validade dos contratos e a eficácia imediata do Código de 2002 quanto aos efeitos futuros desses negócios jurídicos. A regra geral, portanto, é a da aplicação imediata da lei nova aos efeitos dos contratos em curso, salvo se as partes houverem expressamente manifestado a intenção de excluir também os efeitos futuros do âmbito de eficácia da lei posterior. Para isso, precisariam haver inserido no contrato cláusula específica, salvaguardando o regime de execução, e desde que não houvesse contrariedade a norma de ordem pública. Convém esclarecer, no entanto, não serem poucos os autores que encampam a tese da inconstitucionalidade do dispositivo. A doutrina clássica, forjada à luz do Código de 1916, se opõe firmemente à eficácia imediata da lei nova nesses casos, sacralizando o princípio do pacta sunt servanda. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que, "se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado" (ADIn 493/DF, Rel. Min. Moreira Alves). Não partilhamos dessa opinião, tampouco concordamos com as conclusões do aresto do STF. A imprecada retroatividade do caput do art. 2.035 constitui mera hipótese de aplicação imediata da lei nova. Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro direito adquirido aos efeitos futuros das situações jurídicas contratuais constituídas sob a égide da lei antiga. A lei nova colhe os contratos em curso de execução ou de produção de efeitos no estado em que se encontram, aplicando-se imediatamente, sem retroatividade. Apenas os efeitos já produzidos, por exemplo, a multa moratória já vencida e já paga em percentual superior ao novo teto legal, não seriam alcançados pela nova lei. Mais polêmica ainda que a regra constante do caput do art. 2.035 é a norma que se extrai do parágrafo único, a prever, não só a aplicação imediata, mas também a aplicação retroativa (nenhuma convenção prevalecerá) das normas de ordem pública, citando como exemplos aquelas relativas à função social dos contratos e da propriedade. O dispositivo deixa claro que está apenas a exemplificar, e quaisquer outras normas, desde que consideradas como "de ordem pública", terão aplicação imediata, contra elas não cabendo invocar direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Defendemos, com entusiasmo, a possibilidade de se utilizar a técnica da ponderação para avaliar, em cada caso concreto, se a lei posterior pode interferir nos contratos anteriores. Se a partir da ponderação entre o valor da segurança e os princípios da segurança jurídica e do pacta sunt servanda, de um lado, e o valor da Justiça e os princípios da solidariedade e da função social do contrato, de outro, pudermos concluir qual o lado mais pesado da balança, esse será o critério para decidir entre a aplicação da lei anterior, vigente à data da celebração do contrato, e a lei posterior, editada quando o contrato encontrava-se em curso de produção de efeitos. Formulemos um exemplo hipotético para facilitar a compreensão da ideia. Vamos supor que o personagem João, pretendendo abrir um negócio próprio, tivesse celebrado, no ano de 2002, antes do início da vigência do atual Código Civil, um contrato de franquia, cujas obrigações do franqueado eram manifestamente desproporcionais àquelas do franqueador e com cláusula penal em valor manifestamente excessivo. Com a posterior entrada em vigor do Código Civil de 2002 e vendo-se impossibilitado de continuar a cumprir com todas as obrigações do contrato, João postula a sua revisão (ou alternativamente a resolução com redução da cláusula penal), invocando a seu favor o estatuído nos arts. 413, 421 e 2.035 do CC/2002. Depois de ponderar e sopesar normas e valores conflitantes no caso concreto (p. ex., pacta sunt servanda => ato jurídico perfeito => segurança jurídica versus função social => solidariedade => justiça social), provavelmente entenderíamos razoável a pretensão de João, e optaríamos pela aplicação imediata do CC/2002, ainda que o contrato tenha sido celebrado em data anterior. É verdade que a técnica de ponderação poderá levar, no limite, à admissão de hipóteses invalidantes supervenientes, previstas na lei posterior, o que será motivo de estupefação para a doutrina tradicional. Entretanto, nas quadras atuais, onde temos uma população cada vez maior e com crescente expectativa de vida, onde os recursos naturais (e os direitos a eles inerentes) são cada vez mais escassos, o aplicador do Direito será chamado, cada vez mais, a fazer escolhas como essa, atribuindo direitos para alguns e suprimindo direitos já considerados incorporados ou adquiridos por outros. Se não existem direitos para todos, há de se suprimir de alguns e atribuí-los a outros. A norma que se extrai do art. 2.035 ainda não foi apreendida em sua plenitude pela doutrina nacional. Durante a IV Jornada de Direito Civil ocorreram extensos debates, os quais resultaram na aprovação de dois enunciados. O Enunciado n. 300 esclarece que "a lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio". O Enunciado n. 396, por sua vez, versa sobre a capacidade para ser sócio, dispondo que "a capacidade para contratar a constituição da sociedade submete-se à lei vigente no momento do registro". Interessante questão de direito intertemporal surgiu com o advento da lei 13.786/2018, que disciplina "a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária" e trouxe importantes inovações para o mercado imobiliário, especialmente o estabelecimento de limites (de até 50%) para a estipulação de cláusula penal. A indagação logo surgida era se as novas regras se aplicariam aos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor. A aplicação analógica do art. 2.035 do Código Civil c/c o art. 6º da LINDB nos leva a conclusão de que, se não houver previsão no contrato estipulando o percentual da cláusula penal, aplica-se imediatamente a nova lei, com os limites ali previstos, pouco importando a data da celebração do negócio. Contudo, se o contrato estabelecer um percentual ou montante para a cláusula penal, essa pactuação estará ao abrigo da aplicação da nova lei20. À vista do exposto, sugere-se a seguinte ideia interpretativa do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais: Até 30 de junho de 2018, último dia do prazo de adaptação das empresas públicas e sociedades de economia mista construídas anteriormente ao início do vigor da lei 13.303/16, permanecem regidos pela legislação anterior e a indicada no Edital, os processos licitatórios, os contratos, os acordos, os ajustes, os aditivos, os convênios e instrumentos congêneres iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16, que ocorreu em 30 de junho de 2016. A partir de 1º de julho de 2018, todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16 será por ela regido, na forma do art. 91, § 3º, da lei 3.303/16. Todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados a partir de 30 de junho de 2016 será regido pela lei 13.303/16. Espera-se que com isso, a Lei das Estatais possa ser adequadamente interpretada no Brasil, a fim de que possa ser efetivamente utilizada pelas sociedades estatias. *Pablo Malheiros da Cunha Frota é professor de Direito Civil e de Processo Civil da UFG. Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Sócio de Alencar, Barroso e Malheiros Advogados (DF). __________ 1 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - Lei n.º 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 27. 2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13.ed. São Paulo: RT, 2018, Capítulo 6, Item 17 (edição eletrônica). 3  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 146. 4 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 78-79, 89 e 133. 5 No RE 172.816, o STF indicou que o art. 173, § 1º, da CF/88 não incide nas atividades econômicas titularizadas com exclusividade pelo Estado. "A norma do art. 173, § 1º, da Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade". Essa posição do STF foi reiterada em muitos julgados, como no RE 356.711/PR, voto do Ministro relator Gilmar Mendes, julgamento em 06.11.2005, Segunda Turma, DJ 07.04.2006 e no RE 433666 AgR/BA, julgamento em 03.11.2009, DJ 26.11.2009. 6 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104. 7 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104-106. 8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 140. 9 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 10 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29. 11 Sobre o tema vejam: MOREIRA, Egon Boockmann. O Direito Econômico e o papel regulatório das empresas estatais. Disponível aqui. Acesso em 20/8/2020. 12 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29. 13 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 14 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 344. 15 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 16 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28-29. 17 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 731. 18 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 730- 731. Essa é a linha, entre outros, do Parecer SEI-GDF n.º 241/2020 - TERRACAP/PRESI/DIJUR/COJUR, nos autos do processo n.º 0111-005447/2013 (39854799). 19 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 627-629. 20 DELGADO, Mario. Art. 2.035. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando ; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; RÉGIS, Mário Luiz Delgado . Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Forense, 2020p. 1568.
A Circular de Oferta de Franquia (COF) é o instrumento por meio do qual a franqueadora apresenta ao candidato a franqueado informações sobre a franqueadora, negócio franqueado, franqueado ideal, interações associativas e condições contratuais. Trata-se de instrumento de disclosure que impõe à franqueadora, detentora de informações sobre o seu sistema e o sobre o mercado em que atua, o dever e o ônus de revelar informações claras, objetivas e sinceras para auxiliar o candidato a franqueado, parte desinformada, na tomada de decisão quanto ao ingresso ou não na rede franquias. A COF deve ser apresentada pela franqueadora ao candidato a franqueado com antecedência mínima de 10 dias da assinatura do contrato de franquia ou do recebimento de quaisquer valores (art. 2º, §§ 1º e 2º, da lei 13.966/2019). O conteúdo mínimo que deve constar obrigatoriamente da COF está previsto nos incisos do art. 2º, da lei 13.966/2019. Por se tratar de conteúdo obrigatório mínimo nada obsta que a franqueadora apresente outras informações, mormente se tais informações forem decisivas para a escolha do candidato a franqueado. Parece-nos que, com a Pandemia, dentre as informações a serem obrigatoriamente expostas pela franquedora, merecem atenção as seguintes: balanços e informações financeiras da empresa franqueadora dos últimos dois exercícios (inciso III), descrição detalhada da franquia e descrição geral do negócio (inciso V) e condições para incorporação de novas tecnologias às franquias (inciso XIII, d). A pandemia do Novo Coronavírus, como se sabe, levou a OMS (Organização Mundial da Saúde) a recomendar a adoção de medidas de distanciamento social e maximização das medidas sanitárias em todo o mundo para dificultar a disseminação do vírus. A crise sanitária fez com que a maioria da população precisasse ficar em casa por determinação governamental durante meses, sendo determinado, inclusive, lockdown durante semanas em algumas cidades. Como medida preventiva, a população foi orientada a utilizar máscaras, álcool em gel e a manter distância segura de outras pessoas. Após mais de seis meses do reconhecimento da pandemia do novo coronavírus pela OMS, ainda não há previsão de "normalização" da vida. Há quem fale que o mundo nunca mais voltará a ser o mesmo. Tornou-se comum a referência ao "novo normal". Ou seja, normalização da vida com a absorção pela população das medidas sanitárias impostas pelas medidas preventivas em relação ao novo coronavírus. A volta ao "novo normal" tem ocorrido com medidas de flexibilização do isolamento social e intensificação das medidas de higienização. A crise econômica, contudo, já é uma realidade e a extensão dos seus efeitos ainda é incerta. Em razão das medidas de isolamento social lojas e restaurantes permaneceram fechados por meses fazendo com que as empresas precisassem se adaptar ao e-commerce; cursos, escolas e faculdade precisaram se adequar ao EAD; academias precisaram encontrar formas de manter a fidelidade de seus clientes mesmo fechadas; escritórios comerciais foram desativados e seus trabalhadores passaram a trabalhar em homeoffice, outros foram demitidos; indústrias de bens considerados não essenciais reduziram a produção; a demanda por consumo, naturalmente, sofreu enorme retração. Por outro lado, algumas empresas puderam experimentar aumento de faturamento, a exemplo daquelas vinculadas ao ramo de saúde e higiene. No "novo normal", os estabelecimentos comerciais puderam reabrir, mas com limitação de pessoas por metro quadrado e adoção de medidas de higienização dos ambientes e das pessoas. O uso de máscaras e álcool em gel por funcionários e clientes se tornou comum; muitas pessoas, principalmente integrantes dos grupos de riscos em relação ao patógeno, permanecem em isolamento doméstico. O "novo normal" normal, sem dúvida, é um desafio para as empresas e para as pessoas. A disponibilidade financeira e as prioridades dos consumidores mudaram. A forma de vender também mudou. Não se sabe por quanto tempo irá viogorar o "novo normal" e se o "velho normal" voltará a existir. Fato é que as empresas precisaram se adaptar às novas tecnologias e às novas necessidades de mercado e precisarão continuar se adaptando para sobreviver. Como falávamos acima, a franqueadora precisa apresentar informações transparentes e sinceras para que o candidato a franqueado possa decidir da forma mais imparcial possível sobre o seu ingresso, ou não, na rede. Parece-nos que para cumprir o normativo que determina a descrição detalhada da franquia e descrição geral do negócio (art. 2º, V, da lei 13.966/2019), a franqueadora deve apresentar não só o seu comportamento pré-pandemia, mas a forma com a qual lidou com a crise econômica, quais foram os comportamentos de seus consumidores e de seus concorrentes, quais os impactos no setor e quais as perspectivas para o futuro do mercado consumidor com o "novo normal" e com a eventual retomada ao "velho normal". É preciso esclarecer que o balanço patrimonial e as demonstrações financeiras de 2018 e 2019 (dois últimos exercícios) - art. 2º, II, da lei 13.966/2019 - não refletem a situação da franqueadora durante a crise. Da mesma forma, a partir de 2021, o balanço patrimonial e as demonstrações financeiras deverão vir acompanhadas das notas técnicas que expliquem a situação econômico-financeira da empresa no ano de 2020 com os impactos da crise. De acordo com a BDO Canadá, é necessário considerar, por exemplo, impactos sobre perdas de créditos e projeções de fluxo de caixa, rescisões contratuais, multas, indenizações e reembolsos decorrentes da crise gerada pela Pandemia1. Importa salientar, ainda, que a crise do Novo Coronavírus fez com que as empresas fossem obrigadas a evoluir, do ponto de vista tecnológico, em meses, o que normalmente demoraria anos para acontecer. Por isso, mais do que nunca, a forma de incorporação de novas tecnologias às franquias (art. 2º, XIII, "d", da lei 13.966/2019) precisa estar claras no instrumento de disclosure. Nos Estados Unidos, precursor da legislação protetiva na indústria de franquias, as franqueadoras estão autorizadas pelo item 19 da FTD Franchise Rule a apresentar ao franqueado, no instrumento de disclosure, uma simulação de performance financeira de uma unidade franqueada com base em dados históricos. Diante da Pandemia do Novo Coronavírus e das alterações no mercado já mencionadas, a NASAA (North American Securities Administrarion Association) foi instada por diversos franqueadores a se manifestar acerca da manutenção da simulação do item 19 em suas Circulares. De acordo com o parecer da NASAA2, as empresas cujas atividades econômicas apresentaram alteração substancial na performance financeira devem retirar a simulação financeira com base em dados históricos de suas Circulares. A nossa conclusão, portanto, é no sentido de que a franqueadora deve fornecer em sua COF informações o mais realistas possível. Não se está a falar que a franqueadora deve prever o futuro ou prever exatamente o que será implantado em cada etapa de suas atividades. Está-se a falar que a franqueadora não deve fornecer informações que não sejam condizentes com o momento pós-pandêmico, devendo apresentar, sempre que possível, como se dará o processo por meio do qual ocorrem as decisões de implantação de novas tecnologias na rede. *Raif Daher Hardman de Figueiredo é bacharel em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Direito dos Contratos pela FGV-SP. Associado do IBDCont. Advogado. **Arnaldo Rizzardo Filho é bacharel em Direito pela PUC-RS. Mestre em Direito Público pela Unisinos. Advogado, professor e autor. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
A exceção de contrato não cumprido, também denominada pela doutrina de exceptio non adimpleti contractus, exceção de inexecução ou exceção de inadimplemento, pode ser conceituada como a "faculdade que tem uma das partes de recusar-se a cumprir a obrigação, quando a parte contrária, por sua vez, à sua não deu cumprimento"1. Prevista expressamente no art. 476 do Código Civil2, alude-se a essa figura jurídica a noção de direito potestativo3, atuando como remédio para o contratante que possui interesse na manutenção da relação obrigacional e no adimplemento da contraparte. Busca-se refletir, então, acerca da possibilidade do exercício de renúncia à oposição dessa exceção. Afirma-se que a renúncia consiste em causa impeditiva da exceção de contrato não cumprido4. Em outros termos, o exercício de autonomia privada pelas partes, no bojo de uma relação sinalagmática, com o propósito de renunciar à possibilidade de oposição da exceção de contrato não cumprido não extingue essa exceção, apenas impede o seu exercício por parte do contratante que estaria na posição de excipiente. A renúncia à exceção de contrato não cumprido pode se configurar de diversos modos, quais sejam de forma antecipada, no próprio contrato; no curso da relação obrigacional, por meio de ato unilateral de uma das partes; e depois de oposta a exceção, desde que antes do trânsito em julgado do provimento que reconhecer a exceção5. Quanto à renúncia pactuada no bojo da relação contratual - seja no próprio contrato ou em seu respectivo aditivo -, a doutrina geralmente enuncia a cláusula solve et repete, que em sua concepção latina significa "pague e depois reclame". Importa observar, todavia, que tal cláusula pode se manifestar por arranjos contratuais os mais diversos e pode ter por objeto exceções muito variadas. Por essa razão, a restrição de seu  âmbito de atuação à exceção de contrato não cumprido não parece adequada, como não raramente se verifica na doutrina6. Nesse contexto, a cláusula solve et repete "tem uma finalidade específica, qual seja limitar, em favor daquele a quem beneficia, a oponibilidade de exceções relativas à inexecução das obrigações contratuais, como é o caso da exceptio non adimpleti contractus"7. Dito de outra forma, a cláusula solve et repete consiste em "meio de autotutela no contrato bilateral, em favor da parte que tem a receber a prestação indispensável, a fim de impedir que a contraparte se exima de cumprir invocando a exceção"8. Trata-se, portanto, de renúncia ao exercício da oponibilidade de uma exceção e não de renúncia ao crédito. Por essa razão, pode o contratante, impedido de opor a exceção e prejudicado pelo inadimplemento da contraparte, voltar-se contra o inadimplente para exigir o cumprimento da prestação ou as perdas e danos9. Essa renúncia gera, então, o efeito de impedir que o contratante prejudicado se recuse a cumprir a própria prestação10, mas não o impossibilita de perseguir o seu crédito pelos meios adequados. Assim, a cláusula solve et repete assegura ao contratante que dela se beneficiou "um fluxo contínuo das prestações a que tem direito, o que pode atender a diversos interesses negociais dignos de tutela"11. Embora amplamente aceita doutrinariamente, a cláusula solve et repete, diferente do direito italiano12, não possui previsão legal na codificação civil brasileira. Ainda assim, é possível cogitar de sua aplicabilidade como resultado do exercício da autonomia privada, desde que observadas certas limitações tais como a observância dos deveres laterais da boa-fé objetiva, o respeito aos critérios de validade do negócio jurídico, bem como o exercício não abusivo da cláusula13. Ainda sobre as limitações de aplicabilidade da cláusula solve et repete, podem-se reputar os contratos de adesão e os contratos de consumo. Quanto aos contratos de adesão, considerando-se especificamente a exceção de contrato não cumprido, pode-se alcançar a conclusão de que a cláusula solve et repete se amolda à causa de nulidade disposta no art. 424 do Código Civil14, tendo em vista que essa exceção consiste em remédio atribuído aos contratos sinalagmáticos15. Já em relação aos contratos de consumo, a inserção de cláusula solve et repete seria reputada nula por força do art. 51, I, do CDC16. O exercício de renúncia à possibilidade de oponibilidade da exceção de contrato não cumprido também pode resultar de ato unilateral do contratante, seja expresso ou tácito. No primeiro caso, é possível vislumbrar a hipótese em que, diante de um inadimplemento, o contratante prejudicado pela falta da prestação comunique a contraparte informando que continuará cumprindo com a sua obrigação, a despeito do incumprimento do outro. A renúncia seria tácita, por outro lado, se o contratante, cientificado de forma antecipada pela contraparte de seu iminente descumprimento, ainda assim efetuasse normalmente o seu pagamento17. Nesse contexto, Vitor Butruce observa que o não uso da exceção de contrato não cumprido não implica necessariamente em renúncia. Isso porque a exceção de contrato não cumprido consistiria em direito potestativo e, por essa razão, faculta-se ao seu titular o seu exercício no momento mais oportuno. Dessa forma, a tolerância ao inadimplemento não se iguala à renúncia à oposição da exceção de contrato não cumprido18. É o que se constata nos chamados contratos de duração, em que a parte excipiente por vezes, aceita o inadimplemento do outro contratante enquanto essa postura se mostra conveniente à persecução de seu interesse dentro do programa contratual globalmente considerado. A renúncia à exceção de contrato não cumprido demonstra que as partes podem perseguir o resultado útil do contrato sem necessariamente lançarem mão do remédio previsto em lei. Embora o adimplemento reconhecidamente polarize a obrigação, a complexidade da relação contratual permite construir e modular os meios para alcançá-lo, de maneira que o próprio adimplemento passa a integrar uma equação mais ampla, em que se leva em conta a globalidade dos interesses subjacentes ao contrato. Uma vez mais, a leitura funcional se mostra imprescindível, ao permitir, de um lado, a identificação dos fins efetivamente perseguidos pela parte que renuncia e, do outro, a submissão da própria renúncia, enquanto expressão da autonomia privada, a um exame de conformidade com a ordem civil-constitucional. *Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela UERJ. Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.   **Marcos de Souza Paula é mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ. Assessor do TJ/RJ.  __________ 1 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: os contratos. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, v. 2, p. 188. 2 "Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro". 3 Nesse sentido, v. BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 64 e FREITAS, Rodrigo Lima e Silva de. O locus de atuação da exceção de contrato não cumprido no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 53-54. 4 GAGLIARDI, Rafael Villar. A exceção de contrato não cumprido. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC SP, 2006, p. 228. Em sentido contrário, Araken de Assis considera que a renúncia como uma das "causas autônomas de extinção da exceção de inadimplemento" (ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 694). 5 ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 695-696. 6 Para uma análise pormenorizada da matéria e dessa crítica, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia; SILVA, Jeniffer Gomes da. Cláusulas solve et repete: perspectivas de atuação da autonomia privada na (de)limitação das exceções oponíveis pelo devedor. Revista Eletrônica da PGE RJ. Jan.- abr./2020, v. 3, n. 1. Disponível aqui. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Contratos e Obrigações - Pareceres: de acordo com o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 472. 8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 6, t. 2, p. 821-822. 9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 414. 10 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167. 11 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 171. 12 Na codificação civil italiana, as cláusulas solve et repete são previstas no art. 1.462: "Cláusula limitativa da proponibilidade de exceções. A cláusula pela qual se estabelece que uma das partes não pode opor exceções a fim de evitar ou de retardar a prestação devida, não tem efeito para as exceções de nulidade, de anulabilidade e de rescisão do contrato. Nos casos em que a cláusula for eficaz, se o juiz achar que concorrem motivos graves, pode, apesar da circunstância, suspender a condenação, impondo, quando for o caso, uma caução" (tradução livre do original). 13 Miguel Maria de Serpa Lopes conclui pela admissibilidade da cláusula solve et repete no direito brasileiro, desde que ressalvadas algumas limitações: "(...) a referida cláusula não pode ser entendida deslimitadamente, mas sim guardadas certas reservas, sobretudo no tocante à questão da nulidade, anulabilidade e precipuamente em relação ao dolo. Consideramos, mesmo, que a omissão da nossa ordem jurídica a esse respeito pode ser perfeitamente suprida obedecendo-se à estrutura que vem de lhe dar o atual Código Civil italiano (...)" (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p. 334). 14 "Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio". 15 Em sentido semelhante, manifesta-se João Pedro de Biazi: "Em contratos por adesão, a cláusula solve et repete é inválida por incidência do artigo 424 do Código Civil, bem como por incidência da cláusula geral de boa-fé, que impõe a preservação de regras que assegurem o equilíbrio mínimo da relação negocial" (BIAZI, João Pedro de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 241). 16 "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;". 17 A situação é bem exemplificada por Vitor Butruce: "Imagine-se situação em que um empreiteiro deixe de concluir tempestivamente certa etapa do cronograma de uma empreitada, por encontrar-se em dificuldades financeiras. Haveria renúncia expressa à exceptio se o dono da obra comunicasse à contraparte, mediante correspondência, que não suspenderia seus pagamentos periódicos para não o conduzir à ruína. Diante da mesma inadimplência, haveria renúncia tácita, por exemplo, se o empreiteiro desse ciência ao dono da obra sobre o iminente descumprimento do prazo e este, verificado o inadimplemento, solicitasse emissão de fatura para providenciar o pagamento da prestação vencida (embora inexigível, dado o inadimplemento). Também o próprio cumprimento da prestação, antecipado ou em conformidade ao programa contratual, é considerado por alguns autores como uma espécie de renúncia tácita ao exercício da exceptio". (BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167). 18 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 168.
Este artigo discute se é ou não viável doação entre cônjuges casados no regime da comunhão universal. A doação entre cônjuges é permitida pelo CC de modo implícito no art. 544 do CC1. É preciso, porém, observar a sua compatibilidade com o regime de bens do casal. No caso de consortes casados em regime diverso do da comunhão universal, não há obstáculo à doação entre cônjuges, pois as liberalidades não se comunicam. Se, porém, os consortes foram casados no regime da comunhão universal de bens, o STJ entende que a doação entre eles seria nula por impossibilidade jurídica do objeto, a qual decorre da comunicabilidade das doações nesse regime de bens (STJ, REsp 1787027/RS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 24/04/20202; AR 310/PI, 2ª Seção, Rel. Ministro Dias Trindade, DJ 18/10/19933). No voto da Ministra Nancy Andrighi do primeiro julgado retrocitado, é citado Pontes de Miranda para estabelecer que, no regime da comunhão universal, sequer seria viável uma doação entre cônjuges com cláusula de incomunicabilidade, pois isso "importaria permitir-se-lhes a alteração no regime de bens estabelecidos, que é, ex potestate legis, irrevogável"4. Isso foi dito de passagem (obiter dictum), pois o caso concreto não envolvia essa hipótese. Ousamos apontar a necessidade de parcial ajuste nesse entendimento. Na verdade, nem se poderia falar propriamente que estamos suscitando uma divergência, pois o caso concreto julgado pelo STJ não abrangia as ressalvas que faremos abaixo. Em primeiro lugar, a doação entre cônjuges no regime da comunhão universal poderia ocorrer quanto aos bens particulares. O art. 1.668 do CC lista bens particulares nesse regime, como o instrumento de trabalho e as doações recebidas com cláusulas de incomunicabilidade, além de a própria jurisprudência reconhecer outros bens particulares no regime da comunhão universal de bens, como o valor recebido a título de seguro de vida5.  Nesse sentido, temos apoio no professor Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2020). Igualmente, o professor Hamid Charaf Bdine acena no mesmo sentido quando ele admite compra e venda de bens particulares entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens (Jr. BDINE JR., Hamid. Charaf. Art. 499. In: PELUSO, Cesar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri/SP: Manole, 2012). Sobre esse caso especificamente, o STJ não se manifestou e, por isso, a questão ainda está em aberto nessa Corte. Em segundo lugar, no tocante aos bens comuns, temos por devida a doação, com cláusula de incomunicabilidade, por parte de um cônjuge de modo a tornar a coisa doada um bem particular do outro consorte (art. 1.668, I, CC6). De fato, o regime da comunhão universal comporta bens particulares, de modo que está implícita a possibilidade de os consortes transformarem bens comuns em particulares por meio da cláusula de incomunicabilidade inserida em uma doação. Entendimento contrário levaria ao absurdo de os consortes terem de doar um bem a um terceiro que, em seguida, doaria apenas a um dos consortes com cláusula de incomunicabilidade com base no art. 1.668, I, do CC, o que seria um despropósito. Interpretações não podem nos levar ao absurdo, como milenar regra de direito. Além do mais, nada impediria que, por testamento, um consorte deixasse a sua parte sobre um bem comum ao outro, de maneira que seria um contrassenso entender que o Código Civil teria vedado que, em vida, um consorte já tornasse desde logo um bem como como bem particular do outro por meio da cláusula de inalienabilidade. De mais a mais, a jurisprudência tende a fortalecer a possibilidade de, mesmo no regime da comunhão universal, um dos consortes ter bens particulares, a exemplo do seu direito de salvar, para si, metade do bem comum que foi penhorado por dívida contraída pelo outro sem proveito do casal7. Não se deve contrariar essa tendência, ainda mais por meio de uma interpretação restritiva que cria embaraços à autonomia da vontade num contexto em que inexiste norma expressamente proibindo a doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens. Por fim, o próprio art. 499 do CC, ao permitir compra e venda entre cônjuges quanto aos bens excluídos da comunhão (sem excluir expressamente o regime da comunhão universal), demonstra o prestígio do legislador à gestão dos bens particulares em qualquer regime de bens, mesmo no da comunhão universal.  O STJ não chegou a enfrentar diretamente um caso concreto envolvendo doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal. Por isso, o tema ainda está em aberto na jurisprudência no STJ. Em suma, defendemos que, fora desses dois casos acima (bens particulares e cláusula de inalienabilidade), como a doação é comunicável no regime da comunhão universal, a doação seria nula, nos termos da jurisprudência do STJ8. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/parecerista. Ex-advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB). Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro __________ 1 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança. 2 O caso envolvia a nulidade de cessão gratuita de quotas de pessoa jurídica ao cônjuge casado no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade. 3 A hipótese consistia na nulidade de doação de bens à esposa casada no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade. 4 Cabe uma ressalva: o regime de bens pode ser alterado mediante autorização judicial no regime do CC/2002. O excerto é este (fls. 11/14 do voto da Relatora no julgamento do REsp 1787027/RS): Os cônjuges são senhores pro indiviso dos bens comunicados. Nenhum dos dois os tem e possui por si; dão-se caracteristicamente, os fatos jurídicos da composse e do condomínio. Porém, composse e condomínio mais íntimos e, ao mesmo tempo, mais independentes do que a composse e o condomínio ordinários: os cônjuges não podem alienar ou gravar as suas partes (metades ideias), nem a composse dos bens comunicáveis permite o exercício sobre uma das partes dos bens, nem mesmo a separação. Trata-se de absoluta indivisão de bens presentes e futuros. Daí a impossibilidade das doações entre cônjuges quando o regime entre eles é o da comunhão universal: a) Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal, todos os adquiridos se comunicam. Já era o argumento de Melo Freire e Almeida e Sousa, que invocaram Groeneweg, Stryk e Bohmer. "Com efeito", dizia Almeida e Sousa, "nas nações em que é costumo, como no nosso reino, de se comunicarem entre os cônjuges, em falta de outro contrato, todos os bens, dizem os doutos nacionais que cessa este título pela mesma razão de outra vez se comunicarem os bens, que mutuamente se doam". A impossibilidade é de ordem lógica. b) Se a doação se fizesse com cláusula de incomunicabilidade, é certo que tais bens seriam incomunicáveis, porque assim mesmo dispõe o Código Civil (art. 263, II); mas essa condição de incomunicabilidade não seria lícita aos cônjuges: importaria permitirem-se-lhes alterações no regime de bens estabelecidos, que é, ex postestate legis, irrevogável (art. 230). As doações entre cônjuges são, portanto, impossíveis, lógica e juridicamente, se vigora o regime de comunhão universal. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito de família. Vol. II. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 363/364). 5 STJ, REsp 631.475/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJ 8/2/2008. 6 "Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;" 7 "A jurisprudência desta Corte consolidou entendimento de que os bens indivisíveis, de propriedade comum dos cônjuges casados no regime de comunhão de bens, podem ser levados à hasta pública na execução, desde que reservado ao cônjuge meeiro do executado a metade do preço obtido" (STJ, AgInt no AREsp 1127248/PE, 1º Turma, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06/12/2017). 8 A título de lembrança, recordamos que a doação entre cônjuges implica antecipação de herança e, por isso, tem de ser colacionada em futura sucessão, salvo se tiver havido cláusula expressa de dispensa de colação. Sobre o tema, reportamo-nos a este outro artigo nosso que trata da dispensa de colação pós-doação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Escritura pública de dispensa de colação pós-doação. Disponível aqui. Publicado em 12 de agosto de 2020).  
A revolução tecnológica verificada nos últimos anos trouxe à tona uma série de novas dinâmicas de mercado que ainda não foram objeto de satisfatória avaliação e regulação, e que demandam do aplicador jurídico o desafio da adaptação cada vez mais frequente de textos normativos analógicos a uma nova realidade social cada vez mais digital e impactada pela introdução de novas aplicações de inteligência artificial. É incontestável que os algoritmos vêm assumindo vasta participação numa série de atividades no campo negocial. Exsurge um novo paradigma operacional, com máquinas programadas para tomar decisões e assumir posturas típicas de indivíduos. Sistemas decidem como serão feitos os investimentos de um banco, negócios jurídicos são firmados por meio de softwares desenvolvidos em conjunto com sistemas de reconhecimento facial. Cada vez mais tomamos decisões sobre o que vamos consumir (livros, música, filmes) com base em sugestões que nos são apresentadas por aplicações que inteligência artificial criadas para traçar perfis de comportamento. Antes de prosseguirmos com algumas reflexões acerca de como a tecnologia vem impactando no campo contratual, é preciso estabelecer, o que se entende por uma aplicação de inteligência artificial (IA). Há quem os defina como "um sistema computacional com capacidade de decisão, agindo de forma autônoma a partir de suas capacidades de comunicação com outros agentes e/ou humanos para desempenhar a sua função específica1". São, em síntese, agentes com certo grau de autonomia, reatividade e proatividade. Jerry Kaplan argumenta que a essência da inteligência artificial, na verdade, a essência da inteligência, é a capacidade de fazer generalizações apropriadas em tempo hábil, com base em dados limitados2, consoante previsto em sua programação inicial. Um dos grandes obstáculos à melhor compreensão do tema objeto deste estudo é a dificuldade de lidar com conceitos e ideias de outros campos do saber, que exigem daqueles que se dedicam à pesquisa jurídica atenção com a terminologia empregada. A inteligência artificial muitas vezes se utiliza de algoritmos, ferramenta que pode ser compreendida como uma sequência de etapas utilizada pela inteligência artificial para solucionar um problema ou realizar uma atividade, cruzando dados e fazendo correlações em busca de um padrão3.  Os algoritmos, por sua vez, podem atuar por meio de machine learning, que é, essencialmente, a atividade da máquina de aprender novos fatos por meio da análise dos dados e da experiência prévia, sem programação explícita para tanto, adaptando a aprendizagem a novas situações4. Tais tecnologias se alimentam de um combustível essencial: dados. É nesse contexto que assume relevância a expressão Big Data, compreendida como um grande conjunto de dados, cada vez mais alimentado graças à presença de dispositivos sensores na vida cotidiana e ao crescente número de indivíduos conectados a essas tecnologias por meio de redes digitais5. Acumulam-se informações sobre tudo e sobre todos, 24 horas por dia, sete dias por semana, tudo armazenado, catalogado e pronto para ser minerado de acordo com os objetivos dos agentes de tratamento de dados. A revolução tecnológica tem desafiado o entendimento da dinâmica dos contratos e ensejado questionamentos acerca dos novos arranjos firmados. Se tradicionalmente compreendemos os contratos como negócios jurídicos de "autocomposição dos interesses e da realização pacífica das transações ou do tráfico jurídico, no cotidiano de cada pessoa"6. Precisamos nos aprofundar nos contratos ditos "algorítmicos", tipo de arranjo negocial nos quais uma ou mais partes usa(m) um algoritmo para determinar se deve(m) ou não se vincular7, isto é, contratos com termos que podem ser determinados com bases em critérios sugeridos ou avaliados pelo algoritmo8. O smart contract,  um tipo de contrato algorítmico, pode ser compreendido como um contrato autoexecutável aplicável a diferentes tipos de situações, regido por códigos específicos, que permite que as partes possam acordar entre si a negociação de bens e valores, executado de forma automática assim que as condições contratuais previamente definidas se cumprirem9. Não se confundem com os contratos eletrônicos, compreendidos como aqueles em que a proposta e a aceitação são realizadas por meio de sistemas de processamento de dados10, sem interatividade física entre as partes. Trata-se, assim, de contratos muitas vezes baseados na conduta negocial típica que induz a uma relação contratual, relativizando a exigência de aferição da capacidade civil dos envolvidos, mas sem que nenhum mecanismo explícito de oferta e aceitação tome espaço, o que mitiga a clássica ideia do consentimento de vontades, necessário para a concretização de um contrato. Nesse contexto, a teoria canandense do reliance estabelece que a adequação do negócio jurídico não depende de uma vontade interna do declarante, mas de sua conduta, que enseja a criação de confiança e leva o contratante a crer que houve assunção de uma obrigação11. Não obstante a evidente e inquestionável utilidade social decorrente do desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial, são também inúmeras as possibilidades de eclosão de danos em uma sociedade pós-moderna marcada pelo risco de sua utilização. A programação, vale dizer, o código algorítimo, não pode se sobrepor a direitos e garantias fundamentais, entre os quais podemos destacar o respeito à dignidade humana e a exigência de solidariedade social nos relacionamentos entre particulares, não importando a sua natureza. E não nos esqueçamos das questões relativas à transparência, num mundo no qual cada vez mais se ressalta a necessidade de accountability. O receio acerca do avanço da inteligência artificial também é fomentado pela ausência de conhecimento exato de como essas máquinas funcionam. A preocupação com a black box da IA é tão crescente que novas pesquisas têm sido feitas sob a denominação de Explainable Artificial Intelligence (XAI)12, ramo que visa fazer com que a IA vá alem da solução de problemas e que também seja capaz de trazer dados que possam elucidar como suas soluções são tomadas. Se temos máquinas que são programadas para pensar e se comportar como seres humanos, emulando o modo de comunicação e as nossas reações, não podemos esquecer que estamos diante de um produto de ações de programadores e empresas sujeitas ao ordenamento jurídico em vigor. Dito de outro modo, limitações tecnológicas não podem ser utilizadas como excludentes do dever de observar direitos fundamentais dos envolvidos em todas as etapas da aplicação da inteligência artificial.  Em sede contratual, os algoritmos podem ser utilizados tanto para fornecer informações relevantes para a pactuação do negócio jurídico como também em uma função de negociação. Nesse sentido, alguns desafios são impostos no que tange ao uso dos dados pelos algoritmos, especialmente considerando que, nesse contexto, muitas conclusões algorítmicas podem acarretar melhores condições contratuais para um dos polos da relação. Como saber que informações estão sendo utilizadas? De que forma tal informação é processada? É nesse panorama de razoável obscuridade que exsurgem as manifestações de discriminações algorítmicas. Impende evidenciar que a ideia de discriminação algorítmica não se restringe ao cenário em que determinado indivíduo é excluído de um grupo pelo fato de possuir determinada característica, manifestando-se, também, na situação em que alguém é julgado pelas características de um grupo a que pertença, de modo que suas características individuais passam a ser desconsideradas e o sujeito passa a ser visto como um mero membro de um dado grupo13. Nesse sentido, imagine-se a situação em que determinado indivíduo tem seu financiamento negado em razão da conclusão obtida pelo sistema de credit score, sem que nem sequer tenha conhecimento dos critérios levados a cabo pelo sistema. Ou ainda a hipótese em que determinado consumidor tem uma oferta virtual bloqueada simplesmente por estar situado em determinada cidade ou bairro, ou ainda, que tenha sua taxa de juros definida a partir de análises de dados do cadastro positivo. Esses são pequenos exemplos de como a participação algorítmica nas relações contratuais pode ensejar questionamentos e conclusões obscuras. No mesmo trilhar, Stefano Rodotà argumenta que:  A resposta rápida às necessidades imediatas tem realmente como efeito a igualdade substancial ou tende muito mais a congelar cada um na posição na qual se encontra, dando origem a uma discriminação bem mais forte? Se, por exemplo, se verifica que a maioria das famílias que habitam em um determinado bairro lê apenas um tipo de publicação, razões econômicas estimularão a distribuição naquela área apenas de livros e jornais correspondentes aos gostos e interesses individuados naquele momento particular. Por um lado, portanto, dá-se início a um mecanismo que pode bloquear o desenvolvimento daquela comunidade, solidificando-a no seu perfil traçado em uma situação determinada. Por outro lado, penalizam-se os poucos que não correspondem ao perfil geral, iniciando-se assim um perigoso processo de discriminação de minorias. A "categorização" de indivíduos e grupos, além disso, ameaça anular a capacidade de perceber as nuances sutis, os gostos não habituais14.  A generalização efetuada por muitos algoritmos pode enfrentar inconsistências quando se constata que muitas características não são universalmente compartilhadas por membros de determinado conjunto de pessoas. A ideia de suprimir a individualidade de um sujeito em prol de sua mera inserção em determinado grupo é, inclusive, perspectiva que enfrenta dificuldades sob o prisma kantiano da dignidade da pessoa humana. Sobre as discriminações algorítmicas, Laura Schertel e Marcela Mattiuzzo listam quatro das principais formas de discriminação que auxiliam na compreensão do cenário: por erro estatístico, por generalização, pelo uso de informações sensíveis e pela limitação do exercício de direitos15. Nesse contexto, a utilização de critérios como nacionalidade, gênero, posição política, religião, idade ou identidade sexual pode acarretar uma série de discriminações por estarem relacionadas ao íntimo da personalidade de cada indivíduo, além de acirrar estereotipização de grupos e acirrar ânimos sociais. Mas as espécies de discriminação que merecem atenção quando se estudam as consequências da utilização de algorítimos na prática negocial não se limitam aos exemplos acima apresentados, comumente relacionados a formas diretas de discriminação. É preciso aprofundar os estudos acerca das formas indiretas de discriminação, que ocorrem quando se verificam efeitos discriminatórios, vale dizer, impacto desproporcional em um grupo protegido, a partir da utilização de dados e critérios aparentemente neutros, segundo o senso comum16. No contexto contemporâneo, a inteligência artificial assume espaço em diversos ramos e possui inúmeras funções, podendo ajudar especialistas a resolver difíceis problemas, a desenvolver novas ferramentas, a aprender por meio de exemplos e representações e a criar oportunidades de mercado, participando, também, o desenvolvimento dos contratos, em quaisquer de suas fases. Essa expansão tem acarretado severos questionamentos quando se constata que a inteligência artificial não é uma tecnologia imune a falhas e que, mesmo quando ausentes vícios em seu funcionamento, sua interferência pode acarretar resultados discriminatórios para determinado indivíduo ou grupo de pessoas. É nesse panorama que exsurge a ideia de discriminação algorítmica, caracterizada quando determinado indivíduo é excluído de um grupo pelo fato de possuir determinada característica, manifestando-se, também, na situação em que alguém é julgado pelos aspectos de um grupo a que pertença, de modo que sua individualidade passa a ser desconsiderada e o sujeito é visto como um mero membro de um dado grupo. Deve-se então destacar algumas diretrizes axiológicas que podem nortear o emprego de tais aplicações tecnológicas em sede contratual: a necessidade de observância da explicabilidade, supervisão humana em todas as fases do processos realizados por máquinas, não discriminação, auditabilidade, prevenção dos danos e responsabilização. A tutela do contratante vulnerável também assume destaque, devendo a interpretação dos contratos ser efetuada com base no ordenamento jurídico de forma unitária e sistemática, não importando estarmos diante de contratação analógica ou digital.  Impõe-se, portanto, a necessidade de equalizar os interesses em questão, especialmente a livre-iniciativa com a função social dos contratos e a solidariedade social, conformando as balizas que delimitam o Estado Democrático de Direito e evitando a proliferação de danos injustos e distorções nas relações contratuais. *Marcos Ehrhardt Jr. é advogado. Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont.  **Gabriela Buarque Pereira Silva é mestranda em Direito Público pela UFAL. Advogada.  Este texto foi extraído e adaptado do artigo "Contratos e algoritmos: alocação de riscos, discriminação e necessidade de supervisão por humanos", escrito para integrar uma coletânea que tratará sobre aplicações de inteligência artificial, que ainda está em fase de elaboração, com previsão de publicação para dezembro de 2020. __________ 1 CELLA, José Renato Gaziero. DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. Lógica, inteligência artificial e comércio eletrônico. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020. 2 "The essence of AI- indeed the essence of intelligence- is the ability to make appropriate generalizations in a timely fashion based on limited data".  KAPLAN, Jerry. Artificial Intelligence: What everyone needs to know. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 5. 3 GUTIERREZ, Andriei. É possível confiar em um sistema de inteligência artificial? Práticas em torno da melhoria da sua confiança, segurança e evidências e accountability. In: FRAZÃO, Ana. MULHOLLAND, Caitlin. Inteligência artificial e Direito: Ética, Regulação e Responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 85. 4 CERKA, Paulius; GRIGIENE, Jurgita; SIRBIKYTE, Gintare. Liability for damages caused by artificial intelligence. Computer Law and Security Review. United Kingdom, v. 31, p. 380. 5 ITS Rio 2016. Big Data in the Global South Project Report on the Brazilian Case Studies. Disponível aqui. Acesso em: 3 nov. 2019. 6 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 15. 7 "Algorithmic contracts are contracts in which one or more parties use an algorithm to determine whether to be bound or how to be bound". SCHOLZ, Laura Henry. Algorithmic contracts. Stanford Technology Law Review. Vol. 20, n. 128, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2020. 8 Anote-se, neste particular, que as aplicações de inteligência artificial, na forma como descrito acima, estão sendo empregadas como instrumentos para avaliação da alocação de riscos nos contratos, v.g., projeção de cenários, aferição de contingências, entre outros aspectos. Dessa forma, geram informações que fundamentam as decisões dos contratantes, sujeitos de direito personificados (pessoas naturais ou jurídicas). 9 LAUSLAHTI, Kristian. MATTILA, Juri. SEPPALA, Timo. Smart Contracts - How will Blockchain Technology Affect Contractual Practices?" ETLA Reports. N. 68. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2020. 10 AZEREDO, João Fábio Azevedo e. Reflexos do emprego de sistemas de inteligência artificial nos contratos. 2014. 221 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil): Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 37. 11 AZEREDO, João Fábio Azevedo e. Reflexos do emprego de sistemas de inteligência artificial nos contratos. 2014. 221 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil): Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 120. 12 DIOP, Lamine. CUPE, Jean. Explainable AI: The data scientist's new challenge. Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2019. 13 MENDES, Laura Schertel. MATTIUZZO, Marcela. Discriminação Algorítmica: Conceito, Fundamento Legal e Tipologia. Revista de Direito da Univille. Porto Alegre, Volume 16, n. 90, 2019, 39-64, nov-dez 2019, p. 9.  Estamos diante do profiling, no qual se rotulam indivíduos (labeling), que passam a ser tratados como integrantes de um conjunto, de modo impessoal e massificado. 14 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 83. Quanto mais informações sobre nossos hábitos de acesso, utilização e navegação na internet são mineradas, maior a possibilidade de experimentarmos uma vida digital dentro de uma "bolha", um ambiente controlado, no qual anúncios, sugestões de filmes, livros e novas amizades são parametrizados para seus interesses, ignorando qualquer coisa que não siga determinado padrão. Isso vem provocando intensa discussão acerca do incremento, ainda que não intencional, da intolerância comportamental, sobretudo em redes sociais, pois as pessoas passam a interagir cada vez menos com pontos de vistas diferentes dos seus. 15 Sobre este tema, tratando especificamente da questão da discriminação algorítmica nos contratos de seguro, Thiago Junqueira anota que "apenas quando um tratamento desigual é baseado em critérios protegidos pelo ordenamento jurídico ocorrerá discriminação. Não obstante o catálogo aberto de signos protegidos contra a discriminação (art. 3º, inc. IV, da CF), é possível reconduzi-los a duas categorias gerais: i) características imutáveis ou alheias ao controle dos indivíduos (e.g., raça, idade, deficiência, origem, dado genético) e ii) escolhas existenciais que possuam significância social (v.g., religião e orientação sexual). Elas têm em comum a marginalização e a opressão histórica de alguns grupos substancialmente minoritários, de modo a justificarem um grau de escrutínio mais rígido para que sejam feitas generalizações - e, a partir disso, tomem-se decisões tendo-as como suporte". (Cf. JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: RT, 2020, p. 380). 16 JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: RT, 2020, p. 383-4.
Nos últimos anos, tem se propagado a crença de que existe um embate ferrenho no âmago do Direito Contratual Brasileiro, envolvendo, de um lado, os cultores do chamado direito civil-constitucional e, de outro lado, os defensores da liberdade econômica. Enquanto os primeiros seriam defensores de um pan-principiologismo voltado a desnaturar tudo que tenha sido livremente pactuado entre os contratantes, os últimos estariam imbuídos da missão de restaurar o livre mercado, blindando-o de qualquer influência jurídica, em uma espécie de retorno à versão mais drástica do laissez faire, laissez passer. E o Direito Contratual Brasileiro precisaria, assim, se decidir entre um ou outro desses caminhos. Quero crer que um dilema assim tão inglório reflita, na verdade, uma falsa encruzilhada. Como tem acontecido em tantas searas no Brasil de hoje, esse chamado embate do Direito Contratual Brasileiro me parece se verificar mais em um plano abstrato, puramente ideológico, que em uma efetiva diferença técnica ou científica na interpretação e aplicação das normas jurídicas que regem, entre nós, as relações contratuais. E isso acontece por vicissitudes que afetam ambos os polos dessa disputa. De um lado, há toda uma má-compreensão da metodologia civil-constitucional, guiada por preconceitos que a enxergam ora como a ideia de que "tudo se resume à dignidade humana", ora como uma fonte de permanente insegurança para as relações contratuais, ameaçadas por construções que se fundam em meras referências nominais a princípios e cláusulas gerais. Nesse sentido, o direito civil-constitucional no Brasil talvez tenha se tornado vítima de seu próprio sucesso: o que era, até a última década do século XX, corrente minoritária, restrita a estreitos círculos acadêmicos, tornou-se, nos últimos anos, um emblema de prestígio que muitos passaram a empregar sem o devido conhecimento técnico1. Isso gerou um número considerável de textos, artigos e decisões que, embora empregando a designação de direito civil-constitucional, propõem soluções arbitrárias ou puramente casuísticas amparadas em uma impressão pessoal de "justiça", contrariando as bases fundantes da metodologia e se aproximando mais de correntes do chamado pensamento jurídico crítico que - e, aqui, não vai nenhum juízo de valor, mas apenas o realce de uma diferença essencial - ignora ou exprime desapego pelo dado normativo. A metodologia civil-constitucional é, bem ao contrário, uma corrente positivista, pois propõe uma interpretação-aplicação (como procedimento unitário) do direito civil que somente encontra legitimidade quando amparada em normas de direito posto, ainda que considere como tais também as normas constitucionais2 - o que é, de resto, hoje uma realidade amplamente aceita entre nós também no campo do direito público (natureza normativa da Constituição, eficácia horizontal dos direitos fundamentais etc.)3. De outro lado, parece que também os chamados defensores da liberdade econômica têm padecido de mal semelhante. Há, sob aquele rótulo genérico, autores que manifestam fundada preocupação com uma aplicação demasiadamente elástica de normas jurídicas veiculadas por meios de enunciados abertos (princípios, cláusulas gerais etc.), mas há também aqueles que pretendem simplesmente promover um retorno a uma liberdade imune a todo e qualquer olhar do Estado ou do Direito, a toda e qualquer norma jurídica, uma verdadeira terra de ninguém. Trata-se não apenas de uma pretensão historicamente inusitada, mas de um erro à luz da ciência jurídica, na medida em que não se pode simplesmente ignorar a existência de normas que - seja em sede constitucional, seja em sede infraconstitucional - aludem expressamente a noções como "função social da propriedade", "função social do contrato", "boa-fé objetiva", "excessiva onerosidade" e assim por diante, voltando-se expressamente à disciplina das relações contratuais. Entenda-se bem: o saudosismo é sempre permitido, mas não se pode enxergar uma proposta séria, sob o prisma jurídico, em discursos acalorados que selecionam arbitrariamente quais normas jurídicas pretendem ver mantidas (se alguma), descartando todas as demais.  Aqui, é interessante observar como os extremos se tocam: em ambos os lados do suposto embate, há os discursos juridicamente insustentáveis, pois, ignorando os limites impostos pelas normas de direito positivo brasileiro (constitucionais ou não), acabam por confundir debates legítimos sobre metodologias de interpretação e aplicação do direito com o seu simples abandono em prol da defesa de uma ou outra ideologia. Tais discursos padecem, em ambos os lados, do mesmo vício fundamental: violam a legalidade democrática, na medida em que propõe metodologias (ou, ao menos, métodos) de interpretação e aplicação do direito que ignoram o dado normativo, preferindo substituir a norma jurídica pela ideia de justiça; cada qual pela sua própria, naturalmente. O importante, todavia, é perceber que, quando se tolhem, nos dois extremos, aqueles ramos que não podem ser levados a sério em uma discussão jurídica por não estarem apresentando uma proposta juridicamente sustentável em um Estado Democrático de Direito, como é o Estado brasileiro, o que sobra é um grupo de juristas que, conquanto possam ter ideologias políticas distintas, aparecem guiados, de um lado ou de outro, por objetivos muito semelhantes na aplicação do Direito Contratual Brasileiro. De fato, não há, no campo dos autores que valorizam seriamente os princípios constitucionais, qualquer um que simplesmente ignore o valor da liberdade individual como direito fundamental ou deixe de reconhecer, tal como a própria Constituição expressamente reconhece, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV), a livre iniciativa como princípio da ordem econômica (art. 170, caput), a garantia constitucional da propriedade privada como direito fundamental (art. 5º, XXII) e assim por diante. Do mesmo modo, não parece haver, dentre os juristas que valorizam a liberdade econômica, qualquer um que pretenda, seriamente, impedir a incidência de normas jurídicas de fonte constitucional ou infraconstitucional, tais como a boa-fé objetiva - nascida, de resto, no campo das relações entre comerciantes e insculpida, desde 1850, no antigo Código Comercial4. É evidente que algumas destas normas, por seu conteúdo aberto, podem produzir uma forte impressão de insegurança jurídica. Esse temor, embora legítimo, reage a um perigo que não é inteiramente verdadeiro ou, ao menos, não é exclusivo, na medida em que é historicamente comprovado que um ordenamento jurídico composto apenas por normas muito específicas, de caráter regulamentar, não é capaz de eliminar a insegurança, pois, diante da insuficiência de um regramento matemático (vide a incompletude das grandes codificações), acabam os magistrados, premidos por suas necessidades cotidianas de solução de casos concretos, a recorrer a fundamentações alheias ao direito positivo, enquanto cláusulas gerais e princípios, precisamente por seu conteúdo aberto, permitem que a real fundamentação do decisum seja exposta e formulada dentro do sistema jurídico, sujeitando essa mesma fundamentação, portanto, ao controle dos diferentes graus de jurisdição, bem como às garantias do contraditório e da ampla defesa. Isso não significa, obviamente, que devamos aceitar a insegurança - cujo malefício não está exatamente na falta de segurança em si, mas sim na possibilidade de grave violação à isonomia, por meio da emissão de decisões radicalmente distintas para casos semelhantes. A insegurança, todavia, se combate com o trabalho cotidiano da doutrina e da jurisprudência na identificação e construção de parâmetros mais específicos para a aplicação de normas de conteúdo aberto a gêneros semelhantes de casos concretos. E é exatamente a isso que se dedicam diuturnamente os juristas sérios, tanto os que enaltecem os princípios constitucionais quanto aqueles que enfatizam a importância da liberdade econômica. Parece, em suma, que, quando se deixa o plano puramente ideológico e, mais que isso, o plano dos rótulos e emblemas - que se tornaram, infelizmente, os principais instrumentos de debate na realidade radicalizada do Brasil e de grande parte do mundo de hoje -, o que se vê não é um real embate entre defensores da liberdade econômica e defensores da constitucionalização do direito contratual, mas, muito ao contrário, uma atuação convergente em prol do mesmo objetivo: a obtenção de uma maior previsibilidade e uniformidade na solução dos conflitos contratuais à luz das diferentes normas que compõem a ordem jurídica em seus múltiplos graus. Vale dizer: por trás da notícia sensacionalista do conflito, o que se vê, em sua essência, é uma atuação pacífica e unitária em prol de um resultado que, por ser necessário no âmbito da ciência jurídica, é não apenas óbvio, mas também comum. E a insegurança que ambos os lados se propõem a combater não é, por certo, privilégio das normas constitucionais ou das normas que tratam da boa-fé objetiva ou da função social do contrato. Vejamos um caso emblemático: a lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, considerada a conquista maior deste novo pensamento jurídico animado pela tutela da liberdade econômica e batizada como Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A referida lei introduziu, por exemplo, no Código Civil uma norma expressa determinando que a interpretação do contrato deverá lhe atribuir o sentido que "for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio" (art. 113, §1º, I). Ora, trata-se de elemento que poderia trazer enorme insegurança, na medida em que o regramento da relação contratual passa a depender não apenas do que constava do instrumento originário, mas também do modo como as partes agiram, sendo sabido que o agir é sempre mais dinâmico e incerto que as palavras estampadas em um contrato5. No mesmo dispositivo, a referida lei introduziu a noção de que a interpretação do contrato deve "corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração" (art. 113, §1º, V). Arrisco dizer que não há um elemento interpretativo do contrato mais aberto do que este em toda a legislação brasileira. O que, afinal de contas, corresponderá à "razoável negociação das partes sobre a questão discutida"? "Razoável"para quem ou em qual sentido? E o que será a "racionalidade econômica das partes"? São expressões de conteúdo extremamente aberto, tal como os princípios jurídicos. E são todas expressões introduzidas como elementos de interpretação do contrato que não coincidem com a literalidade do instrumento contratual (pois, se coincidissem, seriam inúteis). Tumultuam, nesse sentido, a interpretação contratual; não a tornam mais precisa ou matemática, embora possam torná-la mais adequada.  Exemplos assim revelam que a diferença entre os dois lados do tal embate, se existe, não se situa na questão da segurança. Há uma clara distinção de símbolos e emblemas, mas isso não deveria adentrar a discussão jurídica sobre a interpretação e aplicação do Direito Contratual Brasileiro. Infelizmente, todavia, isso, por vezes, acontece. A lei 13.874/2019 é, de novo, um exemplo, a começar pelo seu próprio nome: uma Declaração de Direitos de Liberdade Econômica revela já em seu título um propósito um pouco mais panfletário do que aquele que se deveria esperar de uma lei ordinária. O uso dos rótulos e emblemas não se interrompe, contudo, por aí, mas se reflete em normas introduzidas no Código Civil como o novo artigo 421-A, inciso III, em que se lê: "a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada". A nova norma é inteiramente inútil. A revisão contratual não é regra, nem exceção. Trata-se de um remédio aplicável diante da presença dos requisitos que o próprio Código Civil estabelece para tantos nos seus artigos 317 e 4786. Dizer que a revisão é "excepcional e limitada", sem alterar aqueles requisitos, não traz qualquer inovação no mundo do direito - como, aliás, não traria dizer que "não é excepcional", que é "ilimitada" ou que deve ocorrer "com frequência" ou "em regra". Ou se modificam os requisitos que atraem a revisão ou tudo permanece como era antes. O novo artigo 421-A, inciso III, é, portanto, um dispositivo legal de conteúdo meramente retórico, que seguramente teria sido evitada se houvesse efetiva discussão em torno da intervenção legislativa, e não o apressamento que se tornou habitual na tramitação das normas jurídicas (a própria lei 13.874/2019 é fruto de uma Medida Provisória, nada urgente ou emergencial) para consolidar posições e consagrar autorias. O mesmo problema se repete na alteração promovida ao artigo 421 do Código Civil, que, além de reiterar a excepcionalidade da revisão contratual (a lei que reitera algo normalmente vai mal), alude a um inédito "princípio da intervenção mínima"7. Quem intervém em algo é o Estado ou o próprio legislador, de modo que afirmar em lei que a intervenção será "mínima" (ou "máxima" ou "equilibrada") nada acrescenta ao nosso direito contratual; os seus remédios se apresentam quando preenchidos seus pressupostos. Assim caminha a ciência jurídica, justamente para se diferenciar da política e das ideologias de ocasião. A incorporação da política ou das ideologias ao Código Civil, travestidas de normas, é que dá ares de insegurança àquilo que deveria ser simplesmente jurídico, pois há nisso inevitável transitoriedade: o próprio retorno ao liberalismo, que vinha se ampliando até o início de 2020 no Brasil, pode sofrer a volta do pêndulo com a intervenção estatal que já está sendo exigida na economia brasileira diante da paralisia de produção e comércio causada pela pandemia de covid-19. Em suma, política à parte, não parece existir uma real dissonância no tocante ao que realmente constitui o cerne da discussão: a interpretação e aplicação do direito contratual. Podem existir, naturalmente, divergências ideológicas (por exemplo, quanto ao grau ideal de intervenção do Estado nas relações entre particulares), divergências que, além de legítimas e saudáveis, constituem o cerne do debate político há séculos, mas isso não é o mesmo que enxergar fraturas ou encruzilhadas no avanço do Direito Contratual Brasileiro. Tampouco é o caso, e com ainda menos razão, de uma nova summa divisio ou cisão, como aquela que propõem, consciente ou inconscientemente, os defensores de uma distinção ontológica ou normativa entre contratos civis e empresariais. A unificação do direito das obrigações foi uma das poucas inovações do Código Civil de 2002, exprimindo uma tendência global de eliminação de lógicas puramente setoriais em prol da unidade dos sistemas jurídicos. A construção de "guetos" jurídicos, embora possa parecer mais fácil e confortável para acomodar divergências de pensamento ou abordagem, resulta, não raro, em um aprofundamento de idiossincrasias que, a médio prazo, acaba por tornar impraticável a leitura sistemática e a reconexão de cada ramo do direito com uma ideia mínima de sistema - o que aprofunda a diferença de tratamentos e a imprevisibilidade de resultados, conduzindo à falta de isonomia que é, como já dito, aquilo que a ordem jurídica deve, mais que tudo, evitar8. Direito civil e direito empresarial não são regimes jurídicos apartados, governados por lógicas próprias. Integram-se na legalidade constitucional. No atual estado da experiência jurídica brasileira, não parece crível que alguém pretenda negar nem a força normativa da Constituição, nem a tutela que a própria Constituição reserva à livre iniciativa no campo contratual.  Significa dizer que, sob os gritos de ordem e as insígnias tremulantes, pode haver menos desacordo do que parece entre os fautores da liberdade econômica e os defensores do chamado direito civil-constitucional. Talvez pela obviedade ululante de que não há uma liberdade econômica que possa se desenvolver fora do quadro normativo constitucional, do mesmo modo que não há uma leitura constitucional do Direito Contratual Brasileiro que possa ser indiferente à tutela da liberdade econômica. O que deveríamos estar realmente discutindo não é qual caminho seguir nessa falsa encruzilhada, mas como solucionar a principal preocupação dos juristas situados em ambas as quadras: como assegurar uma aplicação do direito que seja, a um só tempo, sistemática e previsível (e, portanto, isonômica)? Como evitar arbitrariedades e casuísmos? Decisões ruins e caricaturais sempre irão existir, mas como unificar as respostas em torno da solução reservada aos diferentes conflitos contratuais? Está claro que a mera remissão à literalidade do instrumento contratual originário (em um direito contratual backward-looking) não se afigura suficiente para solucionar os problemas que afetam a relação contratual em seu atual dinamismo e que outros elementos (comportamento das partes, fim contratual, racionalidade econômica etc.) têm sido chamados a contribuir nessa missão. Como, entretanto, assegurar que essas fórmulas não sejam usadas de modo meramente retórico ou vazio? Um bom primeiro passo é unir esforços doutrinários e jurisprudenciais em torno do estabelecimento de parâmetros para a aplicação destas noções mais abertas que estão presentes no Direito Contratual Brasileiro, como estão, de resto, presentes em praticamente todos os ramos do direito contemporâneo. Mais importante que aportar novas noções ou restringir ou limitar noções já consolidadas na legislação, como muitos parecem pretender neste momento, é construir um consenso sólido - a partir da convergência entre a experiência pragmática da jurisprudência e a análise científica da academia propensa à elaboração de soluções mais prospectivas e sistêmicas - em torno do modo correto de aplicação daquelas noções, tornando tal aplicação uniforme e previsível nos seus resultados.  Em conclusão: posicionar-se a favor da constitucionalização do direito civil ou da proteção da liberdade econômica é um falso dilema. Ainda que não fosse, equivaleria a simplesmente escolher um dos lados da disputa, como numa espécie de fla x flu jurídico. Por mais entusiasmante que pareça, não há nada de efetiva atividade jurídica nisso. O verdadeiro desafio - este sim, jurídico - está em construir soluções para os conflitos contratuais que permitam uma aplicação sistemática, racional e previsível das normas que integram a ordem jurídica brasileira (sem descartar arbitrariamente qualquer uma delas) de modo a assegurar, a um só tempo, a concretização do projeto constitucional brasileiro e o desenvolvimento econômico do país. E esse é um desafio que exige soma, não divisão. *Anderson Schreiber é professor Titular de Direito Civil da UERJ. Membro Fundador do IBDCONT. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.  __________ 1 Para uma análise mais detalhada da trajetória da constitucionalização do direito civil, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Direito e Constituição, in Direito civil e constituição, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 5-24, especialmente o tópico intitulado "o que é (e o que não é) direito civil-constitucional". 2 Na lição de Pietro Perlingieri: "O princípio da legalidade constitucional é um ponto fixo, um caminho obrigatório para o intérprete que pretenda reencontrar uma uniformidade de interpretação, utilizando as potencialidades implícitas do sistema jurídico, no respeito substancial do mesmo e com um renovado positivismo que, não se identificando na simples reverência aos códigos, constitua um possível ponto de confluência metodológica". (O Direito Civil na Legalidade Constitucional, ed. brasileira org. por Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 576-577). 3 Ver, por todos, Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil), in ReRE - Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 9. 2007. 4 "Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras (...)". 5 Registre-se que também esta regra já constava do velho Código Comercial de 1850: "Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: (...) 3 - o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato". 6 Para uma análise mais detida da revisão judicial dos contratos no Brasil, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva Educação, 2020, 2ª edição, passim. 7 "Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". 8 Registre-se que, neste particular, a lei 13.874/2019 parece ter reconhecido a ausência de distinção, pois, no caput do artigo 421-A, emprega a expressão "os contratos civis e empresariais" sem fazer, ali ou nos incisos seguintes, qualquer distinção em sua disciplina jurídica: "Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (...)".
Texto de autoria de Raif Daher Hardman de Figueiredo e Arnaldo Rizzardo Filho A pandemia do Novo Coronavírus, com status mundial reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 20 de março de 2020, causou impactos econômicos estrondosos na economia mundial e brasileira. De acordo com o IBGE, o Brasil encerrou o segundo semestre de 2020 com 7,8 milhões de postos de empregos formais aniquilados e com 1,3 milhões de empresas fechadas, sendo que 40% dessas empresas foram fechadas em razão da crise econômica gerada pela pandemia do covid-19. No mês de junho de 2020, em comparação a maio do mesmo ano, houve um aumento de mais de 80% nos pedidos de recuperação judicial e 28% dos pedidos de falência. Ainda não é possível prever a totalidade dos efeitos negativos decorrentes da pandemia. A crise econômica atingiu todo mercado desde empresas locais até multinacionais com a redução generalizada da demanda. O impacto negativo é sentido com mais gravidade pelas empresas de micro e pequeno porte, seja pela menor reserva de caixa, seja pela maior dificuldade de acesso ao crédito. Desde o início da pandemia, o Estado-juiz tem sido instado a se manifestar sobre revisões contratuais, suspensão de pagamentos e redução de aluguéis comerciais, inclusive em shopping center. Naturalmente, a crise econômica não poupou redes de franquias (ou outros negócios em rede), atingindo franqueadores e franqueados. Assim como o valor dos aluguéis nos contratos de locação, os royalties e as taxas de marketing nos contratos de franquia muitas vezes necessitam ser renegociados para não haver uma "quebradeira" geral da rede. Com efeito, a renegociação tem sido o mandamento da vez para atenuar os impactos da crise. Ainda que o cenário seja desolador, há esperanças de que o pós-pandemia seja contemplado com o aumento do mercado de franquias. Isso porque parte considerável das pessoas atingidas pelo desemprego e pela dificuldade de recolocação no mercado formal de trabalho vê-se obrigada a iniciar de um negócio próprio para garantir seu sustento e de sua família. E nessa esteira, aderir a uma rede de franquias significa maior segurança de ingressar em um negócio, em tese, testado e aprovado pelo consumidor, com amparo de um franqueador com largo know-how naquele mercado. Aliado a isso, tem-se a própria força da rede de franquias e da marca. As estatísticas apontam para uma menor mortalidade de empresas franqueadas nos primeiros cinco anos de atividade em relação às empresas que atuam individualmente. A ciência da administração tem nos alertado que negócios em rede, como agências, distribuições, franquias, associações comerciais e redes atípicas (plataformas digitais, por exemplo) têm a tendência de aumentarem durante períodos de crise econômica. Os negócios em rede são soluções intermediária entre a integração vertical (sociedade) e o livre mercado. Atores econômicos formam coletividades que operam de forma coordenada e cooperada, sem relação de sociedade, e sem competirem entre si (e é por isso que seus ambientes diferem do livre mercado). No caso das redes de franquia Subway e McDonald's, são mais de 40.000 franqueados que a partir de contratos comerciais (contrato de franquia) aderem (contrato comercial "de adesão") às respectivas redes através de contratos de "gaveta". E o mesmo se dá com a plataforma Uber, por exemplo, onde mais de 1.000.000 motorista aderem à plataforma por contratos eletrônicos de "gaveta" (frise-se que recentemente o TST decisiu que a relação contratual da Uber com seus motoristas não é de emprego. Crê-se que a mesma decisão será tomada em relação à Rappi e à Loggi). Neste artigo pretendemos chamar a atenção para a necessidade de contratualização e regulamentação dos negócios em rede. E, mais, pretendemos chamar a atenção para o fato de que o momento é oportuno, pelo menos por duas razões: (i) entrada em vigor da nova lei de franquia (lei 13.966/19) em 27 de março de 2020 e (ii) o momento é de planejar o pós-pandemia e organizar a casa. Atualmente, os contratos em rede são interpretados com base no princípio da boa-fé objetiva ampliada, assim como se tem ocorrido com contratos cativos, contratos de longa duração e contratos relacionais. É bem verdade que em tais contratos a relação diuturna entre as partes é capaz de gerar deveres e obrigações entre as partes, conforme se depreende da conceituação de contratos de longa duração por Ricardo Lorenzetti em seu tratado dos contratos. O comportamento das partes é mais importante do que aquilo que está 'positivado no instrumento contratual. Não estamos questionando essa afirmação. Porém, parece-nos necessária o estabelecimento de regras estruturais para definir funções e papéis no bojo da rede, evitando conflitos entre os seus componentes. Nessa trilha, é importante situar os contratos em rede como contratos híbridos. Ficam no meio do caminho entre o mercado (livre concorrência) e a empresa (hierarquia). Nos contratos em rede, várias empresas independentes se reúnem em prol de um objetivo comum. A rede, contudo, não pode ser "descordenada". Precisa ter uma liderança, que pode ser exercida em conjunto por todos os seus membros ou isoladamente por um deles. No caso da franquia, a liderança é exercida pelo franqueador. Ainda nesse contexto, é interessante observar que as relações no livre mercado são regulamentadas por contratos, mas na falta de previsão contratual, o Código Civil ou, ainda, a lei específica para os contratos nominados, encarrega-se de regulamentar os deveres e obrigações das partes ou suprir lacunas. No caso das relações hierárquicas, embora existam os atos constitutivos da empresa, há inúmeras previsões de regulamentação estrutural da empresa tanto no Código Civil quanto na lei das sociedades por ação e na legislação esparça. O fenômeno da rede, embora seja econômico e não propriamente jurídico, carece de atenção do jurista porquanto é uma realidade crescente e potencial e efetivamente geradora de conflitos que desembocam na seara jurídica. No mundo dos fatos, vemos que as redes de franquias, e outras redes de empresas, raramente possuem uma regulamentação formal estrutural. Ou seja, raramente possuem um instrumento constitutivo com o estabelecimento de regras para convocação de reuniões ou assembleias, tomada de decisões e quórum de votação, regras sobre ingresso e retirada de membros, estabelecimento de normas, planejamento de estratégias de marketing, política de mercado internacional, divisão de responsabilidades, incorporação de novas tecnologias e regência da concorrência entre os membros da rede. Defendemos, portanto, a necessidade de organização estrutural dos negócios em rede como forma preventiva de conflitos entre seus membros. No caso do contrato de franquia, a função diretiva e coordenadora é assumida pelo franqueador, que deve ser o responsável pela sistematização, formatação e organização da rede. Dizemos que o momento é oportuno para a organização porque com a redução da carga operacional em razão do isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavirus, embora com efeitos preponderantemente negativos, pode deixar os gestores/franqueadores com mais liberdade para organizar a estrutura da sua rede e se preparar para o período pós-pandemia, inclusive com a recepção de novo franqueados. A organização da rede além de prevenir conflitos internos, facilita criação de uma governança sustentável e aberta aos interessados. Temos, ainda, a entrada em vigor da lei 13.966/19 em março deste ano, que gera a necessidade de atualização da Circular de Oferta de Franquia em razão da inclusão de novos requisitos mínimos no seu conteúdo. A própria necessidade de revisitação do instrumento de disclosure da franquia já seria um motivo para a criação de regras estruturais. Mas, tem mais. Não obstante a nova lei de franquia tenha, de fato, deixado a desejar no estabelecimento de regras para os contratos de franquia, acabou por incentivar a criação de regras estruturais, conforme se depreende, por exemplo, do art. 2º, XI, "c", que determina que a franqueadora anuncie a existência ou não de "regras de concorrência territorial entre unidades próprias e franqueadas" e do art. 2º, XX, que determina a "indicação de existência de conselho ou associação de franqueados, com as atribuições, os poderes e os mecanismos de representação perante o franqueados, e detalhamento das competência para gestão e fiscalização da apliacação dos recursos de fundos existentes". Reiteramos, portanto, que a contratualização dos negócios em rede é imprescindível para a sua manutenção saudável no mercado, salientando que o momento vivido, embora tenha aspectos preponderantemente negativos para a economia, é apropriado para se pensar na (re)estruturação das redes de empresas. Finalmente, alertamos que, no contexto de rede, contratualizar significa muito mais que no contexto das contratações lineares (compra e venda e prestação de serviço). É a partir da contratualização que se faz a devida governaça do ente coletivo (a rede), segundo os parâmetros constitucionais do nosso país. *Raif Daher Hardman de Figueiredo é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduado em Direito dos Contratos pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Associado do IBDCont. Advogado. *Arnaldo Rizzardo Filho é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Advogado, professor e autor.
Texto de autoria de Bruno Casagrande e Silva No dia 5 de agosto de 2020, a MP 925, de 18 de março de 2020 (MP 925), foi convertida na lei 14.034, de 05 de agosto de 2020 (lei 14.034). Conforme demonstraremos a seguir, trata-se de um caso em que a medida provisória que deu origem a ela era preferível ao seu resultado. Repleta de atecnia e com questionável eficácia, a nova norma afeta a sistemática dos contratos de consumo na prestação de serviços de transporte aéreo, atendendo a antigos pleitos das empresas de viação civil, que sempre bradaram que as normas do Código de Defesa do Consumidor a elas aplicadas inviabilizavam a sua atividade. A MP 925 era singela. Em um total de quatro artigos prorrogava o vencimento das contribuições devidas em razão dos contratos de concessão, estabelecia como prazo máximo de reembolso no caso de desistência da viagem o total de 12 meses, isentava os consumidores das penalidades pela desistência no caso em que optavam por créditos junto às empresas aéreas e fixava o ocaso da sua vigência em 31 de dezembro de 2020. Sem ser complexa, criava um equilíbrio entre consumidor e companhias aéreas, que receberam com alívio uma normatização para o período excepcional. Todavia, segundo o processo legislativo brasileiro, as medidas provisórias têm força imediata, mas podem ter o seu conteúdo alterado pelo Poder Legislativo durante a sua tramitação, exatamente como ocorreu neste caso. O período de discussão da medida provisória é curto, 60 dias prorrogáveis por igual período a partir da sua edição, sob pena da norma perder a sua validade. Se por um lado ela permite rápidas soluções, como efetivamente o fez naquele período de dúvidas, é bastante comum que o processo legislativo, quando atribulado pela pressa, resulte em leis cuja técnica é duvidosa. Assim, aquela medida provisória, que era composta por quatro artigos e dois parágrafos, se tornou uma lei com 13 artigos repletos de parágrafos e incisos, tratando de matérias tão diversas que sequer deveriam constar do mesmo instrumento legislativo. A lei 14.034 trata de matérias de direito do consumidor, de responsabilidade civil do transportador, de contratos de concessão e de recolhimento de taxas aeroportuárias, porém - atento à proposta desta coluna - apenas serão abordadas as matérias que atingem os contratos e os seus desdobramentos na responsabilidade civil. Afirma o artigo 1º que "Esta Lei prevê medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19 na aviação civil brasileira". Todavia, apesar de criar um marco temporal em algumas hipóteses específicas, como o faz no artigo 3º, em outros casos altera definitivamente diversos outros diplomas legais. Ao expressamente referir-se a medidas emergenciais relativas à COVID-19, a nova lei gera dúvida quanto à temporariedade dos artigos 4º ao 12. A redação nos dá impressão de que são alterações definitivas, já que atingem o conteúdo material de outras legislações, definindo novos paradigmas para elaboração e interpretação dos contratos de transportes aéreos. O artigo 3º da lei 14.034 cuida do reembolso do valor pago pelo consumidor para aquisição de passagem aérea. A MP 925 estabelecia o prazo de 12 meses para reembolso dos consumidores, isentando-os de multa em caso de optarem por manterem créditos para uso futuro nas companhias aéreas. A lei 14.034 por sua vez, alterou a redação da norma significativamente: O reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, observada a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente. (destaque nosso) (sic) Se a primeira norma atendia o consumidor que, em razão da COVID-19, desistia da viagem, a lei 14.034, de 2020 desdobrou a norma, criando uma moratória para a indenização do consumidor no caso de cancelamento do voo por ato da companhia aérea (caput), por atraso superior a 4 horas na partida ou em escala (§5º). Assim, a regra de restituição imediata do consumidor prevista no inciso II do artigo 20 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi afastada completamente. O conteúdo plasmado do caput do artigo 3º já vinha sendo aplicado por alguns magistrados ao interpretarem a MP 925, conforme noticiou o Migalhas, em 29 de abril de 20201. A norma original, que cuidava da desistência dos consumidores foi desdobrada, tendo sido retirada do caput e relegada ao §3º do mesmo artigo, combinando o caput e o §1º do artigo 3º da MP 925. §3º O consumidor que desistir de voo com data de início no período entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 poderá optar por receber reembolso, na forma e no prazo previstos no caput deste artigo, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais, ou por obter crédito de valor correspondente ao da passagem aérea, sem incidência de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste artigo. O §1º do artigo 3º obriga que as empresas de transporte aéreo concedam ao consumidor a opção entre receberem a devolução do dinheiro no prazo de 12 meses ou a aquisição de créditos, que podem ser utilizados em até 7 (sete) dias, no período de até 18 (dezoito) meses, a partir do recebimento do crédito, em favor de si próprio ou de terceiros. O mesmo direito foi estendido ao consumidor que, ao desistir do voo durante a janela legal, optar por créditos junto à companhia, isentando-o neste caso de penalidades. Aparentemente o §6º do art. 3º da lei 14.034 é uma tentativa de relativização do direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC, mas que talvez seja ineficaz. A norma consumerista assegura ao consumidor o prazo de 7 dias para arrepender-se dos serviços contratados fora do estabelecimento comercial. Nas lides cotidianas já se tornou lugar comum a defesa das companhias aéreas a alegação de que o direito de arrependimento não deveria ser aplicado aos seus contratos, mas sim o artigo 11 da Resolução 400, de 13 de dezembro de 2016, expedida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que dispõe sobre o direito de arrependimento dentro de 24 (vinte e quatro) horas ao consumidor que efetuou a compra com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data do embarque. Ainda quanto ao §6º do art. 3º da lei 14.034, a nosso ver, este não tem o condão de atingir o direito de arrependimento do artigo 49 do CDC, porque não revoga o seu elemento essencial, que é justamente a compra fora do estabelecimento. Na prática, reforça o leque protetivo do consumidor, elevando para o texto de lei o direito de arrependimento em 24 horas quando a compra é feita dentro do estabelecimento comercial, outrora assegurado por diploma infralegal e de pouco conhecimento. Nesse caso, inclusive, não se deve aplicar também a moratória de 12 (doze) meses, já que afasta a norma do §3º do mesmo artigo, que se torna perfeita com a integração com os termos impostos pelo caput. O direito ao reembolso, ao crédito, à reacomodação ou à remarcação deve ser assegurado independentemente da forma como foi adquirida a passagem, que pode ser tido comprada em dinheiro ou por meio de programas de benefícios ou fidelidade, conforme prevê o §7º. Esse dispositivo foi bastante mal elaborado. Ao mencionar os meios de compra, registra "pecúnia, crédito, pontos ou milhas", sem definir, contudo, o que seriam "pontos e milhas". Apesar de se tratar de expressões triviais, "pontos e milhas" não são termos técnicos, tendo o seu conteúdo definido por contrato entre as partes. É bastante comum que os programas de milhagem e benefícios se utilizem de nomes singulares, como estratégia de publicidade para valorizar o seu produto. Outro ponto em que o dispositivo falha é ao mencionar a modalidade de compra por "crédito", sem definir qual a extensão dessa forma de pagamento. A compra por meio de cartão de crédito é considerada como compra à vista, em pecúnia, uma vez que a empresa emissora do cartão de crédito se torna, ao mesmo tempo, credora do consumidor e devedora da companhia aérea. Os próprios programas de milhagem são uma espécie de programa de crédito, já que o consumidor é credor dos benefícios remunerados pelo programa de milhagem. Essa redação imperfeita pode levar a muitos questionamentos, inclusive - por exemplo - no que diz respeito à devolução da forma de pagamento, já que o texto não diz que a devolução deve ocorrer ou não na mesma forma que se deu o pagamento. A nosso ver, a devolução precisa ocorrer na mesma forma em que o pagamento se deu, porém é imperioso atentar que os prazos prescricionais dessas formas alternativas de pagamento devem ser reiniciados, devolvendo ao consumidor a totalidade do prazo prescricional. O §8º do art. 3º, por sua vez, tem conteúdo importante, dialogando diretamente com as regras de moratória sancionadas no caput. Na prática, antes da MP 925 e da Lei 14.034 as companhias aéreas eram obrigadas a restituir integralmente os valores pagos, ainda que houvesse parcelas sendo debitadas em cartão de crédito. Caberia a elas - já que do seu interesse - resolver a questão logística do cancelamento. Com a moratória de 12 (doze) meses em vigor, as empresas passam a poder restituir os consumidores de forma futura, em tempo superior àquele que as parcelas seriam debitadas nos cartões de crédito. Diante de tal possibilidade, o legislador determinou que a prestadora de serviços tome providências imediatas para suspender cobranças futuras. Apesar da norma não prever penalidade em caso de descumprimento, é medida a ser festejada, cabendo a responsabilização por inobservância da lei à responsabilidade civil. Finalizando as normas temporárias, a devolução das tarifas aeroportuárias ou de outros valores devidos a entes governamentais, pagos pelo consumidor diretamente ao transportador, não se submete à moratória do caput e do §3º, devendo ser realizada em até 7 (sete) dias, contados da solicitação, salvo se, por opção do consumidor, a restituição for feita mediante crédito, que será integralmente convertido em favor do consumidor nos termos do §1º. Outro ponto digno de nota é que diferentemente da MP 925, o artigo 3º da lei 14.034 faz referência expressa a "consumidor". Portanto, nos contratos em que não se aperfeiçoarem os elementos da relação de consumo, as normas temporárias do artigo 3º não serão aplicáveis, não havendo que se falar em moratória. A guisa de exemplo, imaginemos que uma empresa de turismo tenha realizado um fretamento de aeronave para levar passageiros até determinado destino. Nesse caso, o contrato entre a empresa de transporte aéreo e a empresa de turismo - que não é destinatário final - não é abarcado pelo Código de Defesa do Consumidor, devendo a restituição dos valores pagos ser imediata, salvo disposição contratual em sentido diverso. Nesse mesmo exemplo, todavia, a empresa de turismo poderia devolver os valores pagos pelos consumidores na forma prevista no caput artigo 3º da lei 14.034. O artigo 4º da lei 14.034 traz alteração que - aparentemente - não se submete a transitoriedade da situação imposta pela COVID-19, alterando definitivamente a matéria de responsabilidade civil dos prestadores de serviço de transporte aéreo, fixada pela lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA). O primeiro ponto a ser trazido a lúmen é que a responsabilidade civil dos transportadores aéreos é regulada por dois dispositivos distintos: o CBA e o CDC. Nas relações ordinárias, quando o tomador não é destinatário final, aplica-se apenas a codificação aeronáutica, porém, quando o tomador dos serviços é destinatário final, há de se aplicar o CBA em conjunto com a codificação consumerista. Nesse sentido afirma Flávio Tartuce, refletindo sobre o artigo 734 do Código Civil: Ao contrato de transporte, aplica-se o Código Civil e, havendo relação jurídica de consumo, como é comum, o código de Defesa do Consumidor (...). Desse modo, deve-se buscar um diálogo das fontes entre as duas leis no que tange a esse contrato, sobretudo o diálogo de complementaridade. Além disso, não se pode excluir aplicação de leis específicas importantes, como é o caso do Código Brasileiro de Aeronáutica (...), incidente para o transporte aéreo2. A lei 14.034 inclui um novo artigo no CBA, o artigo 251-A, com a seguinte redação: Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga. (destaque nosso) A primeiro ponto que se nota é que a norma cuida de dano extrapatrimonial, porém exige que a vítima demonstre efetivo prejuízo e a sua extensão. O primeiro problema que se apresenta é que os danos extrapatrimoniais - diferentemente dos danos patrimoniais - não tem um prejuízo matematicamente apurável. O ônus da prova do dano extrapatrimonial sempre foi do consumidor, sendo que a sua "presunção" somente ocorre em situações em que o prejuízo e a extensão são evidentes, já que fatos notórios dispensam prova. Assim, sendo a indenização do dano moral assegurada constitucionalmente, sem que haja regra para a liquidação do dano extrapatrimonial - como ocorreu com a responsabilidade trabalhista, ainda que de duvidosa constitucionalidade - o novel artigo 251-A é regra vazia. Em que pese a tese de que a norma teria sido editada para ser aplicada nas relações ordinárias, já que as pessoas físicas e jurídicas também podem sofrer danos extrapatrimoniais fora da relação de consumo, ela continua dispensável, pois essa já é a regra vigente no ordenamento jurídico. Na fixação do quantum indenizatório do dano extrapatrimonial, o magistrado deverá levar em conta a extensão do dano demonstrada pela vítima, que corresponde ao seu efetivo prejuízo imaterial, fixando um valor em dinheiro correspondente a indenizar o sofrimento da vítima. Portanto, para que houvesse alguma inovação nessa sistemática, seria preciso surgir uma tabela de liquidação de danos extrapatrimoniais, coisa que o legislador não fez. Outra alteração introduzida pela lei 14.034 foi a exclusão da responsabilidade do transportador nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, quando for impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano. Esse dispositivo é expressamente complementado pelos noveis §3º do artigo 256 e inciso I do artigo 264: §3º Constitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis: I - restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo; II - restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária; III - restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada; IV - decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias. Art. 264. (...) I - que o atraso na entrega da carga foi causado pela ocorrência de 1 (um) ou mais dos eventos previstos no § 3º do art. 256 desta Lei; A norma reproduz uma tendência que vem se construindo na jurisprudência consumerista3. Ainda que o CDC não mencione o caso fortuito e a força maior no §3º do artigo 14, que cuida de hipóteses que excluem a ilicitude do ato, não há como se negar que havendo caso fortuito ou força maior, não se exclui apenas o ato ilícito, mas o nexo de causalidade em si. Por fim, o §4º inserido no artigo 256 do CBA afirma que apesar de não se falar em dever de indenizar o dano extrapatrimonial, há o dever do transportador em oferecer assistência material ao passageiro, bem como indenizá-lo materialmente, nos termos dos artigos 230 e 231 do CBA. A lei 14.034 até propõe um caminho a ser seguido, porém apresenta equívocos e defeitos técnicos que não garantem à segurança jurídica que se espera da lei, cabendo à doutrina e a jurisprudência, novamente, fixar seus contornos e extensão precisos. *Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito Pela FADISP. Especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador do Curso de Direito da FAMUTUM. Professor em graduação e pós-graduação. Membro do IBDCont, do IBDCivil e do IBERC. Advogado e parecerista. __________ 1 Companhia aérea não deve restituir de imediato passagem cancelada durante pandemia. Migalhas, 2020. Disponível em . Acesso em 06 ago. 2020. 2 TARTUCE, Flávio. Manual de Reponsabilidade Civil. Rio de Janeiro: FORENSE; São Paulo: Método, 2018. P. 1072. 3 APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL - APLICABILIDADE CDC - ATRASO VOO - CONDIÇÕES METEOEOLÓFICAS ADVERSAS - CASO FORTUITO COMPROVADO - RECURSO DESPROVIDO. A empresa comprovou que o atraso do voo se deu em razão de condições meteorológicas adversas. Tendo em vista caso fortuito, a empresa não possuía opções a não ser aguardar que o tempo melhorasse para pouso, o que exclui a responsabilidade pelo atraso, uma vez que a segurança dos passageiros deve ser priorizada. Comprovado que a apelada cumpriu com suas obrigações e não houve erro na prestação do serviço, não há o que se falar em danos morais. (TJ-MT - AC 000334269.2015.8.11-0015. Primeira Câmara de Direito Privado. Relatora Desa. Nilza Maria Possas de Carvalho. Julg. 27.11.2018; Publ. 03.12.2018).
Texto de autoria de José Augusto Fontoura Costa e Marco Aurélio Fernandes Garcia Ganham-se tanta eficiência e tantas vantagens a ponto de ser impossível, além de indesejável, interromper o crescimento da telemedicina. Autorizada legalmente no Brasil por meio da Lei 13.989/20, a telemedicina ocupou rapidamente vários espaços e, irremediavelmente, se expandirá muito mais. A complexidade dos vínculos contratuais sobre os quais se apoiam os negócios relacionados ao setor já deixou de fazer parte do futuro para se integrar ao presente. Essas relações são o objeto desse breve artigo. Para sua discussão são necessárias duas observações preliminares. Em primeiro lugar, é preciso compreender o potencial de transformar em profundidade os modos e estruturas de prestação de serviços de saúde, dentre os quais se destacarão as consultas médicas. Além disso, deve-se discutir a inexistência de um quadro regulatório claro e seguro no Brasil atual, até em razão da autorização legal estar condicionada à continuidade da crise ocasionada pelo coronavírus (Lei 13.989/20, Art. 1o). Por fim, é importante discutir brevemente a posição jurídica dos médicos em suas relações aos provedores de telemedicina. Para avaliar possíveis cenários da transformação dos modos de oferta de serviços de saúde, deve-se partir da estrutura do sistema brasileiro. Definida como um direito social (CF, Art. 6o, caput), a saúde deve ser oferecida universal e igualitariamente pelo Estado (CF, Art. 196) por meio do SUS (CF, Art. 198) e, complementar e suplementarmente, pela iniciativa privada (CF, Art. 199). A oferta pública tende a ver a telemedicina como um instrumento para a redução de custos e, desta ótica, avaliar a aquisição e desenvolvimento de tecnologias em face dos potenciais benefícios em termos de eficiência e qualidade. A iniciativa privada, por seu turno, não apenas buscará reduzir custos, mas buscará abrir o campo de novas possibilidades de negócios. Da perspectiva pública, parece pouco provável haver mudanças sensíveis na estrutura de produção e distribuição dos serviços. Do outro lado, há potencial para transformações bastante significativas. De fato, a oferta remota, sincrônica ou não, de serviços de saúde por meio de modernas tecnologias de informação agrega uma nova função ao quadro, já complexo, das entidades que atuam no setor sanitário: o provedor de serviços de telessaúde ou provedor de telemedicina, encarregado da estruturação negocial da plataforma de acesso por parte dos tomadores e prestadores dos serviços. Em princípio essa função pode ser absorvida por algum dos atores setoriais já existentes, como hospitais ou empresas de planos e seguros de saúde. Porém, em condições de puro funcionamento do mercado, é mais provável haver o aparecimento de entidades separadas, especializadas nessa intermediação e desvinculadas da produção direta do serviço ou de seu financiamento, assim como a Uber não dispõe de automóveis ou locadoras de veículos e a Airbnb não atua no setor imobiliário. Uma plataforma de telemedicina, capaz, por exemplo, de disponibilizar consultas remotas sincrônicas, pode organizar as seguintes atividades: (i) contratação e parametramento da empresa de tecnologia para a construção e manutenção da plataforma digital; (ii) ações estratégicas para a formação direta de uma carteira de tomadores dos serviços; (iii) ações estratégicas para a formação indireta dessa carteira, inclusive envolvendo hospitais, seguradoras e associações de classe e (iv) formação da carteira de prestadores de serviços, inclusive os médicos. É possível, desde logo, identificar um amplíssimo campo para a multiplicação de questões contratuais de diversas naturezas, grande parte delas marcada por uma profunda assimetria informacional e, dependendo da escala e posição de mercado, disparidades de capacidade econômica. Esse tipo de cenário, ainda que mitigado no caso brasileiro pela existência de uma oferta universal pública, levanta diversas preocupações, dentre as quais destacam-se (i) a possível uberização do trabalho dos profissionais da saúde, inclusive médicos e (ii) a potencial absorção de margens de lucratividade de outros atores empresariais do setor pelos provedores de serviços, sobretudo se tendentes ao monopólio ou oligopólios com nichos bem definidos. No campo da teoria e prática contratuais é importante refletir sobre tais aspectos e compreender os limites e possibilidades de estruturação de relações contratuais capazes de lidar com tais questões. Na seara regulatória, as pressões são bem mais imediatas. Não cabe, em um espaço limitado e reservado a questões contratuais, o aprofundamento de questões regulatórias. Deve-se ressaltar, porém, a relação forte entre os possíveis desenhos normativos e institucionais, de um lado, e o desenvolvimento da estrutura dos negócios da telemedicina privada, do outro. Isso implica, no curto prazo, em um padrão complexo de cooperação e rivalidade entre os atores do campo da oferta privada de saúde. Essa, possivelmente, é a razão da inexistência, até o presente, de regras estáveis a respeito do tema. Em particular, a breve trajetória da Res. CFM 2.227/18 ilustra a insegurança jurídica atinente ao tema. Com efeito, essa norma vigorou por pouco mais de dois meses e deu lugar à repristinação da Res. CFM 1.643/02, expressamente determinada (Res. CFM 2.228/19). A Lei 13.989/20 tratou de dar suporte à oferta de diversos serviços por meio remoto mas, como dito, tem a eficácia condicionada à continuidade da pandemia, finda a qual se restabelece o limbo. Deixe-se clara, não obstante, a ausência de necessidade de uma lei autorizante da oferta remota de serviços médicos; a Lei 12.842/13, reguladora do exercício da medicina, tem abrangência material suficiente para alcançar as teleconsultas e outras práticas. O problema é que muitos atores não se sentem razoavelmente confortáveis para realizar investimentos significativos em um ambiente de insegurança regulatória. Por conseguinte, as contratações para estruturação de serviços de telemedicina realizadas hoje têm um horizonte de grande indeterminação. As questões regulatórias e a incerteza quanto ao comportamento do mercado não admitem previsibilidade. Isso reduz o apetite de alguns investidores. Por outro lado, a prometida lucratividade e as vantagens de chegar primeiro a um setor em que os efeitos de rede são significativos geram a percepção de que o momento é propício. Aqui, a estruturação de instrumentos contratuais adequados é fundamental. E não é possível fazer isso sem aliar a compreensão jurídica à da natureza econômica, social e regulatória do setor. Por fim, resta compreender as posições jurídicas dos telemédicos em um ambiente dominado pelos provedores. Há, aqui, duas questões centrais. Em primeiro lugar coloca-se a relação entre médico e paciente e deve-se ter em vista a possibilidade de descaracterização dos modos históricos do vínculo. Em segundo lugar, há o vínculo jurídico entre telemédico e provedor, o qual pode até mesmo tomar a forma de duas caracterizações jurídicas especiais: a de trabalhador e a de consumidor. A relação com o paciente é tradicionalmente enquadrada em uma ética médica relacionada com os modos de controle profissional, a cargo, no Brasil, do CFM e dos CRMs. Entende-se haver uma imensa vulnerabilidade dos pacientes em razão de ao menos dois fatores: (i) o desnível de conhecimento técnico e científico que impossibilita uma verificação imediata da qualidade e correção do serviço, deixando grande parte da relação ao estabelecimento de vínculos de confiança e (ii) o estado de debilidade decorrente das próprias enfermidades e das urgências delas decorrentes. Formas mediadas de oferta da medicina, das quais participam entidades coletivas como hospitais, planos de saúde ou sistemas públicos, tendem a mitigar essa assimetria. É interessante observar que o Código de Ética Médica (Res. CFM 2.217/18) inclui entre seus princípios fundamentais a indicação de que "a natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo" (Cap. I, XX). Com efeito, a tendência doutrinária e jurisprudencial brasileira vem no sentido de caracterizar o vínculo entre médico e paciente como alheio ao campo das relações de consumo, embora as entidades responsáveis pela prestação de serviços de saúde não tenham o mesmo destino (entendimento capitaneado pelo Resp 819.008, ainda em 2012, no sentido de que a relação médico-paciente é contratual e encerra obrigação de meio, salvo em casos de cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética). Nesse sentido, não é demais apontar que a responsabilidade do médico se apura mediante comprovação de culpa, por força do Art. 14, §4º CDC. Note-se que se trata de questão suficientemente profunda para repelir a tentação de um tratamento apressado. Importa destacar, porém, a tendência a uma considerável despersonalização e comoditização dos serviços dos telemédicos, inclusive nas teleconsultas. Há poucas dúvidas de que o serviço dos provedores de telemedicina mediante as plataformas de acesso deverá vir a ser considerado como submetido às regras consumeristas. A situação dos médicos é menos clara. Há, aqui, vários elementos da ética e conduta médicas que devem ser preservados para evitar a reclassificação dos serviços prestados e a eventual responsabilização consumerista solidária. Particularmente, não é razoável que o médico deva avaliar com integral liberdade a viabilidade de realizar o diagnóstico e iniciar tratamento por via remota; ocorre que tal liberdade nem sempre é facilmente aceita por um paciente que pagou pela consulta. Alguns desses ajustes deverão estar não apenas no termo de adesão à plataforma pelos pacientes, mas nos contratos dos telemédicos. Resta, ainda, discutir a ambiguidade da situação do médico em face do provedor de telemedicina. A figura do trabalhador médico já existe há muito tempo e não haveria nada de excepcional em sua aplicação à telemedicina, sobretudo na oferta pública. As situações difíceis ficam por conta da potencial uberização, ou seja, formas de prestação de serviços sem vínculo trabalhista formal, em jornadas flexíveis on demand, com o risco e os custos principais incidentes sobre o profissional e a ausência de exclusividade como indicador da inexistência de relação de dependência. Há, nesse sentido, indicadores importantes na doutrina e jurisprudência referente à equivalência entre franquia e trabalho. O tratamento dos condutores de Uber ainda está em construção na jurisprudência trabalhista, com destaque recente para decisão do TST contrária ao reconhecimento do vínculo de emprego (RR 1000123-89.2017.5.02.0038). Também nesse sentido, bons instrumentos contratuais podem reduzir a incerteza, seja pela contratação como empregado, seja por um modelo obrigacional suficientemente afastado dos elementos característicos do liame laboral. Por fim, o telemédico pode eventualmente ser caracterizado como consumidor dos serviços do provedor de telemedicina. Decerto, o profissional interessado em utilizar uma plataforma digital e o conjunto de clientes cadastrados pelo provedor, bem como se beneficiar de sua propaganda e reputação como modo de assegurar algum fluxo de pacientes, contrata serviços como destinatário final e, nesse sentido, revela-se como consumidor. Há evidentes sutilezas relacionadas à condição de consumidor intermediário, mas a verificação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica foi aceita pela jurisprudência do STJ como suficiente para configurar a aplicabilidade do CDC (Resp. 716.877, Resp. 914.384, Resp. 1.010.834 e Resp. 1.080.719 i.a.). Observa-se, portanto, que a novidade do setor e, sobretudo, seu potencial de gerar impactos significativos sobre os modelos de oferta de serviços de saúde pela iniciativa privada, com a eventual preponderância de provedores de telemedicina, levantam questões importantes e indicam um cenário de considerável incerteza. Nesse sentido, a boa estruturação dos contratos em face da compreensão dos modelos de negócio é fundamental para aqueles que pretendem desbravar esse novo campo. *José Augusto Fontoura Costa é professor da Faculdade de Direito da USP, do Mestrado Profissional em Direito Universidade CEUMA e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Doutor e livre-docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bolsista produtividade do CNPq. Membro do IBDCont. Advogado. **Marco Aurélio Fernandes Garcia é mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Luxemburgo. Atua na área de startups e novos negócios Advogado.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Planejamento patrimonial e o contrato de doação

Texto de autoria de Felipe Quintella Considerações iniciais No Brasil, o contrato de doação constitui, sem dúvida, uma das ferramentas mais utilizadas de planejamento patrimonial e sucessório. Minha atuação na área, como advogado, como professor e como pesquisador, não me deixa dúvida disso. Porém, também não tenho dúvida de que o contrato de doação ainda precisa de mais cuidados por parte da comunidade jurídica em um sentido amplo: autores, advogados, juízes e legisladores. Espero, neste breve trabalho, destacar três pontos fundamentais, que requerem atenção, fazendo uma síntese do conteúdo que estou desenvolvendo no Curso de Direito Patrimonial, o qual está em fase de elaboração. São pontos que, novamente, como advogado, como professor e como pesquisador, destacam-se quanto a aspectos teóricos e práticos. Primeiramente, é preciso lembrar que, conforme as regras estabelecidas pelo Código Civil de 2002, as doações feitas por quem posteriormente morre deixando herdeiros necessários representa sempre adiantamento de herança. Explicarei, adiante, na seção 1, o porquê da ressalva quanto a morrer deixando herdeiros necessários. Ademais, é preciso observar que, ao considerar o contrato de doação como adiantamento de herança, o Código Civil brasileiro distingue duas hipóteses: a da doação como adiantamento de legítima (art. 544), e a da doação como adiantamento de parte disponível (art. 549). Explicarei essa distinção na seção 2. Outro ponto problemático está no fato de que, como se sabe, frequentemente o Direito brasileiro se inspira no Direito estrangeiro - em geral, no Direito europeu. O legislador e a doutrina fazem isso habitualmente, e, por vezes, também os Tribunais Superiores. E, quanto à doação, essas ideias colhidas fora do Direito pátrio não foram bem costuradas pelo Código Civil. Temos um sistema misto, e truncado. Explicarei esse ponto na seção 3. Antes de examinarmos os três pontos, no entanto, é necessária uma ressalva: este trabalho contém reflexões teóricas com preocupação prática, para contribuir para o desenvolvimento da cultura do planejamento patrimonial no nosso país. Logo, as reflexões são todas de lege lata, ou seja, sobre o Direito que temos em vigor, e não de lege ferenda, sobre como gostaríamos de que o Direito fosse. 1 Por que a existência de herdeiros necessários ao tempo da abertura da sucessão é que determina o caráter de adiantamento de herança da doação? Como explicarei melhor na seção 2, são os arts. 544 e 549 do Código Civil os dispositivos legais que atribuem à doação o caráter de adiantamento de herança. Porém, como afirmei nas considerações iniciais, somente serão consideradas adiantamento de herança as doações feitas por doador que falecer deixando herdeiros necessários, ainda que tal esclarecimento não esteja expresso na lei. Por quê? O Direito brasileiro, diversamente do que ocorre em alguns outros países, distingue as doações - contratos -, dos legados - disposições testamentárias. E, por isso, somente se preocupa com efeitos sucessórios da doação para proteger a legítima dos herdeiros necessários. A legítima, conforme se depreende dos arts. 1.789 e 1.846 do Código Civil, constitui a parcela da herança - hoje, 50% - que a lei atribui aos chamados herdeiros necessários ou legitimários (ou, ainda, reservatários). Por esse motivo, não pode ser objeto de testamento, cabendo ao testador a liberdade de testar apenas quanto à outra metade da herança, denominada parte disponível. Os herdeiros necessários, atualmente, segundo o art. 1.845, são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, sendo, ainda, controvertida a situação do companheiro, vez que o STF, ao equiparar a sucessão do cônjuge à do companheiro, não tratou expressamente do assunto1. Ocorre que, para proteger a sucessão dos herdeiros necessários, evitando a denominada fraude à legítima, o Código Civil houve por bem atribuir efeitos sucessórios à doação. Isso para impedir que aquele que gostaria de beneficiar mais um filho que outro, por exemplo, e que não se conforma com a limitação à liberdade de testar nos limites da parte disponível, fizesse em vida doações para beneficiar o predileto, em detrimento do outro. Ainda que a herança somente surja com a morte e que, consequentemente, só se possa falar em legítima e em parte disponível após a abertura da sucessão, a lei brasileira projeta efeitos sucessórios antecipados à doação. Mas, como a ideia é proteger a legítima, e esta só surge efetivamente quando o autor da herança falece deixando herdeiros necessários, somente nessa hipótese é que serão confirmados os efeitos sucessórios projetados antecipadamente à doação. Não se pode esquecer, porém, que a maior parte dos brasileiros morre deixando herdeiros necessários. 2 Como se distinguem o adiantamento de legítima e o adiantamento de parte disponível? Conforme o art. 544 do Código Civil, consideram-se adiantamento de legítima as doações de ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro. Vale destacar, mais uma vez, que ainda não está resolvida a situação do companheiro; se este vier a ser considerado herdeiro necessário por alteração legislativa, ou por decisão do STF, também as doações de um companheiro a outro terão que ser consideradas adiantamento de legítima. As doações consideradas adiantamento de legítima, conforme o art. 2.002, devem ser conferidas no inventário do doador. É o que se denomina colação. Para que não haja dúvida, o art. 2.003 esclarece que a finalidade da colação é justamente igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente. Em tempo: apesar de o art. 544 não fazer tal ressalva, somente se consideram adiantamento de legítima as doações feitas aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio. A própria lógica do sistema embasa tal conclusão: não são consideradas adiantamento de legítima as doações feitas a descendentes que não sejam chamados à sucessão, ou que sejam chamados por direito de representação, ou de transmissão, porque tais descendentes não têm direito à legítima! Quando herdam por representação ou transmissão, herdam a legítima do herdeiro que representam, ou que lhes transmitiu, e, por isso, devem colacionar as doações recebidas pelo representado, ou pelo transmitente. A parte inicial do art. 2.002, ao impor a obrigação de colacionar aos "descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum", bem como a regra do art. 2.009, no sentido de que os netos, sendo chamados à sucessão por direito de representação, somente estão obrigados à colação das doações recebidas pelo representado, confirmam a conclusão. O art. 549, por sua vez, estabelece a nulidade das doações que ultrapassarem a metade disponível do doador, no momento da doação. Embora essa linguagem não seja frequentemente utilizada - ainda -, tais doações são consideradas adiantamento de parte disponível. Tal conclusão é inquestionável ao se verificar que o critério para examinar a validade total, ou a invalidade parcial da doação, é justamente o do montante de que o doador poderia, naquele momento, dispor em testamento. Ademais, conforme o art. 2.005, pode o doador, no instrumento da doação, ou em testamento, dispensar os donatários que receberam adiantamento de herança da respectiva conferência no inventário - da colação. Nos próprios termos do art. 2.005, a ideia seria a de que tais doações sairiam da parte disponível do doador. Ou seja, trata-se, também nessa hipótese, de adiantamento de parte disponível, e não de legítima. Em resumo, pois, são consideradas adiantamento de legítima as doações de ascendente aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio, bem como aos descendentes representados ou transmitentes, ou de um cônjuge a outro, sem dispensa de colação; são consideradas adiantamento de parte disponível, por sua vez, as doações a quem não seja cônjuge ou descendente chamado à sucessão por direito próprio, ou que não seja representado ou transmita o direito à sucessão aberta, bem com as feitas aos que sejam, mas que tenham sido dispensadas da colação. O fato de representarem adiantamento de legítima, por si só, jamais interfere na validade de tais doações. Sua eficácia é que poderá ser impactada. Em outras palavras, as doações com adiantamento de legítima sujeitam-se à conferência no inventário do doador - à colação -, o que se dá no plano da eficácia, e não no plano da validade. Já as doações com adiantamento de parte disponível sujeitam-se a exame na plano da validade, vez que a lei estabelece a nulidade do excesso, o qual, posteriormente, será resolvido no plano da eficácia, por meio da redução. E, como o critério para se apurar o excesso é o da parte disponível calculada ao tempo da doação, a discussão, normalmente, requer dilação probatória, razão pela qual, em geral, não é admitida no bojo do inventário, demandando ação própria. 3 Quais os desafios do Código Civil brasileiro quanto à disciplina da doação como adiantamento de herança? O primeiro desafio, que já vem do Código Civil de 1916, consiste nos diferentes critérios estabelecidos para o exame das doações que configuram adiantamento de legítima e das doações que configuram adiantamento de parte disponível. Conforme o art. 2.002, a conferência das doações consideradas adiantamento de legítima - a colação - é feita no inventário, após, pois, a morte do doador. Dentro deste tema específico, um outro desafio consiste nos modos de se proceder à colação, vez que o Código de Processo Civil de 2015 derrogou tacitamente regras do Código Civil de 2002, repristinando regras do Código de Processo Civil de 1973: o Código de 2002 mandava fazer a colação por estimação, e pelo valor da época da doação (arts. 2.002 e 2.004); os Códigos de Processo de 1973 e de 2015 mandam fazer a colação em substância, se o donatário ainda tiver o bem doado ao tempo da morte do doador, e por estimação, pelo valor da época da abertura da sucessão, se o donatário não mais tiver o bem doado (arts. 1.014, caput e parágrafo único, e 639, caput e parágrafo único, respectivamente). O assunto é bastante complexo, e ainda não tão bem explorado quanto precisa ser. Quanto às doações que implicam adiantamento de parte disponível, por sua vez, o Código não esclarece - como fazem os de outros países - em que momento se poderia discutir o eventual excesso na doação - a denominada doação inoficiosa, que, na verdade, constitui apenas uma parte da doação, correspondente ao excesso. Há quem entenda que a discussão pode ser feita desde a doação, e há quem entenda que a discussão só faz sentido depois de aberta a sucessão. Doutrina e jurisprudência se dividem quanto ao tema. Além disso, independentemente de quando se suscita a discussão, o art. 549 estabelece como parâmetro para verificar se houve ou não excesso na doação o patrimônio do doador ao tempo da doação: a doação integralmente válida não pode exceder a metade de que, naquele momento, o doador poderia dispor em testamento. Isso quer dizer que a conferência do adiantamento de parte disponível não é feita com base na verdadeira parte disponível, aquela que é calculada após a liquidação da herança, depois de aberta a sucessão. Por si só, esse fato já torna o tema intrincado. O Código Civil francês, por exemplo, usa como critério, diversamente, a verdadeira parte disponível (art. 913). Mas, para piorar, o Código de 2002, inspirado, sobretudo, pelo Códigos Civis francês e português, estabeleceu, no art. 2.007, regras sobre como se deve realizar a redução do excesso da doação inoficiosa. O Código de 1916 não o fazia. E ocorre que nem o Código francês, nem o Código português, consideram inoficiosa a doação que ultrapassa a parte disponível calculada ao tempo da liberalidade, como faz o Código brasileiro. Na pesquisa jurisprudencial que estou realizando para o Curso de Planejamento Patrimonial, ainda não encontrei julgados discutindo as regras - provavelmente, por serem novas, e complexas. Por exemplo - para não estender demais este trabalho, que tem que ser breve -, veja-se que o § 2º do art. 2.007 manda fazer a redução "em espécie" - querendo dizer, na verdade, em substância -, e por aplicação das regras sobre a redução das disposições testamentárias, as quais sabemos que se encontram nos arts. 1.967 e 1.968. Por mais que a aula sobre redução do excesso nas disposições testamentárias seja uma das que mais gosto de dar, todo semestre, na disciplina do Direito das Sucessões, reconheço que o assunto é complexo, e muitas vezes até pouco explorado em obras sobre Sucessões, que dirá em obras sobre Contratos. Por fim, veja-se que o § 4º do art. 2.007 trata de redução das doações por ordem cronológica, como manda a parte final do art. 923 do Código Civil francês, esquecendo-se, todavia, de que o critério brasileiro considera cada doação separadamente, e a parte disponível calculada no momento da liberalidade, e não a soma das doações, e a verdadeira parte disponível, calculada após a abertura da sucessão, como o Código francês. A meu ver, não há como aplicar, no Direito brasileiro, a regra do art. 2.007, § 4º, do nosso próprio Código Civil! Foi mal importada pelo Código de 2002, e não se encaixa no sistema que o nosso Código estabeleceu desde o de 1916, e que o de 2002 não ajustou. Considerações finais O texto já está extenso demais. Como eu disse nas considerações iniciais, a ideia foi a de levantar a discussão de três pontos fundamentais referentes ao planejamento patrimonial das doações, apresentando um brevíssimo resumo do conteúdo que estou desenvolvendo para o Curso de Planejamento Patrimonial. Estou bem certo de que o IBDCONT constitui o espaço ideal para os debates sobre os temas aqui suscitados, para o desenvolvimento de soluções, e para a necessária difusão e para o imprescindível fortalecimento da cultura de planejamento patrimonial no Brasil, como uma das saídas para reduzir a litigiosidade e aumentar a segurança. *Felipe Quintella é doutor, mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Professor da Faculdade de Direito Milton Campos e do Ibmec. Autor do Curso de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Membro do IBDCONT, do IBDCivil, do IBDFAM e do IBERC. Advogado na área de planejamento patrimonial. Instagram @prof.felipequintella. __________ 1 Eu, particularmente, entendo que nem o cônjuge, nem o companheiro precisariam ser herdeiros necessários, mas, examinando os fundamentos determinantes lançados nos votos dos Ministros do STF que votaram pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, chego à conclusão de que o companheiro também se equiparou ao cônjuge quanto à condição de herdeiro necessário.
segunda-feira, 27 de julho de 2020

A pandemia covid-19 e o fortuito interno humano

Texto de autoria de João Hora Neto "A vida não é boa nem má, apenas arbitrária..."Joseph Brodsky Introdução Induvidosamente, a discussão acerca da pandemia Covid-19 é de ingente importância, à vista dos seus reflexos no mundo jurídico; afinal, múltiplas e variadas relações contratuais são atingidas, causando insegurança e frustração aos contratantes. Re vera, não se sabe ao certo qual o instituto jurídico que caracteriza o fenômeno pandêmico e, a partir disso, qual o instrumental jurídico aplicável ao conflito contratual, ou seja, se é caso de revisão ou de resolução (extinção). Este breve estudo argumenta que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, classificando-a como um fortuito interno humano, por decorrer da atividade humana ao longo da história, bem como aponta que os riscos pandêmicos devem ser arcados pelo contratante mais forte, com base na Teoria do Risco. Também vaticina que, na sociedade pós-moderna do século XXI (massificada, plural, complexa), uma nova realidade contratual se impõe, representada pelos contratos empresariais e existenciais, a exigir soluções jurídicas distintas, inclusive por força da Lei da Liberdade Econômica em consonância com os princípios sociais do contrato. O estudo discute, enfim, se a revisão deve ser a regra ou a exceção a ser adotada ou, até mesmo, se a revisão é a única solução possível. 1. A miséria do coronavírus, a responsabilidade civil e o fortuito interno Em sede de responsabilidade civil, há dois pressupostos inafastáveis - nexo e dano - posto que a culpa é atinente apenas à responsabilidade civil aquiliana (subjetiva), mas não ocorrente na responsabilidade objetiva. O nexo causal é uma relação de causa e efeito, ou seja, é um elo naturalístico entre a conduta e o resultado, significando um vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo concluir se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do dano. Contudo, não se trata apenas de uma compreensão naturalística (leis físicas) entre causa e efeito, haja vista que, além da identificação do elo naturalístico, faz-se imperioso a presença do liame jurídico, com base em juízo de probabilidade, uma vez que nem toda condição é causa do evento. No Brasil, há algumas teorias acerca do nexo causal, sendo a teoria da causalidade adequada a mais aceita, consoante art.403 Código Civil. De forma unânime, informa a doutrina que o nexo causal é um pressuposto indelével da responsabilidade civil em geral, quer seja subjetiva ou objetiva, contratual ou extracontratual, apenas mitigado em situações especialíssimas, como é a hipótese da responsabilidade fundada no risco integral. Também há situações em que o nexo causal é rompido, afastando o dever de indenizar, como, por exemplo, nas hipóteses da culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior. Em relação ao caso fortuito e a força maior, a despeito de persistir confusão na doutrina acerca da sua distinção, é patente e meridiano atestar-se que são causas exonerativas da responsabilização civil (civil ou consumerista), com base na regra do art. 393 § único do Código Civil, não obstante sem previsão no Código do Consumidor. Grosso modo, entende-se por caso fortuito os acontecimentos advindos da ação humana (greve, conflito armado), enquanto a força maior decorre dos acontecimentos da Natureza (act of God) (furações, tempestades, maremotos etc.). A partir de tal compreensão e à luz da melhor doutrina (CAVALIERI FILHO, Sergio, 2018), o caso fortuito decorre de um evento imprevisível e inevitável, enquanto a força maior deriva de um acontecimento previsível, porém inevitável, concluindo-se assim que a imprevisibilidade é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto que a inevitabilidade o é da força maior. Demais disso, anote-se que o caso fortuito tem duas variantes doutrinárias, ou seja -- fortuito externo e fortuito interno -- sendo que a primeira implica no rompimento do nexo causal, mas a segunda não (fortuito interno), pois constitui risco ligado à atividade do sujeito responsável, sendo conexo ao desempenho do seu empreendimento. Em essência, enquanto o fortuito externo afasta o dever de indenizar, pois o dano não guarda relação com a atividade desenvolvida pelo ofensor, o fortuito interno gera o dever de indenizar, uma vez que o dano causado tem relação com a organização da empresa, isto é, com a atividade desenvolvida pelo fornecedor, cuja atividade se torna impossível exercer sem abarcar esses riscos. Conclui-se, pois, que o fortuito interno não exclui a responsabilidade civil, mormente porque, apesar de inevitável a ocorrência do risco, as suas consequências são evitáveis, pelo menos em larga escala, com base no estado da técnica (avanço técnico/científico) a cargo do detentor do monopólio da atividade. 2. A pandemia Covid-19 e o fortuito interno humano O Direito existe para resolver o conflito humano, sendo um produto cultural da humanidade e não uma abstração celestial, como assim conclui o genial sergipano Tobias Barreto: "O Direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana". A miséria pandêmica é uma realidade inconteste, a exigir uma solução jurídica iluminada pela legalidade civil-constitucional. O novo coronavírus - esse inimigo oculto - tem a natureza jurídica de um fortuito interno que diz respeito à Humanidade em geral, ou seja, à própria sobrevivência do ser humano. Nesta pesquisa, sustenta-se que a milenar existência humana no planeta gerou a Covid-19, o que significa dizer que a pandemia é um efeito e não uma causa. Ao estudo não interessa a discussão se o coronavírus tem origem em morcegos chineses contaminados (o que seria a hipótese de força maior) e muito menos que é produto da mente sórdida e demoníaca de algum cientista, que, por iniciativa própria ou a mando político-ideológico, criou o vírus mortal (o que seria a hipótese de caso fortuito externo). Viver é arriscar-se! E foi o risco da ação humana no planeta Terra, permeada de conflitos de variados matizes, quem gerou o novo coronavírus - o fortuito interno humano - que é inerente à vida humana em si, e que, ipso facto, faz persistir o dever de indenizar, uma vez que a pandemia não é causa excludente de responsabilidade civil. 3. A classificação moderna do contrato Impõe-se, hodiernamente, uma renovada mentalidade civil constitucional, voltada para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação entre particulares (MORAES, Maria Celina Bodin de, 2016), com a observância, por exemplo, de que o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) pode ser relativizado, uma vez que o contrato (obrigação) deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança (COUTO E SILVA, Clóvis V.do, 2018), também voltado para a materialização do programa constitucional. No mundo atual há três contratos bem distintos - civilístico, empresarial e de consumo - cuja natureza jurídica implica na adoção de um direito civil geral ou comum (contrato civil) ou de dois direitos especiais (o direito empresarial e o direito do consumidor), todos eles, contudo, operacionalizados à luz da teoria do 'diálogo das fontes'. A moderna classificação aponta a existência de outras espécies contratuais, largamente entrelaçadas entre si, à vista da superação da dicotomia direito público/direito privado, além da múltipla e variada gama de relações jurídicas insertas na sociedade contemporânea. 4. O contrato empresarial e o contrato existencial Ainda que reconheça a serventia da classificação clássica dos contratos dominante no século XX, mormente a distinção entre contrato paritário e de adesão, sugere Antonio Junqueira de Azevedo (2010) a adoção de uma nova classificação contratual para o século XXI, com a distinção entre contrato empresarial e contrato existencial. À luz da dicotomia proposta, entende-se por contrato empresarial aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial "ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade" (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Já o contrato existencial é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010). Como contrato empresarial, exemplifica-se todos os contratos que tenham por fim precípuo a obtenção do lucro, isto é, os contratos de franquia, de agência, de distribuição, de locação comercial, de consórcio interempresarial, de engineering, de compra de matéria prima, de fornecimento, de transporte, contratos bancários, dentre outros. Já o contrato existencial exemplifica-se como todo contrato de consumo em que o consumidor é o destinatário final ou não vise a obtenção de lucro, à luz da Teoria Finalista, além do contrato de trabalho, o de aquisição da casa própria, o de locação da casa própria, o de conta corrente bancária, dentre outros, figurando como seu objeto característico bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o património mínimo existencial do ser humano (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros) (GALVANO, Renato Rodrigues Costa, 2019). Na doutrina, aponta-se um critério bastante diferenciador entre ambos, isto é, a intenção ou não de lucro, assim resumido: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018). Um outro critério deveras diferenciador diz respeito a maior ou menor interferência judicial, haja vista que no contrato empresarial a intervenção judicial deve ocorrer de forma mais branda, em respeito ao pactuado pelas partes (pacta sunt servanda), não sendo possível a revisão judicial como regra, mas apenas em caráter excepcional, conforme art. 421 § único do Código Civil, alterado pela Lei da Liberdade Econômica. Já no contrato existencial, por interpretação inversa, a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em homenagem aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante não pode ser visto como um mero interesse 'descartável'. Demais disso, a boa fé objetiva deve incidir com graduação variável, posto que nos contratos empresariais pode haver uma maior dispositividade dos deveres anexos de conduta, com menor incidência da boa fé objetiva em respeito ao pact sunt servanda; já nos contratos existenciais, pode haver uma menor dispositividade dos deveres anexos e uma maior incidência da boa fé objetiva. 5 A Covid-19 e os contratos empresariais e existenciais Como dito, a pandemia não faz romper o nexo causal. Baseado na Teoria do Risco, entende-se que a parte mais forte da relação contratual é quem deve assumir os riscos, indenizando os danos decorrentes, por ser a detentora do monopólio privado do serviço ou do produto, quer seja por desenvolver uma atividade ou uma profissão que não aufira proveito econômico (risco criado), quer seja por desenvolver uma atividade que tire proveito econômico ou lucro (risco proveito). Tal compreensão também se funda no brocardo que diz, onde está o ganho, aí reside o encargo (ubi emolumentum, ibi onus), ou, ainda, quem aufere o bônus suporta o prejuízo, de sorte que a mesma solução é extensível às duas outras modalidades de risco (risco profissional e risco integral). O estudo não adota uma solução única e generalizante, como se uma panaceia aplicável a todo e qualquer contrato, indistintamente, até porque há uma gama infinda de espécies contratuais, típicas e atípicas, o que dificultaria em muito uma solução planificada e universal. Para a solução do caso concreto, também sob a égide da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), entende-se que o primeiro passo adotável é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio - se empresarial ou existencial - posto que, a partir disso, advirão soluções jurídicas diversas. Nos contratos empresariais a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda). Portanto, nos contratos empresariais, doravante classificados como contratos paritários (art. 421-A CC), a regra é a prevalência da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda), de sorte que a intervenção judicial, em caso de desequilíbrio econômico do contrato, deve ocorrer com esteio na Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º, V), aplicável em sede de 'diálogo das fontes'. Malgrado isso, entende-se que a interferência judicial deve preferir a revisão à resolução, a fim de salvar o contrato, em homenagem ao princípio da conservação dos contratos (Enunciado n. 22 da I Jornada de Direito Civil), pertinente à função social dos contratos, sob sua eficácia interna. Já nos contratos existenciais, por interpretação inversa ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), alterado pela Lei da Liberdade Econômica, que disciplinou os contratos empresariais -- entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional. Ademais, considerando que o contrato existencial é eminentemente de consumo, impõe-se a aplicação genuína da Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível, à luz do princípio da conservação do contrato, haja vista que o direito à revisão é uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), desde quando a onerosidade excessiva seja superveniente à formação do contrato. Em suma: em sede de contratos existenciais, a revisão contratual deve ser a única hipótese permitida, por interpretação contrária ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a intervenção mínima prevista na Lei da Liberdade Econômica, bem como a excepcionalidade da revisão contratual, somente é aplicável aos contratos empresariais, profissionais ou de lucro. Considerações finais Na compreensão de que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, uma vez que repercute no universo dos contratos, o estudo a classificou como um fortuito interno humano, posto que advindo da atividade humana ao longo da história, não implicando em rompimento do nexo causal. Argumentou-se que a pandemia é um efeito e não uma causa, bem como observou-se que a responsabilização civil dela derivada deve ficar a cargo do contratante economicamente mais forte, em razão da atividade por ele desenvolvida, à luz da Teoria do Risco. O estudo não acolheu o entendimento generalizante e uniforme aplicável a todos os contratos, sem distinção, no sentido da revisão ou extinção. Preferiu-se pautar na dicotomia moderna do contrato - contrato empresarial e contrato existencial - uma vez que melhor abarcaria uma gama infinda de tipos contratuais atinentes a um grupo ou outro, tornando assim a solução jurídica mais prática e efetiva. Por derradeiro, a pesquisa concluiu que, nos contratos empresariais, a intervenção estatal deve ser mínima, em respeito ao pacta sunt servanda, sendo apenas excepcional a revisão ou resolução do contrato e que, ainda assim, deve-se priorizar a revisão, com base no 'diálogo das fontes', para salvar ou conservar o contrato. Diferentemente, nos contratos existenciais, a intervenção dever ser máxima, por interpretação inversa da Lei de Liberdade Econômica, para fins de efetivar os princípios sociais do contato em prol do contratante vulnerável, sendo a revisão a única hipótese possível. ___________ AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185. ___________________________. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 186. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como processo. São Paulo: editora FGV, 2018, p. 20-21. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 99. EROLES, Pedro. Boa Fé Objetiva nos Contratos. Especificação Normativa, Cogência e Dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125. FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais. Teoria Geral e Aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. GALVANO, Renato Rodrigues Costa. A Boa Fé Objetiva no Âmbito dos Contratos Relacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 111. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana. Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 14. ____________ *João Hora Neto é doutorando em Direito pela UFBA; professor adjunto de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe; juiz de Direito do Estado de SE. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).
Texto de autoria de Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Hercules Alexandre da Costa Benício O texto explica o que é assinatura eletrônica e demonstra, com exemplos práticos, como o cidadão pode utilizá-la para assinar contratos e outros atos jurídicos, além de propor interpretações e sugestões à doutrina, à jurisprudência e à legislação diante da necessidade de o Direito se adaptar à Era da comunicações remotas (capítulo 1).   De um modo simplificado, pode-se dizer que, ao longo da História, para a certificação de autoria de documentos, evolui-se do uso dos sinetes sobre cera derretida até a assinatura eletrônica, passando pela assinatura de próprio punho. Deixa-se de abordar outras formas de certificação ao longo da história pelos limites deste artigo (capítulo 2).   O "certificado digital" é a identidade virtual de uma pessoa e fica armazenada em algum dispositivo (token, celular, nuvens etc.); é, metaforicamente, o anel-sinete. Após ter o "certificado digital", a pessoa pode assinar eletronicamente qualquer documento conectado o dispositivo que contém o seu certificado digital ao computador e digitando a sua senha pessoal (o seu PIN). Metaforicamente, assinar eletronicamente é pressionar o "anel-sinete" sobre a cera derretida para deixar a sua marca. (capítulo 3).   As assinaturas eletrônicas podem ser classificadas:   a) quanto à tipicidade, em: a.1) típicas: as disciplinadas em lei ou ato infralegal, no que se incluem as assinaturas eletrônicas no âmbito do e-Notariado e do ICP-Brasil; e a.2) atípicas: as decorrentes de pacto entre as partes.   b) quanto ao nível de segurança, em: b.1) simples: aquela que "permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário" (art. 2º, I, MP nº 983/2020); b.2) avançada: aquela que "está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável" (art. 2º, I, MP nº 983/2020), no que se inclui a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado; e b.3) qualificada: aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil).   Assinatura eletrônica no âmbito do e-notariado (capítulos 3.1. e 4) No âmbito dos Cartórios de Notas, qualquer cidadão pode gratuitamente obter um "certificado digital notarizado" emitido no seio da plataforma "e-Notariado", comparecendo pessoalmente a uma serventia para sua identificação pessoal. O fundamento é o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ. Com esse "certificado digital notarizado", o cidadão poderá assinar eletronicamente qualquer ato notarial, como escrituras públicas de compra e venda, de procuração etc. O certificado digital notarizado não pode, ainda, ser utilizado para assinar eletronicamente atos fora dos Cartórios, mas entendemos que convém seja espraiado o seu uso para além dos cartórios, caso em que a assinatura eletrônica aí valeria como um reconhecimento de firma.   Assinatura eletrônica no âmbito do ICP-Brasil (capítulo 3.2.) A assinatura eletrônica decorrente de certificados emitidos no âmbito do ICP-Brasil é eficaz para qualquer ato jurídico por força do art. 10 da MP 2.200-2/2001. Os referidos certificados podem, pois, ser utilizados tanto em Cartórios de Notas (em concomitância com a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado) quanto fora. Para obter um certificado digital no seio do ICP-Brasil, a pessoa deve comparecer pessoalmente perante uma pessoa jurídica incumbida da função de "Autoridade Registradora" (AR), a qual fará os cadastros necessários e, se for o caso, entregará o dispositivo (como um token, um cartão etc.) no qual ficará o certificado digital. A IN ITI nº 02/2020 e a Medida Provisória 951/2020) autorizam que esse registro seja feito de forma não presencial, o que poderá ameaçar a viabilidade financeira das empresas que lidam como AR. O ITI, que é uma autarquia, é a Autoridade Certificada Raiz (AC Raiz). Ele é incumbido de executar as diretrizes dadas pelo "Comitê-Gestor da ICP-Brasil", órgão público colegiado vinculado à Casa Civil da Presidência da República. Ele também coordena e fiscaliza as Autoridades Certificadoras (ACs). O ITI não pode emitir certificado digital diretamente ao usuário final. 6.4. A emissão do certificado digital ao usuário final é feita por uma Autoridade Certificadora (AC) após o cadastro feito pela respectiva Autoridade de Registro (AR). Podemos citar, a título de exemplo, várias pessoas jurídicas incumbidas da condição de AC no âmbito do ICP-Brasil, como a Serpro, a Certisign, a Caixa etc.   Assinatura eletrônica fora dos cartórios e do ICP-Brasil (capítulo 3.3.) Vige, no ordenamento jurídico brasileiro, a atipicidade das assinaturas eletrônicas: as partes podem, por acordo, estipular outras formas de assinatura eletrônica (art. 10, § 2º, da MP nº 2.200-2/2001). A título de exemplo de assinaturas eletrônicas atípicas - aquelas decorrentes de acordo entre as partes -, citam-se as praticadas por bancos e corretoras de valores mobiliários com seus clientes, as fornecidas por empresas de assinatura eletrônica e, inclusive, as baseadas em mensagens por e-mail ou por WhatsApp na forma do previsto em contrato.   Proposições para doutrina, jurisprudência e legislação (capítulo 4) O conceito de "documentos assinados" previsto o art. 219 do CC alcança documentos físicos e eletrônicos bem como assinaturas físicas ou eletrônicas. Instrumento público eletrônico são escrituras públicas eletrônicas. Documentos públicos eletrônicos são aqueles produzidos e despapelizados por agentes público com sua assinatura eletrônica, a exemplo de certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos e dos próprios atos notariais eletrônicos. Quando a legislação exige manifestação de vontade presencial, deve-se se entender que aí está abrangida também a manifestação de vontade por canal de comunicação remota e instantânea, tudo conforme o que Mário Luiz Delgado batiza de princípio da presença virtual. O certificado digital notarizado (aquele emitido no âmbito do e-Notariado) deve ser espraiado para valer como assinatura eletrônica para atos praticados fora dos Cartórios de Notas, como em instrumentos particulares (cfr. Provimento nº 103/2020 - CN/CNJ) ou, até mesmo, em petições dirigidas a processos judiciais. O legislador deve adaptar a legislação para afastar dúvidas interpretativas acerca do valor jurídico dos documentos eletrônicos. Clique aqui e confira o artigo na íntegra. *Carlos E. Elias de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, advogado/parecerista, ex-advogado da União, ex-assessor de ministro STJ e professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral. **Hercules Alexandre da Costa Benício é tabelião e oficial de Registro do 1º Ofício de Notas, Registro Civil, Protesto, Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Doutor e mestre em Direito e Estado pela UnB. Ex-procurador da Fazenda Nacional. Professor de Direito Civil e Direito Notarial e Registral.
Texto de autoria de Angélica L. Carlini A pandemia da COVID-19 que afeta intensamente o Brasil tem provocado inúmeras reflexões no âmbito dos contratos e, muito em especial dos contratos de seguro. Nosso objetivo neste trabalho é refletir sobre a cobertura de lucros cessantes nos contratos de seguro e a possibilidade de pagamento de indenização aos segurados em decorrência da paralisação de suas atividades por ordem dos governos estaduais e municipais que determinaram a suspensão do funcionamento de lojas, centros comerciais, restaurantes e outras atividades que pudessem provocar a aglomeração de pessoas e, em consequência, facilitar o contágio. No Brasil, a cobertura para lucros cessantes pode ser encontrada nos seguros empresariais - multirrisco; nos seguros de riscos nomeados - aqueles em que o segurado escolhe as coberturas que precisa contratara e os riscos são descritos na apólice de seguro; e nos seguros operacionais, aqueles em que estão cobertos todos os riscos a que o segurado está sujeito, exceto aqueles que estiverem expressamente mencionados na cláusula de riscos excluídos. Os seguros de riscos operacionais também são chamados de all risks, porém a tradução livre "todos os riscos" não é exatamente a melhor porque o seguro cobre "todos os riscos" exceto aqueles que constem na cláusula de riscos excluídos. Os seguros de riscos nomeados e de riscos operacionais são aqueles comumente contratados por grandes empresas, tanto nos setores da indústria, como no comércio e prestação de serviços, muitas das quais com riscos bastante específicos e que encontram guarida nessa modalidade de apólice. Já os seguros empresariais são contratados por empresas de menor porte e seu pacote de multirrisco facilmente contém cobertura para os riscos aos quais elas comumente estão expostas. Os contratos de seguro de riscos operacionais e riscos nomeados quase sempre estão organizados em coberturas básicas e obrigatórias e coberturas adicionais. As básicas e obrigatórias são danos materiais, incêndio, lucros cessantes, roubo, quebra de máquinas, queda de raio, explosão; e as coberturas adicionais podem ser: danos elétricos, vendaval, fumaça, desmoronamento, responsabilidade civil entre outras. Durante mais de cinquenta anos a cobertura de lucros cessantes foi regulada pela Portaria 17, de 1963, do antigo Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização que antecedeu o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP como órgãos reguladores e fiscalizadores do mercado de seguros no Brasil. Em 2017, a Circular SUSEP n. 560 revogou a Portaria 17 e outros eventuais normativos sobre lucros cessantes que pudessem existir e, deliberou no artigo 2º que o objetivo do seguro de Lucros Cessantes é garantir uma indenização pelos prejuízos resultantes da interrupção ou perturbação no movimento de negócios do segurado, causada pela ocorrência de eventos discriminados na apólice. Determinou, ainda, que na estruturação de seus planos de seguro as sociedades seguradoras poderão prever coberturas adicionais, desde que os riscos cobertos estejam diretamente relacionados com o ramo de Lucros Cessantes e não sejam típicos de outros ramos. Nas apólices de seguro de lucros cessantes praticadas no Brasil é comum que entre os riscos excluídos estejam expressamente relacionados os atos de autoridade pública, salvo para a propagação de danos cobertos na apólice; e, danos causados por contaminação. Como interpretar as cláusulas dos contratos de seguro com cobertura para lucros cessantes neste momento, em que a pandemia da COVID-19 obrigou ao isolamento social e a interrupção de muitas atividades econômicas consideradas não-essenciais? A literalidade já leva a conclusão de que não há cobertura, porque como se vê nas determinações do regulador os lucros cessantes cobertos pelo contrato serão aqueles decorrentes de eventos discriminados na apólice, ou seja, de danos materiais provocados por incêndios, queda de raio, desmoronamento, danos elétricos, queda de aeronave, entre outros. É a cobertura para as empresas concessionárias de rodovias utilizarem quando a enchente destrói uma ponte que impede a passagem de veículos na estrada por vários dias ou semanas, obrigando a construção de um desvio que interrompe a passagem por uma praça de pedágio. Ou, na mesma situação quando as chuvas torrenciais provocam desmoronamento de um talude que interrompe totalmente a passagem de veículos e a rodovia fica inoperante, obrigando os usuários a utilizar vias secundárias. Nessas situações não há cobrança de pedágio e a concessionária deixa de receber os valores de lucro para os quais tinha expectativa. A interpretação histórica da cláusula nos levará à conclusão de que não havia no Brasil até o mês de fevereiro de 2020, nenhum temor maior para riscos de pandemia. Existiam alguns temores para epidemias e, nos seguros ambientais para o risco de contaminação. Mas para a hipótese de pandemia não havia nenhum temor mais acentuado que pudesse provocar a inserção em contratos de seguro. No aspecto teleológico a interpretação dos contratos de seguro deverá se ater às circunstâncias para as quais os seguros foram contratados. Que riscos o segurado temia no momento em que contratou a cobertura de lucros cessantes? Os danos decorrentes de paralisação da atividade empresarial em razão de uma pandemia, com certeza, não estavam no espectro de riscos dos empresários no momento em que contrataram os seguros de danos materiais e de lucros cessantes deles decorrentes. Nesse sentido, a nova redação do artigo 113 do Código Civil dada pela Lei 13.874, de 2019, a chamada Lei de Liberdade Econômica, contribui para a reflexão. Determina o artigo 113 que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua contratação. O conceito de racionalidade econômica comporta inúmeras reflexões, mas, para interpretação do contrato de seguro com cobertura para lucros cessantes, é oportuna a lição do Prof. Dr. Oksandro Gonçalves publicada no Migalhas de 06 de maio de 2020, sob o título A Racionalidade Econômica dos Contratos em Épocas Pandêmicas, na qual ele afirma: (...) é preciso considerar em qualquer interferência sobre o contrato, a sua racionalidade econômica. Esta deve ser inferida a partir das informações disponíveis no momento da celebração em comparação com as novas informações. Natural, portanto, que exista entre os contratantes um nível de assimetria de informação típica da racionalidade limitada a que todos estão sujeitos. Todavia, a confiança depositada por elas no instrumento contratual será uma forte impulsionadora de ajustes privados eficientes. Para tanto, serão consideradas as particularidades do contrato, maximizando o nível de satisfação de cada uma das partes. Contratos de seguro multirrisco, de riscos nomeados ou de riscos operacionais com cobertura para lucros cessantes são contratos pactuados entre contratantes que até março de 2020, tinham em comum a impossibilidade de supor que uma pandemia de COVID-19 atingiria o Brasil com força suficiente para impactar as atividades econômicas a ponto de suspender parte significativa delas. Ninguém em sã consciência poderia imaginar até março de 2020 que fosse necessário utilizar em larga escala o isolamento social para conter a propagação do vírus. Os contratos de seguro são bastante peculiares: contratos individualizados que se sustentam na existência de uma mutualidade, que contribui para que todos os resultados dos riscos cobertos possam ser indenizados a cada um dos participantes do fundo. Seguradoras tem obrigação de garantir que o fundo seja corretamente organizado e administrado, ou seja, que tenha condições de suportar os pagamentos das indenizações durante todo o período de vigência dos diferentes contratos. A obrigação do segurador é garantir o interesse legítimo do segurado em relação a pessoas ou coisas, contra riscos predeterminados. A predeterminação do risco está longe de ser uma restrição aos interesses dos segurados. Bem ao contrário, a predeterminação é a única forma pela qual os seguradores conseguem realizar cálculos atuariais e estatísticos que viabilizam a organização e gestão do fundo mutual, formado com a contribuição dos segurados e cuja correta administração é que permite aos seguradores cumprirem sua obrigação legal e contratual: garantir o interesse legítimos dos segurados. Nenhum fundo mutual dos seguros de lucros cessantes possui, neste momento, recursos decorrentes de cálculos de estatísticas e probabilidades de danos decorrentes de pandemia. Nenhum cálculo poderia ter levado em conta a perspectiva de que uma empresa tivesse que ficar por três meses inativa, embora com todas as condições técnicas e operacionais em perfeitas condições de utilização. Essa hipótese não estava entre os riscos predeterminados para a cobertura de lucros cessantes, por isso não existem recursos para indenização. E o futuro? Poderemos ter cobertura de riscos para lucros cessantes em decorrência da interrupção da atividade por ordem do governo como prevenção de contaminação em pandemias? Provavelmente sim. Quase todos os grandes riscos da história da humanidade foram inseridos nos contratos de seguro. O problema não é o valor e nem o tipo de risco. O ponto chave é ter conhecimento técnico sobre o risco para poder formular estudos atuariais e estatísticos. Se os valores necessários para a formação do fundo não forem muito altos, será possível constituir reservas para os riscos decorrentes de pandemia. Também será possível que os futuros contratos de locação, de franquia, de atividades em centros comerciais, entre outros, levem em consideração o risco de pandemia para adequarem suas cláusulas e previsões. A história da humanidade é a história do progresso tecnológico e da superação das dificuldades da natureza. A atividade de seguros acompanha essa história e insere coberturas para riscos à medida em que eles se tornam mais recorrentes, conhecidos e tornam possível a avaliação da extensão dos danos que provocam. O elemento fundamental para que um risco possa ser incluído em contratos de seguro é o conhecimento de sua frequência e a extensão dos prejuízos que pode causar. Sendo assim, não é difícil que no futuro existam seguradores com apetite para oferecer no mercado a cobertura de lucros cessantes quando houver interrupção da atividade em decorrência de pandemia. Vamos aguardar e acompanhar o desenvolvimento das opções de seguro depois da pandemia. Neste momento, a melhor técnica e juridicamente mais adequada aponta para a inexistência de cobertura para riscos decorrentes de pandemia na cláusula contratual de lucros cessantes. *Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC do Rio Grande do Sul. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros - ENS. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT e Conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro - AIDA
1. INTRODUÇÃO Publicada em 1º de julho de 2020 e com entrada em vigor no dia seguinte, a nova Lei de Locações na Argentina (Ley nº 27.5511) assume um perfil mais intervencionista em busca de prestigiar a parte mais vulnerável dos contratos (o inquilino) e de promover políticas públicas que facilitem o acesso de classes sociais mais vulneráveis à moradia. A tentativa de maior intervencionismo nos contratos de locação merece ser acompanhada por todos os juristas brasileiros, especialmente para verificar se essa postura argentina gerará ou não um efeito reverso: o de aumento do preço dos aluguéis e o da diminuição de ofertas de imóveis para locação. Como se sabe, o excesso de intervencionismo pode inibir os proprietários a alugarem seus imóveis ou a aumentarem os preços a fim de absorver os novos riscos causados pelo dirigismo contratual. Achar um grau razoável de intervencionismo é sempre um desafio. Neste pequeno artigo, nosso objetivo é apenas relatar os artigos da Nova Lei de Locações Argentina. Essa nova lei modifica o Código Civil Argentino - CCArg ("Código Civil y Comercial de la Nación"), veicula regras autônomas e altera a Lei de Mediação Obrigatória Prévia a Processos Judiciais. Vamos ao relato de cada um dos artigos do novo diploma. 2. MODIFICAÇÕES FEITAS NO CÓDIGO CIVIL ARGENTINO Os arts. 1º ao 12 da nova Lei de Locações na Argentina modifica o CCArg. Vamos relatar o conteúdo dos dispositivos do CCArg que foram modificados. 2.1. Domicílio contratual eletrônico (art. 75, CCArg) O domicílio contratual não precisa ser apenas geográfico, mas também pode ser eletrônico (como um endereço de e-mail) para efeito de recebimento de notificações, comunicações e intimações. 2.2. Proibições em locações residenciais (art. 1.196, CCArg) Em locação residencial, ficam proibidos: (1) cobrar mais de um aluguel antecipado; (2) a cobrança de "luvas", ou seja, de um valor pela "localização" do imóvel; (3) a emissão de notas promissórias ou outros títulos de crédito, pois só o contrato de locação pode representar a dívida; (4) o depósito de "entrada" a ser pago pelo inquilino para começar a locação não pode ser superior a um mês. 2.3. Prazo mínimo dos contratos de locação residencial (arts. 1.198 ao 1.199, CCArg) O prazo mínimo de locações de imóveis deixa de ser de 2 anos para ser de 3 anos, salvo prazo maior expressamente maior. Não importa se a locação é residencial ou comercial. É irrelevante também se a locação tem uma finalidade que se cumpra em prazo menor. Há, porém, exceções de casos em que se admite pactuação de prazo menor a esse triênio legal, a saber: (1) renúncia do locatário ao prazo mínimo legal, desde que ele esteja na coisa; (2) locação para embaixada ou corpo diplomático; (3) locação de imóvel mobiliado para fins de turismo, de descanso ou similares, a qual não poderá ser superior a 3 meses, sob pena de se afastar a sua natureza de locação por temporada; (4) locação para guarda de coisas; (5) locação de espaço em prédios destinados a exposições de objetos ou serviços. 2.4. Denúncia vazia pelo inquilino e multas (arts. 1.221 e 1.221 bis, CCArg) O inquilino pode resilir imotivadamente (denúncia vazia) o contrato após 6 meses de locação mediante notificação com antecedência de 1 mês. Terá, porém, de pagar uma multa de 1,5 aluguel se exerceu esse direito antes de um ano de locação ou uma multa de 1 aluguel se exerceu esse direito após um ano de contrato. A multa poderá ser afastada se o inquilino tiver feito a notificação com três meses de antecedência e se já tiver transcorrido mais de 6 meses de contrato. Em locações residenciais, o inquilino pode, dentro dos últimos três meses do prazo do contratual, notificar o locador para, em 15 dias, negociar a renovação do contrato. Se este ficar em silêncio, o inquilino pode resolver o contrato sem pagamento de multa alguma. 2.5. Reparações por deteriorações não causadas pelo inquilino (art. 1.201, CCArg) O locador, ao ser notificado pelo inquilino, tem de fazer as reparações de deteriorações ocorridas no imóvel sem culpa do inquilino. Se não o fizer dentro do prazo de 24 horas ou, na hipótese de inexistir urgência, no prazo de 10 dias, o inquilino pode realizá-la às custas do locador. Há presunção de recebimento da notificação emitida ao domicílio indicado pelo locador no contrato, ainda que o locador não a tenha efetivamente recebido por motivos imputados a ele (como uma recusa ao recebimento ou uma mudança de endereço sem prévio aviso). 2.6. Inviabilidade superveniente de uso ou de fruição do imóvel (art. 1.203, CCArg) Se o uso ou a fruição do imóvel se torna inviável por motivo não imputado ao inquilino, este pode pedir a rescisão contratual ou a suspensão do pagamento do aluguel enquanto o imóvel não voltar a ser viável. A nova lei deixou mais claro esse direito do inquilino, deixando de falar em caso fortuito para, no seu lugar, valer-se da expressão "causas não imputáveis ao locatário". 2.7. Direito a dedução de valores no aluguel (art. 1.204 bis, CCArg) É assegurado o direito de o inquilino, após prévia notificação, deduzir do aluguel valores que eram devidos pelo locador, como os relativos a reparações do imóvel. 2.8. Dever de arcar com despesas alheias aos benefícios normais da locação (art. 1.209, CCArg) O locatário só é obrigado a arcar com despesas condominiais ou tributárias relativas aos benefícios normais e permanentes que lhe são propiciados pelo uso do imóvel. Portanto, não tem de arcar com nenhuma despesa extraordinária (como a famosa "taxa extra") nem com tributos extraordinários. Não tem de arcar também com despesas "carimbadas" formalmente como contribuição condominial ordinária quando, na verdade, não tem relação com os benefícios normais e permanentes propiciados ao inquilino com a locação. 2.9. Notificação prévia à ação de despejo (art. 1.222, CCArg) No caso de locação residencial, a ação de despejo por inadimplemento de aluguel só é cabível mediante prévia notificação do inquilino para, em 10 dias, pagar a dívida atrasada. á presunção de recebimento da notificação emitida ao domicílio indicado pelo inquilino no contrato, ainda que o inquilino não a tenha efetivamente recebido por motivos imputados a ele (como uma recusa ao recebimento ou uma mudança de endereço sem prévio aviso). Trata-se aí de um exemplo de aplicação do que chamamos de princípio do aviso prévio a uma sanção2, que é um princípio geral de direito e que, no Brasil, já foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ3. 2.10. Vedação de condicionar o recebimento das chaves ao pagamento prévio de dívidas (art. 1.222, CCArg) No caso de locação residencial, o locador não pode se recusar a receber as chaves de volta do imóvel. Não pode condicionar o recebimento das chaves ao prévio pagamento de qualquer dívida. Se o fizer, o inquilino fica liberado de pagar qualquer aluguel ou valor adicional, desde que, em até 10 dias, faça o depósito judicial das chaves. 2.11. Atribuições e remuneração dos corretores de imóveis (art. 1.351, CCArg) Somente corretores de imóveis devidamente inscritos na forma da lei podem exercer a atividade de intermediação de locações de imóveis. O dever de pagar a comissão ao corretor é de todas as partes, salvo se cada parte tiver contratado um corretor para si (hipótese em que cada um pagará a comissão do respectivo corretor). 3. ARTIGOS DA NOVA LEI QUE NÃO ALTERAM OUTROS DIPLOMAS Os arts. 13 a 21 da Nova Lei de Locações não alteram diploma algum. Vamos visitá-los. 3.1. Garantias em contrato de locação residencial (art. 13, Nova Lei de Locações na Argentina) Em locação residencial, se o locador exigir alguma garantia, o inquilino tem o direito de lhe oferecer duas opções entre as seguintes: (1) imóveis; (2) fiança bancária mediante requisitos indicados no contrato; (3) seguro de caução mediante requisitos indicados no contrato; (4) fiança mediante requisitos indicados no contrato; (5) garantia pessoal do próprio locatário que comprove renda. A garantia, no máximo, pode corresponder a 5 aluguéis, salvo para a última opção de garantia retrocitada (em que a garantia poderá ser de até 10 aluguéis). O locador é obrigado uma das garantias oferecidas pelo inquilino. 3.2. Reajuste do aluguel anualmente e por um índice misto (art. 14, Nova Lei de Locações na Argentina) O reajuste do aluguel só poderá ocorrer anualmente (antes da nova Lei, era semestral) e deverá seguir um índice fruto da mistura do índice geral de correção monetária e do índice específico de variação do salário dos trabalhadores. 3.3. Consignação judicial do valor do aluguel (art. 15, Nova Lei de Locações na Argentina) Se o locador se recusar a receber o aluguel, o inquilino tem de notificá-lo para receber o valor em até 48 horas. Passado esse prazo, o inquilino tem de promover a consignação judicial em até 3 dias úteis após o vencimento do prazo fixado na notificação extrajudicial, tudo sob as custas do locador. 3.4. Comunicação obrigatória ao Governo (art. 16, Nova Lei de Locações na Argentina) Os contratos de locação têm de ser comunicados ao Governo, que mantém controle desses dados. Se o locador não fizer essa comunicação, ele está sujeito a sanções. 3.5. Programa Governamental de Aluguel Social (arts. 17 ao 20, Nova Lei de Locações na Argentina) O novo diploma argentino cria um programa governamental de aluguel social com o objetivo de facilitar o acesso a uma moradia digna mediante contratos formais de locação. Entre as várias diretivas desse programa, estão estas: (1) evitar discriminações contra as pessoas em situação de violência de gênero à luz da "Ley de Protección Integral a las Mujeres"; (2) regular entidades que oferecem fianças e seguros de caução; (3) disponibilizar subsídios e linhas de crédito; (4) estimular o aumento de ofertas de imóveis para locação; (5) facilitar locação a aposentados e desempregados que recebam auxílio desemprego; e (6) auxiliar quem tenha dificuldade de oferecer alguma das garantias locatícias. 3.6. Estímulo a meios extrajudiciais de resolução de conflitos (art. 21, Nova Lei de Locações na Argentina) O Poder Executivo deve estimular o uso de meios extrajudiciais de resolução de conflitos, como a mediação e arbitragem gratuita ou a baixo custo. 4. MODIFICAÇÃO DO ART. 6º DA LEI DE MEDIAÇÃO PRÉVIA OBRIGATÓRIA O art. 22 da nova Lei de Locações altera o art. 6º da Lei de Mediação Prévia Obrigatória (Ley nº 26.589, may 3 de 20104) de modo a estabelecer que, mesmo para a propositura de ação de despejo, é obrigatória a prévia tentativa de uma mediação. Antes da mudança legislativa, o locador poderia dispensar a mediação prévia obrigatória e, desde logo, propor a ação judicial de despejo. 5. CONCLUSÃO Manter-se atento ao regime locatício de outros países é saudável para nós, brasileiros, que também precisamos velar por uma legislação que trate das locações de imóveis conciliando, de um lado, os preceitos do livre mercado com, de outro lado, a necessidade de agir com justiça em favor da parte mais vulnerável. O modelo jurídico argentino de locações guarda muitas semelhanças com o brasileiro. Não foi nosso objetivo apontar todas essas semelhanças, mas apenas o de trazer a lume as modificações ocorridas neste ano no nosso vizinho latino-americano. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília - UnB -, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado/Parecerista, ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. ___________ 1 Disponível aqui. Acesso em 1º de julho de 2020. 2 Disponível aqui. 3 A propósito, extrai-se o seguinte excerto do voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1.812.465/MG, de sua relatoria (3ª Turma, DJe 18/05/2020): "É interessante notar, ainda, que a moderna doutrina do Direito Civil tem apontado para a existência de um princípio - ou mesmo um subprincípio - do aviso prévio a uma sanção, fundamentado na boa-fé objetiva, ao contraditório e à vedação da surpresa. Nesse sentido, a doutrina afirma que: Pelo princípio do aviso prévio a uma sanção, todas as pessoas têm direito a serem lembradas previamente à imposição de uma sanção. Toma-se o verbete "sanção" no sentido mais amplo possível a fim de abranger qualquer restrição de direitos. Sabemos que a palavra "sancão" diz respeito a uma punicão, mas aqui estamos, por escolha metodológica nossa, a utilizá-la de um modo amplo para abranger qualquer situação jurídica em que uma pessoa haverá de sofrer alguma restrição de direito (punição ou não) por conduta de outrem. Assim, o corte da luz do devedor, a prisão civil do alimentado inadimplente, a constituição do devedor em mora são exemplos do que aqui chamamos de "sanção". O fundamento do princípio ora enfocado é a boa-fé objetiva, do qual decorre a vedação à surpresa, e o princípio do contraditório, de que deflui o direito do interessado em contrapor-se a uma ameaça de restrição de direito. Embora estejamos a focar o Direito Civil e o Processo Civil, o princípio do aviso prévio a uma sanção ultrapassa essas fronteiras para iluminar todos os demais ramos do Direito, com as adaptações necessárias. É um princípio geral do direito brasileiro. Fazemos uma advertência. O princípio do aviso prévio a uma sanção é fruto de outros princípios, conforme já mencionamos. É, na verdade, um sub-princípio. Muitos casos concretos que iremos apontar aqui como exemplo de aplicação desse princípio, mas obviamente também poderiam ser resolvidos pela aplicação dos princípios matrizes, mas isso importaria um esforço argumentativo maior. O princípio do aviso prévio a uma sanção é uma cristalização didática de vários princípios com objetivo de facilitar a linguagem jurídica na resolução de casos concretos, na criação de regras (como na atividade legislativa) e na manutenção de uma coerência sistêmica do direito."(Oliveira, C.E.E. de. O princípio do Aviso Prévio a uma sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado Federal, Maio/2019 (texto para discussão nº 259) 4 Disponível aqui (com texto anterior à mudança feita pela Nova Lei de Locações na Argentina).
Texto de autoria de João Pedro Leite Barros e Marcelo Matos Amaro da Silveira Introdução Após um "longo e tenebroso inverno" finalmente temos no Brasil uma lei que cuida dos impactos da pandemia de Covid-19 nas relações privadas, o que já era esperado há algum tempo por todos os operadores do direito. A lei 14.010/2020, sancionada na sexta-feira, dia 12 de junho de 2020, finalmente corporiza e positiva as normas trazidas pelo PL 1179/2020, estabelecendo o denominado Regime Jurídico Emergencial e Transitório em matéria de direito privado. O mencionado projeto, de autoria do senador Antônio Anastasia e relatoria da Senadora Simone Tebet, como se sabe, foi elaborado pela pena de grandes civilistas em conjunto com o presidente do STF e ministros do STJ. Sua tramitação se deu "a jato" no Senado Federal, mas acabou andando a passo mais lento na Câmara dos Deputados e praticamente "encalhando" na mesa da Presidência da República, somente sendo sancionada no último dia do prazo e com 8 dos seus 21 artigos vetados. A lei, grosso modo, determina a suspensão ou impedimento de contagem dos prazos de prescrição, decadência e usucapião, traz a permissão da "virtualização" das reuniões e assembleias das pessoas jurídicas, altera o regime da prisão do devedor de alimentos, e também suspende o prazo de abertura do inventário e finalização da partilha no direito sucessório. Ela também regulou algumas questões de direito concorrencial e de certo modo modulou o início de vigência da LGPD, que entrará em vigor no dia 1º de agosto de 2020, mas somente terá suas sanções e penalidades produzindo efeitos a partir de agosto de 2021. Além disso é preciso destacar que os vetos acima mencionados atingiram artigos que tratavam de proibição de reuniões e assembleias presenciais, regras de interpretação da revisão dos contratos, suspensão de despejos liminares, restrições relacionadas com o direito condominial, transporte em rodovias e remuneração de aplicativos de transporte. Esses vetos ainda serão apreciados pelo Congresso Nacional, sendo possível que alguns artigos surjam novamente. Já quanto ao nosso objeto de estudo, o Direito do Consumidor, a lei trouxe impactos diretos e indiretos ao art. 49 do Código de Defesa do Consumidor. Isto porque, além do seu art. 8º trazer ressalvas expressas ao artigo, o seu artigo 3º, mais especificamente no §2º, contém norma que tangencia o direito de arrependimento do consumidor. O objetivo do presente texto é, portanto, evidenciar e analisar quais são os impactos e suas consequências. O direito de arrependimento do consumidor Como bem se sabe as relações contratuais são formadas pelo princípio do pacta sunt servanda, que pode se verificar com maior ou menor força dependendo do tipo de relação verificado. Inegável dizer que quando as partes estabelecem entre si uma relação obrigacional elas se vinculam, sendo fundamental destacar esse aspecto mesmo no contexto atual da pandemia1. Nesse viés, assevera CLOVIS DO COUTO E SILVA que a obrigação é um processo cujo fim é o cumprimento2, sendo que o programa obrigacional decorrente polariza para o adimplemento, o que evidencia a força obrigatória dos contratos. A vinculação, aliás, é um dos principais elemento que dá força às relações obrigacionais, já que é ela que garante que o objetivo buscado pelos contratantes seja alcançado, através do cumprimento das obrigações. Mesmo que se argumente, de forma absolutamente correta, que esse princípio deva ser lido em conjunto com outros (como o da boa-fé objetiva e da função social) e que sua incidência seja mais ou mesmo robusto dependendo do tipo de contrato ou da sua natureza, não se pode ignorar sua importância. Essa máxima também afeta o direito do consumidor, sendo certo que há nesse campo que ora analisamos a existência de vínculo entre o consumidor e o fornecedor3, que mesmo relativizada e de certa forma enfraquecida, ainda assim garante a obrigatoriedade dos pactos. Neste sentido, considerando que não se verifique a incidência de outros princípios ou eventuais abusividades, o contrato celebrado entre o consumidor e o fornecedor deve ser cumprido pontualmente e em sua totalidade. Portanto, se a vinculação entre as partes e o cumprimento da obrigação constituem a regra desse tipo de relação, a livre desvinculação somente pode ser encarada como algo extraordinário. O direito de arrependimento representa uma ruptura na realidade normal do direito das obrigações, já que rompe com a vinculação das partes, e consequentemente significa uma quebra do pacta sunt servanda4. O direito de arrependimento, ou retratação, portanto, não é a regra geral do direito obrigacional, somente podendo ser verificado quando haja autorização legal expressa ou quando seja pactuado pelas partes5. Dentro dessa noção fundamental, é válido destacar o disposto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, que garante a possibilidade de arrependimento, pelo consumidor, do contrato celebrado fora do estabelecimento comercial6. A norma, portanto, suaviza a força obrigatória nas relações contratuais de consumo quando a compra do produto ou contratação do serviço se der "fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio". Importante que se diga que o conceito da expressão "fora do estabelecimento comercial" também se aplica às contratações eletrônicas, sendo a norma consumerista complementada pelo decreto 7.962/20137. O direito de arrependimento, também conhecido como prazo de reflexão, é um direito legítimo, potestativo8, irrenunciável9 e indisponível que surgiu para responder essencialmente aos problemas colocados pelo descompasso do regime geral da invalidade dos vícios da vontade, especialmente da coação e erro. Visa, por essência, a proteger a declaração de vontade do consumidor10. Com isso o CDC garante um tempo 7 dias para que a pessoa que comprou um bem por meio remoto possa refletir melhor sobre sua compra, e eventualmente exercer seu direito de retratação, desistindo da compra muitas vezes adquirido por impulso. Além disso, no âmbito dos contratos eletrônicos, e das já tradicionais compras pela internet, emerge, efetivamente, a necessidade de proteção do consumidor, a fim de evitar as compras por impulso ou realizadas sob forte influência da publicidade sem que o produto esteja sob contato do consumidor ou sem que o serviço possa ser melhor examinado11. Com efeito, a desconfiança na contratação eletrônica tem origem em sua natureza jurídica sui generis: ausência de contato físico com o vendedor, a fluidez ou desmaterialização da contratação, o caráter atemporal da oferta, a complexidade técnica jurídica e a própria execução do contrato, sem contar a busca desenfreada por parte de fornecedores de esconder as frequentes políticas comerciais ávidas pelo lucro. Em conclusão: apesar de abrandar a força obrigatória dos contratos, o que não deixa de ser uma ingerência na autonomia privada12, se analisado formalmente, o direito de arrependimento serve para contrapor a força econômica dominante do fornecedor em detrimento da vulnerabilidade absoluta do consumidor. O impacto direto: Art. 8º da lei 14.010/20 Com o irrompimento da pandemia causada pela Covid-19 grande parte da população mundial se viu subitamente obrigada a iniciar processos de isolamento social, o que o que não foi diferemente da situação verificada no Brasil. A partir do final do mês de março de 2020 as principais cidades e estados do país, em maior ou menor medida, estabeleceram normas que determinaram o fechamento do comércio e encerramento de atividades econômicas que não eram essenciais, e tal movimento acabou sendo complementado pela adoção do regime de trabalho remoto por diversas empresas, e a adesão maciça das pessoas à "quarentena" ou isolamento voluntário. Essa situação fez com que uma realidade que já estava em franca expansão virasse praticamente a regra, e com isso o comércio eletrônico passou a ter um protagonismo considerável no mercado de consumo. Diante do fechamento dos shoppings centers e das "lojas de rua" das principais cidades, os consumidores passaram a ser obrigados a fazer suas compras online. Da mesma forma, com as restrições de funcionamento dos restaurantes o pedido delivery, através dos aplicativos ou do contato direto com o estabelecimento, se tornou a única opção para consumir "comida de fora". Parece inegável dizer que, passado mais de 90 dias do início da "quarentena", certos hábitos já sofreram alterações permanentes, sendo inegável que a pandemia irá contribuir para a consolidação definitiva do comércio eletrônico e dos pedidos delivery. Como bem aponta MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO13 durante a pandemia houve um aumento expressivo do consumo pela internet, tanto de produtos essenciais quanto de produtos supérfluos. E essa situação não é só verificada no Brasil, sendo certo que o dono da gigante do comércio eletrônico da Amazon caminha a passos largos para se tornar a primeiro trilionária do mundo14, o que será potencializado pela pandemia. Considerando essas premissas parece ser totalmente prudente que uma lei que regulasse aspectos de direito privado em razão da pandemia trouxesse uma norma sobre as compras fora do estabelecimento, e mais especificamente aquelas relacionadas com o sistema de delivery. E foi nesse contexto que o RJET trouxe o art. 8º, estabelecendo que: Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Trata-se de norma que busca dar certa segurança jurídica nos tempos de pandemia, estabelecendo hipóteses de ressalva ao direito de arrependimento do consumidor, aplicando uma interpretação extensiva do artigo 49 em favor dos fornecedores15. É um dispositivo, desta forma, que não é imune a críticas, pois de certa forma limita o direito do consumidor. Contudo, na nossa opinião ele traz uma orientação correta e e com importante cariz pedagógico. A suspensão da aplicação do direito de arrependimento nas hipóteses de pedidos delivery e de medicamentos parece ser equilibrada e necessária para os tempos pandêmicos16. Em uma primeira análise, percebe-se que é uma norma certeira e pontual, porque acaba evitando que os consumidores comprem produtos de consumo imediato e medicamentos e tenham que posteriormente "quebrar" o isolamento para devolver o produto. Detidamente, a norma parece apenas consolidar uma "suspensão de direito" que efetivamente nunca existiu. A verdade é que não faz muito sentido permitir, por exemplo, que um consumidor peça uma pizza por meio de um aplicativo e 7 dias depois se arrependa do pedido. No mesmo sentido, não é prudente autorizar que haja desistência após a compra por telefone de um medicamento. Em ambas as situações é possível afirmar, de certa forma, que o direito de arrependimento nunca foi um verdadeiro direito. Sobre o tema, há muito já defendíamos17 que as restrições ao direito de arrependimento são válidas, desde que os produtos ou serviços em voga possuam natureza especial, como aqueles citados na RJET, assim como outros, como o caso de bens personalizados, ebooks, etc. Destarte, verifica-se no art. 8º um caráter pedagógico, confirmando uma noção que é absolutamente consentânea com o objetivo do art. 49 do CDC. Assim, correta a orientação do legislador ao restringir de forma expressa a possibilidade de retratação dos consumidores que fizerem pedidos delivery ou comprarem medicamentos fora do estabelecimento comercial. Por fim, ressalta-se que essa norma não se aplica para as hipóteses de produtos que sejam entregues com vícios, como a pizza sem o recheio desejado, ou o medicamento com o lacre violado, pois aí estaríamos diante de vício ou defeito do produto18. Sempre importante sublinhar que o arrependimento é um direito potestativo do consumidor, a ser praticado sem qualquer justificativa. Por outro lado, sempre há também a possibilidade de devolução de produtos ou serviços que possuam vícios, pois nesse caso estamos diante de inadimplemento do fornecedor. Existe nesse caso a quebra na confiança da relação consumerista, que justifica a incidência das normas de responsabilidade previstas nos artigos 18 a 25 do CDC19. Esse regime permanece intacto pelo RJET, que somente estabeleceu a suspensão do direito de arrependimento até o dia 30 de outubro de 2020 para as hipóteses acima examinadas, e somente nessas situações. O impacto indireto: Art. 3º da lei 14.010/20 Já evidenciamos o impacto direto do RJET sobre o direito de arrependimento do consumidor, que fica suspenso em alguns poucos casos nos termos do art. 8º da lei ora em análise. Mas como já deu para perceber, esse não é o único impacto no art. 49 do CDC que vislumbramos. É possível apontar um impacto indireto que decorre do art. 3º da lei da pandemia, cujo conteúdo é, in verbis: Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (grifo nosso) A mencionada norma determina a suspensão ou impedimento dos prazos prescricionais desde o início da vigência do RJET até o dia 30 de outubro de 2020, sendo inegavelmente uma disposição feliz e que traz necessária segurança jurídica em tempos pandêmicos. Além disso, o artigo 3º, em razão do seu parágrafo 2º, estende essa suspensão ou impedimento aos prazos decadenciais, que como se sabe em regra não sofrem incidências suspensivas e/ou impeditivas20. Importante sublinhar que a decadência é, na lição de JOSÉ FERNANDO SIMÃO, "fenômeno extintivo de direitos potestativos aos quais se fixou um prazo para seu exercício"21. Considerando essa importante lição, é possível facilmente verificar o prazo de 7 dias para exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC é um prazo decadencial. Sendo o arrependimento um direito potestativo o prazo para exercê-lo será, sem sombras de dúvidas, decadencial. Desta forma, levando-se em conta a natureza do prazo arrependimento e determinação de suspensão dos prazos decadenciais contida na lei 14.010/2020 perguntamos: o prazo do direito de arrependimento, a partir da entrada em vigor do RJET, está suspenso ou impedido dependendo? A resposta é positiva! Inegável afirmar que os prazos do art. 49 do CDC restaram impedidos ou suspensos durante o prazo previsto no RJET, sendo certo que os ditames do seu art. 3º aplicam-se aos prazos decadenciais previstos no diploma consumerista22. Assim, excetuando-se as hipóteses em que o direito de arrependimento estiver suspenso pelo art. 8º do RJET, o prazo do direito de arrependimento não corre. Se o prazo já tiver iniciado ele será suspenso até a data limite. Se ele não tiver iniciado ainda, especialmente porque a compra fora do estabelecimento foi realizada após o início da vigência do RJET, ele estará impedido até a data limite. Ultrapassado esse ponto, contudo, uma outra pergunta deve ser feita: o que significa dizer que o prazo de 7 dias para exercício do direito de arrependimento pelo consumidor está suspenso ou impedido? Aqui a resposta da pergunta não é tão simples, e merece uma maior reflexão. A princípio, dizer que o prazo está suspenso ou impedido significaria dizer que o consumidor teria até o dia 30 de outubro de 2020 para se retratar da compra feita. Ou seja, imaginemos que uma pessoa compre uma calça e uma blusa em um site de compras online no dia 1º de julho de 2020. Se os prazos decadenciais estão suspensos, a tendência seria dizer que essa pessoa poderia desistir da compra até 7 dias depois do dia 30 de outubro de 2020. Porém, essa não é a interpretação mais correta. Isto porque o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor é um ato complexo que demanda, além da declaração de vontade de desistir da compra, um ato material, qual seja, a devolução do produto comprado. O consumidor não pode apenas informar ao fornecedor sobre o arrependimento, ele deve necessariamente devolver o bem adquirido. Se tal ato material não se efetivar o direito de arrependimento nunca produzirá efeitos, se tornando inválido. O ato de arrependimento pode ser identificado como bifásico, dependendo de uma ação declaratória (a retratação) e uma ação material (a entrega). Nesses termos, devemos levar em conta essa premissa, bem como a intenção da norma, para interpretar da melhor forma como se procede a suspensão ou o impedimento do prazo de exercício do direito de arrependimento. Entendemos, portanto, que a suspensão ou impedimento do prazo somente interfere no ato material de devolução do produto, e não à declaração de vontade. Isto significa dizer que o consumidor, para se arrepender do contrato celebrado fora do estabelecimento, deve informar a sua intenção ao fornecedor dentro do prazo do art. 49 do CDC. Porém, o ato material de devolução do produto, fica suspenso, podendo ser exercido a partir do dia 30 de outubro de 2020. Não custa lembrar que o consumidor deve cientificar o fornecedor o seu exercício do direito de arrependimento por qualquer meio disponível, seja por telefone, e-mail, aplicativo, site ou qualquer outra forma, bastando uma declaração inequívoca do ato. Para tanto, é possível adotar de forma análoga a orientação do enunciado 619 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF, que diz: "a interpelação extrajudicial de que trata o parágrafo único do art. 397 do Código Civil admite meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, desde que demonstrada a ciência inequívoca do interpelado, salvo disposição em contrário no contrato". Por outro lado, é oportuno dizer que, ao lado do fornecedor, encontra-se o instituto do abuso do direito, disposto no artigo 187 do CC23. Referido instituto impõe limites da autonomia privada no exercício do direito subjetivo e funciona como dispositivo de segurança para as normas jurídicas formalmente aplicadas, atuando sobre o exercício do direito subjetivo, no caso destaque, o direito de arrependimento do consumidor24. Exemplificando: não pode o consumidor dar uso ao produto25 e, ainda que esteja no prazo para o exercício do direito de arrependimento, exercê-lo, em total afronte à boa-fé nas relações de consumo, ou seja, se a pessoa comprar um tenis pela internet e tão logo receba o produto corra uma maratona, não pode exercer o direito de arrependimento, mesmo que esteja dentro do prazo de 7 dias. Trata-se de atuação em abuso de direito, que é vedada no ordenamento brasileiro. Conclusão Retomando o raciocínio, a sugestão ora exposta parece ser a interpretação mais harmoniosa com as normas de proteção do consumidor e também com a sua segurança e integridade, já que a necessidade de isolamento se mantém, mesmo que os movimentos de reabertura das cidades se verifiquem no presente momento. Várias cidades que iniciaram processos de reabertura começar a ver os índices de contágio e internações pela covid-19 aumentar, ficando claro que as pessoas devem tentar permanecer em isolamento o máximo que puderem, somente saindo de casa quando for imprecindível, o que certamente não é o caso de uma devolução de produto comprado de forma remota. Assim, voltando ao caso da pessoa que compra a calça e a blusa no site de compras online, portanto, defendemos que ela tenha que informar à loja de sua desistência no prazo de 7 dias da compra. Por outro lado, a "obrigação" de devolver o produto fica suspensa até a data limite definida no RJET, devendo o ato material ser particado após 30 de outubro de 2020, ressalvada a possibilidade do fornecedor, por conta própria e com totalmente segurança, recolher o produto junto ao consumidor se assim desejar. Por fim, sempre bom destacar que caso o consumidor tenha problemas com o fornecedor, o caminho primevo é a tentativa de resolução administrativa da questão26. A negociação e o diálogo são fundamentais nesse momento, sendo fundamental que as partes se comuniquem e ajam da forma mais aberta e transparente possível. Cabe ao consumidor, portanto, informar dentro do prazo a sua desitência da compra, e ao fornecedor ou aguardar o fim do prazo, ou se movimentar para recolher o produto, sendo certo que se alguma divergência se verificar eles devem dialogar e negociar. *João Pedro Leite Barros é professor em Direito do Consumidor na Universidade de Brasília. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Brasília/ Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito do Consumidor e Direito da Arbitragem pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Processual Civil pelo IDP. Associado Titular do IBERC. Advogado. **Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Associado Titular do IBERC. Advogado em BH. __________ 1 Como bem aponta PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Disponível aqui. 2 SILVA, Clovis do Couto e. A obrigação como Processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 23. 3 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 275-276 4 GOMIDE, Alexandre. Direito de Arrependimento nos Contratos. 217 f. Tese (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), Lisboa, 2009, p. 116-119. 5 Como no caso das arras penitenciais: SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. As Arras Penitenciais e o Exercício do Direito de Arrependimento. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, vol. 2, p. 50 e ss. Porto Alegre: Lex Magister, 2020. 6 GOMIDE, Alexandre. Direito de Arrependimento nos Contratos, cit., p. 161-162. 7 SCHREIBER, Anderson. Contratos Eletrônicos e Consumo. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, p. 88-110, Rio de Janeiro, 2014, p. 104-105. 8 TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpcão, Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Método, 2018, p. 380. 9 Como defende GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 10 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 866. 11 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2010, p. 911 e ss. 12 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do consumo. Coimbra: Almedina, 2005, p. 114. 13 SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. A suspensão do direito de arrependimento do artigo 49 do CDC. Disponível aqui. 14 Disponível aqui. 15 GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à "Lei da Pandemia" (14.010/20 - RJET): Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Disponível aqui. 16 SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. A suspensão do direito de arrependimento do artigo 49 do CDC. Disponível aqui. 17 BARROS, João Pedro Leite. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos como forma de extinção das obrigações. Um Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. In: Estudos de Direito do Consumidor. Centro de Direito do Consumidor da Universidade de Coimbra. n.14. 2018, p.149 e ss. 18 Como bem apontam CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde. Se eu estiver a ser sincero hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã? Disponível aqui. 19 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 1204-1207. 20 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral, v. 1, 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 583. 21 SIMÃO, José Fernando. Prescrição e Decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 193. 22 GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à "Lei da Pandemia" (14.010/20 - RJET): Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Disponível aqui. 23 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 24 Sobre o tema, já tivemos oportunidade de nos manifestar. Confira: BARROS, João Pedro Leite. O excesso de informação como abuso do direito (dever). Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Curitiba, v. 7 n. 25, p. 11-60, mar. 2017. 25 Aqui não se confunde com a possibilidade de o consumidor de testar/provar o produto, aferindo sua qualidade. 26 Como já defendemos em BARROS, João Pedro Leite. Diálogo como fiel da balança - mudança de paradigma em face do covid-19, disponível aqui.
Texto de autoria de Angélica L. Carlini Planos de saúde são contratos que se sustentam na existência de uma mutualidade para a qual contribuem todos os usuários. O pagamento mensal realizado pelo usuário tem duas destinações fundamentais, conforme se pode constatar na Sala de Situação da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS1: o pagamento de despesas assistenciais e o pagamento de despesas administrativas, de distribuição e outras de caráter operacional. Portanto, o valor pago mensalmente pelos usuários individuais ou coletivos constituem os recursos necessários para sustentar a assistência aos próprios usuários no pagamento de consultas, exames, internações, tratamentos ambulatoriais e medicamentos; e, para sustentar a operação administrativa das operadoras de saúde. No Brasil segundo informa a ANS existem hoje 714 operadoras ativas com beneficiários, ou seja, operando normalmente em todo o território nacional em uma das modalidades previstas em lei: cooperativas, autogestão, medicina de grupo, seguradoras, filantropia ou administradora de benefícios. As operadoras de saúde podem atuar com planos individuais ou familiares; planos coletivos por adesão ou empresariais; ou, com planos coletivos empresariais de até 30 vidas. Os planos individuais ou familiares têm reajustes anuais em percentual fixado pela ANS; e, os planos coletivos por adesão ou empresariais, tem reajustes fixados em contrato e que levam em conta dois fatores: a sinistralidade do grupo (quantidade e tipo de utilização feita ao longo do ano) e, variação da inflação de produtos médico-hospitalares e medicamentos, que é usualmente denominada de Índice de Variação Médico-Hospitalar ou, simplesmente, inflação médica. A ANS informa também em sua Sala de Situação que a distribuição dos usuários dos planos de saúde está assim formalizada A maior quantidade de usuários está alocada nos planos coletivos empresariais que, certamente sofrerão grande impacto em decorrência da pandemia e das consequências negativas na atividade econômica, tanto no período do isolamento social como no retorno que ainda não tem exata previsão no Brasil. Muitas empresas foram obrigadas a demitir empregados, a encerrar atividades e outras não voltarão a operar normalmente em um curto período de tempo, como é o caso do setor de turismo, de eventos e de entretenimento. Com menor atividade econômica ou tendo que repensar seus modelos de negócios, muitas empresas vão cortar o pagamento de benefícios como seguros de vida, planos de saúde, vale refeição, bolsas de estudo entre outros. Até que a atividade econômica se recupere os cortes de despesas serão compreensíveis e esperados, quando não apoiados pelos próprios trabalhadores para que seja possível manter os empregos. Com essa realidade colocada para análise e sugestão de todos, o Poder Legislativo está discutindo projetos de lei que têm por objetivo: (i) estabelecer em caráter excepcional que até 2021 os índices máximos de reajuste dos planos de saúde coletivos sejam limitados aos que forem definidos pela ANS e em 2022 os reajustes obedecerão regras de transição a serem estabelecidas; (ii) reduzir pela metade o valor das mensalidades dos planos de saúde de qualquer natureza enquanto durar a pandemia; (iii) proibir o reajuste de qualquer plano de saúde durante o período de emergência decorrente da pandemia; (iv) alocar o atendimento médico à distância como cobertura obrigatória dos planos de saúde, inclusive para emissão de atestados e receitas. As propostas do Poder Legislativo se referem ao fato de que foram colocados à disposição das operadoras de saúde os valores do fundo garantidor, estimados em 15 bilhões de reais. De fato, a ANS ofereceu às operadoras de saúde a possibilidade de utilizarem recursos do fundo garantidor com a contrapartida da obrigação de atender inadimplentes e, continuar pagando regularmente os prestadores de serviços médicos, hospitalares, laboratoriais, entre outros. A maior parte das operadoras de saúde não aceitou a proposta da ANS e, portanto, não utilizará os recursos do fundo garantidor. Em uma análise rápida parece que o setor de saúde suplementar teria à sua disposição 15 bilhões para gastar e não quis. Por que não quis? Porque a proposta da ANS foi para que as operadoras utilizassem os recursos dos ativos garantidores mas devolvessem os valores a cada mês, ou seja, constituíssem novas garantias todos os meses em valores compatíveis com suas provisões técnicas. Em outras palavras, poderiam gerir os valores depositados porém, com a obrigação de devolver todos os meses para que haja garantia de que as operadoras de saúde suplementar não se tornarão insolventes. Os recursos disponibilizados para utilização das operadoras de saúde são recursos da Provisão de Eventos Ocorridos e não Avisados, conhecido como PEONA. É o valor que a operadora de planos de saúde tem que provisionar para conseguir pagar os procedimentos e eventos em saúde que já tenham ocorrido e, que ainda não tenham sido lançados contabilmente. A provisão da PEONA é obrigatória e seu cálculo depende de um atuário que prepara a Nota Técnica Atuarial da PEONA, que é apresentada ao órgão regulador. A PEONA tem por principal objetivo impedir a insolvência porque se constitui em reserva para procedimentos e eventos em saúde que já foram realizados pelo usuário e seus beneficiários, junto à rede credenciada ou, por escolha própria com reembolso no caso dos seguros saúde, mas sem que esses valores decorrentes da utilização tenham chegado ao conhecimento da operadora e, em consequência, tenham sido contabilizados para serem pagos. Se os valores da PEONA garantem a solvência das operadoras e que os prestadores de serviços serão pagos, é fundamental que esse ativo garantidor esteja sempre atualizado e correto. A utilização desses recursos seria, então, provisória porque se impõe a devolução. A ANS deliberou que as operadoras que utilizassem os recursos da PEONA deveriam devolver todos os meses. A grande maioria das operadoras de saúde entendeu que seria melhor não assinar o acordo proposto pela ANS, continuar recebendo as mensalidades e atendendo os usuários e, negociar com os inadimplentes caso a caso. Os projetos de lei parecem estar alicerçados em uma premissa equivocada. Os recursos existentes nos fundos garantidores não estão liberados para utilização pelas operadoras de saúde. Se utilizados deverão ser devolvidos no mês o que é bastante difícil se as operadoras não estiverem recebendo o valor das mensalidades ou, se esse valor estiver defasado em relação a realidade da inflação dos preços médico-hospitalares. Também parece equivocado que os projetos de lei defendam a moratória para todos, mesmo para aqueles que podem pagar por não terem sido atingidos pelos efeitos perversos da pandemia no setor econômico; ou, para aqueles que poderiam negociar valores compatíveis com suas possibilidades, diretamente com a operadoras, em especial as empresas que são o maior volume de contratantes como comprovam os dados da ANS. Aprovados os projetos terão o condão de descaracterizar a essência da atividade das operadoras de saúde porque não haverá arrecadação suficiente para a correta composição do fundo mutual e, em consequência, o custeio dos procedimentos e eventos de saúde poderão ficar seriamente comprometidos. Sem arrecadação de mensalidades não há fundo mutual e sem ele, não são contratos de operadoras de saúde. Mesmo as operadoras que atuam com rede própria precisam custear seus médicos, hospitais, equipes de saúde, exames, medicamentos, manutenção de equipamentos de alto custo, entre tantas outras responsabilidades próprias da atividade econômica de saúde suplementar. Acreditar que seja possível responder por todas as responsabilidades de um setor complexo que atua em redes contratuais, sem recursos provenientes das mensalidades é, minimamente, intervenção inadequada e que poderá gerar resultados bastante desastrosos para as mais de 700 operadoras do setor e, igualmente para seus usuários. Rodolpho Barreto Sampaio Júnior2 Mais do que uma discussão filosófica sobre a liberdade, a intenção é ressaltar que o empreendedor tem a liberdade de dedicar-se a uma atividade econômica sem deparar-se com percalços desarrazoados estabelecidos pelo estado. É certo que existem limites à atividade econômica, limites esses estabelecidos em prol da sociedade. Todavia, tais limites não podem se tornar mais relevantes que a atividade econômica em si. Os projetos de lei supra mencionados modificam a estrutura do contrato de saúde suplementar, sua essência e formação. Se proibida a cobrança de mensalidades, ou, permitida apenas cobrança de metade dos valores previstos nos cálculos atuariais ou, ainda, se negada a possibilidade de aumento das mensalidades em valores compatíveis com os custos de procedimentos e eventos de saúde, o contrato perderá sua estrutura jurídica e atuarial. Será qualquer outra figura jurídica ou não jurídica, mas não será contrato de saúde suplementar. Impressiona que se ignore que a estrutura da atividade de saúde suplementar se materializa em rede, com inúmeros contratos interligados e interdependentes, para que seja possível organizar os atendimentos aos usuários, desde os mais simples até os mais complexos que envolvem vários profissionais, equipamentos e instalações apropriadas. Irrigar essa rede com o pagamento dos serviços prestados é tarefa essencial da garantia que os planos de saúde são legalmente obrigados a cumprir, em consonância com o disposto no Código Civil. Garantir mediante pagamento do prêmio determina o artigo 757 da lei civil, riscos predeterminados que afetem o interesse segurável. Garantir o interesse segurável contra riscos predeterminados é atividade que na sociedade contemporânea, complexa e de risco, só pode ser desenvolvido e concretizado por empresas que se organizam adequadamente para isso. Subtrair do planejamento empresarial os valores necessários para custeio de serviços e remuneração de investimentos é demolir as estruturas contratuais, ou, simplesmente, enfraquece-las a ponto de se tornarem não confiáveis. No plano jurídico, os projetos de lei agridem a Constituição Federal, a Lei de Planos de Saúde e a própria legislação que regula as atividades da ANS. No plano econômico serão responsáveis por graves problemas de solvência e custeio que para algumas operadoras de menor porte serão insuperáveis. Já vivemos uma pandemia, não precisamos de mais caos. O Estado brasileiro criou mecanismos jurídicos para a defesa dos consumidores e o sistema nacional de direito do consumidor tem dado inúmeras provas de sua eficiência. No âmbito administrativo ou judicial as leis de proteção e defesa do consumidor têm sido utilizadas de forma plena, o que obriga o mercado a se tornar mais confiável em todas as diferentes áreas da atividade econômica, sob pena de sofrer consequências cumulativas de sanção e obrigação de reparar. Os projetos de lei ora supra mencionados parecem não confiar no sistema de defesa do consumidor, na regulação da área de saúde suplementar e, ainda menos na maturidade que o mercado adquiriu ao longo de sua trajetória. O momento é para o desenvolvimento de inúmeras formas de negociação, mediação e conciliação de interesses e necessidades. Os usuários de operadoras de saúde devem ser estimulados a apresentar suas dificuldades de pagamento às operadoras, aos canais de solução de conflitos públicos e privados, de forma que cada situação receba a atenção necessária para que os melhores resultados possam ser concretizados. Todos terão que negociar, aprender a dialogar e a desenvolver propostas possíveis de serem adotadas. A criticidade exacerbada só tem lugar se acompanhada de propostas de solução e aprimoramento dos setores econômicos. Sem essas propostas as críticas são inúteis e se perderão no tempo sem que a história sequer as mencione. A maior contribuição do Direito neste momento de pandemia e efeitos econômicos perversos e perceptíveis no empobrecimento diário de milhões de pessoas em todo o mundo, será estimular o diálogo, a compreensão, a negociação e a construção de acordos que permitam a soluções passíveis de contemplarem os melhores resultados em um quadro complexo mas que, com toda certeza, poderá ser superado com bom senso e equilíbrio. *Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC/RS. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros - ENS. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT e conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro - AIDA. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 20 de junho de 2020. 2 SAMPAIO JÚNIOR, Rodolpho Barreto. Lei de Liberdade Econômica e seus Reflexos sobre o Direito Civil. In OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Lei de Liberdade Econômica e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. S.Paulo: D'Plácido, 2020, p. 197.
Texto de autoria de João Pedro Kostin Felipe de Natividade e André Luiz Arnt Ramos A Pandemia de COVID-19 trouxe consigo desafios notáveis para a Teoria e para a Prática do Direito Civil. Em especial, do Direito Contratual. Sinal disso é a pop up ativada quando se acessa o Portal do Processo Eletrônico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Tratando-se de ação/petição envolvendo Coronavírus, (...), ASSINALE o assunto COVID - 19 na opção Demais Assuntos na classificação processual (Portaria 57/2020 do CNJ)". Há, aqui, um sintoma de que a crise do Sistema de Saúde contamina (ou contaminará) também o de Justiça. Não é difícil entender o porquê do assoberbamento do Poder Judiciário com demandas oriundas de dificuldades suscitadas pela Pandemia. Ela, afinal, trouxe consigo uma sucessão de tragédias humanas, sociais e econômicas. Particularmente na ambiência dos contratos, afeta diretamente os próprios contratos, as relações contratuais e os contratantes. Daí não serem raros exemplos como (i) o do restaurante italiano que perde 90% do faturamento e consegue decisão judicial que redimensiona o aluguel1; (ii) a do lojista que loca espaço em Shopping Center que consegue análogo abrandamento do custo do contrato necessário para a retomada de sua atividade econômica2; e o do estudante que, em Santa Catarina, obteve decisão que suspende o pagamento de parcelas do FIES3. Em desempenho quase que da função de marinheiro, o Judiciário age rápido para consertar o navio em meio à tempestade, mantendo em segurança as relações privadas4. Só que, quando a poeira baixar, essa Justiça da emergência será sucedida pela Justiça da imputação. E então tudo aquilo que fizemos ou deixamos de fazer nesse período poderá ser avaliado sob o prisma da responsabilidade. Por isso, convém perguntar: se sofrer algum dano durante a pandemia, como a vítima deve agir? E quais as consequências de sua conduta? As indagações (e suas respostas) relacionam o agora e o depois da Pandemia no diapasão da incumbência da mitigação de prejuízos, conhecida também como duty to mitigate the loss - normativa que repercute a resposta da vítima sobre a reparação de danos patrimoniais5. Já de início, é importante corrigir um erro comum. A vítima não necessariamente deve agir. Isso porque não existe no Direito brasileiro norma que proíba a autolesão patrimonial. Mas isso não significa que sua conduta proativa ou desidiosa seja ausente de consequências jurídicas. É o que se visualiza com um simples exercício: imagine que um motorista descuidado bate em um táxi. Nada obriga o taxista a consertar o táxi; ele pode deixar seu veículo na garagem por um, dois, três... meses. Mas se fizer isso, não deverá ser indenizado pelos lucros cessantes relativos ao tempo em que o carro ficar parado por sua escolha. Quer dizer: a vítima pode agir como bem entender após o evento lesivo, mas, quando se discutir a reparação, o quantum deverá ser fixado como se ela tivesse escolhido a resposta esperada. Mas o que seria isso? Mesmo sem impor à vítima uma conduta, o Direito espera que o prejudicado aja para se reaproximar da situação em que estaria sem o evento lesivo. Rectius: para a recomposição do estado anterior ao prejuízo. A função reparatória da responsabilidade, neste prisma, serve de critério normativo e orientador6. Na eventualidade de haver dois ou mais caminhos de recomposição, o Direito idealizará a resposta normal, em detrimento de soluções custosas ou anômalas. Assim, por exemplo, o descumprimento do contrato de transporte individual de passageiro pelo não comparecimento do transportador na data e local ajustados é uma situação patológica à luz do processo obrigacional. Também é, todavia, remediável: o passageiro prejudicado pelo inadimplemento ainda pode chegar ao local de destino mediante, por exemplo, a chamada de um Táxi ou o uso de algum aplicativo de transporte. Poderia, também, chamar uma limusine ou um helicóptero. Ou, ainda, simplesmente desistir do propósito que tinha ao contratar. A resposta normal e esperada, evidentemente, seria o táxi ou o aplicativo de transporte7. Mas nada impede ao credor a opção por meio menos módico (limusine ou helicóptero) ou inesperado (abandonar a viagem). Nessa hipótese de divergência em relação à resposta normal e esperada, haverá repercussão no plano obrigacional. É dizer: a reparação deverá ser fixada de modo contrafactual, como se a vítima tivesse adotado a resposta esperada, mesmo que não o tenha feito. O desvio da resposta esperada interrompe o nexo entre o dano e o ofensor originário, transferindo à vítima as consequências - positivas e negativas - de sua escolha. Esse entendimento foi aplicado pelo STJ ao julgar o REsp 256.274/SP. Na ocasião, a Corte decidiu que os lucros cessantes devidos a título de seguro deveriam ser fixados como se o segurado tivesse reaberto o restaurante incendiado em noventa dias a contar do pagamento dos danos emergentes, tempo que o Tribunal considerou suficiente para o reparo. Em miúdos: o STJ definiu a resposta esperada - consertar o restaurante em 90 dias - e fixou a indenização com base nela. Definidas essas premissas, cabe perguntar: em que medida a COVID-19 afeta a mitigação? A Pandemia pode limitar - como não raro limita - a escolha do agente; pode privá-lo de liberdade em múltiplos perfis: negativo, pela coerção exercida pelos gestores de saúde ao decretar proibições e suspensões de atividade; positivo, pela carência de possibilidade de escolher e agir; e substantivo, pela privação de capacidades, que são condições para o exercício e a vivência de liberdades. No primeiro caso aventado, do taxista que teve seu carro danificado por acidente de trânsito, medidas sanitárias que suspendam atividades de oficinas ou de fábricas de peças importam demora no reparo que não pode ser atribuída ao profissional. Eventual reparação, então, deverá ser fixada incluindo os lucros cessantes do período em que o reparo não pode ser realizado. Assim que decretos executivos determinarem a reabertura das oficinas, o Direito espera que o taxista volte a trabalhar após o conserto. Se escolher outro curso de ação, o ofensor deixará de responder por essa parte do prejuízo, face à indicada interrupção do nexo causal. No segundo caso, do passageiro frustrado pelo não comparecimento do transportador, a vítima pode não ter a liberdade de escolher a resposta esperada por falta de meios. Imagine que um morador de uma cidade pequena agendou um exame não reembolsável num município vizinho e contratou os serviços de uma van para realizar o trajeto. Se o transportador não comparecer no horário acordado, o direito espera que o passageiro encontre alguma forma de realizar o exame. Mas se, naquele dia, não houver outros meios de transporte disponíveis ou o passageiro não tiver condições econômicas de contratar outro serviço, o liame causal segue hígido, fazendo do ofensor o responsável pelo prejuízo sofrido. Agora, suponha que o transportador se proponha a prestar o serviço em outro dia e que o exame possa ser reagendado mediante o pagamento de uma taxa. Neste caso, o direito espera que o passageiro altere a data do exame e concorde com o adiamento do serviço, salvo se alguma situação particular justificar outro curso de ação (ex. cirurgia marcada para o dia seguinte). Se o passageiro recusar o transporte e não reagendar o exame, a indenização patrimonial deverá ser fixada como se o exame tivesse sido adiado, contemplando apenas a taxa de reagendamento. A Pandemia, que hoje nos assola com crises sanitária, econômica e de gestão, irradiará desafios e efeitos deletérios para além de sua superação. Há, então, um desafio para o presente de, em correspondência a Neurath8, reconstruir a embarcação do Direito Civil em meio à tempestade e às águas revoltas do Direito e da Economia em tempos de COVID-19. Também é certa a urgência de esboçar uma cartografia do que se projeta para além do horizonte da Pandemia. A embarcação, afinal, precisa continuar a navegar e seguir seu curso. *João Pedro Kostin Felipe de Natividade é mestre em Direito pela UFPR. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Advogado. **André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor da Universidade Positivo. Advogado. __________ 1 Justiça do DF concede redução de 50% no aluguel de restaurante italiano. 2 Justiça do RJ autoriza redução no aluguel de lojista de shopping na Zona Oeste durante a pandemia. 3 Justiça suspende parcelas do Fies para estudantes de universidade de SC. 4 Isso quando as partes não refletem e renegociam suas relações, evitando o recurso ao Judiciário. 5 Embora o STJ e a doutrina majoritária entendam que a mitigação se fundamenta na boa-fé objetiva, melhor sorte assiste à causalidade. Ver: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020. 6 Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020.p. 94-95. 7 LETSAS, George; SAPRAI, Prince. Mitigation, Fairness and Contract Law. In: KLASS, Gregory; et.al. Philosophical foundations of contract law. Oxford: Oxford University Press, 2014. Disponível em . Acesso em 31/05/2020. 8 Otto Neurath, ao discutir os problemas da linguagem científica, anotou que: "Nós somos como marinheiros que precisam reconstruir seus navios no mar aberto, sem jamais poder desmontá-los em uma doca seca e nela reconstruí-los a partir dos melhores materiais" (NEURATH, O. Protocol sentences. Tradução de George Schick. In: AYER, A. J. (Org.). Logical Positivism. Nova York: The Free Press, 1959, p. 201). Tradução livre. No original: "We are like sailors who must rebuild their ship on the open sea, never able to dismantle it in dry-dock and to reconstruct it there out of the best materials".
Texto de autoria de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira e Úrsula Goulart Em 20 de maio de 2020, foi aprovado no Senado Federal o PL 2.113/20, e que está em fase de apreciação pela Câmara dos Deputados1. O projeto aprovado sofreu algumas modificações no seu texto inicial, e tornou prejudicado o Projeto de Lei nº 890/2020, que visava alterar o Código Civil criando o art. 798-A em que ficava estabelecido que o segurador não pode se eximir ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição se a morte ou a incapacidade do segurado provier da infecção por epidemias ou pandemias, ainda declaradas por órgão competente. O Projeto de lei 2.113, de 2020, por sua vez, acrescenta o artigo 6º-E na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, para determinar que o seguro de assistência médica ou hospitalar, bem como o seguro de vida ou de invalidez permanente, inclusive o já celebrado, não pode conter restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da emergência de saúde pública de que trata a lei. O projeto implica em uma norma temporária para uma situação transitória, não incluindo, portanto, futuras pandemias, diferentemente do proposto no PL 890/2020. O objetivo do PL 2.113, 2020, é proteger os segurados, calcado nos princípios da boa-fé e na defesa do consumidor. A mudança implica em resumo nas seguintes proibições às seguradoras: i) restringir a cobertura de qualquer doença ou lesão decorrente da pandemia da Covid-19; ii) restringir a exclusão dos riscos decorrentes da pandemia da Covid-19 no seguro de vida ou de invalidez permanente; iii) realizar o aumento do prêmio pago pelo segurado; e iv) suspender e/ou cancelar os contratos por falta de pagamento durante a Covid-19 (estado de emergência pública) em virtude de mora do segurado no pagamento do prêmio. Além das proibições, o referido projeto estabelece o dever das seguradoras de: i) efetuar o pagamento da indenização no prazo de 10 (dez) dias corridos contados a partir da data de protocolo da documentação comprobatória na sociedade seguradora; e ii) permitir o parcelamento do débito do consumidor após o fim do período da calamidade pública antes de proceder à suspensão e/ou o cancelamento do contrato em razão da inadimplência. O projeto de lei acaba por beneficiar o segurado/consumidor, já que terá garantido a cobertura e a manutenção do seguro durante a pandemia, mesmo diante de sua inadimplência no pagamento do prêmio, assim como o direito de, após o período, parcelar o débito antes de ter suspenso e/ou cancelado o contrato. Todavia, o projeto de lei interfere na dinâmica da relação contratual, o que pode impactar de forma direta o setor securitário, haja vista a inclusão de cobertura de sinistro não considerado para fins de cálculo atuarial necessário para manter o fundo mutual e o equilíbrio econômico do contrato. Além de afetar o próprio fundo quando permite que haja um inadimplemento sem que isso afete a manutenção do contrato. No que tange à obrigatoriedade da cobertura do risco decorrente de pandemia, cabe esclarecer que sua exclusão depende do que está previsto nas apólices dos seguros. Nos seguros de vida e acidentes pessoais é comum verificar essa exclusão de riscos, o que acaba ficando a critério das seguradoras. Isso em razão da dificuldade de quantificar o prêmio e de realizar cálculos atuariais precisos quando se trata de riscos extraordinários como é a hipótese da pandemia da Covid-19. Como já salientado por Thiago Junqueira2, a título de exemplo, a Circular SUSEP nº 440, de 27 de junho de 2012, que regula os planos de microsseguro de pessoas (seguro de valor baixo, prêmio mais barato, proteção mais baixa), prevê, no art. 12, inc. I, alínea d, a possibilidade de exclusão de riscos causados por "epidemia ou pandemia declarada por órgão competente"3. Além disso, o item 69 da designada "Lista de verificação" (versão de setembro/2012), que traz requisitos para o envio de novos planos de seguro de pessoas à SUSEP (em busca da aprovação de sua comercialização), prevê: "Riscos excluídos - Epidemias e Pandemias" (Orientação da Procuradoria Federal junto à SUSEP)4. Logo, é possível que a seguradora exclua a morte ou invalidez permanente do segurado decorrente de epidemias ou pandemias da cobertura, devendo, in casu, prever de forma expressa e clara a respectiva exclusão. Logo, existe por parte de normas regulatórias da SUSEP uma permissibilidade da exclusão da cobertura de riscos em casos de pandemia. Ademais, o Código Civil estabelece, no artigo 757: "Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados". Desta forma, não sendo o risco predeterminado, não há que se falar em cobertura. Portanto, não há ilegalidade na restrição, na liberdade da seguradora de delimitar os riscos cobertos. E a pandemia é um risco extraordinário, risco catastrófico, que foge à álea normal. No entanto, deve-se observar que a questão posta pode ser lida à luz das normas consumeristas, quando aplicável, o que ressalta o dever do segurador de informar de forma prévia e clara sobre as exclusões, devendo observar a forma que foi comercializado o seguro; se o segurado recebeu a apólice, e se estava de forma expressa a exclusão, negritado. Mesmo com todo esse cuidado, nada impede de ser alegado que se trata de uma cláusula abusiva por limitar o direito do consumidor, limitar a responsabilidade do fornecedor, atraindo uma interpretação mais favorável ao segurado/consumidor (arts. 6º, III, 30, 51, I, §, 1º, 54, § 4). Independentemente de algumas seguradoras terem declarado que irão realizar o pagamento integral das indenizações, em caso de morte ou invalidez permanente do segurado por infecção de Covid-195, isso decorria de ato de mera liberalidade, o que, por si só, não confere segurança jurídica e não abrangeria todas as seguradoras6. A despeito da indagação acerca de qual será a fonte de retirada das quantias indenizatórias, haja vista o papel da seguradora de gestora de um fundo mutual coletivo ao qual não tem plena ingerência. O projeto de lei facilitaria para os segurados que não precisariam eventualmente buscar a solução do conflito no Poder Judiciário, e evitaria a insegurança jurídica em razão da possibilidade de decisões divergentes pelos diversos órgãos julgadores, seja em razão das regras que regulam o contrato de seguro e as normas regulatórias, desde que observada a legislação consumerista. Além disso, o processo judicial é demorado, o que postergaria o recebimento da indenização. Um dos maiores problemas trazidos pelo PL 2.113, de 2020, decorre da forte interferência dos contratos de seguro, que são pautados na mutualidade, na sinistralidade, em que se busca o equilíbrio entre o prêmio pago e a cobertura dos riscos previstos. A intervenção legislativa na cobertura de risco inicialmente não previsto, que não teve a sua cobertura considerada para fins de cálculos atuariais, para definição do prêmio pode colocar em xeque o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, afetando a base atuarial dos seguros. Isso porque mitiga a correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia que deve ser prestada pela seguradora, já que o projeto não permite nem o aumento do prêmio, nem a suspensão e/ou cancelamento do seguro pelo não pagamento pelo segurado. No que diz respeito à impossibilidade de aumento do prêmio por parte da seguradora durante o curso da relação contratual, cabe apontar que o reajuste do prêmio decorre da essência do contrato de seguro. Mas para isso é preciso que haja uma circunstância que agrave o risco, tendo em vista o disposto no Código Civil, arts. 757, 760, 768 e 769 . A possibilidade de ajustes se dá pela base do contrato, pois, como já dito, o seguro é baseado no mutualismo, de conteúdo técnico e econômico, apesar de jurídico. O fundo mutual tem de ter exata correspondência entre a garantia que ela está prestando e o prêmio que vai ser pago pelos segurados. Logo, não adianta a seguradora cobrar um prêmio baixo, pois vai comprometer a sua solvência e ainda pode ser multada pela SUSEP7. Quanto à impossibilidade de as seguradoras suspenderem e/ou cancelarem os contratos em razão do inadimplemento, é uma forte intervenção, pois a lei assegura à seguradora o não pagamento de indenização em caso de mora no pagamento do prêmio pelo segurado (art. 763 e 796 do Código Civil). Por fim, quanto ao prazo de 10 dias para pagamento da indenização, o Projeto de lei se pautou na Circular nº 440, de 2012, citada anteriormente, que, no caput do art. 63, prevê que o prazo máximo para o pagamento da indenização ou do benefício é de dez dias corridos contados a partir da data de protocolo de entrega da documentação comprobatória, requerida nos documentos contratuais, junto à sociedade seguradora ou entidade aberta de previdência complementar ou seu representante. Entretanto, esse prazo se refere apenas aos microsseguros, o que não é a regra geral, já que, pelo disposto no na Circular nº 302 da SUSEP, aplicável para seguros de pessoas, o prazo é de 30 dias (art. 72)8. Não há dúvidas de que o projeto está pautado em movimento ancorado no princípio da solidariedade de valor ético e jurídico e que atende aos interesses dos segurados, dos consumidores, de seus familiares em uma fase tão peculiar de pandemia. No entanto, não podemos deixar de observar que, caso o texto seja aprovado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Executivo, poderá haver um efeito reflexo, acarretando um aumento substancial nos prêmios dos novos seguros, onerando as novas apólices, entre outras repercussões. As mudanças legislativas, administrativas e as decisões judicias em um momento peculiar de pandemia em que se vislumbra uma tríplice crise: de gestão, sanitária e econômica, não pode deixar de avaliar as consequências pós-covid-19 e os impactos nos setores de saúde, economia, inviabilizando o desenvolvimento de certas atividades que podem afetar negativamente o próprio consumidor (art. 20 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). É preciso ter cautela e equilibrar os interesses merecedores de tutela por meio de uma interpretação pela lente da legalidade constitucional. *Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Advocacia Pública pela CEPED-UERJ. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da PUC-Rio e da pós-graduação Lato Sensu do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED-UERJ). Membro do IBDCivil, IBIOS, do IBDCont e IBERC. Advogada. **Úrsula Goulart é mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro -EMERJ. Membro da AIDA. Advogada. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 25 maio 2020. 2 Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020. 3 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020. 4 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020. 5 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. 6 A respeito do tema, merece destacar as reflexões de Angelica Carlini. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020. 7 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. 8 Disponível aqui. Acesso em 30: maio 2020.
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Renato Mello Leal "Inteligência é a capacidade de se adaptar a mudanças. A genialidade é antes de tudo a habilidade de aceitar a disciplina".Srephen Hawking Muitos e excelentes artigos jurídicos têm sido escritos e publicados, inclusive e especialmente nesta coluna Migalhas Contratuais, acerca dos impactos da pandemia da covid-19 sobre as relações contratuais. De fato, as necessárias e prudentes restrições impostas pelas autoridades públicas à maior parte das pessoas e respectivas atividades geram inevitáveis alterações em suas rotinas, hábitos e negócios, o que repercute em praticamente todos os contratos, sejam eles civis, empresarias ou de consumo, haja vista que a maioria das relações interpessoais são disciplinadas por contratos. Nesse sentido, relevante tem sido a contribuição da comunidade jurídica acadêmica na análise e divulgação dos efeitos desta gravíssima pandemia nas mais diversas espécies de contratos, inclusive e especialmente nos contratos de locação de imóveis, sejam eles comerciais ou residenciais, com suas respectivas particularidades, pois nos imóveis comerciais, via de regra, houve uma grande diminuição - quiçá impossibilidade - de fruição, enquanto que nos imóveis residenciais, por outro lado, a flagrante tendência foi de incremento na utilização, inclusive por força da quarentena que adveio da lei Federal 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispôs sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública envolvendo a covid-19, bem como do decreto Federal 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamentou a referida lei, provocando, em larga medida, o aumento da atuação profissional em home office, de tal modo que, em geral, as pessoas passaram a ficar muito mais tempo dentro de suas residências. O maior foco na análise dos impactos da pandemia nas locações imobiliárias é plenamente justificável não apenas por elas fazerem parte do cotidiano da maioria dos brasileiros, que via de regra não possuem imóveis próprios, dependendo, portanto, da locação de imóveis residenciais e comerciais de terceiros, mas principalmente pela circunstância desses contratos, quanto ao momento do seu cumprimento, serem classificados como de trato sucessivo ou de execução continuada. Ao revés, nos contratos classificados como instantâneos ou de execução imediata, os efeitos da pandemia geram pouco ou nenhum efeito, pois tanto o aperfeiçoamento quanto o cumprimento de tais contratos se operam de imediato, como é o caso, por exemplo, de uma compra e venda à vista de gêneros alimentícios em um supermercado, ou até mesmo de uma compra e venda à vista de máscaras descartáveis em uma farmácia. Neste último exemplo, é interessante observar que o motivo da contratação é a pandemia da covid-19, mas os efeitos desta sobre tal contrato são inexistentes. Por outro lado, nos contratos de execução continuada ou de trato sucessivo, dentre os quais o contrato de locação imobiliária é um clássico exemplo, o cumprimento das obrigações de ambas as partes (a do locador disponibilizando o imóvel e a do locatário pagando os aluguéis) se dá de modo sucessivo ou periódico. Não se olvide que há uma terceira categoria nessa classificação quanto ao momento do cumprimento do contrato, qual seja, a dos contratos de execução diferida, em que o cumprimento se dá de uma só vez, mas posteriormente ao momento do aperfeiçoamento do contrato, como é o caso de uma compra e venda de um bem móvel a prazo, em que o negócio se aperfeiçoa com a entrega da coisa, mas o pagamento se dá no futuro, mediante o pagamento de um boleto bancário com vencimento para dali a 30 dias, por exemplo. Não há dúvidas de que esses contratos também podem ser afetados pelas consequências da pandemia, mas as hipóteses são mais restritas e fogem do escopo do presente artigo. Voltando aos contratos de execução continuada ou de trato sucessivo, é perfeitamente possível que, no momento do aperfeiçoamento de um contrato de locação de um imóvel comercial, por exemplo, o cenário econômico, político e social seja um, que esse estado de coisas se mantenha estável inclusive por um longo período, mas que, a partir de um determinado momento, seja tal contrato direta e fortemente impactado por um evento extraordinário e imprevisível, que dificulte o cumprimento das obrigações contratuais das partes, como é o caso da pandemia que atualmente nos castiga. Mas há uma outra espécie de locação, a de bens móveis, que, a despeito de ser regida por um outro diploma legal, também é naturalmente um contrato de execução continuada ou de trato sucessivo, contrato esse igualmente impactado pelos efeitos da pandemia, mas de maneira diferente, dadas as peculiaridades que decorrem da própria natureza da coisa locada. À primeira vista, pode parecer que o contrato de locação de bens móveis seja um negócio jurídico de menor relevância econômica. No entanto, além do clássico exemplo da locação de veículos, setor econômico nada desprezível, que atende não apenas aqueles que viajam a lazer ou a negócios, mas também milhares de motoristas de aplicativos e inúmeras e gigantescas frotas de empresas diversas, como daquelas que prestam serviços de telecomunicações, há um outro segmento de grande envergadura econômica que também envolve a locação de bens móveis, qual seja, aquele que fornece para a construção civil - uma das molas propulsoras da economia nacional -, os mais diversos equipamentos auxiliares de tal atividade, tais como guindastes, gruas, elevadores de cremalheira, plataformas de trabalho aéreo, andaimes suspensos e tubulares, fôrmas para concreto, escoramentos metálicos, equipamentos de proteção coletiva, dentre outros. Diversamente da locação imobiliária, regida por legislação esparsa, especificamente pela Lei Federal n.º 8.245, de 18 de outubro de 1991, com suas alterações, promovidas, dentre outras, pela lei Federal 12.112, de 09 de dezembro de 2009, a locação de bens móveis é regida pelo próprio Código Civil de 2002, precisamente pelos artigos 565 a 578. Também de modo diferente do que ocorre com a locação imobiliária, a locação de bens móveis sofre impactos de mais fácil solução em decorrência da pandemia da covid-19, e isso em decorrência da própria natureza da coisa locada. É que na locação de bens móveis, a própria mobilidade do objeto contratual facilita a devolução das coisas locadas e a subsequente extinção do contrato, caso as partes contratantes não cheguem a bons termos quanto ao reequilíbrio econômico‑financeiro do negócio, especialmente quando os bens móveis locados estiverem empregados em atividades tidas como não essenciais. De fato, se os bens móveis locados estiverem empregados em atividades tidas como essenciais, não nos parece haver razão para a alteração das bases negociais, pois, via de regra, o locatário estará desenvolvendo normalmente as suas atividades empresariais, recebendo também regularmente as respectivas contraprestações, de tal modo que não se apresenta como razoável a sua eventual pretensão de, em tais circunstâncias, buscar a redução ou inexigibilidade temporária dos aluguéis dos bens móveis empregados na sua atividade, sob pena inclusive de violação aos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, em sua eficácia interna. A título de exemplo, imaginemos os contratos de locação de ambulâncias para o transporte de enfermos ou os contratos de locação de equipamentos metálicos auxiliares da construção de hospitais definitivos e de campanha, de obras públicas de infraestrutura e de saneamento básico, dentre outras obras inequivocamente tidas como essenciais. Sobre a essencialidade ou não das atividades em tempos de quarentena e de isolamento social, não se pode olvidar que o Brasil é um país de dimensões continentais, com grande variedade de culturas, hábitos, atividades econômicas e fluxo de pessoas. Também por essa razão, nos pareceu acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal ao reconhecer, em 15 de abril de 2020, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341, a competência concorrente dos entes federativos para, dentre outras ações administrativas e normativas, legislarem sobre a essencialidade ou não de certas atividades, pois com isso são melhor consideradas e atendidas as particularidades de cada região, inclusive no tocante à velocidade e abrangência do contágio comunitário pela covid-19. Com isso, é perfeitamente possível que uma atividade específica seja considerada como essencial num certo estado, no Distrito Federal ou num determinado município, ao mesmo tempo em que, em outros entes federativos, a mesmíssima atividade seja considerada como não essencial e, por conta disso, seja legitimamente impedida de prosseguir em operação durante o período de quarentena e de isolamento social. É justamente nesse ponto que residem as maiores dificuldades, pois, como vimos, são nas atividades não essenciais que pode se verificar de modo legítimo a necessidade de alteração das bases negociais de um contrato de locação de bens móveis e pode haver, como de fato há, uma diversidade de enquadramentos de certas atividades, Brasil afora, como essenciais ou como não essenciais. Um ótimo exemplo disso é a atividade da construção civil e a sua respectiva cadeia produtiva, aqui incluída a locação de equipamentos metálicos que lhe são auxiliares, tais como fôrmas, andaimes e escoramentos. No município de São Paulo, por exemplo, os serviços de construção civil em geral e também a comercialização de materiais de construção são consideradas atividades essenciais, nos termos do anexo único e do artigo 2º do decreto municipal 59.298, de 23 de março de 2020, alterado, dentre outros, pelo decreto municipal 59.405, de 08 de maio de 2020. Por outro lado, no Estado do Ceará, somente as obras públicas foram excepcionadas, pelo respectivo inciso VIII, da determinação de suspensão de funcionamento de que trata o artigo 1º do decreto Estadual 33.519, de 19 de março de 2020, alterado, dentre outros, pelo decreto Estadual 33.544, de 19 de abril de 2020. Como se vê, no município de São Paulo continuam em pleno funcionamento, por exemplo, as obras privadas de construção de edifícios, sejam eles residenciais ou comerciais. Todavia, no Estado do Ceará, as mesmíssimas obras estão impedidas de funcionar. Nesses locais e casos em que as obras estão suspensas por imperativo normativo, tem sido muito frequente que as construtoras locatárias notifiquem as empresas locadoras dos respectivos equipamentos auxiliares, alegando que a pandemia provocada pelo novo coronavírus seria um motivo de força maior ou um caso fortuito, pretendendo com isso eximir-se totalmente de suas contraprestações contratuais de pagamento dos aluguéis enquanto as suas obras estiverem suspensas, ainda que permanecendo na posse direta de tais equipamentos. Não é essa, no entanto, a solução jurídica que nos parece a mais adequada. Como se sabe, no que diz respeito ao inadimplemento das obrigações, o caso fortuito e a força maior estão previstos no artigo 393, caput e parágrafo único, do Código Civil de 2002. Conforme as lições de Flávio Tartuce1, caso fortuito é um evento totalmente imprevisível, enquanto a força maior é um evento previsível, mas inevitável. A despeito da distinção entre os dois institutos ser academicamente importante, tanto que é feita, muito embora com algumas divergências conceituais, pela maioria - quiçá pela totalidade - dos doutrinadores civilistas, o fato é que, na prática, tal diferenciação é de pouca relevância, quer por ser muito tênue a diferença entre as duas figuras em alguns casos concretos, quer porque a consequência prática de ambas costuma ser a mesma, qual seja, a extinção da obrigação sem consequências para as partes. Corroborando esse entendimento, vejamos os seguintes ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho2: Advertimos, outrossim, que as situações da vida real podem tornar muito difícil a diferenciação entre caso fortuito e força maior, razão por que, a despeito de nos posicionarmos a respeito do tema, diferenciando os institutos, não consideramos grave erro a identificação dos conceitos no caso concreto. Ademais, para o direito obrigacional, quer tenha havido caso fortuito, quer tenha havido força maior, a consequência, em regra, é a mesma: extingue-se a obrigação, sem qualquer consequência para as partes. Seja como for, não nos parece ser o artigo 393 do Código Civil a norma aplicável a contratos de trato sucessivo ou de execução continuada afetados pela pandemia da covid-19, isto é, àqueles contratos que geram obrigações sucessivas que se protraem no tempo, sendo o contrato de locação de bens móveis, como vimos, um clássico exemplo de tal modalidade contratual, haja vista que a prestação convencional de disponibilização do bem locado se renova mensalmente, ao mesmo tempo em que também se renova mensalmente a contraprestação obrigacional de pagamento dos aluguéis. Ora, vimos que a principal consequência do caso fortuito ou força maior é a extinção da obrigação, sem culpa, isentando as partes de responsabilidades, o que parece ir de encontro ao princípio da conservação contratual, um dos corolários da função dos contratos, especial e naturalmente naqueles de trato sucessivo. Além disso, a própria parte final do caput do artigo 393 do Código Civil traz a seguinte e expressa ressalva quanto à ausência de responsabilidade pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior: "se expressamente não se houver por eles responsabilizado". Ou seja, ainda que fosse aplicável o artigo 393 aos contratos de locação de bens móveis impactados pela pandemia do novo coronavírus, em muitos casos os locatários teriam ainda assim de responder pelos prejuízos resultantes do suposto caso fortuito ou de força maior, haja vista que é muito frequente, nos contratos de locação de móveis, que haja cláusula prevendo a responsabilidade do locatário pelos eventos decorrentes de caso fortuito ou força maior. E isso decorre do fato do locatário estar na posse direta do bem. Ora, sendo a posse um dos atributos da propriedade, é natural que as partes de um contrato de locação de bens móveis convencionem regra similar à da res perit domino, segundo a qual a coisa perece nas mãos do dono, ou, no caso, nas mãos daquele que estiver na posse direta do bem, inclusive por serem deste os respectivos deveres de guarda e conservação da coisa locada. Como se não bastasse, o artigo 575 do Código Civil de 2002, inserido no Capítulo que trata da Locação de Coisas, também prevê que é o locatário quem responde por dano decorrente de caso fortuito, valendo ressaltar que, atualmente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência conferem rigorosamente o mesmo tratamento jurídico tanto para o caso fortuito quanto para a força maior, haja vista a identidade de efeitos para ambos os institutos jurídicos. Aliás, também vimos que essa regra de que é o locatário quem responde pelos infortúnios decorrentes de caso fortuito ou força maior decorre não apenas da lei e do contrato, mas inclusive dos costumes, ou seja, das regras de tráfego, pois é intuitivo que, nos contratos em que há transferência da posse direta da coisa, quem deve responder pelos eventos de caso fortuito ou força maior é quem estiver na posse da coisa, até mesmo por influência da referida regra da res perit domino. Até aqui, parece-nos ter restado evidenciado que não é o artigo 393 do Código Civil que deve ser aplicado para os impactos da pandemia da covid-19 sobre as relações contratuais, inclusive e especialmente sobre os contratos de locação de bens móveis. Para reforçar tal conclusão, vejamos as seguintes e recentes lições de José Fernando Simão3, em artigo publicado nesta mesma coluna Migalhas Contratuais: Em tempos de coronavírus, revisitar as categorias jurídicas é preciso. Preciso, como necessário. A precisão teórica é o objetivo. (...) A força maior (e, aqui, acreditem: é inútil fazer a distinção com o caso fortuito como se verá a seguir e mais inútil ainda se fazer a distinção entre fortuito externo e interno) conta com definição legal (art. 393, parágrafo único, do CC). (...) Por que a distinção é irrelevante para se abordar os efeitos do vírus sobre as relações contratuais? A um porque não se há distinção eficacial entre o caso fortuito e a força maior (explico isso a seguir). A duas porque não se trata de caso fortuito nem de força maior a pandemia. (...) Se a prestação é exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não estamos diante da força maior em seu sentido clássico. Isso porque há uma figura específica para resolver exatamente essa situação. Há categoria própria. (...) Há uma pandemia e, por ato do Poder Executivo, os Shoppings Centers fecham. Não há público, não há faturamento. O shopping center cobra dos lojistas a componente fixa do aluguel. Há uma pandemia e o comércio de rua, por ato do Estado, fecha suas portas. Não há público e o lojista precisa pagar o aluguel. A pergunta que cabe em ambos os casos é: há uma impossibilidade de se cumprir a prestação que é pecuniária (dar dinheiro)? A resposta é obviamente negativa. Aliás o jornal Valor econômico de hoje, dia 27.03.2020, afirma que "caixa alto ajuda grandes empresas a enfrentar a crise". Segundo o jornal, 85% das companhias que tem ação na bolsa conseguem honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que ficassem 12 meses sem faturar. E metade das empresas restantes (15%, portanto) suportariam 6 meses. São 97 empresas não financeiras que fazem parte do IBOVESPA e do Índice Small Caps. (...) Há setores da economia realmente colapsados pelo caos pandêmico e o confinamento preventivo. Alguns contratos têm o sinalagma afetados por conta das mudanças profundas verificadas entre o momento de sua celebração e o de sua execução. A alteração radical da base do negócio exige que se busque um reequilíbrio das prestações, se possível, ou sua resolução, se impossível. (...) Assim, a base jurídica da revisão contratual será, em leitura alargada, o art. 317 do Código Civil. In verbis: Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. (...) Em notas conclusivas, podemos afirmar que será intenso o trabalho do Poder Judiciário para garantir a conversação dos contratos firmados pré-pandemia, ou seja, 20 de março de 2020. A tendência de resolução do contrato, bem como de suspensão total de seus efeitos é nefasta ao equilíbrio contratual e ao sistema jurídico como um todo, com gravíssimos reflexos econômicos. Como se vê, a pandemia da covid-19 pode, em tese, configurar hipótese de onerosidade excessiva para uma das partes, o que permitiria a revisão contratual, nos termos do art. 317 do CC, a fim de se restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, mas não se admite, em absoluto, a simples exoneração de responsabilidades do devedor por suposto motivo de caso fortuito ou força maior. E mais, em se tratando de contrato de execução continuada ou de trato sucessivo, como é o caso do contrato de locação de bens móveis, o dispositivo legal efetivamente aplicável é o art. 478 do Código Civil, que assim preceitua: "Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". Registre-se, por oportuno, que o artigo 478 do Código Civil exige a presença de diversos requisitos concomitantes, dentre eles a "extrema vantagem para a outra" parte do contrato, em contraposição à onerosidade excessiva verificada para uma delas. Não nos parece despropositado admitir que a pandemia da covid-19 seja um acontecimento extraordinário e imprevisível. Também é possível admitir que em razão disso teria surgido uma onerosidade excessiva para o locatário, especialmente quando este estava empregando a coisa locada em uma atividade regionalmente considerada como não essencial. Mas não nos parece razoável admitir que tais circunstâncias provoquem "extrema vantagem" para a locadora, muito pelo contrário, pois é de se presumir que a locadora dos bens móveis também esteja sofrendo intensamente todos os impactos da pandemia da covid-19, com queda abrupta no fechamento de novos contratos, aumento significativo da inadimplência de seus clientes e subsequente redução dramática de suas receitas. Feitas todas essas ponderações, parece-nos que, diante da pandemia da covid-19, as alternativas que estariam legitimamente à disposição dos locatários de bens móveis, especialmente daqueles que empregam as coisas locadas em atividades não essenciais, seriam as seguintes: a) pleitear amigável ou judicialmente a revisão do contrato, por onerosidade excessiva, nos termos do artigo 317 do Código Civil, a fim de que se restabeleça o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; ou b) resilir unilateralmente o contrato, contanto que antes proceda à devolução à locadora das coisas locadas. Registre-se que a renegociação das bases do contrato é a meta a ser buscada, tanto por uma questão de respeito ao princípio da conservação contratual, desdobramento da eficácia interna da função social dos contratos, quanto porque o locador, ao se deparar com as dificuldades do locatário que teve as suas atividades suspensas em decorrência da pandemia, seja por força do princípio constitucional da solidariedade social ou da fraternidade, seja por uma questão de cooperação, dever anexo ao princípio contratual da boa-fé objetiva, tem o dever de renegociar. REFERÊNCIAS GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 2: obrigações - 20. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019. SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas Contratuais. 03 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.2: direito das obrigações e responsabilidade civil - 12. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor da pós-graduação do Centro Universitário Mackenzie. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado em SP. **Renato Mello Leal é mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade FADISP. Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de artigos jurídicos. Advogado em SP. __________ 1 TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.2: direito das obrigações e responsabilidade civil - 12. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 214. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 2: obrigações - 20. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 325. 3 SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas Contratuais. 03 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020.
Texto de autoria de Ronnie Preuss Duarte A Covid-19 e as modificações das obrigações: rebus sic stantibus x pacta sunt servanda Sabe-se que há muitos séculos o direito civil lida com a permanente tensão entre a autonomia privada (e a força vinculativa do contrato) e o imperativo de justiça, a recomendar a revisão de ajustes que se tornem marcadamente iníquos1. Historicamente, desde o século XII, o direito testemunha um movimento pendular que ora prestigia estritamente o que foi contratado (pacta sunt servanda), ora admite a consideração das alterações supervenientes ao status quo contemporâneo à contratação (rebus sic stantibus)2. Nos últimos tempos, por influxo do liberalismo no Brasil, havia franca opção por enfatizar a força vinculativa dos contratos, o que se extrai, inclusive, de vários dispositivos da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Contudo, em razão dos acontecimentos recentes e consoante já se percebe, haverá uma tendencial mitigação, por parte dos tribunais, da afirmada vinculatividade. Reforça-se a responsabilidade dos juízes na criação de padrões decisórios claros para a construção de uma jurisprudência que atenda aos reclamos do momento com o necessário equilíbrio e sem incorrer em qualquer dos pecados capitais: a omissão conveniente ou o intervencionismo exagerado. Nesse contexto singular, aos juízes é confiada a excelsa responsabilidade de, dentro do sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu inaugurar, clarear os caminhos e dar densidade a preceitos normativos resultantes da aplicação do direito a casos concretos, construindo um indicativo estável para todos aqueles envolvidos no tráfego jurídico. Aqui, o esforço é pela delimitação de um novo âmbito de legitimidade interventiva (ou seja: quando a intervenção do Judiciário será legítima), afastada, de logo, a abertura de uma via irrestrita para juízos de equidade, hipótese expressamente interdita em expressa previsão legal (parágrafo único do art. 140 do CPC). Neste ensaio, pretende-se a enunciação de critérios gerais para a atividade decisória no contexto presente, como forma de trazer alguma previsibilidade diante de um ambiente novidadeiro e, com isso, fomentar a segurança jurídica essencial à estabilidade das relações econômicas3. Revisão dos contratos: alteração das circunstâncias e a (re)distribuição dos riscos São várias as teorias doutrinárias voltadas à enunciação dos pressupostos e limites à revisão dos contratos, com particular destaque para a alteração da base do negócio (Geshäftsgrundlage), adotada explicitamente pelo Código Civil Alemão e pelo legislador português4. A regra em qualquer país situado em patamares avançados de desenvolvimento civilizatório é o estrito cumprimento ao quanto pactuado. Cuida-se, para além de imperativo da segurança jurídica, de requisito essencial à sanidade econômica de qualquer nação. As exceções dependem do atendimento aos pressupostos indicados no respectivo ordenamento jurídico. Assim é aqui no Brasil5. Na verdade, subjacente ao regime jurídico das relações obrigacionais está posta uma matriz de distribuição de risco. Aos sujeitos no tráfego jurídico são imputados riscos pelas superveniências, sendo certo que "as normas de risco não são meros postulados técnicos: elas correspondem a imperativos de justiça"6. Os prejuízos eventualmente sofridos recaem nas esferas jurídicas nas quais se verifiquem, daí a origem de expressões cujas origens remontam ao período justinianeu: res perit domino, casum sentit dominus, casum sentit creditor, the loss lies where it falls. Nos contratos sinalagmáticos, a regra da distribuição de riscos sugere que, tornando-se inviável a entrega da prestação por um dos contratantes, sem culpa deste, extingue-se a obrigação da contraparte (casum sentit creditor)7. A assunção de riscos é uma expressão da autonomia privada. É da essência da economia contratual que uns ganhem e outros percam no âmbito das relações negociais. Ao contrário do que pretendem alguns, não há norma geral que assegure, mediante um juízo de equidade, a redistribuição de prejuízos resultantes do malogro de qualquer dos contratantes por fatos supervenientes, ainda que decorra de circunstância injusta e inesperada. A partir da leitura dos dispositivos legais que admitem a revisão de contratos, infere-se uma limitação à respectiva admissibilidade. Há quase que um consenso no sentido de que só as alterações objetivas, relacionadas à prestação, é que relevam para fins de perquirição da revisibilidade8. Àquele que perde o emprego ou é acometido por moléstia grave não é dado, por exemplo, pretender eximir-se do pagamento das prestações pecuniárias por ele assumidas9. São as alterações na economia interna do contrato que podem atender aos pressupostos à revisão (ou à resolução) dos contratos. Nem a desgraça pessoal, nem a ventura trazida em superveniência é motivo suficiente para uma alteração nos ajustes contratuais. Os ganhos inesperados e as perdas imprevistas são da fisiologia das relações negociais10. No que toca ao reforço da excepcionalidade da revisão dos contratos civis em nosso ordenamento, temos de aludir às alterações da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) ao Código Civil, designadamente a previsão contida no respectivo artigo 421 do CCB11. Também digna de nota a previsão do art. 421-A, na qual se estabelece a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais, prevendo expressamente que "a revisão contratual, quando cabível, somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada". Cuidam-se de opções políticas legítimas do legislador que, em atenção à previsibilidade que convém à atividade econômica, claramente limita as intervenções judiciais nos contratos, operando-se na hipótese as regras ordinárias de distribuição de riscos. O dispositivo, mesmo em situações emergentes da Covid-19, serve de norte hermenêutico. A absoluta singularidade das circunstâncias presentes, os padrões decisórios e a jurisprudência de exceção; Não se pode desconsiderar a magnitude das repercussões sociais da pandemia da Covid-19, as quais se revelam absolutamente imprevisíveis. A analogia com as grandes conflagrações bélicas é mais que adequada. A doutrina reconhece fenômenos assemelhados como desencadeadores de efeitos jurídicos singulares, notadamente no campo das relações obrigacionais. Juristas portugueses e alemães inserem-nos na categoria conceitual das "grandes alterações das circunstâncias" ou "grande base do negócio"12. A história dá conta de grandes desenvolvimentos que foram incorporados ao direito na sequência de aplicações vanguardistas de institutos jurídicos realizadas em momentos de crise. Sobre o ponto, há interessante estudo de LOBBAN tratando especificamente dos impactos jurídicos da Primeira Grande Guerra em vários países europeus13. A tendência é que, pelo menos para a regulação dos efeitos jurídicos da pandemia, construa-se uma jurisprudência de exceção, que deverá atender à finalidade precípua de solucionar os significativos desafios do momento. É confiada aos juízes a missão de velar pela criação de padrões decisórios claros, evitando casuísmos animados pelo sentimento de comiseração e permitindo que a justiça seja administrada com observância à igualdade reclamada para todos os cidadãos em situação idêntica. A responsabilidade é enorme, já que, por razões óbvias, magistrados não possuem o conjunto de informações necessário à aferição dos efeitos macroeconômicos dos padrões decisórios que venham a ser estabelecidos. MENEZES CORDEIRO anota que ao juiz cabe a ponderação dos efeitos da decisão não apenas no caso concreto, mas também na sociedade, considerados os casos análogos que mereçam idêntico tratamento14. Em situações de perdas generalizadas, a multiplicação de decisões em casos individuais pode trazer reflexos econômicos extremamente perniciosos e imprevistos, levando à paralisia ou à quebra de agentes econômicos ou de segmentos empresariais importantes. Este será um ponto sempre digno de consideração. Bem por isso há de se ter, como condição à utilização de um importante sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu criar, uma preocupação singular na densificação de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, trazendo previsibilidade e ensejando uma uniformidade da aplicação do ordenamento jurídico. Assim, reforça-se o dever de observância aos elementos da decisão previstos no art. 489 do CPC. O dever de solidariedade contratual como uma manifestação da boa-fé. O desenvolvimento da doutrina da boa-fé, contudo, deu-se na Alemanha a partir da vigência do BGB em 1900. A partir do § 242 do BGB, consagradora de uma norma "aberta", construções doutrinárias e jurisprudenciais desenvolveram figuras que se consolidaram, influenciando subsequentemente vários códigos europeus. A resolução por onerosidade excessiva, a revisão contratual, a lesão e o estado de perigo são figuras associadas originalmente à boa-fé. Diz-se que a referência à boa-fé é "uma das janelas do sistema", apta à promoção da oxigenação do direito15. E em momentos de aguda crise, como aquele agora vivenciado, o recurso à boa-fé é ferramental de grande utilidade para juristas e aplicadores do direito. É, para usar a metáfora empregada por GALLO ao tratar dos conceitos jurídicos indeterminados, um "cheque em branco" ou uma "delegação" que o legislador concede à jurisprudência e ao intérprete16. As figuras da onerosidade excessiva e da supressio são dois exemplos de construções que, partindo da cláusula geral da boa-fé, vieram a ser consagradas na doutrina e na jurisprudência no contexto de crise decorrente de conflitos bélicos17. Inclusive, no caso da onerosidade excessiva, com a positivação de disciplina autônoma em vários ordenamentos jurídicos alterados sob inspiração alemã, dispensando-se a partir de então o recurso à cláusula geral18. Aqui no Brasil, para os fins perseguidos no presente trabalho, é de se referir à doutrina de SCHREIBER que, nestes tempos de pandemia tem angariado muita simpatia, por potencialmente servir de apanágio para a litigância excessiva que se prevê em razão da crise instalada. Em livro lançado em 2018, o jurista carioca defende, a partir da boa-fé objetiva (art. 422 do CPC), a criação de um dever de renegociação dos contratos em desequilíbrio. Para o autor, verificada uma situação de desequilíbrio contratual e sem a necessidade de previsão normativa específica, impõe a cláusula geral da boa-fé que o atingido , como dever anexo, cuide de "avisar prontamente à contraparte acerca do desequilíbrio contratual identificado", existindo a partir daí um "dever de ingressar em renegociação com vistas a obter o reequilíbrio do contrato". O dever de cooperação quedaria violado no caso de inércia diante do convite à renegociação. Não haveria, segundo SCHREIBER, a obrigação de aceitar a propostas, mas tão-somente o de entabular tratativas sérias com vistas ao reequilíbrio contratual, endereçando respostas em tempo razoável: a pronta interação e a comunicação satisfariam o dever lateral. Seria uma "obrigação de meio" e não de resultado19. O dever de renegociação, de inegável relevo nestes tempos pandêmicos, insere-se, como dito, num dever mais amplo de cooperação. A sua incidência, com a devida documentação, é de suma relevância para os fins de prova da violação do dever de solidariedade, nas condições presentemente defendidas. Mas o dever de cooperação pode ser visto em maior amplitude em circunstâncias absolutamente extraordinárias. ERHARDT JUNIOR, em escrito publicado em 2007, tratou dos reflexos do princípio constitucional da solidariedade, admitindo a possibilidade de se impor, nas relações contratuais, "atos de auxílio mútuo (colaboração), a partir de uma perspectiva solidarista". Na altura já advertia para a necessidade de cuidar "para que tal doutrina não se torne justificativa ideológica a um intervencionismo desorientado"20. A jurisprudência traz exemplos concretizadores do solidarismo contratual, a exemplo dos incontáveis precedentes do Superior Tribunal de Justiça reafirmando, há muito, a teoria do adimplemento substancial. Em acórdão relatado pelo ministro ROSADO DE AGUIAR, à míngua de expressa previsão legal, entendeu-se que "não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerado o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora"21. Mais recentemente, em acórdão relatado pelo ministro VILLAS BOAS CUÊVA, acolheu-se a exceção de ruína para alterar o regime de um plano de saúde coletivo cujo regime, se mantido, seria ruinoso para a empresa fornecedora, levando-a potencialmente à quebra da sociedade com prejuízo para todos os conveniados. Houve uma oneração coletiva dos consumidores para assegurar a manutenção da atividade econômica em benefício comum. É de se destacar a referência expressa, no acórdão, à "função social do contrato e solidariedade intergeracional, trazendo o dever de todos para a viabilização do próprio contrato de assistência médica". Registrou-se, ainda, na altura, a existência de "vedação da onerosidade excessiva tanto para o consumidor quanto para o fornecedor (art. 51, § 2º do CDC)"22. Os princípios constitucionais da solidariedade (art. 3º, I, da CF) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), apesar de banalizados, merecem referência por encontrarem, nos precedentes acima referidos, bem como na proposta agora apresentada, alguma concretização. Com efeito, é de se reconhecer, em determinadas situações extraordinárias, um dever de solidariedade nas relações contratuais. Não sob uma perspectiva romântica que imponha o dever moral de auxílio e de repartição equânime de perdas em ambiente de interesses legítima e essencialmente antagônicos, como sói ocorrer no âmbito das relações contratuais. Uma solidariedade que, destaque-se, é recíproca e não se dirige necessariamente ao contratante hipossuficiente. Nas relações de massa, em situações extremas, a imposição de uma conduta solidária e de pequenos sacrifícios em desfavor de uma coletividade de contratantes afigura-se possível. A proteção transitória da contraparte, em teoria economicamente mais forte, pode se fazer necessária para a preservação de organismos econômicos e até de setores da economia, atendendo-se ao bem comum23. Em tempos de sofrimento extraordinário e com base na boa-fé, o que se afirma é a possibilidade residual, em situações-limite, do juiz, ponderando as circunstâncias presentes no caso concreto, inclusive as condições subjetivas (pessoais) dos litigantes, proceder à mitigação de prejuízos escandalosos a uma das partes, sempre que a medida em causa impuser perdas mínimas à contraparte. É oportuno frisar que, considerado o contexto da pandemia, mesmo fora do âmbito das relações contratuais, o solidarismo também pode ser imposto por violação à boa fé subjetiva, agora já com base no art. 187 do CCB. Assim, sempre que na situação específica o exercício de direito subjetivo (inclusive direitos potestativos) ou de posição jurídica individual se configurar como extremamente lesiva a outrem, sem benefício correspondente para o respectivo titular, poderá o juiz determinar as medidas adequadas para a asseguração do dever de solidariedade. A figura tem aplicabilidade potencial em relações familiares, condominiais e societárias24. Delimitando o âmbito extraordinário de incidência do dever de solidariedade; O grande desafio, no presente ensaio, é delimitar o âmbito de incidência do dever anexo em causa, evitando a generalização de juízos de equidade e a disseminação de insegurança jurídica. A solidariedade que aqui se defende é limitada. Atende a situações específicas que exsurgem da pandemia. Se faz presente quando estiver, de um lado, parte exposta transitoriamente à iminente percepção de grave prejuízo patrimonial ou pessoal e, do outro, uma contraparte que não experimentará maiores danos com o retardamento do cumprimento ou com a temporária modulação da prestação de acordo com critérios de equidade. Imaginemos a situação de um microempresário atuante num pequeno comércio ambulante que, em virtude do isolamento, tenha sofrido solução de continuidade operacional transitória, incorrendo em mora e passando severa privação. Imaginemos, ainda, que o veículo utilizado para a atividade comercial tenha sido ofertado em garantia a um grande banco, comprovando-se que, nas tratativas de renegociação, foi solicitada a postergação do vencimento para a oportunidade normalização das atividades comerciais, garantido o pagamento de todos os encargos contratados. Em situação assemelhadas, visando a preservação do crédito do devedor e os prejuízos decorrentes da excussão da garantia, viável será a concessão de tutela jurisdicional para a suspensão temporária do pagamento, já que o banco credor não quedará exposto ao risco de percepção de prejuízos significativos. Importante frisar que o dever de solidariedade é recíproco. Não se destina à proteção exclusiva de hipossuficientes ou de parte individualmente mais fraca. Grandes grupos empresariais podem ser beneficiários da norma. Em relações jurídicas homogêneas massificadas, por exemplo, a revisão ou a resolução de contratos em escala poderá comprometer a continuidade das atividades empresariais da contraparte, justificando a atuação da norma, desde que preenchidos os pressupostos. Pela natureza excepcional, é de se recusar a respectiva incidência, por exemplo, de maneira indistinta a relações jurídicas massificadas e sem a consideração às particularidades individuais (de cada caso concreto). É de se evitar a sua aplicação no âmbito das ações coletivas, dada a dificuldade de se considerar a situação singular de cada indivíduo do grupo (substituídos no processo). A concessão linear de descontos ou moratórias é algo que pode impingir inaceitável dano à contraparte credora que também estará, provavelmente, atravessando período de crise. É de se recusar, ainda, a aplicação do dever de solidariedade quando não houver desproporção entre a gravidade das repercussões nas esferas pessoais de ambos os contratantes. À guisa de exemplo, utilizemo-nos do mesmo exemplo trazido acima, do microempresário ambulante, todavia substituindo o banco credor por uma pessoa física igualmente afetada em seus rendimentos por força da Covid-19 e, portanto, com problemas de iliquidez. Ausente a desproporção, forçoso o afastamento da incidência do dever de solidariedade, cuja aplicação é circunscrita a situações excepcionais. Dever de solidariedade em sua dimensão processual; A dimensão processual do dever de solidariedade é admissível por força da previsão contida no art. 8º do CPC, para o qual, "ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade e a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência". É na concretização do direito material, tornado efetivo por intermédio do processo sempre com a necessária atenção ao bem comum e à preservação da dignidade da pessoa humana que se abre a possibilidade das repercussões processuais do dever de solidariedade decorrente da boa-fé. Dá-se como exemplo as situações de violação às obrigações contratuais já judicializadas, quando da execução de decisões definitivas ou provisórias. Estas, no presente momento, podem eventualmente materializar a violação do dever de solidariedade. A superveniência da pandemia é hipótese em que se defere ao réu a dedução de novas alegações nos autos (art. 342, I, do CPC), sendo ela um fato público e notório a dispensar a produção de prova (art. 374, I, do CPC). O art. 493 do CPC permite, aliás, que, ouvida a adversa parte para evitar a prolação de decisão surpresa (nos termos do respectivo parágrafo único), o fato modificativo seja passível de conhecimento oficioso pelo juiz. Também o art. 933 do CPC permite a respectiva consideração oficiosa, por parte do relator, em grau de recurso. A noção de "fato modificativo", para os fins aqui colimados, merece uma interpretação extensiva. Cuida-se de um fato novo ensejador do impedimento temporário para a execução de decisão25. Se, por ocasião da prolação da decisão e à luz do conjunto probatório existente, o juiz ou o relator constatarem situação em que o dever de solidariedade se apresenta, poderá retardar o cumprimento da decisão judicial, atendidos os pressupostos já indicados, nomeadamente a ausência de prejuízo de maior monta a ser suportado pelo beneficiário da tutela jurisdicional. Imaginemos, por exemplo, uma relação locatícia envolvendo como locador um abastado industrial e como locatário sem recursos e cujo contrato de trabalho foi rescindido por força das consequências da Covid-19, tornando-se inadimplente em plena situação de "lockdown". Independentemente de qualquer previsão normativa, com base no dever de solidariedade que resulta da cláusula geral da boa-fé, o juiz poderia retardar extraordinariamente a efetivação do despejo. No caso de ações em curso, admitida a possibilidade de consideração de superveniências fáticas, poderia o juiz suspender a execução do despejo ou, em grau de recurso, conceder-se efeito suspensivo temporário, até a normalização das atividades sociais. *Ronnie Preuss Duarte é diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia do Conselho Federal da OAB. __________ 1 TERRANOVA registra expressamente que parte da doutrina e da jurisprudência encontram o fundamento da cláusula rebus sic stantibus na equidade. Pode-se afirmar, então, ser ela um mecanismo para concretização do sentimento de justiça contratual no caso concreto (TERRANOVA, Carlo G. Il Codice Civile Commentario - L'eccessiva onerosità nei contratti. Milâo: Giuffré, 1995, p. 17) 2 MENEZES CORDEIRO traz o escorço histórico, anotando expressamente quanto à cláusula rebus sic stantibus uma "evolução pendular quanto ao tema: os juristas do século das luzes vieram a apoiar e, depois, a desamparar, de novo, a doutrina da clausula". (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV. p. 269) 3 OTERO afirma expressamente que uma das emanações da segurança jurídica é a "garantia decorrente da previsibilidade de que tais decisões concretas se traduzirão na aplicação ao caso individual de critérios já fixados em termos gerais por normas jurídicas antecipadamente conhecidas". (OTERO, Paulo. Lições de introdução ao estudo do direito. Lisboa: Pedro Ferreira, 1998, vol. 1, t. I, p. 204 4 Na sua concepção original, construída por OERTMANN, base do negócio "consiste na representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou na representação comum aos vários intervenientes, sobre a existência de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a firmação da vontade". (ALMEIDA COSTA, Mário Julio. Direito das Obrigações. Coimbra: Almedina, 2004, p. 295.)) 5 Sobre os pressupostos ver TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. ún. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 438-439) 6 MENEZES CORDEIRO, idem, p. 296 7 "Nos denominados contratos bilaterais, o risco, de algum modo, distribui-se pelas partes: o credor vê desaparecer o seu direito pela impossibilitação da prestação, mas exonera-se da contraprestação, tendo a faculdade, se já a houver realizado, de a reaver nos termos do enriquecimento sem causa". (MENEZES CORDEIRO, idem, p. 295) 8 "Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença, tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações, porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só o enriquecimento de um e empobrecimento do outro". (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 1913-2004. Instituições de Direito Civil: volume 3: contratos, rev. e atual. Caitlin Mulholland. - 22. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 180-181) 9 Nesse contexto, entendeu o STJ que, para justificar a revisão contratual, seria necessário fato imprevisível ou extraordinário, que tornasse excessivamente oneroso o contrato, não se configurando como tal eventual desemprego ou redução da renda do contratante. (...). Esta Corte já decidiu que tanto a teoria da base objetiva quanto a teoria da imprevisão "demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato" (AgInt no REsp 1.514.093/CE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJe de 7/11/2016), não sendo este o caso dos autos. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 1.340.589/SE, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 27/05/2019) 10 Como bem lembra VARELA, tratando especificamente de uma compreensão bastante restritiva do que se entende impossibilidade de cumprimento, afastando-se o infortúnio pessoal como escusa para o inadimplemento: "A dureza que a solução possa revestir em certos casos, forçando o devedor a sacrifícios aparentemente excessivos para cumprir, não é ao direito civil, através do afrouxamento do vínculo obrigacional, que compete atenuá-la, mas ao direito processual civil, impedindo na acção executiva a penhora e a venda judicial de bens essenciais à vida e ao sustento do executado e de seu agregado familiar" (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, p. 73) 11 Art. 421, parágrafo único do CCB - "Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". 12 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV, p. 326 13 LOBBAN, Michael. Special issue the Great War and private law: Introduction Lobban. Reino Unido: Hart, 2014, p. 165, consultado em 12.5.2020 no endereço eletrônico. Também VARELA dá conta que, na Alemanha, durante primeira guerra mundial, houve um alargamento do conceito de impossibilidade de cumprimento da prestação para fazer frente ao contexto existente. Na altura, alguns setores da doutrina alemã "consideravam liberatória, em certos termos, a mera impossibilidade relativa ou econômica" (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, pp. 68-69) 14 "Perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode, perante as outras, ter consequências distorcidas: a sua ponderação requer a instrumentalização própria dos departamentos técnicos que é suposto auxiliarem o legislador na sua tarefa. Por outro lado, a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes, e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador." (Idem, p. 329) 15 VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil: relatório. Lisboa: Editora FDUL, 2000, p. 65 16 Diz o autor, ainda, que seriam "um tipo de anel de conjunção ou de ligação entre aquela que é esfera típica do legislador e aquele que é, por seu turno, o campo de ação do intérprete e do juiz". (GALLO, Paolo. Buona fede oggetiva e transformazioni del contrato. Rivista di Diritto Civile. Pádua: Editora Cedam, n. 2, mar-abr, 2002, p. 240) 17 NEVES também lembra de decisão do Supremo Tribunal Alemão que, no contexto de crise imediatamente posterior à Primeira Grande Guerra admitiu a "Aufwertung" (reavaliação da moeda). (NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. Rio: Editora GZ, 2018, p. 198) 18 MENEZES CORDEIRO, em afirmativa expressamente refutada por LOBBAN, registrou que "a grave crise econômica registrada na Alemanha, no espaço entre as duas guerras, levou a jurisprudência a reconhecer definitivamente eficácia à alteração das circunstâncias, em nome da boa fé" (idem, p. 274). Em outra obra, sobre a surrectio, ver, do mesmo autor, o Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, v. 1, 1999, p. 206. 19 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, kindle, Pos 4864 de 12806 e ss. 20 ERHARDT JUNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque. O princípio constitucional da solidariedade e seus reflexos no campo contratual. publicado em 05/2007 no sítio, em consulta realizada em 13/5/2020 21 REsp 469.577/SC, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 25.3.2003, DJU 05.05.2003, p. 310 22 Resp 1479420/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 01.09.2015, DJe 11.09.2015 23 Anote-se que a medida de normatização de um regime emergencial deve ser adotada preferencialmente pelos poderes Executivo ou Legislativo, como ocorreu com as medidas provisórias 925/2020 e 948/2020, quando um regime especial foi instituído para a proteção dos setores da aviação civil, do turismo e da cultura. Contudo, em situações extremas, consideradas as circunstâncias, também o estado-juiz poderá fazê-lo. Como já indicado, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a exceção de ruína para adequações em relações coletivas. 24 Como bem pontuado por MENEZES CORDEIRO, "as instâncias de decisão - maxime, os tribunais - foram levadas, com ou sem o apoio da doutrina, a encontrar novas soluções, por vezes mesmo contra legem. Instáveis no início, essas soluções vieram a cristalizar-se em institutos que hoje ninguém poria em dúvida' e conclui dizendo que "apenas a inventividade permitirá encontrar soluções ainda redutíveis ao Direito e não ao mero arbítrio" (Idem, p. 265). 25 Apesar da ausência menção expressa no texto legal no que toca a atendibilidade superveniente dos fatos impeditivos (em particularidade que é comum ao CPC/73), CUNHA observa que "os fatos impeditivos podem, entretanto, ser objeto de conhecimento superveniente, devendo, então, ser considerados inseridos na previsão legal". (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 91).
Texto de autoria de Bruno Casagrande e Silva, Jânio Urbano Marinho Júnior e Ricardo Alves de Lima Em dezembro de 2019 a realidade como conhecíamos até então deixou de existir. A OMS declarou que um vírus originado na China tomou proporções de pandemia, com potencial de repetir o efeito devastador da gripe espanhola do começo do século XX, uma das mais mortais pandemias que o mundo já havia experimentado. José Fernando Simão1, em precisa reflexão, propõe que vivíamos uma Belle Époque - que ele se refere como a Realidade A - que acabou, no Brasil, no dia 11 de março de 2020, quando passamos a viver uma nova realidade, a Realidade B, temporária e fugaz, porém fortemente marcada pelos efeitos da Covid-19 em toda a sociedade, nos diversos ramos contratuais inclusive. Os efeitos econômicos da paralisação da humanidade são evidentes e dispensam aprofundados estudos para a sua constatação. Os seus efetivos impactos somente serão apurados no futuro, porém há impactos imediatos que já são sentidos por todos. Assim, não tardou a distribuição de processos judiciais, em sua maioria empresariais, visando postergar ou revisitar os contratos até então vigentes no afã de se precaver de eventuais problemas financeiros ou mesmo visando benefícios oportunistas. Se aqui, no Brasil, ainda estamos discutindo o PL 1.179, de 2020, nossos irmãos portugueses rapidamente declararam estado de emergência, em 18 de março de 2020, e aprovaram a Lei nº 4-C, em 6 de abril de 2020, buscando solucionar alguns dos problemas relativos aos arrendamentos de imóveis habitacionais ou não-habitacionais2, impondo uma moratória contratual indiscriminada aos contratos lá celebrados já aplicável às rendas vencidas a partir de 01 de abril de 2020. Segundo o artigo 1º da lei 4-C, trata-se de "um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica provocada pela doença Covid-19", que se aplica, em linhas gerais, no caso de arrendamento habitacional, quando ocorrer uma redução da renda familiar do arrendatário superior a 20% e comprometimento percentual dessa renda acima de 35% (artigo 3º). A moratória, também, é aplicável ao arrendamento urbano não habitacional nas hipóteses do artigo 7º da mesma lei, que se refere basicamente às situações de suspensão das atividades empresárias em razão da COVID-19, podendo, nos termos do artigo 8º, o pagamento ser diferido para depois do término do período emergencial, com o pagamento sendo feito parceladamente, em 12 meses, no grão mínimo de um duodécimo mensal. O regime excepcional português proíbe a cobrança de mora, de indemnização (multa) e a resolução de contratos, sendo que a caducidade3 (fim de vigência) dos contratos de arrendamento urbano habitacional também foi suspensa por 3 meses, para não prejudicar as famílias arrendatárias. Não se olvide, em primeiro lugar, que a doutrina brasileira já vem defendendo a necessidade de uma lei para estabilizar o mercado e dar tranquilidade ao cidadão. Uma primeira tentativa, como já dito, está se dando no PL 1.179, de 2020, que foi aprovada no Senado Federal e tramita na Câmara dos Deputados em uma espécie de fast track, afastando a concessão de liminar para desocupação em algumas hipóteses, entre elas, o termo do contrato por tempo (artigo 59, §1º, incisos VIII e IX da lei 8.245, de 1991). Sob esse aspecto, não se pode negar a ousadia do legislador português em trazer uma ampla regulamentação do tema em tão breve período. O projeto brasileiro, que foi originalmente proposto pelo Senador Antonio Anastasia, propunha "suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020", quando os locatários residenciais eventualmente experimentassem alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração (artigo 10 do projeto original). Esse dispositivo não consta do texto aprovado no Senado Federal e enviado para a Câmara dos Deputados, mudança que desde já, consideramos positivas, pelos motivos que passamos a tecer. Já se pode perceber, quer pela solução dada em Portugal, quer pela atual discussão legislativa no Brasil, que a possibilidade de moratória ou mesmo a suspensão parcial do contrato de locação residencial é polêmica4. José Fernando Simão afirma que "a pandemia que gera desemprego ou redução de remuneração não altera o sinalagma contratual e não é motivo (em termos jurídicos) para a revisão contratual", pois não há restrições ao uso do imóvel5. A par da discussão, o fato é que já se tem notícia de dezenas de decisões judiciais, ora sendo extremamente benevolentes com os locatários, ora adotando uma linha mais restritiva. No caso brasileiro, observando a produção das decisões judiciais organicamente, nos parece que se caminha para uma busca de solução mais casuística, diversamente da opção portuguesa. Se o problema da moratória irrestrita, adotada por Portugal, parece ser o engessamento da mesma solução frente a situações, certamente diferentes juridicamente, no Brasil, a discussão caminha para uma busca de critérios mais adequados para os diferentes casos assemelhados que já começam a assoberbar o Poder Judiciário, ainda que com muitos equívocos. À guisa de exemplo de opções equivocadas, com a devida vênia, apresentamos a decisão da 8ª Vara Cível da Comarca de Campinas, em São Paulo, que concedeu medida liminar em favor um restaurante localizado em praça de alimentação de shopping suspendendo o pagamento do aluguel mínimo mensal e do fundo de promoção e propaganda enquanto o shopping permanecer fechado por determinação do poder público6. Note-se, por exemplo, que nesse caso, ainda que se trate de tutela provisória, a magistrada impõe moratória que, se repetida na totalidade de lojistas, pode comprometer a própria existência do shopping como um todo. A situação não seria menos grave que, ao arrepio da realidade atual - onde o diálogo e transação são as melhores soluções aos problemas, a magistrada decide pela não realização de audiência de conciliação por pressupor a impossibilidade de composição consensual entre as partes, sem sequer ouvir a parte ex adversa. Um ponto que deve ser observado no modelo brasileiro é que as locações residenciais e não-residenciais são influenciadas por princípios diversos do Direito. Enquanto nas locações residenciais são regidas pelo direito fundamental à moradia, oportunamente previsto no caput do artigo 6º da Constituição Federal, a locação não-residencial deve ser analisada à luz do princípio da preservação da empresa. Portanto, de fato, não parece ser razoável conferir a mesma solução jurídica, de forma indiscriminada, para as locações residenciais, que - como dito - não traz restrições ao uso do imóvel, e para as locações não residenciais, em que o próprio Poder Público impôs restrições duras aos empresários. Certamente, um aspecto que merece ser considerado na moratória irrestrita é o possível incremento da crise econômica que pode causar (ou que possivelmente ocorrerá) e que não pode ser ignorado pelo Direito brasileiro, até mesmo porque, segundo o artigo 20 da LINDB, atualmente, "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Sob outro aspecto, não se deve ignorar que a locação residencial se relaciona com o direito constitucional à moradia. Ainda que, de fato, não haja alteração no sinalagma contratual, o Direito não pode desprezar esse aspecto, que parece ter sido considerado pelo projeto de lei ao limitar a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo (artigo 9º). A questão que se coloca, portanto, é se isoladamente esse instrumento processual seria capaz de adequadamente equilibrar as situações econômico-financeiras das partes no contrato de locação. Em coluna eletrônica, Anderson Schreiber7 aponta aquele que acreditamos ser o melhor caminho a ser seguido no Brasil, a adoção cautelosa na análise do contrato, casuisticamente, observando-se a boa-fé objetiva e o dever de indenizar. Acreditamos que a medida mais adequada é que, considerando a disponibilidade dos bens tutelados, não seria um modelo semelhante ao português, que - com uma solapada indiscriminada - impôs uma moratória que necessariamente depende de prova de situação fática para ser aplicável, o que com certeza, em razão da nossa cultura negocial brasileira, resultaria no mesmo volume de demandas para comprovação dos fatos questionados perante o Poder Judiciário, gerando uma avalanche processual de mesma intensidade caso a opção fosse pela inércia legislativa. O incentivo e desenvolvimento da mediação e da arbitragem é a solução que nos parece mais oportuna, buscando, nesse período de instabilidades a busca de um contrato de "soma zero", onde nem locador nem o locatário saiam em posição de vantagem ou prejuízo. Isso somente será possível se os magistrados compreenderem que a mediação é uma solução indispensável, diferentemente da opção que vem sendo adotada em liminares pelo Brasil, e não partirem da presunção de que os contratos de locação não poderão ser cumpridos, onerando apenas os locadores. Como lembrado por Flávio Tartuce, "chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade"8. Na busca de uma solução, Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício defendem a edição de medida legislativa, tendo efetivamente proposto uma possível emenda ao PL 1.179, de 2020, fixando um pagamento mínimo de 30% do valor devido e parcelando-se o saldo "pelos seis meses seguintes à data do vencimento"9. Propõem, também a possibilidade de extensão da moratória aos empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O interessante da proposta de Tartuce, Simão e Bunazar - que devemos deixar evidente - é que a base jurídica para fundamentar a opção legislativa já se encontra positivada no Direito Brasileiro, no artigo 916 do Código de Processo Civil, sendo reconhecida a sua plena eficácia e constitucionalidade. Com as mais devidas vênias, acreditamos que o caminho proposto pelos autores, cuja solução se apresenta em patamares fixos, seja a melhor a ser adotada. Note-se que os próprios autores, cientes das dificuldades que envolvem a casuística, fizeram constar uma norma de salvaguarda do locador, nos seguintes termos: "O juiz deverá levar em consideração a condição econômico-financeira do locador para, se for o caso, deixar de aplicar o disposto neste artigo ou mitigar equitativamente sua aplicação". De outra banda, acreditamos louvável e digna de reflexão a ideia de Marco Aurélio Bezerra de Mello10, que propõe uma lei federal de natureza excepcional e temporária, impondo um dever colaborativo em nível de direito material, dentro de uma roupagem diversa da proposta anterior, porém bastante promissora. Realmente, uma normativa que imponha às partes o dever de renegociar colaborativamente talvez tenha o condão de atuar educativamente, promovendo um consenso privado, até mesmo dispensando a intervenção de terceiros e reforçando a autonomia da vontade dos envolvidos. Ambas propostas têm méritos, buscando uma solução segura e justa em momento em que, sem dúvidas, há pressa. A primeira, se alicerça em um patamar processual testado e firme, porém incompatível com a liberdade de contratar. A outra, busca a solução mais próxima da liberdade de contratar, porém demanda atuação processual. A vantagem da segunda sobre a primeira reside, tão somente, no fato em que - havendo acordo - evita-se a judicialização e se acelera o resultado, preservando a autonomia da vontade. Não havendo acordo, em um segundo momento, a moratória compulsória deve ser considerada, conforme proposta supra, até porque, inclusive, serve como patamar mínimo e prévio, com um efeito educativo de incentivar a renegociação, mas não absoluto, já que existe a ressalva que permite o afastamento da regra geral conforme for o caso concreto do locador. A nosso ver, a soma dessas duas propostas funciona como um guia de resolução de conflitos, uma tentativa de instilar bom senso às massas, que acabam partindo para a beligerância sem ter a real compreensão do custo - humano e financeiro - de uma demanda judicial. O direito de propriedade é considerado essencial, remontando à primeira geração de direitos fundamentais. Ele deve ser conformado pela principiologia contemporânea do Direito Civil Constitucional, que busca assegurar o Direito à moradia e a preservação da empresa, porém uma medida de moratória compulsória deve ser aplicada cum grano salis, sob pena de inviabilização generalizada do próprio instituto da locação no Direito brasileiro por um período longo de tempo, causando um mal ainda maior - jurídico e econômico - do que aquele que se busca combater. *Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Faculdade de Nova Mutum (FAMUTUM). Membro do IBDCont, IBDCivil e IBERC. Advogado e consultor jurídico. **Jânio Urbano Marinho Júnior é mestre em Direito pela FADISP. Defensor Público Federal. Vice-Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União. Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas Campos Salles. ***Ricardo Alves de Lima é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra/USP. Especialista em Direito Empresarial pela UCB/INPG. Diretor Acadêmico da EXCELSU Educacional. Coordenador de cursos de pós-graduação lato sensu. Avaliador do INEP/MEC. Advogado inscrito na OAB/SP n.º 204.578. __________ 1 SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas: Uma reflexão de 7 de abril de 2020. IBDFAM, 2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 2 Na legislação portuguesa os nossos contratos de locação de imóveis são denominados arrendamentos. O termo locação é mais apropriado para bens móveis. 3 As questões sobre a resolução e a caducidade dos contratos de arrendamento são tratadas em diversos artigos no CC Português, por exemplo: artigos 1047º e ss, 1051º e ss, 1083 e ss. Assentando algumas controvérsias na aplicação do instituto da caducidade o Tribunal da Relação do Porto, firmou posicionamento por acórdão unânime em 11 de janeiro de 2018, nos autos da Apelação 4075/16.2T8MTS-C.P1, com relatoria do Des. Aristides Rodrigues de Almeida. Acesso em:08 mai. 2020. 4 Para um aprofundamento dessa polêmica, recomenda-se consultar artigo publicado nesta mesma seção do Migalhas pelo Professor Flávio Tartuce: TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em:08 mai. 2020. 5 SIMÃO, José Fernando. Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Migalhas Contratuais. Migalhas, 30.04.2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 6 TJ/SP. Tutela Cautelar Antecedente. 1010893-84.2020.8.26.0114. 8ª Vara Cível de Campinas. Juíza Bruna Marchese e Silva. Julg. 30 mar. 2020 e publ. 04 maio 2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 7 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas Contratuais. Migalhas, 23.03.2019. Acesso em: 08 mai. 2020. 8 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 9 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; BUNAZAR, Maurício. Da necessidade de uma norma emergencial sobre locação imobiliária em tempos de pandemia. Migalhas Contratuais. Migalhas, 11 maio 2020. Acesso em: 11 maio 2020. 10 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27 abr. 2020. Acesso em: 08 mai. 2020.
Texto de autoria de Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício Bunazar Tramita no Congresso Nacional - atualmente na Câmara dos Deputados - o Projeto de lei 1.179/2020, proposto pelo senador Antonio Anastasia, após uma iniciativa do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A proposta legislativa cria um "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (covid-19)"; e contou com a nossa participação, conjuntamente com outros juristas, liderados pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que assessoraram os trabalhos legislativos. Naquela etapa inicial, quando o projeto era debatido no Senado Federal, fizemos sugestões ao texto, algumas delas acatadas, a saber: a) aprimoramento do dispositivo que trata da prescrição e da decadência (art. 3º) e; b) previsão a respeito da prorrogação automática dos mandatos dos síndicos em condomínios edilícios, vencidos no período da pandemia (art. 12, parágrafo único). Entretanto, entre as sugestões que não foram acolhidas, destacamos a regra geral a respeito da possibilidade da revisão contratual nos contratos de locação urbana. O projeto aprovado traz apenas uma previsão a respeito do afastamento do despejo liminar - permitido pelo artigo 59 parágrafo único da lei 8.245/1991 -, em algumas hipóteses envolvendo a locação imobiliária (art. 9º). Abaixo, transcrevemos a nossa proposição sobre revisão dos contratos de locação urbana, ao lado da redação original que constava do PL 1.179/2020: Nas justificativas que enviamos ao Professor Otávio Luiz Rodrigues, Jr., coordenador da comissão de juristas que atuou no Senado Federal, pontuamos o nosso entendimento conjunto de que a simples suspensão do pagamento dos aluguéis pelos locatários, como constava do projeto, seria excessivamente onerosa aos locadores. Por isso, nos termos do novo § 5º, a situação econômica do locador também deve ser levada em conta e, se for o caso, a moratória deve ser afastada. Propusemos, ainda, a moratória legal em termos próximos aos do artigo 916 do Código de Processo Civil vigente. Esse plano de pagamento por nós sugerido, por estar previsto na própria lei processual, é interessante, experimentado e aceito pelas partes e magistrados, já havendo larga experiência quanto à sua efetivação, e pode, portanto, ser aplicado para outras esferas, como por exemplo nas locações. Também sugerimos a inclusão de preceito segundo o qual a regra incidiria para a locação não residencial, desde que exercida por empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O objetivo seria a tutela de pequenos empresários locatários, dando-lhes a oportunidade de fazer uso da moratória legal, se for o caso. Essas sugestões acabaram por se acatadas pela comissão de juristas que auxiliava o Senado Federal para a aprovação do projeto. Todavia, infelizmente, a proposição - artigo 10 do projeto -, acabou por ser retirada pelo próprio Senador Anastasia e também pela Relatora, Senadora Simone Tebet. A retirada deveu-se à preocupação dos senadores mencionados com a situação dos locadores, que poderiam vir a ser prejudicados economicamente ao não receberem a integralidade do que lhes é devido. No entanto, a realidade que se revela neste curto período de crise é a da existência de inúmeras demandas ajuizadas por inquilinos pleiteando ora a redução do valor dos alugueres, ora a cessação integral da obrigação de pagar. À falta de uma norma legal que forneça critérios objetivos e, por isso seguros aos magistrados, o que se vê são decisões muito divergentes entre si, o que colabora para a criação de um ambiente de insegurança jurídica e de incremento de conflitos. Se dúvida havia sobre a necessidade de uma lei disciplinado especificamente a questão da locação em tempos de pandemia, a realidade fática superou essa dúvida. Em pesquisa realizada no portal Jusbrasil no dia 8 de maio de 2020, em ferramenta que propicia o encontro de julgados que mencionam os termos não só nas suas ementas como também nos corpos das decisões, foram encontrados 182 resultados com as expressões "locação" e "pandemia"; e 149 resultados com "locação" e "Covid". Pontue-se que tal pesquisa elenca não só decisões de segundo como de primeiro grau. Entre essas, como já apontado, existe uma grande variação nas conclusões dos julgadores, notadamente em sede de cognição sumária, para a concessão ou não de tutelas provisórias. De início, afastando-se a concessão de medidas de urgência para a suspensão ou redução dos pagamentos de aluguéis, destacamos, somente para ilustrar: "LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO REVISIONAL. PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. SUSPENSÃO DA OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO OU REDUÇÃO DO VALOR DA LOCAÇÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA DECORRENTE DO COVID-19. Requisitos ausentes. INDEFERIMENTO. Manutenção da decisão recorrida. Ausentes os requisitos legais do art. 300 do CPC, o indeferimento da tutela provisória de urgência é medida que se impõe. RECURSO DESPROVIDO" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2070513-61.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13513877, São José dos Campos, Vigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antonio Nascimento, julgado em 28/04/2020, DJESP 05/05/2020, pág. 2236). "LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. TUTELA DE URGÊNCIA DESTINADA A SUSPENDER A EXIGIBILIDADE DOS ALUGUÉIS EM FACE DA QUARENTENA DECORRENTE DA PANDEMIA POR COVID-19. DESCABIMENTO. Moratória que pelo regime legal não pode ser imposta ao credor pelo Juiz, devendo decorrer de ato negocial entre as partes ou por força de especial disposição legal. Evocação. Do caso fortuito e força maior que tampouco autoriza aquela medida. Cabimento, porém, da vedação à extração de protesto de título representativo do crédito por aluguéis. Recurso parcialmente provido". (TJSP, Agravo de instrumento n. 2063701-03.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13459046, São Paulo, Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Arantes Theodoro, julgado em 06/04/2020, DJESP 13/04/2020, pág. 1824). Outros julgados e decisões, porém, concedem as medidas pleiteadas, com redução de percentuais dos aluguéis que variam de 20% a 50% do valor pago, enquanto durara pandemia. Mais uma vez somente a ilustrar, cite-se decisum da 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal Paulista que, em 6 de maio, reformou decisão de primeiro grau que havia indeferido a concessão da tutela provisória, e que restou assim ementada: "Locação comercial. Tutela de urgência. Pandemia por COVID19. Redução do valor do aluguel em face da proibição à abertura do estabelecimento comercial. Fato do príncipe que corresponde à figura da força maior. Artigo 317 do Código Civil que autoriza nesses casos a readequação do valor da contraprestação. Redução em 50% que se mostra razoável enquanto persistir aquela proibição. Recurso provido" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20817534720208260000, Relator Des. Arantes Theodoro, data de julgamento: 06/05/2020, 36ª Câmara de Direito Privado). Também existem decisões, em sede de locação em "shopping center", que determinam o pagamento de valores mínimos, diante da ausência de atividades no local, como outra do Tribunal Paulista, em que se concedeu tutela provisória de urgência para o pagamento apenas do "aluguel percentual". Como consta do trecho de sua ementa, que novamente cita o art. 317 da codificação privada, "pela análise dos elementos constantes nos autos, em juízo de cognição sumária, considerando a relação continuada de locação, o fechamento do shopping devido à pandemia e os dados apresentados, cabe, a priori, observar a teoria da imprevisão, nos termos do art. 317 do CC, sopesando os valores sociais em conflito. Assim, estão preenchidos os requisitos necessários para concessão da tutela de urgência em relação ao pagamento temporário de 'aluguel percentual' até ulterior deliberação, mantidos os pagamentos das despesas de condomínio e demais encargos" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20670017020208260000, Relator Des. Kioitsi Chicuta, data de julgamento: 23/09/2016, 32ª Câmara de Direito Privado). Como dissemos anteriormente, as decisões já passam de uma centena, em pouco mais de dois meses, sendo desnecessário mencionar outros julgados, uma vez que a finalidade deste artigo é reforçar a conveniência de uma norma jurídica que traga algum critério objetivo para a resolução das disputas locatícias, que devem se avolumar nos próximos meses, e também depois que passar o primeiro surto da pandemia. Em não havendo norma jurídica específica, os julgadores serão obrigados a decidir com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito - como determina o artigo 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro -, o que, não raro, conduz a julgamentos de equidade, por definição, imprevisíveis e inseguros. A nossa opinião é que é necessário se garantir uma coerência decisória por meio de um parâmetro lega de modo a evitar o colapso do regime contratual da locação por disparidade de decisões em casos idênticos. Espera-se, assim, que o Congresso Nacional aproveite a tramitação do PL 1.179/2020 para regulamentar a questão premente das locações imobiliárias e trazer um mínimo de certeza e de segurança para locadores e locatários. Se por um lado são louváveis as ponderações de parte da doutrina no sentido de se privilegiar "análise do caso concreto", por outro a experiência mostra que esse espaço de conformação deixado ao magistrado é fonte de grandes instabilidades, como já se viu em inúmeras experiências do Direito Contratual Brasileiro. Como palavras finais, não se pode negar que uma norma jurídica tratando do tema traria maior certeza para a tese que ora se propõe, devendo a temática ser debatida pela comunidade jurídica nacional nestes duros tempos, de "escolhas trágicas". *Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente e Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico. **José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico. ***Maurício Bunazar é pós-doutorando, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil do Damásio Educacional e do IBMECSP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP.
Texto de autoria de Salomão Resedá Sumário: 1. A INTRODUÇÃO E O "ERA UMA VEZ". 2. E A HISTÓRIA DO CHAPEUZINHO VERMELHO? 3. VOVOZINHA, É VOCÊ?; 4. A DESCOBERTA DO LOBO MAU. 5. A TRAVESSIA DA FLORESTA DEPOIS DO COVID-19. 6. A CONCLUSÃO. NA HISTÓRIA, NÃO PODERIA FALTAR O CAÇADOR. Resumo: Quando do início do alcance da pandemia do COVID-19 no Brasil, a FEBRABAN anunciou que os cinco maiores bancos a ela vinculados fariam uma prorrogação de até duas prestações dos financiamentos travados com seus consumidores. Muitos comemoraram esta atitude por parecer algo bastante benéfico ao consumidor, mas seria isso mesmo? Será que por trás da vovozinha deitada na cama, não existe um lobo mau escondido? 1. A introdução e o "era uma vez". Era o início da determinação de quarentena por parte dos Estados. O país ainda tentava posicionar-se perante a pandemia que se tornava uma realidade incontestável. Aquilo que apenas era um acontecimento em países estrangeiros começava a apresentar suas sombras sobre o território pátrio. Apesar do susto social, algumas instituições financeiras sinalizaram a adoção de medidas de prorrogação de duas parcelas de financiamento de bens, abrangendo os meses de março e de abril do corrente ano de 2020. A notícia caiu como um bálsamo perante as nuvens de más notícias que se aproximavam. Enquanto os Estados se preparavam para a determinação do isolamento social horizontal, os economistas projetavam a forte redução da capacidade produtiva, da empregabilidade e, por consequência, o aumento da situação de inadimplência dos indivíduos. Nessa esteira de causa e consequência, as instituições bancárias anteciparam-se e anunciaram a possibilidade de prorrogação de duas prestações vinculadas aos meses mais críticos - pelo menos por uma projeção inicial - decorrentes pela pandemia. Sob o manto de um esforço para assegurar medidas de estímulo à economia, a FEBRABAN comunicou que os cinco maiores bancos associados estariam "comprometidos em atender pedidos de prorrogação, por 60 dias, dos vencimentos de dívidas de clientes pessoas físicas e micro e pequenas empresas para os contratos vigentes em dia e limitados aos valores já utilizados"1. Apesar de toda empolgação oriunda do anúncio, alguns cuidados devem ser levados em consideração antes de aderir à proposta. 2. E a história do chapeuzinho vermelho? Historicamente, afirma-se que Charles Perrault foi o primeiro escritor a reproduzir a história do Chapeuzinho Vermelho, no século XVII, a partir da edição de uma coleção de contos populares. Originário do Norte dos Alpes, o conto original detinha imagens inadequadas ao público alvo, o que acabou impondo a necessidade de alteração de algumas premissas, a fim de assegurar o acesso ao público alvo: as crianças. Porém, foi apenas com os irmãos Grimm, no século XIX, que houve a formatação nos padrões atualmente reconhecidos. Independentemente das alterações impostas para atender ao universo das histórias infantis, a história de Chapeuzinho Vermelho apresenta uma menina - aqui representada historicamente pela ideia de fragilidade feminina - que é exposta ao ambiente hostil da floresta, com a missão de atravessá-la para levar mantimentos à sua avó que reside no meio do boque sombrio. No curso, encontra um lobo que consegue chegar primeiro à residência da anciã e tenta adotar as mesmas características para enganar a personagem principal e devorá-la. Diversas conclusões podem ser alcançadas a partir da análise do conto. Uma delas encaixa perfeitamente no conteúdo desse ensaio: as aparências podem enganar o interlocutor. De fato, cada situação apresentada deve ser abordada com a calma necessária para a identificação dos pontos de sua estrutura, pois uma análise açodada, certamente, conduzirá a uma armadilha que poderá custar - na figura metafórica da história - a vida do personagem. A decretação da pandemia e o avanço da covid-19 sobre o país expuseram a sociedade brasileira a uma floresta escura e nada convidativa, na qual não se sabe, exatamente, o que pode ser encontrado à frente. O emaranhado de notícias representa as folhas que encobrem o céu azul e claro a ser contemplado. Mas, para continuar a caminhada é preciso até que seja possível alcançar o confortável colo da "vovozinha", a qual aguarda ansiosa para acolher e cuidar da Chapeuzinho. Porém, quem está na cama não é aquela dos abraços carinhosos, mas, sim, um lobo mau disfarçado querendo enganar a fatigada viajante. Voltando ao anúncio da Federação Brasileira dos Bancos deve-se destacar, desde já, que não há prática abusiva. Acontece que o momento em que foi lançada a nota poderá influenciar na percepção do recado dado. Os cinco maiores bancos do Brasil reuniram-se para, como dito, postergar, o pagamento de duas prestações dos financiamentos celebrados entre eles e os consumidores2, e nesse ponto, não há qualquer empecilho, já que essa conduta está inserida no espectro dos direitos vinculados ao credor. Diante de toda a agitação causada e a título de curiosidade, foram acessados os sites das instituições bancárias que anunciaram essa prorrogação. Um ponto comum encontrado foi a dificuldade de localizar os contratos que estipularão os parâmetros para a referida prorrogação. Escondido diante de todo o investimento em publicidade e propaganda, verifica-se um comportamento comum: a inexistência de um local onde se possa alcançar a informação de maneira rápida e clara. Depois de alguns minutos investigando as diversas páginas, pode-se dizer que as propostas dos brancos aderentes ao anúncio da FEBRABAN resumem-se a uma situação: o cliente poderá solicitar a prorrogação de até duas prestações do seu financiamento. Ao aderir a esta proposta haverá a postergação delas para o final do contrato e, "com base no prazo prorrogado, cada empréstimo será recalculado, mantendo a taxa de juros do contrato original"3. Em momento nenhum foi mencionado que haveria uma remissão do valor referente às duas parcelas, mas apenas uma suspensão e é, exatamente, nesse ponto em que pode estar o lobo mau disfarçado de vovozinha. 3. Vovozinha, é você? A celebração de um contrato resulta na existência de polos de credores e devedores. A visão simplista e quase maniqueísta de uma postura hermeticamente identificada entre ambos é uma realidade afastada da relação contratual moderna. A complexidade dos tratos sociais conduz à perspectiva segundo a qual um polo poderá ser qualificado como credor e devedor diante de uma mesma relação contratual. Detentor do direito de exigir o cumprimento de uma obrigação, o credor tem as mais diversas ferramentas sob seu pálio para impor ao devedor o atendimento daquilo que resta indicado nas cláusulas contratuais. De fato, não se pode negar que a evolução da sociedade impôs à autonomia da vontade a necessária mutação para autonomia privada, aliviando o peso da espada imposta ao devedor, ao promover uma ponderação dos interesses envolvidos através de princípios tão consolidados como a função social dos contratos e a boa-fé objetiva. Ao detentor do crédito, cabem dois comportamentos: o primeiro, e mais comum, seria impor ao devedor o cumprimento do quanto acordado. Por sua vez, uma segunda postura envolve o que se denomina de remissão. Nesta hipótese, há o perdão da dívida, sendo a sua grafia feita com a utilização de dois "s" face a sua origem nas expressões latinas "remissio", "remissionem" que, por sua vez, significam "perdoar"4. O Código Civil trabalha com a questão da remissão a partir do art. 3855. Inexistente no diploma anterior, este dispositivo impõe que, para haja a validade do referido perdão, se faz necessária a aquiescência por parte do devedor6. Não poderá, portanto, o credor impor o seu perdão. Apesar de parecer uma conduta benévola, o diploma civilista imprime a necessidade de aceite pelo sujeito passivo, o que implica reconhecer, conforme mencionado por Flávio Tartuce, que "a remissão constitui um negócio jurídico bilateral, o que ressalta o seu caráter de forma de pegamento indireto"7. Doutrinariamente, o ato de remissão é subdividido em duas percepções: a renúncia expressa e a tácita. A primeira, como a própria denominação já nos conduz a concluir, se trata de um comportamento devidamente identificado através de documento público ou particular - seja ele inter vivos ou mortis causa -, no qual o credor deixe clara a sua evidente intenção de perdoar o débito, e que deverá ser submetido à aquiescência do devedor. Por sua vez, a modalidade tácita está representada em comportamentos segundo os quais o credor se posiciona de maneira incompatível com a conservação do seu status creditório. Neste ponto, destaca-se que não é possível haver presunção de remissão por qualquer ato praticado pelo credor. As hipóteses são aquelas restritamente previstas em lei, sob pena de chancelar comportamentos desprovidos da real intenção de remitir8. Um determinado gerente de um mercado local da cidade de São Paulo costumava adquirir produtos para o empreendimento a partir do empenho de suas rendas. Ele se dirigia aos fornecedores e, utilizando de sua capacidade econômica celebrava a compra dos bens faltantes nas prateleiras. Todo final do mês, seu empregador fazia o depósito, juntamente com a remuneração mensal, do valor gasto com as estas aquisições. Acontece que, em determinado momento, ao chegar ao trabalho, o gerente recebeu o comunicado que teria sido desligado do quadro de funcionários do empreendimento e que deveria retornar apenas para receber os valores decorrentes de suas verbas rescisórias. Mesmo surpreso e não satisfeito com a situação, compareceu na data agendada para percepção do que lhe era devido. Houve, então, o pagamento das verbas trabalhistas, nada mais sendo mencionado pelo seu empregador referente ao montante depreendido para compra dos produtos naquele mês. Diante disso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foi submetido a análise desta situação. Após todo o transcurso processual, o TJ/SP concluiu que o aceite do valor referente às verbas trabalhistas não poderia ser qualificado como renúncia tácita por ausência de previsão legal, impondo ao empregador a obrigação de pagar o montante gasto pelo seu, agora, ex-empregado9. Reconhecendo a postura adotada pelo Código Civil brasileiro, que opta pela adoção de um rol taxativo ao explicitar os casos de remissão tácita de dívida, não se pode entender que a simples ausência da cobrança acarreta a presunção de que o devedor foi perdoado da dívida, vez que o ato de cobrar é escolha que se encontra dentro do feixe de direitos do credor. A percepção trazida pela remissão, então, é de real perdão, pois consiste no ato do credor que abre mão do seu crédito em favor de um devedor que, por sua vez, apresentou sua aquiescência quanto ele. Mais uma vez destaca-se a importância da manifestação por parte do devedor, tanto assim que o art. 388 do Código Civil aponta no sentido de que, em caso de solidariedade, apenas aquele que adimpliu com esse requisito legal será alcançado pelos seus efeitos, permanecendo os demais vinculados ao débito, desde que deduzida a parte proporcional ao perdoado. 4. A descoberta do lobo mau. Voltando à proposta dos bancos, percebe-se que, pelos contornos da remissão apontados anteriormente, não há compatibilidade com comportamento proposto. Todas as instituições financeiras que tiveram seus sites visitados informaram que as parcelas suspensas seriam aportadas ao final do prazo originário. A garantia seria, apenas, de manutenção da taxa de juros, porém, sem que haja a efetiva suspensão de seu cômputo. Prova dessa situação está no endereço eletrônico do Banco do Brasil que consigna em sua previsão contratual que "Além da prorrogação das parcelas, a incidência dos juros será diluída ao longo de todo o cronograma de pagamentos. As linhas contempladas utilizam recursos próprios do BB e devem estar em dia no momento da prorrogação. O objetivo é garantir que as micro e pequenas empresas não necessitem dispor de seus caixas para pagar empréstimos neste momento, liberando recursos para garantir o pagamento de funcionários e fornecedores"10. Quando o consumidor se submete aos encantos da sereia, ele estará apenas prorrogando sua dívida; alongando sua dor e, por consequência suportando um maior encargo econômico a partir do pagamento de um volume de juros incrementados quando comparado com o que originalmente era previsto. Partindo para uma visão mais concreta do problema, projeta-se a seguinte situação: há um contrato de empréstimo que envolve o pagamento de sessenta prestações. Nele, o consumidor pleiteia a suspensão de duas prestações que, segundo as instituições financeiras, serão arremessadas para o final do financiamento. Ao prorrogar o pagamento dos valores que deveriam ser adimplidos no presente, o consumidor concorda com a possibilidade de gestão de novo volume de juros compensatórios. Estes acréscimos serão computados mês a mês, até a nova data designada para a quitação deste saldo em aberto. O resultado direto disso será, sem sombra de dúvidas, o incremento do saldo devedor. Ou seja, após atravessar o bosque sombrio, a chapeuzinho vermelho certamente não encontrará a vovozinha em sua casa, mas o lobo mau do incremento de sua dívida, a partir de uma imposição maior de juros. Entender a engrenagem é de fundamental importância para que não haja a imersão em uma situação jurídica inexistente. De fato, nessa relação jurídica temos de um lado o fornecedor e do outro o consumidor, sendo este o ponto mais frágil do contrato. Além da hipossuficiência característica do trato consumerista, deve-se lembrar da peculiar situação vivenciada, decorrente da pandemia por covid-19. 5. A travessia da floresta depois do covid-19. Uma idosa carregava em seu corpo células cancerígenas. A doença estava reconhecida pelos médicos que indicavam uma recuperação plena dificultosa, mas a possibilidade de manutenção dos seus sinais vitais satisfatórios. Como qualquer pessoa que recebe esta informação, a busca por informações acerca de medicações passou a ser uma constante no seu quotidiano. Essa senhora estava assistindo programas populares em um canal de emissora nacional quando ouviu a propaganda de um produto que lhe parecia ser a resposta para os seus problemas. O anunciante discorria sobre as qualidades do fármaco natural e garantia a indicação do seu uso, inclusive, para o combate ao câncer. Encantada com tamanha qualidade e eficiência, a telespectadora adquiriu, por meio de uma ligação para o número indicado na transmissão, alguns exemplares do produto. A esperança para a solução dos problemas de saúde era grande e seguir as indicações do produto foi a estratégia adotada para alcançar o resultado prometido. Porém, ao contrário do que esperado, nada alterou a sua condição física, conforme constatação médica. Diante desta situação, a idosa ajuizou uma ação indenizatória junto ao Poder Judiciário paulista e alcançou êxito, inclusive, perante o STJ, que a qualificou como hipervulnerável11. Ao propor a possibilidade de prorrogação da quitação de determinadas parcelas, as instituições financeiras se vestem de vovozinha à espera da Chapeuzinho. Esta, porém chegará cansada e machucada da travessia pela densa e escura floresta da COVID-19. Certamente, a imagem de uma menina frágil será incrementada por tudo que passou no trajeto e, facilmente, será possível enquadrá-la na perspectiva da hipervulnerabilidade. Trata-se, sem dúvidas, de incremento à condição de hipossuficiência já existente nas relações entre bancos e clientes, apenas por ser consumerista. 6. A conclusão. Na história, não poderia faltar o caçador. O manejo claro e direito da publicidade direcionada é de fundamental importância. No valor gasto com o setor de marketing, não se pode descuidar da obrigação de fazer uma campanha esclarecedora. Ávido opor uma solução para a crise, o consumidor poderá ser conduzido facilmente ao erro quanto à interpretação das consequências decorrentes da proposta das instituições financeiras vinculadas à FEBRABAN. Os esclarecimentos para evidenciar que a opção ofertada não se trata de uma remissão é a peça chave para garantir a proteção necessária à boa-fé, ainda mais em épocas de exceção na qual se vivencia. O Poder Judiciário deve estar pronto para agir. A prorrogação das parcelas resultará, como consequência direta, no aumento do saldo devedor pela maior incidência dos juros. Com isso, aquele comportamento que parecia, num momento inicial, uma benevolência, na realidade, mostra-se como um movimento dos Bancos que acabará lhe beneficiando, na medida em que, ao final, o valor total a ser pago pelo consumidor será mais elevado do que aquele projetado inicialmente, quando da assinatura do contrato. O enterro da autonomia da vontade abre espaço para o surgimento da autonomia privada na sociedade e o ato de aceitar não pode mais ser deduzido a partir de uma liberdade e igualdade apregoada de forma quase que romântica pelos idealizadores revolucionários. O Estado, visto pós-revolução francesa como algo pernicioso, reforça a sua essência protetiva de medidas igualitárias quando permanece atento a comportamentos ofensivos aos deveres anexos do contrato. De fato, a questão torna-se bastante delicada na perspectiva prática quando se coloca em ponderação a ideia de permanecer inadimplente - e com isso experimentar os reflexos das multas contratuais e dos juros moratórios - ou suportar os encargos decorrentes da prorrogação. Será este um dos temas mais pulsantes na vida dos indivíduos que experimentam os reflexos do evento covid-19, pois, como se percebe pelos noticiários diários, o fantasma da crise se faz cada vez mais real. Não se quer negar o óbvio. O consumidor terá todo o direito de escolher qual a opção que mais lhe condiz à sua realidade - sendo a adimplência dentro do quanto contratado a mais adequada, enquanto a inadimplência total resta posicionada no ponto oposto. Porém, não se pode negar que esta possibilidade deve lhe ser concedida mediante a prestação de uma informação completa e que seja capaz de desenhar todos os contornos do ato de prorrogar, evitando confusão com a remissão. Mais uma vez, a ideia de cumprimento dos deveres anexos do contrato mostra sua força e sua missão de mecanismo de equilíbrio no trato das relações negociais. Manter o seu brilho é um dever inconteste das partes contratantes e um dever contínuo do Poder Judiciário, afinal, o lobo não poderá omitir sua condição de lobo se estava vestido de vovozinha para a chapeuzinho vermelho. Todo cuidado é pouco e, de fato, a solução para evitar que o caçador "mate" o lobo e retire a senhorinha do seu estômago, tal como no conto, está muito antes da celebração do contrato. Envolve, sem dúvidas, a perspectiva tão defendida pela doutrina segundo a qual a boa-fé alcança todas as fases contratuais, ou seja, desde a situação preliminar, ao pós-contrato, o que envolve o cumprimento irrestrito ao dever de informação. 7. Referências BANCO BRADESCO. Prorrogação de Empréstimos. Disponível aqui; acessado em 16 de abril de 2020. CORREIO BRAZILIENSE. BB começa a disponibilizar prorrogação de parcelas de dívidas de pequena empresa. Disponível aqui; acessado em 16 de abril de 2020. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 13 ed. rev. atual. amp. Salvador: Juspodivm, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 21 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2020. STJ. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em www.stj.jus.br; acessado em: 16 abril 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol 2. 15 ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Gen, 2020. TJ/DF. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. Disponível emwww.tjdf.jus.br; acessado em 16 de abril de 2020. TJ/SP. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em www.tjsp.jus.br; acessado em: 16 abril 2020. UOL ECONOMIA. 5 bancos prorrogam vencimento de dívidas de pessoas físicas e MPES. Acessado em 03.04.2020. Salomão Resedá é doutor em Direito Público, com ênfase em Processo Civil pela UFBA. Mestre em Direito Privado, com ênfase em Direito Civil pela UFBA (2008). Especialista em Direito Civil pela UFBA (2007). Professor Universitário da UNIFACS (Universidade Salvador), da UNIRUY WIDEN. (Universidade Ruy Barbosa) e da Faculdade ATAME. Professor convidado do Complexo de Ensino Renato Saraiva e da Escola de Magistrados do Estado da Bahia - EMAB. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual __________ 1 UOL ECONOMIA. 5 bancos prorrogam vencimento de dívidas de pessoas físicas e MPES ; acessado em 03.04.2020. 2 Súmula 297, STJ: o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras 3 Banco Bradesco. Prorrogação de Empréstimos. Disponível aqui, acessado em 16 de abril de 2020. 4 Na perspectiva tributária, destaca-se que "a remissão implica a exclusão do crédito tributário mediante o perdão da própria dívida e refere exclusivamente ao valor do crédito tributário" (REsp 1.492.246/RS,Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 2/6/2015, DJe 10/6/2015). 5 Art. 385, Código Civil: "A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro". 6 Dissertando sobre os requisitos da remissão, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona definem os requisitos subjetivos em dois pontos, a saber: "ânimo de perdoar: o ato de perdoar é uma manifestação volitiva. Assim, em regra, deve ser expressa, somente de admitindo excepcionalmente o perdão tácito, em função de presunções legais. Por se tratar de uma disposição de direitos, exige, portanto, não somente a capacidade jurídica, mas a legitimação para dispor do referido crédito, como requisito de validade de todo e qualquer negócio jurídico. b) aceitação do perdão. Segundo a doutrina alemã, seguida nesse ponto pelo Código Civil de 2002 (art. 385), a remissão não prescinde da concordância ado devedor, pois motivos vários, de natureza metajurídica (não desejar dever favor ao credor, respeitabilidade social em pagar suas dívidas), podem levar à recusa do perdão. Assim, ausente a anuência, pode o devedor consignar o valor devido, colocando-o à disposição do credor, não havendo que se falar em indébito. A exigibilidade da aceitação do perdão pelo devedor, todavia, a despeito de haver sido expressamente estabelecido no Novo Código Civil, sempre foi objeto de acirrados debates na doutrina. A doutrina italiana, por exemplo, negava o caráter bilateral da remissão, sustentando que seria ato de disposição patrimonial exclusivo do credor" (GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 21 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 280). 7 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol 2. 15 ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Gen, 2020, p. 203. 8 Em caso julgado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o Desembargador Esdras Neves afastou a possibilidade reconhecimento de remissão por envio de declaração de imposto de renda com valor zerado da dívida, por qualificar que a conduta representava apenas um erro sistêmico, não havendo, portanto, que se falar em remissão: "DIREITO CIVIL. APELAÇÃO. REMISSÃO TÁCITA DE DÍVIDA BANCÁRIA. ENVIO DE DEMONSTRATIVO DE IMPOSTO DE RENDA INFORMANDO O VALOR ZERADO DA DÍVIDA. ERRO PROCEDIMENTAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA INTENÇÃO DO CREDOR EM PERDOAR O DÉBITO. Não havendo nos autos evidências concretas de que o banco credor teria intenção de perdoar a dívida do devedor, inviável o acolhimento da tese de remissão tácita da dívida. (TJ-DF 20150110716087 0020923-53.2015.8.07.0001, Relator: ESDRAS NEVES, Data de Julgamento: 15/03/2017, 6ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 21/03/2017 . Pág.: 513/547). 9 Ação de cobrança. Réu que, na qualidade de gerente do estabelecimento da Autora, empresa que explora o ramo de supermercados, adquiria produtos alimentícios para pagamento futuro. Inadimplemento incontroverso. Pagamento não demonstrado. Valor da dívida não impugnado especificadamente. Recebimento de verbas referentes à rescisão do contrato de trabalho que não implica em remissão tácita da dívida relacionada à aquisição de mercadorias. Recurso desprovido. (TJ-SP - APL: 10104486020168260032 SP 1010448-60.2016.8.26.0032, Relator: Pedro Baccarat, Data de Julgamento: 30/10/2018, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/10/2018). 10 CORREIO BRAZILIENSE. BB começa a disponibilizar prorrogação de parcelas de dívidas de pequena empresas. Disponível aqui, acessado em 16 de abril de 2020. 11 RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PROPAGANDA ENGANOSA. COGUMELO DO SOL. CURA DO CÂNCER. ABUSO DE DIREITO. ART. 39, INCISO IV, DO CDC. HIPERVULNERABILIDADE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL COMPROVADO. 1. Cuida-se de ação por danos morais proposta por consumidor ludibriado por propaganda enganosa, em ofensa a direito subjetivo do consumidor de obter informações claras e precisas acerca de produto medicinal vendido pela recorrida e destinado à cura de doenças malignas, dentre outras funções. 2. O Código de Defesa do Consumidor assegura que a oferta e apresentação de produtos ou serviços propiciem informações corretas, claras, precisas e ostensivas a respeito de características, qualidades, garantia, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, além de vedar a publicidade enganosa e abusiva, que dispensa a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para sua configuração. 3. A propaganda enganosa, como atestado pelas instâncias ordinárias, tinha aptidão a induzir em erro o consumidor fragilizado, cuja conduta subsume-se à hipótese de estado de perigo (art. 156 do Código Civil). 4. A vulnerabilidade informacional agravada ou potencializada, denominada hipervulnerabilidade do consumidor, prevista no art. 39, IV, do CDC, deriva do manifesto desequilíbrio entre as partes. 5. O dano moral prescinde de prova e a responsabilidade de seu causador opera-se in re ipsa em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo consumidor. 6. Em virtude das especificidades fáticas da demanda, afigura-se razoável a fixação da verba indenizatória por danos morais no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). 7. Recurso especial provido. (REsp 1329556/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 09/12/2014).
Texto de autoria de Cristiano Sobral Pinto A pandemia mudou nossas perspectivas sobre a vida em curso e sobre o futuro. As incertezas são maiores, mas podemos delinear um norte a ser seguido diante dos impactos nas relações contratuais apresentando o adimplemento substancial como uma via promissora para a solução de litígios. Alguém do passado que pudesse prever nossa realidade atual diria com toda a certeza que se trataria de um cenário de filme de ficção científica. Mas, para todas as mentes mais criativas, superamos em pouco tempo as expectativas e por mais temeroso e triste que possa parecer, a pandemia chegou e com ela, nosso cotidiano sofreu impactos que alteraram nosso lidar com o mundo, em todas as instâncias micro e macro: nossas relações afetivas, nossos trabalhos, nosso ir e vir, a política, a economia, a saúde, a educação, de todos os países do globo foram impactados por um vírus. O inimigo em comum é chamado como novo coronavírus, cientificamente recebeu o codinome de COVID-19. Trata-se de um vírus da família Coronaviridae que causam uma variedade de doenças no homem e nos animais, especialmente no trato respiratório. O primeiro registro oficial de covid-19 refere-se a um paciente hospitalizado no dia 12 de dezembro de 2019 em Wuhan, China, mas estudos anteriores apontam um caso clínico com sintomas da doença em 1/12/19. Assim, em dezembro de 2019, iniciou-se um surto que atingiu cerca de 50 pessoas na cidade de Wuhan, na China1. E no mês de março de 2020, a doença já fazia casos em mais de 100 países, alcançando o status de uma pandemia2, de acordo com pronunciamento da OMS (Organização Mundial da Saúde). A doença pode apresentar-se como uma infecção branda, podendo também chegar a causar pneumonia, insuficiência respiratória e até a morte. A alta taxa de disseminação e a evolução dos sintomas para níveis mais graves da doença - estando seu maior percentual de letalidade entre pessoas com mais de 60 anos e com comorbidades anteriores, a exemplo, diabéticos, hipertensos e obesos -, e juntamente a isso, por tratar-se de um vírus novo, com poucos estudos sobre o seu desenvolvimento e tratamento, não existindo nem uma vacina nem drogas capazes de combatê-lo, foram tomadas medidas sanitárias que possuem caráter iminentemente preventivos, com o objetivo de diminuir o seu contágio e seus desdobramentos, evitando que os sistemas de saúde possam sofrer colapso, por falta de leitos, principalmente os de caráter intensivo, e de profissionais de saúde. Tais medidas dizem respeito não só aos hábitos de higiene pessoal e do ambiente como também, a diminuição do contato entre pessoas, sendo amplamente aconselhado o isolamento social horizontal como principal forma de evitar a doença. Diante de tal situação, vários países que foram atingidos pela pandemia tomaram medidas restritivas relativas ao funcionamento do comércio, escolas, e todos os ambientes que contem com grande fluxo e aglomeração de pessoas e, limitando, inclusive o direito ao deslocamento de seus cidadãos a fim de conter a disseminação da doença. Entre outros problemas surgidos com a pandemia, a economia mundial sofreu uma queda abrupta na maioria de seus setores e houve perdas significativas nos postos de empregos, ocasionando uma crise de larga escala. Como é possível observar, a pandemia repercute em nossas vidas de uma forma bastante ampla e profunda, e junto a ela e por sua consequência, surgem situações excepcionais, reivindicando novos olhares sobre essas questões, em especial, aquelas que tocam o âmbito do Direito Civil. Tema que passamos a nos ocupar, mais detidamente, no que diz respeito ao direito obrigacional e contratual. Surgem diversas questões de alta indagação acerca das relações contratuais durante a pandemia: sua continuidade, o seu adimplemento, hipóteses que ensejam revisão contratual, e as que podem incidir em sua resolução. Afinal, como ficam os contratos na pandemia? Trata-se de tema amplo e que devido à especificidade de cada relação contratual in concreto requer análise caso a caso, mas, em sentido mais generalizante, a pandemia, situação vivenciada por todos, é um evento que tem sido classificado como de força maior3. Tal hipótese encontra previsão no art. 393 do Código Civil com o seguinte teor: Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Devido à facilidade de sua disseminação e suas consequências, a pandemia é tida também como um fato extraordinário e imprevisível, sendo possível a resolução contratual decorrente da onerosidade excessiva para uma das partes contratantes, com base no disposto no art. 478, da lei civil: Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Outra consequência diz respeito à revisão contratual, tendo por fundamento legal a previsão do art. 317, do mesmo diploma: Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Como dito anteriormente, trata-se de uma visão generalista e que não constituindo o caminho a ser percorrido em toda e qualquer situação que ocorra durante a pandemia. Isso porque tratam-se de medidas excepcionais e de acordo com os ditames que regem todas as relações contratuais há de se priorizar a boa-fé objetiva e a continuidade e manutenção das avenças contratuais4. Não só tomando por pressuposto o teor do art. 422, do CC5, como também deverão ser observados seus deveres anexos, como o de cooperação e lealdade entre as partes contratantes. Assim, persiste a necessidade de se relativizar essa interpretação acerca da revisão e da resolução contratual com liberação da parte contratante devedora da obrigação porque ambas as alternativas só terão lugar se o inadimplemento tiver como causa exclusiva a pandemia de Covid-19, seja ela tida por força maior ou evento extraordinário ou imprevisível, ou acontecimentos dela decorrentes, como a hipótese de impossibilidade ou onerosidade por fato do príncipe, devido as medidas de restrições impostas pelos Estados para a prevenção e contenção da doença. Nessa toada, há de se observar, ainda o disposto nos arts. 421. parágrafo único e 421-A, inc. III, do Código Civil com redação dada pela recente lei 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica, dispondo que: Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: [...] III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. O art. 421-A do Código Civil dispõe, por sua vez, em seus incisos I e II que "as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução"; e "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Assim, havendo cláusula que preveja a força maior, estas deverão ser observadas pelas partes contratantes. E ainda que exista tal previsão, sobre a liberdade das partes em pactuar, a boa-fé deverá vigorar, conforme art. 113, da lei civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. Neste contexto de covid-19, os autores Flávio Jardim e André Silveira em artigo recentemente publicado apresentam duas teorias interessantes relativas à ideia de impraticabilidade e frustração do cumprimento contratual, observe: É de se imaginar, também, obrigações contratuais que não se tornaram literalmente impossíveis de serem cumpridas, mas que, em virtude da pandemia do novo coronavírus, ficaram extremamente onerosas, demoradas ou, para sintetizar, impraticáveis. Esse conceito de impraticabilidade é bem desenvolvido no direito americano. Se, após a celebração do contrato, a execução das obrigações contratuais, sem culpa da parte inadimplente, torna-se impraticável, em razão de um evento cuja não ocorrência era uma premissa fundamental da contratação, o dever da parte de cumprir a obrigação é liberado, salvo se o contrato dispuser em contrário ou as circunstâncias indicarem distintamente. [...] Para explicar situações abarcadas pela impraticabilidade, também são listados como exemplo casos de severa escassez de matéria prima ou de desabastecimento por força de circunstâncias como guerra, embargo, perda de colheita e falência não prevista de fornecedores de produtos que causa aumento substancial no custo ou impossibilita o vendedor de obter as mercadorias necessárias para o cumprimento da obrigação. Tem-se aí a ideia de onerosidade excessiva, já consagrada pela nossa jurisprudência como um elemento que relativiza o pacta sunt servanda. A pandemia do novo coronavírus também provoca inúmeras situações nas quais, a despeito de o adimplemento ser possível, pereceu o propósito pelo qual uma das partes celebrou o contrato. Essa ideia de frustração da intenção foi consagrada no direito inglês como uma das justificativas que permitem que a parte obrigada não cumpra o que pactuado. A doutrina da frustration acabou também consolidada nos Estados Unidos. No Restatement (2nd) of Contracts ela está assim descrita: "quando, após celebrado o contrato, a principal motivação for substancialmente frustrada sem culpa da parte, em virtude de um fato que ela não tinha razão para conhecer e cuja não ocorrência era uma premissa fundamental sobre a qual a contratação ocorreu, não haverá obrigação da parte de cumprir a avença, salvo se a linguagem do contrato ou as circunstâncias indicarem o contrário"6. Sobre a doutrina da frustration, Nelson Rosenvald enfatiza que: A doutrina da frustration está enraizada na common law e independe dos termos do contrato. Portanto, na ausência de uma cláusula de força maior, as partes devem considerar seu escopo. A doutrina é excepcional: ela não existe para permitir que as partes contratantes se furtem a uma bad bargain, pois dificuldades ou inconvenientes não são suficientes. A frustration atuará em circunstâncias muito limitadas, intervindo para eximir justificadamente a performance do contratante. A lei exige um evento superveniente que atinja a própria raiz do contrato - tornando-o física ou comercialmente impossível o seu cumprimento - para além do que foi contemplado pelas partes, sendo que nenhuma delas foi responsável pelo evento. Como o evento precisa ser imprevisto, se as partes tiverem aventado tal eventualidade, ele não mais será imprevisível7. Tema importante que surge diante das hipóteses referentes ao inadimplemento contratual, e que ganha proeminência no contexto de uma pandemia, é a possibilidade de aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial inspirada na teoria na Substancial Performance oriunda do Direito anglo-saxônico. Assunto este que foi objeto de abordagem em recente live realizada por este autor com o eminente jurista Pablo Stolze, em decorrência de uma pergunta realizada por um ouvinte quando da entrevista de Stolze para uma emissora do Estado da Bahia8. Essa teoria propõe que, em se tratando de um adimplemento tão próximo do resultado final que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização. Não sendo justo resolver o contrato no caso de inadimplemento mínimo, tendo em vista que estaríamos violando a função social e a boa-fé objetiva, devendo, portanto, ser rejeitada a resolução do vínculo obrigacional sempre que a desconformidade entre a conduta do devedor e a prestação estabelecida seja de pouca relevância9. Tal teoria vem ao encontro de diversas situações em que ocorrência do descumprimento ínfimo da obrigação por parte do devedor não deve ensejar a resolução do contrato causando prejuízo exacerbado para aquele que cumpriu a sua obrigação quase em sua integralidade, ainda que não de forma perfeita, por fatos alheios à sua vontade, como é o caso de uma situação relativa à pandemia. Principalmente em razão de uma série de fatores decorrentes desta crise que assola grande parte do planeta, como a perda de empregos, suspensão dos contratos de trabalho e, em certos casos, os acordos trabalhistas que, visando à manutenção do contrato de trabalho, diminuem a jornada laboral com a consequente diminuição do salário do empregado, comprometendo de forma inegável a vida do cidadão e suas finanças. A teoria do adimplemento substancial foi tema abordado nas Jornadas de Direito Civil figurando em dois enunciados, que passamos a mencionar: Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475 (Enunciado n. 361 da IV Jornada de Direito Civil). Art. 475 - Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil - CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos (Enunciado n. 586 da VII Jornada de Direito Civil). De acordo com o exposto, a aplicação da teoria do adimplemento tem por fim precípuo a preservação e continuidade das relações contratuais, fundamentada nos princípios da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, que são decorrência lógica deste principio. Assim, o dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer destes deveres anexos implica inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. Tratando-se de violação positiva do contrato. A jurisprudência pátria tem abordado o tema em seus julgados, como podemos observar os do Tribunal da Cidadania, Superior Tribunal da Justiça: Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Adimplemento substancial. Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36 prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios. Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, daí a expressão "adimplemento substancial", limita-se o direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004 (REsp n. 1.200.105-AM, rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 19.06.2012). (Inf. n. 500) Direito civil. Contrato de venda e compra de imóvel. OTN como indexador. Ausência de estipulação contratual quanto ao número de parcelas a serem adimplidas. Contrato de adesão. Interpretação mais favorável ao aderente. Exceção do contrato não cumprido. Afastada. Inadimplemento mínimo verificado. Adjudicação compulsória cabível. Aplicação da equidade com vistas à conservação negocial. Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Dissídio não demonstrado. 1. Demanda entre promitente vendedor e promitente comprador que se comprometeu a pagar o valor do imóvel em parcelas indexadas pela já extinta OTN. Na ocasião, as partes acordaram que o adquirente arcaria com um valor equivalente a certo número de OTNs estabelecido no contrato. No entanto, no instrumento particular de compra e venda não restou definida o número de prestações a serem pagas. 2. O Tribunal de origem sopesou o equilíbrio entre o direito do adquirente de ter o bem adjudicado, após pagamento de valor expressivo, e o direito do vendedor de cobrar eventuais resíduos. Nesse diapasão, não há que se falar em violação do dispositivo mencionado referente à equidade. O artigo 127 do Código de Processo Civil, apontado como violado, não constitui imperativo legal apto a desconstituir o fundamento declinado no acórdão recorrido no sentido de se admitir a ação do autor para garantir o domínio do imóvel próprio, reservando-se ao vendedor o direito de executar eventual saldo remanescente. 3. Aparente a incompatibilidade entre dois institutos, a exceção do contrato não cumprido e o adimplemento substancial, pois na verdade, tais institutos coexistem perfeitamente podendo ser identificados e incidirem conjuntamente sem ofensa à segurança jurídica oriunda da autonomia privada. 4. No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as consequências que, da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das consequências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida. 5. Recurso Especial improvido. (REsp n. 1215289/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, j. em 05.02.2013, DJe, 21.02.2013). Leasing. Adimplemento substancial. Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do ora recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing). A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, ou seja, foram pagas 31 das 36 prestações, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Consignou-se que a regra que permite tal reintegração em caso de mora do devedor e consequentemente, a resolução do contrato, no caso, deve sucumbir diante dos aludidos princípios. Observou-se que o meio de realização do crédito pelo qual optou a instituição financeira recorrente não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento nem com o CC/2002. Ressaltou-se, ainda, que o recorrido pode, certamente, valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, por exemplo, a execução do título. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 469.577-SC, DJ 5/5/2003, e REsp 914.087-RJ, DJ 29/10/2007.(REsp 1.051.270-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/8/2011). (Inf. n. 480) Sobre a adoção da teoria do adimplemento substancial pelo Superior Tribunal de Justiça essa não vem sendo admitida nas hipóteses de alienação fiduciária10, o que, acompanhando a posição do jurista Pablo Stolze, respeitosamente, divergimos deste entendimento. Assim, ainda que o inadimplemento seja mínimo, o STJ acolhe a resolução do contrato com perdimento do bem objeto de alienação, vejamos: Ação de busca e apreensão. Contrato de financiamento de veículo com alienação fiduciária em garantia regido pelo Decreto-Lei 911/69. Incontroverso inadimplemento das quatro últimas parcelas (de um total de 48). Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Descabimento. Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69. A controvérsia posta no recurso especial reside em saber se a ação de busca e apreensão, motivada pelo inadimplemento de contrato de financiamento de automóvel, garantido por alienação fiduciária, deve ser extinta, por falta de interesse de agir, em razão da aplicação da teoria do adimplemento substancial. Inicialmente, releva acentuar que a teoria, sem previsão legal específica, desenvolvida como corolário dos princípios da boa-fé contratual e da função social dos contratos, preceitua a impossibilidade de o credor extinguir o contrato estabelecido entre as partes, em virtude de inadimplemento, do outro contratante/devedor, de parcela ínfima, em cotejo com a totalidade das obrigações assumidas e substancialmente quitadas. Para o desate da questão, afigura-se de suma relevância delimitar o tratamento legislativo conferido aos negócios fiduciários em geral, do que ressai evidenciado, que o Código Civil se limitou a tratar da propriedade fiduciária de bens móveis infungíveis (arts. 1.361 a 1.368-A), não se aplicando às demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária disciplinadas em lei especial, como é o caso da alienação fiduciária dada em garantia, regida pelo Decreto-Lei 911/1969, salvo se o regramento especial apresentar alguma lacuna e a solução ofertada pela "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela mencionada lei. No ponto, releva assinalar que o Decreto-lei 911/1969, já em sua redação original, previa a possibilidade de o credor fiduciário, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento - sendo, para esse fim, irrelevante qualquer consideração acerca da medida do inadimplemento - valer-se da medida judicial de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a ser concedida liminarmente. Além de o Decreto-Lei não tecer qualquer restrição à utilização da ação de busca e apreensão em razão da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, preconizou, expressamente, que a restituição do bem livre de ônus ao devedor fiduciante é condicionada ao pagamento da "integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial". Por oportuno, é de se destacar que, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.418.593-MS, sob o rito dos repetitivos, em que se discutia a possibilidade de o devedor purgar a mora, diante da entrada em vigor da Lei n. 10.931/2004, que modificou a redação do art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei, a Segunda Seção do STJ bem especificou o que consistiria a expressão "dívida pendente", assim compreendida como as parcelas vencidas e não pagas, as parcelas vincendas e os encargos, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, cujo pagamento integral viabiliza a restituição do bem ao devedor, livre de ônus. Afigura-se, pois, de todo incongruente inviabilizar a utilização da ação de busca e apreensão na hipótese em que o inadimplemento revela-se incontroverso e quando a lei especial de regência expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário somente nos casos de pagamento da integralidade da dívida pendente. (REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, por maioria, julgado em 22/2/2017, DJe 16/3/2017) (Inf. n. 599). Assim, alçando às instâncias judiciais, em caso de inadimplemento por descumprimento ínfimo do contrato que, já tenha sido parcialmente cumprido, poderá a parte devedora alegar a teoria do adimplemento substancial em face do credor. Sendo plenamente viável a sua aplicabilidade, inclusive em decorrência de fatos ligados diretamente ou indiretamente à pandemia. A questão que nos surge a partir de então é: o STJ, antes da pandemia, não admitia a aplicação da teoria do adimplemento substancial em casos de contratos de alienação fiduciária, como bem observado na jurisprudência. Será que, após a pandemia, havendo inadimplemento considerado ínfimo, decorrente diretamente do novo estado de coisas gerado pela Covid-19, o STJ passará a admitir a aplicação da teoria do adimplemento substancial nas hipóteses de alienação fiduciária? Não sabemos qual será o posicionamento do STJ para essa hipótese, mas, de qualquer forma, acreditamos que seria um grande passo que o entendimento acerca do assunto fosse reavaliado pelo Tribunal da Cidadania, sendo oportuna a mudança com o objetivo de evitar maiores danos às partes contratantes. No entanto, nesse momento de excepcionalidade que vivenciamos, os impasses surgidos entre as partes contratantes devem, primordialmente, valer-se das técnicas de mediação e de autocomposição, abandonando, tanto quanto possível, a judicialização dos conflitos. Porque é certo que, somente os interessados poderão avaliar de forma mais apurada as suas necessidades, buscando o equilíbrio e a melhor solução para os problemas que possam surgir durante a execução do contrato, sempre tendo por objetivo alcançar o bem-estar das partes, fundamentando as avenças nos princípios da boa-fé objetiva e da lealdade e confiança. Sabendo que a negociação, espontânea e livre das partes contratantes sempre é um caminho a ser trilhado para alcançar soluções que sejam satisfatórias para todos os envolvidos. *Cristiano Sobral Pinto é doutor em Direito. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na FGV, Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Professor universitário, palestrante e autor de diversas obras jurídicas. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 2 Segundo a OMS, uma pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença, em geral, indica que uma epidemia se espalhou para dois ou mais continentes com transmissão de pessoa para pessoa. 3 O Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, tem dado ao fato o status de força maior. De acordo com divulgações até 3 de março, o referido Conselho já havia emitido mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais de 53 bilhões de dólares em prejuízos. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 4 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 5 Art. 422, do CC: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 6 O novo corona vírus e a relação contratual. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 7 Os impactos do coronavirus na responsabilidade contratual e aquiliana. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 8 A pandemia e a teoria do adimplemento substancial. Realizada em 06 de abril de 2020. Disponível aqui. 9 Pinto, Cristiano Vieira Sobral. Direito civil sistematizado. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 402-403. 10 Impõe mencionar que o STJ também não admite a aplicação da teoria do adimplemento substancial no caso de descumprimento da obrigação alimentar.
Texto de autoria de Oksandro Gonçalves Racionalidade limitada e assimetria informacional É fato notório o estado de pandemia generalizada no Brasil, com vários decretos federais e estaduais regulando a matéria com maior ou menor vigor. Quase que concomitantemente ao estado de calamidade pública, levantou-se uma bandeira advogando a necessidade generalizada de revisar os contratos ou simplesmente propondo moratórias uniformes. A doutrina rapidamente se debruçou sobre essas ideias, demonstrando a sua precipitação, na medida em que vigora a regra de que os contratos devem ser cumpridos. Mesmo nas situações que deva ser exigida alguma temperança, é necessário que não seja realizada a partir de um modelo generalizado, mas, sim, a partir da particularidade de cada contrato1. Os artigos 3172, 3933, 4214, 421-A5, 4786, 4797 e 4808, do Código Civil são constantemente invocados para justificar teses favoráveis e contrárias a revisão contratual. Primeiramente, cumpre anotar que o comportamento social, em busca de justificar o descumprimento ou a revisão de contrato na pandemia, em parte é reflexo dos comportamentos dominantes no meio em que nos encontramos inseridos. Refiro-me à pressa com que também vários Estados da federação buscaram socorrer-se do Poder Judiciário para eles próprios suspenderem o cumprimento de suas obrigações com a União9. Utilizou-se o argumento de que a pandemia gerou a necessidade de novos esforços financeiros para atender as exigências de saúde. Entretanto, na prática, essa demonstração fica prejudicada ante a dificuldade em demonstrar que os valores que deveriam ser pagos foram efetivamente destinados àquela finalidade tão nobre. Essa conduta por certo sinaliza aos contratantes em geral que é preciso buscar abrigo no paternalismo contratual, típico do movimento que buscou relativizar a força obrigatória dos contratos. Os contratantes são tomados como verdadeiros ignorantes no momento em que celebram um contrato e depois julgam não ser necessário cumpri-lo. Trata-se de um ato condicionado pelo meio: revisar é preciso. Todavia, também não deixa de ser um ato calculado, com elevado nível de consciência e reflexão. Os contratantes, de modo geral, buscam obter uma vantagem no contrato, ainda que a posteriori e com uma justificativa fraca, como é o caso do covid-19. O segundo ponto reside na existência de uma regra de interpretação para os negócios jurídicos, prevista no artigo 113, inciso V, do Código Civil. Nesse dispositivo afirma-se que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a razoável negociação das partes sobre a questão discutida. E também deve ser inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração10. A racionalidade econômica é um dos pilares da economia e possui várias abordagens. Desde a clássica visão do homo economicus, aquele agente econômico perfeitamente racional e capaz de elaborar suas decisões a partir de cálculos complexos; ou então, na visão marginalista11, em que a utilidade advinda com a compra de mais uma unidade iguala o custo de sua obtenção. Entretanto, a realidade é muito diferente. E o que se pode ter é uma racionalidade limitada, que substitui o ótimo pelo suficiente e a maximização pela simples satisfação, eis que não é possível controlar todas as variáveis existentes para ter uma racionalidade pura e desprovida das interferências do meio. No plano contratual, a racionalidade limitada envolve informações de que não dispomos e que exigem custos de transação para obtê-las e processá-las. No caso dos contratos, os custos de transação surgem quando uma operação não consegue se realizar, o que pode ocorrer em razão da pandemia. Portanto, a própria pandemia pode ensejar a adoção de medidas que constituem custos de transação à execução do contrato, como é o caso das medidas restritivas de funcionamento de certas atividades empresariais. Diante dos efeitos dessas medidas, a tendência é que as partes contratantes atingidas disponham de informações que lhes são próprias. Estas, em especial quanto ao efetivo impacto, dimensão e extensão para saber se podem ou não cumprir o contratado tal como havia sido originalmente definido. Isso abre espaço para condutas oportunistas e a deslealdade contratual, o que fica evidenciado pela tentativa quase que generalizada de justificar o descumprimento de contratos a partir da pandemia12. A solução tradicional é custosa e ineficiente, além de imprevisível. Ao demandar em juízo em busca de uma revisão contratual ou da resolução sem ônus há uma demanda com custos de transação e o resultado dela é incerto. A segunda forma de solução é a edição de normas reguladoras da nova fase pandêmica, com o estabelecimento de novas regras para os contratos em vigor, chamadas regras transitórias. Toda norma tende a gerar incentivos que podem ser positivos ou negativos. Portanto, a criação de uma norma para regular uma situação excepcional tem o defeito de desconsiderar uma gama bem variada de contratos, que são mais complexas do que a moldura legislativa. Assim, a edição de normas transitórias desconsidera as condições de reciprocidade contratual que são estabelecidas pelos contratantes. Esquece-se que estes possuem melhores condições de realizar juízos de valor e ponderação a respeito dos custos e benefícios de cumprir o contrato e partilhar os ganhos, ainda que sobre novas bases que levem em consideração as mudanças que podem ser decorrentes da pandemia. Portanto, é preciso considerar em qualquer interferência sobre o contrato, a sua racionalidade econômica. Esta deve ser inferida a partir das informações disponíveis no momento da celebração em comparação com as novas informações. Natural, portanto, que exista entre os contratantes um nível de assimetria de informação típica da racionalidade limitada a que todos estão sujeitos. Todavia, a confiança depositada por elas no instrumento contratual será uma forte impulsionadora de ajustes privados eficientes. Para tanto, serão consideradas as particularidades do contrato, maximizando o nível de satisfação de cada uma das partes. Assim, o reajuste dos parâmetros contratuais não necessariamente será de igualdade absoluta, mas de reequilíbrio das condições contratadas segundo as informações disponíveis para cada um dos contratantes. Por exemplo, o deferimento de uma moratória generalizada causará um problema de seleção adversa. Lançará os contratantes, que estavam dispostos a renegociar as bases do contrato, na mesma situação daqueles que apenas aguardavam um momento para o exercício de condutas oportunistas e desleais. Então, aqueles que estavam tendentes a negociar abandonarão essa disposição, igualando-se aos que não estavam dispostos a qualquer negociação. Como salienta Fernando Araújo, "na presença de várias opções de ação igualmente disponíveis mas desigualmente eficientes, tenta-se racionalmente minimizar os custos ou maximizar os ganhos, ou ambos simultaneamente: tenta-se a máxima eficiência de custos, o maior benefício líquido (isto é, deduzidos os custos), procurando minimizar desperdícios na obtenção de quaisquer estados de satisfação"13. Assim sendo, é preciso explorar essas "zonas de transações", onde estão as "disposições negociais das partes"14, porque elas estão situadas na relação de confiança estabelecidas pelas partes no momento em que resolveram contratar. Por certo que a maioria dos contratos são cumpridos devidamente, tal como pactuado, e que apenas uma minoria acaba por ser levada à discussão judicial. Portanto, as regras disponíveis são regras de cumprimento, e por isso a dificuldade que se tem em enfrentar o descumprimento do contrato. Em tempos pandêmicos, é pouco provável que as partes tenham previsto possíveis alterações das circunstâncias negociais iniciais e mesmo as futuras, a curto e médio prazo. Por exemplo, é pouco crível que um contrato de locação em shopping center realizado em dezembro de 2019 tenha considerado a perspectiva vivenciada a partir de março de 2020. Assim, nem as circunstâncias iniciais indicavam um problema dessa magnitude, nem as circunstâncias mediatas, de curto e médio prazo, especialmente diante dos sinais de retomada do crescimento econômico brasileiro. Outro exemplo que podemos citar é de alguns contratos envolvendo as lojas dos aeroportos brasileiros, os quais sofreram com as restrições de voos e, por isso, tiveram uma queda estimada de 91% da circulação de pessoas, impactando sobre as lojas. O Poder Judiciário foi chamado a decidir e considerou o impacto para as duas partes do contrato. Ainda, levou em consideração o fato de a INFRAERO ter oferecido espontaneamente condições diferenciadas para o período de pandemia, as quais, todavia, não foram aceitas pela loja que judicializou o contrato15. Os exemplos acima visam destacar a importância do debate e as dificuldades no seu enfrentamento. A racionalidade econômica prevista no artigo 113, do Código Civil O legislador fornece alguns instrumentos para o enfrentamento dos problemas derivados das medidas administrativas para enfrentar a pandemia, notadamente o disposto no artigo 113 do Código Civil. Caso seja necessária a intervenção judicial, será preciso considerar a razoabilidade da negociação entre as partes, inferida a partir das (i) demais disposições do negócio jurídico e da (ii) racionalidade econômica das partes. Retornemos ao exemplo dos contratos de locação de shopping center, em que houve a paralisação total ou quase total das atividades. Considerando a sua natureza específica de empreendimento com um mix de lojas e demais atividades, a paralisação impactará sobre os resultados de todos os lojistas, com repercussões sobre (i) o valor do aluguel e (ii) o prazo de duração do contrato. Todavia, permanecem inalteradas as obrigações do shopping center em relação a segurança do local e a sua manutenção frequente para preservar justamente os bens dos lojistas. A rigor, não há culpa de nenhuma das partes do contrato, nem onerosidade excessiva porque uma das partes não está em extrema vantagem em relação a outra. A paralisação é fruto de um fato do príncipe, uma determinação da administração pública, que independe da vontade das partes. Assim, caso seja necessário promover a intervenção no contrato, deverá ser levada em conta uma interpretação que considere a racionalidade econômica, ou seja, pautada em deveres de colaboração recíprocos e estruturadas sob uma lógica de tempo e disponibilidade de espaço. Uma das propostas neste caso tem sido a redução do valor do aluguel, mas para se chegar a esse valor não há uma fórmula mágica, razão pela qual será preciso considerar os diversos fatores envolvidos (extensão das medidas administrativas tomadas, portfólio das lojas componentes do mix, o tempo do contrato, o tipo de cálculo dos alugueres, etc.). A solução mais eficiente, ressalte-se, não está na judicialização. O conflito surgiu em razão de os contratos serem geralmente incompletos, não sendo comum previsões envolvendo pandemias ou a decretação de estado de calamidade pública, associada a medidas de restrição de locomoção e reunião. O mais eficiente é a reabertura das negociações entre as partes, porque elas possuem informações que dificilmente o magistrado conseguirá levantar. Os custos de transação da negociação serão muito inferiores aos da judicialização, porque estão condicionados pelas informações que cada uma das partes possui acerca da extensão dos efeitos individuais e que podem ser repassados ao contrato. A racionalidade econômica, no caso do shopping center, envolve a redução proporcional do valor dos alugueres e uma possível prorrogação dos contratos. Enquanto ao locatário, compete oferecer o pagamento de uma parte dos alugueres para fazer frente às despesas de segurança e limpeza, que o beneficiam diretamente. Sendo o contrato é um ato de vontade das partes, somente a elas cabe, a partir do conjunto de informações que possuem acerca das possibilidades reais de se promover o cumprimento do contrato, realizar os ajustes necessários para viabiliza-lo. A negociação tem o condão de repartir de forma adequada o ônus dos riscos, permitindo que as partes cheguem a uma nova versão do contrato que seja mutuamente proveitosa. A intervenção estatal somente deve ocorrer quando o seu custo seja inferior às vantagens que do acordo entre as partes resultar. O desafio está em se determinar a racionalidade econômica do contrato, caso a questão seja judicializada. Wittman ofereceu uma solução afirmando que o objetivo do direito contratual é "minimizar o total dos custos de modelagem do contrato pelas partes, do de sua interpretação pelos tribunais e dos comportamentos ineficientes resultantes de contratos mal redigidos ou incompletos"16. Portanto, o primeiro ponto a ser verificado reside em como se deu a alocação de riscos no contrato pelas partes e seus respectivos ônus, conforme o modelo contratual. O segundo ponto reside em avaliar os arranjos escolhidos pelas partes para regular a relação e que não funcionaram, embora não fosse essa a intenção inicial. Finalmente, o terceiro ponto é o da intervenção judicial que deve refletir um custo inferior às economias que os arranjos privados entre as partes poderiam gerar. Mas como o juiz poderá se guiar neste caso? Primeiramente, o juiz deve compreender que ele está em desvantagem em relação às partes contratantes em razão da assimetria informacional, pois partindo de uma relação triangular comum certamente ele será o menos informado no momento de decidir, em comparação ao conjunto de informações detidas pelas partes contratantes17. Segundo, se o juiz for chamado a decidir deverá partir do modelo de contrato perfeito, ou seja, aquele contrato em que as partes teriam idealmente previsto absolutamente todas as variáveis possíveis. Embora saibamos que os contratos perfeitos não são factíveis, sendo a realidade formada majoritariamente por contratos incompletos, é a partir da noção de contrato perfeito que o juiz pode começar uma análise em "dégradé". O objetivo é o de modelar os direitos envolvidos e poder atribuir a respectiva vantagem a cada uma das partes, para minimizar o custo total de acidentes de percurso no contrato18. O objetivo primordial, nestes casos, é o de evitar o oportunismo que se dá por astúcia ou força. Citamos, como exemplo de astúcia, algumas tentativas de obter a colação de grau antecipada em Medicina, em razão da pandemia. Basicamente são hipóteses em que, acadêmicos de Medicina, buscaram o Poder Judiciário para obter seu título de bacharel antes do cumprimento integral da carga horária do curso na instituição de ensino respectiva, resolvendo os contratos de educação19. Outro exemplo de astúcia, é a indicação geral de que, em razão da pandemia, não será possível dar cumprimento ao contrato. Entretanto, é necessário que se prove de que forma efetivamente as determinações da administração pública impactaram sobre o contratante a ponto de impedir o cumprimento do contratado. Assim sendo, deve-se atentar para os casos de oportunismo contratual. Aqueles casos em que as partes pretendem evadir-se do contrato, sob a alegação genérica de que foram atingidos por algum dos efeitos dos atos administrativos editados em razão da pandemia. Se verificada uma hipótese de oportunismo, com deslealdade na execução do contrato, deve-se sancionar pesadamente no plano processual a tentativa de usar o processo para obter finalidade ilegal. Promovendo o incidente de forma infundada, alterando a verdade dos fatos, será aplicada a pena de litigante de má-fé20. Conclusão O objetivo do presente artigo foi demonstrar como a racionalidade econômica precisa ser considerada no processo de interpretação de eventuais litígios contratuais que tenham por fundamento, direto ou indireto, a pandemia. Se, de um lado adaptações e ajustes devem ser necessários em função desse novo e passageiro momento social, de outro essas adaptações aos imprevistos, fruto da racionalidade limitada própria dos contratantes, não podem dar azo a comportamentos oportunistas. Sugere-se, primeiramente, que os contratantes busquem ajustes cooperativos capazes de refletir a respeito das suas condições de reciprocidade próprias daquela relação contratual. Precisamos valorizar os custos e benefícios da lealdade contratual e dos ganhos que possam derivar desse ato, preferindo-se a tutela da confiança à tutela do interesse contratual positivo. Deve-se evitar, também, o paternalismo contratual, com a indevida invasão sobre a autonomia privada das partes na formação do contrato. Não é crível que todos os contratantes tenham, do dia para a noite, perdido completamente a sua força para promover ajustes nos contratos celebrados. Como houve um impacto generalizado, sendo difícil encontrar quem não tenha sofrido ou esteja sofrendo com a pandemia e suas consequências, a tendência geral é que todos sejam incentivados a cooperar e renegociar os termos inicialmente ajustados. *Oksandro Gonçalves é pós-doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela PUC/PR. Professor titular da Escola de Direito da PUC/PR. Advogado. __________ 1 Sobre o tema, destacam-se: RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da Covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito? In Migalhas Contratuais, quarta-feira, 8 de abril de 2020. KREMER, Bianca. Covid-1 e contratos comerciais: força maior como medida terminativa e revisional. Migalhas Contratuais, quarta-feira, 15 de abril de 2020. SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas Contratuais, segunda-feira, 23 de março de 2020. 2 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 3 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 4 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. 5 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. 6 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 7 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. 8 Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. 9 Até o dia 8/4/2020, ao todo 17 Estados haviam pedido e conseguido liminares junto ao Supremo Tribunal Federal suspendendo o pagamento de suas dívidas com a União. 10 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: ... V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º ... 11 "A Revolução Marginalista, tendo como centro o desenvolvimento da supracitada Teoria da Utilidade, compreendeu que o valor de um bem é definido não somente pelo trabalho (custo), mas também pela utilidade marginal que o indivíduo espera obter das escolhas realizadas". RIBEIRO, Márcia Carla; DOMINGUES, Victor Hugo. Economia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Revista Brasileira de Políticas Públicas (UNICEUB), volume 8, n. 2, agosto 2018, 12 Para não dizer que se trata de um fenômeno brasileiro, Carlos Eduardo Pianovski relata, em seu texto publicado no Migalhas Contratuais, que após a alteração da lei alemã sobre alugueis, para enfrentar a pandemia, muitas empresas simplesmente anunciaram que deixariam de honrar os contratos, o que somente foi revertido ante a repercussão negativa. PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A crise do Covid-19 entre boa-fé, abuso de direito e comportamentos oportunistas. Migalhas Contratuais, 16 de abril de 2020. 13 ARAÚJO, Fernando. Introdução à economia. 3ª ed., 4ª reimp. Almedina: Coimbra, 2005, p. 46. 14 ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato. Almedina: Coimbra, 2007, p. 51. 15 TRF4, AG 5014027-50.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA. 16 WITTMAN, Donald. Economic fundations of law and organization. Cambridge: Cambrigde University Press, 2006, p. 194. 17 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphanie. Análise econômica do direito. Tradução Raquel Sztajn, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 2015, p. 422. 18 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphanie. Análise econômica do direito. Tradução Raquel Sztajn, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 2015, p. 420. O autor ressalta que a completa especificação do contrato não vale o custo dos incômodos que seriam evitados e, por isso, são necessariamente incompletos (p. 421). 19 "Se, por um lado, é certo que a autonomia universitária - didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial (art. 207, caput, do CRFB) - comporta limitações constitucionais e infraconstitucionais (STF, ADI 4.406, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18/10/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 30/10/2019 PUBLIC 04/11/2019); por outro, não se extrai da regulação estatal sub examine a obrigatoriedade do reconhecimento do direito dos acadêmicos de Medicina à colação de grau antecipada, pelo mero cumprimento de carga horária mínima (excepcional), estabelecida pelo Ministério da Educação. Ainda que a situação de emergência de saúde pública, vivenciada no Brasil e em outros países, justifique a implementação de medidas excepcionais, é indispensável cautela na flexibilização dos critérios pedagógicos preestabelecidos e na certificação - de modo genérico e coletivo - da aptidão profissional dos estudantes, porque a permissão ampla e irrestrita para a atuação direta na assistência à saúde da população (leia-se, sem a supervisão de um professor responsável), mediante a antecipação da conclusão do curso de graduação, pelo mero cumprimento de 75% (setenta e cinco por cento) da carga horária prevista para o período de internato médico, poderá acarretará danos maiores do que aqueles que se almeja evitar. Ante o exposto, indefiro o pedido de antecipação da tutela recursal. Intimem-se, sendo as agravadas para contrarrazões. Após, ao Ministério Público Federal". (TRF4, AG 5013056-65.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA). E ainda: TRF4, AG 5012819-31.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relator CÂNDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR 20 Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Texto de autoria de Daniel Bucar Os acentuados reflexos econômicos ocasionados pela pandemia da covid-19 já são uma realidade. A retração na cadeia de circulação de bens e serviços já se impõe e, excetuados os denominados bens e serviços essenciais, os demais atores da economia sofrem, em variadas medidas, o revés da crise sanitário-econômica. Ante os acentuados problemas daí decorrentes, um em especial merece atenção: o endividamento crítico da pessoa humana. Primeiramente, uma advertência deve ser feita: o tratamento do grave endividamento patrimonial se distancia daquele destinado ao desequilíbrio do sinalagma de um certo e único contrato (uma locação, uma franquia ou uma prestação de serviço, por exemplo), para cuja problemática já é notável o debate promovido pela civilística, notadamente por meio desta coluna1, em torno das consequências daí originadas e de seus respectivos remédios. Não é para estas situações que se destinam estas notas. A reflexão aqui se dirige, portanto, à patologia do endividamento patrimonial crítico, cuja universalidade envolve, como sabido, todas as relações jurídicas dotadas de valor econômico (art. 91, CC). Portanto, vai-se além da análise de uma única relação jurídica. Para a desequilíbrio patrimonial da pessoa humana, o ordenamento jurídico prevê, a princípio, o impiedoso e desconhecido processo de insolvência, regulamentado pelos artigos 748 a 786-A do CPC/732. O expediente, positivado a partir de estudo teórico3, desconsiderou, contudo, que por trás dele haveria uma pessoa humana e viva. Note que a ideia é excutir a integralidade do patrimônio do devedor, a quem, ouvidos os credores, até pode ser destinada uma pensão por decisão judicial (art. 785, CPC/73). O anacronismo do procedimento é ainda demonstrado pela retirada da autonomia negocial do insolvente4 (senão um morto civil, o insolvente é considerado um incapaz - art. 752, CPC/73) e por um desajustado concurso de credores, que, disciplinado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 957, sequer previu uma atenção especial, por exemplo, a alimentos. Um apontamento positivo, contudo, merece ser destacado. Após penar por um procedimento torturante, o ordenamento prevê, ao menos, a extinção das obrigações não pagas pela alienação dos bens do devedor (art. 780, CPC/73), cuja excepcional forma de extinguir o vínculo passa geralmente despercebida pelos manuais de direito das obrigações. De toda forma, a bancarrota do próprio processo de insolvência é patente: são pouquíssimas pessoas que a ele se submetem - pois dele todos fogem - e, dado o seu caráter deliberadamente sancionatório, seu manejo acaba por ter como objetivo uma vendeta do credor, nas raras vezes em que o procedimento é encontrado. Por outro lado, diversamente de patrimônios destinados à atividade empresária, bem como a experiência estrangeira5, não há um processo coletivo expressamente previsto pela lei para renegociação de débitos da pessoa humana. Quando muito, resta-lhe a utilização de expedientes processuais para revisar, por vezes sem fundamento, determinadas dívidas e, desta forma, valer-se da morosidade do Poder Judiciário para "girar" o passivo (parcelar o pagamento ou prorrogá-lo até o momento em que haja ativos disponíveis para tanto). Esta omissão legal expressa estimulou a doutrina consumerista a buscar uma saída de emergência para o tratamento do que chamaram de consumidor superendividado. A proposta encontra-se em tramitação no Congresso Nacional6, mas, no entanto, as medidas projetadas mostram-se acanhadas, pois cuidam de tratar apenas endividamento decorrente de relação de consumo. É pouco. Basta pensar que duas relevantes preocupações da doutrina e do legislador em um período de pandemia simplesmente são ignoradas por esta solução parcial: os alimentos e a locação. O patrimônio é único, garantidor geral dos créditos (art. 391, CC), e não se pode, portanto, buscar tratamento parcial para salva-los de débito que simplesmente não possuem posição preferencial no ordenamento brasileiro. Em contrapartida, é alvissareiro o PL 1397/20, produzido em caráter emergencial para lidar com questões de recuperação judicial e falência no âmbito da crise sanitário-econômica. Em seu texto, pela primeira vez, prevê-se a aplicação de regras próprias de tratamento coletivo de débitos para pessoa natural que desempenhe "atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade"7. Ora, pessoa natural que exerça atividade econômica em nome próprio é qualquer pessoa que participe do processo econômico de uma sociedade, com seu patrimônio. São todas as pessoas naturais, portanto. No contexto do referido PL, também é bem-vindo o instituto da Negociação Preventiva. Por meio dele, faculta-se ao devedor, que tenha sofrido redução de 30% ou mais na sua receita (art. 5°, §2°), requerer a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária (art. 5°, caput). Em suma síntese, este se desenvolve a partir de rodadas de negociação com todos seus credores, durante o período máximo de sessenta dias (art. 5°, incisos II, III e IV), as quais podem contar com o auxílio de um negociador, ou não, a depender da escolha do requerente (art. 5°, inciso II). Contudo, até o Projeto de Lei (ou texto semelhante) ser aprovado, há que ser estimulado, por inúmeras razões (entre outras, boa-fé objetiva e limites da responsabilidade patrimonial), a renegociação extrajudicial e coletiva dos débitos que oneram o patrimônio do devedor, de sorte a lhe proporcionar reabilitação patrimonial. Tal renegociação deve ter como balizas o próprio patrimônio do devedor e as preferências de pagamento de cada débito. Mas se nem extrajudicialmente for possível alcançar a desejada recuperação, de uma leitura atenta do ordenamento jurídico, desprovida de timidez interpretativa (que se impõe superar em um período de exceção), é possível extrair instrumentos para o tratamento judicial do patrimônio da pessoa humana criticamente endividado. Com efeito, se o ordenamento brasileiro tem no valor da pessoa o seu fundamento (art. 1º, III, Constituição da República), uma leitura axiológica do artigo 52 do Código Civil ("Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade") permite aferir que é lícito e recomendável aplicar às pessoas humanas, no que couber, as proteções patrimoniais da pessoa jurídica. Assim, como inclusive já indicado por precedente do Superior Tribunal de Justiça8, há que se superar, enquanto inexistir previsão legal específica, o suposto abismo entre a reabilitação do patrimônio da pessoa humana e a recuperação do acervo destinado à atividade empresária, já disciplinada pela Lei 11.101/05. Considerando que o sistema recuperacional da referida lei está fundado no princípio da preservação da empresa, com maior razão o ordenamento deve emprestar ferramentas à preservação da pessoa humana, cujo excessivo endividamento lhe furta condições materiais para a manutenção mínima de um projeto de vida. Neste sentido e em linhas gerais9, levando-se em conta que o patrimônio garantidor de débitos é o limite de excussão dos credores, é imperioso viabilizar ao devedor o pleito de recuperação de seu acervo endividado, por meio de procedimento simplificado, aplicando-se, no que couber, lei 11.101.05), bem como, em situações mais críticas e com as devidas adequações, até mesmo o amplo procedimento da recuperação judicial com a possibilidade, inclusive, de aplicação do chamado cram down (espécie de imposição judicial do plano - art. 58, §1°, lei 11.101/05). Nestes termos, é notável a importância das ferramentas oferecidas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência no tratamento da insolvência da pessoa humana, sobretudo no atual cenário de crise sanitário-econômica. Não só os institutos da referida legislação, mas as orientações jurisprudenciais firmadas, ao menos em suas linhas gerais, são de utilização recomendável, no tratamento deste patrimônio em crise. Um ponto, contudo, parece ser certo. Em um ordenamento fundado no valor da pessoa humana, cujo protagonismo na atividade econômica deve ser reconhecido - não há economia sem pessoas e vice-versa, o princípio da solidariedade se impõe e a renegociação coletiva, abalizada nos conhecidos critérios concursais é medida que afasta interesses egoístas de credores sobre um patrimônio gravemente endividado. "Farinha é pouca, meu pirão primeiro", neste cenário, não pode ter vez. *Daniel Bucar é professor Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e mestre em Direito Civil (UERJ). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Procurador do município do Rio de Janeiro. Advogado. __________ 1 Entre os quais se destacam a aplicação i) dos feitos da força maior, ii) da revisão, iii) da resolução e iv) do dever de renegociar. Vide Anderson Schreiber, Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional; Eduardo Souza Nunes e Rodrigo da Guia Silva, Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus; Carlos Eduardo Pianovsky, A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus; Flávio Tartuce, O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade; Aline Miranda Valverde Terra, Covid-19 e os contratos de locação em shopping center; SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio; SCHULMAN, Gabriel. Covid-19: Os contratos, a incerteza os desafios para a manutenção das empresas e a exceção da ruína; RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito?; PIANOVSKY, Carlos Eduardo. A crise do covid-19 entre boa-fé, abuso do direito e comportamentos oportunistas; RAMOS, André Luiz Arnt; CATALAN, Marcos. Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise. 2 Única parte ainda em vigor do antigo Código de Processo Civil, conforme artigo 1052 do Diploma vigente. 3 A disciplina codificada reflete, em boa parte, a tese "Do concurso de credores no processo de execução", apresentada por Alfredo Buzaid, um dos principais elaboradores do CPC/73, para o concurso da Cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da PUC/SP. 4 Portanto, a própria renegociação. 5 Para notícia do fresh start norte americano e o padrão europeu, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 127/166. 6 O projeto de atualização do Código de Defesa do Consumidor, que cuida do superendividamento, já foi aprovado pelo Senado Federal e atualmente tramita perante a Câmara dos Deputados (PL 3515/215). 7 Art. 1º do PL 1397/20. 8 "A Lei de Falências há de ser aplicada analogicamente à execução de quantia certa contra devedor insolvente nos casos em que a lei processual civil se apresenta omissa, como sói ocorrer quanto à multa moratória e aos juros, porquanto ubi eadem ratio ubi eadem dispositivo" (STJ, 1. T., REsp 1108831/PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 23-11-2010, DJe 3-12-2010). 9 Para uma exposição mais detalhada, que não é viável neste espaço, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 180-200.