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Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, José Fernando Simão, Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
Texto de autoria de Marcos Ehrhardt Jr.1 Nas primeiras semanas de cada ano que se inicia, costumamos avaliar projetos em andamento, fazer novos planos, decidir quais rumos seguir. Listas, metas, desafios e novas expectativas. O que esperar para o campo dos contratos nos próximos anos? Essa foi a primeira pergunta que surgiu assim que recebi o convite do IBDCONT para colaborar com esta coluna. O desafio da complexidade e o impacto da tecnologia Tanto no campo acadêmico quanto no campo profissional, preocupa-me a crescente dificuldade dos operadores jurídicos (magistrados, advogados, membros do Ministério Público...) de lidarem com situações cada vez mais complexas. O modelo contratual clássico, com suporte em papel e vocação puramente patrimonial, não é mais suficiente para uma realidade negocial plural, transnacional e em constante mutação, provocada por avanços tecnológicos que mudaram não apenas o nosso modo de comunicação e interação com o próximo, mas também a forma como registramos os atos que praticamos e até mesmo os bens objeto dos negócios jurídicos que celebramos. Enquanto nosso Código Civil remete à contratação entre ausentes por correspondência epistolar e detalha formas de contratação envolvendo bens imóveis com observância de requisitos formais específicos, registrados em um suporte físico (papel), a maioria dos alunos que iniciam seus passos no mundo do direito vivem num período em que nunca experimentaram enviar uma carta para um amigo pelo correio, não atribuindo importância à conservação de documentos físicos, quando guardam "na nuvem" informações e dados que consideram importantes. A interação social ocorre em redes sociais, normalmente de forma escrita em mensagens de poucos caracteres, arquivos de áudio de poucos minutos, sendo cada vez mais raro encontrar, entre as novas gerações, quem utilize primordialmente o telefone para a função de ligar e conversar em tempo real com outra pessoa. Recentemente, ao ligar para um amigo a fim de cumprimentá-lo por seu aniversário, ouvi do outro lado da linha a pergunta: "está tudo bem?", pois "se você ligou em vez de enviar mensagem, deve estar ocorrendo algo bastante sério". Vivemos num período em que as noções de tempo e espaço são redefinidas pela forma de interação tecnológica que adotamos. A tecnologia mudou antigos hábitos, e com ela surgiu a necessidade de desenvolvermos novas habilidades. Mas nem todos abraçam a tecnologia e suas funcionalidades com a mesma rapidez e/ou têm acesso aos mesmos recursos. Se antes havia uma clara distinção entre os que eram alfabetizados e aqueles que não conseguiam ler, o avanço tecnológico criou barreiras, que podem ser ainda mais difíceis de transpor do que a alfabetização de um indivíduo. Em tempos de obsolescência programada e de uma incessante busca por novas funcionalidades e interação, não é nada fácil manter-se atualizado, conseguindo dominar o último modelo de computador, smartwatch ou smartphone, nova versão do sistema operacional, definições de segurança da informação e acesso remoto a dados. Se você consegue garantir atualização nisso, é preciso perguntar ainda se tem o mesmo nível de informação e desenvoltura quando o tema da conversa passa por IOT (internet das coisas), aplicações com uso de inteligência artificial ou registros blockchain. Isso sem falar em registros biométricos para criptografia e nos demais aspectos relativos à infraestrutura relacionada aos avanços tecnológicos. Aqueles que receberam formação jurídica nos últimos 30 anos acostumaram-se a buscar a solução de todos os problemas exclusivamente no campo jurídico e raramente realizavam incursões noutros campos do saber. Mas o monopólio das soluções a partir das normas jurídicas não é possível no cenário atual, considerando os avanços científicos. Difícil propor soluções para o que não conhecemos em profundidade ou de que não vivenciamos a utilização. Como entender um match numa rede social, as consequências de um bloqueio de seguidor ou o compartilhamento em serviços de streaming sem a experiência de ser usuário de uma aplicação de semelhante natureza? Em que ponto da aplicação de tecnologias você, caro leitor, se encontra? Considerando a lista a seguir, o que faz parte do seu cotidiano: rádio, jornal, televisão aberta, TV por assinatura, streaming, podcast, notificações em tempo real por aplicativos, realidade ampliada com uso de inteligência artificial e uso de assistentes pessoais (= e.g.: Siri)? Eu poderia perguntar de outra forma: você paga suas contas no banco? Em lotérica? Em aplicativo para telefone celular? Com dinheiro tradicional ou com moedas eletrônicas? Será que todos ao seu redor utilizam a tecnologia da mesma forma? Como navegar num oceano de desafios. Hora de inflar as velas da colaboração e da informação Num momento de transição entre o universo de usuários e não usuários, dos iniciados em tecnologia e daqueles que não se importam em entender como ela funciona, é nos contratos que buscamos ferramentas de tradução da realidade e a prevenção dos problemas que essa intensa disparidade de conhecimento provoca, exigindo de quem atua na área a máxima atenção com a boa-fé objetiva e o dever de informação, que não deve se limitar à redação de cláusulas contratuais. Lidamos com interesses diversos, acesso a informações de modo assimétrico, que se repete no campo financeiro e técnico. Lidar com assimetrias e com questões que transcendem interesses individuais para o campo dos direitos transindividuais e difusos faz-se presente na agenda de qualquer profissional. De um trabalho tradicionalmente individualista, realizado na solidão de nossos escritórios, passamos a experimentar um espaço aberto de colaboração, no qual múltiplos saberes e competências são necessários para lidar com intricadas questões, quer sejam sobre aplicações da engenharia genérica para a saúde, quer seja sobre a utilização de informações pessoais por terceiros para fins econômicos, ou ainda o risco do desenvolvimento de novas tecnologias em substituição por máquinas de atividades exercidas por seres humanos. Contrato combina com complexidade? Acredito que a resposta seja afirmativa. O contrato, enquanto expressão do exercício da liberdade negocial, vale dizer, da autonomia privada, é o espaço privilegiado para lidar com o campo da inovação e das incertezas. Não é possível ignorar a realidade e seus avanços. A vida não espera a regulamentação dos novos campos de atuação pelo poder público. É justamente neste espaço de atuação que o trabalho dos profissionais que atuam elaborando contratos se torna decisivo. Além de definir partes e objeto do contrato, há de se analisar os efeitos da avença para com terceiros, observar sua adequação às normas ambientais e demais marcos regulatórios, o atendimento adequado às diretrizes de compliance do outro contratante e por vezes dos seus parceiros, juntamente com o posicionamento do negócio em relação aos demais stakeholders (funcionários, fornecedores, acionistas e consumidores). Em breve, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados2, adicionando novas camadas de requisitos a serem observados em contratações que há muito tempo não se limitam a aspectos materiais do negócio, passando a regular também o procedimento da solução de controvérsias, na busca do mecanismo mais adequado para a resolução de problemas de execução, seja no campo do Judiciário, seja através de um método alternativo escolhido de acordo com as peculiaridades do caso específico. Mais do que definir as condições de preço, forma de pagamento e obrigações das partes, deve o profissional que elabora contratos agir prospectivamente, analisando futuros cenários do relacionamento negocial, elegendo ferramentas de superação de intercorrências na direção do melhor adimplemento possível para contratantes que precisam enxergar no outro polo da avença um colaborador proativo e não um antagonista. Se nem sempre é fácil ser bem-sucedido na elaboração e execução de contratos fechados e por tempo determinado, o que dizer dos contratos cativos de longa duração, vale dizer, dos contatos relacionais, cuja duração se confunde com a própria existência dos seus figurantes? Para ilustrar, cabe aqui uma pergunta: desde quando, caro leitor, você tem plano de saúde e até quando pretende mantê-lo? No modelo dos contratos relacionais, a alocação dos riscos do negócio vai sendo alterada durante a sua própria execução, não sendo possível, no momento de sua celebração, precisar o cenário futuro após décadas de vigência de cláusulas negociais pensadas noutro contexto de regulação e equilíbrio econômico. Para lidar com situações como a acima descrita, desenvolvem-se teorias acerca de contratos propositalmente incompletos, nos quais a mencionada alocação de riscos não é estabelecida no momento de sua celebração, estabelecendo-se, ao contrário, mecanismos para a solução das contingências ao tempo que forem surgindo. Em tempos de economia do compartilhamento, em que ter propriedade plena, para muitos, deixa de ser algo essencial, para ser substituído pelo direito de uso de certos bens por determinados períodos, considerando-se ainda que a velocidade da disrrupção dos avanços tecnológicos pode tornar obsoleto determinado serviço em poucos anos, fazer uso de formas deliberadamente incompletas de contratos, permitindo avenças sucessivas entre as partes ou a deliberação dos problemas por terceiros previamente estabelecidos para a resolução de questões pontuais, passará a ser uma estratégia negocial cada vez mais frequente a fim de enfrentar as mudanças de circunstâncias que interferem no equilíbrio do acordo entre as partes. Enfim as perspectivas... Estamos acostumados a visualizar os contratos como um texto cheio de itens registrados em papel e temos dificuldade em reconhecer, com o mesmo grau de importância e necessidade de atenção, formas de contratação verbais e, especialmente, aquelas realizadas por interação eletrônica. Ainda existem os que pensam que "se não está registrado em papel no cartório, não é tão importante". Aqui não me refiro apenas à contratação em sites de comércio eletrônico, mas a negócios celebrados em redes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram) e dentro de aplicativos de jogos e utilitários. Juntem-se a isso as plataformas on line de resolução de conflitos e as transações negociais sobre direitos patrimoniais disponíveis. Contratamos quando realizamos o download de um joguinho, por mais inofensivo que ele pareça, pois concordamos em dar acesso a dados pessoais que vão remunerar a utilização do aplicativo, em conjunto com a publicidade que deve ser assistida como um requisito para mudar de fase ou conseguir alguma vantagem no jogo. Desenvolvedor, provedores de acesso e aplicação, agentes de marketing, empresas interessadas em divulgar produtos e serviços, são figurantes de uma cadeia complexa de fornecedores que apresenta diversas coligações contratuais, sendo difícil enxergar todo o quadro negocial envolvido. Um dos maiores desafios que os próximos anos nos reservam é a forma como colocaremos em prática a necessária tradução de uma teoria contratual analógica para um mundo digital. De nada adianta discutir com um profissional o que seria um contrato "5.0" quando não se compreendem adequadamente as categorias fundamentais de um contrato "1.0". Cite-se, por exemplo, a cada vez mais frequente referência a smart contracts. Mesmo quando celebrados de modo automatizado, por vezes com utilização de recursos de inteligência artificial, os requisitos de existência, validade e eficácia estão presentes na programação que possibilita sua concretização no mundo jurídico. Via de regra, experimentamos um período de lacuna legislativa sobre parte considerável dos avanços tecnológicos citados acima. Enquanto operadores do direito, não podemos aguardar a elaboração de novas leis para tratar das situações que já estão a ocorrer. Há se se funcionalizar e ressignificar institutos clássicos da teoria contratual e fazer uso de uma hermenêutica contratual que garanta efetividade aos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição. É preciso discutir o futuro (= novas formas de contratação e a necessidade de sua regulação), sem esquecer o presente (= tradução e ressignificação dos institutos). Neste aspecto, o advento de novas iniciativas legislativas não pode comprometer uma base teórica sólida que vem sendo lapidada no último século. Desse modo, causa preocupação o projeto de um novo Código Comercial3 que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma4, ao tempo que, infelizmente, não aprofunda em seu texto o debate sobre as inovações tecnológicas aqui debatidas. As referências ao comércio eletrônico, utilização de documentos eletrônicos e, principalmente, responsabilidade dos empresários no meio digital carecem de maior discussão e diálogo com outros microssistemas, o que em muito poderia contribuir, especialmente no que se refere às relações empresariais assimétricas, num país no qual parcela considerável dos empresários pode ser enquadrada como pequenos e microempreendedores. Após todo o esforço de unificação da teoria das obrigações negociais efetuado com a criação do Código Civil em 2002, a simples leitura de alguns dispositivos do referido projeto permite detectar diversos pontos em que não se observa a melhor técnica5, desconsiderando-se o entendimento doutrinário e jurisprudencial já sedimentado em nosso país. A aprovação do texto do projeto, na sua versão atual, repristinaria vários debates no Judiciário sobre a natureza jurídica da relação (v.g., se civil ou comercial), criando um ambiente que parece ser o oposto de quem sustenta serem necessárias a segurança e a previsibilidade na alocação de riscos para o desenvolvimento econômico. Nos dias atuais, há de se compreender os vários matizes do contrato contemporâneo. Quando se menciona "contrato", de qual espécie estamos tratando? Seria um contrato paritário, com partes em condições de igualdade, em posição de discutir de modo equidistante e leal seu conteúdo? Seria um contrato entre particulares, preocupado com o valor de uso do bem e as necessidades pessoais de sua família? Estamos tratando de um contrato massificado, impessoal, com predisposição unilateral de suas condições para o oferecimento de produtos ou serviços em que não há espaço para sua customização de acordo com as necessidades individuais específicas? Por acaso seria um ajuste coletivo, que versa sobre interesses de um grupo, com posição jurídica semelhante? Estamos lidando com um contrato celebrado entre pessoas que gozam de capacidade civil e têm plenas condições de compreender o sentido e alcance técnico, econômico e/ou jurídico das cláusulas estabelecidas, ou estamos diante de relações marcadas por uma vulnerabilidade latente e que necessita de regulação? Tratando de regulação, estamos elaborando um contrato típico com entendimento jurisprudencial consolidado ou lidando com o desafio da lacuna legislativa, num ambiente de forte interferência dos avanços tecnológicos que exigem novas soluções para a garantia da validade e eficácia dos pactos? A tecnologia não está apenas no conteúdo das avenças, nas na forma de sua celebração. Já estão entre nós contratos celebrados em vídeo, cláusulas negociais com explicação em áudio, hiperlink para um glossário ou ainda para um questionário específico, a fim de tornar inequívoca a manifestação da vontade, bem como o consentimento negocial utilizando assinatura criptografada e registro do negócio exclusivamente em meio digital. Em vez de ir ao cartório assinar a escritura, utilizamos um token para assinar e obter o código de validação, lançando mão das mais variadas formas de plataforma de mídia. Porém, conforme mencionado acima, os contratos ditos "inteligentes" ainda dependem de pessoas responsáveis por sua programação e aplicação. A fronteira de até onde avançaremos com a inteligência artificial e a internet das coisas ainda está longe de ser definida. Mas o receio daqueles que imaginam que serão substituídos em breve por uma máquina pode reduzir um pouco se nos prepararmos para um novo período no qual a capacidade de argumentação e a criatividade ganharão cada vez mais espaço em detrimento da cômoda opção de realizar tarefas repetitivas. O contrato do futuro marcará o início de uma caminhada e não necessariamente traçará todos os capítulos do percurso dos contratantes. Os profissionais que atuarem no setor não se despedirão dos figurantes negociais no dia de sua celebração, mas acompanharão a jornada e as necessárias correções de rumo na busca de benefícios mútuos, incorporando avanços científicos, novas oportunidades e interesses, desde que não percamos de vista que o contrato, como instrumento de integração social, evolui e acompanha nossa sociedade em todos os seus passos. Tem-se afirmado com frequência que não podemos ignorar os avanços. Mas disrrupção e inovação não significam ignorar de onde viemos. Se pretendemos visualizar para onde estamos seguindo, é preciso compreender como chegamos até aqui e quais foram os agentes da mudança. Sem entender nossos erros e como eles ocorreram, estamos fadados a repeti-los. Se todos parecem concordar que a perspectiva é de mudança, os caminhos para ela não são unânimes e alguns parecem bem tortuosos. Para lançar um pouco de luz sobre a direção a seguir, devemos reafirmar nosso compromisso com a proteção dos sujeitos. A garantia da dignidade não transige com a necessidade de colocar os contratos a serviço das pessoas, e não o contrário. Que tenhamos um excelente ano. _______________ 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado. 2 O art. 65 da Lei nº 13.709/2018, publicada em 15.8.2018, estabelece um vacatio legis de 24 (vinte e quatro) meses para o início da vigência, com exceção dos artigos indicados no inciso I do referido dispositivo. 3 BRASIL. SENADO. Projeto de lei  487/2013. Acesso em 10.12.2019. 4 Para aprofundar a questão, remete-se o leitor ao recente artigo de José Fernando Simão e Marcello Kairalla, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui. 5 Para outras considerações e críticas ao projeto, ver o artigo "A interpretação do negócio jurídico empresarial no projeto de Código Comercial do Senado Federal nº 487/2013", de autoria de Pablo Malheiros, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui.
Texto de autoria de Pablo Malheiros da Cunha Frota I. A parcial unificação do direito negocial civil e empresarial: é necessário novamente separar as disciplinas jurídicas? José Fernando Simão e Marcello Kairalla, em coluna publicada no Migalhas Contratuais em 18/11/2019, entenderam pela correção da unificação latina do Direito Privado Negocial, bem como do direito obrigacional interno, por meio da teoria das obrigações, respeitadas as peculiaridades de cada país1. Tal unificação, no mínimo, é relevante para tentar a diminuição dos custos econômicos dos negócios jurídicos2 no Mercosul. Nessa linha, o Código Civil de 2002 (CC) unificou parcialmente o direito negocial civil e empresarial, já que, como destacado por Silvio Meira, ainda quando o Código Civil de 1916 ainda era um Projeto de Lei, "não há tipo para essa arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação de existência"3. Isso não afeta eventuais diferenças que possam existir entre as disciplinas jurídicas4. Diante disso, causa estranheza um retorno à separação do direito negocial civil e empresarial, como se percebe no projeto de lei do Senado 487/2013 (Projeto de Código Comercial)5, devidamente criticada por Simão e Kairalla: É de se perguntar, outrossim, a quem interessa a "dessistematização" do direito privado. A quem interessa o retorno das discussões se determinada obrigação é ou não comercial. E, ainda, a quem interessa o retrocesso centenário ao direito compartimentado em um cenário cada vez mais globalizado e unificado? O propósito do presente breve texto é, então, responder as questões formuladas e analisar a ideia da unidade do direito das obrigações, especialmente de sua teoria geral, no ensejo da discussão do projeto de um novo Código Comercial que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma6. Não obstante os questionamentos acima, em matéria de interpretação do negócio jurídico, o Projeto de Código Comercial também pretende trazer enunciados normativos dedicados ao tema, sendo que o art. 113 do CC já trata do assunto, como será exposto em breves linhas no tópico seguinte. II- Textos do Projeto de Código Comercial e do Código Civil Em seu texto inicial, o Projeto de Código Comercial o tópico referente à interpretação do negócio jurídico empresarial foi posto nos arts. 166-170: Art. 166. Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será definida: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. Art. 167. As declarações do empresário, relativas ao mesmo negócio jurídico, serão interpretadas no pressuposto de coerência de propósitos e plena racionalidade do declarante. Art. 168. Não prevalecerá a interpretação do negócio jurídico empresarial que implicar comportamentos contraditórios. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui a coibição ao comportamento contraditório, considerada a conduta da parte na execução do contrato. Art. 169. No caso de silêncio, presume-se que não foi dado assentimento pelo empresário de quem se esperava a declaração, salvo se: I - as circunstâncias ou o comportamento posterior dele indicarem o contrário; ou II - pelos usos e costumes, considerar-se diverso o efeito da ausência de declaração. Art. 170. O negócio jurídico empresarial é presumivelmente oneroso. O Senador Armando Monteiro apresentou emenda n.º 2 para modificar a redação do citado art. 166, sob o fundamento de que deve ser deixado "expresso no texto como indicador para definir a essência, a real vontade dos contratantes. Não deveria ele trazer uma listagem totalmente fechada, mas indicativa", tendo sugerido a seguinte redação: Art.166................................................................................ Parágrafo único. A essência da declaração será fundamentalmente definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial". O senador Pedro Chaves propôs o substitutivo (Emenda 16), no qual vários artigos foram renumerados, com o citado art. 166 tendo sido renumerado para o art. 145: Art. 145 . Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. Existe ainda uma versão do Projeto de Código Comercial ainda em debate no Senado Federal, cuja proposição, até o presente momento, é a seguinte: Art. 125. Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será fundamentalmente definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. § 1º. As declarações do empresário, relativas ao mesmo negócio jurídico, serão interpretadas no pressuposto de coerência de propósitos e plena racionalidade do declarante. § 2º. No caso de silêncio, presume-se que não foi dado assentimento pelo empresário de quem se esperava a declaração, salvo se: I - as circunstâncias ou o comportamento posterior dele indicarem o contrário; ou II - pelos usos e costumes, considerar-se diverso o efeito da ausência de declaração. Os arts. 112 e 113 do CC, que teve sua redação alterada pela lei 13.874/19, possuem a seguinte redação: Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019) I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019) V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)7 Indaga-se: qual a razão do tema ser novamente tratado no referido Projeto de Código Comercial se a redação dos arts. 112 e 113 do Código Civil é mais completa, sem olvidar a construção sobre o tema produzida pela literatura jurídica e pelos Tribunais? III. Crítica ao Projeto de Código Comercial A resposta à indagação anterior é negativa, uma vez que os arts. 166, 145 ou 125 das várias versões do Projeto de Código Comercial: a) manteve a redação posta no art. 112 do CC, lembrando que é inadequado, após o giro-linguístico da segunda metade do século XX, utilizar a ideia de literalidade do texto constitucional ou infraconstitucional, uma vez que um texto comporta, com Victoria Iturralde Sesma, um sentido convencional, que delimita o limite da interpretação8. Nessa linha, a convencionalidade posta no Direito brasileiro sobre a interpretação dos negócios jurídicos de qualquer natureza autoriza a interpretação do texto negocial contextualizado aos comportamentos concretos das partes em todos os momentos pré-negociais, negociais e pós-negociais, como emana do art. 422 do CC. Procurar pela intenção das partes tende a gerar prova diabólica para ao menos uma das partes, além do que a intenção pode ser uma e o comportamento externalizado outro, a prevalecer este último sobre a intenção; b) a proteção ao comportamento em detrimento da literalidade ou da intenção das partes também está presente no Enunciado 409 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF); não há nada de novo nos arts. 166, 145 ou 125 das várias versões do Projeto de Código Comercial. c) tal concepção já está posta no § 1º do art. 113 do CC e é aplicável a qualquer negócio jurídico; e) não se pode reduzir as funções de um negócio jurídico à função econômica, porque os negócios jurídicos possuem outras funções como social, mesmo que esta possa não atingir todos os negócios jurídicos9, regulatória e ambiental10; f) continua a trabalhar com presunção em caso de silêncio, hipótese já resolvida pelo art. 111 do CC. IV. Notas conclusivas Ante ao exposto, o Projeto de Código Comercial, no que toca à interpretação do negócio jurídico traz disposições já dispostas nos arts. 111, 112 e 113 do CC, não inovando e nem contribuindo em nada para uma melhor interpretação dos negócios jurídicos, com o risco de fragmentar a análise do negócio jurídico empresarial em relação ao negócio jurídico civil, separação esta que não faz mais sentido, pois a teoria do negócio jurídico posta no CC abarca todos os negócios jurídicos civis e empresariais. __________ 1 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 2 WILLIAMSON. Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. London: Collier Macmillan Publishers, 1985; WILLIAMSON, Oliver E. Transaction Cost Economics: How it works; where it is headed. In: De Economist. Netherlands, vol. 146 (1151), n. 1, 1998. 3 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 4 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 5 BRASIL. SENADO. Projeto de lei  487/2013. Acesso em 10.12.2019. 6 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 7 Sobre as mudanças do art. 113 do CC diante da Lei da Liberdade Econômica veja: TARTUCE, Flavio. A "LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA" (LEI N. 13.874/2019) E OS SEUS PRINCIPAIS IMPACTOS PARA O DIREITO CIVIL. SEGUNDA PARTE. MUDANÇAS NO ÂMBITO DO DIREITO CONTRATUAL. Acesso em 10/12/2019; ELIAS, Carlos. LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA: DIRETRIZES INTERPRETATIVAS DA NOVA LEI E ANÁLISE DETALHADA DAS MUDANÇAS NO DIREITO CIVIL E NO REGISTROS PÚBLICOS. Acesso em 10/12/2019. 8 SESMA, Victoria Iturralde. Interpretación literal y significado convencional. Madrid: Marcial Pons, 2014. 9 Sobre o tema veja: PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Rio de Janeiro: GZ, 2011. 10 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Os deveres contratuais gerais nas relações civis e de consumo. Curitiba: Juruá Editora, 2011.
Texto de autoria de José Fernando Simão e Marcello Kairalla I - Unificar ou não unificar: eis a questão! A unificação do direito não é questão recente nos debates jurídicos. Já em 1976 Limongi França, em seu "La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano", expôs os motivos pelos quais acreditava na unificação do direito. Aliás, o autor coloca como pressuposto para a integração comunitária, econômica, política e social, a integração jurídica. E, mais além, afirma que a integração deve se dar em dois âmbitos, o externo e o interno, aquele por meio de tratados, convenções e protocolos e este pela unificação do Direito Privado1. Limongi França explicava que havia severa dificuldade na unificação de searas como o direito de família, em razão das muito arraigadas tradições e dos costumes milenares de cada povo. A unificação dos ramos contratual e obrigacional do direito privado, por outro lado, seria uma "impostergável necessidade" como meio para superação de conflitos econômicos dentro da comunidade2. Isso foi afirmado, pois o direito latino-americano possui, grosso modo, as mesmas raízes históricas, quais sejam, primeiramente romana, entre nós fundante das principais regras de direito privado, mas também dos direitos godo, canônico, comum e, posteriormente, ibérico, cujo maior exemplo são as Ordenações Filipinas. Mas as influências comuns não cessaram, pois nos séculos XIX e XX toda a América Latina foi grandemente influenciada pelos códigos civis de Alemanha e França. Dúvidas não há, portanto, que todo o ordenamento privado desses países bebeu da mesma fonte. É verdade que Limongi França, ao descrever o Projeto de Código Civil do Chile, narra que circunstâncias peculiares de cada país influenciaram na elaboração de seus respectivos códigos3. Isso vale para todos os países. Contudo, essas peculiaridades não desnaturaram o fato de os ordenamentos serem essencialmente iguais, de modo que seria recomendável pensar na sua unificação, diante das raízes comuns e da "massa de investimentos". A função da unificação é simples: facilitar as trocas econômicas entre os diversos países de tradição romano-germânica. A unificação do direito privado traria facilidade de transações econômicas ou, na linguagem de Williamson, uma redução dos custos de transação4. Segundo a corrente pró-unificação, militam em favor o fato de que na América Latina há uma quase unidade cultural e linguística. Haveria, nessa região do globo, uma universalidade da formação etnográfica e cultural, de modo que a América Latina seria, portanto, o "primeiro caminho viável para a unificação universal do Direito". Ademais, as regras dos Códigos Civis são afins, como visto, somente com pequenas mudanças em razão de peculiaridades regionais. Ora, se com razão se defendeu a unificação latina das obrigações, com mais razão ainda se deve defender a unificação do direito obrigacional interno. Aqui, com o advento do Código Civil de 2002, procedemos à unificação da teoria geral das obrigações. Isto com base na ideia essencial de Teixeira de Freitas, de razão comum. Não poderiam duas situações fáticas idênticas, com iguais razões de ser, possuir regramento distinto. Já em 1867, Teixeira de Freitas, vendo tal inaceitável incompatibilidade, advogou pela unificação do direito civil e do comercial, ao defender o Esbôço como Código de Direito Privado. Na carta enviada ao Ministro da Justiça em 1867, deixou claro que a unificação era o único modo que "corrigirá o vício de quase todos os trabalhos legislativos, que é o de tomar a parte pelo todo"5. Na preciosa obra de Silvio Meira, há transcrição integral de cartas de Teixeira de Freitas, em especial uma enviada ao Ministro da Justiça que o havia contratado para elaboração do Código Civil, na qual disse: "não há tipo para essa arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação de existência". Em síntese, quase qualquer ato da vida pode ser civil ou comercial, com exceção aos gratuitos. Assinala Teixeira que são exceções, "raros casos", nos quais é "necessário distinguir o fim comercial, por motivo da diversidade nos efeitos jurídicos"6. Não se pode, então, normatizar com base na exceção. Nos dizeres de Teixeira, a unificação "é o plano que nos permitirá erigir um monumento glorioso, plantar as verdadeiras bases da codificação, prestar à ciência um serviço assinalado"7. É de se perguntar, outrossim, a quem interessa a "dessistematização" do direito privado. A quem interessa o retorno das discussões se determinada obrigação é ou não comercial. E, ainda, a quem interessa o retrocesso centenário ao direito compartimentado em um cenário cada vez mais globalizado e unificado? O propósito do presente breve texto é, então, responder as questões formuladas e analisar a ideia da unidade do direito das obrigações, especialmente de sua teoria geral, no ensejo da discussão do projeto de um novo Código Comercial que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma. II - Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 487/13 O substitutivo ao Projeto de lei do Senado 487/13, que pretende instituir um novo Código Comercial, foi amplamente debatido, em Brasília, por diversos juristas convidados na sexta-feira dia 8/11/2019. Dois pontos merecem reflexão nas presentes linhas. O Livro IV do Projeto tem por título "Das obrigações empresariais" e está dividido em três títulos com seus vários capítulos conforme tabela que se segue: Passamos a abordar os problemas que os dispositivos que pretendem criar regras para o inadimplemento da obrigação empresarial (Título I, Capítulo II) criam para o sistema. O artigo 111 do Projeto é inútil. Repete o Código Civil com imprecisão teórica. Equivoca-se o artigo ao não permitir a resolução contratual. Exigir que a parte prejudicada seja mantida em um vínculo ainda que a prestação tenha se tornado inútil ao credor, é ignorar a realidade fática contratual. É o caso do vendedor (empresário) de matéria-prima que, por desídia, deixa o objeto perecer. Se o credor não tem interesse na prestação após o perecimento, pela boa técnica, pedirá a resolução do contrato e as perdas e danos. O projeto, de maneira atécnica, prevê apenas as perdas e danos que, por sinal, podem ser exigidas com a resolução ou mesmo com a exigência de cumprimento da prestação. Seguindo no exemplo acima exposto, trata-se do caso de o vendedor (empresário) que, mesmo que haja atrasa na entrega de matéria prima, ainda se submente à vontade do comprador, que ainda pode ter interesse em exigir a matéria-prima, mais perdas e danos. É por isso que a redação do art. 475 do Código Civil é mais técnica e suficiente para o que pretende o artigo 111 do projeto. Pior são os incisos do dispositivo que mencionam consectários: (i) correção monetária; (ii) juros; (iii) indenização pelas perdas e danos derivados da mora; e (iv) cláusula penal. Note-se que a redação do inciso III menciona "perdas e danos derivados da mora" apesar de o caput do dispositivo falar em perdas e danos. A atecnia grita! Novamente transcrevemos dois dispositivos do Código Civil: Inadimplemento absoluto e mora são distintos segundo a boa doutrina. Na mora a prestação ainda é útil ao credor enquanto no inadimplemento absoluto não é mais. É por isso que a mora pode ser purgada (emendatio morae). Mas do que trata o artigo 111 do projeto? De mora ou de inadimplemento absoluto? Caput e inciso III não dialogam entre si. Há uma confusão categorial evidente por tratar de duas situações distintas em um mesmo dispositivo. Melhor seria que o projeto copiasse os artigos do Código Civil cuja redação não merece reparos. Será que o projeto de Código Comercial pretende excluir dos efeitos da mora e do inadimplemento absoluto o pagamento de honorários advocatícios? Se pretende, que o faça expressamente sob pena de aplicação subsidiária do Código Civil e determinação de pagamento de honorários pelo inadimplente. O que faz a cláusula penal como consectário do inadimplemento contratual se, a cláusula penal, segundo a melhor doutrina (por todos Otávio Luiz Rodrigues Junior8) é exatamente a prefixação das perdas e danos? Poderia o credor cobrar as perdas e danos (caput do art. 111), depois novamente as perdas e danos (inciso III do art. 111) e ainda a cláusula penal? Resposta: não. É por isso que, com melhor técnica, o Código Civil não inclui a cláusula penal como efeito da mora ou do inadimplemento absoluto. A confusa redação do projeto pode levar a crer (em erro) que o credor pode cobrar as perdas e danos somadas à cláusula penal. A função histórica da cláusula penal é de prefixar as perdas e danos (livrando o credor do ônus de provar o dano e sua extensão), bem como de limitar a responsabilidade civil (vide texto do artigo 416 do CC). Teria o projeto de código comercial reinventado a cláusula penal? Toda a categoria passaria a ser puramente punitiva sem nenhuma limitação como as previstas nos artigos 412 (o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.) e 413 (a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio) do CC? Sobre a correção monetária, o ajuste do valor de compra da moeda em razão da inflação, o projeto demonstra sua completa falta de operabilidade, pois assim prevê: "§ 1º. Se não constar do contrato ou título de crédito, o índice da correção monetária será o setorial que medir a variação dos custos no segmento de mercado em que atua o credor, e, em sua falta, prevalecerá o índice geral usualmente adotado pelos empresários". Admitir correção monetária pelo "índice geralmente adotado pelos empresários" é de uma inconveniência ímpar, pois será enorme o debate sobre qual índice seria esse e muito problemática a dilação probatória para se "descobrir" qual índice aplicar. A indeterminação da taxa de juros do artigo 403 do CC revela que a ausência de um valor fixo leva o sistema ao colapso, pois atualmente são intermináveis os debates na doutrina e na jurisprudência se a taxa legal de juros de mora é de 1% ao mês ou seria a SELIC. Melhor seria que toda essa "teoria geral" que o projeto "cria" seja retirada do texto. Isso porque as novas regras criam mais insegurança e confusão do que operabilidade ao sistema obrigacional. Alguns poucos ajustes ao texto do Código Civil (por exemplo sobre os percentuais de juros de mora) resolvem a questão sem quebrar a espinha dorsal do sistema, distorcendo-o. Por fim, cabe uma breve análise das regras previstas para a validade dos negócios jurídicos empresariais (Título II, Capítulo I). Esse trecho do projeto é assustador para quem conhece Teoria Geral do Direito e os ensinamentos da doutrina. Toda a premissa do Projeto nesse título é a seguinte: "art. 118. O negócio jurídico empresarial nulo pode ser confirmado, por retificação ou ratificação, a qualquer tempo, mesmo que já iniciada a ação de nulidade". Ação de nulidade? Falta um adjetivo. Ação declaratória de nulidade. Confirmar negócio jurídico nulo? Segundo alguns, isso reduziria a insegurança jurídica. Bem, se assim fosse, caberia ao projeto especificar em quais hipóteses o negócio jurídico nulo se convalida, ao invés de criar uma regra geral gravosa ao sistema. Causa perplexidade o fato de a ratificação poder ser expressa (por declaração ou manifestação de vontades) ou tácita (pela conduta das partes). Cria o projeto a manifestação por retificação. Retificar é corrigir, alterar. A leitura do texto do Projeto implica a seguinte questão: a simples correção convalida o negócio nulo, ainda que seja uma mudança de data ou a alteração do conteúdo de uma cláusula? E pior: "art. 119. O negócio jurídico empresarial nulo convalesce com o decurso do tempo" e no prazo de 2 anos (art. 128, §1º do projeto). Qual é o problema de se admitir a confirmação (tácita ou expressa do negócio jurídico nulo) ou mesmo sua convalidação após dois anos? O problema é que o projeto ignora as razões que podem levar à nulidade absoluta do negócio jurídico previstas no art. 166 do CC. Vejamos apenas os incisos III e VI: "III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; (...) VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;" Sim, o projeto de Código Comercial pretende tornar válido, por decurso do prazo, negócios jurídicos em fraude à lei imperativa e cujo motivo seja ilícito. E o exemplo da doutrina que é recorrente (o menor com 15 anos que vota em assembleia e depois de 20 anos pretende ter a declaração de nulidade) está nas hipóteses de não convalidação do nulo (inciso I do art. 122 do projeto). Não seria melhor ao sistema prever hipóteses de negócios jurídicos que podem ser ratificados e que se convalidam com decurso do tempo ao invés de se criar uma regra geral que permite aos contratantes fraudarem a lei imperativa? O dispositivo projetado esquece de "combinar com os russos". Se o negócio jurídico empresarial for simulado em fraude ao fisco, após dois anos a nulidade desaparece. O fisco, como terceiro, está impedido de demandar a nulidade para receber o tributo devido? A resposta é não. A solução seria a cobrança de perdas e danos. Pela análise de custos, passa a ser vantajosa a celebração de negócios jurídicos nulos, contando as partes com o beneplácito da lei, pois após 2 anos nada poderá ser reclamado, salvo as perdas e danos cuja prova, no mais das vezes, é difícil e custosa. Novamente, o projeto cria novidades difíceis de se compreender e que, portanto, gerarão dúvidas à aplicação do sistema. Melhor manter a parte geral do Código Civil, com alterações pontuais em matérias específicas. III - Notas conclusivas Conforme exposto, o Projeto de Código Comercial está repleto de atecnias. Falta tanto precisão técnica e quanto cuidado às categorias jurídicas. O projeto falha ao delimitar a resolução contratual, falha ao interpretar e definir a mora e falha ao incluir a cláusula penal como efeito da mora. Mas as falhas a essas supra narradas não se restringem. O projeto quando inova, inova mal. Dinamitar o sistema de nulidades, fazendo com que elas, em regra, convalesçam, é tenebroso para o direito. Beneficia e facilita a fraude e aqueles que atuam em desvio às regras de padrão de conduta. Diante das atecnias o projeto gera mais dúvidas que soluções na aplicação das teorias gerais das obrigações e dos negócios jurídicos. Melhor seria retirar totalmente do Projeto o Título I, capítulo II e o Título II, capítulo I, o que não traria quaisquer prejuízos à operabilidade do sistema, mas, ao contrário, confortaria os empresários com regras já conhecidas e funcionais há décadas, senão séculos ou milênios. É óbvio que isso não afasta eventual necessidade de ajustes pontuais, para suprir demandas específicas da prática, dissolvendo controvérsias atualmente existentes. Não é necessário matar o paciente para curar o resfriado. *José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista. *Marcello Kairalla é mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da USP. Advogado. __________ 1 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. 2 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. 3 Consta da "Mensaje de Montt e Ovalle, sobre a originalidade do texto Projeto chileno: 'Desde luego concebiveis que no nos hallamos em el caso de copiar a la letra ninguno de los códigos modernos. Era menester servirse de ellos sin perder de vista las circunstancias peculiares de nuestro país. Pero em lo que estas no presentaban obstáculos reales, no se há trepidado em introducir provechosas inovaciones'" FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 76. 4 Ver: WILLIAMSON. Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. London: Collier Macmillan Publishers, 1985. E também, do mesmo autor: Transaction Cost Economics: How it works; where it is headed. IN: De Economist. Netherlands, vol. 146 (1151), n. 1, 1998. 5 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 6 Continua o autor, exemplificando com a maestria de praxe: ". os contratos em geral, o mandato, a compra e venda, a troca, a locação, o mútuo, a fiança, a hipoteca, o penhor, o depósito, as sociedades, os pagamentos, a novação, a compensação, a prescrição e os seguros, voltarão a seus respectivos grémios no Código Civil, onde as inscrições são as mesmas. O mandato completar-se-á com as disposições sobre correctores, agentes de leilões e comissários. A locação de serviços com as relativas a feitores, guarda-livros, caixeiros, comissários de transportes, capitães de navios, pilotos, contramestres e gente da tripulação. O depósito com as concernentes a trapicheiros e administradores de armazéns. A troca com o contrato de câmbio e as letras de câmbio. A locação de bens com os fretamentos. O mútuo com as contascorrentes, letras de terra, notas promissórias e empréstimos a risco. A indemnização do dano completar-se-á com as avarias". MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 7 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 8 RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz; JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 2006.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Texto de autoria de Angélica Carlini Aprovada a lei 13.874, de 2019, Lei de Liberdade Econômica, é o momento de avaliarmos seus impactos para setores específicos. Nesta reflexão, a avaliação do impacto da nova lei é construída para os contratos de seguros privados regulados pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP e, mais especificamente para a forma como esse órgão regulador atua na fiscalização de modalidades de seguro disponibilizadas no mercado. Os seguros privados regulados pelo Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP são todos aqueles praticados no Brasil, exceto a saúde suplementar. Assim, os seguros de incêndio, automóvel, pessoas, responsabilidade civil em suas múltiplas coberturas, são regulados e fiscalizados pelo CNSP e SUSEP. Também são regulados pelo CNSP e pela SUSEP a previdência complementar aberta. Já os seguros saúde estão sob regulação e fiscalização do Conselho Nacional de Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar. O artigo 36, letra "c" do decreto 73/66, que regula as atividades de seguros privados no Brasil, determina que compete à SUSEP na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das sociedades seguradoras, fixar condições de apólices, planos de operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador nacional. Em razão dessa determinação fixada na letra "c" do artigo 36, do decreto 73/66, os contratos de seguro se tornaram fortemente padronizados, ainda que produzidos por diferentes seguradoras e para diferentes coberturas de risco. A SUSEP trabalha com um instrumento denominado Lista de Verificação organizada para cada modalidade de seguro e, a partir dele determina minuciosamente o que o contrato de seguro pode conter. Para propor um produto de seguro para ser praticado no mercado, o segurador se adequa à Lista de Verificação da SUSEP para aquela modalidade de seguro e, em seguida, encaminha o material para avaliação da SUSEP que poderá aprovar ou não. O artigo 8º, parágrafos 1º e 3º do decreto 60.459, de 13 de março de 1967, modificado pelo Decreto 3.633 de 18 de outubro de 2000, determina que as seguradoras enviarão à SUSEP para análise e arquivamento, as condições dos contratos de seguros que comercializarem, com as respectivas novas técnicas atuariais. O parágrafo 1º prevê que a SUSEP poderá a qualquer momento, diante da análise que fizer, solicitar informações, determinar alterações, promover a suspensão do todo ou de parte das condições e das notas técnicas atuariais a ela apresentadas; e, no parágrafo 2º está determinado que as condições de seguro deverão incluir cláusulas obrigatórias determinadas pela SUSEP. Em razão dessas determinações, os seguradores só operam com produtos de seguro que tenham sido aprovados pela SUSEP porque o risco de colocar um contrato no mercado e ter que revê-lo, ou modifica-lo é operacionalmente negativo em vista dos custos administrativos que seriam gerados. Desse modo, é preferível aguardar que o corpo técnico da SUSEP analise, faça as exigências de modificação ou aprove, para somente depois colocar o contrato de seguro no mercado para ser distribuído para os setores interessados na contratação. Dessa prática resultam modelos de apólice quase sempre padronizados, divididos em condições gerais, condições especiais, particulares e específicas que nem sempre são facilmente compreendidas pelos canais de distribuição de seguros (corretores de seguro e agentes) e, ainda menos são compreendidas pelos tomadores de seguro, empresas privadas que em razão das especificidades técnicas e operacionais de sua atuação econômica, certamente, prefeririam contratar seguros organizados de forma mais específica, singular, para atender suas necessidades. A dificuldade de compreensão que em grande medida é fruto da necessidade de adequação à Lista de Verificação da SUSEP não é exclusiva de distribuidores e tomadores. Não raro, no âmbito dos tribunais brasileiros são detectadas dificuldades na compreensão dos clausulados, na hierarquia das cláusulas (gerais, especiais, particulares ou específicas) entre magistrados e desembargadores e, não raro, a judicialização do setor decorre dessa dificuldade de compreensão que atinge muitas pessoas. A liberdade para proposição de novas coberturas, de novos modelos de seguro é muito reduzida. Os seguros não-padronizados são pouco praticados no Brasil porque há dificuldade de serem aprovados pelos técnicos que atuam na SUSEP e, com isso são criadas dificuldades para a concorrência e a inovação. No ramo de seguros de responsabilidade civil geral e suas coberturas especiais o problema é constante. A cada dia surgem novas atividades econômicas, novas tecnologias quase sempre indutoras de outras possibilidades de risco e, consequentemente, da necessidade de novos produtos de seguro ou ao menos, de novas coberturas a serem inseridas no clausulado. A velocidade das mudanças na produção econômica com características de intangibilidade como tem ocorrido em tempos de inovação, não é acompanhada pelas coberturas de seguro no Brasil em razão do modelo restritivo adotado pelo órgão regulador e fiscalizador. Os modelos padronizados e os modelos não-padronizados fortemente regulados pela SUSEP impedem que os tomadores de seguro contratem as coberturas mais adequadas a seus negócios e, por vezes, contribuam com as especificidades de sua atividade econômica para o desenvolvimento de novos produtos de seguro, novas modalidades a serem desenvolvidas para contemplar áreas econômicas específicas como o setor de entretenimento, por exemplo, que se expande cada vez mais em todo o mundo. Em outros países do mundo, é possível contratar um seguro com clausualdo all risks que ao contrário do que a tradução literal sugere não cobre todos os riscos, mas, todos aqueles que não estão expressamente excluídos no clausulado. Essa modalidade quase não é praticada no Brasil também em razão da dificuldade de aprovação pelo órgão regulador. Há também o risco de ser colocada no mercado e depois ter que ser retirada por determinação do órgão regulador, se este entender que há alguma inadequação no clausulado adotado pelo segurador. Em 1988 a Constituição Federal no artigo 174 definiu que como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. É possível interpretar o artigo 174 da Constituição Federal como instrumento legal suficiente para mitigar o poder da SUSEP no que tange a aprovação e redação dos clausulados de seguros. Seu poder de regular e fiscalizar, à luz do artigo 174 da Constituição Federal, ficaria restrito às reservas de sinistros e de provisões técnicas das seguradoras, ou seja, com foco na solvência e na liquidez das operações realizadas pelos seguradores e não nos clausulados de contratos colocados no mercado. É preciso reconhecer que o arcabouço jurídico construído a partir da Constituição Federal de 1988 já possuía instrumentos satisfatórios para proteger o equilíbrio das relações contratuais, em especial para os consumidores, mas, não apenas para eles conforme determinações emanadas dos artigos 421 e seguintes do Código Civil de 2002. Assim, desse 1988, já não era mais necessário que a SUSEP monitorasse a atividade dos seguradores na criação de modelos de contrato ou, de clausulados diferentes adequados às necessidades decorrentes das práticas dos agentes econômicos e do mercado. Em conformidade com as melhores práticas regulatórias contemporâneas, o papel do regulador não é coibir a liberdade empresarial mas, fiscalizar com parâmetros objetivos os resultados dessas práticas, em especial, no caso de seguros, a solvência e liquidez das empresas que operam no mercado. A lei 13.874, de 2019, recentemente aprovada, determinou em seu artigo 1º, normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica e, disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador nos termos do inciso IV do caput do artigo 1º do parágrafo único do artigo 170 e, do caput do artigo 174 da Constituição Federal. Em relação à lei 10.406, de 2002, Código Civil brasileiro, a Lei de Liberdade Econômica trouxe modificações expressivas que, certamente, poderão contribuir para um novo momento na regulação dos contratos de seguro no Brasil. Determina a redação do parágrafo único do artigo 421 que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. O artigo 421-A inseriu vários aspectos relevantes para as relações entre tomador e segurador em contratos não regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, como se pode constatar na nova redação do artigo Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019), I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela lei 13.874, de 2019), II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019), III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. Presunção de paridade e simetria até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção; parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais; alocação de riscos definida pelas partes, respeitada e observada; e, revisão contratual em caráter excepcional e limitada. Todos esses são aspectos que podem ser aplicados aos contratos de seguro firmados entre tomadores não-consumidores e seguradores. A regulação e a fiscalização da SUSEP assumirão, a partir da Lei de Liberdade Econômica deverão estar voltadas para aspectos de solvência e liquidez das empresas de seguro, e, consequentemente, menor intervenção no tocante aos clausulados e produtos de serviços criados pelos seguradores para serem disponibilizados no mercado. As determinações contidas nos decretos 73/66, 60.459/67 modificado pelo decreto 3.633, de 2000, precisarão necessariamente ser revistas e reinterpretadas à luz da Constituição Federal e da Lei de Liberdade Econômica, com objetivo de permitir que o setor de seguros seja mais proativo na oferta de coberturas e clausulados e, ao mesmo tempo, seja fiscalizado pela SUSEP nos critérios de solvência e liquidez, para que as reservas técnicas sejam calculadas e administradas de forma segura, com objetivo de proteger os legítimos interesses dos segurados e, de toda a sociedade. O setor de seguros privados no Brasil tem necessidade de novos produtos e coberturas em todas as áreas. Nos seguros de automóvel, nos grandes riscos, na infraestrutura, no agronegócio, na inovação tecnológica, nos seguros de responsabilidade civil, existem muitas possibilidades de criação de produtos para serem oferecidos ao mercado, de forma mais compatível com as necessidades de tomadores empresariais, que contenham clausulados mais objetivos, de compreensão facilitada e organizados em conformidade com as necessidades específicas do segurado. Impedir essa evolução com regulação incompatível com o dinamismo da sociedade contemporânea e com a Constituição Federal não é desejável e, nem está adequado à legislação agora aprovada, a Lei de Liberdade Econômica. A regulação e fiscalização da SUSEP é essencial para que os seguradores não deixem de ser rigorosos na organização e administração das reservas técnicas. Nesse sentido, a trajetória do segmento de seguros é ilustrativa do papel técnico desempenhado pela SUSEP porque poucos foram, nos últimos anos, os episódios de liquidação de seguradoras e, em 2008, quando grupos financeiros norte-americanos viveram sérios problemas de liquidez e solvência, as seguradoras que operam no Brasil seguiram normalmente com suas atividades. A fiscalização das reservas técnicas de seguros no Brasil tem qualidade e experiência e, precisa seguir em conformidade com as melhores práticas. A regulação na área de clausulados de contratos de seguro e de viabilidade de novas coberturas precisa, no entanto, ser revista para se adequar à legislação em vigor. A Constituição Federal e a Lei de Liberdade Econômica determinam que a iniciativa privada deve ter liberdade para atuar e isso significa, evidentemente, liberdade para construir contratos com produtos e serviços adequados para os contratantes, em especial quando as áreas de atividade econômica desses contratantes são específicas, tecnológicas, inovadoras e necessitam de customização, sem que isso signifique abrir mão do regramento técnico e da fiscalização que garantem a viabilidade atuarial das seguradoras. Se na atualidade a SUSEP já colocou para debate público o modelo de sandbox para regulação de propostas de atividades em seguro caracterizadas por inovação, provindas quase sempre de startups ou, mais especificamente, insurtechs, é chegado o momento de colocar em debate maior liberdade para elaboração de produtos de seguro por pelos seguradores, de forma que a livre concorrência seja ampla, efetiva e segura para os tomadores. Existem fundamentos legais para maior liberdade na concepção de coberturas de contratos de seguro e, existe necessidade de que esses produtos cheguem ao mercado brasileiro para tomadores cujos riscos são complexos, específicos e, precisam de coberturas securitárias mais adequadas. É o momento de rediscutir o papel da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP para preservar o que ela tem de melhor - a fiscalização de reservas técnicas - e, permitir a liberdade econômica na concepção de novos contratos de seguro, atentos às necessidades de tomadores, do novo modelo de produção econômica que estamos vivendo e, da própria sociedade brasileira do século XXI. __________ Angélica Carlini é advogada. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Civil pela UNIP. Pós-doutorado em Direito pela PUC/RS. Docente na Escola de Negócios e Seguros e professora convidada no Programa de Mestrado em Administração da UNIP e na pós-graduação da Escola Paulista de Direito - EPD. Diretora Acadêmica da Associação Internacional de Direito do Seguro e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT.
Texto de autoria de Everilda Brandão Guilhermino Na década de 70 um jovem de 17 anos ansiava pela maioridade para ganhar um carro e assim poder exercer sua liberdade dirigindo para qualquer lugar. O patrimônio exclusivo era o seu reconhecimento social de autonomia, status e poder. Em 2019, o jovem de 17 anos, filho do anterior, impacta o seu pai quando em um jantar de família afirma "eu não terei carro, vou de UBER". Mas o que aconteceu entre uma geração e outra para fazer esvair a ideia de patrimônio exclusivo e de acumulação de bens como desejo primordial de uma pessoa? A resposta está na maior revolução já vivida sobre o pertencimento desde a Revolução Francesa e a criação do Estado Liberal. A nova geração não quer "ter", mas "acessar". Acesso e compartilhamento são o futuro do pertencimento. A acumulação de bens impacta uma geração que, vivendo na era digital, percebe o mundo de forma leve e fluida. O peso do mundo corpóreo e da acumulação é um obstáculo ao seu projeto de vida, que inclui uma ótima gestão do tempo e uma experiência de bons serviços. E não há problema se para isso tiver que abrir mão da titularidade exclusiva. Esses novos valores mudaram o jeito de morar, de se alimentar, de trabalhar, de se locomover e de se entreter. Há uma preocupação maior em saber a origem do alimento que se come e da roupa que se veste. Há uma necessidade de tornar acessível tudo que se produz intelectualmente, e nasce um desejo permanente de se estar conectado a tudo e a todos. Eis a era do compartilhamento, que já impacta a economia e a propriedade privada. E como a legislação civil ainda não acompanhou esse novo sujeito e sua nova vida, será o contrato o instrumento que dará segurança jurídica às relações jurídicas oriundas desse novo modo de viver. O direito de acesso como ruptura da propriedade exclusiva Historicamente o acesso aos bens era limitado. Nem tudo estava disponível e nem todos podiam acumular bens, e por isso mesmo, quem conseguia recebia destaque entre os pares no meio social. Ocorre que em algum momento a necessidade de experienciar o acesso aos bens da vida se desarticulou da titularidade, dispensando-se a qualificação de "proprietário" sobre esses bens. O problema do acesso aos bens gerou as primeiras discussões que levaram ao surgimento do Estado Social, afinal era urgente integrar às discussões legais sobre propriedade, o direito de acesso a ela. Se o código protegia o proprietário e seu domínio sobre as coisas, só estaria amparado pela lei aquele que pudesse compor o status de proprietário, mas havia uma tutela a ser gerada para os não-proprietários. Os não-proprietários, por não possuírem uma titularidade sobre qualquer bem, estavam alijados do Direito Civil, pois se nada tinham, não chegavam a se qualificar como um sujeito de direito na ordem civil. Na abstração da lei todos podiam sê-lo, contudo, as relações de mercado separavam bem os que nasceram para servir e os que nasceram para ser servidos, um critério decisivo para a aquisição de bens. (Guilhermino, 2018, p. 70) Para mudar essa realidade, cresceu então uma concepção ligada ao direito de um acesso compartilhado a certos bens de importância universal. Como bem acentua Marcelo Milagres (2014, p. 171), "se é certo que a pessoa é o cento das preocupações, é o valor-fonte da ordem jurídica; não menos necessária é a defesa da acessibilidade a bens indispensáveis ao seu pleno desenvolvimento". Utilizando-se da expressão de Eroulths Cortiano (2002, p. 159-162), essa reflexão traria importantes rupturas no discurso proprietário que marcariam para sempre o modelo de apropriação e de acesso aos bens dos liberais. Esse cenário proporcionou novos arranjos jurídicos que causaram uma ruptura fundamental na propriedade exclusiva. Migrou-se de uma economia de proprietários para uma economia de usuários. A base econômica do capitalismo, fundada da troca de bens (como ocorre na compra e venda) deu lugar a um modelo de acesso, com um proprietário e muitos usuários. Diz Jeremy Rifkin (2001, p. 6) que um tipo diferente de ser humano está surgindo: "Talvez ainda mais importante, em um mundo em que a propriedade pessoal foi considerada há muito como uma extensão do próprio ser e a "medida de um homem", a perda de seu significado no comércio sugere uma mudança considerável na maneira como as futuras gerações percberão a natureza humana. De fato, um mundo estruturado em torno de relações de acesso provavelmente produzirá um tipo bem diferente de ser humano". A sociedade está repensando os tipos de vínculos que definirão as relações humanas a partir do século XXI e buscam nos novos arranjos contratuais a base legal para lhes garantir segurança jurídica de que necessitam. "O capital intelectual, por outro lado, é a força propulsora da nova era, e muito cobiçada. Conceitos, ideias e imagens - e não coisas - são os verdadeiros itens de valor na nova economia" (Rifkin, 2001, P. 4) Por isso é importante avançar no estudo dos bens incorpóreos, essencialmente os digitais, para se compreender esse novo tempo e melhor articular os novos negócios. Na era do acesso não se busca uma apropriação exclusiva, mas o direito de acessá-los na condição de não-proprietário individual. A perspectiva é de tornar esses bens instrumentos de acesso de todos a direitos que são essenciais para a condição humana digna, permitindo a todos vivenciar seu tempo histórico num processo global de inclusão, ao mesmo tempo que garantem a materialização de outros direitos, como a formação da personalidade e o direito de livre expressão (Guilhermino, 2018, p.72). Tomemos por base a indústria do entretenimento. Ela já teve como base a acumulação de bens, agora tem no direito de acesso o seu arranjo contratual básico. Há vinte anos, as experiências de lazer ligadas ao prazer de ouvir músicas, assistir a filmes e ler bons livros passavam necessariamente pelo acúmulo de bens. Todos tinham suas estantes de livros, discos ou CDs, filmes ou DVDs. Agora, uma única caixa guarda todos esses bens, ao alcance da mão em qualquer lugar. É o tempo dos smartphones e aplicativos. Nesse novo modelo contratual, não se estabelece a troca de bens, mas o acesso ao acervo de alguém. Há apenas um proprietário para muitos usuários. E isso reestrutura não só a titularidade sobre esses bens, como redefine alguns importantes parâmetros sobre os poderes que se exerce sobre a coisa contratada. Nesse contexto, contratos de empresas como Netflix ou Spotfy, estabelecem novas regras para o uso da coisa contratada. E a base essencial está na titularidade. Se quem é dono tem o poder ilimitado sobre a coisa, quem é usuário está limitado as regras de acesso. Por isso, o documento mais importante do contrato passa a ser o chamado "termos e condições de uso". Se um filme é retirado do acervo do Netflix, por exemplo, o usuário não tem nenhum direito de exigir o seu retorno, pois não estabeleceu compra e venda sobre ele, apenas o direito de acesso. Um caso interessante aconteceu quando uma senhora residente em Sorocaba, Estado de São Paulo, mãe de uma criança autista, teve problemas com a retirada de um desenho animado do acerto do Netflix. Somente aquela animação acalmava seu filho, pois como autista, precisa estabelecer rituais para muitas atividades do seu cotidiano. A senhora foi até as páginas da Disney e da Netflix no Facebook questionar a retirada do filme do catálogo, e relatou o drama do filho. Teria ela algum direito em virtude do contrato que estabeleceu com a empresa? Certamente não, pois seu direito é de acesso, e não estabelece titularidade, como na compra e venda. A possibilidade de mudança unilateral do acervo está escrita no documento "termos e condições de uso" e demonstra a nova relação do usuário com os bens. Para ter à mão um acervo maior precisa abrir mão da titularidade exclusiva, e correr o risco de a qualquer momento não ter mais a disponibilidade do objeto que lhe interessa. E não há qualquer abusividade no estabelecimento de tal cláusula contratual, pois a base estruturante é totalmente diferente do que se tinha no passado. Quem deseja ter o domínio pleno deve escolher o modelo do acúmulo de bens, mas quem quiser acesso, pode se limitar a cumprir regras do titular do acervo. Novos tempos, certamente. Jeremy Rifkin (2001, p. 93) afirma que estamos preparando uma nova fase do capitalismo, diferente de qualquer coisa que já vivemos. É a consequência do nascimento de uma economia de rede e da contínua desmaterialização dos bens. Para o autor o acesso está se tornando a medida das relações sociais. O compartilhamento como modelo de negócios Outra relevante e substancial ruptura no modelo clássico da propriedade privada está nas relações advindas da economia do compartilhamento, ou economia solidária. As pessoas descobriram que podem ter acesso aos bens que lhe garantem uma melhor qualidade de vida, bastando somente se desapegar da necessidade de uma titularidade exclusiva, compartilhando-o com outras pessoas. O mundo digital forneceu as bases estruturantes para esse novo modelo de viver, onde se compartilha a moradia, o transporte, o local de trabalho, e tantas outras possibilidades. Em outras palavras, todos os itens básicos essenciais a uma vida privada no ambiente urbano já estão inseridos no modelo compartilhado. A cidade de Seul já se denomina a capital do compartilhamento. O governo tem investido intensamente em modelos de negócios compartilhados, nas mais diversas áreas, o que já impacta substancialmente a economia local. E nada mais significativo para demonstrar essa ruptura do modelo proprietário do que os contratos já ofertados pelo mercado imobiliário: o modelo que ressignifica o desejo da "casa própria", elemento marcante na cultura do brasileiro. Os novos contratos propõem uma moradia onde a prioridade seja a qualidade de vida, representada pela proximidade entre casa e trabalho, eliminação de horas de trânsito, e acesso a uma estrutura de qualidade que o morador não teria em uma casa própria, especialmente com financiamentos de uma vida inteira. Tudo isso a partir de um modelo compartilhado de moradia. Para tanto, três modelos contratuais já estão no mercado. O primeiro, permite uma titularidade exclusiva de uma unidade imobiliária reduzida, com amplo acesso compartilhado a serviços essenciais de uma residência, como lavanderia, cozinhas amplas, academias e até closets. O segundo modelo é o chamado "cohousing". Nesse tipo de moradia, há o compartilhamento do espaço físico entre várias pessoas que podem ser até mesmo totalmente desconhecidas. Existem uma área privada para cada pessoa no imóvel, as quais compartilham as áreas comuns. Também é possível um vilarejo privado, com apartamentos exclusivos e toda a área de serviços acessível pelo compartilhamento. O destaque desse tipo de moradia está em ser um atrativo para a terceira idade, o "cohousing sênior". Pessoas que não desejam envelhecer sozinhas, escolhem esse tipo de moradia para garantirem uma moradia digna, à medida que terão acesso a certos bens e serviços que não conseguiria no modelo exclusivo, e ainda terão companhia para afastar a solidão. O terceiro modelo é a multipropriedade. Dividindo o tempo, e não o espaço, muitas famílias podem usufruir do mesmo imóvel, de forma ampla, e somente no tempo que lhes é conveniente. Neste caso, o mercado tem um foco maior em imóveis de lazer, como resorts, mas já está disponível apartamentos residenciais, em negócios destinados a executivos ou outras profissões que não exijam do morador permanecer muito tempo em uma mesma cidade. A modalidade conhecida como time-share é ainda mais inovadora, pois a titularidade se dá sobre "um" imóvel e não sobre "o" imóvel. Em outras palavras, a titularidade existe, mas não sobre um imóvel determinando, e sim aquele que está disponível em determinado condomínio edilício. Esse modelo, típico de imóveis de veraneio, já está sendo estendido para unidades habitacionais, podendo o proprietário trocar sua unidade a qualquer tempo e sem custo, dentro da rede da construtora em todo o país. Eis um desafio interessante para o direito tributário, pois há de se definir se há ou não dever de recolhimento do ITBI nessa permuta. O acesso a curto prazo no lugar de uma propriedade a longo prazo é o atrativo do negócio na economia do compartilhamento, destacando o quão ociosos são determinados imóveis ao longo do ano, apenas atribuindo custos ao seu titular com manutenção e impostos. O mais interessante na multipropriedade é que mescla o modelo tradicional da propriedade exclusiva com o moderno direito de acesso. Além disso, o modelo inclusivo, e não exclusivo, permite um acesso a bens de luxo que não seria possível na propriedade exclusiva. Sem dúvida, o compartilhamento materializa um importante dever constitucional ligado à propriedade: o cumprimento da função social. À medida que esses novos arranjos contratuais afastam a ociosidade dos bens e permitem um melhor uso do espaço urbano, permitem que a propriedade cumpra a missão que sempre se esperou dela desde a criação do estado social, a solidariedade social. Paulo Lôbo (2017, p. 32) defende inclusive a necessidade de regulação de mercado para garantir o acesso aos bens da vida. "Daí a necessidade de regulação do mercado e de intervenção legislativa no sentido de efetivação crescente do acesso das pessoas aos bens da vida. Especialmente os que se consideram essenciais à existência da pessoa, em suas dimensões. Torna-se imprescindível a convivência entre liberdade e poder sobre as coisas, de um lado, e solidariedade social e funcionalização do direito, do outro, como indicação da propriedade contemporânea no Brasil". Na mesma seara, o deslocamento no espaço urbano teve sua revolução nos serviços de transporte por aplicativos. A propriedade exclusiva de um veículo, que já foi o maior desejo de gerações está dando espaço ao foco apenas no deslocamento urbano com conforto e agilidade. A nova geração vê no automóvel algo pesado, de alto custo de manutenção, e com estacionamentos. O veículo compartilhado elimina esses custos e ainda mantém a experiência do modelo exclusivo. Nesse sentido, importante decisão foi proferida pelo STJ que reconheceu não haver vínculo empregatício entre a empresa UBER e o motorista que se utiliza do aplicativo. Do julgado destaca-se os seguintes trechos: "Os motoristas de aplicativo não mantém relação hierárquica com a empresa Uber porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma" (Conflito de Competência N. 164.544. Ano 2019) A decisão torna-se essencial pela segurança jurídica que lança sobre os novos modelos contratuais fundados sobre o pilar do compartilhamento. A compreensão de que o mundo mudou e com ele mudou a forma de se viver e de produzir relações jurídicas é essencial para não se impedir a evolução dos novos tempos. Em virtude da ruptura que causa na propriedade exclusiva, será o contrato a fonte normativa que estabelecerá dois elementos essenciais: a definição do modelo de negócio e as regras de utilização do bem. Isso é fundamental para evitar que um novo modelo de pertencimento seja interpretado pelo Judiciário com base no modelo antigo, decretando-se nulidades, ou mesmo alterando contratos por não se entender sua essência. Por fim, o ambiente de trabalho. O desejo de um estudante sempre foi ter sucesso profissional e ter uma sala enorme para atender seus clientes, em um escritório com tantas outras salas, a um custo altíssimo com salário, manutenção do espaço e tributos. Porém, a própria natureza do trabalho mudou. Empregados que ingressavam na empresa e de lá só saíam aposentados vai sendo substituído pelo trabalho ligados a projetos, propiciando ciclos de atividades em diversas empresas, e até ao mesmo tempo. O foco em resultado se tornou mais importante que a ostentação de espaços físicos e com isso mudou a relação do trabalhador com o seu ambiente de trabalho. Essa perspectiva fez nascer o modelo contratual de "coworking", onde profissionais de diferentes áreas compartilham o mesmo espaço físico, a mesma secretária e a mesma sala de reunião. O modelo permite não só o acesso a um ambiente de trabalho mais luxuoso, como também a uma troca de experiências com novas pessoas e até possibilidades de negócios, tudo isso a custos bem menores do espaço físico. É a insuficiência de recursos, impedindo que todos tenham uma titularidade sobre eles, que demanda uma reformulação no modelo proprietário. O direito de acesso e o compartilhamento redefinem a lógica de mercado, baseada na oferta e na procura, igualando os que podem e os que não podem pagar por uma titularidade exclusiva. E é Stefano Rodotá (2013, p. 44) quem propõe o que denominou, numa tradução livre, de "fundo não proprietário" (retroterra non propietario), um "interesse não proprietário" que surge a partir de uma emersão de um direito que transcende o indivíduo e que caminha paralelo ao interesse proprietário de caráter exclusivo. Para ele, é preciso abandonar a lógica proprietária e o direito civil precisa de uma imagem diversa daquela do passado, organizada em torno das relações proprietárias. Todos esses modelos demonstram o atraso do legislador civil, apegado ao modelo proprietário clássico do século XIX, ao mesmo tempo que tornam o contrato o grande protagonista da relação jurídica. Aumenta a responsabilidade dos contratantes, pois a ênfase está no bom uso da autonomia da vontade, criando negócios criativos, inclusivos e cumpridores da função social, sem descuidar da boa-fé e do solidarismo contratual, princípios que continuarão como bússola dos negócios jurídicos. E já que estamos falando de compartilhamento, se você gostou deste texto, curte e compartilha. Referências Bibliográficas CORTIANO Jr. Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Renovar: Rio de Janeiro, 2002. GUILHERMINO, Everilda Brandão. A Tutela das Multititularidades. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2018. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Coisas. Saraiva: São Paulo, 2017. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. A dimensão privada do existir e a funcionalidade dos bens. In Direito Privado e Contemporaneidade: desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Braga Netto, Felipe Peixoto Braga; Silva, Michael César (orgs). Belo Horizonte : D'Plácido, 2014. RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Makron Books: São Paulo, 2001. RODOTÀ, Stefano. Il Terrible Diritto: studi sulla proprietà privata e i beni comuni. 3 ed. Il Mulino: Bologna, 2013.
segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mediação em conflitos contratuais

Texto de autoria de Fernanda Tartuce Ao celebrar contratos, as pessoas buscam atender aos seus interesses por meio dos ajustes. Apesar da existência de positivos incentivos e de altas expectativas na fase inicial da contratação, fatores variados (como desgastes no convívio, insatisfação pessoal e mudança na visão sobre a melhor forma de aplicação do teor pactuado) podem gerar impasses. A frequente verificação de controvérsias nas relações interpessoais apresenta um efeito potencialmente comprometedor; se o objetivo é evitar prejuízos à interação produtiva entre pessoas e/ou instituições, é essencial dispensar-lhes o tratamento adequado. Apesar das circunstâncias desfavoráveis, muitas vezes as partes não desejam encerrar totalmente a relação, mas apenas reorganizar uma específica situação. Os contratantes podem estar insatisfeitos com a aplicação de uma cláusula em certo contexto, mas não desejar romper o vínculo contratual: vantagens podem seguir presentes em outros pontos e manter a parceria pode ser relevante. O caminho natural é buscar conversar para ajustar a situação. Em momentos de crise, porém, nem sempre a negociação direta é considerada viável. Após experiências pautadas por fatores como comunicação ruim, trocas de acusações e atribuições de culpa, mingua a disposição de conversar; além disso, a descrença na boa fé do outro arrefece o ânimo de dialogar. Tentativas de negociação podem ter ocorrido e restado infrutíferas. Quando alguém reporta essa situação, cabe perquirir: houve atuação esmerada de negociadores com paciência para escutar e refletir sobre opções? Muitas vezes a resposta é negativa. Quando a negociação foi feita sem técnicas nem engajamento, soa adequado considerar que o problema está no mecanismo consensual? Ou é apropriado reconhecer que as pessoas envolvidas podem ter se complicado na comunicação? Havendo dificuldades para dialogar, contar com a presença de uma pessoa imparcial para favorecer a conversação faz toda a diferença. A mediação consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que um terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas para os impasses que os envolvem (TARTUCE, 2019, p. 53). Embora o caminho consensual tenha um potencial proveitoso, há quem resista a trilhá-lo por acreditar que, se não foi apto a negociar sozinho, nada mais pode ser feito. Apesar de compreensível, essa visão não merece prevalecer: o mediador é capacitado tecnicamente para, com técnicas apropriadas, favorecer o fluxo da comunicação e contribuir para a remoção de entraves na negociação. Em termos de gestão apropriada de controvérsias, terceirizar a solução do conflito a um julgador é adequada? Em relações complexas (como as verificadas em muitos vínculos contratuais), delegar a decisão de controvérsias a uma pessoa alheia ao contexto é um fator de grande risco que, estrategicamente, busca-se conter. A mediação, por permitir a contratação de profissionais capacitados e focados no aprofundamento da situação conflitiva, permite dosar riscos e buscar convertê-los em ganhos recíprocos, evitando a delegação da decisão a um terceiro que pode dar tudo a ganhar ou pôr tudo a perder (TARTUCE e MARCATO, 2018, p. 520). Por envolver, sem rígida delimitação de seu escopo, conversações e negociações facilitadas por uma pessoa imparcial, a mediação permite que os envolvidos tratem oralmente de muitos assuntos que o Poder Judiciário provavelmente não alcançaria; como o propósito é satisfazer os interesses subjacentes, variados temas podem ser tratados pelos interessados. Como exemplo, imagine uma discussão em que o locador exige o reajuste do aluguel segundo o índice contratual e o locatário se recusa a arcar com tal aumento. Apesar de as posições evidenciarem preocupações econômicas antagônicas, além do valor locatício há outros interesses relevantes (como a manutenção do contrato e as boas condições do imóvel) que podem até ser convergentes. A negociação mediada por um terceiro imparcial será útil para clarificar intenções e permitir a ampliação de percepções. O mediador poderá colaborar para que os envolvidos dialoguem sobre os interesses comuns estimulando-os a cogitar sobre alternativas e considerar opções que levem em conta não apenas o valor monetário, mas também outras vantagens (como a realização de reparos no imóvel, por exemplo). Reconhecida a existência de interesse mútuo na manutenção de boas relações, diante de um episódio litigioso pode-se colher a oportunidade de trabalhar em prol da realização de ajustes no contrato também em outros pontos; assim, além de resolver o conflito, os envolvidos poderão aperfeiçoar sua atuação negocial e promover seus interesses de forma antes não imaginada (RISKIN, 2002, p. 25). Sob o prisma profissional, oferecer meios rápidos e menos custosos é uma iniciativa importante para que advogadas(os) e gestores(as) de conflitos possam fidelizar as pessoas que atendem. O advogado que se propõe a negociar sem a contribuição de um mediador pode encontrar dificuldades a que não deu causa. Em cenários de intenso desgaste no relacionamento o diálogo direto soa inviável por conta da intolerância de um ou mais participantes; apesar disso, se os envolvidos na controvérsia, apesar das diferenças, seguirem dispostos a buscar uma saída consensual, poderão fazê-lo com a participação de um facilitador da comunicação. Nos contratos empresariais, a mediação pode se revelar apta a viabilizar a maximização de êxito, sobretudo no que tange a três finalidades essenciais: a satisfação dos consumidores, a administração de conflitos nos negócios e a melhoria do funcionamento orgânico da instituição, aprimorando a comunicação entre seus componentes, ponto especialmente relevante em se tratando de empresas familiares (TARTUCE, 2019, p. 383). Com o restabelecimento do diálogo, possibilita-se que a vontade de cada pessoa integre a solução alcançada; tal fator proporciona a formação de um consenso genuíno não só quanto aos termos do acordo como também em relação à sua concretização, conduzindo ao desejado cumprimento espontâneo dos pactos. Há proveitosas experiências concretas em andamento; como informa Diego Faleck, "existem diversos casos de sucesso de mediação no país em setores como seguro, resseguro, construção civil, energia, contratos comerciais, questões societárias e disputas internacionais, envolvendo grandes e importantes empresas nacionais e internacionais que atuam no Brasil e renomados escritórios de advocacia" (FALECK, 2014, p. 263.). São vantagens da mediação contratual: i) a menor duração do procedimento de mediação em comparação com a extensão dos processos judicial e arbitral; ii) a boa relação de custo-benefício-duração que a mediação tem o potencial de oferecer; iii) a existência de inúmeros mediadores capacitados e câmaras privadas de mediação aptas a lidar com controvérsias; iv) a possibilidade de participação dos contratantes na formatação de saídas criativas para compor o conflito (TARTUCE e MARCATO, 2018, p. 525). Cabe aqui um esclarecimento sobre uma falsa representação: a suposta inexorável presença de renúncias em negociações e mediações. Há quem pense que no término do procedimento terá havido concessões recíprocas, de modo que sempre haveria algo a perder. No entanto, como há tempos esclareceu a Escola de Harvard (FISHER; URY; PATTON, 2011), ao adotar um mecanismo consensual disponibiliza-se às partes a alternativa de negociar de forma estruturada, baseando-se não em posições rígidas mas sim nos interesses subjacentes (BERGAMASCHI; TARTUCE, s/d). Ao se valerem da composição consensual, as pessoas abrem um leque de opções para criar formas de acomodar os interesses envolvidos e agregar valor ao que cada uma desejava inicialmente; nessa perspectiva, a eclosão do conflito, especialmente na seara contratual, pode ser vista como oportunidade de melhoria. O contexto atual é propício a que se envidem esforços para desenhar soluções que importem em vantagens recíprocas - especialmente no caso de contratantes que não se veem como concorrentes, mas como parceiros em potencial. A solução da controvérsia é encarada, sob essa perspectiva, como abertura de novas oportunidades negociais. Como exemplo, cabe citar as bem-sucedidas experiências norte-americanas relativas à mediação de conflitos securitários. O meio consensual se revelou eficiente para conjugar os interesses do segurado - que, em princípio, deseja receber a integralidade da indenização securitária -, com aqueles da seguradora - visando a aceitação apenas de riscos cobertos e pagamentos somente nos estritos limites da apólice. Do estudo, resultaram patentes as inúmeras vantagens da mediação para compor tal ordem de controvérsias, destacando-se: (i) a participação de segurado e seguradora na formatação da solução, gerando benefícios mútuos e acordos com maior probabilidade de cumprimento espontâneo; (ii) a melhoria da imagem das seguradoras perante os segurados e o Poder Judiciário, minimizando a impressão de que seriam litigantes contumazes; (iii) a fidelização do cliente, já que as condições gerais e particulares das apólices foram melhor compreendidas pelas partes durante o procedimento; (iv) a possibilidade de reforço dos laços comerciais com corretores e parceiros gerando relações mais duradouras; (v) a redução dos custos das seguradoras na provisão de sinistros a liquidar, conjugada à minimização dos custos de processos arbitrais ou judiciais; (vi) a redução do tempo para a solução dos conflitos (em comparação com a duração dos procedimentos contenciosos) (MARCATO; FERREIRA DA SILVA, 2016, p. 13). Ao permitir o afastamento da sobreposição de posições, a mediação viabiliza a harmonização dos interesses dos contratantes permitindo que construam situações de equilíbrio em relação a prazos, interesses e critérios objetivos. Referências BERGAMASCHI, André Luís; TARTUCE, Fernanda. A solução negociada e a figura jurídica da transação: associação necessária? Acesso em: 13 ago. 2019, FALECK, Diego. Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos. Revista de Arbitragem e Mediação, 42, 2014, p. 263-278. FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes: negotiating agreement without giving in. 3 ed. New York: Penguin Books, 2011. RISKIN, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um padrão para iniciantes. In: AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 5ª ed. São Paulo, 2019. TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Cândida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. TARTUCE, Fernanda; FALECK, Diego; Gabbay, Daniela Monteiro. Meios alternativos de solução de conflitos. Rio de Janeiro: FGV, 2014. *Fernanda Tartuce Silva é doutora e mestre em Direito Processual pela USP. Professora no programa de doutorado e mestrado da FADISP. Coordenadora e professora em cursos de especialização na Escola Paulista de Direito - EPD. Presidente da Comissão de Mediação Contratual do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Presidente da Comissão de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Vice-presidente da Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Diretora do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Membro do IASP. Advogada, mediadora e autora de publicação jurídicas.