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A competência da Justiça Federal em casos de delitos que envolvem a oferta de "criptomoedas" ao público

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Atualizado em 8 de abril de 2025 15:23

Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a satisfação de contar com a colaboração de João Gabriel Ribeiro Preira Silva, juiz de Direito do TJ/DFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, juiz auxiliar no STJ e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, que enfrenta com profundidade e clareza um dos temas mais complexos e atuais do Direito Penal contemporâneo: a competência da Justiça Federal para julgar delitos relacionados à oferta de criptomoedas ao público.

O autor parte da constatação do crescente protagonismo das moedas digitais no cenário econômico e jurídico para analisar como a jurisprudência do STJ tem se posicionado em conflitos de competência entre a Justiça Federal e a estadual. Com base em precedentes recentes, o magistrado esclarece os critérios adotados pelo STJ para diferenciar, por exemplo, operações fraudulentas típicas de estelionato daquelas que, pela estrutura e habitualidade, podem configurar crimes contra o sistema financeiro nacional.

Além disso, o texto chama atenção para a recente alteração legislativa promovida pela lei 14.478/22, que passou a incluir os prestadores de serviços com ativos virtuais no rol das instituições financeiras equiparadas, o que pode provocar relevante inflexão na jurisprudência consolidada até aqui.

Em meio a uma zona cinzenta de regulação e interpretação, o artigo convida à reflexão sobre os limites do conceito de instituição financeira, a natureza jurídica dos ativos virtuais e os contornos da competência penal no Brasil. Imperdível para estudiosos do direito penal econômico e todos os que se deparam com os desafios da criminalidade digital.

Com a palavra, nosso convidado João Gabriel.

Ao menos desde a primeira hipervalorização sofrida pelo "Bitcoin" nos anos de 2017 e 2018, nos quais a criptomoeda saiu do patamar de dólares para dezenas de milhares de dólares, a questão relativa às criptomoedas entrou em voga, inspirando apaixonados debates e deixando em seu caminho uma legião de arrependidos, que do passado só tem a certeza de que se pudessem retornar, adquiririam a "moeda".

Embora de difícil estimativa, tem-se, atualmente, notícia de que cerca de 17 mil tipos diferentes de "criptomoedas" em negociação1, em um mercado que, estima-se, movimenta cerca de US$ 18,83 trilhões apenas nas 15 principais "exchanges"2 (hubs responsáveis por oferecer sistemas de carteira que guardam e oferecem à compra e venda os ativos).

Como não poderia ser diferente, um fenômeno social que tangencia valores de tamanha relevância não passaria ao largo do sistema Judiciário brasileiro, que tem sido chamado a enfrentar problemas jurídicos envolvendo tais ativos, cujo potencial litigioso pode desafiar as mais variadas questões: desde a regulamentação pelas autoridades monetária e de valores mobiliários, passando por questões sucessórias e tangenciando a justiça criminal.

Em termos de justiça criminal, mostra-se quase intuitiva a ligação entre a moeda e a Justiça Federal. Seja porque a CRFB/88 - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 proclama, de maneira direta, o monopólio da União para a emissão da moeda (art. 21, VII), seja porque, no imaginário popular, uma das hipóteses mais comuns de se ver cidadãos submetidos a processos penais perante a justiça especializada é a relativa ao processamento pelo crime de moeda falsa, previsto no art. 298 do CP brasileiro. 

Contudo, ao público mais familiarizado com o Direito Penal, o diálogo entre o instrumento monetário e o sistema criminal evoca também o menos conhecido e mais sofisticado delito de operar uma instituição financeira sem autorização do Banco Central, cuja tipificação encontra-se na lei 7.492/86, art. 16, que comina pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa ao banqueiro clandestino.

Diante da carnal imbricação havida entre o sistema financeiro e a moeda, o próprio constituinte houve por bem estabelecer, em termos claros, a competência da Justiça Federal para processar em julgar "(...) nos casos determinados por lei, (os crimes) contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira" (art. 109, VI da CRFB/88).

Ocorre, contudo, que, no caso do delito de operação irregular de instituição financeira, a despeito da clareza da previsão da regra de competência, a apuração da competência da Justiça Federal resta dificultada por um dos elementos objetivos do tipo previsto no art. 16 da lei 7.492/86: o conceito de "instituição financeira".

Ao leitor mais atento não foge a resposta direta: a carga normativa desta expressão decorre da conceituação direta dada pelo art. 1º do mesmo diploma legal que define que "Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários."

Assim, aos filhos e filhas ou pais e mães que aplicam os recursos de sua prole ou de seus genitores em arranjo de "holding familiar" já se recomenda, de imediato, a contratação de advogado para a defesa em eventual ação penal. No mesmo sentido, aos colegas de trabalho que arrecadam em conta de suas pessoas jurídicas os valores para custeio da confraternização de fim de ano se recomenda cautela.

Obviamente, tais situações de "intermediação" financeira estão ao largo do objetivo da norma penal, que objetiva, em verdade, a persecução penal de pessoas jurídicas que, de maneira sistemática e continuada, captem recursos privados e os mantenham em custódia e, de outro lado, ofereçam crédito ao público.

Assim, a diferenciação entre a adoção de estratagemas que viabilizam, através de engano, fraude, artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento a apropriação de recursos de terceiros, em típica conduta de estelionato, e a lesão à economia popular promovida por instituição financeira não autorizada é mais sutil do que se pode pensar e, por tal motivo, o STJ tem sido chamado, frequentemente, a se pronunciar sobre o tema em conflitos de competência julgados pela 3ª seção.

Dispõe o art. 105, I, d, da CRFB/88 que "Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente (...) d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos".

A análise da jurisprudência da corte em casos em que o delito investigado é o de estelionato praticado em desfavor de particular determinado mediante oferta de investimentos com rendimentos mensais indica posição remansosa do STJ no sentido de reputar competente o juízo estadual.

Neste sentido: (...) A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da lei 7.492/1986. Assim, a princípio, processos criminais envolvendo a matéria devem correr no âmbito da Justiça estadual. (...) (AgRg no CC 189304 / RJ, RELATOR ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, DATA DO JULGAMENTO 13/12/2023, DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 18/12/23)

Em reforço: "A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular)" (STJ, CC n. 146.153/SP, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Terceira Seção, julgado em 11/5/16, DJe 17/5/16).

Mencione-se, ainda, os seguintes conflitos julgados colegiadamente: CC 195.150/SP, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 12/4/23, DJe de 19/4/23; CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20; CC 202.036, ministra Daniela Teixeira, DJe de 11/3/24 e CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.

Da análise de tais precedentes, o que se observa é que, na maioria dos casos, a 3ª seção do STJ tem se pronunciado no sentido de que artifícios comumente estruturados na forma de "pirâmide financeira", devem ser caracterizados, ao menos para efeito de definição inicial da competência para a prestação de jurisdição, como estelionato, incumbindo, portanto, à Justiça Estadual, o processamento e julgamento dos fatos.

Em geral, o entendimento adotado baseia-se nos seguintes argumentos: 

  1. "A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976." (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.);
  2. "(...) 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, no autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. (...)" (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.);
  3. "Conforme jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, "a captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular) (CC 146.153/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 17/5/2016)" (CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20).

Observa-se, portanto, que ausente regulação Federal das "criptomoedas", seja como substitutivo ou representativo da moeda nacional, seja como ativo, tem-se percebido o seu uso como elemento que compõe o "engano", "fraude", "artifício" ou "ardil" típico do estelionato ou como elemento típico da conduta prevista no art. 2º, IX, da lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular).

Ademais, como pontuado pelo ministro Sebastião Reis Júnior por ocasião do julgamento colegiado de um dos primeiros conflitos de competência envolvendo a matéria (CC 161.123/SP), a mera negociação de tais "criptomoedas" não tipifica, por si, delito de ordem tributária que envolva exação Federal, evasão de divisas ou lavagem de capitais antecedida por delito apurado pela justiça especializada.

Pode-se, dizer, assim, que a questão encontra-se pacificada perante o STJ.

Ocorre, contudo, que a pesquisa de jurisprudência também permite encontrar delitos praticados mediante o emprego de "criptomoedas" cuja competência para apuração restou atribuída à Justiça Federal, destacando-se, aqui, o CC 187976 / RS e AgRg no CC 189304 / RJ.

No primeiro precedente citado, a ministra Laurita Vaz estabeleceu "distinguishing" de clareza ímpar: "O caso dos autos, entretanto, possui nuances distintas, uma vez que a atividade exercida pelo investigado não se limitava à compra e venda de criptomoedas, mas incluía também atividades fiscalizadas pela União, tais como a operação de serviços de câmbio, bem assim a captação de recursos em moeda corrente com oferta de rendimentos." (CC 187.976/RS, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 10/8/22, DJe de 18/8/22.)

No último, tratando-se de caso rumoroso que envolveu a apuração de delitos praticados mediante oferta de "criptomoedas" que geraram prejuízos bilionários a milhares de pessoas, a 3ª seção se dividiu, prevalecendo, após o voto desempate proferido pelo presidente da Seção, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a posição adotada pelo relator, o ministro Ribeiro Dantas, no sentido de que "eventualmente, é possível que o referido delito (pirâmide financeira) esteja conexo a outros crimes contra o Sistema Financeiro Nacional".

Asseverou-se, como "distinguishing", naquela ocasião, que "o grupo criminoso funcionou como instituição financeira clandestina, bem como que os contratos ofertados ao público caracterizavam-se como valores mobiliários, na modalidade contratos de investimento coletivo (CIC)" e que "os delitos da Lei n. 7.492/1986 contentam-se com a figura da Instituição Financeira equiparada, na forma do art. 1º, parágrafo único, da referida Lei." (AgRg no CC 189.304/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, 3ª seção, julgado em 13/12/23, DJe de 18/12/23.)

Observa-se, portanto, que diante da prática de delitos exercida continuadamente através da negociação de criptomoedas e sua oferta ao público, não se pode dizer, de maneira definitiva, que a para apuração será exercida pela Justiça estadual. Há, numericamente, superioridade de hipóteses em que o STJ se pronunciou neste sentido, a qual deve ser interpretada como sinal indicativo, no sentido de que o deslocamento da apuração para a Justiça Federal deve ser amparado pelo apontamento de "distinguishing" em linha com os realizados pela Corte cidadã.

A definição, contudo, resta ainda mais turvada pela inclusão pela lei 14.478 do I-A ao parágrafo único do art. 1º da lei 7.492/1986, que passou a equiparar a instituição financeira "a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia".

É certo que, assim como a definição genérica contida no "caput" do dispositivo não é capaz de definir como instituição financeira as práticas cotidianas mencionadas no início do texto, tal dispositivo também não alçará a tal categoria as pessoas que negociem itens, contas e "skins" de jogos online como se ativos fossem.

A questão estará ligada, portanto, à definição jurídica adequada do conceito de instituição financeira, a qual é, a seu turno, diretamente influenciada pelo entendimento que os juristas têm da moeda.

Nesta missão, o componente essencial é o estrutural. O entendimento de que a instituição financeira, para ser assim entendida como tal, é aquela que, com habitualidade, capta recursos junto ao público de maneira ampla, custodiando-os em favor dos depositantes e, na outra ponta, empresta recursos financeiros também ao público, comprometendo-se a devolver os recursos depositados e a colocar à disposição de quem toma o montante emprestado, a soma que mutuou.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.