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Migalhas Criminais

Temas relevantes do Direito Penal e Processual Penal, com enfoque para os julgamentos mais recentes do STF e STJ.

Júlio César Craveiro Devechi
Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a honra de contar com a colaboração da professora Cristina Alves Tubino, mestre em Direito pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e atual assessora de ministra no STJ. Com destacada trajetória na advocacia criminal e na defesa dos direitos das mulheres, Cristina atuou por mais de duas décadas como advogada nas áreas penal, de família e violência doméstica. É autora de livros jurídicos e foi agraciada, em 2022, com a Medalha Myrthes Gomes de Campos. A partir desse repertório profissional, a autora analisa criticamente o julgamento do Tema repetitivo 1.333 pelo STJ, em que a 3ª seção fixou importante tese sobre a aplicabilidade da agravante genérica do art. 61, II, "f", do CP às contravenções penais praticadas no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher. O texto propõe uma leitura contextualizada da decisão, destacando como ela reafirma o papel do Poder Judiciário no enfrentamento à violência de gênero e se alinha com outros importantes precedentes do próprio STJ - como os Temas 1.197 e 1.249 - que consolidam a compreensão de que a violência contra a mulher exige respostas normativas e institucionais firmes, coerentes e protetivas. Além da análise técnico-jurídica da tese aprovada, a autora traz dados estatísticos atualizados sobre a violência doméstica no Brasil e no mundo, problematizando os efeitos da subnotificação e da persistente cultura de silenciamento das vítimas. A partir dessa abordagem, evidencia-se a relevância do julgamento como instrumento para reforçar a responsabilização penal e coibir condutas violentas, mesmo quando enquadradas como contravenções. Trata-se, portanto, de uma contribuição valiosa, que conjuga rigor dogmático com sensibilidade prática, e que amplia o debate sobre os limites e possibilidades do Direito Penal no combate à violência de gênero.  Boa leitura! A 3ª seção do STJ, na sessão do dia 7/8/25 julgou, sob a relatoria do desembargador convocado do TJ/SP Otávio de Almeida Toledo, o Tema repetitivo 1.333, cuja redação aprovada à unanimidade, se apresentou da seguinte forma:  "1 - A agravante prevista no art. 61, II, "f", do Código Penal é aplicável às contravenções penais praticadas no contexto de violência doméstica contra a mulher, salvo se houver previsão diversa pela Lei das Contravenções Penais, por força do que dispõem seu art. 1º e o art. 12 do Código Penal. 2 - Não é possível tal aplicação para a contravenção penal de vias de fato, prevista no art. 21 da Lei das Contravenções Penais, na hipótese de incidência de seu §2º, incluído pela Lei n. 14.994/2024, por força dos princípios da especialidade e da proibição de bis in idem.  Ao fixar o novo Tema, o STJ marca sua posição de destaque no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e firma a compreensão da necessidade de o Poder Judiciário atuar de forma mais efetiva no combate à violência de gênero.  Destaque-se que o Tema 1.333 segue no mesmo sentido dos já aprovados Temas repetitivos 1.197 ("A aplicação da agravante do art. 61, inc. II, alínea f, do CP, em conjunto com as disposições da lei Maria da Penha (lei 11.340/06), não configura bis in idem") e do Tema 1.249 que tratou das Medidas Protetivas de Urgência e reconheceu a sua natureza jurídica de tutela inibitória sem subordinação à existência de boletim de ocorrência, inquérito policial ou processos judiciais (cíveis ou criminais); além de estabelecer que podem ser fixadas por prazo indeterminado, vinculando-se apenas à persistência de situação de risco à mulher; e entender pela necessidade de prévia oitiva da vítima para sua revogação.  Dados sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil e no mundo A violência doméstica e familiar contra a mulher, que já foi anteriormente considerada uma pandemia silenciosa, é um fenômeno mundial.  Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2022), pelo menos 45.000 mulheres e meninas, em todo o mundo, foram mortas por seus familiares, maridos ou companheiros. A Organização Mundial da Saúde divulgou, em 2025, dados que indicam que 27% das mulheres no mundo, entre 15 e 49 anos de idade, sofreram atos de violência física/sexual ao longo da vida. Já no Brasil, o Atlas da Violência 2025, divulgado em 7/5/25, trouxe dados informando que no período compreendido entre 2013 e 2023 foram registrados, pelos órgãos oficiais 47.463 homicídios de mulheres, o que equivale a 13 mortes por dia, sendo que em 2023 foram 3.603 vítimas. A 5ª edição do Relatório "Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil", realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Datafolha, informa que no último ano (2024-2025) 21,4 milhões de mulheres (acima de 16 anos) sofreram algum tipo de violência no Brasil e que 57% de tais atos de violência ocorreram em suas próprias casas. Outros dados relevantes trazidos informam que apenas 25,7% das mulheres buscaram órgãos oficiais para denunciar a violência sofrida? 14,2% buscaram as delegacias especializadas em atendimento à mulher; 10,2% procuraram delegacias não especializadas, 2,2% buscaram auxílio da Polícia Militar e 1,8% ligaram para a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180). Ou seja, se por um lado a subnotificação é a regra, por outro os números oficiais e as pesquisas realizadas demonstram que a violência contra a mulher vem atingindo maiores números a cada ano.  Sobre o julgamento do Tema 1.333 Vê-se, portanto, a importância do julgamento do Tema 1.333 pelo STJ - tanto quanto dos Temas 1.197 e 1.249 -. Ao adotarem entendimento que reflete a adoção de postura mais efetiva não apenas para a proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar, mas também no sancionamento dos autores dos atos de violência com a aplicação de agravante prevista no art. 61, II, 'f" do CP.  Quando do julgamento do Tema, o relator ressaltou que apesar do art. 61 do CP fazer menção a "crime", o art. 12 do diploma legal se refere a "fatos incriminadores" o que faz presumir que se trata do gênero (infrações penais) e não sobre a espécie (crime). E que "com relação à dosimetria da pena e, em especial, o regime de agravantes, a LCP é silente em sua parte geral, não disciplinando de forma diversa o tratamento de tais infrações penais. Portanto, de acordo com a regra da especialidade, não havendo regulamentação própria em sentido diverso pela lei especial, deve incidir a Parte Geral do Código Penal na matéria". E afirmou, ainda, que a "hipótese sob análise, encampa vetor interpretativo que direciona a solução da questão posta em sentido inequívoco: cabe ao Poder Judiciário, ao analisar ilícitos de relevância penal (sejam eles contravenções ou crimes), quando envolverem violência contra a mulher, conferir-lhes o devido desvalor". Daí porque a fixação da tese considerando a necessidade de aplicar a agravante mencionada aos crimes de contravenção penal, excetuando-se a contravenção das vias de fato em razão da alteração legislativa trazida pela lei 14.994/24, nas hipóteses do parágrafo 2º em razão do princípio da especialidade, uma vez que tal dispositivo já prevê que se aquela contravenção for praticada contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (CP), aplicar-se-á a pena em triplo.
A edição desta quinzena da Migalhas Criminais conta com a valiosa contribuição do professor Rodrigo Casimiro Reis, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, chefe de gabinete de ministra do STJ e defensor público do Estado do Maranhão. Com destacada atuação institucional e acadêmica, Rodrigo também é instrutor do Centro de Formação do STJ, organizador e coautor de obras jurídicas, professor de cursos de pós-graduação em Direito Processual Penal e autor de prática premiada pelo Innovare (2022). Sua trajetória inclui experiências marcantes na Corregedoria Nacional de Justiça e na Presidência do STJ, compondo um currículo de excelência na interlocução entre prática forense e reflexão teórica. É com entusiasmo que anunciamos, também, o lançamento de seu mais recente trabalho: o livro "Verdade e Prova Penal: A cadeia de custódia na era digital", que será apresentado ao público no Congresso do IBCCRIM, em São Paulo, no dia 28 de agosto de 2025, com publicação pela Editora Amanuense. A obra, prefaciada pelo ministro Ribeiro Dantas e apresentada pelo professor Vinícius Gomes de Vasconcellos, se propõe a enfrentar, com profundidade técnica e densidade crítica, os novos desafios da cadeia de custódia das provas no ambiente digital, tema central da coluna desta semana. O texto ora publicado examina a cadeia de custódia não apenas como procedimento técnico, mas como verdadeiro instrumento de validação epistêmica da prova penal, capaz de garantir a confiabilidade do material probatório e assegurar o contraditório efetivo em juízo. O autor parte da regulamentação introduzida pela lei 13.964/19 e avança para a análise minuciosa da cadeia de custódia de vestígios digitais, ainda carente de disciplina legal expressa, apoiando-se em atos normativos infralegais, diretrizes internacionais (como as normas ABNT ISO/IEC 27037:2013 e 27042:2015) e nos entendimentos consolidados nos Tribunais Superiores. A coluna revisita importantes julgados do STJ, como o AgRg no RHC 143.169/RJ, no qual a 5ª turma do STJ declarou a inadmissibilidade de provas digitais obtidas sem a adequada documentação da cadeia de custódia, violando-se os critérios de integridade e mesmidade do vestígio. Também são analisados os fundamentos técnicos relacionados à geração do código hash, ferramenta essencial para garantir a autenticidade e a reprodutibilidade da prova imaterial. Por fim, Rodrigo Casimiro Reis propõe uma reflexão sobre os desafios trazidos por novas tecnologias, como inteligência artificial, blockchain e até mesmo o metaverso, considerando a viabilidade de sua aplicação para assegurar maior transparência e segurança nos processos de documentação da prova digital. O artigo, síntese da obra jurídica que será lançada nesta semana, se revela, portanto, como contribuição original, interdisciplinar e oportuna para a comunidade jurídica, especialmente em tempos de intensificação da litigiosidade digital e expansão do uso de meios eletrônicos nas práticas investigativas. Boa leitura! *** O instituto da cadeia de custódia foi inserido, com essa denominação, pela lei 13.964/19 entre os arts. 158-A e 158-F do CPP, dispositivos que preveem procedimentos mínimos que devem ser adotados pelo Estado, com o escopo de garantir o registro do caminho dos vestígios coletados na fase inquisitorial, assegurando que a prova material do crime sob investigação, analisada pelas partes e pelo Estado-Juiz durante a persecutio criminis in iudicio, seja a mesma constrita no momento da suposta prática delitiva ou no curso de medida cautelar de busca e apreensão. A observância da cadeia de custódia tem o condão de validar a evidência (material ou digital) como elemento de reconstrução de um fato histórico e tornar viável o pleno exercício do contraditório sobre a prova, possibilitando que a defesa a audite e contribua, de forma efetiva, para a formação do convencimento do julgador (art. 155, caput, do CPP). Não havendo regramento legal que discipline a cadeia de custódia dos vestígios digitais, a obra intitulada "Verdade e Prova Penal: a cadeia de custódia na era digital" analisa os atos infralegais existentes sobre o tema, quais sejam, a portaria 82/14 da SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública, o volume de informática forense contido no Procedimento Operacional Padrão (publicado pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública em 2024) e as normas ABNT ISO/IEC 27037:2013 e ISO/IEC 27042:2015. O livro realiza, ainda, revisão bibliográfica e mapeia, de forma rigorosa, a evolução da jurisprudência do STJ e do STF entre os anos de 2019 e 2025, providência necessária para compreender o procedimento válido para a coleta, o armazenamento e a análise dos vestígios imateriais, preservando-se, assim, a integridade e a mesmidade dos elementos indiciários de autoria e materialidade delitivas. Com linguagem clara, a obra examina o papel fundamental da documentação da cadeia de custódia como instrumento de validação da prova imaterial, propondo abordagens inovadoras, destacando, por exemplo, o metaverso como um novo campo de desafios para o processo penal e o possível emprego da inteligência artificial e da tecnologia blockchain na documentação da cadeia de custódia, o que inaugura novas possibilidades de pesquisa e oferece alternativas para desafios antigos relacionados à confiabilidade das provas. Além disso, o livro analisa, de forma crítica, os métodos ocultos de investigação à luz do Constitucionalismo digital, refletindo sobre os perigos da obtenção de provas sem supervisão judicial adequada e em eventual desacordo com direitos fundamentais. Segundo o autor, o Processo Penal não deve ser visto como um mecanismo de repressão, mas, sim, como um instrumento destinado a limitar o poder punitivo do Estado e viabilizar o esclarecimento da autoria delitiva e consequente atribuição de responsabilidade penal. A observância da cadeia de custódia maximiza, portanto, o devido processo legal, tanto no que diz respeito às obrigações penais negativas (que visam evitar a violação dos direitos dos investigados/acusados e garantir o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa) quanto no que se refere às obrigações penais positivas (que exigem uma investigação eficiente dos fatos). Na obra, o autor destaca importante aresto da 5ª turma do STJ, proferido nos autos do AgRg no RHC 143.169/RJ1, em que a Corte analisou situação na qual constatou-se a quebra da cadeia de custódia, concluindo-se pela inadmissibilidade dos vestígios digitais de prática delitiva supostamente existentes em dispositivo computacional. Naquela assentada, o recurso ordinário foi provido para declarar a inadmissibilidade de provas digitais utilizadas para subsidiar a condenação do recorrente pela suposta prática dos crimes de organização criminosa e de furtos eletrônicos contra instituições financeiras. Da leitura do voto condutor do julgado, proferido pelo min. Ribeiro Dantas, verifica-se que não houve registro formal do caminho percorrido pelos computadores apreendidos pela Polícia, equipamentos dos quais teriam sido extraídas as provas digitais apontadas pela acusação como fonte da materialidade dos delitos imputados. Não foi efetuado o registro da coleta e do armazenamento do computador, tampouco indicados os agentes incumbidos de manipular o dispositivo apreendido, dados que retiraram a credibilidade sobre a integridade dos vestígios que levaram o parquet estadual a denunciar os pacientes como possíveis hackers dirigentes de organização criminosa. O referido ministro ressaltou, ainda, que, antes de ser analisado pela perícia oficial, o conteúdo dos equipamentos eletrônicos foi examinado pela instituição financeira vítima, não havendo qualquer registro sobre a forma de extração dos dados, providência necessária para se demonstrar que os referidos elementos indiciários de prática delitiva eram os mesmos que constavam nos equipamentos quando da ocorrência da apreensão. Naquela oportunidade, o relator para acórdão destacou a relevância da geração do código hash como condição de validade para valoração judicial dos arquivos digitais existentes em equipamentos eletrônicos apreendidos e representativos de prova material de delitos. De acordo com o POP - Procedimento Operacional Padrão, publicado pelo MJSP em 2024, o algoritmo hash "[...] gera, a partir de uma entrada de qualquer tamanho, uma saída de tamanho fixo, ou seja, é a transformação de uma grande quantidade de informações em uma pequena sequência de bits (hash). Esse hash se altera se um único bit da entrada for alterado, acrescentado ou retirado"2. A geração do código hash, realizada pela perícia oficial quando da apreensão do equipamento, viabiliza a repetibilidade da evidência digital durante a fase de instrução, providência hábil a comprovar que a imagem dos dados extraídos pela Polícia na etapa pré-processual seja a mesma produzida durante o processo. No mesmo sentido, confira-se: EDcl no AgRg no RHC 186.138/SP, relator ministro Carlos Cini Marchionatti (Desembargador Convocado TJ/RS), 5ª turma, DJEN de 8/4/2025; RHC nº 188.154/RJ, relatora min. Daniela Teixeira, Julgado em 22/7/2024; AgRg nos EDcl no AREsp 2.342.908/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 20/2/2024, DJe 26/2/2024. O autor ressalta que, cumpridas as etapas previstas no art. 158-B, I a VII, do CPP, merece destaque a norma ABNT ISO/IEC 27037:2013, ato infralegal que estabelece diretrizes internacionais para identificação, coleta, aquisição e preservação da evidência digital, resguardando a autenticidade desse meio de prova. Tal normativo técnico internacional faz parte das 45 normas da família ISO  27000 - Gestão da Segurança da Informação e possui extenso cuidado para regrar todo o procedimento da evidência informática. No âmbito do STJ, observa-se que a 5ª turma, nos autos do AgRg nos HC 828.054/RN, concedeu a ordem de ofício para declarar a inadmissibilidade das provas digitais extraídas de aparelho celular pertencente a acusado e que foram utilizadas para embasar sentença condenatória pela suposta prática do crime tipificado no art. 2°, caput, §2°, da lei 12.850/13 (delito de organização criminosa armada). No citado julgamento, o relator ministro Joel Ilan Paciornik constatou que a Polícia não documentou as etapas do processo de extração dos dados digitais supostamente contidos no aparelho celular apreendido, tendo sido demonstrado que não houve geração do código hash e que o acesso à prova deu-se por meio de consulta direta ao aparelho, sem utilização de ferramenta extratora (v.g. Cellebrite). O relator salientou que, no trato das evidências digitais, a norma ABNT ISO/IEC 27037:2013, documento que, "[...] embora não dotado de força obrigatória de lei, constitui relevante guia a ser observado pelos atores da persecução penal, a fim de assegurar, tanto quanto possível, a autenticidade da prova digital" e o resguardo quanto à auditabilidade, repetibilidade, reprodutibilidade e justificabilidade dos métodos empregados para extração dos vestígios imateriais da suposta prática delitiva. O livro registra, ainda, a existência da norma ABNT ISO/IEC 27042:2015 que, embora ainda não tenha sido examinada por julgados proferidos pelo STJ e pelo STF, tampouco traduzida para o português, estabelece diretrizes internacionais que visam preservar a validade, reprodutibilidade e repetibilidade das evidências digitais. Verifica-se que, no contexto de digital evidence, a qualidade epistêmica do vestígio digital será baixa se sua coleta e produção não seguirem as melhores práticas e utilizarem métodos não confiáveis. Revela-se, portanto, essencial que o método utilizado para extração dos dados digitais assegure a integridade do material coletado e resguarde a idoneidade dos vestígios que subsidiam a acusação. _______ 1 EDcl no AgRg no Recurso em Habeas Corpus 143.169/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, julgado em 23/3/2023. 2 Disponível aqui.
A 5ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, julgou processo sigiloso (DJEN 8/4/2025), cuja síntese foi divulgada no Informativo Extraordinário de Jurisprudência 27, de 29 de julho de 2025. O caso suscita importante reflexão sobre os limites da atuação judicial em matéria probatória, especialmente na fase de decretação da prisão preventiva ou de outras medidas cautelares pessoais. Segundo informações do inteiro teor do acórdão, desveladas na aludida edição extraordinária do Informativo, a discussão nos autos era saber se o magistrado pode, de forma direta, acessar redes sociais do investigado e utilizar informações ali disponíveis - de natureza pública - para fundamentar decisões constritivas, sem que isso configure violação ao sistema acusatório ou quebra de sua imparcialidade. O STJ respondeu afirmativamente à indagação, considerando válida a conduta do juiz que, ao receber manifestação do Ministério Público com referência a conteúdo publicado em rede social aberta, acessa diretamente o perfil público do investigado para aferir a veracidade das informações. Concluiu-se não haver nulidade ou ilegalidade na atuação judicial, por se tratar de diligência de corroboração, fundada na economia processual e no princípio do livre convencimento motivado. O sistema acusatório e os limites da atuação judicial A decisão, à primeira vista, toca na vedação ao protagonismo probatório do juiz, imposta a partir da lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), que incluiu o art. 3º-A ao CPP e passou a vedar expressamente a iniciativa judicial na produção de provas, reforçando o modelo acusatório entre nós, segundo o qual as funções de acusar, defender e julgar são distintas e não se confundem. Nesse paradigma, não cabe ao juiz empreender diligências probatórias de ofício, tampouco se imiscuir na investigação criminal para, por exemplo, buscar fontes informativas que subsidiem sua própria convicção decisória. A imparcialidade judicial pressupõe inércia, salvo diante de requerimento das partes e, ainda assim, respeitados os limites legais da atuação jurisdicional. Por isso, qualquer atuação do juiz fora desses contornos deve ser vista com extrema cautela, sobretudo quando implicar prejuízo à defesa ou reforço de teses acusatórias, ainda que de forma indireta. Particularidade do caso concreto e aparente atuação judicial de mera corroboração No caso julgado pelo STJ, uma peculiaridade fática merece ser considerada. Segundo destacado no Informativo, a iniciativa investigativa originou-se do Ministério Público, que, ao requerer a prisão preventiva do investigado, fez referência ao conteúdo de suas redes sociais. O magistrado, ao que tudo indica, limitou-se a consultar as fontes abertas indicadas, para confirmar a veracidade da informação prestada. A iniciativa probatória, portanto, permaneceu nas mãos da acusação. Trata-se, pois, a princípio, de diligência confirmatória e não exploratória. O juiz não partiu da própria iniciativa para buscar elementos informativos desfavoráveis ao investigado. Apenas conferiu o conteúdo já referenciado pela parte acusadora, com base em dados públicos, com acesso disponível e sem a necessidade de observância da reserva de jurisdição. Neste contexto, a atuação do juiz, embora com ares investigativos que deveriam, a nosso ver, ser evitados para manter a coerência orgânica do processo penal de índole acusatória, pode ser enquadrada como diligência suplementar, voltada à formação do convencimento e amparada no art. 156, II, do CPP. Em paralelo, o parágrafo único do art. 212 do CPP, utilizado pela 5ª turma na fundamentação do acórdão sob análise, também autoriza o juiz a tomar providências para o esclarecimento de dúvidas relevantes, desde que o faça sem assumir o protagonismo da parte no processo. A linha entre imparcialidade e inquisitividade, contudo, é tênue e exige vigilância constante. O risco de normalização da investigação judicial Ainda que se reconheça a razoabilidade da decisão do STJ diante do caso concreto, é sempre prudente advertir contra os riscos de naturalização dessa prática. A aceitação da consulta judicial direta a redes sociais ou a outras fontes abertas de informação, mesmo que em resposta a provocação ministerial, pode representar perigoso precedente se for replicada sem os devidos freios. O sistema acusatório exige do magistrado não apenas imparcialidade formal, mas neutralidade estrutural e funcional. Quando o juiz passa a buscar provas ou validar diretamente informações obtidas pela acusação, mesmo em fontes públicas abertas, aproxima-se de uma zona cinzenta entre a jurisdição e a persecução penal. A lógica processual penal, especialmente em matéria cautelar, já é marcada por desigualdades estruturais. Quando o magistrado - sob a justificativa de economia processual - amplia sua atuação para validar hipóteses acusatórias de forma proativa, ainda que limitada, há perigoso incremento dessa assimetria. O investigado passa a enfrentar um Estado que, além de acusar, busca confirmar os próprios argumentos de forma autônoma, imediata e, em regra, desprovida de contraditório. Tal movimento, no nosso sentir, deve ser contido. A prova deve ser produzida pelas partes e o juiz, como garante da legalidade, deve atuar como árbitro imparcial, não como coprotagonista da investigação. Considerações finais A decisão do STJ, embora juridicamente irrepreensível à luz dos elementos destacados do caso concreto - sobretudo a provocação do Ministério Público e o caráter público da informação -, não pode nortear a atuação judicial ordinária em casos penais, sob pena de colocar em risco a coerência orgânica do sistema acusatório. É preciso reafirmar que a consulta judicial direta a fontes de informação fora dos autos deve ser absolutamente excepcional, motivada, devidamente justificada e sempre como elemento de confirmação (jamais com caráter exploratório). Sua legalidade dependerá da iniciativa probatória da acusação e da inexistência de alternativas processuais mais adequadas. Deve prevalecer a regra de iniciativa e produção probatória pelas partes e não pelo órgão julgador. Ademais, mesmo diante da veracidade do conteúdo acessado, sua valoração deve ser feita com rigor metodológico, à luz das garantias constitucionais e, sempre que possível, do contraditório. A informação pública não é, por si só, prova idônea. É necessário assegurar à defesa a oportunidade de questionar, contextualizar e eventualmente contrapor o conteúdo obtido. Conclui-se, assim, que o julgado analisado traz lições importantes, mas também desafios. Em tempos de intensa utilização das relações sociais e da expansão do acesso a dados públicos, o Poder Judiciário deve resistir à tentação de ampliar suas atribuições sob o pretexto de economia processual. O processo penal democrático exige limites e esses limites passam, necessariamente, pela reafirmação do modelo acusatório.
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, colegiado especializado em Direito Penal e Processual Penal, desempenhou papel importante no primeiro semestre de 2025 na uniformização da jurisprudência criminal brasileira. Foram diversos os julgados paradigmáticos, tanto em sede de recurso repetitivo quanto em conflitos de competência e afetações, com destaque para os avanços interpretativos em matérias sensíveis como crimes ambientais, execução penal, sistema socioeducativo e persecução patrimonial. Esta edição da coluna "Migalhas Criminais" oferece uma síntese dos principais julgamentos e tendências da Seção no período, com foco aos que foram objeto de destaque nos informativos oficiais do Tribunal. 1. Crimes ambientais e competência Federal: Flora e fauna em pé de igualdade Em dois julgamentos unânimes, a Terceira Seção reafirmou a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crimes ambientais quando envolvidas espécies constantes da Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, tanto da fauna quanto da flora (AgRg no CC 206.862/SC e AgRg no CC 208.449/SC): A proteção da flora ameaçada de extinção é equiparada à proteção da fauna, não havendo distinção quanto ao interesse da União, o que justifica a competência da Justiça Federal para julgar crime ambiental contra espécie vegetal ameaçada de extinção (AgRg no CC 206.862-SC, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 18/2/2025). A competência da Justiça Federal para julgar crimes ambientais é atraída quando a conduta envolve espécies constantes na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, configurando interesse da União (AgRg no CC 208.449-SC, Rel. Ministro Messod Azulay Neto, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 11/12/2024). A Corte reiterou que a inclusão da espécie em ato normativo federal revela interesse direto da União, nos termos do art. 109, inc. IV, da CF/88, atraindo a competência da Justiça Federal, ainda que não haja transnacionalidade na conduta. A equiparação entre fauna e flora demonstra a evolução jurisprudencial na proteção ambiental, ampliando o espectro de incidência do entendimento consagrado no Tema 648 da Repercussão Geral do STF. Tema 648/RG: "Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime ambiental de caráter transnacional que envolva animais silvestres, ameaçados de extinção e espécimes exóticas ou protegidas por Tratados e Convenções internacionais" (STF, Tribunal Pleno, RE 835.558, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 09/02/2017). A orientação elimina a exigência de demonstração específica de interesse internacional para a competência federal e fortalece a atuação do Ministério Público Federal e do IBAMA na persecução de crimes ambientais em todo o território nacional. 2. Inteligência financeira e reserva de jurisdição: Delimitação do Tema 990/RG No Informativo 850/STJ, divulgado em 20 de maio de 2025, a Corte apresentou tema relevante enfrentado pela Terceira Seção sobre o compartilhamento de informações financeiras entre órgãos de controle e o Ministério Público. Firmou-se o entendimento de que é inviável a requisição direta de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) ao COAF sem autorização judicial, afastando a interpretação extensiva do Tema 990 da Repercussão Geral do STF. Tema 990/RG: "1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios". A Terceira Seção ressaltou que o compartilhamento autorizado pelo STF se limita à atuação passiva da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), não legitimando pedidos diretos por parte dos órgãos de persecução penal. 1. A solicitação direta de relatórios de inteligência financeira pelo Ministério Público ao COAF sem autorização judicial é inviável. 2. O tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta de dados financeiros por órgãos de persecução penal sem autorização judicial (Segredo de Justiça, Rel. Ministro Messod Azulay Neto, Terceira Seção, por maioria, julgado em 14/5/2025). Essa decisão preserva a reserva de jurisdição, protege direitos fundamentais e reforça a necessidade de controle judicial prévio nos atos de investigação financeira. 3. Violência doméstica contra meninas: O gênero prevalece sobre a idade Ao julgar o Tema Repetitivo 1.186 (REsp 2.015.598/PA), a Terceira Seção definiu que a condição de gênero feminino é suficiente para a aplicação da Lei Maria da Penha, ainda que a vítima seja criança ou adolescente. 1. A condição de gênero feminino é suficiente para atrair a aplicabilidade da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica e familiar, prevalecendo sobre a questão etária. 2. A Lei Maria da Penha prevalece quando suas disposições conflitarem com as de estatutos específicos, como o da Criança e do Adolescente (REsp 2.015.598-PA, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 6/2/2025). Assim, mesmo diante da existência de varas especializadas para o atendimento infantojuvenil, prevalece a competência das varas de violência doméstica nos casos de agressão contra meninas, desde que caracterizada a violência baseada em gênero no ambiente doméstico ou familiar. A interpretação sistemática dos artigos 5º e 13 da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) fortalece a proteção das vítimas de gênero e evita fragmentações indesejadas de competência. 4. Outros temas julgados no primeiro semestre de 2025 Tema Repetitivo 1255: "O delito de falsa identidade é crime formal, que se consuma quando o agente fornece, consciente e voluntariamente, dados inexatos sobre sua real identidade, e, portanto, independe da ocorrência de resultado naturalístico". Tema Repetitivo 1274: "O fato de o visitante cumprir pena privativa de liberdade em regime aberto ou em livramento condicional não impede, por si só, o direito à visita em estabelecimento prisional". Tema Repetitivo 1277: "É possível, conforme o artigo 42 do Código Penal, o cômputo do período de prisão provisória na análise dos requisitos para a concessão do indulto e da comutação previstos nos respectivos decretos". Tema Repetitivo 1303: "1. A confissão pelo investigado na fase de inquérito policial não constitui exigência do art. 28-A do Código de Processo Penal para o cabimento de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), sendo inválida a negativa de formulação da respectiva proposta baseada em sua ausência. 2. A formalização da confissão para fins do ANPP pode se dar no momento da assinatura do acordo, perante o próprio órgão ministerial, após a ciência, avaliação e aceitação da proposta pelo beneficiado, devidamente assistido por defesa técnica, dado o caráter negocial do instituto". Tema Repetitivo 1318: "1. A premeditação autoriza a valoração negativa da circunstância da culpabilidade prevista no art. 59 do Código Penal, desde que não constitua elementar ou seja ínsita ao tipo penal nem seja pressuposto para a incidência de circunstância agravante ou qualificadora; 2. A exasperação da pena-base pela premeditação não é automática, reclamando fundamentação específica acerca da maior reprovabilidade da conduta no caso concreto". Tema Repetitivo 1336: "O indulto previsto no Decreto n. 11.846/2023 não se aplica ao condenado por tráfico de drogas na forma do caput e § 1º do art. 33 da Lei de Drogas, vedação essa que abrange a pena de multa eventualmente cominada, salvo se beneficiado com o redutor especial (art. 33, § 4º, da lei 11.343/2006)". 5. Afetações para julgamento futuro: o que esperar do segundo semestre? O primeiro semestre também foi marcado pela afetação de importantes temas para julgamento futuro: Tema 1320 - Falta Grave em Monitoração Eletrônica: Verifica se a inobservância do perímetro estabelecido para monitoramento de tornozeleira eletrônica configura falta disciplinar de natureza grave, nos termos dos arts. 50, VI, e 39, V, da LEP. Tema 1331 - Retroatividade da Jurisprudência Penal Mais Benéfica: Define a possibilidade de aplicação retroativa de jurisprudência mais benéfica ao acusado. Tema 1332 - Unificação de Penas de Reclusão e Detenção: Discute a possibilidade de unificação das penas de reclusão e detenção. Tema 1333 - Agravante Genérica e Contravenção Penal: Analisa se a agravante prevista no art. 61, II, "f", do Código Penal é aplicável às contravenções penais praticadas no contexto de violência doméstica contra a mulher. Tema 1337 - Danos Morais Coletivos em Tráfico de Drogas: Verifica se é cabível a fixação de reparação mínima por danos morais coletivos em razão da condenação por crimes de tráfico de drogas e, caso seja cabível, se o referido dano é presumido ou exige produção de prova específica. Tema 1347 - Regressão Provisória de Regime e Prévia Oitiva do Condenado: Define se é necessária a prévia oitiva da pessoa apenada para que lhe seja imposta a suspensão cautelar (regressão provisória) do regime prisional mais favorável quando constatado o possível cometimento de falta disciplinar grave ou de fato definido como crime doloso. Tema 1351 - Dosimetria da Pena e Discricionariedade Judicial: Delimita se a dosimetria da pena-base deve observar critérios determinados de exasperação da pena por circunstância judicial negativa ou se tal atividade insere-se no âmbito da discricionariedade vinculada do magistrado. Tema 1353 - Continuidade Delitiva entre os Crimes dos Arts. 168-A e 337-A do Código Penal: Busca uniformizar a aplicação do instituto da continuidade delitiva entre os delitos de apropriação indébita previdenciária e de sonegação de contribuição previdenciária. Tema 1354 - Progressão de Regime e Aplicação Retroativa do Pacote Anticrime: Define a possibilidade de aplicação retroativa da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) a cada condenação isoladamente, em uma mesma execução, para fins de cálculo para progressão de regime. Tema 1355 - Associação para o Tráfico de Drogas e Livramento Condicional: Verifica a fração de cumprimento de pena exigida para a obtenção do livramento condicional no delito de associação para o tráfico, tipificado no art. 35 da Lei n. 11.343/2006. Tema 1356 - Guardas Municipais e Prisão em Flagrante: Visa estabelecer se, a despeito da guarda municipal não desempenhar a função de policiamento ostensivo, ela pode prender quem esteja em flagrante delito, respaldada no art. 301 do Código de Processo Penal. Tema 1357 - Remição Penal por Aprovação no ENEM/ENCCEJA: Procura uniformizar o entendimento a respeito da possibilidade de concessão do benefício da remição penal, por aprovação no ENEM/ENCCEJA, quando o sentenciado tenha concluído o ensino médio anteriormente ao início do cumprimento da pena". Tema 1358 - Defensoria Pública e IRDR Penal; Necessidade de Perícia em Crime contra as Relações de Consumo: Determina se é cabível a atuação da Defensoria Pública em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) que versa sobre questões penais e processuais penais, independentemente da vulnerabilidade das partes, na condição de custos; de vulnerabilis ou, subsidiariamente, de amicus curiae. Também busca definir se é imprescindível, para caracterização do crime do art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990, laudo pericial, a fim de ser constatada efetiva impropriedade do produto ao consumo humano e, dessa forma, comprovar a materialidade delitiva". Tema 1361 - Prescrição de Medida Socioeducativa: Discute se, na apuração da prescrição da pretensão executória de Medida Socioeducativa, deve ser levado em consideração o prazo mínimo eventualmente explicitado na sentença ou o prazo máximo abstratamente possível, segundo as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente. Considerações finais O primeiro semestre de 2025 evidenciou uma Terceira Seção comprometida com a estabilidade e o aprimoramento da jurisprudência criminal brasileira. A diversidade de temas analisados - do meio ambiente à persecução patrimonial, da violência de gênero à inteligência financeira - revela uma atuação judicial atenta à complexidade dos desafios contemporâneos do Direito Penal e Processual Penal. Espera-se que o segundo semestre consolide os debates iniciados e produza novas teses com capacidade de orientar a prática forense, oferecendo segurança jurídica e coerência institucional aos nossos precedentes. Permaneceremos atentos e vigilantes.
A 3ª seção do STJ, na sessão do dia 11/6/25, julgou conjuntamente os recursos especiais 1.953.602/SP, 1.986.619/SP, 1.987.628/SP e 1.987.651/RS, da relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, fixando teses quanto ao Tema repetitivo 1.258/STJ, cujo objetivo era "Definir o alcance da determinação contida no art. 226 do CPP e se a inobservância do quanto nele estatuído configura nulidade do ato processual". Amadurecimento jurídico do debate nos Tribunais Superiores O reconhecimento de pessoas - especialmente na modalidade fotográfica - tem ocupado posição relevante nos debates sobre a produção probatória no processo penal brasileiro. A doutrina e a jurisprudência vêm identificando sua potencialidade lesiva a direitos fundamentais, sobretudo diante do desrespeito ao procedimento previsto no art. 226 do CPP. Ao longo dos últimos anos, o sistema de justiça criminal passou por um processo de amadurecimento, deixando de tratar esse dispositivo como simples recomendação e assumindo sua força vinculante. Essa transformação se consolidou a partir de um conjunto articulado de decisões judiciais e iniciativas normativas, que evidenciam um novo paradigma garantista, científico e comprometido com a prevenção de erros judiciários. A consolidação definitiva do entendimento se deu com o julgamento do Tema repetitivo 1.258/STJ. O primeiro precedente marcante sobre o tema foi o Habeas Corpus 598.886/SC, julgado em 27/10/20, pela 6ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz. Naquela oportunidade, o Tribunal sinalizou de forma clara que o art. 226 do CPP não é norma programática ou indicativa, mas sim regra jurídica cogente. Reconheceu-se que o desrespeito aos seus incisos pode comprometer a validade do reconhecimento. A decisão, amplamente difundida na comunidade jurídica, também ressaltou o risco de que reconhecimentos precários - especialmente os realizados por meio da exibição isolada de fotografias - possam ensejar condenações injustas, sobretudo quando são o único ou o principal elemento de autoria nos autos. No Habeas Corpus 652.284/SC, julgado em 27/4/21, da relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a 5ª turma referendou o precedente da 6ª turma, uniformizando, assim, a jurisprudência do STJ sobre o tema. No julgamento do Habeas Corpus 712.781/RJ, em 15/3/22, novamente sob a relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, a 6ª turma avançou sobre o tema, reafirmando os parâmetros fixados no precedente anterior e introduzindo importante refinamento técnico ao considerar inválido o reconhecimento fotográfico informal, ainda que posteriormente confirmado em juízo. A turma entendeu que tal ratificação não supre o vício originário do procedimento, pois a memória da testemunha já estaria contaminada pela exibição anterior, muitas vezes isolada e sugestiva. A decisão também criticou a prática do show-up, isto é, o reconhecimento em que apenas uma pessoa é apresentada à vítima ou testemunha, sem qualquer cuidado para a neutralidade da cena ou para a mitigação de vieses cognitivos e raciais. A evolução do entendimento ganhou novo impulso normativo com a edição da resolução 484/22 pelo CNJ, publicada em 19/10/22. A norma foi elaborada por um grupo de trabalho multidisciplinar, composto por juristas, magistrados e especialistas em psicologia do testemunho. Seu objetivo foi estabelecer diretrizes vinculantes para a realização do reconhecimento de pessoas no âmbito dos procedimentos investigativos e processuais penais. A resolução assume expressamente que o reconhecimento equivocado de pessoas constitui uma das principais causas de condenações injustas no Brasil. Assim, impõe o cumprimento rigoroso das etapas procedimentais, exige motivação concreta para a realização do ato e estabelece o direito à assistência jurídica do reconhecido durante o procedimento. Mais recentemente, em 2024, o CNJ publicou o Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas, documento técnico e orientador que detalha as bases científicas da resolução 484/221. O documento destaca os fundamentos da psicologia da memória, os fatores que comprometem a acurácia do reconhecimento (como tempo decorrido, visibilidade, presença de armas, estresse, entre outros) e os principais vieses cognitivos e estruturais que podem afetar o processo, especialmente quando envolvem pessoas negras. O Manual propõe ainda boas práticas para as etapas do reconhecimento: entrevista prévia, instruções neutras, composição adequada de alinhamentos (físicos ou fotográficos), registro do grau de confiança do reconhecedor e critérios objetivos para a avaliação judicial da prova produzida. Por fim, relevante destacar nesse histórico sobre a matéria que a 2ª turma do STF, no julgamento do recurso em Habeas Corpus 206.846/SP, em 22/2/22, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, fixou a seguintes diretrizes a respeito do tema: 1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa. 2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas. 3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos. No julgamento do Habeas Corpus 245.814, em 27/11/24, da relatoria do ministro Edson Fachin, a mesma 2ª turma considerou inclusive a nulidade das provas subsequentes ao reconhecimento realizado sem observância à disciplina do art. 226 do CPP. Em contrapartida, a 1ª turma tem admitido a ratificação em juízo do reconhecimento falho, desde que confirmado pelo conjunto probatório. Nesse sentido: HC 249.618 AgR, relatora min. Cármen Lúcia, 1ª turma, julgado em 17/2/25; HC 247.687 AgR, relator min. Cristiano Zanin, 1ª turma, julgado em 12/11/24. Constatada a divergência sobre o tema, o STF afetou o agravo em RE 1.467.470, para julgamento sob o rito de repercussão geral - Tema 1.380/STF, com o objetivo de definir se "se o reconhecimento de pessoa investigada ou processada pela prática de ilícito criminal sem a observância do procedimento do art. 226 do CPP viola as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas (CF/1988, art. 5º, LIV, LV e LVI)". Julgamento do Tema repetitivo pelo STJ A trajetória histórica apresentada no item anterior subsidia a compreensão da consolidação do Tema 1.258/STJ, cujo julgamento se iniciou com a sustentação oral dos defensores públicos Eduardo Valadares de Brito e Jair Soares Júnior, representando dois recorrentes. Na fala dos defensores, destacou-se que em 83% dos reconhecimentos equivocados foram indicadas pessoas negras2. Como amicus curiae, falou o defensor público do Estado do Rio de Janeiro, Marcos Paulo Dutra Santos, ressaltando o caso do porteiro Paulo Alberto, apreciado pela 3ª seção no Habeas Corpus 769.783/RJ, que tratou de pessoa submetida a 62 persecuções penais em razão de reconhecimento fotográfico3. Márcio Guedes Berti falou pela ANACRIM e trouxe estatística elaborada por David Metzker revelando que, entre 2023 e 2025, já foram anulados pelo STJ 641 reconhecimentos4. Guilherme Ziliani Carnelós, pelo IDDD - Márcio Thomaz Bastos, e Dora Cavalcanti, pelo Innocence Project Brasil, destacaram a contaminação da memória humana, o que impede a repetibilidade da prova. Ressaltou-se, no mais, que se trata de prova epistemologicamente fraca, conforme já assentado no julgamento do Habeas Corpus 712.781/RJ, devendo o Estado, diante dos avanços tecnológicos, primar por provas mais seguras. Por fim, André Estevão Ubaldino Pereira, procurador de Justiça do MP/MG, defendeu que o reconhecimento pessoal deve ser utilizado para se reduzir o número de suspeitos e não propriamente como prova de autoria, pugnando, por fim, pelo reconhecimento da imprestabilidade completa e absoluta do reconhecimento sem observância das formalidades do art. 226 do CPP. Após as sustentações orais, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, destacou a contribuição do ministro Rogério Schietti Cruz, que trouxe um novo olhar para o tema. Rememorou, em conjunto com o caso de Paulo Alberto, o caso de Carlos Edmilson, condenado a mais de 170 anos, com base em reconhecimentos falhos (Habeas Corpus 870.636/SP5). Ressaltou, ainda, que o reconhecimento fotográfico não deve ser considerado prova inicial, pois o reconhecimento não é ato complexo. No mais, votou pela reafirmação da jurisprudência do STJ, no sentido de que "a rigorosa observância do art. 226 do CPP não é mero formalismo estéril; pelo contrário, possui fundamentação técnico-científica sólida e respaldo em políticas legais de redução de erros". Cuida-se de disciplina legal que protege o inocente e traz maior efetividade na apuração dos fatos, reduzindo a margem de erros. O julgamento destacou que estudos científicos em psicologia do testemunho e neurociência cognitiva confirmam que o reconhecimento visual de suspeitos é falho, especialmente sob fatores como estresse, iluminação, tempo de observação, foco na arma e diferenças raciais entre testemunha e suspeito. A memória humana é reconstrutiva e facilmente sugestionável, podendo gerar falsas memórias. O testemunho da vítima, embora não seja fraudulento, deve ser analisado com cautela devido a fatores que podem contaminar a prova e criar memórias corrompidas. Mesmo um depoimento detalhado não garante a exatidão dos fatos, exigindo corroboração e congruência com outras provas. Destacou-se que pequenas alterações no procedimento de reconhecimento, como a exibição de uma única foto ou a indução da testemunha sobre quem a polícia acredita ser o culpado, podem levar a identificações falsas. O reconhecimento por fotografia, em particular, apresenta limitações como a qualidade da imagem, a data da foto e a ausência de características físicas importantes. Um ponto relevante é que o reconhecimento é cognitivamente irrepetível. A primeira exposição do suspeito à testemunha altera a memória, podendo gerar o "efeito do reforço da confiança", em que a testemunha incorpora a imagem do suspeito como autor, mesmo que incerta inicialmente. Se a primeira identificação foi inadequada, as subsequentes estarão comprometidas, tornando a contaminação da memória irreversível. O voto faz referência ainda a um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que revelou 58 erros em reconhecimentos fotográficos, sendo 80% envolvendo pessoas negras e pardas6. Firmou-se, dessa forma, que um reconhecimento irregular, seja fotográfico ou pessoal, é inválido e deve ser desconsiderado pelo julgador. A ratificação em juízo de um reconhecimento inicialmente viciado não o convalida. A nulidade do reconhecimento inicial contamina os subsequentes, especialmente se não houver outras provas independentes. No entanto, se a vítima ou testemunha já conhecia o suspeito, o reconhecimento pessoal é desnecessário. Embora para a prisão preventiva, recebimento de denúncia e pronúncia se exija apenas indícios suficientes de autoria, e não prova conclusiva, o reconhecimento irregular, por si só, não é suficiente para embasar essas decisões. É importante que existam outros indícios independentes de autoria para justificar tais medidas. Por fim, para a sentença condenatória, o reconhecimento, seja presencial ou por fotografia, só é válido para identificar o réu e servir como prova de autoria se observar as formalidades do art. 226 do CPP e for submetido ao contraditório e à ampla defesa na fase judicial. Mesmo com a observância dessas regras, o reconhecimento deve ser confrontado com as demais evidências para atenuar a fragilidade inerente à prova testemunhal. O julgador pode se convencer da autoria por outras provas válidas, desde que produzidas em contraditório judicial. Em suma, a ciência demonstra a fragilidade da memória humana no reconhecimento de pessoas. Por isso, o art. 226 do CPP é essencial para garantir a qualidade da prova, evitando erros judiciais. Reconhecimentos feitos sem seguir o procedimento são inválidos e não devem ser a única base para prisões ou condenações, sendo indispensáveis outras provas para confirmar a autoria. Nos casos concretos analisados, deu-se provimento ao REsp 1.953.602/SP, em virtude de o alinhamento ter sido realizado com pessoas cerca de 15 cm mais baixas que o réu, além de as testemunhas terem afirmado que os autores do delito usavam boné e mantinham a cabeça abaixada. Destacou-se, por fim, que as imagens da agência assaltada não foram juntadas como prova. Deu-se provimento, igualmente, ao REsp 1.987.651/RS, em virtude de uma das vítimas ter tirado foto das fotos que lhe foram apresentadas, mostrando a outra vítima e pedindo ajuda na identificação. Ademais, o réu foi visto entrando na delegacia escoltado por policiais, o que pode ter influenciado no seu reconhecimento. Lado outro, negou-se provimento aos recursos especiais 1.986.619/SP e 1.987.628/SP, em razão da existência de provas autônomas e independentes de autoria. O ministro Rogério Schietti Cruz, ao acompanhar o relator, criticou a ausência de aderência do sistema de justiça às orientações já firmadas pelo STJ a respeito do reconhecimento de pessoas, o que se nota pela pesquisa publicada por David Metzker, a respeito do número de concessões da ordem quanto ao tema7. No mais, sugeriu que, no item 2 da tese fixada, fosse considerado inválido o reconhecimento realizado com alinhamento de pessoas não semelhantes, ainda que de forma justificada. Sugeriu que constasse da tese a necessidade de o reconhecimento guardar relação com o conjunto probatório e de não se tratar de providência necessária quanto a vítima conhece o autor dos fatos. Por fim, sugeriu que fosse incorporada na tese as diretrizes da resolução 484 do CNJ, em especial os arts. 5º, § 1º, 7º e 8º. Os acréscimos foram acolhidos pelo relator. Assim, ao cabo, foram fixadas as seguintes teses pela 3ª seção do STJ: 1) As regras postas no art. 226 do CPP são de observância obrigatória tanto em sede inquisitorial quanto em juízo, sob pena de invalidade da prova destinada a demonstrar a autoria delitiva, em alinhamento com as normas do CNJ sobre o tema. O reconhecimento fotográfico e/ou pessoal inválido não poderá servir de lastro nem a condenação nem a decisões que exijam menor rigor quanto ao standard probatório, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia ou a pronúncia. 2) Deverão ser alinhadas pessoas semelhantes ao lado do suspeito para a realização do reconhecimento pessoal. Ainda que a regra do inciso II do art. 226 do CPP admita a mitigação da semelhança entre os suspeitos alinhados quando, justificadamente, não puderem ser encontradas pessoas com o mesmo fenótipo, eventual discrepância acentuada entre as pessoas comparadas poderá esvaziar a confiabilidade probatória do reconhecimento feito nessas condições. 3) O reconhecimento de pessoas é prova irrepetível, na medida em que um reconhecimento inicialmente falho ou viciado tem o potencial de contaminar a memória do reconhecedor, esvaziando de certeza o procedimento realizado posteriormente com o intuito de demonstrar a autoria delitiva, ainda que o novo procedimento atenda os ditames do art. 226 do CPP. 4) Poderá o magistrado se convencer da autoria delitiva a partir do exame de provas ou evidências independentes que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento. 5) Mesmo o reconhecimento pessoal válido deve guardar congruência com as demais provas existentes nos autos. 6) Desnecessário realizar o procedimento formal de reconhecimento de pessoas, previsto no art. 226 do CPP, quando não se tratar de apontamento de indivíduo desconhecido com base na memória visual de suas características físicas percebidas no momento do crime, mas, sim, de mera identificação de pessoa que o depoente já conhecia anteriormente. Evolução dogmática do tratamento das provas no processo penal Doutrina já tradicional no campo das ilegalidades probatórias divide o tratamento dispensado às provas ilícitas e provas ilegítimas8. A vedação à admissão das provas ilicitamente obtidas veio positivada enquanto direito fundamental, no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. A inadmissão das provas ilícitas veio finalmente positivada no CPP somente em 2008. Desde então, definiu-se como ilícitas as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais, com o efeito processual do desentranhamento, o que implica vedação à sua valoração pelo juízo. Já as provas ilegítimas, ainda que sem previsão legal do termo, seriam aquelas produzidas em violação a normas processuais, notadamente os meios de prova previstos no CPP. Estas são regidas sob a teoria das nulidades, em termos próximos a violações de normas de natureza procedimental, condicionadas a demonstração de prejuízo, em aplicação do princípio do pas de nullité sans grief. Notavelmente, o entendimento firmado pelo STJ sobre o reconhecimento atípico de pessoas tem se aproximado do regime das provas ilícitas - o que não representa erro, mas acerto, diante das especificidades desse meio de prova. Vejamos. O reconhecimento de pessoas, quando produzido em sede policial - a grande maioria dos casos - é tecnicamente elemento informativo produzido sem contraditório judicial, diferentemente do que ocorre com outros meios de prova definidos no CPP, tal como o testemunho. Sua condição de irrepetibilidade, reconhecida em estudos científicos9, demonstra o efeito psicológico da pessoa submetida ao procedimento para "reconhecer" no sentido de que ela, na verdade, "aprende" quem "foi" o autor do delito, sendo inocente ou culpado, o que faz aproximar tal medida policial como algo mais próximo dos clássicos meios de obtenção de prova extraprocessuais, estes submetidos ao regime das provas ilícitas, em que a legalidade estrita, em certo sentido, "compensa" a mitigação sobre o exercício efetivo do contraditório. Além disso, há uma deficiência instrumental da teoria das nulidades aplicadas aos meios de prova, diferentemente do que ocorre com as violações de normas procedimentais, como relativas à ordem da audiência (art. 400) e às regras de citação (arts. 351 e sgs.). Isso porque quando submetidas ao princípio do prejuízo, a convalidação ou sanabilidade dos atos atípicos de ordem procedimental pode ser mais adequadamente medida em relação aos princípios gerais do direito processual penal, como contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e imparcialidade do juízo. No reconhecimento de pessoas produzido à revelia da forma legal prevista no art. 226, como fica o exame de prejuízo? Não sendo possível ser sanado pela repetição em juízo, dado o efeito psicológico sobre quem já reconheceu o investigado anteriormente, o que seria capaz de sanar o ato viciado? Contraditório posterior só é possível ao se invocar os termos próprios do devido processo legal, ou, quando muito, a partir de possível induzimento por parte da autoridade policial, cuja comprovação remete àquilo que muito raramente fora registrado nos autos. Aqui, como se observa, porém, há novamente a infeliz confusão entre forma e matéria, entre licitude e o valor epistêmico atribuído ao resultado do meio de prova. O exame de prejuízo, em verdade, evidencia um embate epistemológico no processo penal. De um lado, encontra-se a herança do esquema inquisitorial, que condiciona a validade do ato à verdade real alcançada e apreendida pelo juízo, nos termos do original e arcaico art. 566 do CPP, o qual expressa que "Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa". De outro lado, no viés garantista, o condicionamento do prejuízo é examinado à luz dos princípios fundamentais relativos ao processo penal. No caso do reconhecimento pessoal, essa tensão é aguda: trata-se de um meio de prova cuja própria instrumentalidade é produzir verdade/convicção - o que dificulta aferir o prejuízo, já que a prova viciada, por si só, influencia a decisão. Compreendendo-se, porém, que a decisão judicial deve se motivar a partir da verdade processual, em regra, sobre a prova produzida em contraditório judicial, depara-se com um beco sem saída, especialmente a partir do entendimento de que a condenação não é elemento hábil a justificar o prejuízo. O princípio da presunção de inocência, por sua vez, deve condicionar o ato de reconhecimento no ante, não no posteriori, isto é, deve orientar as autoridades ao cumprimento estrito da legalidade do ato de reconhecimento de pessoas, destinado a evitar, tanto quanto possível, a incriminação odiosa de pessoas inocentes. Isso vale especialmente para um país que tem o seu Sistema de Justiça Criminal marcado pelo racismo estrutural, em que pessoas negras são desproporcionalmente vítimas de reconhecimentos equivocados10 (Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais, 2020). Trata-se o reconhecimento atípico, enfim, de ato viciado que não permite exame posterior adequado para sanabilidade pela teoria do prejuízo. A instrumentalidade processual, de modo amplo, no escopo do devido processo legal, que condiciona a produção de prova ao regime de legalidade e a vincula a outros princípios constitucionais, como contraditório e ampla defesa, mas principalmente o princípio da presunção de inocência, na busca da mitigação racional do poder punitivo, levam à conclusão dogmática - de matriz garantista - de que o reconhecimento de pessoas feito à margem de seu procedimento específico deve ser regrado dentro do sistema regulatório da prova ilícita, e não a partir da teoria das nulidades, pois neste âmbito, o exame do prejuízo é inadequado, servindo apenas de eco ao ultrapassado esquema epistemológico inquisitorial, sustentado na ideia de verdade real. É possível argumentar que o STJ eleva o reconhecimento atípico à nulidade absoluta e não exatamente à prova ilícita. No entanto, no direito processual penal, até mesmo a nulidade absoluta é passível de convalidação pela preclusão e também a exame de prejuízo (STF, precedentes). Daí que nos parece mais adequado falar em prova ilícita, ainda que relativa à norma processual. Além disso, submetendo-se ao regime da prova ilícita, ainda se faz possível a aplicações de suas exceções, previstas no §1º e 2º do art. 157, isto é, a da fonte independente e a da descoberta inevitável. Pode ocorrer a fonte independente, por exemplo, quando um novo reconhecimento é feito por pessoa diversa do primeiro viciado. Quanto à hipótese da descoberta inevitável, aplica-se quando, por exemplo, outro meio de prova denota caminho idôneo à descoberta da autoria do delito. São instrumentos, vale dizer, muito mais adequados que daquele do sistema das nulidades absolutas, cuja referência, de maneira ampla, é o interesse público. Dogmaticamente, ademais, o rigor legal com o reconhecimento de pessoas atende a alguns valores imediatos e outro mediato. Os imediatos são: garantir o máximo possível de confiança na prova produzida, minimizando o tanto quanto possível o erro judiciário e; direcionar a atividade policial à técnica e ao profissionalismo, evitando arbítrios e informalidades de resultados deletérios, assim fazendo as forças policiais se aproximarem do regime jurídico democrático, com respeito aos direitos fundamentais de cidadãos suspeitos e investigados. De efeito mediato, temos a elevação da qualidade da prestação jurisdicional, que se direciona a corrigir o caminho da seletividade penal, garantindo eficiência punitiva com racionalidade democrática. 1 CNJ. Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas. Conforme a Resolução CNJ n. 484/2022. Disponível aqui. Acesso 16/6/25. 2 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25. 3 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25. 4 METZKER, David. A falibilidade do reconhecimento de pessoas na jurisprudência do STJ: Dados de 2023 a 2025 e a expectativa pelo julgamento do Tema 1.258. Disponível aqui. Acesso em 16/6/25. 5 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25. 6 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25. 7 METZKER, David. A falibilidade do reconhecimento de pessoas na jurisprudência do STJ: Dados de 2023 a 2025 e a expectativa pelo julgamento do Tema 1.258. Disponível aqui. Acesso em 16/6/25. 8 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. 9 MATIDA, Janaína, & CECCONELLO, William W. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal (RBDPP), v. 7, n. 1, 2021. Disponível aqui; e CECCONELLO, William W.; STEIN, Lilian M. Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicologia Latinoamericana, v. 38, n. 1, p. 172-188, 2020. Disponível aqui. 10 COLÉGIO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS GERAIS. Relatório sobre reconhecimento fotográfico em sede policial: análise dos casos encaminhados pelos defensores públicos. Rio de Janeiro: DPE/RJ/Condege, 2020.
No mês em que se comemora o orgulho LGBTI+ e a diversidade, é com grande satisfação que apresentamos a mais nova edição da coluna Migalhas Criminais, espaço dedicado à análise crítica de julgados paradigmáticos dos Tribunais Superiores no campo do Direito Penal e do Processo Penal. Nesta edição, contamos com a colaboração de Cíntia Cecilio, assessora no STJ, especialista em direito LGBTI+ e diversidade, que assina um artigo de fôlego sobre o recente e histórico posicionamento do STF a respeito da extensão da lei Maria da Penha a mulheres trans, travestis e, em certos contextos, também a casais homoafetivos masculinos. O texto de Cíntia examina, com precisão técnica e sensibilidade jurídica, os fundamentos e implicações do julgamento do mandado de injunção 7452, proferido pelo STF em 2025. A autora destaca a superação de uma leitura restritiva e biologizante da lei 11.340/2006, demonstrando como a Corte Constitucional firmou entendimento no sentido de proteger, de forma inclusiva, todas as vítimas de violência de gênero em relações domésticas e familiares - independentemente de sexo biológico, identidade de gênero ou orientação sexual. Ao lado disso, a autora analisa os impactos penais e processuais da decisão, em especial quanto à ampliação dos sujeitos passivos dos crimes previstos na lei, à aplicabilidade das medidas protetivas de urgência, e à necessidade de preparo institucional dos atores jurídicos. Mais do que uma análise jurisprudencial, o artigo é um chamado à construção de uma justiça criminal verdadeiramente plural e antidiscriminatória. Em tempos de retrocessos normativos e tensões políticas sobre os direitos das populações vulnerabilizadas, o trabalho de Cíntia Cecilio reafirma o papel contramajoritário do STF e convida o leitor a refletir sobre os limites e possibilidades da dogmática penal frente às transformações sociais contemporâneas. Então, vamos a ele. *** A decisão do STF, proferida em agosto de 2021, no âmbito da ADO - ação direta de inconstitucionalidade por omissão 45 e do MI - mandado de injunção 4733, representa um marco histórico na proteção penal de grupos vulneráveis, especialmente no que tange à população LGBTI+. O STF reconheceu a omissão do Congresso Nacional em legislar sobre a criminalização da homofobia e transfobia, tendo determinado que a partir de então a homotransfobia deveria ser equiparada ao crime de racismo, ampliando a proteção penal para a população LGBTI+. Esse tipo de ação visa garantir direitos e liberdades constitucionais na falta de norma regulamentadora torne inviável seu exercício. Já em 2025, o MI - mandado de injunção 7452 consolidou o entendimento de que a proteção conferida pela lei 11.340/2006 - conhecida como lei Maria da Penha - não se restringe às mulheres cisgênero em relações heteroafetivas, mas também se estende às mulheres trans, travestis e, em alguns casos, aos casais homoafetivos formados por pessoas do mesmo gênero. Tradicionalmente, a proteção da lei Maria da Penha era interpretada sob uma ótica estritamente binária e biologizante, focada exclusivamente na mulher cisgênero. No entanto, a crescente complexidade das relações sociais, as novas formações de famílias e o reconhecimento jurídico das identidades de gênero e orientações sexuais diversas, impuseram uma necessária releitura da norma à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e não discriminação. Mais uma vez reconhecendo a lacuna da legislação brasileira, o STF decidiu que, até que venha uma lei sobre o tema, incide a proteção da lei Maria da Penha aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares. Citando entendimentos de outros tribunais, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, ponderou ainda que é possível a aplicação da lei Maria da Penha a relações entre pessoas do sexo biológico masculino, quando o papel de gênero atribuído a elas dentro da relação coincida com o socialmente atribuído e cobrado das mulheres. "Considerando que a lei Maria da Penha foi editada para proteger a mulher contra violência doméstica, a partir da compreensão de subordinação cultural da mulher na sociedade, é possível estender a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação" Além disso, o STF indicou a possibilidade de aplicação da lei em casos de violência entre casais homoafetivos femininos, reafirmando que a norma visa coibir a violência de gênero, independentemente da ultrapassada estrutura considerada tradicional de família. Essa decisão também reafirmou que, embora a legislação use o termo "mulher", a interpretação deve ser ampliada, adotando uma perspectiva mais inclusiva e conforme os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Com a decisão do STF, os magistrados e operadores do direito devem estar atentos à possibilidade de aplicar as medidas protetivas de urgência previstas na lei Maria da Penha também em favor de homens gays vítimas de violência doméstica, quando caracterizada a vulnerabilidade de gênero ou a violência no âmbito familiar. Esse entendimento evita que as vítimas fiquem desamparadas por uma interpretação restritiva e anacrônica da lei, que negue proteção com base em categorias jurídicas inadequadas à complexidade das relações sociais contemporâneas. A intervenção penal deve ser pautada pela efetiva proteção da vítima, sem reforçar padrões discriminatórios, estereótipos ou práticas policiais e judiciais abusivas. A decisão do STF inaugura uma interpretação constitucional inclusiva, que rompe com o modelo tradicional cis-heteronormativo e reconhece a dignidade da pessoa humana em sua dimensão plural e diversa. Esse movimento está em consonância com a doutrina da proteção integral e com a jurisprudência internacional, que orienta a obrigação positiva do Estado de proteger todas as pessoas contra a violência, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Ao mesmo tempo, desafia o campo jurídico a desenvolver novas categorias analíticas e instrumentos adequados para lidar com as especificidades das relações afetivas não tradicionais e das violências que nelas se manifestam. Essa decisão gera um desafio teórico importante: como proteger homens gays vítimas de violência doméstica sem subutilizar a lógica protetiva da Maria da Penha, mas também sem aplicar uma lei feita para combater a desigualdade de gênero? Aspectos criminais relevantes Do ponto de vista penal, a decisão amplia o rol de sujeitos passivos possíveis nos crimes de violência doméstica e familiar previstos na lei Maria da Penha, incluindo as mulheres trans e travestis. Isso significa que, a partir do reconhecimento da identidade de gênero, estas pessoas devem ser protegidas em casos de violência praticada por cônjuges, companheiros ou familiares. O Direito Penal, nesse contexto, abandona uma concepção biologizante e passa a adotar uma perspectiva afirmativa e inclusiva, que leva em consideração a identidade de gênero como elemento determinante na aplicação da norma. Outro ponto de destaque é a extensão das medidas protetivas de urgência - como o afastamento do(a) agressor(a) do lar, proibição de contato e aproximação - às mulheres trans e travestis vítimas de violência doméstica. Tal medida reforça a necessidade de atuação preventiva do Estado, evitando a revitimização e promovendo a proteção integral das pessoas vulneráveis. A decisão do STF dialoga diretamente com a política criminal de prevenção e combate à violência baseada no gênero, que não se restringe ao sexo biológico, mas inclui também as expressões identitárias que são historicamente marginalizadas e expostas a maior risco de violência. O reconhecimento da aplicação da Lei Maria da Penha à população trans e a casais homoafetivos é um passo importante para enfrentar o grave cenário de violência contra pessoas LGBTI+ no Brasil, país que figura entre os que mais registram assassinatos de pessoas trans no mundo. Apesar do avanço, a decisão suscita debates doutrinários e jurisprudenciais. Uma das principais questões diz respeito à aplicação da lei em relações homoafetivas masculinas. Assim, permanece o desafio de identificar até que ponto o fator "gênero" - e não apenas o sexo ou identidade de gênero - deve ser o elemento central para a aplicação diferenciada da lei. Outra controvérsia envolve a capacitação dos operadores do direito para lidar com a diversidade de gênero, as novas formações de famílias e orientação sexual, especialmente considerando que muitas vítimas trans e travestis enfrentam discriminação institucional quando buscam auxílio no sistema de justiça criminal. A decisão do STF representa um avanço expressivo na proteção penal da população LGBTI+, especialmente das mulheres trans e travestis, reconhecendo que a violência doméstica e familiar se manifesta também nas relações não heteronormativas, e representa um avanço jurídico e político na proteção das pessoas LGBT+ e na afirmação de uma justiça criminal mais inclusiva e sensível às desigualdades estruturais de gênero e sexualidade. Contudo, é preciso que o Poder Legislativo e os órgãos do sistema de justiça avancem na regulamentação e efetivação dos direitos da população LGBTI+ que não se enquadram na literalidade da lei, mas que enfrentam cotidianamente as mesmas violências em seus lares. A população LGBTI+ não pode continuar à margem do sistema protetivo penal. O Direito deve evoluir não apenas em sua interpretação, mas também em suas práticas institucionais, para garantir a vida, a integridade física e a dignidade de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero ou orientação sexual.
No dia 14/5/25, por 6 votos a 3, a 3ª seção do STJ fixou a tese de que "a solicitação direta de Relatório de Inteligência Financeira pelo Ministério Público ao Coaf sem autorização judicial é inviável" e que "o Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta de dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial". O julgamento teve como paradigma os processos RHC 174.173, RHC 196.150 e REsp 2.150.571 O ministro Messod Azulay propôs em seu voto a necessidade de autorização judicial para a requisição ativa dos dados, apesar da constitucionalidade do compartilhamento espontâneo já firmado pelo STF. Para o ministro, os dados relativos do Coaf são sensíveis e requerem respeito à reserva de jurisdição. Nesta edição, os autores Vinicius Vasconcellos e Maria Eduarda Amaral abordam as restrições do Tema 990 e o impacto do atual entendimento do STJ, a evolução jurisprudencial sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf pelos órgãos de investigação e as possíveis consequências práticas da mudança de compreensão sobre o tema. 1. As restrições do Tema 990/STF e o impacto no atual entendimento do STJ O entendimento firmado em 2019 pelo STF no julgamento do Tema 990 deixava aberto o campo de debate sobre a necessidade de autorização judicial para requisição de dados do Coaf. Embora o STF tenha firmado a tese no sentido de autorizar o compartilhamento de RIFs de ofício pelo Coaf para as autoridades investigativas, no próprio julgamento os ministros apresentaram restrições. O ministro Dias Toffoli, relator do Tema 990, em seu voto destacou ser importante enfatizar a "absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados" e que "esse ponto reforça a ausência de poder requisitório do Ministério Público junto à Unidade de Inteligência brasileira, que simplesmente produz atividade de inteligência, sem, contudo, certificar a legalidade ou não das operações financeiras analisadas". No mesmo sentido, o ministro Barroso entendeu que "Ministério Público não pode requisitar à Receita Federal, de ofício, ou seja, sem tê-las recebido, da Receita, informações protegidas por sigilo fiscal. Neste caso, se impõe autorização judicial". Ou seja, o próprio Plenário do STF já indicava limites no julgamento do Tema 990, o que atrai a necessidade do delineamento de sistemáticas de controle distintas quanto ao compartilhamento de RIFs nas hipóteses de ofício pelo Coaf e quando os dados forem requeridos pelas autoridades de persecução penal Por isso, a atividade do Coaf enquanto órgão fiscalizador e o seu dever de comunicar possíveis fraudes em nada se confunde com a hipótese em que os órgãos de persecução requisitam diretamente dados de inteligência financeira para subsidiar suas investigações. Trata-se de uma diferenciação necessária a partir de um controle de legalidade e do devido processo, o que impõe entendimentos específicos para cada cenário.  2. A evolução do entendimento sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf No STF, não há consenso sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf. Enquanto a 1ª turma da Corte Suprema admite a requisição direta, a 2ª turma adota uma posição mais restritiva. O julgamento do HC 201.965 expressa essa posição mais cautelosa da 2ª turma do STF. No seu voto, o ministro Gilmar Mendes esclareceu que "é importante pontuar que para além do compartilhamento 'espontâneo' de informações (RIF espontâneo ou de ofício), o Coaf também realiza outra modalidade de compartilhamento, que é chamado de 'disseminação em face de pedido da autoridade competente' (RIF a pedido ou por intercâmbio)", sendo entendido pela 2ª turma que "a legislação aplicável não admite a elaboração de RIFs 'por encomenda' do Ministério Público ou da autoridade policial" (HC 201965, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª turma, j. 30/11/21). Da mesma forma, o STJ já tinha se posicionado no sentido de que o fato de a Receita Federal poder valer-se da representação fiscal para fins penais não autoriza que o MP requisite diretamente os mesmos dados sem autorização judicial (RHC 83.447, Rel. Min. Sebastião Reis, 6ª turma, j. 9/2/22). Por outro lado, em abril de 2024, no julgamento da RCL 61.944, a 1ª turma do STF confirmou que compartilhamento de dados pode ocorrer de forma espontânea pelo Coaf ou a requerimento da autoridade policial sem prévia autorização judicial. Esse mesmo entendimento era compartilhado pela 5ª turma do STJ (AgRg no RHC 200983, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 17/12/24; AgRg no RHC 192604, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 4/11/24). Apesar disso, mesmo depois do julgamento da RCL 61.944, a 6ª turma do STJ reafirmou, em diversas oportunidades, a ilegalidade de compartilhamento de RIFs por encomenda sem autorização prévia (RHC 203.578, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 5/11/24; RHC 201841, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo, j. 20/3/25). Ou seja, até o dia 14/5/25 não havia consenso entre as principais Cortes do país em relação ao assunto. Enquanto a 5ª turma seguia o entendimento da 1ª turma do STF, a 6ª turma, por outro lado, adotava um entendimento mais restritivo, na linha da 2ª turma do STF. Por isso, ainda que permaneça a divergência de entendimento no âmbito da Corte Suprema, a tese fixada pela 3ª seção do STJ é um divisor de águas na discussão, pois respeita os direitos e garantias fundamentais e estabelece a necessária limitação ao poder de requisição de dados sensíveis pelas autoridades de persecução penal.  3. O voto do ministro Messod Azulay e os demais ministros O entendimento sobre o tema foi liderado pelo ministro Messod Azulay, o qual entendeu que o Coaf não possui atividade investigatória, sendo sua função receber e analisar informações para elaborar relatórios sobre movimentações financeiras atípicas. E, por lidarem com dados financeiros protegidos, esses relatórios são classificados como sensíveis. Na avaliação do ministro Messod, embora o compartilhamento espontâneo dessas informações seja legítimo, nos termos do art. 15 da lei 9.613/1998, o envio a pedido exige autorização judicial. Ele destacou que o acesso direto aos RIFs, ainda que não configure tecnicamente quebra de sigilo, envolve dados sensíveis e que, portanto, ampliar o escopo do Tema 990 para permitir requisições ativas violaria o princípio da reserva de jurisdição. Esse entendimento foi acompanhado pelos ministros Sebastião Reis Júnior, Reynaldo Soares da Fonseca, Joel Ilan Paciornik e os desembargadores convocados Otávio de Almeida Toledo e Carlos Cini Marchionatti. Além disso, apesar de reconhecer a necessidade de manifestação do pleno do STF sobre o assunto, o ministro salientou que o contexto judicial de posições dissonantes evidencia a necessidade de equilíbrio entre a efetividade da investigação e a proteção de direitos fundamentais das pessoas investigadas, sendo tarefa do STJ decidir sobre o assunto, especialmente diante da elevada demanda da corte. Os ministros Ribeiro Dantas, Rogério Schietti e Og Fernandes divergiram da maioria. Para o Ministro Og, o tema deveria ser decidido pelo STF já que foi objeto de repercussão geral, pois teria natureza integralmente constitucional. Já o ministro Schietti ressaltou o papel do MP nas investigações criminais, ressaltando que eventuais excessos não justificam impor limitações generalizadas à atuação do órgão, considerando contraditório permitir que o Coaf envie dados de forma espontânea, mas proibir que o MP os solicite ativamente. 4. Consequências Práticas da Mudança A proposta do ministro Messod Azulay sagrou-se vencedora por 6 votos a 3. Com a mudança, podemos visualizar as seguintes consequências práticas imediatas:  Maior legitimação dos poderes investigativos, visto que submetidos ao controle judicial: A partir da nova tese fixada pela 3ª seção do STJ, o Ministério Público e outros órgãos de persecução penal passam a depender, obrigatoriamente, de autorização judicial para requisitar diretamente RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf. Isso acarreta maior controle para acesso às informações, visto que a autorização judicial dependerá de justificação legítima da investigação e de sua justa causa. Ponderação de interesses em jogo: Considerando que as informações do Coaf não estão em poder das pessoas investigadas, não há risco de destruição ou manipulação, de modo que a necessidade de autorização judicial prévia não prejudica a persecução penal. Nesse sentido, devem ser estruturados mecanismos para que a prestação jurisdicional seja em prazo exíguo. Reforço à proteção de dados sensíveis: O entendimento confere maior proteção aos dados financeiros dos cidadãos, reconhecendo-os como sensíveis e submetidos à reserva de jurisdição. Essa proteção está em consonância com o direito fundamental à proteção de dados e ao princípio do devido processo legal. Impacto nas investigações criminais em andamento: Necessidade de reavaliação da legalidade das provas em Inquéritos e ações penais que tenham se baseado em RIFs obtidos diretamente pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, sem autorização judicial. Readequação dos fluxos entre órgãos investigativos e o Coaf: A decisão demandará mudanças práticas no modo como o MP e a polícia se relacionam com o Coaf, reforçando a atuação do Judiciário como instância de controle no acesso a dados financeiros. Deverá haver um maior planejamento de estratégias investigativas, reforçando a necessidade de demonstrar a justa causa e obter autorização judicial para acessar esses dados. O voto do ministro Messod Azulay foi fundamental para a nova orientação, ao reconhecer que, embora o compartilhamento espontâneo de informações pelo Coaf seja legítimo, a requisição ativa exige autorização judicial. Tal distinção evita que as autoridades de persecução penal utilizem os mecanismos de inteligência financeira como instrumentos de devassa indiscriminada, afastando práticas que possam configurar verdadeiras "fishing expedition". A tese firmada consolida uma jurisprudência mais segura e equilibrada, valorizando a legalidade, a proporcionalidade e o respeito ao devido processo legal. Por fim, a decisão da 3ª seção do STJ fortalece o papel do Judiciário como instância de controle no uso de ferramentas sensíveis de investigação e reafirma o equilíbrio entre o poder investigatório estatal e a proteção de direitos individuais.
Esta nova edição da coluna Migalhas Criminais propõe uma leitura aprofundada sobre uma das mais inquietantes inovações jurisprudenciais do STJ: o reconhecimento do chamado "estupro virtual" como modalidade do crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal. Mais do que uma ampliação hermenêutica do tipo penal, a decisão paradigmática do STJ (AREsp 2.639.144/DF e outros precedentes correlatos) representa um marco na forma como o ordenamento jurídico brasileiro compreende e enfrenta as novas formas de violência sexual mediadas pela tecnologia. Para discutir esse relevante tema, convidamos Fernanda Stelle, agente de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Paraná, com mais de 13 anos de atuação na segurança pública. Atualmente lotada no Laboratório de Operações Cibernéticas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Fernanda desenvolve investigações voltadas a crimes digitais, especialmente relacionados ao discurso de ódio, ao monitoramento de redes sociais e ao desmantelamento de grupos organizados virtuais. Em sua contribuição para esta edição da coluna, Fernanda propõe um diálogo entre o Direito Penal, a criminologia e os estudos socioculturais contemporâneos, analisando as interfaces entre o estupro virtual e o fenômeno da radicalização misógina em comunidades digitais conhecidas como "incel" (involuntary celibates). Seu texto revela como discursos de ódio e questões afetivo-sexuais - alimentadas por fóruns e redes digitais - podem se traduzir em práticas de violência simbólica e sexual contra mulheres e adolescentes. A análise de Fernanda se destaca não apenas pelo rigor técnico, mas também pela sensibilidade investigativa e criminológica, própria de quem lida diariamente com os subterrâneos da internet e suas expressões mais perigosas. Boa leitura! *** Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
terça-feira, 29 de abril de 2025

Garantias fundamentais não têm CEP

No julgamento do REsp 2.090.901/SP, ocorrido no último dia 2/4/25, a 6ª turma do STJ reafirmou a proteção constitucional da inviolabilidade de domicílio e reconheceu a ilicitude de provas obtidas mediante buscas domiciliares coletivas, realizadas sem mandado judicial e sem a presença de fundadas razões que apontassem para a situação de flagrante delito no interior de imóvel determinado.  O caso concreto envolvia a condenação de um homem por tráfico de drogas a partir de "varredura" policial em viela de comunidade periférica, sem a prévia identificação do imóvel e sem justificativa concreta para o ingresso nos domicílios. A decisão unânime da 6ª turma absolveu o réu com fundamento na teoria dos "frutos da árvore envenenada" (art. 157, §1º, do CPP), fortalecendo a linha jurisprudencial que rechaça devassas indiscriminadas sob o pretexto de combate ao crime, reafirmando que nem mesmo a autoridade judicial pode determinar buscas coletivas.  O julgamento do STJ dialoga com o entendimento recente da Suprema Corte, exposto no julgamento da "ADPF das Favelas" (ADPF 635), este igualmente concluído no início de abril (3/4/25). 1. O caso concreto  O recorrente foi abordado pela polícia militar, após empreender fuga ao avistar a viatura, em uma viela da comunidade conhecida como "Favela do Coruja", localizada no bairro Vila Guilherme na capital paulista. Com ele foi encontrada a quantia de R$ 2.201,85, em notas e moedas diversas, além de um aparelho celular.  Segundo os autos, o réu teria, informalmente, confessado que o dinheiro era proveniente do "recolhe da biqueira". Os policiais afirmaram, também, que ele era conhecido da equipe, pois já havia sido autuado em flagrante no ano de 2020. Sem mandado judicial e sem indícios objetivos da prática delitiva no interior de qualquer imóvel, os militares procederam a uma varredura em residências da região, vindo a localizar entorpecentes e um caderno de anotações com a contabilidade do tráfico em uma delas. Na delegacia de polícia civil, já na presença de seu advogado, o réu negou a prática do crime e seu conhecimento sobre a existência dos entorpecentes encontrados na residência próxima ao local de sua abordagem. O TJ/SP considerou a diligência válida, com base na suposta situação de flagrante decorrente de crime permanente. O STJ, porém, reformou o acórdão, ressaltando que a busca foi realizada de forma coletiva, sem individualização do imóvel ou indicação concreta da ocorrência de crime no interior de uma casa específica. Segundo o relator, ministro Rogério Schietti Cruz, "nem mesmo por ordem judicial é possível a realização de buscas coletivas, é dizer, de 'varreduras' de várias residências de uma região, tendo em vista que é obrigatório que conste do mandado judicial de busca o endereço particularizado em que a diligência deverá ser cumprida (CPP, art. 243, I). É vedada, pois, a expedição de 'mandados judiciais coletivos' de busca domiciliar". Art. 243, I, do CPP: "O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem". 2. A constitucionalização da proteção domiciliar O art. 5º, XI, da Constituição Federal dispõe que "a casa é asilo inviolável do indivíduo", permitindo o ingresso apenas com o consentimento do morador ou nas hipóteses excepcionais de flagrante delito, desastre, socorro ou por mandado judicial. Essa cláusula de proteção é fundamento de diversas decisões paradigmáticas do STF e do STJ, que buscam limitar a discricionariedade da atuação estatal, sobretudo em comunidades periféricas. É importante notar um ponto comum em todas as hipóteses constitucionais de validação do ingresso forçado em domicílio: a urgência. Em outras palavras, para que se possa ingressar em determinada residência sem o consentimento válido do morador ou sem mandado judicial, deve haver, mesmo na hipótese de flagrante delito, urgência para a realização da diligência, isto é, uma situação concreta que impossibilite aguardar o trâmite legal para a expedição do respectivo mandado de busca, tal qual se dá em situações de desastre e para a prestação de socorro.  O ingresso emergencial se justifica, por exemplo, nos casos de violência doméstica, sequestro ou outras hipóteses em que a vítima está sofrendo sérios e iminentes riscos à sua integridade física ou à sua vida. A urgência também pode estar caracterizada quando há indícios fundados e concretos de que o criminoso empreenderá fuga se não houver a invasão domiciliar naquele exato momento ou de que irá descartar objetos para prejudicar a prova da materialidade delitiva. Todavia, como dito, a garantia de inviolabilidade domiciliar só pode ser excepcionada quando a suspeita estiver fundada e lastreada em elementos concretos (justa causa). Art. 5º, XI, da CF: "A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." Essa garantia foi reafirmada pelo STF no julgamento do RE 603.616/RO (Tema 280 da repercussão geral), consolidando o entendimento de que a entrada forçada sem mandado e sem o consentimento válido do morador só é lícita se houver fundadas razões, justificadas pelas circunstâncias concretas, que indiquem estar ocorrendo um crime dentro da residência. "A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados" (RE 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes). Não é demais lembrar o que dispõe o art. 248 do CPP, o qual impede a realização da diligência de busca, em casa habitada, de modo a incomodar os moradores além do indispensável ao efetivo êxito da diligência. Art. 248 do CPP.  "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência". Esse plexo de garantias constitucionais e legais envolvendo o domicílio traz consigo a força da palavra asilo, indicando que a casa é um ambiente de proteção e de abrigo do indivíduo. Nela, o sujeito deve sentir-se seguro, inclusive das investidas estatais sobre a sua liberdade individual. Só se pode flexibilizar essa característica, sem que haja o consentimento válido do morador, em situações excepcionalíssimas de urgência ou, durante o dia, por meio de um mandado judicial amparado em fundadas razões e expedido nos moldes dos arts. 240 a 243 do CPP. 3. Teoria dos frutos da árvore envenenada A decisão do STJ também reafirmou a aplicação da teoria dos "frutos da árvore envenenada" (art. 157, §1º, do CPP). Como a diligência foi ilícita - por violar a garantia da inviolabilidade de domicílio - todas as provas decorrentes da busca domiciliar foram contaminadas e consideradas inadmissíveis. Art. 157, §1º, do CPP: "São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras." 4. Distinções importantes: Busca pessoal lícita x busca domiciliar ilícita O acórdão da relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz separou adequadamente dois momentos distintos da atividade policial: (i) a validade da busca pessoal, em razão da tentativa de fuga do recorrente ao avistar a guarnição (conforme orientação da 3ª Seção no habeas corpus 877.943/MS, julgado em 18/4/24); e (ii) a ilicitude do ingresso em domicílios não identificados, em razão da ausência de mandado, de fundadas razões e da individualização objetiva da diligência. Tal distinção evita generalizações. A abordagem pessoal pode até ter sido legítima em decorrência da fuga do réu, mas ela não autoriza, por si só, o ingresso posterior em residências indeterminadas, sobretudo sem a presença de elementos concretos da ocorrência de flagrante delito no interior de um imóvel específico e individualizado. 5. Impactos práticos e limitações à atuação policial discricionária O julgamento do STJ reforça a necessidade de contenção da atuação discricionária na atividade estatal, em especial em regiões ocupadas por populações vulneráveis. A prática reiterada de incursões em comunidades periféricas com base em alegações genéricas - como "ponto conhecido pelo comércio de drogas" - não pode legitimar violações constitucionais. O STJ mostra que o combate ao crime não pode se dar à custa da legalidade. Não há "zonas de exceção" nos rincões periféricos: a Constituição e as leis que vigoram nos bairros nobres são as mesmas que regem a vida em sociedade na periferia. A casa deve ser sempre considerada o asilo inviolável do indivíduo, esteja ela localizada no Jardim Europa ou na Favela do Coruja. 6. Diálogo institucional: O STJ e a ADPF das Favelas (ADPF 635) O julgamento do STJ dialoga diretamente com o recente acórdão prolatado pelo STF na ADPF 635, conhecida como "ADPF das Favelas", em que se reconheceu a prática reiterada de violações de direitos fundamentais em razão de operações policiais indiscriminadas em comunidades do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal determinou a adoção de políticas de controle, transparência, planejamento e contenção da letalidade estatal. Ambas as decisões convergem no sentido de rechaçar incursões genéricas e desproporcionais, sobretudo em territórios periféricos ocupados por populações vulneráveis. A proibição de buscas coletivas pelo STJ e as medidas estruturais impostas pelo STF são manifestações do mesmo princípio: a legalidade é o limite intransponível da atuação estatal, pouco importando onde ela ocorra, isto é, se em um bairro nobre ou em uma comunidade da periferia. 7. Considerações finais O julgamento unânime do REsp 2.090.901/SP pela 6ª turma do STJ e a decisão per curiam lançada na ADPF 635 pelo plenário do STF são exemplos do compromisso dos Tribunais Superiores com um processo penal legítimo e verdadeiramente democrático.  As duas decisões colegiadas, proferidas na mesma semana de abril de 2025 (2 e 3/4/25, respectivamente), simbolizam um importante marco interpretativo da jurisprudência brasileira: não há Constituição pela metade e não há direitos dependentes do CEP do cidadão. Tanto as comunidades quanto os bairros nobres são territórios juridicamente protegidos.
Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a satisfação de apresentar o artigo da autora Monique Vaz Carvalho, que traz uma análise minuciosa e altamente atual sobre os limites da atuação do Ministério Público na definição das condições dos ANPP - Acordos de Não Persecução Penal, com enfoque especial na destinação das prestações pecuniárias e de obrigações equivalentes. O ponto de partida do texto é o julgamento do AREsp 2.783.195/MA, no qual o STJ enfrentou diretamente a controvérsia sobre a legalidade da indicação de órgãos públicos como destinatários de doações e benefícios acordados, colocando em xeque a compatibilidade dessas práticas com o art. 28-A do CPP. Monique Vaz Carvalho é mestranda em Direito Constitucional pelo IDP/DF - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, graduada pelo UNICEUB/DF - Centro Universitário de Brasília, analista judiciária do STJ e assessora de ministro da Terceira Seção do STJ. Com sua vivência institucional e domínio técnico da matéria, a autora aprofunda os fundamentos legais e jurisprudenciais que balizam a repartição de competências entre o Ministério Público e o juízo das execuções, oferecendo ao leitor uma reflexão crítica e embasada sobre os riscos de esvaziamento do controle judicial nas medidas despenalizadoras. Com estilo claro, rigor dogmático e um repertório jurisprudencial de ponta, o artigo reafirma a missão da coluna Migalhas Criminais de promover o debate qualificado sobre os temas mais candentes do direito penal e processual penal brasileiro à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Com a palavra, nossa convidada, Monique Vaz Carvalho. *** O STJ, no julgamento do agravo regimental no agravo em recurso especial 2.783.195/MA, analisou a legalidade da seguinte tese fixada pelo TJ/MA em incidente de assunção de competência: Descabe a homologação do ANPP - Acordo de Não Persecução Penal  que não atenda os requisitos do art. 28-A, do CPP, inclusive acerca da ordem procedimental de celebração, sendo vedada a indicação de órgão público como beneficiário de prestação pecuniária (dinheiro, cesta básica, EPI, etc.), ressalvados os instrumentos firmados até o presente julgamento, acaso não rejeitados com supedâneo nas hipóteses previstas no § 2º, de referido dispositivo legal. O caso dos autos dizia respeito à prática, em tese, do crime previsto no art. 54, caput, da lei 9.605/1998 c/c o art. 3º, inciso III, da lei 6.938/1981 (poluição sonora por meio de equipamento de descarga de motocicleta adulterado), tendo o Ministério Público formalizado acordo de não persecução penal, indicando, entre as condições, o pagamento no valor de um salário mínimo, na forma de compra de  EPI - equipamentos de proteção individual, a serem doados a Secretaria Municipal de Trânsitos e Transportes. O magistrado de origem, no entanto, considerou referida condição ilegal, por não ter observado o disposto no inciso IV do art. 28-A do CPP, e não homologou o acordo. Destacou que "a SMTT participa ativamente das operações policiais de combate à poluição sonora em conjunto com o Ministério Público Estadual, sendo responsável pela realização das blitz montadas para a abordagem dos autores do delito. Nesse aspecto, não pode ser destinatário dos benefícios constantes do acordo, assim como qualquer órgão público atuante nas operações, dada a necessidade de resguardo da imparcialidade de sua atuação". Interposto recurso em sentido estrito pelo beneficiário do acordo e pelo Ministério Público, instaurou-se, de ofício, incidente de assunção de competência, fixando-se a tese acima já referida e destacando-se que "Ainda que atribuível ao Ministério Público a tomada de decisão acerca da celebração, ou não, do ANPP, não se autoriza a inobservar os ditames legais, a ponto de submetê-lo à apreciação do juízo somente após o cumprimento das obrigações, assim como a estabelecer, à revelia do juízo da execução, beneficiário do produto da avença, sobretudo órgão público, que difere da entidade pública prevista na norma". No recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado do Maranhão, apontou-se ofensa ao art. 45, § 1º, do Código Penal e ao art. 28-A, caput, inciso V, do CPP. Argumentou-se que considerar a doação de bens como prestação pecuniária violaria o princípio da legalidade e que o § 2º do art. 45 do Código Penal, ao disciplinar que "a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza" explicita que prestação de outra natureza não é prestação pecuniária, não se inserindo, portanto, no inciso IV do art. 28-A do CPP. Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (Código Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. [...] Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48. § 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 salário mínimo nem superior a 360 salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. § 2o No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza. [...] O relator, ministro Ribeiro Dantas, não acolheu a tese ministerial, consignando que a entrega de equipamentos de proteção individual deve se equiparar à prestação pecuniária, "destacadamente porque a obrigação foi fixada em valor pecuniário e com parâmetro no salário mínimo". Em voto-vista, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca acompanhou o relator, considerando, em um primeiro momento, que "a doação de bens deve ser considerada prestação de outra natureza, enquadrando-se igualmente no dispositivo legal que trata da prestação pecuniária". Registrou, no mais, que a condição do inciso V do caput do art. 28-A do CPP deve ser quantificável em tempo e não em valor e, por fim, indicou julgados do STF a respeito impossibilidade de livre destinação de valores pelo Ministério Público. Referido julgamento foi concluído em 18/3/25. Uma leitura rápida do processo pode dar a impressão de se tratar de uma simples controvérsia a respeito do alcance do conceito de prestação pecuniária. Entretanto, o que efetivamente se discutiu foi a legitimidade do Ministério Público para indicar o destinatário das condições fixadas no acordo de não persecução penal. Acaso se considere que a prestação pecuniária se limita à fixação de uma quantia em dinheiro, todas as demais prestações fixadas em bens seriam inseridas, por exclusão, na cláusula aberta do inciso V do caput do art. 28-A do CPP, possibilitando, assim, livre indicação do destinatário pelo Ministério Público. Contudo, se fixada em dinheiro, seriam inseridas na condição do inciso IV, cujo destinatário deve ser entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo Juízo das Execuções. O CNPG - Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais, em reunião realizada em 12/2/2025, acolheu a nota técnica 01/25 do GNCCRIM - Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal, com encaminhamento ao Conselho Nacional do Ministério Público, "a fim de que expeça ato normativo apto a viabilizar ao Ministério Público brasileiro a estipulação de cláusula de obrigação de dar ou de fazer, notadamente a relativa à doação de bens, com arrimo no inciso V, do art. 28-A do CPP', por ocasião da entabulação do acordo de não persecução penal". Mostra-se imperativo, dessa forma, compreender a extensão que deve ser dada ao conceito de prestação pecuniária previsto no art. 28-A e, por consequência, à condição extralegal prevista no inciso V, tanto para não inviabilizar as demais condições legalmente previstas quanto para não esvaziar o comando normativo da cláusula aberta. O inciso IV do caput do art. 28-A do CPP prevê como condição o pagamento de prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal. Referido artigo disciplina em seu § 2º a possibilidade de a prestação pecuniária consistir em prestação de outra natureza. Nessa linha de intelecção, a destinação de bens em vez de dinheiro deve ser inserida no inciso IV, haja vista a expressa referência ao art. 45 do Código Penal. Ademais, pela leitura do inciso V, verifica-se que a outra condição a ser indicada pelo Ministério Público deve ser cumprida "por prazo determinado", o que leva à compreensão de que se trata de condição a ser quantificável em tempo e não em valor econômico. Segundo Vinícius Gomes de Vasconcellos, "de certo modo, aproxima-se o ANPP da lógica do período de prova característico à suspensão condicional do processo. Tal prazo deve ser compatível com a lógica do próprio ANPP, de modo que um parâmetro deve ser aquele definido para a prestação de serviço comunitário (art. 28-A, III)" 1  Nada obstante, conforme ponderado por Gustavo Badaró, as condições genéricas estabelecidas com fundamento no inciso V não podem ser equivalentes às já consideradas pelo legislador para integrar o rol do caput do art. 28-A do CPP.2 Portanto, apenas os parâmetros devem ser semelhantes, não se justificando a inserção de uma condição já prevista de forma específica na cláusula aberta do inciso V. O Ministério Público Federal, por meio da orientação conjunta 03 de 2018, indicou exemplos de outras condições que podem ser propostas pelo parquet: "No caso de contrabando, por exemplo, podera' constar cla'usula que vede a viagem do investigado para o país de onde trouxe indevidamente a mercadoria. Nos crimes econômicos podera' ser estabelecido o afastamento do acusado da diretoria ou do controle da empresa. Nos crimes praticados contra o Sistema Financeiro Nacional poderá ser estabelecida a proibição do acusado em operar no mercado financeiro por período determinado"3. Para além do debate a respeito do conceito de prestação pecuniária e da abrangência da outra condição prevista no inciso V, tem-se também a controvérsia concernente à possibilidade de o Ministério Público indicar o destinatário dos bens definidos como condição do acordo, tema central do dissenso estabelecido. O STF, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 6.305/DF, de relatoria do ministro Luiz Fux, declarou, por unanimidade, a constitucionalidade dos incisos III e IV do caput do art. 28-A do CPP, quanto à escolha, pelo juízo das execuções, do local para prestação de serviço e da entidade para pagamento da prestação pecuniária. O ministro Alexandre de Moraes, ao proferir seu voto no mencionado julgamento, destacou que "a opção do legislador é válida e convergente com outras hipóteses legais há muito aplicadas sem qualquer contestação, como os arts. 45 e 46 do Código Penal, aos quais a lei 13.964/19 faz referência expressa, nos incisos III e IV do novo art. 28-A do CPP" (ADI 6.305, relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24/8/23, DJe 18/12/23 - p. 861). O CNJ editou a resolução 154/12, alterada pelas resoluções 206/15 e 225/16, com o objetivo de regulamentar a utilização dos recursos oriundos da aplicação da pena de prestação pecuniária. Mencionada resolução determina que os valores "serão, preferencialmente, destinados à entidade pública ou privada com interesse social, previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, educação e saúde", sendo "vedada a escolha arbitrária e aleatória dos beneficiários" (art. 2º, caput e § 3º, da resolução). A resolução veda a utilização dos recursos para custeio do Poder Judiciário, para promoção pessoal ou remuneração, para fins políticos-partidários, bem como para entidades que não estejam regularmente constituídas. Consta, ainda, que a destinação dos referidos valores deve observar os princípios constitucionais da administração pública, previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, bem como a necessária prestação de contas (arts. 3º e 4º, da resolução). Questionou-se perante o STF a constitucionalidade da resolução 154/12, com relação à destinação da prestação pecuniária fixada como condição para a suspensão condicional do processo, para a transação penal ou para o ANPP, ficando assentado que "pouco deveria importar ao próprio dominus litis, a destinação da prestação pecuniária fixada". Destacou-se que a destinação das prestações, em si, não é elemento da negociação entre as partes, devendo permanecer no âmbito da administração do cumprimento da medida, a cargo, portanto, do Poder Judiciário. Em virtude da falta de previsão constitucional, não cabe mesmo ao Ministério Público administrar os recursos que ingressam nos cofres públicos a título de sanção criminal ou de sucedâneo desta, tampouco disciplinar o destino deles. (ADI 5388, relator(a): Marco Aurélio, relator(a) p/ Acórdão: Nunes Marques, Tribunal Pleno, julgado em 20/5/24, DJe 18/6/24). O beneficiário das condições fixadas não se insere no objeto do acordo, devendo ser observada a resolução questionada, a qual busca reforçar a impessoalidade na destinação de valores que passam a ter caráter público. Ademais, não havendo previsão legal a respeito de destinatário específico das receitas provenientes de acordo ou de responsabilização penal, estas devem ser destinadas à União para o devido processo orçamentário constitucional, conforme assentado na ação de descumprimento de preceito fundamental 569/DF. Excepcionalmente, desde que haja expressa e específica previsão legal quanto à destinação, essas receitas deverão ser repassadas aos destinatários beneficiados pela respectiva norma regulamentadora, vinculando os órgãos jurisdicionais no emprego dado a tais recursos. São as seguintes hipóteses: [...] (c) a prestação pecuniária ajustada em acordos de não persecução penal destina-se à entidade pública ou de interesse social (art. 28-A, IV, do CPP), conforme indicado pelo Juízo; [...] (ADPF 569, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/5/24, DJe 24/5/24). No mencionado julgamento, excepcionou-se a norma do art. 28-A, caput, inciso IV, do CPP, haja vista a previsão expressa de que a destinação da prestação pecuniária deve ser entidade pública ou de interesse social indicada pelo juízo das execuções. No entanto, não havendo vinculação legal específica de destinatário no inciso V, o Ministério Público não poderia escolher livremente o destinatário dos recursos definidos no acordo. Nas palavras do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca: [...] apesar da abertura semântica do inciso V, sua interpretação deve se harmonizar não apenas com os demais incisos do art. 28-A, caput, do CPP, os quais fazem expressa remissão a dispositivo do Código Penal, mas especialmente com a interpretação constitucional a respeito da destinação de valores no processo penal. Nessa perspectiva, conclui-se que a condição aberta prevista no art. 28-A, caput, inciso V, do CPP não deve possuir vinculação econômica, sob pena de representar burla ao disposto no inciso IV do mesmo dispositivo legal. De igual sorte, conforme firmado pelo STF em mais de uma oportunidade, não é possível a livre disposição de receitas derivadas do sistema de responsabilização penal, motivo pelo qual não compete ao Ministério Público escolher o destinatário das condições acordadas para a aplicação de medidas despenalizadoras. _________ 1 Vasconcellos, Vinícius Gomes de. Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 167. 2 Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. Disponível aqui. Acesso em 8/4/25. 3 Disponível aqui. Acesso em 13/3/25
Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a satisfação de contar com a colaboração de João Gabriel Ribeiro Preira Silva, juiz de Direito do TJ/DFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, juiz auxiliar no STJ e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, que enfrenta com profundidade e clareza um dos temas mais complexos e atuais do Direito Penal contemporâneo: a competência da Justiça Federal para julgar delitos relacionados à oferta de criptomoedas ao público. O autor parte da constatação do crescente protagonismo das moedas digitais no cenário econômico e jurídico para analisar como a jurisprudência do STJ tem se posicionado em conflitos de competência entre a Justiça Federal e a estadual. Com base em precedentes recentes, o magistrado esclarece os critérios adotados pelo STJ para diferenciar, por exemplo, operações fraudulentas típicas de estelionato daquelas que, pela estrutura e habitualidade, podem configurar crimes contra o sistema financeiro nacional. Além disso, o texto chama atenção para a recente alteração legislativa promovida pela lei 14.478/22, que passou a incluir os prestadores de serviços com ativos virtuais no rol das instituições financeiras equiparadas, o que pode provocar relevante inflexão na jurisprudência consolidada até aqui. Em meio a uma zona cinzenta de regulação e interpretação, o artigo convida à reflexão sobre os limites do conceito de instituição financeira, a natureza jurídica dos ativos virtuais e os contornos da competência penal no Brasil. Imperdível para estudiosos do direito penal econômico e todos os que se deparam com os desafios da criminalidade digital. Com a palavra, nosso convidado João Gabriel. Ao menos desde a primeira hipervalorização sofrida pelo "Bitcoin" nos anos de 2017 e 2018, nos quais a criptomoeda saiu do patamar de dólares para dezenas de milhares de dólares, a questão relativa às criptomoedas entrou em voga, inspirando apaixonados debates e deixando em seu caminho uma legião de arrependidos, que do passado só tem a certeza de que se pudessem retornar, adquiririam a "moeda". Embora de difícil estimativa, tem-se, atualmente, notícia de que cerca de 17 mil tipos diferentes de "criptomoedas" em negociação1, em um mercado que, estima-se, movimenta cerca de US$ 18,83 trilhões apenas nas 15 principais "exchanges"2 (hubs responsáveis por oferecer sistemas de carteira que guardam e oferecem à compra e venda os ativos). Como não poderia ser diferente, um fenômeno social que tangencia valores de tamanha relevância não passaria ao largo do sistema Judiciário brasileiro, que tem sido chamado a enfrentar problemas jurídicos envolvendo tais ativos, cujo potencial litigioso pode desafiar as mais variadas questões: desde a regulamentação pelas autoridades monetária e de valores mobiliários, passando por questões sucessórias e tangenciando a justiça criminal. Em termos de justiça criminal, mostra-se quase intuitiva a ligação entre a moeda e a Justiça Federal. Seja porque a CRFB/88 - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 proclama, de maneira direta, o monopólio da União para a emissão da moeda (art. 21, VII), seja porque, no imaginário popular, uma das hipóteses mais comuns de se ver cidadãos submetidos a processos penais perante a justiça especializada é a relativa ao processamento pelo crime de moeda falsa, previsto no art. 298 do CP brasileiro.  Contudo, ao público mais familiarizado com o Direito Penal, o diálogo entre o instrumento monetário e o sistema criminal evoca também o menos conhecido e mais sofisticado delito de operar uma instituição financeira sem autorização do Banco Central, cuja tipificação encontra-se na lei 7.492/86, art. 16, que comina pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa ao banqueiro clandestino. Diante da carnal imbricação havida entre o sistema financeiro e a moeda, o próprio constituinte houve por bem estabelecer, em termos claros, a competência da Justiça Federal para processar em julgar "(...) nos casos determinados por lei, (os crimes) contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira" (art. 109, VI da CRFB/88). Ocorre, contudo, que, no caso do delito de operação irregular de instituição financeira, a despeito da clareza da previsão da regra de competência, a apuração da competência da Justiça Federal resta dificultada por um dos elementos objetivos do tipo previsto no art. 16 da lei 7.492/86: o conceito de "instituição financeira". Ao leitor mais atento não foge a resposta direta: a carga normativa desta expressão decorre da conceituação direta dada pelo art. 1º do mesmo diploma legal que define que "Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários." Assim, aos filhos e filhas ou pais e mães que aplicam os recursos de sua prole ou de seus genitores em arranjo de "holding familiar" já se recomenda, de imediato, a contratação de advogado para a defesa em eventual ação penal. No mesmo sentido, aos colegas de trabalho que arrecadam em conta de suas pessoas jurídicas os valores para custeio da confraternização de fim de ano se recomenda cautela. Obviamente, tais situações de "intermediação" financeira estão ao largo do objetivo da norma penal, que objetiva, em verdade, a persecução penal de pessoas jurídicas que, de maneira sistemática e continuada, captem recursos privados e os mantenham em custódia e, de outro lado, ofereçam crédito ao público. Assim, a diferenciação entre a adoção de estratagemas que viabilizam, através de engano, fraude, artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento a apropriação de recursos de terceiros, em típica conduta de estelionato, e a lesão à economia popular promovida por instituição financeira não autorizada é mais sutil do que se pode pensar e, por tal motivo, o STJ tem sido chamado, frequentemente, a se pronunciar sobre o tema em conflitos de competência julgados pela 3ª seção. Dispõe o art. 105, I, d, da CRFB/88 que "Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente (...) d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos". A análise da jurisprudência da corte em casos em que o delito investigado é o de estelionato praticado em desfavor de particular determinado mediante oferta de investimentos com rendimentos mensais indica posição remansosa do STJ no sentido de reputar competente o juízo estadual. Neste sentido: (...) A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da lei 7.492/1986. Assim, a princípio, processos criminais envolvendo a matéria devem correr no âmbito da Justiça estadual. (...) (AgRg no CC 189304 / RJ, RELATOR ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, DATA DO JULGAMENTO 13/12/2023, DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 18/12/23) Em reforço: "A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular)" (STJ, CC n. 146.153/SP, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Terceira Seção, julgado em 11/5/16, DJe 17/5/16). Mencione-se, ainda, os seguintes conflitos julgados colegiadamente: CC 195.150/SP, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 12/4/23, DJe de 19/4/23; CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20; CC 202.036, ministra Daniela Teixeira, DJe de 11/3/24 e CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18. Da análise de tais precedentes, o que se observa é que, na maioria dos casos, a 3ª seção do STJ tem se pronunciado no sentido de que artifícios comumente estruturados na forma de "pirâmide financeira", devem ser caracterizados, ao menos para efeito de definição inicial da competência para a prestação de jurisdição, como estelionato, incumbindo, portanto, à Justiça Estadual, o processamento e julgamento dos fatos. Em geral, o entendimento adotado baseia-se nos seguintes argumentos:  "A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976." (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.); "(...) 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, no autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. (...)" (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.); "Conforme jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, "a captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular) (CC 146.153/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 17/5/2016)" (CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20). Observa-se, portanto, que ausente regulação Federal das "criptomoedas", seja como substitutivo ou representativo da moeda nacional, seja como ativo, tem-se percebido o seu uso como elemento que compõe o "engano", "fraude", "artifício" ou "ardil" típico do estelionato ou como elemento típico da conduta prevista no art. 2º, IX, da lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular). Ademais, como pontuado pelo ministro Sebastião Reis Júnior por ocasião do julgamento colegiado de um dos primeiros conflitos de competência envolvendo a matéria (CC 161.123/SP), a mera negociação de tais "criptomoedas" não tipifica, por si, delito de ordem tributária que envolva exação Federal, evasão de divisas ou lavagem de capitais antecedida por delito apurado pela justiça especializada. Pode-se, dizer, assim, que a questão encontra-se pacificada perante o STJ. Ocorre, contudo, que a pesquisa de jurisprudência também permite encontrar delitos praticados mediante o emprego de "criptomoedas" cuja competência para apuração restou atribuída à Justiça Federal, destacando-se, aqui, o CC 187976 / RS e AgRg no CC 189304 / RJ. No primeiro precedente citado, a ministra Laurita Vaz estabeleceu "distinguishing" de clareza ímpar: "O caso dos autos, entretanto, possui nuances distintas, uma vez que a atividade exercida pelo investigado não se limitava à compra e venda de criptomoedas, mas incluía também atividades fiscalizadas pela União, tais como a operação de serviços de câmbio, bem assim a captação de recursos em moeda corrente com oferta de rendimentos." (CC 187.976/RS, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 10/8/22, DJe de 18/8/22.) No último, tratando-se de caso rumoroso que envolveu a apuração de delitos praticados mediante oferta de "criptomoedas" que geraram prejuízos bilionários a milhares de pessoas, a 3ª seção se dividiu, prevalecendo, após o voto desempate proferido pelo presidente da Seção, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a posição adotada pelo relator, o ministro Ribeiro Dantas, no sentido de que "eventualmente, é possível que o referido delito (pirâmide financeira) esteja conexo a outros crimes contra o Sistema Financeiro Nacional". Asseverou-se, como "distinguishing", naquela ocasião, que "o grupo criminoso funcionou como instituição financeira clandestina, bem como que os contratos ofertados ao público caracterizavam-se como valores mobiliários, na modalidade contratos de investimento coletivo (CIC)" e que "os delitos da Lei n. 7.492/1986 contentam-se com a figura da Instituição Financeira equiparada, na forma do art. 1º, parágrafo único, da referida Lei." (AgRg no CC 189.304/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, 3ª seção, julgado em 13/12/23, DJe de 18/12/23.) Observa-se, portanto, que diante da prática de delitos exercida continuadamente através da negociação de criptomoedas e sua oferta ao público, não se pode dizer, de maneira definitiva, que a para apuração será exercida pela Justiça estadual. Há, numericamente, superioridade de hipóteses em que o STJ se pronunciou neste sentido, a qual deve ser interpretada como sinal indicativo, no sentido de que o deslocamento da apuração para a Justiça Federal deve ser amparado pelo apontamento de "distinguishing" em linha com os realizados pela Corte cidadã. A definição, contudo, resta ainda mais turvada pela inclusão pela lei 14.478 do I-A ao parágrafo único do art. 1º da lei 7.492/1986, que passou a equiparar a instituição financeira "a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia". É certo que, assim como a definição genérica contida no "caput" do dispositivo não é capaz de definir como instituição financeira as práticas cotidianas mencionadas no início do texto, tal dispositivo também não alçará a tal categoria as pessoas que negociem itens, contas e "skins" de jogos online como se ativos fossem. A questão estará ligada, portanto, à definição jurídica adequada do conceito de instituição financeira, a qual é, a seu turno, diretamente influenciada pelo entendimento que os juristas têm da moeda. Nesta missão, o componente essencial é o estrutural. O entendimento de que a instituição financeira, para ser assim entendida como tal, é aquela que, com habitualidade, capta recursos junto ao público de maneira ampla, custodiando-os em favor dos depositantes e, na outra ponta, empresta recursos financeiros também ao público, comprometendo-se a devolver os recursos depositados e a colocar à disposição de quem toma o montante emprestado, a soma que mutuou. ____________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Em julgamento finalizado no dia 11/3/25, o Plenário Virtual do STF trouxe novamente ao debate um tema sensível e de grande impacto para o direito processual penal brasileiro: o foro por prerrogativa de função para agentes públicos. O ministro Gilmar Mendes, em seu voto como relator nos autos de Habeas Corpus (HC) 232.627/DF e na Questão de Ordem no Inquérito 4.787, propôs a revisão do entendimento até então vigente na Corte e que estava inserido na Questão de Ordem na Ação Penal 937 (AP 937-QO), esta da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. O decano sugeriu que o foro especial deve subsistir mesmo após a cessação das funções do agente público, desde que os crimes imputados tenham relação com o exercício do cargo. Nesta edição, o coordenador da coluna Migalhas Criminais, Júlio César Craveiro Devechi, aborda a evolução jurisprudencial do foro por prerrogativa de função na Suprema Corte, sobretudo os argumentos agora apresentados pelo ministro Gilmar Mendes, a evolução do entendimento do ministro Luís Roberto Barroso e as possíveis consequências práticas da mudança de compreensão sobre o tema. 1. A evolução do entendimento do STF sobre o foro por prerrogativa de função A competência ou foro por prerrogativa de função é um instituto presente na Constituição Federal de 1988 (CF/1988), garantindo que certas autoridades sejam julgadas, na esfera penal, diretamente pelos Tribunais e em razão das relevantes funções públicas que desempenham. É o que ocorre, por exemplo, com as infrações penais comuns imputadas ao Presidente da República, ao Vice-Presidente, aos membros do Congresso Nacional, aos ministros do Supremo Tribunal Federal e ao Procurador-Geral da República, que devem ser apreciadas diretamente pelo STF. Da mesma forma, nos crimes comuns, os Governadores de Estado e do Distrito Federal serão processados e julgados diretamente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os juízes federais, por sua vez, devem ser julgados criminalmente perante seus respectivos Tribunais Regionais Federais (TRFs). Quanto aos crimes de responsabilidade, a CF/1988 também traz regras específicas nos artigos 102, inciso I, alínea "c"; 105, inciso I, alínea "a", segunda parte; e 108, inciso I, alínea "a", segunda parte. O objetivo dessas regras é evitar influências políticas locais sobre decisões judiciais e assegurar que ocupantes de altos cargos exerçam suas funções sem interferências indevidas. Historicamente, o Supremo oscilou entre dois critérios principais para a aplicação do foro especial por prerrogativa de função: Regra da Atualidade: o foro por prerrogativa de função vincula-se ao exercício presente (atual) do cargo. Assim, se um agente público perder o mandato (por renúncia, cassação ou término do período), seu processo deve ser encaminhado às instâncias ordinárias. Regra da Contemporaneidade: esse entendimento, por outro lado, traz vinculação entre o crime e o cargo. Assim, a prerrogativa de foro subsiste mesmo após o término do mandato, mas desde que o crime tenha sido cometido durante o exercício das funções públicas. Na Questão de Ordem na Ação Penal 937, consolidou-se a regra da atualidade, limitando-se a prerrogativa de foro apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo e extinguindo-a na hipótese de o agente deixar a função pública, qualquer que seja o motivo. Duas teses foram fixadas pelo Plenário do STF em 3/5/2018 e restaram assim redigidas: "(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo". A primeira tese foi responsável por redefinir o alcance do foro por prerrogativa de função, limitando sua incidência somente aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções nele desempenhadas. Justificou-se o entendimento na necessidade de garantir maior eficiência ao processo criminal de autoridades, evitando o uso indevido do foro extraordinário como mecanismo de impunidade e reforçando os princípios constitucionais da igualdade e da moralidade administrativas. A segunda tese estabeleceu um marco temporal de vigência para esse foro especial. A partir do momento em que a instrução processual é encerrada, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para julgar a ação penal se estabiliza e não poderá mais ser alterada em razão de o agente público deixar as funções ou assumir outro cargo. A construção do entendimento se deu para evitar manobras processuais capazes de atrasar o julgamento e comprometer a efetividade da justiça, por exemplo, com o esgotamento do prazo prescricional da pretensão punitiva. Por outro lado, o estabelecimento desse marco temporal implicou a redistribuição de várias ações penais. Passou-se a compreender que, antes dele - ou seja, antes da publicação do despacho de intimação para a apresentação de alegações finais -, não haveria estabilidade na competência dos Tribunais, que poderia ceder diante do término do mandato, da renúncia, da cassação ou da posse do agente em cargo público diverso. Em outras palavras, a ação penal apenas permaneceria nos órgãos colegiados quando estivesse "madura" para julgamento, com sua instrução já finalizada. Noutras hipóteses, o feito teria continuidade - a partir da fase em que se encontrasse - perante as instâncias ordinárias do Poder Judiciário. 2. O voto do ministro Gilmar Mendes: um Resgate da Contemporaneidade O ministro Gilmar Mendes propôs a revisão da questão, reintroduzindo a regra da contemporaneidade para os crimes praticados por agentes públicos detentores do chamado "foro privilegiado". Em seu entendimento, a competência de foro por prerrogativa de função deve subsistir mesmo após a saída do cargo, permanecendo, contudo, a exigência de que os fatos delituosos devem guardar relação direta com o exercício das funções. O ministro argumentou que a mudança promovida pela AP 937-QO gerou uma incongruência: se o critério é a relação do crime com o cargo, não faria sentido a prerrogativa desaparecer automaticamente quando o agente deixa a função. Para ele, essa lacuna incentivaria manobras protelatórias, como a renúncia estratégica para alterar o foro de julgamento e a busca eventual da prescrição e da impunidade. 3. O Contraponto do ministro Luís Roberto Barroso O ministro Luís Roberto Barroso, relator da AP 937-QO, revisitou o tema e acompanhou a nova proposta de Gilmar Mendes. Em seu voto-vista, reconheceu que a tese da AP 937-QO trouxe problemas práticos, especialmente quanto à morosidade e à instabilidade causada pelos sucessivos deslocamentos de competência, o que pode levar à prescrição. Embora tenha mantido a premissa central de que o foro por prerrogativa de função se aplica apenas a crimes cometidos no cargo e em razão dele, Barroso concordou com a necessidade de estabilizar a competência mesmo após a cessação das funções públicas e antes de encerrada a instrução processual, evitando que os feitos criminais mudem de instância conforme avançam. Isso representa uma inflexão parcial em relação à posição anterior do ministro presidente, que priorizava a cessação imediata da prerrogativa de foro ao fim do exercício da respectiva função pública e antes do encerramento da instrução processual. Assim, Barroso endossou a proposta de Gilmar Mendes, mas sem abandonar os fundamentos essenciais por ele expostos na AP 937-QO. 4. Demais Ministros Além do presidente da Corte, os ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques e Dias Toffoli também acompanharam a posição do ministro Gilmar Mendes. Zanin seguiu integralmente o voto do relator, destacando que a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do titular, ainda que a investigação ou a instrução da ação penal não estejam concluídas. Ele ressaltou que essa interpretação é essencial para garantir uniformidade, eficiência e segurança jurídica, evitando oscilações de competência e possíveis prescrições. O ministro Alexandre de Moraes enfatizou que a proposta de fixação da competência do STF não altera a essência da atual jurisprudência, consolidada na AP 937-QO, mas apenas estabiliza o foro nos Tribunais sempre que estiverem presentes os requisitos de contemporaneidade e pertinência temática. Destacou, ainda, que a interpretação adotada fortalece o controle jurisdicional e evita que investigações sejam deslocadas arbitrariamente para outras instâncias. Flávio Dino reiterou a necessidade de fixação do entendimento de que a prerrogativa de foro persiste mesmo após o afastamento do cargo, desde que os crimes tenham sido cometidos no exercício da função e em razão dela. Ressaltou que a mudança de cargo público ou a sua perda não devem alterar a competência originalmente estabelecida. Para Nunes Marques, em voto-vista, a interpretação sobre a prerrogativa de foro tem sido progressivamente ampliada pelo STF desde a decisão adotada na AP 937-QO. Nesse sentido, destacou precedentes nos quais a Corte manteve sua competência para avaliar a admissibilidade de denúncias e arquivamentos de investigações, mesmo após o término do exercício do cargo público. Assim, acompanhou o voto do ministro relator, compreendendo que a reformulação da tese é capaz de proporcionar maior segurança jurídica e evitar mudanças sucessivas de competência que possam prejudicar a condução processual e a efetividade da persecução penal. Apesar de acompanhar o relator, o ministro Dias Toffoli não manifestou suas razões por meio de voto-vogal. Outros quatro ministros divergiram do novo entendimento proposto pelo decano. Foram eles: André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia. Para André Mendonça, o princípio do juiz natural impede a manutenção da competência do Supremo Tribunal Federal após o encerramento das funções do agente público no cargo respectivo. Argumentou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado restritivamente, pois constitui uma exceção à regra geral de competência da Justiça Comum. Citou o cancelamento da Súmula 394 pelo STF, que já havia afastado a possibilidade de prorrogação da competência do chamado "foro privilegiado" para ex-ocupantes de cargos públicos e enfatizou que a regra deve proteger a função, e não o indivíduo, cessando assim a prerrogativa com o término do exercício do respectivo cargo. O ministro Edson Fachin também se posicionou contra a tese do relator, defendendo que o foro especial é uma garantia do cargo, e não da pessoa que o ocupa. Ressaltou que a Constituição Federal de 1988 e a jurisprudência consolidada do STF determinam que a prerrogativa de foro se encerra quando o agente deixa a função pública. Citou o julgamento da AP 937-QO, no qual a Corte firmou o entendimento de que a prerrogativa se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados às suas funções, cessando com a perda do respectivo mandato, salvo quando a instrução processual já estiver encerrada. Fachin alertou que a tese do relator poderia levar a distorções e à perpetuação de um tratamento diferenciado e injustificado a determinados agentes. Cármen Lúcia reforçou a divergência. Destacou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado em conformidade com os princípios republicanos e democráticos, que impõem limites a esse tipo de privilégio. Ressaltou que o STF já consolidou entendimento contrário à prorrogação do foro, conforme demonstrado no cancelamento da Súmula 394 e no julgamento da ADI 2.797, a qual declarou inconstitucional tentativa legislativa de restabelecer essa prerrogativa para ex-ocupantes de cargos públicos. Concluiu que admitir a permanência do foro para quem não ocupa mais o cargo violaria o princípio do juiz natural e poderia ser interpretado como um privilégio indevido, violando a isonomia constitucional. O ministro Luiz Fux apenas acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro André Mendonça, sem expor suas razões por meio de voto-divergente. 5. Consequências Práticas da Mudança A proposta do ministro Gilmar Mendes sagrou-se vencedora por 7 votos a 4. Com a mudança, podemos visualizar as seguintes consequências práticas imediatas: Maior estabilidade institucional: a mudança evita que políticos e agentes públicos se utilizem de estratégias processuais para escapar da jurisdição dos Tribunais ou garantam a impunidade dos crimes praticados durante o cargo em razão do advento da prescrição da pretensão punitiva. Desafogamento das instâncias inferiores: com a jurisprudência consolidada na AP 937-QO, muitas investigações e ações penais foram deslocadas para a primeira instância, sobrecarregando os juízos locais. A nova interpretação manteria esses processos nos Tribunais, desafogando as instâncias ordinárias. Maior previsibilidade no processamento de crimes funcionais: a permanência do foro extraordinário para crimes vinculados à função evitaria que os casos mudassem de competência no transcurso de seu processamento, trazendo maior segurança jurídica. Considerações Finais A recente mudança na interpretação do foro por prerrogativa de função pelo Supremo Tribunal Federal demonstra a constante evolução da jurisprudência constitucional em matéria processual penal. O retorno à regra da contemporaneidade, com a manutenção da competência dos Tribunais para o julgamento de crimes praticados no cargo e em razão dele, mesmo após a cessação da função pública, traz impactos relevantes à persecução penal de autoridades e à estabilidade institucional do sistema de justiça. Ao mesmo tempo em que evita manobras processuais voltadas à prescrição ou ao deslocamento estratégico de competência, essa nova diretriz reforça a previsibilidade na tramitação de investigações e ações penais contra agentes públicos, promovendo maior segurança jurídica e eficiência no julgamento desses casos. No entanto, o tema permanece controverso, especialmente à luz dos princípios republicanos e do juiz natural, levantando questionamentos sobre a extensão e os limites da prerrogativa de foro em um contexto democrático. De toda forma, o entendimento agora fixado pelo STF marca mais um capítulo na complexa relação entre direito penal, processo penal e organização do Estado, reafirmando a necessidade de atualização constante e equilíbrio entre a responsabilização de autoridades e a proteção das funções públicas que elas desempenham.
terça-feira, 11 de março de 2025

As Regras de Mandela e o Tribunal do Júri

A edição da coluna Migalhas Criminais desta quinzena traz à reflexão os impactos das Regras de Mandela no Tribunal do Júri, tema de crescente relevância no direito penal contemporâneo. No texto, o autor Vitor Eduardo Tavares de Oliveira, defensor público estadual e assessor de ministra no STJ, examina as recentes decisões do STJ e a forma como o uso de vestimentas prisionais pelo réu pode influenciar a percepção dos jurados. A análise ancora-se em referenciais teóricos e jurisprudenciais, explorando como a indumentária do acusado afeta os princípios da presunção de inocência e da plenitude de defesa.  O artigo destaca decisões sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira. No HC 778.503/MG, por exemplo, ela anulou um julgamento porque o réu foi obrigado a comparecer ao plenário com uniforme prisional. O texto examina a relação entre os rituais do Tribunal do Júri e a construção simbólica do processo decisório dos jurados. Além disso, aborda outro julgamento, no HC 768.422/SP, no qual a Quinta turma do STJ reforçou que a disposição física do réu no plenário também interfere na garantia de um julgamento justo.  Ao longo da exposição, Vitor evidencia o avanço do entendimento jurisprudencial quanto à humanização do processo penal, ressaltando o papel das Regras de Mandela e dos compromissos internacionais do Brasil na proteção dos direitos fundamentais dos acusados. Contexto do HC 778.503/MG A decisão proferida pela Quinta turma do STJ no HC 778.503/MG, sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira, reconheceu a nulidade do julgamento de um réu no Tribunal do Júri, que foi obrigado a comparecer à sessão trajando uniforme prisional. A defesa argumentou que a vestimenta poderia influenciar negativamente a percepção dos jurados, violando os princípios da plenitude de defesa e da presunção de inocência. A ministra relatora destacou que o rito do Tribunal do Júri é permeado por significados simbólicos e que o uso de roupas civis pelo acusado é um direito, conforme sustentado pelas Regras de Mandela (Regra 19), reforçando a necessidade de garantir um julgamento isento de estigmas. A decisão afastou a justificativa apresentada pelo TJ/MG, que havia negado o pedido sob o argumento de que não haveria prejuízo para a defesa e que a segurança do fórum era insuficiente para permitir a troca de vestimenta. Para Daniela Teixeira, a negativa do direito de o réu se apresentar com trajes civis não foi devidamente fundamentada, configurando cerceamento de defesa e influenciando indevidamente o Conselho de Sentença. O acórdão citou precedentes do próprio STJ e do STF, enfatizando que a igualdade de tratamento entre acusados presos e soltos deve ser resguardada para evitar impacto na imparcialidade dos jurados. Contexto do HC 768.422/SP A Quinta turma do STJ, também sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira, proferiu decisão no HC 768.422/SP, reconhecendo a nulidade do julgamento de um réu no Tribunal do Júri, que foi mantido sentado de costas para os jurados durante toda a sessão plenária. A defesa sustentou que essa disposição física do acusado configurava cerceamento de defesa e afrontava os princípios da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, influenciando indevidamente a percepção dos jurados. O STJ reafirmou que a dignidade do acusado não depende de uma norma específica, mas decorre diretamente da Constituição Federal e dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. A decisão sublinhou que a posição física do réu, suas vestimentas e sua postura diante dos jurados são elementos que podem interferir na convicção íntima do Conselho de Sentença, tornando-se fatores relevantes na comunicação simbólica do julgamento. São essas decisões paradigmáticas que serão analisadas pelo nosso convidado de hoje, para quem, com muita honra, passamos a palavra. *** Uso de roupas civis pelo acusado e o direito de ser visto pelos jurados O pedido de troca do uniforme prisional por roupas civis durante o julgamento foi indeferido, com o argumento de que isso não afetaria a defesa do réu e de que havia risco de fuga por conta da baixa vigilância. No entanto, a defesa argumentou que o uso do uniforme prisional poderia influenciar negativamente os jurados. Com base na jurisprudência e nas Regras de Mandela, que preveem o uso de roupas civis por prisioneiros em circunstâncias especiais, o STJ reconheceu que o réu tem o direito de se apresentar com roupas civis no Tribunal do Júri.  Assim, foi concedida a ordem de habeas corpus para anular o julgamento e submeter o réu a novo julgamento, permitindo que ele utilize roupas civis durante a sessão. Decisão de relatoria da ministra Daniela Teixeira no HC 778.503/MG A decisão da ministra Daniela Teixeira, após analisar os autos de HC 778.503/MG, foi no seguinte sentido: "ouso divergir dos fundamentos utilizados pela Corte local, pois a decisão não aponta um risco concreto de fuga especificamente do paciente, mas apenas de modo geral e hipotético, devido à insuficiência de vigilância naquele Fórum." O voto mencionado apresenta divergência em relação à decisão da Corte local, que indeferiu o pedido de que o réu utilizasse roupas civis durante o julgamento, sem apontar um risco concreto de fuga do acusado, baseando-se apenas na possibilidade geral de vigilância insuficiente no Fórum.  Argumentou-se que a utilização de vestimentas civis pelo réu não oferece qualquer perigo, especialmente com o policiamento ostensivo disponível, e que o indeferimento desse direito viola princípios fundamentais, como o da presunção de inocência e o princípio da isonomia. O Tribunal do Júri, na visão do jurista Lenio Streck, é um ritual, ou seja: "a instituição da sociedade existe enquanto materialização desse magma de significações imaginárias sociais, traduzível por meio do simbólico. A relação dos agentes sociais com a realidade (que aparece) é intermediada por um mundo de significações".  Em suma, o ritual e seus simbolismos serão levados em conta pelo jurado, juiz natural do júri, para tomar a decisão final: "É nesse contexto que o Tribunal do Júri será examinado. Por seu forte componente ritual, as representações imaginárias da sociedade, simbolizadas nos julgamentos, resultam em uma leitura possível dos comportamentos desejados e desejantes da sociedade ali "representada". Isto porque, como bem lembra Gonçalves, os processos simbólicos e míticos assumem importância fundamental na exteriorização das práticas sociais ritualizadas, referentes ao saber e ao saber-fazer de qualquer cultura e sociedade. As metáforas e os símbolos da transmissão e da perpetuação do poder, as encenações do poder e as "liturgias políticas" nas sociedades modernas, os conteúdos simbólicos do processo político nos ritos de soberania das sociedades tradicionais, os ritos de passagem e os rituais de iniciação, os rituais cíclicos da vida individual ou os rituais calendarizados e sazonais constituem processos essenciais da teatralização da vida coletiva e rituais por excelência da comunicação política nas sociedades tradicionais e rurais, como nas modernas sociedades tecnológicas." (Streck, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais, 44 ed., Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001.) Partindo de tais premissas, a ministra Daniela Teixeira verificou que o paciente foi submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença com a utilização do uniforme prisional, violando seu direito de se apresentar com roupas civis durante a sessão plenária do Tribunal do Júri. A fundamentação baseou-se, inclusive, na doutrina de Rodrigo Casimiro, que defende a dignidade humana e a necessidade de o acusado ser julgado de forma justa e sem ser estigmatizado pelo uso de roupas prisionais: "A utilização das próprias vestes, quando do julgamento pelo Conselho de Sentença, visa resguardar a dignidade da pessoa humana (vetor interpretativo reconhecido como fundamento da Constituição da República de 1988) e o princípio da presunção de não culpabilidade do pronunciado preso preventivamente 9, evitando que o acusado seja exposto a tratamento degradante 10. Ressalte-se, ainda, que, eventual negativa judicial do direito ao uso das vestes civis por parte do acusado preso cautelarmente, (a) implica em violação ao princípio constitucional da isonomia (já que o pronunciado solto é levado ao julgamento do Conselho de Sentença sem trajar a "farda" do sistema carcerário) e (b) materializa um deletério efeito extraprocessual da segregação preventiva, não admitido à luz do Direito Processual Penal constitucional. Nas palavras de Carnelutti, "o processo penal é um banco de prova da civilização", revelando-se, pois, descabido que o pronunciado que se encontra segregado provisoriamente seja submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença trajando vestes do sistema prisional, fato que, inexoravelmente, irá repercutir negativamente na convicção dos jurados, causando prejuízo irreparável ao acusado (art. 563 do CPP). Dissertando sobre o standard probatório necessário para uma condenação no Tribunal do Júri, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho et al afirmam que 12 "Como se sabe, os jurados não necessitam fundamentar suas decisões, que são pautadas na livre convicção (convicção íntima), o que gera sempre uma desconfiança porque, se é assim, a prova parece não ter tanta importância para o julgamento"." (A Faixa Verde no Júri V, Projeto Bruxas do plenário, capítulo 5. Ed. plácido. 2024) Também foram citadas as Regras de Mandela, que garantem a possibilidade de o acusado vestir roupas próprias em determinadas situações: "Ressalte-se, ainda, que é possível a utilização das Regras de Mandela ao caso concreto (Regra 19), que dispõe: "Em circunstâncias excecionais, sempre que um recluso obtenha licença para sair do estabelecimento, deve ser autorizado a vestir as suas próprias roupas ou roupas que não chamem a atenção." Além disso, o voto fez referência a um entendimento jurisprudencial consolidado pelo ministro Ribeiro Dantas, segundo o qual o uso de roupas civis durante o julgamento no Tribunal do Júri é um direito garantido pela plenitude da defesa: (...) 3. A Carta Magna prevê a plenitude de defesa como marca característica e essencial à própria instituição do Júri, garantindo ao acusado uma atuação defensiva plena e efetiva, ensinando o doutrinador Guilherme de Souza Nucci que "O que se busca aos acusados em geral é a mais aberta possibilidade de defesa, valendo-se dos instrumentos e recursos previstos em lei e evitando-se qualquer forma de cerceamento. Aos réus, no Tribunal do Júri, quer-se a defesa perfeita, dentro, obviamente, das limitações naturais dos seres humanos." (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 35). 4. Havendo razoabilidade mínima no pleito da defesa, como se vislumbra do pedido pela apresentação do réu em plenário com roupas civis, resta eivada de nulidade a decisão que genericamente o indefere. (...) (RMS n. 60.575/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta turma, julgado em 13/8/19, DJe de 19/8/19.) (grifos acrescidos) Por fim, a decisão consolidou um entendimento do STJ de que o indeferimento genérico do pedido, sem um motivo justificado, viola esse princípio e acarreta nulidade no julgamento. Assim, o voto, acompanhado pela Quinta turma, foi pela concessão da ordem de habeas corpus, declarando nula a sessão anterior e determinando a realização de novo julgamento, com a garantia de que o réu possa usar roupas civis durante o Tribunal do Júri.  Direito do acusado se posicionar de maneira adequada no Tribunal do Júri Na hipótese apresentada no habeas corpus 768.422/SP, o réu foi condenado por feminicídio. Durante o julgamento pelo Tribunal do Júri, o acusado foi colocado de costas para os jurados, o que foi considerado uma violação do princípio da presunção de inocência e da dignidade humana. A defesa argumentou que essa disposição física prejudicou a análise dos jurados e cerceou a defesa plena, levando à anulação monocrática do julgamento do Tribunal do Júri e à determinação de sua renovação. O Ministério Público recorreu, mas o STJ, seguindo os argumentos apresentados pela ministra Daniela Teixeira, negou o provimento do agravo regimental e manteve a decisão de anular o julgamento, destacando a necessidade de respeito à dignidade e aos direitos do réu. Decisão de relatoria da ministra Daniela Teixeira no HC 768.422/SP O Tribunal do Júri é o juiz natural e soberano para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo instituição que desempenha o exercício direto da participação da sociedade no Poder Judiciário, nos termos preceituados no art. 5º, XXVIII, da Constituição Federal. A ministra Daniela Teixeira parte da premissa básica de que "a decisão do Tribunal do Júri, soberana, é regida pelo princípio da livre convicção, e não pelo art. 93, IX, da CF." A decisão reforça que: "a palavra 'sentença' deriva do verbo 'sentir' e que o sentimento é anterior ao pensamento na vida intrauterina", ou seja, os jurados utilizam todos os seus sentidos para chegaram a um veredicto. Outrossim, cita precedente do STF, da lavra do ministro Marco Aurélio que subsidiou a edição da súmula vinculante 11 ("Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado"), que inibe qualquer constrangimento oficial àqueles que estão em julgamento no Tribunal do Júri: "É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados. A lei em comento - 4.898/65, editada em pleno regime de exceção -, no art. 4º, enquadra como abuso de autoridade cercear a liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder - alínea "a" - e submeter pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei - alínea "b". No caso, sem que houvesse uma justificativa socialmente aceitável para submeter um simples acusado à humilhação de permanecer durante horas e horas com algemas, na oportunidade do julgamento, concluiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a postura adotada pelo Presidente do Tribunal do Júri, de não determinar a retirada das algemas, fez-se consentânea com a ordem jurídico-constitucional. Proclamou a Corte que "a utilização das algemas durante o julgamento não se mostrou arbitrária ou desnecessária e, por conseguinte, não vinga a nulidade arguida", aludindo, no entanto, a precedente da Segunda turma do Supremo que vincula a permanência do preso algemado à necessidade de manutenção da ordem dos trabalhos e de garantia da segurança dos presentes (folhas 408 e 409, numeração de origem, dos autos em apenso)." (HC 91952, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 7/8/08, DJe-241) Vale lembrar, apenas a título de exemplo, que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos assegura a todos as pessoas submetidas ao processo penal um tratamento com garantias mínimas: "Art. 8. Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas" Sobre o tema, cabe citar a doutrina de Daniel Avelar e Rodrigo Faucz: A presunção de inocência envolve igualmente a obrigação de tratar o acusado como inocente durante toda a persecução penal, ou seja, não apenas garantir a observância dos seus direitos e garantias constitucionais, mas de respeitá-lo na amplitude da sua dignidade à luz de uma dogmática constitucional emancipatória. Assim, cabe aos agentes públicos - aqui incluídos os policiais, agentes penitenciários, Ministério Público, Defensoria Pública, magistrados - tratar o acusado com urbanidade e respeito, evitando a prática de ato que diminua a figura humana da pessoa do réu perante a sociedade (como determinando o uso de algemas quando prescindível; expondo desnecessariamente a sua imagem à curiosidade pública fazendo uso do perpetrator walk; promovendo interrogatórios recheados de perguntas insidiosas ou alavancando armadilhas que possam ancorar o espírito do júri a ir de encontro à autodefesa em plenário, entre outros).? (...) Pela análise neurocientífica e psicológica, o fato de julgadores e acusados estarem em posições socioculturais antagônicas traz problemas de identificação. Quanto mais distante for a realidade dos jurados da dos acusados, menos empatia haverá. Isso pode ter como consequência inconsciente uma predisposição a condenar ou, ao menos, uma maior dificuldade de os julgadores conseguirem julgar despidos de qualquer preconceito. (...) Nenhuma das partes pode mencionar o fato de o acusado estar ou não algemado. Assim, a acusação não poderá fazer referência ao fato de estar o acusado algemado durante o julgamento como forma de comprovação de sua periculosidade. Da mesma forma, mas em sentido contrário, a defesa não poderá utilizar o fato de estar o acusado sem algemas para demonstrar que o acusado não é perigoso. O Conselho de Sentença, em geral, é composto, em sua maioria, de pessoas sem conhecimento jurídico e que, portanto, estariam suscetíveis ao estigma provocado pelo uso de algemas em plenário. De maneira a evitar que a estética de culpado repercuta em um prévio juízo de culpabilidade e periculosidade do agente, a legislação veda que as partes façam referências à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade. A utilização das algemas não pode servir como argumentação arbitrária para, perante uma corte leiga e que decide a partir do voto de consciência, projetar a condenação do acusado." (Manual do Tribunal do Júri. 2 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 187, 361 e 485). (Grifo acrescido) De acordo com a ministra: "O julgamento do Tribunal do Júri pode se estender por muitas horas e, durante esse período, os jurados dedicam atenção a todos os ritos, aos advogados e, principalmente, ao acusado, que permanece exposto a análises até a decisão final. Desse modo, o local em que ele fica, a roupa que usa e a utilização de algemas, por exemplo, são fatores simbólicos observáveis e ponderados pelos jurados." Nesse sentido é a doutrina dos defensores públicos Lucas Aparecido A. Nunes, Ana Cláudia de Souza Ferreira e Denis Sampaio: "Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer concebe o Tribunal do Júri como um ritual lúdico, onde ações ordenadas - falas, gestos, expressões - de natureza predominantemente simbólica, se desenvolvem em momentos distintos das sessões e inspiram atitudes de lealdade, respeito e reverência a valores que se materializam nos votos dos jurados. Em sua tese, a autora tenta "decodificar" (grifo no original) as linguagens do plenário - expressão textualizada por Thales Nilo Trein- e concorda com este autor quanto à comunicação, durante a sessão plenária, ir muito além da linguagem verbal. O contato visual, as expressões faciais, os gestos e a postura, a vestimenta e aparência, a relativa proximidade entre o defensor e o acusador com o Júri, a paralinguagem (velocidade da fala, volume, variações de tom) e a presença de espectadores na assistência são elementos que podem, involuntariamente, afetar a decisão do Conselho de Sentença. Obviamente, o peso e o impacto dessas diferentes formas de comunicação não verbal variam à medida que são incorporadas e apreciadas no subconsciente de cada jurado." (Grifo acrescido) (O direito à utilização de trajes civis no julgamento perante o Tribunal do Júri) A ministra concluiu: "No caso, verifico que o juízo submeteu o paciente, inclusive durante o interrogatório, a situação vexatória ao deixar ele de costas aos jurados, juízes naturais da causa. Por fim, verifico que não existe previsão legal e regulamentar para deixar os acusados de costas, mesmos nos julgamentos do Crime Organizado, de acordo com a lei 12.694/12, e de acordo com a recomendação 77/20 do CNJ."  Conclusão As decisões analisadas são precedentes que reforçam o princípio da presunção de inocência aos acusados nos processos do Tribunal do Júri, permitindo que se apresentem com roupas civis e sejam vistos por seus julgadores. Além disso, os precedentes reconhecem a importância da aparência do acusado no julgamento pelos jurados, "o ritual e seus simbolismos serão levados em conta pelo jurado, juiz natural do júri, para tomar a decisão final." As decisões, ainda, reforçam as Regras de Mandela e o compromisso do Brasil com os tratados de direitos humanos, demonstrando sensibilidade do STJ para com o direito das pessoas mais vulneráveis e os direitos humanos. Os precedentes vão na linha dos julgados da Quinta turma, podendo ajudar na consolidação do entendimento pelos demais juízes e tribunais estaduais de Justiça. O STJ reafirma a importância do respeito aos princípios constitucionais, como a presunção de inocência, e condena práticas que possam prejudicar a análise justa e imparcial por parte dos jurados. Em suma, os acórdãos garantem a dignidade da pessoa humana até mesmo na hora de seu julgamento por seus pares.
A edição especial da coluna Migalhas Criminais de hoje trata da influência do professor Claus Roxin no Direito Penal brasileiro, especialmente no contexto da Ação Penal 470, o "Caso Mensalão". Nosso convidado para homenagear a memória do doutrinador alemão é o professor Felipe Longobardi Campana. Felipe é doutorando e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e assessor da Ministra Daniela Teixeira no Superior Tribunal de Justiça. No texto a seguir, Roxin, falecido em 20/2/25, é lembrado pelo professor Felipe por sua significativa contribuição à teoria do delito, em especial à teoria do domínio do fato. No julgamento do "Mensalão", o Supremo Tribunal Federal utilizou essa teoria para justificar condenações, principalmente no caso do ex-Ministro Chefe da Casa Civil, argumentando que sua posição hierárquica indicava controle sobre os crimes cometidos. No entanto, em entrevista à Folha de São Paulo em 2012, o próprio Roxin esclareceu que a teoria exige prova concreta de que o agente em posição de comando emitiu ordens diretas para que os crimes fossem executados, criticando o uso equivocado de sua concepção. O texto analisa, nesse contexto, os erros do STF na aplicação da teoria do domínio do fato, destacando a falta de individualização das condutas e a confusão entre a definição de autoria e a prova da autoria. Apesar do impacto positivo do debate acadêmico que se seguiu, com obras e pesquisas aprofundadas sobre o tema, o Judiciário brasileiro continua, na visão do nosso convidado, a cometer equívocos semelhantes, especialmente em crimes tributários, ao presumir autoria com base na hierarquia empresarial. Com a palavra, então, com muita honra, o professor Felipe Campana. *** No dia 20 de fevereiro os penalistas e as ciências criminais receberam a triste notícia do falecimento do Professor Dr. Claus Roxin, um dos grandes pensadores do Direito Penal da metade do séc. XX e do séc. XXI. Sua vasta produção acadêmica nos mais variados temas da teoria do delito e sua inegável influência em todo o mundo, inclusive e principalmente no Brasil, são provas do tamanho de seu legado. Como forma de homenageá-lo, apresentamos hoje uma edição extraordinária da coluna, relembrando o momento histórico em que Claus Roxin deu uma aula de Direito Penal ao Brasil e demonstrando que muitos de seus "alunos" aprenderam com ele, mas outros ainda continuam precisando de reforço. A aplicação da teoria do domínio do fato na AP 470 pelo STF O ano era 2012 e o Supremo Tribunal Federal se viu diante de seu maior desafio em matéria de Direito Penal até então: julgar a ação penal 470, conhecida como "Caso Mensalão". De forma resumida, o caso dizia respeito a um esquema de pagamento de vantagens indevidas a parlamentares em troca de votos em projetos de lei, o que levou à acusação de crimes como de corrupção passiva, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, associação criminosa, gestão fraudulenta e outros. Dentre os temas controversos que a Corte Suprema teve de enfrentar neste julgamento, um chamou especialmente a atenção do homenageado, Professor Claus Roxin: a aplicação da teoria do domínio do fato. É possível sistematizar a aplicação da teoria do domínio do fato no acórdão do STF que julgou a AP 470 em dois momentos: (i) para o afastamento da tese da inépcia da denúncia em relação ao crime de gestão fraudulenta por ausência de descrição das condutas individualizadas dos acusados e (ii) para a condenação do Ministro-Chefe da Casa Civil à época pelo crime de corrupção ativa dos parlamentares. Vejamos cada um desses momentos em detalhes. (I) Afastamento da tese da inépcia da denúncia pelo crime de gestão fraudulenta Uma das acusações formuladas pelo Ministério Público nesta ação penal foi a da prática de gestão fraudulenta de um Banco por meio da realização de contratos de mútuo sem as devidas garantias. Ocorre que a descrição da denúncia para este fato, nas palavras da Ministra Rosa Weber: "... se limitou a dimensionar todos os atos operados por meio da referida instituição financeira, com a presumida decisão de seus administradores responsáveis" (p. 1160 do inteiro teor do acórdão). Por conta disso, as defesas dos acusados argumentaram que se tratava de denúncia inepta, que descumpria com o exigido pelo art. 41 do Código de Processo Penal. A Ministra Rosa Weber, ao enfrentar essa tese defensiva, lançou mão da teoria do domínio do fato da seguinte forma: "Em verdade, a teoria do domínio do fato constitui uma decorrência da teoria finalista de Hans Welzel. O propósito da conduta criminosa é de quem exerce o controle, de quem tem poder sobre o resultado. Desse modo, no crime com utilização da empresa, autor é o dirigente ou dirigentes que podem evitar que o resultado ocorra. Domina o fato quem detém o poder de desistir e mudar a rota da ação criminosa. Uma ordem do responsável seria o suficiente para não existir o comportamento típico. Nisso está a ação final.... Importante salientar que, nesse estreito âmbito da autoria nos crimes empresariais, é possível afirmar que se opera uma presunção relativa de autoria dos dirigentes" (p. 1.161 do inteiro teor do acórdão). Em suma, no voto a Ministra Rosa Weber entendeu que em crimes empresariais não havia necessidade de descrever a conduta individualizada de cada um dos acusados, pois, partindo da teoria do domínio do fato, é autor aquele que tem controle sobre os fatos e, na empresa, quem tem controle é quem ocupa o cargo de dirigente, razão pela qual ele é presumivelmente o autor do crime. (II) Condenação do Ministro-Chefe da casa civil pela prática do crime de corrupção ativa de parlamentares Outra acusação feita pelo Ministério Público foi a da prática do crime de corrupção ativa de parlamentares pelo Ministro-Chefe da casa civil do Governo, mais especificamente da compra de apoio político em projetos do Congresso Nacional. O ponto central da discussão era que o Ministro-Chefe da Casa Civil, pelo cargo que ocupava, foi descrito como o "principal articulador dessa engrenagem", realizando encontros para tratar de repasses de dinheiro e acordos políticos e que tinha muito poder a ponto de garantir que nada aconteceria com os demais integrantes da engrenagem (p. 4612-4613 do inteiro teor do acórdão). Porém, não se descreveu as contribuições concretas do Ministro-Chefe da Casa Civil para os crimes de corrupção ativa dos parlamentares. Sendo assim, o Ministro Relator do caso, Joaquim Barbosa, lançou mão da teoria do domínio do fato afirmando: "...Como salienta o penalista JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, a definição de autor baseada na teoria do domínio do fato é a que se adotada na dogmática penal desde que Hans Welzel, pela primeira vez, mencionou-a, em 1939. Veio a ser desenvolvida por Claus Roxin e, nas palavras do abalizado estudioso brasileiro, é a teoria que define "todas as formas de realização ou de contribuição para a realização do tipo de injusto" (p. 4701 do inteiro teor do acórdão). Adiante, o Ministro ainda menciona a figura da "autoria de escritório" dentro da teoria do domínio do fato para confirmar a condenação do Ministro-Chefe da Casa Civil pela posição de líder que ocupava (p. 4704 do inteiro teor do acórdão). O Ministro Joaquim Barbosa foi seguido por outros Ministros, que argumentaram não só que a teoria em questão era compatível e aplicável ao sistema jurídico-penal brasileiro, como também a utilizaram para confirmar a mencionada condenação. A título de exemplo é possível citar o Ministro Ayres Britto, que chegou a afirmar em um aparte durante o julgamento: "Agora, essa Teoria do Domínio do Fato pode ser compreendida no plano da fungibilidade, que é da substituição do agente, como também da infungibilidade: o agente não pode ser substituído. Então, quem não podia ser substituído nesse esquema, sob pena de fazer o esquema ruir? Quem era o regente da orquestra? O mais insubstituível ou infungível de todos. A Teoria do Domínio do Fato conduz, também, a esse raciocínio" (p. 5226-5227 do inteiro teor do acórdão). Outro exemplo foi o voto do Ministro Celso de Mello, que, após exposição teórica sobre o concurso de pessoas e conclusão que a teoria do domínio do fato não implica em responsabilidade penal objetiva, transcreveu a seguinte lição doutrinária "Lapidar, sob tal aspecto, a autorizada lição de DOUGLAS FISCHER ("Requisitos de Denúncias Penais que envolvam Delitos Complexos e/ou com Autoria Delitiva", item 4, 2012), que, ao referir-se ao tema da teoria do domínio do fato, em coautoria, acentua que "é preciso compreender a realidade das coisas para se ter como premissa importante de que, muitas vezes, pelo modo e por quem praticadas (ou por quem ordenadas as práticas delitivas), não há como descrever detalhes e minúcias sobre o nexo causal entre o autor e o fato. Mas é possível se afirmar que o fato não se realizaria sem a ação (controle) daquele que detinha o domínio dele (.)" (p. 5207 do inteiro teor do acórdão - grifos do original). A voz dissidente foi a do Ministro Ricardo Lewandowski, que afirmou: "O próprio Claus Roxin ... manifestou preocupação com o alcance indevido que alguns juristas e certas cortes de justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal alemão, estariam dando a ela, especialmente ao estendê-la a delitos econômicos, sem observar que os pressupostos essenciais para sua aplicação - dentre os quais a fungibilidade dos membros da organização delituosa - "existem apenas no injusto do sistema estatal, no 'Estado criminoso dentro do Estado', assim como a Máfia e formas semelhantes de manifestação da criminalidade organizada". Feitas essas considerações, e analisados todos os elementos constantes dos autos, especialmente as condutas descritas na denúncia, chego à inelutável conclusão de que os fatos nela descritos não se revestem da excepcionalidade que o Parquet pretende lhes atribuir, razão pela qual tenho que a dita "teoria do domínio do fato" não comporta aplicação ao caso sob exame" (p. 4953-4954 do inteiro teor do acórdão). A aula do Professor Claus Roxin ao Brasil As diversas menções à teoria do domínio do fato e ao nome do Professor Claus Roxin pelos Ministros do STF no maior julgamento criminal da história da Corte chamou a atenção não só dos juristas, mas de jornalistas e da sociedade em geral, e acabaram chegando ao seu conhecimento. Por conta disto, no dia 11 de novembro de 2012, Roxin concedeu entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, na qual ensinou com a clareza e a simplicidade de seus escritos que "A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem"; disse ainda que afirmar que alguém é autor de crime somente pela sua posição hierárquica "seria um mau uso" da teoria; afirmou também que "quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado" e concluiu de forma categórica que "a posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato"1. Nesta breve entrevista, o Professor alemão fez afirmações simples, mas com enorme profundidade, tornando-se uma verdadeira aula que transcendeu os conceitos da teoria do domínio do fato e atingiu os passos mais elementares para a aplicação do Direito penal por um julgador. Em primeiro lugar, quando Roxin afirmou que a pessoa que ocupa a posição no topo precisa "ter comandado esse fato, emitido uma ordem", o que ele indicou foi que, muito mais básico do que afirmar os critérios do "domínio do fato", é preciso identificar uma conduta praticada por todos os indivíduos. Deixou claro que qualquer condenação penal precisa que um indivíduo tenha praticado uma conduta e, por isso, afirmar que alguém é autor do crime somente pela sua posição hierárquica seria um mau uso da teoria. A teoria do domínio do fato não substitui a necessidade de que o acusado tenha praticado uma conduta, mas antes pressupõe essa prática. Já neste ponto os Ministros se equivocaram, pois, ao invés de identificarem as condutas concretas para condenar os acusados pelos crimes de gestão fraudulenta e corrupção ativa, o que fizeram foi utilizar o uso coloquial do termo "domínio do fato" para substituir a necessidade de identificar as condutas praticadas. Em segundo lugar, ao afirmar que a ordem deveria ser provada, Roxin destacou que essa conduta individualizada - a ordem - é objeto de prova no processo penal. Portanto, quando se identifica conduta de um indivíduo que ocupa um cargo de superior hierárquico, ainda é preciso que o Ministério Público prove que aquela conduta realmente foi praticada. Logo, a teoria do domínio do fato também não substitui a necessidade de provar as condutas. Aqui novamente os Ministros erraram, pois buscaram na teoria do domínio do fato o caminho para "presumir a autoria" em detrimento das provas necessárias das condutas, quando a teoria do domínio do fato é uma teoria que estabelece um critério para definir quem é o autor do crime. E é preciso deixar claro: "prova da autoria" e "definição de autor de um crime" são conceitos diferentes. A prova da autoria, no processo penal, é a prova de quem praticou a conduta descrita na denúncia. A definição do autor de um crime é a utilização de um critério jurídico para definir, dentre os vários intervenientes em um fato criminoso, quem é o autor e quem é partícipe.    Por fim, em terceiro lugar, ao afirmar que a posição hierárquica não fundamenta o domínio do fato, Roxin finalmente adentrou no debate sobre os critérios da teoria. Assim, uma vez identificada a conduta de cada interveniente e provadas as suas ocorrências, passa-se ao exame jurídico para definir quem é autor e quem é o partícipe nos fatos, o que se denomina de teoria do concurso de agentes. De início, é preciso ter em mente que essa definição de autor e partícipe é um problema concreto no direito penal alemão, pois o Código Penal traz expressamente a separação entre as duas figuras (sistema diferenciador). Logo, os penalistas precisam se debruçar para tentar encontrar critérios que melhor as distinguem. No Brasil esse problema não é tão claro, pois o Código Penal não apresenta essa distinção, admitindo que todos os concorrentes para o fato serão igualmente responsabilizados por ele (art. 29 do CP). Porém, caso se adote o sistema diferenciador no Brasil, é necessário contextualizar que a teoria do domínio do fato é uma teoria que procura apresentar um critério para definir quem é o autor de crimes comuns, dolosos e comissivos, distinguindo-o dos partícipes. O que diz a teoria é: será autor do crime aquele que, com seu comportamento, controlar o se e o quando do crime. Esse controle pode acontecer em três hipóteses: (i) quando o agente controla a própria ação (autoria imediata): situação em que o agente, ao realizar a conduta executiva, tem controle sobre o próprio corpo e, portanto, controla o se e o quando do crime; (ii) quando o agente controla a vontade de terceiro (autoria mediata): situação em que o agente, ao realizar sua conduta, controla aquele que praticará a conduta executiva (executor), pois ele atuará sem conhecimento a respeito de alguma circunstância fática importante (em erro) ou atuará sob coação moral e, portanto, acaba controlando o se e o quando do crime, mesmo não tendo realizado a conduta executiva com o próprio corpo e (iii) quando o agente tem controle funcional do fato (coautoria): situação em que o agente tem um plano comum com os outros intervenientes e cada um deles, ao praticarem suas condutas individuais, acabam contribuindo na fase executiva do crime e, portanto, detém, todos, o controle sobre o se e o quando do crime. Uma das principais contribuições de Roxin para o critério do domínio do fato foi desenvolver uma terceira forma de autoria mediata: o chamado domínio por aparatos organizados de poder. Conforme esclareceu na entrevista, Roxin se incomodava com a questão de que a teoria do domínio do fato, tal qual concebida até então, conduziria a afirmar que aqueles que ocupam uma posição hierarquicamente superior em uma organização apartada do Direito e prolatam uma ordem para um inferior hierárquico executar o crime seriam somente partícipes. Isso porque, dado que o inferior hierárquico praticou a conduta executiva sem estar em erro e sem estar coagido, ele era autor imediato e controlava sozinho o se e o quando do crime. Logo, o superior hierárquico seria somente partícipe por instigação. Portanto, concebeu a figura da autoria por aparatos organizados de poder, na qual, quando se está diante de uma organização com hierarquia rígida, que esteja apartada do Direito e que tenha em seus executores pessoas fungíveis, aquele que profere a ordem tem tamanha certeza de que ela será cumprida, que detém o domínio sobre o se e o quando do crime, sendo, portanto, autor. No entanto, diferente das outras figuras da autoria mediata, nas quais o executor não é autor porque está em erro ou sob coação, nesta figura sua fungibilidade e atuação em um aparato organizado de poder não lhe retiram a autoria, razão pela qual se diz que essa é a figura do "autor por trás do autor". Foi a figura da autoria por aparatos organizados de poder que os Ministros do STF tentaram utilizar, mas a confusão era tamanha, principalmente com os dois passos anteriores, que sequer conseguiram chegar a uma verdadeira discussão jurídica e madura a respeito desta figura e sua aplicação no Brasil. Porém, como se pôde ver acima, ela não significa que quem ocupa uma posição de superior hierárquico é autor, mas sim ela diz que quem ocupa tal posição em um aparato organizado de poder, ao proferir uma ordem (conduta provada), será autor do crime tal qual o executor que recebeu essa ordem. Com esses pontos, fica evidente que a entrevista concedida pelo homenageado de hoje foi muito mais profunda do que uma simples explicação dos critérios da teoria do domínio do fato. Foi uma verdadeira aula sobre como julgar um fato criminal que envolve diversos intervenientes. Fizemos a lição de casa? Em parte, os "alunos" dessa "aula" de Roxin fizeram a lição de casa. Todo esse debate sobre a teoria do domínio do fato no STF e depois a entrevista do professor alemão foram essenciais para que se sucedessem ótimos artigos, livros, dissertações e teses sobre a temática do concurso de agentes no Direito Penal brasileiro. A título de exemplo, é possível citar a obra "Autoria como domínio do fato", dos Professores Luís Greco, Alaor Leite, Adriano Teixeira e Augusto Assis, e a obra "A teoria do concurso de pessoas: uma investigação analítico-estrutural a partir da controvérsia sobre o conceito de instigação", da Professora Beatriz Corrêa Camargo. No entanto, de outro lado, o Poder Judiciário continua insistindo nos equívocos cometidos pelos Ministros no julgamento da Ação Penal 470 do STF. Tem-se observado, ainda de forma reiterada, denúncias e condenações por crimes tributários, por exemplo, baseadas exclusivamente na posição hierárquica de sócio ou diretor da empresa, preterindo, assim, a necessária indicação de uma conduta praticada pelo agente e da prova dessa conduta. Observa-se, ainda, a incorreta afirmação de que o indivíduo, por ocupar essa posição de sócio ou diretor, detém o "domínio do fato", que nada mais é do que um uso coloquial e indevido da teoria. Na contramão dessa insistência, podem ser ilustradas duas recentes decisões monocráticas proferidas pela Ministra Daniela Teixeira do Superior Tribunal de Justiça (HC 968.598 e AREsp 2.738.499), nas quais reconheceu não só que os acusados foram condenados com base somente na posição de sócios que ocupavam, mas também que os Tribunais utilizaram equivocadamente a teoria do domínio do fato com um uso coloquial do termo. O Ministro Lewandowski, ao fazer um aparte durante o julgamento da ação penal 470, acabou apresentando a seguinte "profecia": "O que me preocupa, Senhor Presidente, eminente Decano, é exatamente a banalização dessa teoria. Como é que os quatorze mil juízes brasileiros vão aplicar essa teoria, se esta Suprema Corte não fixar parâmetros bem precisos?" (p. 5201-5202 do inteiro teor do acórdão). Um agradecimento final Essa é uma singela homenagem de um desses "alunos" da entrevista, que lá em 2012 se encantou com todo esse debate e acabou seguindo o caminho dos estudos e pesquisas em Direito Penal. Muito obrigado, Professor Claus Roxin! *** 1 Entrevista reproduzida em: "Teoria do domínio do fato é usada de forma errada".
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O que já aconteceu e o que vem por aí?

A retrospectiva dos principais precedentes da jurisprudência criminal dos Tribunais Superiores marcou a estreia desta nova coluna. Hoje, iremos tratar dos julgamentos já ocorridos neste início de ano judiciário no STF e no STJ e dos possíveis julgamentos que ainda virão em 2025. ADPF das Favelas (STF) Na primeira sessão plenária de 2025, a Suprema Corte iniciou o julgamento da ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - 635, conhecida como "ADPF das Favelas". O relator, ministro Edson Fachin, proferiu seu voto, julgando parcialmente procedentes os pedidos formulados e estabelecendo uma série de medidas para a redução da letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro. Os principais pontos da decisão do relator foram: 1. Plano de redução da letalidade policial Homologação parcial do "plano de redução da letalidade policial", apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro; Inclusão de novos indicadores para monitoramento da letalidade policial, como eventos de uso excessivo da força e mortes com autoria indeterminada; Publicização de dados sobre mortes de civis e policiais, especificando a corporação envolvida, se estavam em serviço e o contexto da ocorrência. 2. Reconhecimento do estado de coisas inconstitucional O relator reconheceu a permanência de um estado de coisas inconstitucional na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, determinando seu acompanhamento contínuo. 3. Criação de comitê de acompanhamento Criação de um colegiado interinstitucional, com caráter consultivo, para fiscalizar o cumprimento das determinações do STF. O comitê seria composto por representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Poder Executivo, do CNJ, do Conselho Nacional do Ministério Público e da sociedade civil. 4. Observância de normas internacionais e nacionais sobre uso da força Aplicação das seguintes normas: (i) lei 13.060/14, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública; (ii) princípios básicos sobre utilização da força (ONU/90); e (iii) código de conduta para funcionários responsáveis pela aplicação da lei (ONU/79). 5. Assistência psicológica aos profissionais de Segurança Pública Recomendação para a criação de um programa de saúde mental para policiais, com atendimento psicossocial obrigatório após incidentes críticos. 6. Afastamento preventivo de policiais Regulamentação para afastamento preventivo de agentes envolvidos em mais de uma ocorrência com morte decorrente de intervenção policial no período de um ano. 7. Regulação do uso de helicópteros em operações Condicionamento do uso de aeronaves à estrita necessidade, com elaboração de relatório circunstanciado ao final de cada operação. 8. Restrições ao ingresso em domicílios A busca domiciliar deve ser realizada somente durante o dia, salvo flagrante delito justificado por fundamentos robustos; Vedação ao uso exclusivo de denúncia anônima como justificativa para o ingresso forçado em domicílio. 9. Presença obrigatória de ambulâncias em operações Regulamentação, em até 180 dias, para garantir a presença de ambulâncias em operações policiais com risco de confronto armado. 10. Preservação de vestígios de crimes Proibição da remoção indevida de cadáveres, sob pretexto de socorro, e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação. 11. Restrições a operações policiais próximas a escolas e hospitais Observância da proporcionalidade e justificativa detalhada sobre necessidade de operações em tais locais, além da proibição do uso de instalações de escolas e hospitais como bases operacionais para as polícias. 12. Transparência e relatórios detalhados sobre operações policiais Relatórios pré e pós-operação detalhados, incluindo dados sobre planejamento, execução e resultados; Uso obrigatório de câmeras corporais; Comunicação imediata ao Ministério Público em casos de mortes por intervenção policial. 13. Monitoramento e controle de armas e munições Integração entre sistemas de rastreamento do Ministério da Defesa e do Ministério da Justiça e Segurança Pública; Adesão do Estado do Rio de Janeiro ao Sistema Nacional de Análise Balística. 14. Garantia de investigações independentes sobre mortes por policiais Determinação para que as investigações sobre mortes por intervenção policial sejam conduzidas diretamente pelo Ministério Público; Vedação da atuação de peritos vinculados à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro nessas hipóteses. 15. Acesso aos microdados da Segurança Pública pelo Ministério Público Obrigatoriedade de compartilhamento de dados sobre operações, investigações e perícias entre forças de segurança e o Ministério Público. 16. Apoio Federal Envio da decisão ao governo Federal para análise e suporte no controle de armas e na reestruturação da Polícia Científica do Estado do Rio de Janeiro. Com essas determinações, a decisão do relator estabeleceu um amplo conjunto de medidas para reduzir a violência policial e garantir maior controle e fiscalização das forças de Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro, reforçando a necessidade de transparência, prestação de contas e respeito aos direitos fundamentais. O julgamento foi suspenso após o voto do ministro Fachin e ainda não há data definida para seu retorno ao plenário da Corte. Ficaremos atentos! Revista íntima para ingresso em presídios (STF) O ARE - Recurso Extraordinário com Agravo - 959.620 foi objeto de julgamento na segunda sessão plenária presencial do STF, confirmando a intensidade com que o ano de 2025 se iniciou para os operadores do Direito Criminal. O referido recurso objetiva estabelecer se a revista íntima para ingresso em estabelecimento prisional ofende ou não o princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção constitucional do direito à intimidade, à honra e à imagem das pessoas. Em 28/10/20, o relator, ministro Edson Fachin, proferiu seu voto em sessão virtual e propôs a fixação da seguinte tese de julgamento: "É inadmissível a prática vexatória da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedados sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos e radioscópicos". No dia seguinte, 29/10/20, o ministro Alexandre de Moraes apresentou voto divergente, sugerindo a fixação da seguinte tese: "A revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exames invasivos. O excesso ou abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização da visita". Na ocasião, foram colhidos os votos dos ministros Roberto Barroso e Rosa Weber, que acompanharam o relator, tendo o ministro Dias Toffoli pedido vista. Em 28/6/21, o ministro Toffoli concordou com o voto divergente do ministro Alexandre e houve novo pedido de vista, dessa vez pelo ministro Nunes Marques. Em 22/5/23, Nunes Marques acompanhou, na íntegra, o voto divergente de Alexandre de Moraes. Em 6/6/24, os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia acompanharam o voto do ministro Edson Fachin. Houve pedido de vista pelo ministro Cristiano Zanin e, no dia 28/10/24, ele proferiu voto igualmente acompanhando o relator, mas propôs a seguinte complementação à tese de julgamento: "Neste período, ou até que os mencionados equipamentos eletrônicos estejam em funcionamento nas instituições de segregação, é permitida a revista pessoal superficial, desde que não vexatória". Alexandre de Moraes destacou o feito, o qual foi levado a julgamento na sessão plenária presencial do último dia 6/2/25. Fachin confirmou seu voto, mas reformulou a tese proposta no seguinte sentido: "1. Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação é inadmissível a revista íntima com o desnudamento de visitantes ou a inspeção de suas cavidades corporais. 2. A prova obtida por revista vexatória é ilícita, ressalvando-se as decisões proferidas e transitadas em julgado até a data deste julgamento. 3. A autoridade administrativa tem o poder de não permitir a visita diante da presença de indício robusto de ser a pessoa visitante portadora de qualquer item corporal oculto ou sonegado, especialmente de material proibido, como produtos ilegais, drogas ou objetos perigosos. 4. Confere-se o prazo de 24 meses, a contar da data deste julgamento, para aquisição e instalação de equipamentos como scanners corporais, esteiras de raio X e portais detectores de metais. Neste período, ou até que os mencionados equipamentos eletrônicos estejam em funcionamento nas instituições de segregação, é permitida a revista pessoal, desde que não vexatória". O ministro Alexandre de Moraes, então, sugeriu outra redação à tese, nos seguintes termos: "Excepcionalmente, na impossibilidade de utilização do scanner corporal, esteira de raio-x, portais detectores de metais, a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais deverá ser motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos nas hipóteses de exames invasivos. O excesso ou o abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou do médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização da visita". O julgamento está suspenso e ainda não há data definida para retornar ao plenário da Suprema Corte. Tema repetitivo 1.186 (REsp 2.015.598/PA - STJ) No primeiro encontro deste ano da Terceira seção do STJ, ocorrido em 6/2/25, foi julgado o Tema repetitivo 1.186 (REsp 2.015.598/PA). A questão submetida a julgamento era definir se o gênero sexual feminino, independentemente de a vítima ser criança ou adolescente, é condição única para atrair a aplicabilidade da lei 11.340/06 (lei Maria da Penha) nos casos de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, afastando-se, automaticamente, a incidência da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Em decisão unânime, os ministros fixaram a seguinte tese, publicada no último dia 12/2/25: "1. A condição de gênero feminino é suficiente para atrair a aplicabilidade da lei Maria da Penha em casos de violência doméstica e familiar, prevalecendo sobre a questão etária. 2. A lei Maria da Penha prevalece quando suas disposições conflitarem com as de estatutos específicos, como o da Criança e do Adolescente" Tema repetitivo 1.241 (REsp 2.059.576/MG e 2.059.577/MG - STJ) No dia 6/2/25, a Terceira seção também iniciou o julgamento do Tema repetitivo 1.241 (REsp 2.059.576/MG e 2.059.577/MG), cuja controvérsia é a possibilidade ou não de utilização da quantidade e da variedade das drogas apreendidas para definir a fração da minorante do tráfico privilegiado, prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06. O relator, ministro Ribeiro Dantas, acatando as sugestões do ministro Messod Azulay Neto, proferiu seu voto e propôs a seguinte tese de julgamento: "1. A quantidade e a natureza da droga apreendida podem ser utilizadas para modular a fração de diminuição da pena prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06, desde que não consideradas na primeira fase da dosimetria. 2. A quantidade de droga, por si só, não afasta necessariamente a aplicação do redutor, mas pode servir de parâmetro para modulação da fração de diminuição". Houve pedido de vista pelo ministro Rogério Schietti Cruz e o julgamento foi suspenso na sessão do dia 12/2/25, pois os ministros pretendem analisar o feito em conjunto com outros correlacionados ao mesmo tema e que se encontram sob a relatoria do ministro Messod Azulay Neto. Tema repetitivo 1.277 (REsp 2.069.773/MG - STJ) Na análise do Tema repetitivo 1.277, relacionado ao Leading case REsp 2.069.773/MG, sob a relatoria do desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, a Terceira seção definiu, por unanimidade, na primeira sessão presencial de 2025, que: "É possível, conforme o art. 42 do Código Penal, o cômputo do período de prisão provisória na análise dos requisitos para a concessão do indulto e da comutação previstos nos respectivos decretos". Tema repetitivo 1.274 (REsp 2.119.556/DF e 2.109.337/DF - STJ) O Tema repetitivo 1.274, apreciado pela Terceira seção no dia 12/2/25, igualmente sob a relatoria do desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, buscava definir se o preso pode receber visitas de quem está cumprindo pena em regime aberto ou em gozo de livramento condicional. Após sugestão do ministro Messod Azulay Neto, a tese restou assim fixada: "O fato de o visitante cumprir pena privativa de liberdade em regime aberto ou em livramento condicional não impede, por si só, o direito à visita em estabelecimento prisional". Julgamentos previstos Como vimos, as duas primeiras semanas do ano judiciário de 2025 foram intensas e marcadas por julgamentos de extrema relevância para a interpretação e aplicação do Direito Criminal brasileiro. Além da retomada da análise da "ADPF das Favelas" pelo STF, está previsto o enfrentamento das seguintes questões pela Terceira seção do STJ1: Tema repetitivo 1.107 - A questão submetida a julgamento é saber se há imprescindibilidade de laudo pericial firmado por perito oficial para o reconhecimento da qualificadora do rompimento de obstáculo nos crimes de furto. O relator do processo é o ministro Rogerio Schietti Cruz. Tema repetitivo 1.163 - A controvérsia aqui é saber se a simples fuga do réu para dentro da residência, ao avistar os agentes estatais, e/ou a mera existência de denúncia anônima acerca da possível prática de delito no interior do domicílio, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, constituem ou não, por si sós, fundadas razões (justa causa) a autorizar o ingresso dos policiais em seu domicílio, sem prévia autorização judicial e sem o consentimento válido do morador. O relator também é o ministro Rogerio Schietti Cruz. Tema repetitivo 1.236 - O julgamento determinará se, para obtenção da remição da pena pela conclusão de curso na modalidade a distância, a instituição de ensino deve ser credenciada junto à unidade prisional em que o reeducando cumpre pena para permitir a fiscalização das atividades e da carga horária efetivamente cumprida pelo condenado. O tema repetitivo tem como relator o ministro Og Fernandes. Estupro de vulnerável - O colegiado analisará, em processo sob segredo de justiça, se o critério para configuração do estupro de vulnerável é objetivo. A discussão é determinar se o fato de a pessoa ter menos de 14 anos é suficiente para caracterizar o crime. O recurso, da relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, foi afetado à Terceira seção em dezembro de 2024 por decisão da Sexta turma. A medida foi tomada devido a divergências entre as duas turmas de Direito Penal (Quinta e Sexta turmas do STJ). Estaremos atentos a cada passo dos Tribunais Superiores em 2025. Quando surgir alguma novidade, ela será abordada nesta coluna com o objetivo de manter nossos leitores sempre atualizados. Vamos em frente e um excelente ano judiciário a todos! 1 Fonte: disponível aqui.
Com o ano de 2025, estreamos uma nova coluna em nosso portal: a Migalhas Criminais. Aqui, iremos tratar quinzenalmente de temas relevantes sobre o Direito Penal e Processual Penal, com enfoque para os julgamentos mais recentes e relevantes dos Tribunais Superiores (STF e STJ). Convidaremos professores, doutrinadores e especialistas para nos auxiliarem nos debates, sempre preocupados em levar a melhor e mais depurada informação a você, nosso leitor. O coordenador da nova coluna é o professor Júlio César Craveiro Devechi, que possui vasta experiência no Poder Judiciário, tendo atuado como servidor público de carreira em todas as suas instâncias. Júlio iniciou sua trajetória profissional em 2004 no TJ/PR, onde ficou até 2013, sempre no assessoramento de desembargador. Em 2013, ingressou na JF/PR - Justiça Federal do Paraná (TRF-4) como analista judiciário, cargo de provimento efetivo e privativo de bacharel em Direito. Na JF/PR, foi supervisor do JEF - Juizado Especial Federal e assessor de magistrados Federais de primeiro grau em Pato Branco/PR e em Curitiba/PR. Em 2022, migrou para Brasília/DF, onde trabalhou como assistente de ministro do STF. Hoje, é assessor de ministra do STJ. Na área acadêmica, Júlio é bacharel (2007) e mestre (2023) em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba/PR). Desde 2024, cursa doutorado em Direito Constitucional no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília/DF). Também é parecerista da Revista de Estudos Jurídicos do STJ, professor de Direito Penal e Processual Penal em Brasília/DF, autor e coautor de diversos artigos científicos e obras jurídicas. Nesta primeira edição, nosso coordenador fará uma breve retrospectiva dos principais precedentes do STJ e do STF julgados em 2024, ano bastante movimentado para os operadores do Direito Criminal. Foi um período repleto de decisões paradigmáticas e debates intensos nos Tribunais Superiores, que firmaram entendimentos importantes e modulares para o aprimoramento do Direito Penal e Processual Penal brasileiros. 1. O STF e a abordagem policial com base em perfilamento racial (HC 208.240/SP) No dia 11/4/24, o plenário da Suprema Corte finalizou o julgamento do Habeas Corpus 208.240/SP, suscitando reflexões sobre a prática do perfilamento racial em abordagens policiais no Brasil. No caso concreto, o paciente - um homem negro - foi abordado pela polícia, circunstância que deu ensejo à apreensão de 1,53 grama de cocaína e sua subsequente condenação por tráfico de drogas. Ao deliberar sobre a licitude da abordagem e das provas obtidas, o STF reafirmou princípios constitucionais importantes, ao mesmo tempo em que enfrentou um tema de alta sensibilidade social: o racismo estrutural. A tese fixada pelo STF representa um marco na proteção de direitos fundamentais, ao exigir que a busca pessoal seja fundada em indícios objetivos. Esse posicionamento reafirma o papel contramajoritário do Judiciário em coibir práticas discriminatórias e assegurar que o combate ao crime não se dê à custa de direitos e garantias constitucionais, sobretudo de populações vulneráveis. Tese de julgamento: "A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física". 2. O STF e o poder investigatório do MP(ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG) Voltou à pauta do plenário do STF o tema relacionado aos poderes de investigação do MP, em especial seu alcance, seus parâmetros e limites. O julgamento da questão foi finalizado em maio de 2024, oportunidade em que os ministros reafirmaram a atribuição concorrente do MP - ao lado dos órgãos com competência de polícia judiciária - para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal. No âmbito das ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG, foram fixadas as seguintes condições para a realização de procedimentos investigatórios pelo MP: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento do procedimento investigatório; (ii) observância dos prazos e regramentos previstos para inquéritos policiais, com necessidade de autorização judicial para prorrogações; (iii) aplicação subsidiária do art. 18 do CPP - Código de Processo Penal ao PIC - Procedimento Investigatório Criminal, que autoriza a realização de novas pesquisas depois de ordenado o arquivamento do inquérito e desde que haja notícias de novas provas; e (iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer do PIC ou do inquérito policial relacionado. O STF reforçou, ainda, que o respeito às prerrogativas profissionais da advocacia e à reserva constitucional de jurisdição é inegociável. A documentação dos atos praticados no curso da investigação pelo MP deve estar integralmente disponível, em conformidade com a súmula vinculante 14/STF, a qual garante à defesa amplo acesso aos elementos de prova já documentados em procedimentos investigatórios criminais. Teses de julgamento: "1. O MP dispõe de atribuição concorrente para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado. Devem ser observadas sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais da advocacia, sem prejuízo da possibilidade do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição (Tema 184 RG); 2. A realização de investigações criminais pelo MP tem por exigência: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição; (ii) observância dos mesmos prazos e regramentos previstos para conclusão de inquéritos policiais; (iii) necessidade de autorização judicial para eventuais prorrogações de prazo, sendo vedadas renovações desproporcionais ou imotivadas; iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer de PIC ou inquérito policial a fim de buscar evitar, tanto quanto possível, a duplicidade de investigações; v) aplicação do art. 18 do CPP ao PIC instaurado pelo MP; 3. Deve ser assegurado o cumprimento da determinação contida nos itens 18 e 189 da Sentença no Caso Honorato e Outros versus Brasil, de 27/11/23, da CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de reconhecer que o Estado deve garantir ao MP, para o fim de exercer a função de controle externo da polícia, recursos econômicos e humanos necessários para investigar as mortes de civis cometidas por policiais civis ou militares; 4. A instauração de procedimento investigatório pelo MP deverá ser motivada sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infrações penais ou sempre que mortes ou ferimentos graves ocorram em virtude da utilização de armas de fogo por esses mesmos agentes. Havendo representação ao MP, a não instauração do procedimento investigatório deverá ser sempre motivada; 5. Nas investigações de natureza penal, o MP pode requisitar a realização de perícias técnicas, cujos peritos deverão gozar de plena autonomia funcional, técnica e científica na realização dos laudos". 3. O STF e a inconstitucionalidade da desqualificação da vítima mulher(ADPF 1.107/DF) A ADPF 1.107/DF foi ajuizada pela PGR - Procuradoria-Geral da República, que apontou a existência de condutas omissivas e comissivas do Poder Público, capazes de perpetuar práticas discriminatórias contra mulheres vítimas de crimes sexuais. Entre os problemas destacados estavam os questionamentos em audiências sobre o modo de vida e a vivência sexual das vítimas, utilizados com frequência para desqualificá-las e desacreditar seus relatos. Por unanimidade, o plenário do STF julgou procedente a referida ADPF em 23/5/24, fixando quatro diretrizes principais: (i) interpretação conforme a Constituição do art. 400-A do CPP, vedando-se a invocação de elementos relacionados à vivência sexual pregressa ou ao modo de vida das vítimas em audiências de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sob pena de nulidade do ato; (ii) vedação à revalorização prejudicial da conduta da vítima em sentenças. Assim, expressão "comportamento da vítima" do art. 59 do Código Penal não pode ser interpretada para valorar negativamente aspectos de sua vida pregressa ou comportamento social; (iii) atuação judicial ativa para coibir essas práticas, impondo-se aos magistrados o dever de impedir tais abordagens durante os processos, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal; e (iv) comunicação dessas diretrizes aos tribunais inferiores, com a finalidade de uniformizar as práticas judiciais no país. Tese de julgamento: "É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais". 4. O STF e a tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal (Tema 506 da repercussão geral) No julgamento do RE 635.659/SP, o STF enfrentou o controverso tema da constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal. Por maioria, a Corte decidiu que o porte de até 40 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, para consumo pessoal, é conduta atípica, sendo aplicadas medidas educativas em procedimento de natureza não penal e sem repercussões criminais. A decisão não impede que quantidades menores sejam consideradas tráfico, desde que evidências adicionais apontem para o intuito de mercancia, como embalagens e outros instrumentos encontrados (balança de precisão, por exemplo). A tese fixada equilibra as políticas de combate ao tráfico de drogas no Brasil, mas atribui ao Congresso Nacional a responsabilidade pela regulamentação futura do tema. Teses de julgamento: "1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do art. 28 da lei 11.343/06, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário". 5. O STF, a soberania do júri e a execução imediata da pena (Tema 1.068 da repercussão geral) Em setembro de 2024, o STF consolidou o entendimento de que a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a execução imediata da pena, independentemente de seu montante. No julgamento do RE 1.235.340/SC, fixou-se que a decisão do Conselho de Sentença não pode ser sustada por recursos ordinários, assegurando-se maior celeridade e efetividade às decisões? condenatórias proferidas em plenário. Tese de julgamento: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada". 6. Os Tribunais Superiores e a retroatividade do ANPP(STF: HC 185.913/DF e STJ: Tema repetitivo 1.098) No HC 185.913/DF, o STF decidiu pela possibilidade de celebração do ANPP em casos de processos em andamento na data de vigência da lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), mesmo sem que tenha ocorrido prévia confissão do réu. O STJ, no Tema repetitivo 1.098, reforçou essa orientação, aplicando, da mesma forma, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Ambos os Tribunais Superiores condicionaram o acordo à manifestação motivada do MP, promovendo segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto. Teses de julgamento: STF "1. Compete ao membro do MP oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno; 2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da lei 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado; 3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo; 4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo MP, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso". Teses de julgamento: STJ "1 - O Acordo de Não Persecução Penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual, no que diz respeito à possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal, e, de outro lado, natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do CPP. 2 - Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma pena benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da lei 13.964/19, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação. 3 - Nos processos penais em andamento em 18/9/24 (data do julgamento do HC 185.913/DF, pelo plenário do STF), nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo MP ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo no caso concreto. 4 - Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir de 18/9/24, será admissível a celebração de ANPP antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura do acordo, no curso da ação penal, se for o caso". 7. O STF e a absolvição por clemência no Tribunal do Júri(Tema 1.087 da repercussão geral) A controvérsia posta no ARE - Agravo em Recurso Extraordinário 1.225.185/MG surgiu a partir de julgamento do Tribunal do Júri que absolveu um réu por meio de quesitação genérica, amparando-se em argumentos de clemência apresentados pela defesa em plenário. O MP local interpôs recurso de apelação com fundamento no art. 593, III, "d", do CPP, sustentando que a decisão afrontava as provas constantes nos autos. O TJ/MG manteve o veredito absolutório, ressaltando a soberania dos jurados, conforme garantido pelo art. 5º, XXXVIII, "c", da Constituição Federal. Inconformado, o MP recorreu ao STF, invocando a necessidade de controle mínimo da racionalidade das decisões do júri. Por maioria, o STF fixou duas teses principais: (i) cabimento do recurso de apelação, nos termos do art. 593, III, "d", do CPP, quando a decisão do Tribunal do Júri, fundamentada em quesitação genérica, for considerada manifestamente contrária às provas dos autos; e (ii) vedação ao Tribunal de Apelação de determinar novo júri se constar em ata a apresentação de tese defensiva que conduza à clemência, desde que compatível com a Constituição Federal, os precedentes vinculantes do STF e as circunstâncias fáticas dos autos. Tese de julgamento: "1. É cabível recurso de apelação com base no art. 593, III, 'd', do CPP, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos. 2. O Tribunal de Apelação não determinará novo júri quando tiver ocorrido a apresentação, constante em ata, de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, os precedentes vinculantes do STF e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos". 8. O STF e a tipicidade do porte de arma branca(Tema 857 da repercussão geral) O caso concreto em discussão no ARE 901.623/SP envolvia a condenação do recorrente ao pagamento de 15 dias-multa por portar uma arma branca sem justificativa plausível. Alegava-se, no recurso, a inconstitucionalidade do art. 19 da LCP - lei das Contravenções Penais devido à falta de regulamentação específica exigida pelo próprio dispositivo. Além disso, questionava-se a compatibilidade do preceito com o princípio da taxatividade penal, argumento central da defesa. Por maioria, o STF entendeu que: (i) o art. 19 da LCP não exige regulamentação complementar para sua aplicação às armas brancas, considerando-se suficiente a avaliação judicial do elemento subjetivo do agente e da potencialidade lesiva do instrumento; (ii) a norma penal é compatível com o princípio da legalidade, uma vez que define com clareza o comportamento vedado, cabendo ao magistrado analisar as circunstâncias concretas para aferir a tipicidade da conduta; e (iii) não houve usurpação da competência da União, já que o fundamento da condenação não se baseou em normas estaduais, mas no próprio decreto-lei Federal. O precedente reafirma a vigência do art. 19 da LCP em um contexto de questionamentos sobre a utilidade e a contemporaneidade das contravenções penais. A decisão também sinaliza uma abordagem pragmática ao princípio da taxatividade, permitindo certa abertura interpretativa para avaliar o contexto fático de cada caso. O STF destacou, nesse aspecto, que, ao avaliar a tipicidade, o juiz deve observar o elemento subjetivo (a intenção do agente ao portar a arma branca) e a potencialidade lesiva da arma (a capacidade do instrumento de causar dano à incolumidade física de terceiros). Tese de julgamento: "O art. 19 da lei de Contravenções penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca, cuja potencialidade lesiva deve ser aferida com base nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, inclusive, o elemento subjetivo do agente". 9. O STJ e os contornos da confissão extrajudicial(AREsp 2.123.334/MG) A Terceira seção do STJ abordou a confissão extrajudicial no AREsp 2.123.334/MG, reafirmando sua inadmissibilidade quando colhida de forma informal, fora de estabelecimentos estatais oficiais e sem garantias de licitude. O órgão fracionário do Tribunal, responsável pela uniformização da jurisprudência criminal no Brasil, alertou para os riscos de falsas confissões, destacando a necessidade de controle rigoroso sobre a atividade policial. A decisão enfatiza a proteção contra práticas abusivas e reforça o papel do MP como fiscal da lei. Teses de julgamento: "1: A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu). 2: A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao MP possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória. 3: A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP. 4. A aplicação dessas teses fica restrita aos fatos ocorridos a partir do dia seguinte à publicação deste acórdão no DJe (2/7/24). Modulação temporal necessária para preservar a segurança jurídica (art. 927, § 3º, do CPC). 5. Ainda que sejam eventualmente descumpridos seus requisitos de validade ou admissibilidade, qualquer tipo de confissão (judicial ou extrajudicial, retratada ou não) confere ao réu o direito à atenuante respectiva (art. 65, III, "d", do CP) em caso de condenação, mesmo que o juízo sentenciante não utilize a confissão como um dos fundamentos da sentença. 10. O STJ e a impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal(súmula 231 do STJ) Em agosto de 2024, a Terceira seção do STJ reafirmou a validade de sua súmula 231, que proíbe a redução da pena abaixo do mínimo legal, na segunda fase da dosimetria, mesmo diante da incidência de circunstâncias atenuantes genéricas. A controvérsia era saber se a expressão "sempre atenuam a pena", presente no caput do art. 65 do Código Penal, autorizava a mitigação da reprimenda corporal abaixo do mínimo em caso de incidência de circunstâncias atenuantes genéricas. Prevaleceu o entendimento do ministro Messod Azulay Neto, no sentido de que a questão já foi enfrentada pelo STF em precedente vinculante (Tema 158 da repercussão geral), não cabendo ao STJ afrontá-lo com sinalização jurisprudencial em outro sentido. Enunciado (súmula 231 do STJ): "A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". Tese (Tema 158 da repercussão geral): "Circunstância atenuante genérica não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". 11. O STJ e a ausência de prazo das medidas protetivas de urgência(Tema repetitivo 1.249) No mês de novembro de 2024, a Terceira seção deliberou sobre a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, previstas na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), bem como sobre a possibilidade ou não de fixação de prazo predeterminado para sua duração pelo juiz. O colegiado compreendeu que essas medidas possuem natureza de tutela inibitória, não se vinculando à existência prévia de procedimentos da persecução criminal, como o inquérito policial ou a ação penal. Além disso, prevaleceu o entendimento de que as medidas protetivas de urgência devem viger enquanto perdurar o risco à mulher, ou seja, sem a possibilidade de fixação de prazo predeterminado de validade pelo juiz. O texto final da tese de julgamento ainda não foi publicado pelo STJ. 12. O STJ e os limites à atuação judicial na prisão preventiva(súmula 676 do STJ) No final do ano, foi aprovada pela Terceira seção do STJ a súmula 676, estabelecendo que, após a lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), é vedado ao juiz decretar a prisão preventiva ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício. Essa consolidação jurisprudencial reafirma o sistema acusatório e a separação das funções judiciais e persecutórias, da forma prevista no art. 3º-A do CPP. Enunciado: Em razão da lei 13.964/19, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva. *** Esta primeira edição da coluna "Migalhas Criminais" representa uma singela homenagem à memória do advogado paranaense Antonio Devechi, falecido em Curitiba/PR no último dia 2/1/25. Devechi nasceu em Mandaguari/PR em 25/3/48 e trabalhou no Banestado - Banco do Estado do Paraná como gerente geral e gerente regional em diversas agências. Formou-se em Direito aos 48 anos de idade, sendo o primeiro colocado de sua turma de graduação. Escreveu mais de 15 livros jurídicos, todos publicados pela Editora Juruá de Curitiba/PR. Os últimos cargos ocupados por Devechi foram o de Diretor-Geral e de Secretário de Estado na Secretaria de Justiça, Família e Trabalho do Paraná.