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Destinação da prestação pecuniária ou equivalente no ANPP: Juízo das execuções x Ministério Público

terça-feira, 15 de abril de 2025

Atualizado em 14 de abril de 2025 13:46

Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a satisfação de apresentar o artigo da autora Monique Vaz Carvalho, que traz uma análise minuciosa e altamente atual sobre os limites da atuação do Ministério Público na definição das condições dos ANPP - Acordos de Não Persecução Penal, com enfoque especial na destinação das prestações pecuniárias e de obrigações equivalentes. O ponto de partida do texto é o julgamento do AREsp 2.783.195/MA, no qual o STJ enfrentou diretamente a controvérsia sobre a legalidade da indicação de órgãos públicos como destinatários de doações e benefícios acordados, colocando em xeque a compatibilidade dessas práticas com o art. 28-A do CPP.

Monique Vaz Carvalho é mestranda em Direito Constitucional pelo IDP/DF - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, graduada pelo UNICEUB/DF - Centro Universitário de Brasília, analista judiciária do STJ e assessora de ministro da Terceira Seção do STJ. Com sua vivência institucional e domínio técnico da matéria, a autora aprofunda os fundamentos legais e jurisprudenciais que balizam a repartição de competências entre o Ministério Público e o juízo das execuções, oferecendo ao leitor uma reflexão crítica e embasada sobre os riscos de esvaziamento do controle judicial nas medidas despenalizadoras.

Com estilo claro, rigor dogmático e um repertório jurisprudencial de ponta, o artigo reafirma a missão da coluna Migalhas Criminais de promover o debate qualificado sobre os temas mais candentes do direito penal e processual penal brasileiro à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Com a palavra, nossa convidada, Monique Vaz Carvalho.

***

O STJ, no julgamento do agravo regimental no agravo em recurso especial 2.783.195/MA, analisou a legalidade da seguinte tese fixada pelo TJ/MA em incidente de assunção de competência:

Descabe a homologação do ANPP - Acordo de Não Persecução Penal  que não atenda os requisitos do art. 28-A, do CPP, inclusive acerca da ordem procedimental de celebração, sendo vedada a indicação de órgão público como beneficiário de prestação pecuniária (dinheiro, cesta básica, EPI, etc.), ressalvados os instrumentos firmados até o presente julgamento, acaso não rejeitados com supedâneo nas hipóteses previstas no § 2º, de referido dispositivo legal.

O caso dos autos dizia respeito à prática, em tese, do crime previsto no art. 54, caput, da lei 9.605/1998 c/c o art. 3º, inciso III, da lei 6.938/1981 (poluição sonora por meio de equipamento de descarga de motocicleta adulterado), tendo o Ministério Público formalizado acordo de não persecução penal, indicando, entre as condições, o pagamento no valor de um salário mínimo, na forma de compra de  EPI - equipamentos de proteção individual, a serem doados a Secretaria Municipal de Trânsitos e Transportes.

O magistrado de origem, no entanto, considerou referida condição ilegal, por não ter observado o disposto no inciso IV do art. 28-A do CPP, e não homologou o acordo. Destacou que "a SMTT participa ativamente das operações policiais de combate à poluição sonora em conjunto com o Ministério Público Estadual, sendo responsável pela realização das blitz montadas para a abordagem dos autores do delito. Nesse aspecto, não pode ser destinatário dos benefícios constantes do acordo, assim como qualquer órgão público atuante nas operações, dada a necessidade de resguardo da imparcialidade de sua atuação".

Interposto recurso em sentido estrito pelo beneficiário do acordo e pelo Ministério Público, instaurou-se, de ofício, incidente de assunção de competência, fixando-se a tese acima já referida e destacando-se que "Ainda que atribuível ao Ministério Público a tomada de decisão acerca da celebração, ou não, do ANPP, não se autoriza a inobservar os ditames legais, a ponto de submetê-lo à apreciação do juízo somente após o cumprimento das obrigações, assim como a estabelecer, à revelia do juízo da execução, beneficiário do produto da avença, sobretudo órgão público, que difere da entidade pública prevista na norma".

No recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado do Maranhão, apontou-se ofensa ao art. 45, § 1º, do Código Penal e ao art. 28-A, caput, inciso V, do CPP. Argumentou-se que considerar a doação de bens como prestação pecuniária violaria o princípio da legalidade e que o § 2º do art. 45 do Código Penal, ao disciplinar que "a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza" explicita que prestação de outra natureza não é prestação pecuniária, não se inserindo, portanto, no inciso IV do art. 28-A do CPP.

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do decreto-lei 2.848, de 7/12/1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

[...]

Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48.

§ 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 salário mínimo nem superior a 360 salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários.

§ 2o No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza.

[...]

O relator, ministro Ribeiro Dantas, não acolheu a tese ministerial, consignando que a entrega de equipamentos de proteção individual deve se equiparar à prestação pecuniária, "destacadamente porque a obrigação foi fixada em valor pecuniário e com parâmetro no salário mínimo".

Em voto-vista, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca acompanhou o relator, considerando, em um primeiro momento, que "a doação de bens deve ser considerada prestação de outra natureza, enquadrando-se igualmente no dispositivo legal que trata da prestação pecuniária".

Registrou, no mais, que a condição do inciso V do caput do art. 28-A do CPP deve ser quantificável em tempo e não em valor e, por fim, indicou julgados do STF a respeito impossibilidade de livre destinação de valores pelo Ministério Público.

Referido julgamento foi concluído em 18/3/25.

Uma leitura rápida do processo pode dar a impressão de se tratar de uma simples controvérsia a respeito do alcance do conceito de prestação pecuniária. Entretanto, o que efetivamente se discutiu foi a legitimidade do Ministério Público para indicar o destinatário das condições fixadas no acordo de não persecução penal.

Acaso se considere que a prestação pecuniária se limita à fixação de uma quantia em dinheiro, todas as demais prestações fixadas em bens seriam inseridas, por exclusão, na cláusula aberta do inciso V do caput do art. 28-A do CPP, possibilitando, assim, livre indicação do destinatário pelo Ministério Público. Contudo, se fixada em dinheiro, seriam inseridas na condição do inciso IV, cujo destinatário deve ser entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo Juízo das Execuções.

O CNPG - Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais, em reunião realizada em 12/2/2025, acolheu a nota técnica 01/25 do GNCCRIM - Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal, com encaminhamento ao Conselho Nacional do Ministério Público, "a fim de que expeça ato normativo apto a viabilizar ao Ministério Público brasileiro a estipulação de cláusula de obrigação de dar ou de fazer, notadamente a relativa à doação de bens, com arrimo no inciso V, do art. 28-A do CPP', por ocasião da entabulação do acordo de não persecução penal".

Mostra-se imperativo, dessa forma, compreender a extensão que deve ser dada ao conceito de prestação pecuniária previsto no art. 28-A e, por consequência, à condição extralegal prevista no inciso V, tanto para não inviabilizar as demais condições legalmente previstas quanto para não esvaziar o comando normativo da cláusula aberta.

O inciso IV do caput do art. 28-A do CPP prevê como condição o pagamento de prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal. Referido artigo disciplina em seu § 2º a possibilidade de a prestação pecuniária consistir em prestação de outra natureza. Nessa linha de intelecção, a destinação de bens em vez de dinheiro deve ser inserida no inciso IV, haja vista a expressa referência ao art. 45 do Código Penal.

Ademais, pela leitura do inciso V, verifica-se que a outra condição a ser indicada pelo Ministério Público deve ser cumprida "por prazo determinado", o que leva à compreensão de que se trata de condição a ser quantificável em tempo e não em valor econômico. Segundo Vinícius Gomes de Vasconcellos, "de certo modo, aproxima-se o ANPP da lógica do período de prova característico à suspensão condicional do processo. Tal prazo deve ser compatível com a lógica do próprio ANPP, de modo que um parâmetro deve ser aquele definido para a prestação de serviço comunitário (art. 28-A, III)" 1 

Nada obstante, conforme ponderado por Gustavo Badaró, as condições genéricas estabelecidas com fundamento no inciso V não podem ser equivalentes às já consideradas pelo legislador para integrar o rol do caput do art. 28-A do CPP.2 Portanto, apenas os parâmetros devem ser semelhantes, não se justificando a inserção de uma condição já prevista de forma específica na cláusula aberta do inciso V.

O Ministério Público Federal, por meio da orientação conjunta 03 de 2018, indicou exemplos de outras condições que podem ser propostas pelo parquet: "No caso de contrabando, por exemplo, podera' constar cla'usula que vede a viagem do investigado para o país de onde trouxe indevidamente a mercadoria. Nos crimes econômicos podera' ser estabelecido o afastamento do acusado da diretoria ou do controle da empresa. Nos crimes praticados contra o Sistema Financeiro Nacional poderá ser estabelecida a proibição do acusado em operar no mercado financeiro por período determinado"3.

Para além do debate a respeito do conceito de prestação pecuniária e da abrangência da outra condição prevista no inciso V, tem-se também a controvérsia concernente à possibilidade de o Ministério Público indicar o destinatário dos bens definidos como condição do acordo, tema central do dissenso estabelecido.

O STF, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 6.305/DF, de relatoria do ministro Luiz Fux, declarou, por unanimidade, a constitucionalidade dos incisos III e IV do caput do art. 28-A do CPP, quanto à escolha, pelo juízo das execuções, do local para prestação de serviço e da entidade para pagamento da prestação pecuniária.

O ministro Alexandre de Moraes, ao proferir seu voto no mencionado julgamento, destacou que "a opção do legislador é válida e convergente com outras hipóteses legais há muito aplicadas sem qualquer contestação, como os arts. 45 e 46 do Código Penal, aos quais a lei 13.964/19 faz referência expressa, nos incisos III e IV do novo art. 28-A do CPP" (ADI 6.305, relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24/8/23, DJe 18/12/23 - p. 861).

O CNJ editou a resolução 154/12, alterada pelas resoluções 206/15 e 225/16, com o objetivo de regulamentar a utilização dos recursos oriundos da aplicação da pena de prestação pecuniária. Mencionada resolução determina que os valores "serão, preferencialmente, destinados à entidade pública ou privada com interesse social, previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, educação e saúde", sendo "vedada a escolha arbitrária e aleatória dos beneficiários" (art. 2º, caput e § 3º, da resolução).

A resolução veda a utilização dos recursos para custeio do Poder Judiciário, para promoção pessoal ou remuneração, para fins políticos-partidários, bem como para entidades que não estejam regularmente constituídas. Consta, ainda, que a destinação dos referidos valores deve observar os princípios constitucionais da administração pública, previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, bem como a necessária prestação de contas (arts. 3º e 4º, da resolução).

Questionou-se perante o STF a constitucionalidade da resolução 154/12, com relação à destinação da prestação pecuniária fixada como condição para a suspensão condicional do processo, para a transação penal ou para o ANPP, ficando assentado que "pouco deveria importar ao próprio dominus litis, a destinação da prestação pecuniária fixada". Destacou-se que a destinação das prestações, em si, não é elemento da negociação entre as partes, devendo permanecer no âmbito da administração do cumprimento da medida, a cargo, portanto, do Poder Judiciário.

Em virtude da falta de previsão constitucional, não cabe mesmo ao Ministério Público administrar os recursos que ingressam nos cofres públicos a título de sanção criminal ou de sucedâneo desta, tampouco disciplinar o destino deles. (ADI 5388, relator(a): Marco Aurélio, relator(a) p/ Acórdão: Nunes Marques, Tribunal Pleno, julgado em 20/5/24, DJe 18/6/24).

O beneficiário das condições fixadas não se insere no objeto do acordo, devendo ser observada a resolução questionada, a qual busca reforçar a impessoalidade na destinação de valores que passam a ter caráter público. Ademais, não havendo previsão legal a respeito de destinatário específico das receitas provenientes de acordo ou de responsabilização penal, estas devem ser destinadas à União para o devido processo orçamentário constitucional, conforme assentado na ação de descumprimento de preceito fundamental 569/DF.

Excepcionalmente, desde que haja expressa e específica previsão legal quanto à destinação, essas receitas deverão ser repassadas aos destinatários beneficiados pela respectiva norma regulamentadora, vinculando os órgãos jurisdicionais no emprego dado a tais recursos. São as seguintes hipóteses: [...] (c) a prestação pecuniária ajustada em acordos de não persecução penal destina-se à entidade pública ou de interesse social (art. 28-A, IV, do CPP), conforme indicado pelo Juízo; [...] (ADPF 569, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/5/24, DJe 24/5/24).

No mencionado julgamento, excepcionou-se a norma do art. 28-A, caput, inciso IV, do CPP, haja vista a previsão expressa de que a destinação da prestação pecuniária deve ser entidade pública ou de interesse social indicada pelo juízo das execuções. No entanto, não havendo vinculação legal específica de destinatário no inciso V, o Ministério Público não poderia escolher livremente o destinatário dos recursos definidos no acordo.

Nas palavras do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca:

[...] apesar da abertura semântica do inciso V, sua interpretação deve se harmonizar não apenas com os demais incisos do art. 28-A, caput, do CPP, os quais fazem expressa remissão a dispositivo do Código Penal, mas especialmente com a interpretação constitucional a respeito da destinação de valores no processo penal.

Nessa perspectiva, conclui-se que a condição aberta prevista no art. 28-A, caput, inciso V, do CPP não deve possuir vinculação econômica, sob pena de representar burla ao disposto no inciso IV do mesmo dispositivo legal. De igual sorte, conforme firmado pelo STF em mais de uma oportunidade, não é possível a livre disposição de receitas derivadas do sistema de responsabilização penal, motivo pelo qual não compete ao Ministério Público escolher o destinatário das condições acordadas para a aplicação de medidas despenalizadoras.

_________

1 Vasconcellos, Vinícius Gomes de. Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 167.

2 Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. Disponível aqui. Acesso em 8/4/25.

3 Disponível aqui. Acesso em 13/3/25