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Garantias fundamentais não têm CEP

terça-feira, 29 de abril de 2025

Atualizado em 28 de abril de 2025 13:43

No julgamento do REsp 2.090.901/SP, ocorrido no último dia 2/4/25, a 6ª turma do STJ reafirmou a proteção constitucional da inviolabilidade de domicílio e reconheceu a ilicitude de provas obtidas mediante buscas domiciliares coletivas, realizadas sem mandado judicial e sem a presença de fundadas razões que apontassem para a situação de flagrante delito no interior de imóvel determinado. 

O caso concreto envolvia a condenação de um homem por tráfico de drogas a partir de "varredura" policial em viela de comunidade periférica, sem a prévia identificação do imóvel e sem justificativa concreta para o ingresso nos domicílios.

A decisão unânime da 6ª turma absolveu o réu com fundamento na teoria dos "frutos da árvore envenenada" (art. 157, §1º, do CPP), fortalecendo a linha jurisprudencial que rechaça devassas indiscriminadas sob o pretexto de combate ao crime, reafirmando que nem mesmo a autoridade judicial pode determinar buscas coletivas. 

O julgamento do STJ dialoga com o entendimento recente da Suprema Corte, exposto no julgamento da "ADPF das Favelas" (ADPF 635), este igualmente concluído no início de abril (3/4/25).

1. O caso concreto 

O recorrente foi abordado pela polícia militar, após empreender fuga ao avistar a viatura, em uma viela da comunidade conhecida como "Favela do Coruja", localizada no bairro Vila Guilherme na capital paulista. Com ele foi encontrada a quantia de R$ 2.201,85, em notas e moedas diversas, além de um aparelho celular. 

Segundo os autos, o réu teria, informalmente, confessado que o dinheiro era proveniente do "recolhe da biqueira". Os policiais afirmaram, também, que ele era conhecido da equipe, pois já havia sido autuado em flagrante no ano de 2020. Sem mandado judicial e sem indícios objetivos da prática delitiva no interior de qualquer imóvel, os militares procederam a uma varredura em residências da região, vindo a localizar entorpecentes e um caderno de anotações com a contabilidade do tráfico em uma delas.

Na delegacia de polícia civil, já na presença de seu advogado, o réu negou a prática do crime e seu conhecimento sobre a existência dos entorpecentes encontrados na residência próxima ao local de sua abordagem.

O TJ/SP considerou a diligência válida, com base na suposta situação de flagrante decorrente de crime permanente. O STJ, porém, reformou o acórdão, ressaltando que a busca foi realizada de forma coletiva, sem individualização do imóvel ou indicação concreta da ocorrência de crime no interior de uma casa específica.

Segundo o relator, ministro Rogério Schietti Cruz, "nem mesmo por ordem judicial é possível a realização de buscas coletivas, é dizer, de 'varreduras' de várias residências de uma região, tendo em vista que é obrigatório que conste do mandado judicial de busca o endereço particularizado em que a diligência deverá ser cumprida (CPP, art. 243, I). É vedada, pois, a expedição de 'mandados judiciais coletivos' de busca domiciliar".

Art. 243, I, do CPP: "O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem".

2. A constitucionalização da proteção domiciliar

O art. 5º, XI, da Constituição Federal dispõe que "a casa é asilo inviolável do indivíduo", permitindo o ingresso apenas com o consentimento do morador ou nas hipóteses excepcionais de flagrante delito, desastre, socorro ou por mandado judicial. Essa cláusula de proteção é fundamento de diversas decisões paradigmáticas do STF e do STJ, que buscam limitar a discricionariedade da atuação estatal, sobretudo em comunidades periféricas.

É importante notar um ponto comum em todas as hipóteses constitucionais de validação do ingresso forçado em domicílio: a urgência. Em outras palavras, para que se possa ingressar em determinada residência sem o consentimento válido do morador ou sem mandado judicial, deve haver, mesmo na hipótese de flagrante delito, urgência para a realização da diligência, isto é, uma situação concreta que impossibilite aguardar o trâmite legal para a expedição do respectivo mandado de busca, tal qual se dá em situações de desastre e para a prestação de socorro. 

O ingresso emergencial se justifica, por exemplo, nos casos de violência doméstica, sequestro ou outras hipóteses em que a vítima está sofrendo sérios e iminentes riscos à sua integridade física ou à sua vida. A urgência também pode estar caracterizada quando há indícios fundados e concretos de que o criminoso empreenderá fuga se não houver a invasão domiciliar naquele exato momento ou de que irá descartar objetos para prejudicar a prova da materialidade delitiva. Todavia, como dito, a garantia de inviolabilidade domiciliar só pode ser excepcionada quando a suspeita estiver fundada e lastreada em elementos concretos (justa causa).

Art. 5º, XI, da CF: "A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial."

Essa garantia foi reafirmada pelo STF no julgamento do RE 603.616/RO (Tema 280 da repercussão geral), consolidando o entendimento de que a entrada forçada sem mandado e sem o consentimento válido do morador só é lícita se houver fundadas razões, justificadas pelas circunstâncias concretas, que indiquem estar ocorrendo um crime dentro da residência.

"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados" (RE 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes).

Não é demais lembrar o que dispõe o art. 248 do CPP, o qual impede a realização da diligência de busca, em casa habitada, de modo a incomodar os moradores além do indispensável ao efetivo êxito da diligência.

Art. 248 do CPP.  "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência".

Esse plexo de garantias constitucionais e legais envolvendo o domicílio traz consigo a força da palavra asilo, indicando que a casa é um ambiente de proteção e de abrigo do indivíduo. Nela, o sujeito deve sentir-se seguro, inclusive das investidas estatais sobre a sua liberdade individual. Só se pode flexibilizar essa característica, sem que haja o consentimento válido do morador, em situações excepcionalíssimas de urgência ou, durante o dia, por meio de um mandado judicial amparado em fundadas razões e expedido nos moldes dos arts. 240 a 243 do CPP.

3. Teoria dos frutos da árvore envenenada

A decisão do STJ também reafirmou a aplicação da teoria dos "frutos da árvore envenenada" (art. 157, §1º, do CPP). Como a diligência foi ilícita - por violar a garantia da inviolabilidade de domicílio - todas as provas decorrentes da busca domiciliar foram contaminadas e consideradas inadmissíveis.

Art. 157, §1º, do CPP: "São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras."

4. Distinções importantes: Busca pessoal lícita x busca domiciliar ilícita

O acórdão da relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz separou adequadamente dois momentos distintos da atividade policial: (i) a validade da busca pessoal, em razão da tentativa de fuga do recorrente ao avistar a guarnição (conforme orientação da 3ª Seção no habeas corpus 877.943/MS, julgado em 18/4/24); e (ii) a ilicitude do ingresso em domicílios não identificados, em razão da ausência de mandado, de fundadas razões e da individualização objetiva da diligência.

Tal distinção evita generalizações. A abordagem pessoal pode até ter sido legítima em decorrência da fuga do réu, mas ela não autoriza, por si só, o ingresso posterior em residências indeterminadas, sobretudo sem a presença de elementos concretos da ocorrência de flagrante delito no interior de um imóvel específico e individualizado.

5. Impactos práticos e limitações à atuação policial discricionária

O julgamento do STJ reforça a necessidade de contenção da atuação discricionária na atividade estatal, em especial em regiões ocupadas por populações vulneráveis. A prática reiterada de incursões em comunidades periféricas com base em alegações genéricas - como "ponto conhecido pelo comércio de drogas" - não pode legitimar violações constitucionais.

O STJ mostra que o combate ao crime não pode se dar à custa da legalidade. Não há "zonas de exceção" nos rincões periféricos: a Constituição e as leis que vigoram nos bairros nobres são as mesmas que regem a vida em sociedade na periferia. A casa deve ser sempre considerada o asilo inviolável do indivíduo, esteja ela localizada no Jardim Europa ou na Favela do Coruja.

6. Diálogo institucional: O STJ e a ADPF das Favelas (ADPF 635)

O julgamento do STJ dialoga diretamente com o recente acórdão prolatado pelo STF na ADPF 635, conhecida como "ADPF das Favelas", em que se reconheceu a prática reiterada de violações de direitos fundamentais em razão de operações policiais indiscriminadas em comunidades do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal determinou a adoção de políticas de controle, transparência, planejamento e contenção da letalidade estatal.

Ambas as decisões convergem no sentido de rechaçar incursões genéricas e desproporcionais, sobretudo em territórios periféricos ocupados por populações vulneráveis. A proibição de buscas coletivas pelo STJ e as medidas estruturais impostas pelo STF são manifestações do mesmo princípio: a legalidade é o limite intransponível da atuação estatal, pouco importando onde ela ocorra, isto é, se em um bairro nobre ou em uma comunidade da periferia.

7. Considerações finais

O julgamento unânime do REsp 2.090.901/SP pela 6ª turma do STJ e a decisão per curiam lançada na ADPF 635 pelo plenário do STF são exemplos do compromisso dos Tribunais Superiores com um processo penal legítimo e verdadeiramente democrático. 

As duas decisões colegiadas, proferidas na mesma semana de abril de 2025 (2 e 3/4/25, respectivamente), simbolizam um importante marco interpretativo da jurisprudência brasileira: não há Constituição pela metade e não há direitos dependentes do CEP do cidadão. Tanto as comunidades quanto os bairros nobres são territórios juridicamente protegidos.