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A decisão do STF que estendeu a aplicação da lei Maria da Penha a casais gays, mulheres trans e travestis

terça-feira, 3 de junho de 2025

Atualizado às 10:24

No mês em que se comemora o orgulho LGBTI+ e a diversidade, é com grande satisfação que apresentamos a mais nova edição da coluna Migalhas Criminais, espaço dedicado à análise crítica de julgados paradigmáticos dos Tribunais Superiores no campo do Direito Penal e do Processo Penal.

Nesta edição, contamos com a colaboração de Cíntia Cecilio, assessora no STJ, especialista em direito LGBTI+ e diversidade, que assina um artigo de fôlego sobre o recente e histórico posicionamento do STF a respeito da extensão da lei Maria da Penha a mulheres trans, travestis e, em certos contextos, também a casais homoafetivos masculinos.

O texto de Cíntia examina, com precisão técnica e sensibilidade jurídica, os fundamentos e implicações do julgamento do mandado de injunção 7452, proferido pelo STF em 2025. A autora destaca a superação de uma leitura restritiva e biologizante da lei 11.340/2006, demonstrando como a Corte Constitucional firmou entendimento no sentido de proteger, de forma inclusiva, todas as vítimas de violência de gênero em relações domésticas e familiares - independentemente de sexo biológico, identidade de gênero ou orientação sexual. Ao lado disso, a autora analisa os impactos penais e processuais da decisão, em especial quanto à ampliação dos sujeitos passivos dos crimes previstos na lei, à aplicabilidade das medidas protetivas de urgência, e à necessidade de preparo institucional dos atores jurídicos.

Mais do que uma análise jurisprudencial, o artigo é um chamado à construção de uma justiça criminal verdadeiramente plural e antidiscriminatória. Em tempos de retrocessos normativos e tensões políticas sobre os direitos das populações vulnerabilizadas, o trabalho de Cíntia Cecilio reafirma o papel contramajoritário do STF e convida o leitor a refletir sobre os limites e possibilidades da dogmática penal frente às transformações sociais contemporâneas. Então, vamos a ele.

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A decisão do STF, proferida em agosto de 2021, no âmbito da ADO - ação direta de inconstitucionalidade por omissão 45 e do MI - mandado de injunção 4733, representa um marco histórico na proteção penal de grupos vulneráveis, especialmente no que tange à população LGBTI+. O STF reconheceu a omissão do Congresso Nacional em legislar sobre a criminalização da homofobia e transfobia, tendo determinado que a partir de então a homotransfobia deveria ser equiparada ao crime de racismo, ampliando a proteção penal para a população LGBTI+. Esse tipo de ação visa garantir direitos e liberdades constitucionais na falta de norma regulamentadora torne inviável seu exercício.

Já em 2025, o MI - mandado de injunção 7452 consolidou o entendimento de que a proteção conferida pela lei 11.340/2006 - conhecida como lei Maria da Penha - não se restringe às mulheres cisgênero em relações heteroafetivas, mas também se estende às mulheres trans, travestis e, em alguns casos, aos casais homoafetivos formados por pessoas do mesmo gênero.

Tradicionalmente, a proteção da lei Maria da Penha era interpretada sob uma ótica estritamente binária e biologizante, focada exclusivamente na mulher cisgênero. No entanto, a crescente complexidade das relações sociais, as novas formações de famílias e o reconhecimento jurídico das identidades de gênero e orientações sexuais diversas, impuseram uma necessária releitura da norma à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e não discriminação.

Mais uma vez reconhecendo a lacuna da legislação brasileira, o STF decidiu que, até que venha uma lei sobre o tema, incide a proteção da lei Maria da Penha aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares.

Citando entendimentos de outros tribunais, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, ponderou ainda que é possível a aplicação da lei Maria da Penha a relações entre pessoas do sexo biológico masculino, quando o papel de gênero atribuído a elas dentro da relação coincida com o socialmente atribuído e cobrado das mulheres.

"Considerando que a lei Maria da Penha foi editada para proteger a mulher contra violência doméstica, a partir da compreensão de subordinação cultural da mulher na sociedade, é possível estender a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação"

Além disso, o STF indicou a possibilidade de aplicação da lei em casos de violência entre casais homoafetivos femininos, reafirmando que a norma visa coibir a violência de gênero, independentemente da ultrapassada estrutura considerada tradicional de família.

Essa decisão também reafirmou que, embora a legislação use o termo "mulher", a interpretação deve ser ampliada, adotando uma perspectiva mais inclusiva e conforme os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Com a decisão do STF, os magistrados e operadores do direito devem estar atentos à possibilidade de aplicar as medidas protetivas de urgência previstas na lei Maria da Penha também em favor de homens gays vítimas de violência doméstica, quando caracterizada a vulnerabilidade de gênero ou a violência no âmbito familiar.

Esse entendimento evita que as vítimas fiquem desamparadas por uma interpretação restritiva e anacrônica da lei, que negue proteção com base em categorias jurídicas inadequadas à complexidade das relações sociais contemporâneas. A intervenção penal deve ser pautada pela efetiva proteção da vítima, sem reforçar padrões discriminatórios, estereótipos ou práticas policiais e judiciais abusivas.

A decisão do STF inaugura uma interpretação constitucional inclusiva, que rompe com o modelo tradicional cis-heteronormativo e reconhece a dignidade da pessoa humana em sua dimensão plural e diversa.

Esse movimento está em consonância com a doutrina da proteção integral e com a jurisprudência internacional, que orienta a obrigação positiva do Estado de proteger todas as pessoas contra a violência, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Ao mesmo tempo, desafia o campo jurídico a desenvolver novas categorias analíticas e instrumentos adequados para lidar com as especificidades das relações afetivas não tradicionais e das violências que nelas se manifestam.

Essa decisão gera um desafio teórico importante: como proteger homens gays vítimas de violência doméstica sem subutilizar a lógica protetiva da Maria da Penha, mas também sem aplicar uma lei feita para combater a desigualdade de gênero?

Aspectos criminais relevantes

Do ponto de vista penal, a decisão amplia o rol de sujeitos passivos possíveis nos crimes de violência doméstica e familiar previstos na lei Maria da Penha, incluindo as mulheres trans e travestis. Isso significa que, a partir do reconhecimento da identidade de gênero, estas pessoas devem ser protegidas em casos de violência praticada por cônjuges, companheiros ou familiares.

O Direito Penal, nesse contexto, abandona uma concepção biologizante e passa a adotar uma perspectiva afirmativa e inclusiva, que leva em consideração a identidade de gênero como elemento determinante na aplicação da norma.

Outro ponto de destaque é a extensão das medidas protetivas de urgência - como o afastamento do(a) agressor(a) do lar, proibição de contato e aproximação - às mulheres trans e travestis vítimas de violência doméstica. Tal medida reforça a necessidade de atuação preventiva do Estado, evitando a revitimização e promovendo a proteção integral das pessoas vulneráveis.

A decisão do STF dialoga diretamente com a política criminal de prevenção e combate à violência baseada no gênero, que não se restringe ao sexo biológico, mas inclui também as expressões identitárias que são historicamente marginalizadas e expostas a maior risco de violência.

O reconhecimento da aplicação da Lei Maria da Penha à população trans e a casais homoafetivos é um passo importante para enfrentar o grave cenário de violência contra pessoas LGBTI+ no Brasil, país que figura entre os que mais registram assassinatos de pessoas trans no mundo.

Apesar do avanço, a decisão suscita debates doutrinários e jurisprudenciais. Uma das principais questões diz respeito à aplicação da lei em relações homoafetivas masculinas. Assim, permanece o desafio de identificar até que ponto o fator "gênero" - e não apenas o sexo ou identidade de gênero - deve ser o elemento central para a aplicação diferenciada da lei.

Outra controvérsia envolve a capacitação dos operadores do direito para lidar com a diversidade de gênero, as novas formações de famílias e orientação sexual, especialmente considerando que muitas vítimas trans e travestis enfrentam discriminação institucional quando buscam auxílio no sistema de justiça criminal.

A decisão do STF representa um avanço expressivo na proteção penal da população LGBTI+, especialmente das mulheres trans e travestis, reconhecendo que a violência doméstica e familiar se manifesta também nas relações não heteronormativas, e representa um avanço jurídico e político na proteção das pessoas LGBT+ e na afirmação de uma justiça criminal mais inclusiva e sensível às desigualdades estruturais de gênero e sexualidade.

Contudo, é preciso que o Poder Legislativo e os órgãos do sistema de justiça avancem na regulamentação e efetivação dos direitos da população LGBTI+ que não se enquadram na literalidade da lei, mas que enfrentam cotidianamente as mesmas violências em seus lares.

A população LGBTI+ não pode continuar à margem do sistema protetivo penal. O Direito deve evoluir não apenas em sua interpretação, mas também em suas práticas institucionais, para garantir a vida, a integridade física e a dignidade de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero ou orientação sexual.