Reconhecimento de pessoas e o Tema 1.258/STJ: A consolidação de um paradigma garantista contra erros judiciários
terça-feira, 1 de julho de 2025
Atualizado em 30 de junho de 2025 09:10
A 3ª seção do STJ, na sessão do dia 11/6/25, julgou conjuntamente os recursos especiais 1.953.602/SP, 1.986.619/SP, 1.987.628/SP e 1.987.651/RS, da relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, fixando teses quanto ao Tema repetitivo 1.258/STJ, cujo objetivo era "Definir o alcance da determinação contida no art. 226 do CPP e se a inobservância do quanto nele estatuído configura nulidade do ato processual".
Amadurecimento jurídico do debate nos Tribunais Superiores
O reconhecimento de pessoas - especialmente na modalidade fotográfica - tem ocupado posição relevante nos debates sobre a produção probatória no processo penal brasileiro. A doutrina e a jurisprudência vêm identificando sua potencialidade lesiva a direitos fundamentais, sobretudo diante do desrespeito ao procedimento previsto no art. 226 do CPP.
Ao longo dos últimos anos, o sistema de justiça criminal passou por um processo de amadurecimento, deixando de tratar esse dispositivo como simples recomendação e assumindo sua força vinculante. Essa transformação se consolidou a partir de um conjunto articulado de decisões judiciais e iniciativas normativas, que evidenciam um novo paradigma garantista, científico e comprometido com a prevenção de erros judiciários. A consolidação definitiva do entendimento se deu com o julgamento do Tema repetitivo 1.258/STJ.
O primeiro precedente marcante sobre o tema foi o Habeas Corpus 598.886/SC, julgado em 27/10/20, pela 6ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz. Naquela oportunidade, o Tribunal sinalizou de forma clara que o art. 226 do CPP não é norma programática ou indicativa, mas sim regra jurídica cogente. Reconheceu-se que o desrespeito aos seus incisos pode comprometer a validade do reconhecimento. A decisão, amplamente difundida na comunidade jurídica, também ressaltou o risco de que reconhecimentos precários - especialmente os realizados por meio da exibição isolada de fotografias - possam ensejar condenações injustas, sobretudo quando são o único ou o principal elemento de autoria nos autos.
No Habeas Corpus 652.284/SC, julgado em 27/4/21, da relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a 5ª turma referendou o precedente da 6ª turma, uniformizando, assim, a jurisprudência do STJ sobre o tema.
No julgamento do Habeas Corpus 712.781/RJ, em 15/3/22, novamente sob a relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, a 6ª turma avançou sobre o tema, reafirmando os parâmetros fixados no precedente anterior e introduzindo importante refinamento técnico ao considerar inválido o reconhecimento fotográfico informal, ainda que posteriormente confirmado em juízo.
A turma entendeu que tal ratificação não supre o vício originário do procedimento, pois a memória da testemunha já estaria contaminada pela exibição anterior, muitas vezes isolada e sugestiva. A decisão também criticou a prática do show-up, isto é, o reconhecimento em que apenas uma pessoa é apresentada à vítima ou testemunha, sem qualquer cuidado para a neutralidade da cena ou para a mitigação de vieses cognitivos e raciais.
A evolução do entendimento ganhou novo impulso normativo com a edição da resolução 484/22 pelo CNJ, publicada em 19/10/22. A norma foi elaborada por um grupo de trabalho multidisciplinar, composto por juristas, magistrados e especialistas em psicologia do testemunho. Seu objetivo foi estabelecer diretrizes vinculantes para a realização do reconhecimento de pessoas no âmbito dos procedimentos investigativos e processuais penais.
A resolução assume expressamente que o reconhecimento equivocado de pessoas constitui uma das principais causas de condenações injustas no Brasil. Assim, impõe o cumprimento rigoroso das etapas procedimentais, exige motivação concreta para a realização do ato e estabelece o direito à assistência jurídica do reconhecido durante o procedimento.
Mais recentemente, em 2024, o CNJ publicou o Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas, documento técnico e orientador que detalha as bases científicas da resolução 484/221. O documento destaca os fundamentos da psicologia da memória, os fatores que comprometem a acurácia do reconhecimento (como tempo decorrido, visibilidade, presença de armas, estresse, entre outros) e os principais vieses cognitivos e estruturais que podem afetar o processo, especialmente quando envolvem pessoas negras. O Manual propõe ainda boas práticas para as etapas do reconhecimento: entrevista prévia, instruções neutras, composição adequada de alinhamentos (físicos ou fotográficos), registro do grau de confiança do reconhecedor e critérios objetivos para a avaliação judicial da prova produzida.
Por fim, relevante destacar nesse histórico sobre a matéria que a 2ª turma do STF, no julgamento do recurso em Habeas Corpus 206.846/SP, em 22/2/22, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, fixou a seguintes diretrizes a respeito do tema:
1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa.
2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas.
3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.
No julgamento do Habeas Corpus 245.814, em 27/11/24, da relatoria do ministro Edson Fachin, a mesma 2ª turma considerou inclusive a nulidade das provas subsequentes ao reconhecimento realizado sem observância à disciplina do art. 226 do CPP.
Em contrapartida, a 1ª turma tem admitido a ratificação em juízo do reconhecimento falho, desde que confirmado pelo conjunto probatório. Nesse sentido: HC 249.618 AgR, relatora min. Cármen Lúcia, 1ª turma, julgado em 17/2/25; HC 247.687 AgR, relator min. Cristiano Zanin, 1ª turma, julgado em 12/11/24.
Constatada a divergência sobre o tema, o STF afetou o agravo em RE 1.467.470, para julgamento sob o rito de repercussão geral - Tema 1.380/STF, com o objetivo de definir se "se o reconhecimento de pessoa investigada ou processada pela prática de ilícito criminal sem a observância do procedimento do art. 226 do CPP viola as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas (CF/1988, art. 5º, LIV, LV e LVI)".
Julgamento do Tema repetitivo pelo STJ
A trajetória histórica apresentada no item anterior subsidia a compreensão da consolidação do Tema 1.258/STJ, cujo julgamento se iniciou com a sustentação oral dos defensores públicos Eduardo Valadares de Brito e Jair Soares Júnior, representando dois recorrentes. Na fala dos defensores, destacou-se que em 83% dos reconhecimentos equivocados foram indicadas pessoas negras2. Como amicus curiae, falou o defensor público do Estado do Rio de Janeiro, Marcos Paulo Dutra Santos, ressaltando o caso do porteiro Paulo Alberto, apreciado pela 3ª seção no Habeas Corpus 769.783/RJ, que tratou de pessoa submetida a 62 persecuções penais em razão de reconhecimento fotográfico3. Márcio Guedes Berti falou pela ANACRIM e trouxe estatística elaborada por David Metzker revelando que, entre 2023 e 2025, já foram anulados pelo STJ 641 reconhecimentos4.
Guilherme Ziliani Carnelós, pelo IDDD - Márcio Thomaz Bastos, e Dora Cavalcanti, pelo Innocence Project Brasil, destacaram a contaminação da memória humana, o que impede a repetibilidade da prova. Ressaltou-se, no mais, que se trata de prova epistemologicamente fraca, conforme já assentado no julgamento do Habeas Corpus 712.781/RJ, devendo o Estado, diante dos avanços tecnológicos, primar por provas mais seguras. Por fim, André Estevão Ubaldino Pereira, procurador de Justiça do MP/MG, defendeu que o reconhecimento pessoal deve ser utilizado para se reduzir o número de suspeitos e não propriamente como prova de autoria, pugnando, por fim, pelo reconhecimento da imprestabilidade completa e absoluta do reconhecimento sem observância das formalidades do art. 226 do CPP.
Após as sustentações orais, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, destacou a contribuição do ministro Rogério Schietti Cruz, que trouxe um novo olhar para o tema. Rememorou, em conjunto com o caso de Paulo Alberto, o caso de Carlos Edmilson, condenado a mais de 170 anos, com base em reconhecimentos falhos (Habeas Corpus 870.636/SP5). Ressaltou, ainda, que o reconhecimento fotográfico não deve ser considerado prova inicial, pois o reconhecimento não é ato complexo. No mais, votou pela reafirmação da jurisprudência do STJ, no sentido de que "a rigorosa observância do art. 226 do CPP não é mero formalismo estéril; pelo contrário, possui fundamentação técnico-científica sólida e respaldo em políticas legais de redução de erros". Cuida-se de disciplina legal que protege o inocente e traz maior efetividade na apuração dos fatos, reduzindo a margem de erros.
O julgamento destacou que estudos científicos em psicologia do testemunho e neurociência cognitiva confirmam que o reconhecimento visual de suspeitos é falho, especialmente sob fatores como estresse, iluminação, tempo de observação, foco na arma e diferenças raciais entre testemunha e suspeito. A memória humana é reconstrutiva e facilmente sugestionável, podendo gerar falsas memórias. O testemunho da vítima, embora não seja fraudulento, deve ser analisado com cautela devido a fatores que podem contaminar a prova e criar memórias corrompidas. Mesmo um depoimento detalhado não garante a exatidão dos fatos, exigindo corroboração e congruência com outras provas.
Destacou-se que pequenas alterações no procedimento de reconhecimento, como a exibição de uma única foto ou a indução da testemunha sobre quem a polícia acredita ser o culpado, podem levar a identificações falsas. O reconhecimento por fotografia, em particular, apresenta limitações como a qualidade da imagem, a data da foto e a ausência de características físicas importantes. Um ponto relevante é que o reconhecimento é cognitivamente irrepetível. A primeira exposição do suspeito à testemunha altera a memória, podendo gerar o "efeito do reforço da confiança", em que a testemunha incorpora a imagem do suspeito como autor, mesmo que incerta inicialmente. Se a primeira identificação foi inadequada, as subsequentes estarão comprometidas, tornando a contaminação da memória irreversível. O voto faz referência ainda a um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que revelou 58 erros em reconhecimentos fotográficos, sendo 80% envolvendo pessoas negras e pardas6.
Firmou-se, dessa forma, que um reconhecimento irregular, seja fotográfico ou pessoal, é inválido e deve ser desconsiderado pelo julgador. A ratificação em juízo de um reconhecimento inicialmente viciado não o convalida. A nulidade do reconhecimento inicial contamina os subsequentes, especialmente se não houver outras provas independentes. No entanto, se a vítima ou testemunha já conhecia o suspeito, o reconhecimento pessoal é desnecessário. Embora para a prisão preventiva, recebimento de denúncia e pronúncia se exija apenas indícios suficientes de autoria, e não prova conclusiva, o reconhecimento irregular, por si só, não é suficiente para embasar essas decisões. É importante que existam outros indícios independentes de autoria para justificar tais medidas.
Por fim, para a sentença condenatória, o reconhecimento, seja presencial ou por fotografia, só é válido para identificar o réu e servir como prova de autoria se observar as formalidades do art. 226 do CPP e for submetido ao contraditório e à ampla defesa na fase judicial. Mesmo com a observância dessas regras, o reconhecimento deve ser confrontado com as demais evidências para atenuar a fragilidade inerente à prova testemunhal. O julgador pode se convencer da autoria por outras provas válidas, desde que produzidas em contraditório judicial. Em suma, a ciência demonstra a fragilidade da memória humana no reconhecimento de pessoas. Por isso, o art. 226 do CPP é essencial para garantir a qualidade da prova, evitando erros judiciais. Reconhecimentos feitos sem seguir o procedimento são inválidos e não devem ser a única base para prisões ou condenações, sendo indispensáveis outras provas para confirmar a autoria.
Nos casos concretos analisados, deu-se provimento ao REsp 1.953.602/SP, em virtude de o alinhamento ter sido realizado com pessoas cerca de 15 cm mais baixas que o réu, além de as testemunhas terem afirmado que os autores do delito usavam boné e mantinham a cabeça abaixada. Destacou-se, por fim, que as imagens da agência assaltada não foram juntadas como prova. Deu-se provimento, igualmente, ao REsp 1.987.651/RS, em virtude de uma das vítimas ter tirado foto das fotos que lhe foram apresentadas, mostrando a outra vítima e pedindo ajuda na identificação. Ademais, o réu foi visto entrando na delegacia escoltado por policiais, o que pode ter influenciado no seu reconhecimento. Lado outro, negou-se provimento aos recursos especiais 1.986.619/SP e 1.987.628/SP, em razão da existência de provas autônomas e independentes de autoria.
O ministro Rogério Schietti Cruz, ao acompanhar o relator, criticou a ausência de aderência do sistema de justiça às orientações já firmadas pelo STJ a respeito do reconhecimento de pessoas, o que se nota pela pesquisa publicada por David Metzker, a respeito do número de concessões da ordem quanto ao tema7. No mais, sugeriu que, no item 2 da tese fixada, fosse considerado inválido o reconhecimento realizado com alinhamento de pessoas não semelhantes, ainda que de forma justificada. Sugeriu que constasse da tese a necessidade de o reconhecimento guardar relação com o conjunto probatório e de não se tratar de providência necessária quanto a vítima conhece o autor dos fatos. Por fim, sugeriu que fosse incorporada na tese as diretrizes da resolução 484 do CNJ, em especial os arts. 5º, § 1º, 7º e 8º. Os acréscimos foram acolhidos pelo relator.
Assim, ao cabo, foram fixadas as seguintes teses pela 3ª seção do STJ:
1) As regras postas no art. 226 do CPP são de observância obrigatória tanto em sede inquisitorial quanto em juízo, sob pena de invalidade da prova destinada a demonstrar a autoria delitiva, em alinhamento com as normas do CNJ sobre o tema. O reconhecimento fotográfico e/ou pessoal inválido não poderá servir de lastro nem a condenação nem a decisões que exijam menor rigor quanto ao standard probatório, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia ou a pronúncia.
2) Deverão ser alinhadas pessoas semelhantes ao lado do suspeito para a realização do reconhecimento pessoal. Ainda que a regra do inciso II do art. 226 do CPP admita a mitigação da semelhança entre os suspeitos alinhados quando, justificadamente, não puderem ser encontradas pessoas com o mesmo fenótipo, eventual discrepância acentuada entre as pessoas comparadas poderá esvaziar a confiabilidade probatória do reconhecimento feito nessas condições.
3) O reconhecimento de pessoas é prova irrepetível, na medida em que um reconhecimento inicialmente falho ou viciado tem o potencial de contaminar a memória do reconhecedor, esvaziando de certeza o procedimento realizado posteriormente com o intuito de demonstrar a autoria delitiva, ainda que o novo procedimento atenda os ditames do art. 226 do CPP.
4) Poderá o magistrado se convencer da autoria delitiva a partir do exame de provas ou evidências independentes que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento.
5) Mesmo o reconhecimento pessoal válido deve guardar congruência com as demais provas existentes nos autos.
6) Desnecessário realizar o procedimento formal de reconhecimento de pessoas, previsto no art. 226 do CPP, quando não se tratar de apontamento de indivíduo desconhecido com base na memória visual de suas características físicas percebidas no momento do crime, mas, sim, de mera identificação de pessoa que o depoente já conhecia anteriormente.
Evolução dogmática do tratamento das provas no processo penal
Doutrina já tradicional no campo das ilegalidades probatórias divide o tratamento dispensado às provas ilícitas e provas ilegítimas8. A vedação à admissão das provas ilicitamente obtidas veio positivada enquanto direito fundamental, no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. A inadmissão das provas ilícitas veio finalmente positivada no CPP somente em 2008. Desde então, definiu-se como ilícitas as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais, com o efeito processual do desentranhamento, o que implica vedação à sua valoração pelo juízo. Já as provas ilegítimas, ainda que sem previsão legal do termo, seriam aquelas produzidas em violação a normas processuais, notadamente os meios de prova previstos no CPP. Estas são regidas sob a teoria das nulidades, em termos próximos a violações de normas de natureza procedimental, condicionadas a demonstração de prejuízo, em aplicação do princípio do pas de nullité sans grief.
Notavelmente, o entendimento firmado pelo STJ sobre o reconhecimento atípico de pessoas tem se aproximado do regime das provas ilícitas - o que não representa erro, mas acerto, diante das especificidades desse meio de prova. Vejamos.
O reconhecimento de pessoas, quando produzido em sede policial - a grande maioria dos casos - é tecnicamente elemento informativo produzido sem contraditório judicial, diferentemente do que ocorre com outros meios de prova definidos no CPP, tal como o testemunho. Sua condição de irrepetibilidade, reconhecida em estudos científicos9, demonstra o efeito psicológico da pessoa submetida ao procedimento para "reconhecer" no sentido de que ela, na verdade, "aprende" quem "foi" o autor do delito, sendo inocente ou culpado, o que faz aproximar tal medida policial como algo mais próximo dos clássicos meios de obtenção de prova extraprocessuais, estes submetidos ao regime das provas ilícitas, em que a legalidade estrita, em certo sentido, "compensa" a mitigação sobre o exercício efetivo do contraditório.
Além disso, há uma deficiência instrumental da teoria das nulidades aplicadas aos meios de prova, diferentemente do que ocorre com as violações de normas procedimentais, como relativas à ordem da audiência (art. 400) e às regras de citação (arts. 351 e sgs.). Isso porque quando submetidas ao princípio do prejuízo, a convalidação ou sanabilidade dos atos atípicos de ordem procedimental pode ser mais adequadamente medida em relação aos princípios gerais do direito processual penal, como contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e imparcialidade do juízo.
No reconhecimento de pessoas produzido à revelia da forma legal prevista no art. 226, como fica o exame de prejuízo? Não sendo possível ser sanado pela repetição em juízo, dado o efeito psicológico sobre quem já reconheceu o investigado anteriormente, o que seria capaz de sanar o ato viciado? Contraditório posterior só é possível ao se invocar os termos próprios do devido processo legal, ou, quando muito, a partir de possível induzimento por parte da autoridade policial, cuja comprovação remete àquilo que muito raramente fora registrado nos autos. Aqui, como se observa, porém, há novamente a infeliz confusão entre forma e matéria, entre licitude e o valor epistêmico atribuído ao resultado do meio de prova.
O exame de prejuízo, em verdade, evidencia um embate epistemológico no processo penal. De um lado, encontra-se a herança do esquema inquisitorial, que condiciona a validade do ato à verdade real alcançada e apreendida pelo juízo, nos termos do original e arcaico art. 566 do CPP, o qual expressa que "Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa". De outro lado, no viés garantista, o condicionamento do prejuízo é examinado à luz dos princípios fundamentais relativos ao processo penal. No caso do reconhecimento pessoal, essa tensão é aguda: trata-se de um meio de prova cuja própria instrumentalidade é produzir verdade/convicção - o que dificulta aferir o prejuízo, já que a prova viciada, por si só, influencia a decisão.
Compreendendo-se, porém, que a decisão judicial deve se motivar a partir da verdade processual, em regra, sobre a prova produzida em contraditório judicial, depara-se com um beco sem saída, especialmente a partir do entendimento de que a condenação não é elemento hábil a justificar o prejuízo. O princípio da presunção de inocência, por sua vez, deve condicionar o ato de reconhecimento no ante, não no posteriori, isto é, deve orientar as autoridades ao cumprimento estrito da legalidade do ato de reconhecimento de pessoas, destinado a evitar, tanto quanto possível, a incriminação odiosa de pessoas inocentes. Isso vale especialmente para um país que tem o seu Sistema de Justiça Criminal marcado pelo racismo estrutural, em que pessoas negras são desproporcionalmente vítimas de reconhecimentos equivocados10 (Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais, 2020).
Trata-se o reconhecimento atípico, enfim, de ato viciado que não permite exame posterior adequado para sanabilidade pela teoria do prejuízo. A instrumentalidade processual, de modo amplo, no escopo do devido processo legal, que condiciona a produção de prova ao regime de legalidade e a vincula a outros princípios constitucionais, como contraditório e ampla defesa, mas principalmente o princípio da presunção de inocência, na busca da mitigação racional do poder punitivo, levam à conclusão dogmática - de matriz garantista - de que o reconhecimento de pessoas feito à margem de seu procedimento específico deve ser regrado dentro do sistema regulatório da prova ilícita, e não a partir da teoria das nulidades, pois neste âmbito, o exame do prejuízo é inadequado, servindo apenas de eco ao ultrapassado esquema epistemológico inquisitorial, sustentado na ideia de verdade real.
É possível argumentar que o STJ eleva o reconhecimento atípico à nulidade absoluta e não exatamente à prova ilícita. No entanto, no direito processual penal, até mesmo a nulidade absoluta é passível de convalidação pela preclusão e também a exame de prejuízo (STF, precedentes). Daí que nos parece mais adequado falar em prova ilícita, ainda que relativa à norma processual.
Além disso, submetendo-se ao regime da prova ilícita, ainda se faz possível a aplicações de suas exceções, previstas no §1º e 2º do art. 157, isto é, a da fonte independente e a da descoberta inevitável. Pode ocorrer a fonte independente, por exemplo, quando um novo reconhecimento é feito por pessoa diversa do primeiro viciado. Quanto à hipótese da descoberta inevitável, aplica-se quando, por exemplo, outro meio de prova denota caminho idôneo à descoberta da autoria do delito. São instrumentos, vale dizer, muito mais adequados que daquele do sistema das nulidades absolutas, cuja referência, de maneira ampla, é o interesse público.
Dogmaticamente, ademais, o rigor legal com o reconhecimento de pessoas atende a alguns valores imediatos e outro mediato. Os imediatos são: garantir o máximo possível de confiança na prova produzida, minimizando o tanto quanto possível o erro judiciário e; direcionar a atividade policial à técnica e ao profissionalismo, evitando arbítrios e informalidades de resultados deletérios, assim fazendo as forças policiais se aproximarem do regime jurídico democrático, com respeito aos direitos fundamentais de cidadãos suspeitos e investigados. De efeito mediato, temos a elevação da qualidade da prestação jurisdicional, que se direciona a corrigir o caminho da seletividade penal, garantindo eficiência punitiva com racionalidade democrática.
1 CNJ. Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas. Conforme a Resolução CNJ n. 484/2022. Disponível aqui. Acesso 16/6/25.
2 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25.
3 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25.
4 METZKER, David. A falibilidade do reconhecimento de pessoas na jurisprudência do STJ: Dados de 2023 a 2025 e a expectativa pelo julgamento do Tema 1.258. Disponível aqui. Acesso em 16/6/25.
6 Disponível aqui. Acesso em 18/6/25.
7 METZKER, David. A falibilidade do reconhecimento de pessoas na jurisprudência do STJ: Dados de 2023 a 2025 e a expectativa pelo julgamento do Tema 1.258. Disponível aqui. Acesso em 16/6/25.
8 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
9 MATIDA, Janaína, & CECCONELLO, William W. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal (RBDPP), v. 7, n. 1, 2021. Disponível aqui; e CECCONELLO, William W.; STEIN, Lilian M. Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicologia Latinoamericana, v. 38, n. 1, p. 172-188, 2020. Disponível aqui.
10 COLÉGIO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS GERAIS. Relatório sobre reconhecimento fotográfico em sede policial: análise dos casos encaminhados pelos defensores públicos. Rio de Janeiro: DPE/RJ/Condege, 2020.