3ª seção do STJ entende pela necessidade de autorização judicial para a requisição de dados ao Coaf
terça-feira, 20 de maio de 2025
Atualizado em 19 de maio de 2025 14:43
No dia 14/5/25, por 6 votos a 3, a 3ª seção do STJ fixou a tese de que "a solicitação direta de Relatório de Inteligência Financeira pelo Ministério Público ao Coaf sem autorização judicial é inviável" e que "o Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta de dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial". O julgamento teve como paradigma os processos RHC 174.173, RHC 196.150 e REsp 2.150.571
O ministro Messod Azulay propôs em seu voto a necessidade de autorização judicial para a requisição ativa dos dados, apesar da constitucionalidade do compartilhamento espontâneo já firmado pelo STF. Para o ministro, os dados relativos do Coaf são sensíveis e requerem respeito à reserva de jurisdição.
Nesta edição, os autores Vinicius Vasconcellos e Maria Eduarda Amaral abordam as restrições do Tema 990 e o impacto do atual entendimento do STJ, a evolução jurisprudencial sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf pelos órgãos de investigação e as possíveis consequências práticas da mudança de compreensão sobre o tema.
1. As restrições do Tema 990/STF e o impacto no atual entendimento do STJ
O entendimento firmado em 2019 pelo STF no julgamento do Tema 990 deixava aberto o campo de debate sobre a necessidade de autorização judicial para requisição de dados do Coaf. Embora o STF tenha firmado a tese no sentido de autorizar o compartilhamento de RIFs de ofício pelo Coaf para as autoridades investigativas, no próprio julgamento os ministros apresentaram restrições.
O ministro Dias Toffoli, relator do Tema 990, em seu voto destacou ser importante enfatizar a "absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados" e que "esse ponto reforça a ausência de poder requisitório do Ministério Público junto à Unidade de Inteligência brasileira, que simplesmente produz atividade de inteligência, sem, contudo, certificar a legalidade ou não das operações financeiras analisadas". No mesmo sentido, o ministro Barroso entendeu que "Ministério Público não pode requisitar à Receita Federal, de ofício, ou seja, sem tê-las recebido, da Receita, informações protegidas por sigilo fiscal. Neste caso, se impõe autorização judicial".
Ou seja, o próprio Plenário do STF já indicava limites no julgamento do Tema 990, o que atrai a necessidade do delineamento de sistemáticas de controle distintas quanto ao compartilhamento de RIFs nas hipóteses de ofício pelo Coaf e quando os dados forem requeridos pelas autoridades de persecução penal
Por isso, a atividade do Coaf enquanto órgão fiscalizador e o seu dever de comunicar possíveis fraudes em nada se confunde com a hipótese em que os órgãos de persecução requisitam diretamente dados de inteligência financeira para subsidiar suas investigações. Trata-se de uma diferenciação necessária a partir de um controle de legalidade e do devido processo, o que impõe entendimentos específicos para cada cenário.
2. A evolução do entendimento sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf
No STF, não há consenso sobre a necessidade de autorização judicial para a requisição direta de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf. Enquanto a 1ª turma da Corte Suprema admite a requisição direta, a 2ª turma adota uma posição mais restritiva.
O julgamento do HC 201.965 expressa essa posição mais cautelosa da 2ª turma do STF. No seu voto, o ministro Gilmar Mendes esclareceu que "é importante pontuar que para além do compartilhamento 'espontâneo' de informações (RIF espontâneo ou de ofício), o Coaf também realiza outra modalidade de compartilhamento, que é chamado de 'disseminação em face de pedido da autoridade competente' (RIF a pedido ou por intercâmbio)", sendo entendido pela 2ª turma que "a legislação aplicável não admite a elaboração de RIFs 'por encomenda' do Ministério Público ou da autoridade policial" (HC 201965, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª turma, j. 30/11/21). Da mesma forma, o STJ já tinha se posicionado no sentido de que o fato de a Receita Federal poder valer-se da representação fiscal para fins penais não autoriza que o MP requisite diretamente os mesmos dados sem autorização judicial (RHC 83.447, Rel. Min. Sebastião Reis, 6ª turma, j. 9/2/22).
Por outro lado, em abril de 2024, no julgamento da RCL 61.944, a 1ª turma do STF confirmou que compartilhamento de dados pode ocorrer de forma espontânea pelo Coaf ou a requerimento da autoridade policial sem prévia autorização judicial. Esse mesmo entendimento era compartilhado pela 5ª turma do STJ (AgRg no RHC 200983, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 17/12/24; AgRg no RHC 192604, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 4/11/24). Apesar disso, mesmo depois do julgamento da RCL 61.944, a 6ª turma do STJ reafirmou, em diversas oportunidades, a ilegalidade de compartilhamento de RIFs por encomenda sem autorização prévia (RHC 203.578, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 5/11/24; RHC 201841, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo, j. 20/3/25).
Ou seja, até o dia 14/5/25 não havia consenso entre as principais Cortes do país em relação ao assunto. Enquanto a 5ª turma seguia o entendimento da 1ª turma do STF, a 6ª turma, por outro lado, adotava um entendimento mais restritivo, na linha da 2ª turma do STF.
Por isso, ainda que permaneça a divergência de entendimento no âmbito da Corte Suprema, a tese fixada pela 3ª seção do STJ é um divisor de águas na discussão, pois respeita os direitos e garantias fundamentais e estabelece a necessária limitação ao poder de requisição de dados sensíveis pelas autoridades de persecução penal.
3. O voto do ministro Messod Azulay e os demais ministros
O entendimento sobre o tema foi liderado pelo ministro Messod Azulay, o qual entendeu que o Coaf não possui atividade investigatória, sendo sua função receber e analisar informações para elaborar relatórios sobre movimentações financeiras atípicas. E, por lidarem com dados financeiros protegidos, esses relatórios são classificados como sensíveis.
Na avaliação do ministro Messod, embora o compartilhamento espontâneo dessas informações seja legítimo, nos termos do art. 15 da lei 9.613/1998, o envio a pedido exige autorização judicial. Ele destacou que o acesso direto aos RIFs, ainda que não configure tecnicamente quebra de sigilo, envolve dados sensíveis e que, portanto, ampliar o escopo do Tema 990 para permitir requisições ativas violaria o princípio da reserva de jurisdição. Esse entendimento foi acompanhado pelos ministros Sebastião Reis Júnior, Reynaldo Soares da Fonseca, Joel Ilan Paciornik e os desembargadores convocados Otávio de Almeida Toledo e Carlos Cini Marchionatti.
Além disso, apesar de reconhecer a necessidade de manifestação do pleno do STF sobre o assunto, o ministro salientou que o contexto judicial de posições dissonantes evidencia a necessidade de equilíbrio entre a efetividade da investigação e a proteção de direitos fundamentais das pessoas investigadas, sendo tarefa do STJ decidir sobre o assunto, especialmente diante da elevada demanda da corte.
Os ministros Ribeiro Dantas, Rogério Schietti e Og Fernandes divergiram da maioria. Para o Ministro Og, o tema deveria ser decidido pelo STF já que foi objeto de repercussão geral, pois teria natureza integralmente constitucional. Já o ministro Schietti ressaltou o papel do MP nas investigações criminais, ressaltando que eventuais excessos não justificam impor limitações generalizadas à atuação do órgão, considerando contraditório permitir que o Coaf envie dados de forma espontânea, mas proibir que o MP os solicite ativamente.
4. Consequências Práticas da Mudança
A proposta do ministro Messod Azulay sagrou-se vencedora por 6 votos a 3. Com a mudança, podemos visualizar as seguintes consequências práticas imediatas:
- Maior legitimação dos poderes investigativos, visto que submetidos ao controle judicial: A partir da nova tese fixada pela 3ª seção do STJ, o Ministério Público e outros órgãos de persecução penal passam a depender, obrigatoriamente, de autorização judicial para requisitar diretamente RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira ao Coaf. Isso acarreta maior controle para acesso às informações, visto que a autorização judicial dependerá de justificação legítima da investigação e de sua justa causa.
- Ponderação de interesses em jogo: Considerando que as informações do Coaf não estão em poder das pessoas investigadas, não há risco de destruição ou manipulação, de modo que a necessidade de autorização judicial prévia não prejudica a persecução penal. Nesse sentido, devem ser estruturados mecanismos para que a prestação jurisdicional seja em prazo exíguo.
- Reforço à proteção de dados sensíveis: O entendimento confere maior proteção aos dados financeiros dos cidadãos, reconhecendo-os como sensíveis e submetidos à reserva de jurisdição. Essa proteção está em consonância com o direito fundamental à proteção de dados e ao princípio do devido processo legal.
- Impacto nas investigações criminais em andamento: Necessidade de reavaliação da legalidade das provas em Inquéritos e ações penais que tenham se baseado em RIFs obtidos diretamente pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, sem autorização judicial.
- Readequação dos fluxos entre órgãos investigativos e o Coaf: A decisão demandará mudanças práticas no modo como o MP e a polícia se relacionam com o Coaf, reforçando a atuação do Judiciário como instância de controle no acesso a dados financeiros. Deverá haver um maior planejamento de estratégias investigativas, reforçando a necessidade de demonstrar a justa causa e obter autorização judicial para acessar esses dados.
O voto do ministro Messod Azulay foi fundamental para a nova orientação, ao reconhecer que, embora o compartilhamento espontâneo de informações pelo Coaf seja legítimo, a requisição ativa exige autorização judicial. Tal distinção evita que as autoridades de persecução penal utilizem os mecanismos de inteligência financeira como instrumentos de devassa indiscriminada, afastando práticas que possam configurar verdadeiras "fishing expedition". A tese firmada consolida uma jurisprudência mais segura e equilibrada, valorizando a legalidade, a proporcionalidade e o respeito ao devido processo legal. Por fim, a decisão da 3ª seção do STJ fortalece o papel do Judiciário como instância de controle no uso de ferramentas sensíveis de investigação e reafirma o equilíbrio entre o poder investigatório estatal e a proteção de direitos individuais.