A porta amassada e o limite da suspeita: STJ reafirma a ilegalidade de abordagem policial desprovida de justa causa
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Atualizado em 13 de outubro de 2025 14:58
Em setembro de 2025, a 5ª turma do STJ voltou a enfrentar questão persistente no processo penal contemporâneo: a legalidade das abordagens policiais em via pública, especialmente quando motivadas por impressões genéricas ou por critérios meramente subjetivos.
No AgRg no HC 1.002.334/SP, o colegiado, por unanimidade, reconheceu a ilegalidade de uma busca pessoal e veicular fundada exclusivamente no mau estado de conservação do veículo (porta amassada), determinando, por consequência, o trancamento da ação penal instaurada com base nas provas derivadas da diligência considerada ilícita.
Essa decisão, relatada pelo ministro Ribeiro Dantas, soma-se à linha jurisprudencial que vem se consolidando no STJ e no STF, a qual rechaça a utilização de critérios vagos e arbitrários para a realização de buscas pessoais ou veiculares sem mandado judicial, exigindo-se, em todos os casos, a demonstração de fundada suspeita, nos termos do art. 244 do CPP.
O caso concreto: Entre a estética e a ilicitude
No caso analisado, a defesa impetrou habeas corpus com o objetivo de reconhecer a nulidade da abordagem e, consequentemente, das provas obtidas - o que resultaria no trancamento da ação penal. A ordem foi concedida monocraticamente e de ofício pelo relator no STJ, ensejando a interposição de agravo regimental pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
A motivação da abordagem, segundo os próprios autos, foi a constatação de que o veículo transitava com a porta amassada. Após a abordagem, foi identificado que o motorista se passou por guarda municipal e portava arma de fogo, posteriormente identificada como produto de furto. Entretanto, o que estava em julgamento era a legalidade da abordagem originária e a admissibilidade das provas obtidas a partir dela.
O Ministério Público sustentou que o estado do veículo autorizaria, por si só, uma verificação policial, mesmo sem a existência de suspeita concreta de prática delituosa. Para a acusação, a postura policial representaria mera diligência de rotina, sem caráter exploratório ou abusivo.
A 5ª turma, contudo, não acolheu esse argumento, por entender que a abordagem foi motivada exclusivamente por uma condição estética do veículo - insuficiente para configurar a "fundada suspeita" exigida pela Constituição Federal e pelo CPP para restringir direitos fundamentais em abordagens invasivas.
Fundada suspeita: Conceito, função e limites
A expressão "fundada suspeita", constante do art. 244 do CPP, é o principal critério para a realização de busca pessoal sem mandado judicial. Segundo o dispositivo:
"A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito (...)."
A doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que tal suspeita deve ser concreta, objetiva e justificada a partir de dados externos verificáveis - não bastando meras impressões subjetivas, intuitivas ou baseadas apenas no "tirocínio policial".
No julgamento em comento, a Corte reafirmou que:
"A mera situação de estar a bordo de veículo com a porta amassada não constitui, por si só, fundada suspeita, conforme precedentes desta Corte, sendo necessária a presença de elementos concretos para justificar a medida invasiva."
O STJ se alinha, aqui, a uma lógica probatória garantista, que busca proteger a integridade da esfera privada dos cidadãos, especialmente frente a abusos estatais travestidos de rotinas policiais. A sistematização do conceito de fundada suspeita cumpre, portanto, uma função de controle democrático do poder estatal, garantindo que o exercício do poder de polícia não desague em práticas arbitrárias, discriminatórias ou violadoras de direitos fundamentais.
A decisão está em sintonia com a evolução jurisprudencial dos Tribunais Superiores. Merece especial destaque o julgamento do HC 208.240/SP, ocorrido no âmbito do STF em abril de 2024, no qual se enfrentou a licitude de abordagens policiais fundadas em perfilamento racial. Ali, o STF fixou a seguinte tese:
"A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física".
Em ambos os precedentes - STJ e STF - vê-se um diálogo jurisprudencial em torno da mesma preocupação: evitar que a atividade policial, embora essencial à segurança pública, seja exercida de maneira discricionária, arbitrária, discriminatória ou divorciada do ordenamento jurídico. A abordagem de indivíduos sem embasamento em fatos objetivos e verificáveis, seja em função da aparência do carro, do nervosismo do condutor, da cor da pele ou de qualquer outro elemento subjetivo, é incompatível com o modelo de Estado Democrático de Direito.
A ilicitude da prova e o trancamento da ação penal
Reconhecida a ilegalidade da busca pessoal e veicular, a consequência jurídica foi inevitável: a nulidade das provas obtidas e o seu desentranhamento dos autos, nos termos do art. 157 do CPP. No caso, como os únicos elementos de prova foram obtidos diretamente da abordagem policial declarada ilícita, a consequência foi o trancamento da ação penal.
A decisão baseia-se na chamada teoria dos frutos da árvore envenenada (fruit of the poisonous tree), segundo a qual as provas derivadas de atos ilícitos são contaminadas por sua origem e, por isso, inadmissíveis em juízo, exceto se houver demonstração de fonte independente ou descoberta inevitável (art. 157, § 1º, do CPP) - o que não se verificava na espécie.
Precedentes convergentes: jurisprudência em consolidação
A decisão da 5ª turma no HC 1.002.334/SP não é um ponto fora da curva. Ela reforça uma jurisprudência coerente e reiterada, tanto do STJ quanto do STF, no sentido de que abordagens policiais desprovidas de elementos objetivos violam garantias constitucionais e geram nulidades insanáveis.
Entre os precedentes citados no voto do relator, destacam-se:
- STJ, HC 774.140/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz (25/10/22): Considera ilícita abordagem baseada apenas em denúncias anônimas não averiguadas;
- STJ, RHC 158.580/BA, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz (19/4/22): Rechaça como insuficiente o nervosismo do abordado como elemento para justificar busca pessoal;
- STF, HC 208.240/SP, Pleno (11/4/24): Proíbe abordagens fundadas em perfilamento racial e reafirma a exigência de indícios objetivos e verificáveis para buscas em via pública.
Esses precedentes reforçam a centralidade do princípio da legalidade estrita no exercício da atividade policial e da necessidade de contenção de práticas informais e discricionárias.
Policiamento ostensivo, estigmatização e discricionariedade
A decisão do STJ lança luz sobre uma realidade recorrente no cotidiano brasileiro: a seletividade e a estigmatização nas abordagens pessoais, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.
A utilização de justificativas genéricas - como "porta amassada", "nervosismo", "olhar desconfiado", "mudança de direção" - abre margem à atuação discriminatória, muitas vezes dirigida a determinados perfis raciais, sociais ou territoriais, em violação direta ao princípio da legalidade.
O voto do ministro Ribeiro Dantas é exemplar ao indicar que o estado de conservação do veículo não tem, por si só, relação direta com a posse de objetos ilícitos, sendo necessário um nexo racional e empiricamente verificável para legitimar a intrusão estatal.
Conclusão
O julgamento do AgRg no HC 1.002.334/SP representa mais um importante precedente na construção de um direito processual penal fiel ao sistema acusatório, às garantias constitucionais e à contenção do arbítrio estatal.
Ao rejeitar a pretensão do Ministério Público de validar uma abordagem fundada apenas nas condições de conservação do veículo, o STJ reafirma que a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade da intimidade e a legalidade das provas são pilares inegociáveis do processo penal democrático.
Mais do que aplicar normas, a Corte exerce seu papel contramajoritário, resguardando direitos fundamentais mesmo quando isso contraria expectativas sociais punitivistas ou práticas institucionais arraigadas.

