Acesso judicial direto a redes sociais e sistema acusatório
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Atualizado em 4 de agosto de 2025 07:50
A 5ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, julgou processo sigiloso (DJEN 8/4/2025), cuja síntese foi divulgada no Informativo Extraordinário de Jurisprudência 27, de 29 de julho de 2025. O caso suscita importante reflexão sobre os limites da atuação judicial em matéria probatória, especialmente na fase de decretação da prisão preventiva ou de outras medidas cautelares pessoais.
Segundo informações do inteiro teor do acórdão, desveladas na aludida edição extraordinária do Informativo, a discussão nos autos era saber se o magistrado pode, de forma direta, acessar redes sociais do investigado e utilizar informações ali disponíveis - de natureza pública - para fundamentar decisões constritivas, sem que isso configure violação ao sistema acusatório ou quebra de sua imparcialidade.
O STJ respondeu afirmativamente à indagação, considerando válida a conduta do juiz que, ao receber manifestação do Ministério Público com referência a conteúdo publicado em rede social aberta, acessa diretamente o perfil público do investigado para aferir a veracidade das informações. Concluiu-se não haver nulidade ou ilegalidade na atuação judicial, por se tratar de diligência de corroboração, fundada na economia processual e no princípio do livre convencimento motivado.
O sistema acusatório e os limites da atuação judicial
A decisão, à primeira vista, toca na vedação ao protagonismo probatório do juiz, imposta a partir da lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), que incluiu o art. 3º-A ao CPP e passou a vedar expressamente a iniciativa judicial na produção de provas, reforçando o modelo acusatório entre nós, segundo o qual as funções de acusar, defender e julgar são distintas e não se confundem.
Nesse paradigma, não cabe ao juiz empreender diligências probatórias de ofício, tampouco se imiscuir na investigação criminal para, por exemplo, buscar fontes informativas que subsidiem sua própria convicção decisória. A imparcialidade judicial pressupõe inércia, salvo diante de requerimento das partes e, ainda assim, respeitados os limites legais da atuação jurisdicional.
Por isso, qualquer atuação do juiz fora desses contornos deve ser vista com extrema cautela, sobretudo quando implicar prejuízo à defesa ou reforço de teses acusatórias, ainda que de forma indireta.
Particularidade do caso concreto e aparente atuação judicial de mera corroboração
No caso julgado pelo STJ, uma peculiaridade fática merece ser considerada. Segundo destacado no Informativo, a iniciativa investigativa originou-se do Ministério Público, que, ao requerer a prisão preventiva do investigado, fez referência ao conteúdo de suas redes sociais. O magistrado, ao que tudo indica, limitou-se a consultar as fontes abertas indicadas, para confirmar a veracidade da informação prestada. A iniciativa probatória, portanto, permaneceu nas mãos da acusação.
Trata-se, pois, a princípio, de diligência confirmatória e não exploratória. O juiz não partiu da própria iniciativa para buscar elementos informativos desfavoráveis ao investigado. Apenas conferiu o conteúdo já referenciado pela parte acusadora, com base em dados públicos, com acesso disponível e sem a necessidade de observância da reserva de jurisdição.
Neste contexto, a atuação do juiz, embora com ares investigativos que deveriam, a nosso ver, ser evitados para manter a coerência orgânica do processo penal de índole acusatória, pode ser enquadrada como diligência suplementar, voltada à formação do convencimento e amparada no art. 156, II, do CPP. Em paralelo, o parágrafo único do art. 212 do CPP, utilizado pela 5ª turma na fundamentação do acórdão sob análise, também autoriza o juiz a tomar providências para o esclarecimento de dúvidas relevantes, desde que o faça sem assumir o protagonismo da parte no processo. A linha entre imparcialidade e inquisitividade, contudo, é tênue e exige vigilância constante.
O risco de normalização da investigação judicial
Ainda que se reconheça a razoabilidade da decisão do STJ diante do caso concreto, é sempre prudente advertir contra os riscos de naturalização dessa prática. A aceitação da consulta judicial direta a redes sociais ou a outras fontes abertas de informação, mesmo que em resposta a provocação ministerial, pode representar perigoso precedente se for replicada sem os devidos freios.
O sistema acusatório exige do magistrado não apenas imparcialidade formal, mas neutralidade estrutural e funcional. Quando o juiz passa a buscar provas ou validar diretamente informações obtidas pela acusação, mesmo em fontes públicas abertas, aproxima-se de uma zona cinzenta entre a jurisdição e a persecução penal.
A lógica processual penal, especialmente em matéria cautelar, já é marcada por desigualdades estruturais. Quando o magistrado - sob a justificativa de economia processual - amplia sua atuação para validar hipóteses acusatórias de forma proativa, ainda que limitada, há perigoso incremento dessa assimetria. O investigado passa a enfrentar um Estado que, além de acusar, busca confirmar os próprios argumentos de forma autônoma, imediata e, em regra, desprovida de contraditório.
Tal movimento, no nosso sentir, deve ser contido. A prova deve ser produzida pelas partes e o juiz, como garante da legalidade, deve atuar como árbitro imparcial, não como coprotagonista da investigação.
Considerações finais
A decisão do STJ, embora juridicamente irrepreensível à luz dos elementos destacados do caso concreto - sobretudo a provocação do Ministério Público e o caráter público da informação -, não pode nortear a atuação judicial ordinária em casos penais, sob pena de colocar em risco a coerência orgânica do sistema acusatório.
É preciso reafirmar que a consulta judicial direta a fontes de informação fora dos autos deve ser absolutamente excepcional, motivada, devidamente justificada e sempre como elemento de confirmação (jamais com caráter exploratório). Sua legalidade dependerá da iniciativa probatória da acusação e da inexistência de alternativas processuais mais adequadas. Deve prevalecer a regra de iniciativa e produção probatória pelas partes e não pelo órgão julgador.
Ademais, mesmo diante da veracidade do conteúdo acessado, sua valoração deve ser feita com rigor metodológico, à luz das garantias constitucionais e, sempre que possível, do contraditório. A informação pública não é, por si só, prova idônea. É necessário assegurar à defesa a oportunidade de questionar, contextualizar e eventualmente contrapor o conteúdo obtido.
Conclui-se, assim, que o julgado analisado traz lições importantes, mas também desafios. Em tempos de intensa utilização das relações sociais e da expansão do acesso a dados públicos, o Poder Judiciário deve resistir à tentação de ampliar suas atribuições sob o pretexto de economia processual.
O processo penal democrático exige limites e esses limites passam, necessariamente, pela reafirmação do modelo acusatório.