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A cadeia de custódia como instrumento de controle da qualidade epistêmica da prova penal

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Atualizado em 25 de agosto de 2025 09:01

A edição desta quinzena da Migalhas Criminais conta com a valiosa contribuição do professor Rodrigo Casimiro Reis, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, chefe de gabinete de ministra do STJ e defensor público do Estado do Maranhão. Com destacada atuação institucional e acadêmica, Rodrigo também é instrutor do Centro de Formação do STJ, organizador e coautor de obras jurídicas, professor de cursos de pós-graduação em Direito Processual Penal e autor de prática premiada pelo Innovare (2022). Sua trajetória inclui experiências marcantes na Corregedoria Nacional de Justiça e na Presidência do STJ, compondo um currículo de excelência na interlocução entre prática forense e reflexão teórica.

É com entusiasmo que anunciamos, também, o lançamento de seu mais recente trabalho: o livro "Verdade e Prova Penal: A cadeia de custódia na era digital", que será apresentado ao público no Congresso do IBCCRIM, em São Paulo, no dia 28 de agosto de 2025, com publicação pela Editora Amanuense. A obra, prefaciada pelo ministro Ribeiro Dantas e apresentada pelo professor Vinícius Gomes de Vasconcellos, se propõe a enfrentar, com profundidade técnica e densidade crítica, os novos desafios da cadeia de custódia das provas no ambiente digital, tema central da coluna desta semana.

O texto ora publicado examina a cadeia de custódia não apenas como procedimento técnico, mas como verdadeiro instrumento de validação epistêmica da prova penal, capaz de garantir a confiabilidade do material probatório e assegurar o contraditório efetivo em juízo. O autor parte da regulamentação introduzida pela lei 13.964/19 e avança para a análise minuciosa da cadeia de custódia de vestígios digitais, ainda carente de disciplina legal expressa, apoiando-se em atos normativos infralegais, diretrizes internacionais (como as normas ABNT ISO/IEC 27037:2013 e 27042:2015) e nos entendimentos consolidados nos Tribunais Superiores.

A coluna revisita importantes julgados do STJ, como o AgRg no RHC 143.169/RJ, no qual a 5ª turma do STJ declarou a inadmissibilidade de provas digitais obtidas sem a adequada documentação da cadeia de custódia, violando-se os critérios de integridade e mesmidade do vestígio. Também são analisados os fundamentos técnicos relacionados à geração do código hash, ferramenta essencial para garantir a autenticidade e a reprodutibilidade da prova imaterial.

Por fim, Rodrigo Casimiro Reis propõe uma reflexão sobre os desafios trazidos por novas tecnologias, como inteligência artificial, blockchain e até mesmo o metaverso, considerando a viabilidade de sua aplicação para assegurar maior transparência e segurança nos processos de documentação da prova digital. O artigo, síntese da obra jurídica que será lançada nesta semana, se revela, portanto, como contribuição original, interdisciplinar e oportuna para a comunidade jurídica, especialmente em tempos de intensificação da litigiosidade digital e expansão do uso de meios eletrônicos nas práticas investigativas.

Boa leitura!

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O instituto da cadeia de custódia foi inserido, com essa denominação, pela lei 13.964/19 entre os arts. 158-A e 158-F do CPP, dispositivos que preveem procedimentos mínimos que devem ser adotados pelo Estado, com o escopo de garantir o registro do caminho dos vestígios coletados na fase inquisitorial, assegurando que a prova material do crime sob investigação, analisada pelas partes e pelo Estado-Juiz durante a persecutio criminis in iudicio, seja a mesma constrita no momento da suposta prática delitiva ou no curso de medida cautelar de busca e apreensão.

A observância da cadeia de custódia tem o condão de validar a evidência (material ou digital) como elemento de reconstrução de um fato histórico e tornar viável o pleno exercício do contraditório sobre a prova, possibilitando que a defesa a audite e contribua, de forma efetiva, para a formação do convencimento do julgador (art. 155, caput, do CPP).

Não havendo regramento legal que discipline a cadeia de custódia dos vestígios digitais, a obra intitulada "Verdade e Prova Penal: a cadeia de custódia na era digital" analisa os atos infralegais existentes sobre o tema, quais sejam, a portaria 82/14 da SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública, o volume de informática forense contido no Procedimento Operacional Padrão (publicado pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública em 2024) e as normas ABNT ISO/IEC 27037:2013 e ISO/IEC 27042:2015.

O livro realiza, ainda, revisão bibliográfica e mapeia, de forma rigorosa, a evolução da jurisprudência do STJ e do STF entre os anos de 2019 e 2025, providência necessária para compreender o procedimento válido para a coleta, o armazenamento e a análise dos vestígios imateriais, preservando-se, assim, a integridade e a mesmidade dos elementos indiciários de autoria e materialidade delitivas.

Com linguagem clara, a obra examina o papel fundamental da documentação da cadeia de custódia como instrumento de validação da prova imaterial, propondo abordagens inovadoras, destacando, por exemplo, o metaverso como um novo campo de desafios para o processo penal e o possível emprego da inteligência artificial e da tecnologia blockchain na documentação da cadeia de custódia, o que inaugura novas possibilidades de pesquisa e oferece alternativas para desafios antigos relacionados à confiabilidade das provas.

Além disso, o livro analisa, de forma crítica, os métodos ocultos de investigação à luz do Constitucionalismo digital, refletindo sobre os perigos da obtenção de provas sem supervisão judicial adequada e em eventual desacordo com direitos fundamentais.

Segundo o autor, o Processo Penal não deve ser visto como um mecanismo de repressão, mas, sim, como um instrumento destinado a limitar o poder punitivo do Estado e viabilizar o esclarecimento da autoria delitiva e consequente atribuição de responsabilidade penal.

A observância da cadeia de custódia maximiza, portanto, o devido processo legal, tanto no que diz respeito às obrigações penais negativas (que visam evitar a violação dos direitos dos investigados/acusados e garantir o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa) quanto no que se refere às obrigações penais positivas (que exigem uma investigação eficiente dos fatos).

Na obra, o autor destaca importante aresto da 5ª turma do STJ, proferido nos autos do AgRg no RHC 143.169/RJ1, em que a Corte analisou situação na qual constatou-se a quebra da cadeia de custódia, concluindo-se pela inadmissibilidade dos vestígios digitais de prática delitiva supostamente existentes em dispositivo computacional.

Naquela assentada, o recurso ordinário foi provido para declarar a inadmissibilidade de provas digitais utilizadas para subsidiar a condenação do recorrente pela suposta prática dos crimes de organização criminosa e de furtos eletrônicos contra instituições financeiras.

Da leitura do voto condutor do julgado, proferido pelo min. Ribeiro Dantas, verifica-se que não houve registro formal do caminho percorrido pelos computadores apreendidos pela Polícia, equipamentos dos quais teriam sido extraídas as provas digitais apontadas pela acusação como fonte da materialidade dos delitos imputados.

Não foi efetuado o registro da coleta e do armazenamento do computador, tampouco indicados os agentes incumbidos de manipular o dispositivo apreendido, dados que retiraram a credibilidade sobre a integridade dos vestígios que levaram o parquet estadual a denunciar os pacientes como possíveis hackers dirigentes de organização criminosa.

O referido ministro ressaltou, ainda, que, antes de ser analisado pela perícia oficial, o conteúdo dos equipamentos eletrônicos foi examinado pela instituição financeira vítima, não havendo qualquer registro sobre a forma de extração dos dados, providência necessária para se demonstrar que os referidos elementos indiciários de prática delitiva eram os mesmos que constavam nos equipamentos quando da ocorrência da apreensão.

Naquela oportunidade, o relator para acórdão destacou a relevância da geração do código hash como condição de validade para valoração judicial dos arquivos digitais existentes em equipamentos eletrônicos apreendidos e representativos de prova material de delitos.

De acordo com o POP - Procedimento Operacional Padrão, publicado pelo MJSP em 2024, o algoritmo hash "[...] gera, a partir de uma entrada de qualquer tamanho, uma saída de tamanho fixo, ou seja, é a transformação de uma grande quantidade de informações em uma pequena sequência de bits (hash). Esse hash se altera se um único bit da entrada for alterado, acrescentado ou retirado"2.

A geração do código hash, realizada pela perícia oficial quando da apreensão do equipamento, viabiliza a repetibilidade da evidência digital durante a fase de instrução, providência hábil a comprovar que a imagem dos dados extraídos pela Polícia na etapa pré-processual seja a mesma produzida durante o processo. No mesmo sentido, confira-se: EDcl no AgRg no RHC 186.138/SP, relator ministro Carlos Cini Marchionatti (Desembargador Convocado TJ/RS), 5ª turma, DJEN de 8/4/2025; RHC nº 188.154/RJ, relatora min. Daniela Teixeira, Julgado em 22/7/2024; AgRg nos EDcl no AREsp 2.342.908/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 20/2/2024, DJe 26/2/2024.

O autor ressalta que, cumpridas as etapas previstas no art. 158-B, I a VII, do CPP, merece destaque a norma ABNT ISO/IEC 27037:2013, ato infralegal que estabelece diretrizes internacionais para identificação, coleta, aquisição e preservação da evidência digital, resguardando a autenticidade desse meio de prova.

Tal normativo técnico internacional faz parte das 45 normas da família ISO  27000 - Gestão da Segurança da Informação e possui extenso cuidado para regrar todo o procedimento da evidência informática.

No âmbito do STJ, observa-se que a 5ª turma, nos autos do AgRg nos HC 828.054/RN, concedeu a ordem de ofício para declarar a inadmissibilidade das provas digitais extraídas de aparelho celular pertencente a acusado e que foram utilizadas para embasar sentença condenatória pela suposta prática do crime tipificado no art. 2°, caput, §2°, da lei 12.850/13 (delito de organização criminosa armada).

No citado julgamento, o relator ministro Joel Ilan Paciornik constatou que a Polícia não documentou as etapas do processo de extração dos dados digitais supostamente contidos no aparelho celular apreendido, tendo sido demonstrado que não houve geração do código hash e que o acesso à prova deu-se por meio de consulta direta ao aparelho, sem utilização de ferramenta extratora (v.g. Cellebrite).

O relator salientou que, no trato das evidências digitais, a norma ABNT ISO/IEC 27037:2013, documento que, "[...] embora não dotado de força obrigatória de lei, constitui relevante guia a ser observado pelos atores da persecução penal, a fim de assegurar, tanto quanto possível, a autenticidade da prova digital" e o resguardo quanto à auditabilidade, repetibilidade, reprodutibilidade e justificabilidade dos métodos empregados para extração dos vestígios imateriais da suposta prática delitiva.

O livro registra, ainda, a existência da norma ABNT ISO/IEC 27042:2015 que, embora ainda não tenha sido examinada por julgados proferidos pelo STJ e pelo STF, tampouco traduzida para o português, estabelece diretrizes internacionais que visam preservar a validade, reprodutibilidade e repetibilidade das evidências digitais.

Verifica-se que, no contexto de digital evidence, a qualidade epistêmica do vestígio digital será baixa se sua coleta e produção não seguirem as melhores práticas e utilizarem métodos não confiáveis.

Revela-se, portanto, essencial que o método utilizado para extração dos dados digitais assegure a integridade do material coletado e resguarde a idoneidade dos vestígios que subsidiam a acusação.

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1 EDcl no AgRg no Recurso em Habeas Corpus 143.169/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, julgado em 23/3/2023.

2 Disponível aqui.