Concessão judicial de fármacos e as súmulas vinculantes 60 e 61: O Judiciário como protagonista de políticas públicas da saúde
segunda-feira, 10 de março de 2025
Atualizado em 7 de março de 2025 10:34
O dia 26 de setembro de 2024 representa um marco temporal significativo para as tutelas judiciais relacionadas à entrega de medicamentos pela rede pública. Nessa data, o Tema 1.234, recentemente sumulado em 20 de setembro de 2024, e o Tema 6, sumulado em 26 de setembro de 2024, deram origem às súmulas vinculantes 60 e 61, respectivamente, consolidando importantes diretrizes para a análise e concessão de fármacos não incorporados, e incorporados, ao SUS.
Como súmulas vinculantes, a observância de seus enunciados é obrigatória, tanto para Administração Pública quanto para o Poder Judiciário, que devem aplicá-las de forma integral. O descumprimento poderá resultar na nulidade do ato judicial, passível de correção por meio de Reclamação Constitucional, nos termos do art. 103-A, caput e §3º, da CF/88.
Neste ponto, as súmulas vinculantes 60 e 61 trouxeram mudanças substanciais na judicialização da saúde, conferindo força presuntiva de validade às decisões da CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Regulamentada pela lei 12.401/11, a CONITEC tem a responsabilidade de assessorar o Ministério da Saúde na análise e deliberação sobre a incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias no âmbito do SUS, com base em critérios técnico-científicos e econômico-financeiros.
Quando a CONITEC delibera sobre determinada tecnologia, ela emite um relatório de recomendação, que pode ser favorável ou não à sua incorporação. A decisão final de incorporação é formalizada por meio de portaria do Ministério da Saúde, que tem a prerrogativa de acatar ou não a recomendação da CONITEC.
É a existência dessa portaria que torna obrigatória a oferta da tecnologia no SUS - Sistema Único de Saúde, para a condição clínica específica do paciente, conforme estabelecido nos PCDT - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6, conforme destacado à página 13:
Afinal, se o medicamento foi incluído nas listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, não há mais que se discutir o seu custo, uma vez que essa variável é considerada pelas instâncias técnicas da Conitec e do Ministério da Saúde no momento da incorporação.
Por outro lado, nos casos de não incorporação, embora a decisão tenha caráter técnico e se presuma válida, ela pode ser judicialmente questionada. No entanto, tal questionamento exige uma contestação específica, abordando os critérios e fundamentos utilizados pela CONITEC que motivaram a negativa.
Nesses casos, é necessário demonstrar que a decisão administrativa contraria as diretrizes constitucionais, a legalidade ou a política pública de saúde, em observância ao disposto nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11.
Além dessas hipóteses, o ato da CONITEC também pode ser objeto de controle judicial quando houver ausência de fundamentação técnica adequada, insuficiência na motivação da decisão ou inconsistências na análise das evidências científicas que embasaram a recomendação.
A análise jurisdicional, conforme o item 4.2 da súmula vinculante 60, deve observar não apenas a legalidade dos atos administrativos, mas também a teoria dos motivos determinantes. Essa teoria estabelece que a validade do ato administrativo está vinculada à regularidade dos fundamentos que o sustentam. Como destacado pelo ministro Dias Toffoli no voto do RE 786540/DF, "por força da teoria dos motivos determinantes, a validade do ato administrativo fica vinculada à regularidade do fundamento aventado" (Tema 763, pág. 29).
Adicionalmente, o descumprimento dos prazos legais para deliberação, previstos no art. 19-R da lei 8.080/90, bem como a inobservância do devido processo administrativo, especialmente em relação à transparência e à participação social, configuram hipóteses que autorizam a revisão judicial. Essas possibilidades de controle visam assegurar que as decisões administrativas estejam em conformidade não apenas com a legalidade formal, mas também com os princípios constitucionais que regem a administração pública e garantem a efetividade do direito à saúde.
No exercício do controle de legalidade, conforme delineado no item 4.1 da súmula vinculante 60, o Poder Judiciário não pode substituir a discricionariedade técnica do administrador público. Sua atuação deve se limitar a verificar se o ato administrativo está em conformidade com os parâmetros constitucionais e legais, sem adentrar no mérito administrativo.
Há, contudo, os casos em que o fármaco ou tecnologia ainda não foi avaliado pela CONITEC. Nestas situações, a ausência de análise não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, cabendo ao requerente demonstrar, com base em evidências científicas de alto nível, a imprescindibilidade clínica, a eficácia comprovada e a ausência de substitutos terapêuticos disponíveis no SUS (itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60).
Nos casos em que o medicamento não foi avaliado pela CONITEC ou não está incorporado às listas de dispensação do SUS, a súmula vinculante 61 se torna imperativa ao estabelecer seis pressupostos cumulativos que devem ser observados para a excepcional concessão judicial do tratamento. O ônus probatório é do autor da ação, que deve demonstrar, de forma fundamentada, os seguintes requisitos:
- Negativa administrativa: Apresentação de prova da negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, conforme previsto no item 4 do Tema 1.234 (súmula vinculante 60), que exige a análise prévia do ato de indeferimento do fármaco;
- Legalidade da negativa: Contestação da ilegalidade do ato de não incorporação pela CONITEC, evidenciando a ausência de pedido de avaliação, ou demonstrando a mora injustificada na análise, conforme os prazos e critérios previstos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11;
- Ausência de substitutos terapêuticos: Demonstração da impossibilidade de substituição por outro medicamento disponibilizado nas listas do SUS ou nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas existentes;
- Medicina baseada em evidências: A comprovação da eficácia, segurança e efetividade do medicamento deve ser embasada em evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises. Nesse sentido, a consulta ao NATJUS ou a entes com expertise técnica pelo Juízo representa uma medida relevante para conferir a necessária robustez científica à decisão judicial, alinhando-a com a medicina baseada em evidências (item 3, "b" da súmula vinculante 61);
- Imprescindibilidade clínica: Laudo médico detalhado e fundamentado, emitido por profissional responsável pelo tratamento, comprovando a imprescindibilidade clínica do fármaco e descrevendo de forma clara os tratamentos já realizados e sua ineficácia;
- Incapacidade financeira: Prova da incapacidade financeira do paciente para arcar com o custo do medicamento, considerando sua realidade socioeconômica e a ausência de alternativas viáveis.
Portanto, na ausência de avaliação pela CONITEC, a análise judicial deve ser rigorosa e pautada na comprovação robusta e fundamentada desses pressupostos.
Por sua vez, a decisão judicial, sob pena de nulidade nos termos do item 3 da súmula vinculante 61, deve obrigatoriamente: a) analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC ou a negativa administrativa, à luz do caso concreto e da legislação aplicável; b) aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, mediante consulta prévia ao NATJUS ou a entes com expertise técnica, vedada a fundamentação exclusiva em documentos do autor; e, c) oficiar os órgãos competentes para avaliar a possibilidade de incorporação do medicamento no SUS.
No que concerne à análise do ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC, ou da negativa administrativa, o Poder Judiciário deve observar os limites de sua atuação, conforme delineado na súmula vinculante 60 item 4.1. A função do magistrado, nesse contexto, não é substituir a discricionariedade técnica do administrador público, mas verificar se o ato administrativo específico está em conformidade com as diretrizes Constitucionais, a legislação de regência e as políticas públicas estabelecidas para o SUS.
Nos casos em que a CONITEC não realizou a avaliação de determinado medicamento, a análise judicial deve se restringir a uma avaliação superficial, evitando adentrar nos pormenores técnicos do caso específico, uma vez que a ausência de avaliação prévia pela administração impede uma deliberação mais aprofundada. Nesses casos, é cabível também considerar a omissão no cumprimento dos prazos estabelecidos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90, que regulamentam o processo de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde.
A falta de apreciação pela CONITEC não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, especialmente quando demonstrada a imprescindibilidade clínica do fármaco, a inexistência de alternativas terapêuticas disponíveis no SUS e a eficácia comprovada do medicamento, com fundamento na medicina baseada em evidências.
Por outro lado, quando há uma decisão administrativa explícita de não recomendação de incorporação, o Judiciário deve realizar uma análise mais detalhada, considerando que a negativa envolve uma deliberação fundamentada sobre a eficácia e a segurança do tratamento.
No que tange ao item 3, "b" da súmula vinculante 61, a decisão judicial que aprecia pedidos de concessão de medicamentos não incorporados ao SUS deve, sob pena de nulidade, aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento com base em consulta prévia ao NATJUS, sempre que disponível na respectiva jurisdição, ou a entes ou profissionais com expertise técnica na área da saúde.
Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6 (p. 17), que determina:
Desse modo, para examinar a licitude do ato administrativo comissivo ou omissivo da Conitec e aferir a presença dos demais requisitos, o magistrado deverá observar um requisito procedimental: a instauração de um diálogo institucional com o NATJUS ou entes com expertise técnica na área (como a própria Conitec ou profissionais do SUS). É esse diálogo que assegurará uma análise técnica à luz da medicina baseada em evidências, conferindo ao magistrado maior segurança quanto aos diversos aspectos envolvidos na demanda, como a fundamentação para a não incorporação do âmbito do SUS, a existência ou não de substituto terapêutico e a existência de prova científica de eficácia do fármaco.
Ainda que o autor apresente documentos técnicos, como laudos, relatórios ou prescrições médicas, tais elementos não devem ser utilizados como fundamento exclusivo para a decisão judicial. A consulta a pareceres técnicos especializados é uma etapa essencial para garantir que a decisão esteja embasada em critérios científicos consistentes, alinhados com a medicina baseada em evidências, promovendo maior segurança e legitimidade ao processo decisório.
Nesse contexto, a utilização do NATJUS ou de órgãos técnicos especializados se torna essencial, pois confere à decisão judicial a robustez científica necessária para evitar decisões baseadas exclusivamente em documentos unilaterais apresentados pelo autor. A análise técnica imparcial garante que sejam observados os parâmetros da Medicina Baseada em Evidências, proporcionando maior equilíbrio e segurança ao processo.
Dessa forma, o diálogo institucional com órgãos de apoio técnico assegura que a decisão judicial esteja alinhada às diretrizes constitucionais e às políticas públicas de saúde, promovendo um julgamento mais justo e equitativo. Isso evita que a complexidade dos casos de saúde amplie desigualdades e assegura que os direitos fundamentais sejam resguardados com o devido embasamento técnico e jurídico.
Em relação ao item 3, "c" da súmula vinculante 61, torna-se imprescindível que, nos casos excepcionais de concessão de medicamento não incorporado ao SUS, o juízo promova o envio de ofício "aos órgãos competentes para avaliarem a possibilidade de sua incorporação". Essa medida é justificada especialmente nos casos em que não houve análise prévia pela CONITEC, cabendo ao Judiciário atuar como fomentador de políticas públicas e corroborar com a eficiência e aperfeiçoamento do sistema de saúde.
Conforme o art. 19-R da lei 8.080/90, o processo de incorporação deve ser concluído no prazo máximo de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, caso as circunstâncias exijam. Dessa forma, a ausência de pedido ou a demora injustificada na análise pela CONITEC deve ser observada pelo Juízo como elemento relevante a ser acentuado na decisão. Esse procedimento visa assegurar que a judicialização não apenas solucione o caso concreto, mas também contribua para a construção de soluções sistêmicas no âmbito da saúde pública.
Como destacado no voto conjunto do Tema 6 (p. 19), essa prática é necessária para evitar decisões fragmentadas, garantindo que as demandas judiciais provoquem uma avaliação técnica formal. Nesse sentido:
Por fim, na hipótese excepcional de concessão de medicamento não incorporado, a tese prevê a necessidade de intimação dos órgãos competentes para que avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS. Por exemplo, no caso de não haver pedido de incorporação, o magistrado deverá oficiar o Ministério da Saúde para que avalie a possibilidade de instruir pedido de análise pela Conitec, de modo que em demandas futuras haja uma análise técnica sobre aquele medicamento. Já no caso de mora na apreciação de pedido existente, será possível oficiar diretamente a Conitec para que conclua a análise. A partir desse procedimento será possível fazer com que a judicialização efetivamente contribua para o aperfeiçoamento do sistema de saúde, para a garantia da isonomia e da universalidade no atendimento à população e mesmo para a desjudicialização da assistência farmacêutica.
Além disso, o ofício aos órgãos competentes também se mostra relevante nos casos em que há mora na apreciação de pedidos já existentes. Nessa hipótese, oficiar diretamente a CONITEC ou o Ministério da Saúde fomenta a celeridade na emissão de pareceres técnicos, promovendo maior eficiência na deliberação sobre a incorporação de medicamentos e garantindo uma resposta mais ágil e uniforme à sociedade.
Portanto, a expedição do ofício cumpre duplo papel: suprir a omissão administrativa nos casos sem avaliação prévia e fomentar a celeridade na análise de pedidos pendentes, alinhando a atuação do Judiciário à promoção de políticas públicas eficazes e equânimes. Tal prática evita a perpetuação de decisões isoladas e favorece o fortalecimento do sistema público de saúde, garantindo maior isonomia e universalidade no atendimento à população.
Assim, tanto nos casos em que houve a não recomendação de incorporação de um medicamento pela CONITEC quanto naqueles em que o Ministério da Saúde emitiu portaria formal de não incorporação, ou ainda nos casos de omissão na avaliação pela CONITEC, a análise judicial do caso concreto é indispensável.
O juízo deve, com rigor, verificar se estão presentes os critérios e pressupostos estabelecidos pelas súmulas vinculantes 60 e 61, assegurando que a decisão judicial esteja fundamentada em evidências científicas consistentes, complementadas por subsídios técnicos do NATJUS, quando disponível, ou de outros entes com expertise na área da saúde (conforme itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60 e item 2 da súmula vinculante 61).
A observância desses procedimentos não apenas assegura a legitimidade técnica das decisões judiciais, mas também contribui para a promoção de políticas públicas de saúde mais eficazes e equânimes. Desse modo, evita-se a fragmentação de decisões e se fortalece o SUS, assegurando os princípios de universalidade, equidade e eficiência no acesso ao direito fundamental à saúde.
_____________
1 BRASIL. STF. Súmula vinculante 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos três acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo STF, em governança judicial colaborativa, no Tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.
2 BRASIL. STF. Súmula vinculante 61. A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024.
3 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 1366243 - Tema 1.234. Disponível aqui. Acesso em: 2 out. 2024.
4 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 566471 - Tema 6. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024.
5 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 786540 - Tema 763. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.