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Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Alexandro de Oliveira, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer e Rafaella Nogaroli
Na era digital, ocultar o uso da IA em decisões médicas pode invalidar o consentimento? O consentimento esclarecido (ou consentimento informado, consentimento consciente, entre outras denominações), entendido como o "reconhecimento da autonomia do paciente em se submeter ou não a técnicas médicas de pesquisa, prevenção, diagnóstico e tratamento, respeitados suas crenças e valores morais", trata-se de "decisão livre, voluntária, refletida, autônoma, não-induzida, tomada após um processo informativo e deliberativo sobre o procedimento ou procedimentos biomédicos a serem adotados nos termos informados" (Schaefer, 2012) e ganha contornos inéditos na era digital.  O tema pode ser analisado por ao menos dois novos prismas complementares. De um lado, o uso das tecnologias como meio de colher ou aprimorar o processo de consentimento do paciente, aproximando médico e enfermo. De outro, o uso das tecnologias como objeto do consentimento, especialmente quando sistemas de inteligência artificial começam a rotineiramente influenciar diagnósticos e condutas clínicas. E é nesse segundo prisma que se concentra o maior desafio: em que medida o consentimento do paciente é válido quando ele desconhece que a tomada de decisão médica foi moldada, em maior ou menor medida, por sistemas algorítmicos? O primeiro prisma, que trata do digital como meio de obtenção do consentimento, apresenta desafios, mas também oportunidades relevantes. Assinaturas eletrônicas, registros auditáveis e até soluções como blockchain podem oferecer agilidade e segurança. Contudo, consentir é compreender, e essa compreensão depende de linguagem acessível, de canais de diálogo e da verificação da real capacidade de consentir e, principalmente, de uso de signos e símbolos que possam ser compreendidos pelo usuário. Assim, se o processo se reduzir por exemplo a um clique, corre-se o risco de se perder a substância do processo de consentimento. Nesse ponto, ferramentas de legal design ou design da informação podem contribuir para transformar termos técnicos e burocráticos em informações claras, visuais e interativas, promovendo maior compreensão do seu conteúdo (Bortolini, Garcia, Faleiros Júnior, 2023).  Deve-se lembrar que em um país marcado pela desigualdade digital e pelo baixo letramento, inclusive em saúde, confiar apenas em interfaces eletrônicas pode acentuar exclusões, deixando de fora justamente os pacientes que mais precisam de informação qualificada. Por isso, o digital pode ser um aliado poderoso na formação e obtenção do consentimento, mas jamais substitui a mediação humana que deve estar no centro da relação médico-paciente. O segundo prisma de análise, no entanto, projeta o maior desafio dos próximos tempos: o digital como próprio objeto do consentimento, especialmente quando algoritmos e sistemas de inteligência artificial passam a influenciar diagnósticos e condutas clínicas. Ou seja, trata-se de refletir sobre a necessidade de informar ao paciente que a tomada de decisão médica não resulta apenas do julgamento humano, mas foi construída, em maior ou menor grau, com o apoio de sistemas algorítmicos. Já não basta, portanto, o consentimento sobre os riscos, benefícios e alternativas tradicionais. Na era da inteligência artificial, é indispensável revelar que a recomendação médica foi construída, e em que medida, por um algoritmo. Glenn Cohen (2020), professor da Harvard Law School, sustenta que a validade do consentimento se torna questionável quando o paciente não sabe que a sugestão do médico foi orientada por algoritmos. O autor apresenta o seguinte exemplo: imagine um paciente com câncer de próstata que, após ouvir sobre os riscos e benefícios de uma cirurgia, aceita realizá-la. Se não lhe foi dito que a indicação do procedimento surgiu da análise de um sistema de inteligência artificial, Cohen entende haver vício no consentimento do paciente, que não foi informado sobre as influências algorítmicas na tomada de decisão médica.  Para reforçar esse ponto, Glenn Cohen (2020) recorre a precedentes da jurisprudência norte-americana sobre outros temas, mas que podem ser aplicados por analogia. Ele lembra, por exemplo, os casos de ghost surgery, quando um paciente consente com a cirurgia a ser realizada por determinado médico, mas outro acaba assumindo o bisturi. A justiça americana entende que o consentimento não foi válido, porque houve omissão de uma informação essencial. Outro exemplo oferecido pelo autor vem dos casos sobre qualificação profissional. Em Johnson v. Kokemoor, o tribunal responsabilizou um cirurgião por não revelar sua inexperiência em um tipo específico de operação, considerando que a falta de informação comprometeu a autonomia do paciente. Se ocultar a inexperiência do profissional médico já tem o condão, para a jurisprudência americana, de invalidar o consentimento, seria válido aquele fornecido sem conhecimento de que a decisão clínica foi influenciada por uma inteligência artificial cujos critérios nem sempre são transparentes? Há ainda os conflitos de interesse não revelados, como no caso Moore v. Regents of California, em que o médico ocultou que pretendia lucrar com células extraídas do paciente, e a Suprema Corte da California reconheceu a violação do dever de informar (Cohen, 2020). Assim, se interesses econômicos ocultos são suficientes para macular o consentimento do paciente, não seria igualmente grave deixar de informar a ele que determinada ferramenta de inteligência artificial está sendo usada por razões de custos, conveniência ou pesquisa, e não apenas por critérios clínicos? Esses exemplos demonstram que, embora ainda não haja norma expressa sobre o emprego da inteligência artificial na medicina, a lógica do entendimento dos tribunais converge para uma mesma conclusão: ocultar elementos decisivos da prática clínica pode invalidar o consentimento, de maneira que, a depender da ótica com que se analise a questão, a omissão sobre o papel dos algoritmos em um determinado caso pode não ser um mero detalhe, mas configurar verdadeira quebra do dever de informação. Esses dilemas se tornam ainda mais críticos quando lembramos que a inteligência artificial carrega inúmeros riscos já identificados pela doutrina. Além da opacidade da chamada caixa-preta dos algoritmos, também é preocupante a questão dos vieses algorítmicos. Diferentemente do erro técnico ocasional, os vieses decorrem da própria forma como os sistemas são treinados, por exemplo com dados incompletos, insuficientes, geograficamente deslocados ou carregados de preconceitos que acabam sendo replicados e amplificados pelo sistema. Isso significa que a decisão clínica orientada por inteligência artificial pode ser não apenas opaca, mas também estruturalmente tendenciosa. Pesquisas já apontaram, por exemplo, algoritmos de triagem que subestimam a gravidade de pacientes negros em relação a pacientes brancos, ou sistemas que interpretam sintomas femininos com menor acurácia por terem sido treinados majoritariamente com dados de homens (Bortolini, 2024). Nessas situações, ocultar do paciente que a indicação terapêutica foi moldada por uma inteligência artificial não apenas retira informação essencial, mas também o priva da possibilidade de avaliar se aceita correr os riscos de uma decisão enviesada.  Assim, a omissão quanto ao uso de algoritmos pode colocar em xeque a validade do consentimento informado. O CC, em seu art. 15, consagra a necessidade de consentimento expresso para intervenções médicas, e o Código de Ética Médica exige que o paciente seja informado sobre diagnóstico, riscos, benefícios e alternativas de tratamento. Se uma decisão é orientada por inteligência artificial, esse dado se torna parte integrante da informação necessária para que a escolha seja livre e consciente. Ocultar tal elemento significa oferecer um quadro incompleto, o que fragiliza a autonomia do paciente e pode gerar responsabilidade para o médico. O consentimento não é uma mera autorização, mas integra o direito fundamental à autodeterminação do paciente, conferindo legitimidade ao ato médico. Mais do que formalidade, ele se apoia em princípios como veracidade, confidencialidade, fidelidade e transparência, que funcionam como cláusulas gerais da relação médico-paciente (Schaefer, 2012). Na era digital, deve-se questionar se o paciente deve saber não apenas o que lhe será feito, mas também como a decisão médica foi construída, inclusive se contou com a participação ou foi majoritariamente influenciada por um algoritmo.  O futuro da saúde digital, portanto, não será marcado apenas por termos eletrônicos ou novas plataformas de coleta de consentimento. O verdadeiro ponto de inflexão será garantir transparência sobre o papel da inteligência artificial e de outras tecnologias no processo decisório médico. ________________ 1 BORTOLINI, Vanessa Schmidt; GARCIA, Alexandre de Souza; FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. Legal Design como instrumento para redução da assimetria informacional na relação médico-paciente. In: Tecnologias disruptivas, direito e proteção de dados, 2023, Franca - SP. GIOLO JÚNIOR, Cildo; GOMES, Fávio Cantizani; OLIVEIRA, Maria Cláudia Santana de (Org.). Anais do I Congresso Internacional de Direito, Políticas Públicas, Tecnologia e Internet [recurso eletrônico]. Franca: Faculdade de Direito de Franca, 2023. v. 9. p. 96-103. 2 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 3 COHEN, I. Glenn. Informed Consent and Medical Artificial Intelligence: What to Tell the Patient?. The Georgetown Law Journal, v. 108, p. 1425-1467, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 1 ago. 2025. 4 SCHAEFER, Fernanda. A nova concepção do consentimento esclarecido. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 1 (2012), nº 10.
Atualmente, no contexto da Quarta Revolução Industrial, vivenciamos uma nova onda de transformações estruturais impulsionadas por tecnologias emergentes como a inteligência artificial, a robótica e o big data. Esses avanços não apenas ampliam as fronteiras da Medicina contemporânea, mas também impõem complexos desafios éticos, jurídicos e sociais, exigindo a reformulação de marcos regulatórios e a criação de políticas públicas que equilibrem inovação tecnológica com a preservação de direitos fundamentais. Nesse cenário, diversas empresas têm investido no desenvolvimento de tecnologias e algoritmos voltados à coleta e análise de dados relacionados à saúde dos indivíduos - como sinais vitais, frequência cardíaca, temperatura corporal, estado emocional, capacidade cognitiva e padrões de atividade física. Um exemplo concreto refere-se aos pacientes com diabetes, que enfrentam o desafio cotidiano de controlar seus níveis de glicose no sangue. Por meio de soluções digitais inteligentes, é possível monitorar continuamente a glicemia, permitindo que sistemas baseados em inteligência artificial processem essas informações e forneçam, em tempo real, subsídios para decisões clínicas mais precisas e personalizadas.1 A Medicina 4.0 inaugura um novo paradigma denominado "saúde inteligente", caracterizado pela transição de um modelo assistencial tradicional para uma abordagem centrada na prevenção, predição, personalização. Nesse novo cenário, o cuidado em saúde afasta-se do tratamento meramente reativo e passa a priorizar estratégias de antecipação diagnóstica, baseadas em informações genéticas e dados clínicos individualizados. Trata-se de um deslocamento que não apenas redefine os métodos de intervenção médica, mas também aprofunda o vínculo entre médicos e pacientes, tornando-o mais contínuo, colaborativo e mediado por tecnologias digitais de ponta.2 Essa transformação só se tornou possível a partir da convergência entre o uso massivo de dados em saúde e a aplicação de sistemas de inteligência artificial. A digitalização dos prontuários clínicos, armazenados em plataformas em nuvem, permite a formação de bancos de dados extensos e integrados. Simultaneamente, a interação cotidiana entre pacientes e dispositivos inteligentes - fenômeno conhecido como Internet das Coisas no contexto médico - contribui para a produção constante de informações biomédicas, que são processadas em tempo real. Nesse modelo, o paciente deixa de ser apenas receptor passivo dos cuidados e assume um papel protagonista na geração de dados e na construção de condutas clínicas, ao passo que instituições hospitalares tradicionais passam por um processo de reinvenção, ajustando-se a uma lógica mais tecnológica e centrada na individualidade.3 No âmbito da proteção de dados pessoais, o consentimento e a autodeterminação ocupam posição central, sendo amplamente reconhecido como um dos pilares fundamentais do tratamento legítimo de informações pessoais. Ainda que a intensidade da proteção jurídica atribuída a cada categoria de dados não dependa exclusivamente da vontade do titular, é o consentimento que legitima, em regra, a coleta e o tratamento desses dados. A legislação pode, excepcionalmente, prever hipóteses em que esse requisito é relativizado ou afastado, mas a vinculação entre o consentimento do titular e a licitude do processamento de dados permanece, de modo geral, como um elemento essencial e incontornável.4 A concepção de autodeterminação informacional como paradigma constitucional visa assegurar aos indivíduos o controle sobre suas informações pessoais, especialmente diante da crescente digitalização da vida e do uso intensivo de tecnologias informáticas. Esse modelo teórico encontra respaldo na jurisprudência alemã, em especial na histórica decisão do Tribunal Constitucional Federal que consagrou, como direito fundamental, a autodeterminação informacional, marcando um divisor de águas na proteção jurídica da privacidade frente aos avanços tecnológicos.5 Curiosamente, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (RGPD) não menciona explicitamente os termos "privacidade" ou "vida privada". Ainda assim, embora próximos, os conceitos de privacidade e proteção de dados não são sinônimos. Eles se entrelaçam e se complementam, sendo a proteção de dados uma ferramenta normativa essencial para garantir o exercício efetivo da privacidade, sobretudo em sua dimensão informacional. A privacidade, nesse aspecto, pode ser compreendida como a condição na qual os dados de um indivíduo permanecem inacessíveis - um estado de resguardo que engloba direitos fundamentais como a intimidade, a reclusão, a personalidade e o direito de ser deixado em paz.6 Já a proteção de dados configura-se como um regime jurídico autônomo, voltado à tutela dos direitos, liberdades e interesses dos titulares cujas informações pessoais são objeto de coleta, armazenamento, processamento, disseminação ou exclusão. Seu propósito não se limita à preservação da privacidade, mas também busca assegurar a equidade nos processos de tratamento de dados e, em certa medida, justiça nos efeitos produzidos por esse tratamento. Assim, embora seus objetivos ultrapassem os contornos tradicionais da privacidade, a proteção de dados desempenha um papel decisivo para a sua efetivação no contexto contemporâneo.7 Para Alexandre de Sousa Pinheiro as exceções à proibição do tratamento de dados pessoais constituem-se estruturalmente como causas de exclusão de ilicitude, no sentido em que os tratamentos de dados que seria ilícito cede perante a superioridade de um interesse proporcionalmente mais relevante que justifica assim o seu tratamento.8 Em vigor desde setembro de 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelece que o tratamento de dados sensíveis, como os relativos à saúde, depende, via de regra, do consentimento expresso, livre, informado e específico do titular (arts. 5º, XIII e 11, I). Caso haja alteração na finalidade originalmente autorizada, o controlador deve comunicar previamente o titular, que poderá revogar o consentimento, conforme previsto no art. 9º, § 2º. A lei reforça, em diversos dispositivos, a exigência de finalidade determinada para todo tratamento de dados pessoais.9 Além disso, a LGPD consagra os princípios da boa-fé e da transparência (art. 6º, VI), que orientam a conduta ética no tratamento de informações, especialmente no contexto da saúde. Ainda que não haja exigência legal de consentimento para o tratamento de dados sensíveis por profissionais de saúde durante procedimentos clínicos, espera-se que essa atividade seja pautada pela confiança e clareza. Assim, à luz da boa-fé objetiva, o dever de informar pode ser atendido mediante a inclusão, no termo de consentimento livre e esclarecido, de disposições específicas sobre o uso de dados pessoais em ambientes digitais de saúde.10 Os dados sensíveis demandam um nível elevado de proteção, a fim de prevenir vazamentos, usos indevidos, exploração comercial ou práticas discriminatórias e ilícitas contra seus titulares. Contudo, a vedação absoluta ao seu tratamento seria impraticável, uma vez que, em determinadas situações, esse processamento é não apenas legítimo, mas indispensável. Além disso, organizações com fins políticos, religiosos ou filosóficos teriam sua própria funcionalidade comprometida caso fossem impedidas de coletar e tratar esse tipo de dado, essencial à sua atuação institucional.11 Relatório recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que, embora a inteligência artificial represente avanços relevantes no campo da saúde, sua aplicação deve ser acompanhada de rigorosas reflexões éticas e regulamentares. A IA tem sido utilizada como ferramenta de apoio ao diagnóstico e à tomada de decisões clínicas, com especial destaque em áreas como Radiologia, Dermatologia, Patologia e sequenciamento genético voltado à imunoterapia. No entanto, a OMS aponta que ainda são escassas as validações clínicas prospectivas capazes de comprovar, de forma robusta, a eficácia desses sistemas em ambientes reais. Entre as preocupações levantadas, estão a variabilidade da performance algorítmica conforme o contexto geográfico e cultural, bem como o risco do chamado viés de automação - situação em que os profissionais de saúde, ao confiar excessivamente nos sistemas de IA, podem reduzir sua atuação crítica e desconsiderar as especificidades individuais dos pacientes.12 A ausência de transparência nos processos decisórios dos sistemas de inteligência artificial - frequentemente denominado problema da caixa-preta (black box problem) - representa um dos principais entraves à consolidação da confiança nessa tecnologia. Em contextos mais objetivos, como a rotulagem automatizada de imagens, essa opacidade pode ser minimizada, já que os resultados podem ser diretamente validados pelo usuário. No entanto, no campo da saúde, a simples aferição quantitativa do desempenho algorítmico não é suficiente: é imprescindível compreender os fundamentos lógicos das decisões sugeridas. Para que profissionais de saúde confiem em recomendações algorítmicas - como a prescrição de medicamentos ou a identificação de riscos específicos -, é essencial que se possa rastrear e interpretar os fenótipos e variáveis utilizados no processo preditivo. A explicabilidade do sistema, portanto, torna-se um elemento-chave na construção da confiabilidade clínica e na segurança das condutas médicas assistidas por IA.13 A opacidade nos processos decisórios da inteligência artificial revela-se especialmente crítica na área da saúde, onde as escolhas envolvem, muitas vezes, consequências de vida ou morte. Esse desafio torna-se ainda mais sensível quando a IA é empregada não apenas para auxiliar na triagem de pacientes em situações emergenciais, mas também para emitir diagnósticos clínicos diretos. Nesses casos, o profissional de saúde pode se ver diante de um impasse ético e técnico: confiar em sua própria avaliação, construída com base em experiência e intuição médica, ou seguir a orientação divergente apresentada por um sistema algorítmico. Tal dilema reforça a urgência de promover transparência, responsabilização e segurança no uso de tecnologias baseadas em inteligência artificial no setor médico.14 Segundo André Gonçalo Dias Pereira, a Medicina contemporânea vem sendo profundamente transformada pela convergência entre as ciências da computação e a economia digital. Tecnologias como inteligência artificial, prontuários eletrônicos, medicamentos personalizados, cirurgia robótica e big data aplicado à pesquisa genética estão moldando práticas clínicas mais precisas e individualizadas. No plano coletivo, a IA pode contribuir para a sustentabilidade dos sistemas públicos de saúde; no plano individual, fortalece a Medicina personalizada ao prever enfermidades e otimizar terapias. Esse movimento sinaliza a consolidação do modelo dos quatro "Ps" da nova medicina: preventiva, preditiva, personalizada e proativa. Apesar dos avanços, persistem obstáculos técnicos e humanos, como a carência de feedback tátil em procedimentos automatizados - essencial para avaliar tecidos com precisão - e a ausência de empatia nas máquinas, o que dificulta a humanização do cuidado e o vínculo com o paciente.15 A atribuição de responsabilidade civil em casos envolvendo sistemas de inteligência artificial tem gerado intensos debates na doutrina internacional. Autores como Samir Chopra e Laurence White defendem a possibilidade de reconhecimento de personalidade jurídica para agentes inteligentes dotados de elevada autonomia,16 enquanto Ugo Pagallo adota uma perspectiva tradicionalista, imputando a responsabilidade às pessoas que supervisionam ou operam tais sistemas.17 Em Portugal,  Paulo Mota Pinto observa que o ordenamento jurídico atribui personalidade jurídica apenas a seres humanos e pessoas coletivas, compreendendo-a como a aptidão para ser titular de relações jurídicas.18 No entanto, o surgimento de tecnologias autônomas desafia esse modelo, suscitando propostas de adaptação normativa para lidar com condutas não humanas e redefinir as fronteiras da responsabilidade. Diante dessa lacuna normativa, algumas correntes propõem analogias com a constituição de pessoas coletivas como alternativa para acomodar juridicamente os agentes artificiais. A responsabilidade civil, que tradicionalmente pressupõe dano, nexo causal e imputabilidade, passa a enfrentar novos contornos quando aplicada a sistemas de IA que operam com base em algoritmos de autoaprendizagem e decisões independentes. O desafio, portanto, está em conciliar inovação tecnológica com segurança jurídica, garantindo tanto o fomento ao desenvolvimento quanto a tutela efetiva dos direitos fundamentais em caso de danos. Por outro lado, na União Europeia, o artigo 27.º do Regulamento (UE) 2024/1689, o AI Act, ao impor a realização de avaliações de impacto sobre os direitos fundamentais previamente à implementação de sistemas de IA de alto risco, constitui um relevante mecanismo de prevenção de danos e de mitigação dos riscos associados à utilização de tais tecnologias. Essa lógica aproxima-se da matriz da responsabilidade civil pelo risco, amplamente discutida na doutrina civilista, em que a assunção de determinadas atividades potencialmente perigosas gera, para quem delas beneficia ou as controla, um dever acrescido de tutela de interesses alheios. Assim, mais do que um mero cumprimento formal, a avaliação de impacto configura-se como instrumento que densifica o dever de cuidado, funcionando como critério de imputação objetiva na eventualidade de danos decorrentes do uso da IA, nos termos do modelo de alocação de riscos que vem ganhando relevo na responsabilidade extracontratual moderna. Ao incluir, no seu âmbito, entidades públicas e privadas que prestem serviços essenciais, o Regulamento revela uma clara orientação personalística, em que a salvaguarda dos direitos fundamentais prevalece sobre a mera eficiência tecnológica, projetando, no domínio da IA, a função preventiva e redistributiva da responsabilidade civil.19 No Brasil, o PL 2338/23, foi aprovado pelo Senado Federal, apresentou no Art. 13 estabelece que todo sistema de inteligência artificial deve, previamente à sua colocação no mercado ou utilização, ser submetido a uma avaliação preliminar de risco pelo fornecedor, com registro e documentação para fins de responsabilização. Esta avaliação abrange, inclusive, sistemas de propósito geral, devendo considerar suas finalidades ou aplicações. A autoridade competente pode reclassificar o sistema e determinar a realização de avaliação de impacto algorítmico, especialmente quando identificado como de alto risco, hipótese em que se tornam obrigatórias medidas adicionais de governança, sem prejuízo da aplicação de sanções em caso de avaliações fraudulentas ou incompletas.20 Porém o mesmo projeto está sob apreciação da Câmara dos Deputados e não houve avanço até a publicação desse texto. Outro ponto crucial na discussão diz respeito à qualidade e à confiabilidade dos dados utilizados e gerados por esses sistemas. Mafalda Miranda Barbosa identifica dois tipos principais de dificuldade: a corrupção dos dados de entrada, cuja origem pode ser incerta e não atribuível diretamente a usuários, distribuidores ou fabricantes; e a produção de dados potencialmente imprecisos por sistemas autônomos, resultado de processos de autoaprendizagem.21 Essas limitações comprometem a previsibilidade e a rastreabilidade das decisões algorítmicas, tornando ainda mais complexa a atribuição de responsabilidade civil e exigindo novos parâmetros legais e técnicos para garantir transparência, justiça e reparação adequada. A incorporação da inteligência artificial na saúde representa um avanço inegável, mas exige reflexão jurídica contínua e cuidadosa. A complexidade técnica desses sistemas, associada à sensibilidade dos dados e à dimensão humana dos cuidados médicos, impõe desafios que ultrapassam o campo tecnológico e alcançam princípios fundamentais do Direito. A transparência algorítmica, a proteção de dados pessoais e a responsabilidade civil diante de danos causados por decisões automatizadas devem caminhar lado a lado com a inovação. É imperativo que o Direito não apenas acompanhe essa transformação, mas também atue como força modeladora, assegurando que os benefícios da IA em saúde sejam amplamente distribuídos e que seus riscos sejam eticamente controlados e juridicamente reparáveis. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência Artificial nas Decisões Clínicas e a Responsabilidade Civil Médica por Eventos Adversos no Contexto dos Hospitais Virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; NETTO, Felipe Braga; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. Página 1081. 2 Idem. 3 Idem. 4 MIRADA, Jorge; MEDEIROS, Ruy. Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, 2ª ed., Revista - Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017. Página 572. 5 Idem. Página 568. 6 DOVE, Edward S. The EU General Data Protection Regulation: Implications for International Scientific Research in the Digital Era: Currents in Contemporary Bioethics. Journal of Law, Medicine and Ethics, 2018. Página 1014. 7 Idem. 8 PINHEIRO, Alexandre Sousa (Coord.); COELHO, Cristina Pimenta; DUARTE, Tatiana; GONÇALVES, Carlos Jorge; GONÇALVES, Catarina Pina. Comentários ao Regulamento Geral de Proteção de Dados. Coimbra: Almedina, 2018. Página 238. 9 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência Artificial nas Decisões Clínicas e a Responsabilidade Civil Médica por Eventos Adversos no Contexto dos Hospitais Virtuais, cit., Página 1102 e 1103. 10 Idem. 11 TEFFÉ, C. S. DE; VIOLA, M. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. civilistica.com, v. 9, n. 1, p. 1-38, 9 maio 2020. Páginas 37 e 38. 12 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Ethics and governance of artificial intelligence for health: large multi-modal models. WHO guidance. World Health Organization, 2024. 13 MIOTTO, Riccardo et al. Deep learning for healthcare: review, opportunities and challenges. Briefings in bioinformatics, v. 19, n. 6, p. 1236-1246, 2018. 14 NOGAROLI, Rafaella; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial na análise diagnóstica: benefícios, riscos e responsabilidade do médico. Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. Thomson Reuters Brazil, São Paulo, p. 69-91, 2020. 15 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Inteligência Artificial, Saúde e Direito: considerações jurídicas em torno da medicina de conforto e da medicina transparente. Julgar, n. 45, p. 235-262, 2021. 16 CHOPRA, Samir; WHITE, Laurence F. A legal theory for autonomous artificial agents. University of Michigan Press, 2011. 17 PAGALLO, Ugo. The laws of robots: Crimes, contracts, and torts. Springer Science & Business Media, 2013. 18 DA MOTA PINTO, Carlos Alberto; MONTEIRO, António Pinto; DA MOTA PINTO, Paulo Cardoso Correia. Teoria geral do direito civil. Coimbra editora, 2005. 19 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que cria regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial e que altera os Regulamentos (CE) n.º 300/2008, (UE) n.º 167/2013, (UE) n.º 168/2013, (UE) 2018/858, (UE) 2018/1139 e (UE) 2019/2144 e as Diretivas 2014/90/UE, (UE) 2016/797 e (UE) 2020/1828 (Regulamento da Inteligência Artificial) (Texto relevante para efeitos do EEE). Jornal Oficial da União Europeia: JO L, PE/24/2024/REV/1, 12 jul. 2024. Disponível aqui. 20 BRASIL. PL 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da inteligência artificial no Brasil e estabelece princípios, direitos e deveres para seu desenvolvimento e aplicação. Disponível aqui. 21 BARBOSA, Mafalda Miranda. Do nexo de causalidade ao nexo de imputação: Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da Responsabilidade Civil Extracontratual, Principia, 2013.
A gestação de substituição, como o próprio nome sugere, é um fenômeno reprodutivo caracterizado pela "procriação para outrem"1. Com os avanços da Medicina Reprodutiva e o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida (RHA), como a conhecida fertilização in vitro (FIV), esses arranjos tornaram-se consideravelmente mais complexos, dada a multiplicidade de possíveis participantes no processo reprodutivo. Costumo citar, por seu valor ilustrativo, o caso Buzzanca v. Buzzanca2, julgado nos EUA: a aplicação da FIV permitiu um cenário em que o embrião foi formado a partir de gametas de doadores, fertilizado em laboratório e implantado em uma gestante de substituição, que daria à luz a uma criança destinada a beneficiar terceiros. Se a reprodução humana costuma ser vista como um projeto íntimo, restrito ao casal, aqui ela se distribui entre diferentes indivíduos, tornando-se um processo técnico, fragmentado e compartilhado. É justamente nesta dissociação entre material genético, gestação e intenção parental que emergem os desafios na determinação da filiação. O título paradoxal proposto pelo jurista português Guilherme de Oliveira, em 1992 - "Mãe há só uma (duas)!"3 - parece provocativo, mas ainda é pouco ambicioso. Talvez pudéssemos dizer "Mãe há só três"4: a mulher que forneceu o material genético, a que gestou a criança e a beneficiária do procedimento. No caso da paternidade, o alcance do brocardo pater semper incertus est é ainda mais ampliado: pode-se considerar o próprio marido da gestante de substituição, com base na presunção legal de que o pai é o marido da mãe (caso se adote a ideia de que a maternidade decorre necessariamente do parto), o doador de esperma e o beneficiário do procedimento. Afinal, quem é, de fato, pai e mãe na gestação de substituição? Na atualidade, embora não exista regulamentação legal específica no Brasil, a gestação de substituição tem sido admitida com fundamento no direito ao livre planejamento familiar, ex vi art. 226, § 7º, da Constituição Federal, regulamentado pela lei 9.263/1996 (conhecida como Lei do Planejamento Familiar), cujo art. 9º assegura o acesso a métodos de concepção cientificamente aceitos5. Complementarmente, a resolução nº 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece diretrizes para a prática médica no âmbito das técnicas de RHA, incluindo a gestação de substituição, e, embora não possua força de lei, essa orientação tem, na prática, determinado a forma como esses procedimentos são realizados no país6. No campo registral, diante da necessidade de afastamento da presunção de maternidade decorrente do parto7, o Provimento nº 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), prevê que o nome da mulher que deu à luz não constará no registro de nascimento, conforme indicado na declaração de nascido vivo, sendo necessária, ainda, a assinatura de um termo de compromisso pela gestante de substituição para esclarecer a filiação (art. 513, § 1º). Assim, apenas os responsáveis pelo projeto parental constarão no registro, mesmo que o material genético provenha de terceiros8. Observe que, até aqui, o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na ausência de regulamentação legal específica, tem privilegiado o critério volitivo na definição do vínculo jurídico de filiação na gestação substitutiva, em detrimento dos critérios exclusivamente gestacional ou genético. Ou seja, na gestação de substituição, o parto deixa de ser o marco definidor da maternidade9 e, embora a gestante e os demais envolvidos desempenhem papéis fundamentais para viabilizar o nascimento, é a intenção inicial dos pais pretendidos que fundamenta e dá sentido a todo o processo10. Esse entendimento, aliás, reflete o conteúdo normativo do art. 1.597, inciso V, do atual Código Civil, que presume a paternidade dos filhos "havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido". Trata-se de uma exceção ao princípio do biologismo11, fundamentado na vontade dos intervenientes na constituição do estatuto parental e inerentes responsabilidades. Aliás, se analisada com a devida atenção, é precisamente na gestação de substituição que a mulher beneficiária pode ser equiparada ao pai que não contribuiu com seu material genético no processo heterólogo: ambos se revelam progenitores sociais12. Já no contexto do Projeto de revisão e atualização do Código Civil - atualmente tratado no âmbito do PL 4/25 -, percebe-se, igualmente, a valorização do elemento volitivo, atribuindo-se a parentalidade em favor dos beneficiários. Isso se reflete na previsão de que "[a] cessão temporária de útero deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem se atribuirá o vínculo de filiação" (art. 1.629-O), bem como na determinação de que "[o] registro de nascimento da criança nascida em gestação de substituição será levado a efeito em nome dos autores do projeto parental, assim reconhecidos pelo oficial do Registro Civil" (art. 1.629-P). Pode-se afirmar, assim, que o Projeto do CC atribui a condição de pais, no contexto da gestação de substituição, aos beneficiários - os autores do projeto parental. Ainda que o elemento volitivo possa, eventualmente, entrelaçar-se com o vínculo genético, nos casos em que haja contribuição genética de um ou de ambos os beneficiários, o texto não exige a utilização dos gametas dos respectivos beneficiários. Ademais, a definição prévia em favor dos beneficiários, configura um critério legal que derroga a regra geral de estabelecimento da filiação prevista no Código Civil, afastando, nesse contexto específico, a atribuição da maternidade à mulher que deu à luz. Ainda sobre a gestante de substituição, alguns doutrinadores têm manifestado preocupação com a ausência, no Projeto do CC, de um dispositivo que afaste expressamente a possibilidade de arrependimento por parte desta, caso manifeste desejo de permanecer com a criança após o nascimento. Nesse sentido, tem-se sugerido a inclusão de um parágrafo único ao art. 1.629-L - que atualmente dispõe, em seu caput, que "[a] gestação por substituição é permitida para casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica". A proposta doutrinária prevê que esse parágrafo único contenha a seguinte redação: "Não é reconhecido à gestante o direito de arrependimento após o nascimento da criança que foi gerada por esta técnica"13. Embora se compartilhe do entendimento de que não se deve reconhecer à gestante de substituição uma espécie de "direito ao arrependimento" (assunto desenvolvido na obra sobre gestação de substituição14), e até mesmo se entenda as preocupações daqueles autores, a necessidade de um dispositivo como esse me parece desnecessária, pois trata-se de afirmar o óbvio. Se o próprio legislador, ao disciplinar a gestação de substituição, excepciona a regra geral de filiação para atribuí-la aos beneficiários, é logicamente incompatível que a gestante possa, após o parto, reivindicar a condição de mãe em termos jurídicos. Caso se recuse a entregar a criança após o parto, a resposta já se encontra prevista no ordenamento jurídico: a gestante de substituição estaria sujeita aos mesmos crimes aplicáveis a qualquer pessoa que retire os filhos de seus pais legais, como sonegação de estado de filiação e subtração de incapaz, nos termos dos arts. 243 e 249, do Código Penal15. De outro lado, relativamente à intervenção dos doadores de gametas no processo reprodutivo, o art. 1.629-K, § 2º, do Projeto, estabelece expressamente que "[n]enhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador". Por fim, no que se refere ao marido da gestante, o Projeto do CC não reproduz a exigência prevista no item VII/3/f), da resolução n.º 2.320/2022, do CFM, que exige a "aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável". Embora sem força de lei, tal exigência busca, forçando muito a nota, "afastar" a presunção de que o pai é aquele que o casamento indica (art. 1.597, do CC). No entanto, à luz do próprio Projeto do CC, essa exigência não se sustenta, pois não há qualquer incerteza jurídica quanto à definição da filiação: pai e mãe, na gestação de substituição, são apenas os beneficiários. E só. __________ 1 CORTE-REAL, Carlos Pamplona. Os efeitos familiares e sucessórios da procriação medicamente assistida (P.M.A.). ASCENSÃO, José de Oliveira (coord.). In: Estudos de Direito da Bioética. Coimbra: Almedina, 2005, p. 93-112, p. 104. 2 Buzzanca v. Buzzanca, 72 Cal. Rptr. 2d 280 (1998). 3 OLIVEIRA, Guilherme de. Mãe há só uma (duas)! Contrato de gestação. Coimbra: Coimbra Editora. 4 Como provocou ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação Assistida e Direito. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez. Coimbra: Almedina, 1998, p. 645-676, vol. 1, p. 667. 5 SCHETTINI, Beatriz. Vácuo legal em matéria de reprodução humana assistida. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 17-35, p. 22. 6 RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Patrimonialidade na gestação de substituição. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 283-305, p. 283 7 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Compêndio biojurídico sobre reprodução humana assistida. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, pp. 221-222. 8 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de família contemporâneo. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 499. 9 RAPOSO, Vera Lúcia. De mãe para mãe: Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60. 10 HILL, John Lawrence. What does it mean to be a 'parent'? The claims of biology as the basis for parental rights. New York University Law Review, n.º 66, mai. 1991, p. 353-420, p. 415. 11 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003, p. 882. 12 SÁ, Mafalda de. O estabelecimento da filiação na gestação de substituição: à procura de um critério. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 15, n.º 30, 2018, p. 67-89, p. 74. 13 Nomeadamente VALADARES, Amanda de Oliveira; FONSECA, Gabriel Carvalho. A gestante pode mudar de ideia? A (im) possibilidade de reconhecer o arrependimento da gestante de substituição no anteprojeto de reforma do código civil brasileiro. OLIVEIRA, Lucas Costa de; GUIMARÃES, Luíza Resende (orgs.). In: Anais do X Congresso Mineiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Editora Expert. 2024, p. 527-549, p. 543. 14 DE BONE, Leonardo Castro. Gestação de substituição: do fenômeno reprodutivo aos problemas do contrato. Londrina: Thoth, 2025, pp. 135-141. 15 MELO, Diogo Leonardo Machado de. Uma lei federal para reprodução assistida no Brasil? Consultor Jurídico, nov. 2022, n.p.
No Brasil, apesar da crescente judicialização da assistência obstétrica e da consolidação do debate público sobre práticas abusivas durante a assistência ao parto, a violência obstétrica ainda não possui definição legal expressa. Projetos de lei seguem em tramitação sem previsão de aprovação definitiva, e a análise dos casos concretos permanece sustentada por normas constitucionais, civis, penais e éticas, aplicadas de forma fragmentada. O resultado é um cenário de insegurança jurídica, no qual mulheres, profissionais de saúde e operadores do direito se veem diante de lacunas normativas e decisões marcadas por subjetividade. Em Portugal, a positivação legal da violência obstétrica ocorreu em março de 2025, com a promulgação da lei 33/25, que passou a definir o termo e a disciplinar condutas e garantias durante a gravidez, parto e puerpério. No entanto, à época da elaboração do presente estudo, ainda não havia legislação específica sobre o tema em Portugal, sendo o assunto tratado por meio da interpretação conjunta de normas constitucionais, civis, penais e deontológicas. Foi justamente nesse contexto, em que ambos os países careciam de lei específica, que desenvolvemos, sob orientação do professor doutor André Gonçalo Dias Pereira, o trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, intitulado "Violência Obstétrica: intersecções necessárias entre a autonomia da mulher, responsabilidade médica e direitos do nascituro a partir da legislação brasileira e portuguesa". Neste artigo, apresentamos uma síntese crítica da pesquisa, com enfoque nas interações entre a autodeterminação da gestante, os deveres jurídicos e éticos dos profissionais de saúde, e os direitos do nascituro, analisados sob o prisma do direito comparado. Com base em legislação, doutrina e princípios bioéticos, propomos uma leitura integrada das tensões envolvidas no cenário obstétrico, de modo a contribuir para a consolidação de uma atuação jurídica e clínica mais humanizada, baseada em evidência, técnica e justa - especialmente no Brasil, onde a ausência de uma tipificação legal exige dos operadores do direito uma compreensão sistêmica e sensível da matéria, ultrapassando o conhecimento jurídico. Uma mesma conduta, múltiplas responsabilidades: Esferas civil, penal e ética na prática obstétrica O termo "violência obstétrica" abrange um conjunto de condutas abusivas, desrespeitosas ou negligentes praticadas contra a mulher durante o pré-natal, o parto ou o puerpério, com potencial de violar sua integridade física, emocional e sua autonomia. A OMS - Organização Mundial da Saúde define a violência como "qualquer ação que tenha o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra o outro ou contra um grupo, que resulte ou possa resultar em qualquer dano psicológico, deficiência, lesão ou morte." No contexto da assistência obstétrica, a OMS reconheceu, em 2014, que "muitas mulheres sofrem tratamento desrespeitoso e abusivo durante o parto em instalações de saúde em todo o mundo. Esse tratamento não só viola os direitos das mulheres a cuidados respeitosos, mas também pode ameaçar seus direitos à vida, à saúde, à integridade corporal e à liberdade de discriminação." Embora atinja mulheres independentemente de raça, credo, idade ou condição socioeconômica, a violência obstétrica revela-se como uma expressão particular de violência de gênero, ainda pouco visibilizada e insuficientemente enfrentada por legislações específicas. Importante ressaltar que, na análise de casos envolvendo violência obstétrica, exige-se a consideração de uma tríade fundamental: a mulher grávida, os profissionais de saúde envolvidos e o nascituro. É necessário observar o contexto social e os valores de dignidade da gestante, respeitando sua autonomia durante o parto. Os profissionais, por sua vez, devem seguir normas éticas e legais que regulam sua conduta, e qualquer agente que atue no ambiente obstétrico pode ser potencial autor de violência. Já o nascituro, ainda não nascido, possui direitos juridicamente tutelados, devendo sua proteção ser levada em conta em todas as decisões. Na prática obstétrica, determinadas condutas médicas podem ultrapassar o campo da mera tecnicidade e gerar implicações jurídicas profundas. Quando ocorrem abusos, omissões, procedimentos não consentidos ou atitudes desrespeitosas no cenário do parto, é possível que o mesmo fato seja analisado sob diversas lentes normativas. Uma única conduta médica pode dar ensejo à responsabilização civil, penal e ética-administrativa, conforme a natureza do dano causado, a existência de culpa e os deveres profissionais violados. Quando falamos em violência obstétrica, é preciso reconhecer que, para além da sua carga simbólica e social, ela é juridicamente compreendida como um fato gerador de dano, passível de reparação. Na esfera civil, o foco será a reparação do dano, ainda que exclusivamente moral, sofrido pela parturiente ou pelo nascituro, com base na conduta negligente, imprudente ou imperita do profissional. A responsabilização se dá por violação ao dever de cuidado e ao princípio da dignidade da pessoa humana, podendo envolver indenizações significativas, especialmente quando houver sequelas físicas, traumas psicológicos ou violação da autonomia reprodutiva da mulher. O CC, tanto brasileiro quanto português, oferece suporte normativo para essa responsabilização com base nos artigos que tratam de atos ilícitos e do dever de indenizar. Na esfera penal, a conduta médica pode ser enquadrada como crime sempre que exceder os limites da atuação legalmente permitida e causar lesão à integridade física, psíquica ou à vida da paciente. A depender da gravidade dos fatos, o profissional poderá responder, por exemplo, por lesão corporal, constrangimento ilegal, omissão de socorro ou, em situações extremas, por homicídio culposo. Cabe destacar que a responsabilização penal exige demonstração de dolo ou culpa grave, e está sujeita ao devido processo legal, com todas as garantias constitucionais. Por fim, na esfera ética-administrativa, o médico pode ser responsabilizado por violar preceitos do Código de Ética Médica, o que poderá resultar em advertência, suspensão ou até cassação do exercício profissional. Nessas hipóteses, a análise se concentra na conduta em face dos deveres profissionais, como o respeito à dignidade da paciente, o fornecimento de informações claras e o cumprimento do consentimento informado. Mesmo sem a configuração de crime ou de dano patrimonial relevante, a atuação do Conselho Profissional poderá reconhecer a falha ética, reforçando a natureza complexa da responsabilidade médica em suas diversas esferas no contexto da violência obstétrica. Partindo-se para uma análise verticalizada das esferas de responsabilidade, como afirmado anteriormente, no Brasil, a responsabilização do médico segue a regra geral da responsabilidade subjetiva, com fundamento nos arts. 186 e 927 do CC. É necessário, portanto, comprovar a ocorrência de conduta culposa (por negligência, imprudência ou imperícia), dano e nexo causal. Em se tratando de prestação de serviços por hospitais ou planos de saúde, poderá haver ainda responsabilidade solidária, inclusive com base no CDC. Em sede de parto, são exemplos de condutas que podem gerar responsabilidade civil: a realização de procedimentos sem consentimento informado (como episiotomias, cesáreas ou manobras dolorosas), práticas desnecessárias e não baseadas em evidências - como uma cesárea sem real indicação clínica, a omissão injustificada de analgesia e cesárea, a recusa ao acompanhante legalmente garantido ou ainda o uso de expressões ofensivas que afetem a dignidade da parturiente. Mesmo quando não há lesão física identificável, o dano moral é plenamente reparável, conforme já reconhecido por diversos tribunais brasileiros. A jurisprudência vem evoluindo no sentido de reconhecer a singularidade da vivência obstétrica e os impactos que práticas desrespeitosas podem gerar. Em Portugal, embora o CC também fundamente a responsabilidade civil médica na lógica subjetiva, o sistema jurídico apresenta nuances próprias. Os arts. 483.º e 562.º consagram que quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, está obrigado a reparar os danos decorrentes da sua conduta. No contexto da assistência ao parto, os danos reparáveis podem decorrer tanto de intervenções desnecessárias quanto da omissão de cuidados ou do desrespeito à vontade expressa da gestante. A jurisprudência portuguesa, tende a reconhecer a relevância do dano psíquico, especialmente quando há quebra da confiança entre médico e paciente ou afronta à autodeterminação reprodutiva. Vale destacar que, à época da redação deste trabalho, Portugal ainda não havia aprovado uma lei específica sobre violência obstétrica. No entanto, como demonstrado, os fundamentos legais já existentes permitiam responsabilizar condutas abusivas com base na violação de direitos fundamentais como a integridade física e moral, o respeito à dignidade da mulher e a necessidade de consentimento esclarecido. Com a entrada em vigor da lei 33/25, que será debatida oportunamente, esses entendimentos ganham densidade normativa, mas não representam uma ruptura: apenas reforçam um caminho, o entendimento jurídico já adotado por decisões e pela doutrina. Tanto no Brasil quanto em Portugal, a responsabilização civil na seara obstétrica exige uma análise contextualizada do caso concreto, levando em conta não apenas a técnica médica, mas também os direitos da mulher como sujeito ativo da experiência de parto e não como um objeto a ser esvaziado. Trata-se de uma responsabilidade que transcende o dano físico, adentrando o campo da dignidade humana e da integridade relacional entre médico, paciente e nascituro. O médico, ao atuar de forma desatenta, autoritária ou desprovida de empatia, incorre não só em erro técnico, mas em violação contratual qualificada, com repercussões civilmente indenizáveis. Já a responsabilização penal do médico por atos praticados durante o parto é menos frequente que a civil, mas não menos relevante. A violência obstétrica, quando ultrapassa certos limites, pode se encaixar em tipos penais, conforme já mencionado - especialmente se envolver lesões, constrangimentos, ofensas verbais ou omissão de socorro. A proteção penal se dirige tanto à gestante quanto ao nascituro, refletindo a relevância da tutela penal em momentos de elevada vulnerabilidade física e emocional. No Brasil, os dispositivos aplicáveis são diversos. A depender da conduta, o médico pode responder, por exemplo, por lesão corporal (art. 129 do CP), ao realizar procedimentos invasivos desnecessários ou não consentidos; no crime de constrangimento ilegal (art. 146), se obrigar a paciente, mediante intimidação, a submeter-se a práticas contra sua vontade; no crime de injúria (art. 140), ao proferir xingamentos ou comentários depreciativos durante o parto; e, em situações extremas, no crime de homicídio culposo (art. 121, §3º), quando sua negligência resultar na morte do bebê ou da parturiente. A omissão de socorro (art. 135) também é frequentemente invocada em contextos em que o profissional, mesmo presente, deixa de agir diante de risco evidente. Em Portugal, o CP também contempla a possibilidade de responsabilização criminal do médico. O art. 148.º prevê punição para quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outrem, inclusive no contexto da assistência médica. Já o art. 150.º estabelece que intervenções realizadas em desacordo com as leges artis, ou seja, fora dos padrões técnicos reconhecidos, podem configurar crime, sobretudo se gerarem perigo à vida ou à integridade da mulher ou do nascituro. O art. 156.º criminaliza a realização de tratamentos sem consentimento, exceto em situações de risco iminente, e o art. 157.º exige que o paciente esteja adequadamente esclarecido quanto à natureza e consequências da intervenção, sob pena de invalidar o consentimento. Ressalta-se que, em ambas as jurisdições, a responsabilização penal exige a comprovação de dolo ou culpa grave. No entanto, o exercício da medicina obstétrica, por sua complexidade e impacto emocional, exige do profissional mais do que técnica: exige sensibilidade, respeito e prudência. A ausência dessas qualidades pode ser juridicamente interpretada como descaso, desprezo à integridade da paciente ou negligência com a vida intrauterina, o que atrai a aplicação de sanções penais. Por isso, mais do que temer a responsabilização criminal, o médico deve compreendê-la como um alerta para os limites éticos e legais da sua prática. A humanização do parto não é apenas uma diretriz política, mas uma exigência jurídica. Violá-la, mesmo sob o pretexto da experiência clínica ou da rotina hospitalar, pode implicar não apenas indenizações, mas privação de liberdade, sanções restritivas de direitos ou até a destruição da carreira profissional. O direito penal, neste contexto, atua como a instância de resposta mais severa do ordenamento e, justamente por isso, deve ser tratado com seriedade e responsabilidade desde a formação médica. Para além das esferas civil e penal, como dito anteriormente, o médico obstetra está submetido a um terceiro eixo de responsabilização: a ética-profissional ou deontológica, fiscalizada pelos Conselhos de Medicina no Brasil e pela Ordem dos Médicos em Portugal. Trata-se de uma instância de análise que, embora não envolva diretamente reparação pecuniária ou sanção penal, possui impacto profundo sobre a legitimidade, a reputação e a continuidade do próprio exercício profissional. No Brasil, o CEM - Código de Ética Médica é o principal instrumento normativo que orienta a conduta esperada do profissional. A responsabilidade médica, como destaca o art. 1º do CEM, é sempre pessoal e fundamentada na presença de culpa, por imperícia, imprudência ou negligência. A violência obstétrica, mesmo sem tipificação própria no CEM, pode ser enquadrada em diversos dispositivos que exigem do médico respeito à dignidade, autonomia, intimidade e integridade da paciente. A realização de procedimentos sem consentimento (art. 22), o desrespeito à decisão da paciente (art. 31), a falta de esclarecimento adequado (art. 34) ou o uso de linguagem desrespeitosa (art. 23) são faltas éticas puníveis com advertência, suspensão ou cassação do registro profissional. Em Portugal, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos cumpre papel equivalente. O médico é obrigado a garantir o consentimento informado, o respeito pelas crenças e autonomia da gestante, bem como a comunicação empática, adequada e clara. O art. 19.º prevê o dever de esclarecimento, o art. 20.º trata do consentimento livre e informado, e o art. 25.º reforça o dever de informar com prudência, dignidade e humanidade. A omissão desses deveres, mesmo que não configure crime ou gere dano material imediato, é suficiente para ensejar a abertura de processo disciplinar, com sanções que incluem advertência, censura, suspensão ou mesmo expulsão da Ordem. Importante destacar que, diferentemente da esfera penal ou civil, a responsabilização ética não exige demonstração de nexo causal com dano físico, bastando a violação de um dever profissional ou o descumprimento das boas práticas de cuidado. Assim, mesmo um comentário desnecessário, uma atitude autoritária ou uma conduta tecnicamente correta, mas eticamente reprovável, pode ser sancionada. A perspectiva ética, portanto, antecipa o dano jurídico, atuando como instrumento de prevenção e regulação moral da prática médica. Essa dimensão é particularmente sensível na violência obstétrica, pois os princípios da medicina são centrados na pessoa. O respeito à mulher em trabalho de parto exige mais do que a ausência de erro técnico: há necessidade de escuta, acolhimento e compromisso com uma assistência baseada em evidências e em humanidade. A ética médica, nesse contexto, não é apenas normativa, ela é estrutural. A lei portuguesa 33/25: Marco normativo para a proteção da gestante e a prevenção da violência obstétrica A promulgação da lei 33/25, de 31 de março, representou um marco inédito no ordenamento jurídico português ao reconhecer expressamente a existência e gravidade da violência obstétrica. Pela primeira vez, o legislador tipificou juridicamente a prática como forma de violência institucional e de gênero, estabelecendo diretrizes objetivas para sua prevenção, monitoramento e responsabilização. A nova lei alterou a lei 15/14, consolidando a proteção na gravidez, no parto e no puerpério, além de reforçar o direito à autodeterminação sexual e reprodutiva da mulher. O art. 2.º da lei 33/25 define violência obstétrica como "a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais". Essa definição, reforça a proteção da gestante como sujeito autônomo de direitos, sem desconsiderar o papel do profissional ou os limites técnicos da atuação médica. Além disso, a lei criou mecanismos operacionais relevantes, como a Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto, que é responsável por promover campanhas educativas e de sensibilização para diminuição de atos de violência no parto e promoção da humanização. Estabeleceu obrigações documentais, como o registro justificado de qualquer desvio do plano de parto, a afixação obrigatória de cartazes informativos nos hospitais e a proibição de episiotomias de rotina sem indicação técnica fundamentada. A norma prevê, ainda, medidas educacionais e formativas. Assim, não apenas tipifica uma conduta, mas impulsiona uma mudança cultural e ética no atendimento obstétrico. Entretanto, a entrada em vigor da lei 33/25 não encerrou o debate. Projetos de lei que visam à sua revogação foram rapidamente apresentados no Parlamento, revelando resistências institucionais à regulação da prática obstétrica, evidenciando que a consolidação de um modelo de parto respeitoso e centrado na mulher depende não apenas de leis, mas da persistência na construção de consensos éticos e sociais duradouros, que para além da lei, faz-se necessária uma verdadeira mudança cultural. Reflexões finais - a necessidade de tutela integrada dos direitos em caso de colisão A violência obstétrica não se limita à agressão física, mas abrange condutas sutis e simbólicas que podem comprometer profundamente a dignidade da parturiente e a segurança do neonato. A responsabilização do profissional deve considerar o equilíbrio delicado entre a autonomia da mulher, os deveres de diligência médica e os direitos do nascituro. A ausência de lei específica no Brasil não impede o reconhecimento jurídico da violência obstétrica, desde que os princípios constitucionais, civis e éticos sejam adequadamente interpretados. Já em Portugal, a entrada em vigor da lei 33/25 reforça o compromisso com a humanização do parto, embora sua efetividade dependa de sua consolidação normativa e cultural. A atuação médica no parto carrega um dos encargos mais delicados e simbólicos da profissão: o de assistir à transição entre vida intrauterina e extrauterina, zelando simultaneamente por duas existências ou por vezes mais. O profissional não é inimigo da autonomia da mulher, tampouco mero executor da sua vontade, mas um agente técnico, ético e jurídico responsável por garantir a melhor prática possível, com base na medicina baseada em evidências, no diálogo empático e no respeito às escolhas informadas. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar que o nascituro, embora ainda não tenha personalidade jurídica plena, possui proteção legal desde a concepção e demanda atenção especial diante de riscos concretos. Por isso, a atuação obstétrica deve buscar constantemente o equilíbrio entre três eixos fundamentais: a vontade da mulher gestante, a responsabilidade técnica e legal do profissional de saúde e os direitos do nascituro. Quando um desses pilares é ignorado, rompe-se o vínculo de confiança que sustenta uma assistência humanizada e juridicamente segura. O objetivo das normas é transformar a cultura do cuidado, e não apenas punir. O médico obstetra do século XXI deve ser tecnicamente preparado, legalmente consciente, humanamente disponível e empático. A escuta, o diálogo e o respeito à individualidade da mulher, são elementos centrais de uma assistência ética, segura e digna. _______ ALMEIDA, Maria Oliveira de. Violência obstétrica: nulla poena sine lege? Lisboa, 2022. - Dissertação de Mestrado em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Lusíada. DANTAS, Eduardo. Direito Médico. 5 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. FERRAZ, Inês Isabel Ribeiro. A Raiz de Mandrágora: A Violência Obstétrica Enquanto Questão de Responsabilidade Civil Médica e Consentimento Informado. Coimbra, 2024. Dissertação. KFOURI Neto, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 11 ed. Ver, atual. e ampl. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. SIMÕES, Vânia Alexandra dos Santos, Violência Obstétrica, Direitos das Mulheres e Tutela Jurídica. Lisboa, 2023. Tese de Doutoramento
A autonomia da paciente, especialmente no contexto obstétrico, constitui expressão concreta de sua dignidade e dos direitos fundamentais à liberdade, à saúde, à autodeterminação e aos direitos sexuais e reprodutivos, consagrados na Constituição Federal de 1988, em dispositivos infraconstitucionais e em diversas resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina. No campo da saúde, o exercício dessa autonomia se concretiza por meio de deveres atribuídos ao médico, sobretudo o dever de informação, que pressupõe esclarecimentos precisos, em linguagem acessível e compatível com o nível de compreensão do assistido, permitindo-lhe consentir ou recusar, de forma livre e consciente, os procedimentos propostos. O Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) reforça aludido dever em diversos dispositivos (arts. 22, 24, 31, 32 e 34), sendo complementado pela resolução CFM 2.232/19, que dispõe expressamente no art. 1º: "a recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão." Contudo, é importante destacar que a autonomia da paciente, embora garantida pela legislação e reafirmada pela resolução CFM 2.232/19, não possui caráter absoluto, especialmente em contextos de risco iminente de morte. Além disso, as diretivas expressas pela gestante devem ser analisadas à luz da autonomia técnica do médico, igualmente respaldada por fundamentos legais e deontológicos. Essa relação (entre os limites da vontade da paciente e a atuação profissional adequada) apresenta desafios recorrentes na prática obstétrica, inclusive quando a parturiente apresenta um plano individual de parto com escolhas que podem ser incompatíveis com a segurança assistencial ou com as melhores evidências científicas disponíveis. O PIP - plano individual de parto é um documento que registra previamente os desejos da gestante em relação ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato. É uma diretiva antecipada de vontade, em que a mulher expressa preferências sobre procedimentos, intervenções e condutas que afetarão diretamente seu corpo e sua experiência de parto. Representa um instrumento de proteção à integridade física e psíquica da mulher, funcionando como barreira contra condutas de apropriação ou desrespeito ao seu corpo. Embora não seja condição para a realização do parto, o PIP é um direito da gestante, expressamente reconhecido por diretrizes do Ministério da Saúde1, recomendação do CFM2 e por algumas legislações estaduais3. Cabe ao médico garantir que a paciente seja esclarecida sobre esse direito, em respeito aos princípios elementares da bioética. Ainda assim, sua aplicação na prática exige cautela, pois envolve decisões clínicas que impactam diretamente a saúde materno-fetal, impondo-se, em razão disso, equilíbrio ético, técnico e jurídico, sem respostas absolutas ou soluções padronizadas. Plano de parto: elaboração conjunta, balizas técnico-jurídicas e busca de consenso por meio do diálogo Conquanto o PIP tenha sido concebido para salvaguardar a autonomia, preferências e protagonismo da gestante, é recomendável que sua elaboração conte com a participação técnica do profissional. A efetividade do documento depende de construção colaborativa, pautada na medicina baseada em evidências e nos limites legais da atuação médica. Compete ao obstetra orientar a paciente de forma clara, realista e juridicamente adequada, esclarecendo riscos, benefícios e inviabilidades clínicas ou normativas de determinadas escolhas. Por exemplo, caso a gestante manifeste o desejo de submeter-se a um parto domiciliar, compete ao médico esclarecer, de forma respeitosa, que o CFM, apesar de não ter editado resolução com caráter proibitivo, orienta que o parto ocorra em ambiente hospitalar, por ser mais seguro para a mãe e o bebê (recomendação CFM 1/12), em razão de riscos de eventos imprevisíveis, como distócias, sofrimento fetal e necessidade de intervenções emergenciais. A depender da circunscrição do médico, todavia, há resoluções em vigor que vedam a participação médica em partos fora do ambiente hospitalar, como é o caso das resoluções CREMESP 111/2004  e CRM-SC 193/19. O plano de parto deve ser, via de regra, abraçado pela equipe responsável pela assistência. Quando o documento é apresentado apenas no dia do parto, tendo sido elaborado sem a participação do médico plantonista, cabe a ele receber o documento, avaliá-lo e, sempre que possível, seguir suas diretrizes, sem prejuízo de dialogar com a paciente sobre seu conteúdo, à luz das condições clínicas apresentadas, das possibilidades técnicas da unidade de saúde e das evidências científicas disponíveis. É recomendável conciliar os desejos da paciente e a conduta assistencial adequada, propondo alternativas tecnicamente viáveis. A título de exemplo, diante da recusa de uma cesariana indicada, pode-se propor uma tentativa de parto instrumental com fórceps, se houver viabilidade clínica. Essa abordagem está em conformidade com o art. 2º, parágrafo único, da resolução CFM 2.232/19, que prevê: "o médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível." O parecer CFM 5/24 também reforça essa diretriz ao tratar do plano individual de parto, orientando que o profissional ofereça opções seguras diante de impasses. Impasse entre a vontade da paciente e a conduta médica: Deveres do obstetra em contextos críticos Se a vontade da gestante representar risco grave à sua saúde ou à do feto, sem consenso possível, o médico deve seguir as diretrizes abaixo: Em caso de risco iminente de morte, a intervenção médica, a princípio, se impõe como dever legal e ético, mesmo sem consentimento prévio, conforme o art. 11 da resolução CFM 2.232/19 e o art. 146, §3º, I, do Código Penal. A modo  exemplificativo, diante de um quadro de eclâmpsia com convulsões e instabilidade hemodinâmica, é lícito (e obrigatório) propor a antecipação do parto por cesariana, ainda que a paciente tenha registrado preferência pelo parto vaginal em seu plano de parto. Se a paciente estiver lúcida e em condições de compreender, o diálogo deve ser priorizado, esclarecendo-se os riscos envolvidos e a necessidade da conduta proposta. Nos casos em que não há tempo hábil para o consentimento ou a paciente se encontra inconsciente, o médico deverá realizar intervenção médica imediata, desde que tecnicamente fundamentada, proporcional e registrada no prontuário, para salvaguarda da vida da mãe e/ou do feto. Cumpre dizer que está em trâmite a ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100 (2ª Vara Cível Federal de São Paulo). Na referida ação, foi inicialmente concedida tutela de urgência para suspender a eficácia do § 2º do art. 5º da resolução CFM 2.232/20094 (que previa a possibilidade de a recusa terapêutica da gestante ser considerada abuso de direito em relação ao feto) bem como suspender parcialmente os arts. 6º e 10º da mesma norma. O juízo afastou a prerrogativa conferida ao médico de interpretar livremente o conceito de "abuso de direito" por parte da gestante em relação ao feto, com o objetivo de coibir condutas médicas autoritárias. Ainda assim, reconheceu-se que o risco efetivo à vida ou à saúde da gestante e/ou do feto deverá ser considerado fundamento legítimo para restringir a escolha da paciente. Convém destacar que a sentença revogou a referida liminar, mas seus efeitos foram restabelecidos por decisão monocrática proferida pelo desembargador Mairan Maia, do TRF da 3ª Região, ao apreciar pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta pelo Ministério Público Federal. O mérito do recurso, até a presente data (30/6/25), permanece pendente de julgamento. Na ausência de risco iminente de morte, ou seja, fora do contexto de uma emergência obstétrica, a escolha da paciente não deve ser acolhida quando colidir com a autonomia técnica do médico. Um exemplo é a insistência da gestante em se submeter ao parto normal mesmo diante de herpes genital ativa no momento do parto, prática contraindicada pela literatura médica. Nessas circunstâncias, o médico deve observar os requisitos previstos no art. 12, parágrafo único, da Resolução CFM 2.232/19, em consonância com o Parecer CFM 2/24: i) Documentar minuciosamente a conduta indicada, os riscos da recusa e a contraindicação clínica da intervenção pretendida pela paciente; ii) Formalizar a recusa da paciente por escrito, em vídeo ou áudio, com declaração de ciência dos riscos e assinatura de duas testemunhas, anexando ao prontuário; iii) Comunicar a direção técnica da instituição para avaliar a substituição do profissional. Na ausência de outro médico disponível, o obstetra não poderá se afastar, mas também não está obrigado a executar uma intervenção contraindicada, devendo adotar postura expectante e formalizar a recusa da paciente ao tratamento indicado, nos mesmos moldes descritos acima. Objeção de consciência: quando recusar é legítimo, e quando não é permitido Nas situações em que a conduta solicitada pela paciente, ainda que lícita e prevista na literatura médica, conflita com valores morais, íntimos ou religiosos do profissional, configurando objeção de consciência, ele poderá se abster de realizá-la, nos termos dos arts. 7º e 8º da Resolução CFM 2.232/19. É o caso, por exemplo, de um obstetra que se nega a realizar laqueadura tubária durante cesariana ou praticar aborto terapêutico, por motivos de foro íntimo. Em tais contextos, o objetor deve: i)  Manifestar sua objeção à paciente, com urbanidade e clareza, colocando-se à disposição para fornecer as informações necessárias à continuidade da assistência por outro profissional; ii) Registrar no prontuário a sua objeção, sem juízo de valor sobre a decisão da paciente; iii) Comunicar formalmente à direção técnica da instituição, para que seja providenciada a substituição imediata por outro médico não objetor. Em caso de urgência, risco de morte ou ausência de outro obstetra, o médico tem o dever de atuar, independentemente de objeções pessoais. Planos de parto e judicialização: Entre a escolha da parturiente e a responsabilidade médica O Judiciário tem reconhecido a legitimidade dos planos de parto. Em recente julgado, o TJ/RS confirmou a condenação de hospital por impedir, sem justificativa válida, a presença do pai na sala de parto, desrespeitando o plano previamente apresentado e gerando indenização por dano moral.5 Por outro lado, o cumprimento do PIP pode ser relativizado diante de intercorrências. Foi o que entendeu o juízo da 2ª Vara Cível de Sorocaba/SP, ao julgar improcedente pedido de indenização por suposto desrespeito ao plano de parto.6 A autora alegava ter sido vítima de "violência obstétrica" porque não houve contato pele a pele na primeira hora de vida da bebê, o clampeamento do cordão umbilical foi precoce e porque a doula não pôde acompanhá-la no centro cirúrgico. Contudo, o perito esclareceu que houve laceração perineal de 3º grau com rompimento de esfíncter anal, o que exigiu correção cirúrgica urgente e inviabilizou a presença do bebê e da doula na sala operatória. Além disso, o clampeamento precoce foi indicado diante da presença de circular cervical justa no bebê, medida necessária para evitar hipóxia. O juízo concluiu que as condutas adotadas pela equipe médica estavam alinhadas à boa prática obstétrica e respaldadas por evidências científicas. Assim, o caso ilustra que o disposto no plano de parto pode ceder frente a situações de risco real para mãe e/ou bebê. Notas finais: O parto como território de escuta, ciência e confiança Com o fortalecimento da autonomia da gestante, o plano individual de parto passou a exigir do obstetra uma atuação ainda mais consciente, humana e respaldada. A construção de uma assistência segura depende da compatibilização entre os limites da ciência médica e os desejos expressos pela paciente. Diante de recusas terapêuticas ou exigências inexequíveis, cabe ao médico  orientar com paciência, registrar adequadamente e manejar a situação com escuta qualificada, em conformidade com as normas éticas e legais. O plano de parto, embora valioso, não é absoluto. Pode, inclusive, não ser acolhido diante de riscos concretos à saúde ou à vida. Ainda assim, não se admitem condutas médicas arbitrárias, como submeter a gestante, à força, a procedimentos que rejeita, o que violaria sua dignidade. Nessas situações, o diálogo continua sendo o recurso mais eficaz para conduzir decisões em cenários limítrofes. Enfim, este artigo buscou oferecer algumas balizas jurídicas à prática obstétrica, sem pretensão de respostas definitivas, até porque nem as resoluções do CFM, tampouco decisões como a proferida na ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100, solucionam plenamente os impasses do parto. Em todos os casos, o bom senso, uma conversa franca e a precisão técnica devem conduzir as ações médicas. Contar com suporte jurídico especializado é medida estratégica para reduzir riscos e judicializações. _________ 1 BRASIL. Ministério da Saúde; Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. 51?p. Disponível aqui. Acesso em: 27/6/25.   2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Parecer CFM nº?5/2024. [Parecer sobre Plano Individual de Parto]. Brasília: CFM, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 jun. 2025. 3 SÃO PAULO (Estado). Lei nº 17.431, de 14 de outubro de 2021. Dispõe sobre o direito ao plano de parto e pós-parto imediato no âmbito do Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Poder Executivo, São Paulo, 15 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em 27/6/25 4 Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientese objeção de consciência na relação médico-paciente 5 TJRS. Recurso Inominado n. 5010431-62.2018.8.21.0019, 2ª Turma Recursal da Fazenda Pública, Rel. Daniel Henrique Dummer, j. 19 jun. 2024, publ. 2 jul. 2024. 6 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. 3ª Vara Cível de Sorocaba. Processo n. 1031702-86.2020.8.26.0602. Ação de indenização por danos morais. Sentença da Juíza Alessandra Lopes Santana de Mello. Sorocaba, SP, 20 out. 2023. _________ CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.232/ 2019.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Parecer CFM nº 5/2024.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. BRASIL. Justiça Federal. São Paulo. 2ª Vara Cível Federal. Ação Civil Pública nº 5021263-50.2019.4.03.6100. Ministério Público Federal x Conselho Federal de Medicina. Classe: Ação Civil Pública Cível. São Paulo, em tramitação. Acesso em 30/6/25.
O portador de doença rara, enquanto usuário do SUS, é titular de direitos expressamente garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), notadamente o direito universal e igualitário ao acesso à saúde (art. 196, CRFB/1988). Essa condição, por si só, deveria assegurar o atendimento integral de suas necessidades clínicas pela rede pública, nos moldes dos princípios da integralidade, equidade e universalidade que regem o SUS (art. 7, I, II e IV da lei 8.080/1990). Na prática, contudo, os pacientes acometidos por enfermidades de baixa prevalência enfrentam um cenário de desassistência e invisibilidade. Faltam protocolos clínicos específicos, há escassez de medicamentos incorporados e, não raramente, a omissão estatal perpetua a exclusão desses indivíduos do cuidado público efetivo. Ao contrário do que ocorre com doenças mais prevalentes, muitas delas contempladas por diretrizes terapêuticas padronizadas, o indivíduo com doença rara frequentemente encontra obstáculos regulatórios, científicos e logísticos que dificultam ou inviabilizam o acesso ao tratamento adequado. Reconhecendo essas especificidades clínicas e os desafios assistenciais próprios das doenças raras, o Ministério da Saúde instituiu, por meio da portaria GM/MS 199/14 (atualmente incorporada à portaria de consolidação 2/17, em seu anexo XXXVIII), a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Para os fins dessa política pública (art. 3º do anexo XXXVIII da portaria de consolidação 2/17): "considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 a cada 2.000 habitantes.". Trata-se, portanto, de um grupo populacional estatisticamente reduzido, o que impacta diretamente na priorização e no desenvolvimento de terapias específicas. Mais delicados ainda são os casos de doenças ultrarraras, cuja prevalência é igual ou inferior a 1 caso para cada 50 mil habitantes, conforme previsto no art. 2º da resolução 563/17 do Conselho Nacional de Saúde. Essa baixa prevalência, aliada à complexidade clínica, contribui para a ausência de protocolos e a não incorporação de medicamentos ao SUS. Por essa razão, frequentemente o acesso ao tratamento é negado, restando ao paciente buscar o Judiciário para garantir o fármaco prescrito. Nesse contexto, reconhecendo as peculiaridades que envolvem os portadores de doenças raras e ultrarraras, o STF, ao julgar o RE 657.718/MG (Tema 500 da repercussão geral), estabeleceu critérios específicos para a concessão judicial de medicamentos sem registro sanitário na Anvisa. A tese firmada ao estabelecer critérios excepcionais para a concessão judicial de medicamentos sem registro na Anvisa, em seu item 3, "I", excepcionou expressamente os casos de doenças raras e ultrarraras, afastando a exigência de pedido de registro no Brasil, reconhecendo a inviabilidade regulatória em razão da baixa prevalência e do desinteresse comercial. Neste sentido, o voto vista do ministro Alexandre de Moraes, proferido no julgamento do Tema 500 (RE 657.718/MG), no qual reconhece expressamente a excepcionalidade das doenças raras (p. 15): Então, há essa problemática da dificuldade de análise dos medicamentos órfãos até por parte da Anvisa, uma vez que não pedido o registro, também ela não tem obrigatoriedade de analisar. São aqueles medicamentos destinados a doenças que atingem até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas a cada dois mil indivíduos, nos termos do art. 3º da portaria 199, de 1914, que definiu, no Brasil, com parâmetros mundiais, obviamente, o que é doença rara e semi rara. É crucial, obviamente, que, nesses casos, haja um procedimento de análise para verificação da disponibilidade desses medicamentos. Na mesma linha, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vista (p. 21), reforça a necessidade de flexibilização excepcional para medicamentos órfãos, nos seguintes termos: A única exceção em relação a esse requisito seria o caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, para os quais não houve solicitação de registro, em razão da falta de viabilidade econômica. Nesses casos, a parte deverá demonstrar que (i) a doença é rara conforme os critérios da RDC - Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa 205/17 (enfermidade que atinge até 65 pessoas em cada 100 mil) e (ii) não há protocolo clínico específico do Ministério da Saúde para o tratamento da doença. Inclusive, a súmula vinculante 60 (SV 60), resultado da sistematização do Tema 1.234, ao tratar em sua diretriz II sobre a "definição de medicamentos não incorporados", recepciona expressamente o entendimento fixado no Tema 500 do STF, determinando sua aplicação aos casos de fármacos não incorporados em razão da ausência de registro sanitário na Anvisa (item 2.1.1 da SV 60). Quanto aos fármacos com registro na Anvisa, mas ainda não incorporados ao SUS, seja por ausência de solicitação, mora na análise pela Conitec e/ou inexistência de portaria específica do Ministério da Saúde, impõe-se especial cautela interpretativa, a fim de que não se estabeleçam limitações injustificadas ao acesso de pacientes com doenças raras aos tratamentos prescritos. Nesse cenário, a SV 60, em sua Diretriz IV, trata da "Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamentos pelo SUS", enquanto a súmula vinculante 61 (SV 61), decorrente do Tema 6, estabelece critérios cumulativos para a concessão excepcional de medicamentos não incorporados, desde que possuam registro sanitário na Anvisa. Dentre as condições, destaca-se, por sua rigidez, a imposição ao demandante de demonstrar, mediante evidências científicas de alto nível, a segurança e a eficácia do fármaco, conforme a Medicina Baseada em Evidências, bem como a ausência de substituto terapêutico na rede pública para a condição clínica (itens 4.3 e 4.4 da SV 60 e item 2, "d" da SV 61). Isso porque a exigência de evidências de alto nível, quando aplicada a pacientes com doenças raras e ultrarraras, pode inviabilizar o acesso ao tratamento, resultando em completa desassistência clínica, limitada, quando muito, a cuidados paliativos. Para fins de compreensão quanto à qualificação das evidências científicas - especialmente no que se refere ao denominado alto nível - destaca-se, como referência metodológica o sistema GRADE - Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation, mencionada nas diretrizes metodológicas disponibilizadas pela própria Conitec em seu sítio oficial.1 O sistema GRADE, classifica a qualidade da evidência científica, especialmente no tocante à segurança e eficácia na utilização de um fármaco, em quatro níveis: muito baixo, baixo, moderado e alto, conforme (Brasil, 2014, p. 19): No sistema GRADE, a avaliação da qualidade da evidência é realizada para cada desfecho analisando para uma dada tecnologia, utilizando o conjunto disponível de evidência. No GRADE, a qualidade da evidência é classificada em quatro níveis: alto, moderado, baixo, muito baixo, [...]. Essa graduação representa diferentes níveis de confiabilidade, variando desde evidências menos estruturadas até estudos metodologicamente robustos, sendo o grau de qualidade determinado pelas características técnicas, metodológicas e resultados de cada estudo. No sistema GRADE, o que justifica a progressão do nível de evidência não é apenas a constatação de eficácia em casos pontuais, mas sim a reprodutibilidade sistemática de resultados, com análise estatística robusta e metodologia científica rigorosa (BRASIL, 2014, p. 23). Portanto, não há como se alcançar o patamar de "alto nível" com base em dados isolados ou experiências clínicas individuais. A exigência por ensaios randomizados de larga escala reflete justamente essa necessidade de uniformidade, controle de variáveis e validação estatística dos resultados obtidos. Isto é, o "alto nível" de evidência, pressupõe a existência de ensaios clínicos randomizados,2 revisões sistemáticas3 ou meta-análises4 que atestam a consistência dos resultados. Em contrapartida, o "nível muito baixo" corresponde a construções empíricas5 e observacionais,6 baseadas na experiência clínica do profissional médico para sustentar a indicação de determinado fármaco. Trata-se de critério técnico justificável em cenários de ampla base populacional, mas inaplicável a doenças raras e ultrarraras, cuja baixa prevalência inviabiliza estudos amplos e atualizados. Exigir, nesses casos, evidências de alto nível como condição para concessão do tratamento equivale a negar, na prática, o próprio direito à saúde, impondo ao paciente um ônus probatório desproporcional. Tal exigência compromete a efetividade da tutela jurisdicional e enfraquece a proteção constitucional garantida pelos arts. 6º e 196 da CRFB/1988. Diante disso, a interpretação sistemática, assegura a coerência do ordenamento jurídico e preserva a integridade dos preceitos constitucionais, como o direito à saúde (art. 196, da CRFB/1988), o acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB/1988) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/1988). Conforme leciona Barroso (2003, p. 136): A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. Conforme expressamente consignado no ponto 4 da ementa do RE 566.471/RN (Tema 6 do STF): "a análise conjunta do presente Tema 6 e do Tema 1.234 é, assim, fundamental para evitar soluções divergentes sobre matérias correlatas". Sob essa ótica, a SV 61 deve ser interpretada em conjunto com a SV 60, que incorpora expressamente o Tema 500 do STF, o qual admite a flexibilização probatória para medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras. Não se pode admitir, portanto, que as súmulas vinculantes 60 e 61 sejam interpretadas de forma isolada, a ponto de estabelecer um ônus probatório intransponível que, na prática, inviabiliza o acesso à saúde, especialmente para pacientes acometidos por doenças de baixa prevalência (raras e ultrarraras). Esse resultado interpretativo comprometeria não apenas a efetividade da jurisdição constitucional, como também anularia, por via oblíqua, os comandos da própria Constituição Federal. Deste modo, é imperioso reconhecer que, nos casos de doenças raras e ultrarraras, mesmo quando se trate de medicamentos com registro sanitário vigente na Anvisa, a carga probatória exigida não pode ser superior àquela delineada para medicamentos sem registro, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade e tão logo da vedação do excesso (art. 5º, § 2º da CRFB/1988). Noutras palavras, de modo lógico e coerente, não se justifica exigir grau de prova mais rígido em favor de pacientes que buscam medicamentos registrados, ainda que não incorporados ao SUS, do que se exige nos casos excepcionais de ausência de registro na Anvisa, quando se está diante de fármaco essencial ao tratamento de condição clínica rara. Portanto, a aplicação cega e descontextualizada da exigência de Medicina Baseada em Evidências, em seu alto nível, sem considerar os limites epistêmicos das doenças raras e ultrarraras, converte-se em injustiça manifesta, pois torna inócuo o direito ao tratamento e, consequentemente, o próprio direito à vida. Diante disto, é dever do Poder Judiciário, na condição de garantidor dos direitos fundamentais, aplicar os critérios técnicos de forma compatível com os princípios constitucionais, ajustando a exigência probatória à realidade epidemiológica da enfermidade e à viabilidade concreta de produção científica. A interpretação sistemática das súmulas vinculantes 60 e 61, em consonância com o Tema 500 do STF, convergem nesse sentido. _________ 1 Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/avaliacao-de-tecnologias-em-saude/diretrizes-metodologicas. Acesso em: 7 jun. 2025. 2 Ensaios clínicos randomizados são estudos que alocam os participantes de forma aleatória entre grupos de controle e experimental, com o objetivo de comparar efeitos terapêuticos de maneira imparcial. A randomização busca equilibrar características entre os grupos e a ocultação da alocação evita viés de seleção, garantindo maior validade aos resultados do estudo - Disponível aqui. Acesso em: 19/6/25. 3 A Revisão Sistemática (Brasil, 2012, p.13): é um sumário de evidências provenientes de estudos primários conduzidos para responder uma questão específica de pesquisa. Utiliza um processo de revisão de literatura abrangente, imparcial e reprodutível, que localiza, avalia e sintetiza o conjunto de evidências dos estudos científicos para obter uma visão geral e confiável da estimativa do efeito da intervenção. 4 A meta-análise (Brasil, 2012, p. 13): é uma análise estatística que combina os resultados de dois ou mais estudos independentes, gerando uma única estimativa de efeito. A metanálise estima com mais poder e precisão o "verdadeiro" tamanho do efeito da intervenção, muitas vezes não demonstrado em estudos únicos, com metodologia inadequada e tamanho de amostra insuficiente. 5 As construções empíricas se referem ao conhecimento clínico baseado na prática médica cotidiana, sustentado por observações individuais, experiência profissional e relatos de caso, sem método científico rigoroso. São classificadas como estudos observacionais descritivos e, conforme diretriz do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014, p. 20): "opiniões de especialista não é caracterizada formalmente como evidência, devendo buscar preferencialmente outras fontes de informação, como por exemplo estudos observacionais não comparados (série e relatos de casos)". 6 Os estudos observacionais analíticos apresentam delineamento metodológico estruturado, com análise comparativa entre grupos. Destacam-se: (i) o estudo de coorte, que acompanha indivíduos expostos e não expostos ao longo do tempo a determinada condição; e (ii) o estudo caso-controle, que compara indivíduos com e sem determinada condição. ____________ BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. Ed. São Paulo: S araiva, 2003. BRASIL. Conselho Nacional de Saúde (CNS).  Resolução n. 563 de 10 de novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 4/6/25. BRASIL. Ministério da Saúde (MS).  Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 27/9/24. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: sistema GRADE - manual de graduação da qualidade da evidência e força de recomendação para tomada de decisão em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27/9/24. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 61.  A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24/12/24.
Recentemente, a Câmara dos Deputados da França aprovou projeto de lei que autoriza a prática da morte assistida, também denominado suicídio assistido, procedimento no qual um terceiro auxilia uma pessoa que deseja pôr fim à própria vida, geralmente fornecendo os meios ou orientações para que ela mesma realize o ato.1 Além disso, o projeto contempla a legalização da eutanásia ativa, que ocorre quando um profissional da saúde, geralmente um médico, administra diretamente uma substância letal ao paciente, com o objetivo de abreviar seu sofrimento diante de uma condição médica grave e irreversível.2 A proposta ainda precisa passar pelo crivo do Senado francês, onde possivelmente sofrerá alterações3. De todo modo, a iniciativa reacendeu debates intensos na sociedade francesa e internacional sobre os limites éticos, jurídicos e religiosos da intervenção médica no fim da vida, pois questões como o direito à vida, à autodeterminação do paciente, o papel do médico e os limites da dignidade humana são centrais nessa discussão. No cenário brasileiro, por exemplo, as práticas da eutanásia e suicídio assistido continuam sendo criminalizadas, o que torna oportuno revisitar o seu enquadramento jurídico à luz do CP, bem como apresentar o PL 236/124, que versa sobre a temática. Neste sentido, de acordo com o art. 121 do CP, aquele que mata alguém incorre em pena de reclusão de seis a vinte anos. No entanto, em seu parágrafo primeiro há um caso de diminuição de pena, que pode incidir nos casos em que o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, podendo, assim, o juiz reduzir a pena de um sexto a um terço. Desse modo, no que diz respeito à eutanásia, seja ativa ou passiva5, tipificada no art. 121, § 1º, do CP, como homicídio simples-privilegiado, ou seja, quando um indivíduo, como um médico, tira a vida de outro, neste caso, de um paciente, porém, somente o faz em razão de relevante valor moral, como um ato de compaixão. Esta opção legislativa é explicada no item 39, da Exposição de Motivos da Parte Especial do CP: Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico), a indignação de um traidor da pátria, etc (Brasil, 1940). Destarte, de acordo com o item 39 da Exposição de Motivos do CP, o homicídio pode ter a pena atenuada quando realizado sob situações que, embora tipifiquem um crime, são motivados por razões que encontram apoio moral ou ético, como no caso do homicídio eutanásico, no qual o ato ocorre movido pela compaixão diante do sofrimento extremo e irremediável da vítima, uma situação em que o objetivo é aliviar a dor e o sofrimento. Verifica-se, pois, que o legislador optou por dar um tratamento mais brando nestas hipóteses, o que é benéfico para aquele que auxilia alguém a interromper a própria vida em razão de sofrimento. Neste sentido, observa-se que no atual estágio do ordenamento jurídico brasileiro a chamada eutanásia configura crime de homicídio. O máximo que pode ocorrer em casos que tais e' o reconhecimento de uma redução de pena devido a` configuração do chamado homicídio privilegiado.6 A natureza jurídica do homicídio eutanásico, portanto, diz respeito a uma causa de diminuição de pena a ser aplicada em havendo a condenação do agente. Ademais, em termos processuais, como o Ministério Público poderá oferecer denúncia em razão da prática de crime doloso contra a vida - intenção e vontade de eliminar vida humana alheia - a competência é do Tribunal do Júri, que apreciará eventual privilégio frente ao ato, nos termos do art. 483, IV, do CPP. No que diz respeito ao suicídio assistido, a tipificação penal seria diversa. Ambos os crimes estão presentes na Parte Especial do CP, no Título I, relativo aos crimes contra as pessoas, mais especificamente no Capítulo I, dos crimes contra a vida, de modo que a morte assistida se aloca no art. 122, do CP, que estabelece como crime persuadir ou encorajar alguém a cometer suicídio ou automutilação, ou prestar qualquer tipo de auxílio material para tal fim, de modo que a conduta é punível com reclusão que varia de 6 meses a 2 anos. Ademais, o art. 122 do CP define que se a tentativa de suicídio resultar em lesão corporal grave ou gravíssima, sem a ocorrência de morte do indivíduo, a pena é aumentada para reclusão de 1 a 3 anos, e se o suicídio resultar, de fato, em morte, a pena é de 2 a 6 anos de reclusão. Ressalta-se, ainda, que existem agravantes que duplicam a pena, como o motivo torpe, egoísta, ou quando a vítima é menor de idade ou possui capacidade de resistência diminuída, além de casos em que a conduta é realizada por meios virtuais ou em tempo real. Observa-se, neste caso, que não há qualquer causa de diminuição da pena. Desse modo, caso um profissional da saúde cometa algum desses delitos, no momento da aplicação da pena devem ser observados os princípios constitucionais e penais da individualização da pena, da proporcionalidade e da culpabilidade, a fim de garantir uma resposta estatal adequada à gravidade do fato e à condição subjetiva do agente. Não menos importante, insta salientar que no Brasil, o PL 236/12, também conhecido como "Novo CP", de autoria do senador José Sarney, que está em tramitação no Congresso Nacional, propõe a criação de um tipo penal próprio para a eutanásia, que foi apresentado no art. 122 do novo códex e considera a prática um crime autônomo, de modo que não está mais vinculada a um crime principal (homicídio simples) para existir. Neste sentido, ainda há presença da pena, definida em reclusão de dois a quatro anos ao agente que realiza, de modo a demonstrar que a proposta do possível novo dispositivo legal visa preservar a vida do indivíduo, mesmo que este tenha solicitado pela abreviação, de forma que, o bem jurídico fundamental - a própria vida - não pode ser cessado de maneira artificial, ainda que se trate de uma enfermidade irreversível que provoca sofrimento ao indivíduo. Demais disso, o parágrafo primeiro do art. 122 apresentado determina ainda a possibilidade de extinção da punibilidade com o perdão judicial, conforme art. 107, IX, do CP vigente, a ser apreciado a depender das circunstâncias do caso concreto pelo magistrado responsável pelo julgamento do caso. Ou seja, seria possível que o juiz não aplicasse a pena estabelecida, caso fossem reconhecidos graus de parentesco entre a vítima e o indivíduo que praticou ou se o agente possuísse vínculos afetivos, como no caso de um médico que trata um paciente à longa data, de modo a relativizar a aplicabilidade da imputação do crime de eutanásia. Contudo, ainda que o "Novo CP" tenha inovado ao tipificar a eutanásia, deixou diversas lacunas abertas. Inicialmente, tem-se que mesmo colocando a eutanásia como figura autônoma e sendo proposto um marco penal menor, não há, de fato, diferença para o que já é estabelecido no atual ordenamento jurídico, uma vez que existe a causa de diminuição da pena - privilegiadora - do homicídio simples. Ademais, observa-se que a redação permite que familiares realizem a prática sem que sejam responsabilizados, porém, em nada muda ao médico, pois a análise será subjetiva. Ora, como medir os laços de afeição do médico com a vítima? Será pelo tempo que ele a acompanha/assiste? Será pela afeição que desenvolveu em um curto tempo em decorrência de ser um indivíduo sensível? Será pelo estado de saúde e consequente sentimento de pena? Não há especificação. Neste mesmo sentido, a "permissão" para que parentes realizem a prática também se mostra inviável, uma vez que na eutanásia, é imprescindível que seja a realização do ato pelo profissional da saúde qualificado. Isso porque, os médicos e enfermeiros, por exemplo, são, de fato, capacitados para realizar a eutanásia, se for uma eutanásia ativa, por exemplo, são eles quem possuem o conhecimento para injetar um medicamento corretamente no paciente, ou no caso da eutanásia passiva, seriam os responsáveis por saber qual conduta deveria ser realizada no paciente e deixar de realizá-la. Permitir que familiares possam realizar a eutanásia e, mais ainda, que não sejam punidos por isso, gera uma possibilidade de margem de erro na prática eutanásica. E se o familiar aplicar a medicação errada e, em vez de causar a morte do paciente, trazer sequelas piores que as existentes? E se o enfermo não morrer? Existirá diferenciação entre um familiar que irá praticar a eutanásia por compaixão daquele que irá realizar para que possa ter acesso a herança do enfermo, por exemplo? Poderá ser realizada a eutanásia em qualquer local? Inúmeras são as possibilidades de erro, tanto técnicos, quanto morais. Neste sentido, deveria o referido projeto ter possibilitado a execução somente aos profissionais da saúde, ou, ao menos, deveriam estes figurar entre aqueles cuja pena pode ser afastada de acordo com o caso concreto. Trata-se, portanto, de uma norma penal em branco, uma vez que, se aprovada, seria necessário realizar complementação ao conteúdo apresentado, pois permanece omissiva em pontos essenciais, conforme apresentado. Destarte, diante de todo o apresentado, conclui-se que a eutanásia e o suicídio assistido são temas complexos que envolvem aspectos jurídicos, éticos, médicos e sociais. Assim, ainda que o PL 236/12 tente avançar no tratamento normativo da eutanásia ao propor sua tipificação autônoma e prever hipóteses de perdão judicial, sua redação carece de maior precisão e segurança, especialmente quanto à definição de quem pode praticar o ato e sob quais condições. _______ 1 MASSON, Cleber. Direito Penal - Parte Especial (arts. 121 a 212). 17ª ed. São Paulo: Método, 2018. p. 96. 2 FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Eutanásia e homicídio - matar e deixar morrer: uma distinção válida? Revista de Direito sanitário. São Paulo, v. 2, nº 2, julho 2001, p.101. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Explica-se: a eutanásia ativa consiste em uma ação comissiva do agente, na qual o médico, por exemplo, irá, de fato, realizar uma conduta que acarretará a morte do paciente, como aplicar uma injeção letal. A eutanásia passiva, por sua vez, consiste em uma ação omissiva, momento em que o agente deixará de realizar uma ação, isto é, por meio de uma conduta negativa, de um não fazer, quando deveria, irá provocar a morte antecipada do paciente, como a interrupção de um tratamento que ainda possui potencial de benefício para o paciente. 6 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito penal: parte especial I: arts. 121 a 212. São Paulo: Saraiva, 2012.
1. Introdução Desde o final de 2024, a ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, passou a comunicar, por meio de sua presidência, em diversas ocasiões, a intenção em promover ações regulatórias visando i) a regulação dos cartões de desconto em saúde e ii) a regulação do chamado plano de saúde ambulatorial, com intuito de "resolver o problema dos planos individuais" que deixaram de ser comercializados pelas empresas do setor de saúde suplementar. As motivações anunciadas pela ANS consistiam em dois principais pilares: i) a existência de uma decisão judicial prolatada pelo STJ, determinando à ANS que regulasse os cartões de desconto1, e ii) um ferrenho debate travado entre as operadoras de planos de saúde e o Congresso Nacional no que se refere aos reajustes dos planos individuais, da dificuldade de acesso a estes, da judicialização e das coberturas obrigatórias, o que estaria trazendo prejuízos ao setor2 e inviabilizando a comercialização de planos individuais3. Não obstante tenha a própria ANS recorrido da decisão prolatada pelo STJ, em 23 de outubro de 2024, a Agência publicou a Tomada Pública de Subsídios 5 (TPS 5/24), que tinha por objeto receber propostas  para a reformulação das regras dos planos ambulatoriais, a fim de incentivar a venda de planos com cobertura para realização de consultas e exames de forma segura para o consumidor. Sob críticas de parcela dos participantes da TPS 5, a ANS publicou, em fevereiro de 2025, o sandbox regulatório voltado ao plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames. Na sequência, deu início a audiências públicas para medir a aceitação do projeto, objetivando, ao fim, a aprovação da minuta de edital contida no referido processo4. O presente artigo tem por objeto fazer uma avaliação crítica do processo de sandbox regulatório proposto pela ANS, com uma ótica diferente daquela já exposta pelo IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, na ACP 5006090-73.2025.4.03.6100, que tem por objeto a suspensão do sandbox regulatório da ANS, pelo MPF - Ministério Público Federal, conforme se verá a seguir e também pelos agentes que contribuíram na TPS 5, embora parte daquelas visões se aliem com a que será aqui exposta. 2. Visão geral do sandbox regulatório Como o próprio nome denota, em uma tradução livre, o sandbox é um ambiente que remonta ao experimentalismo, como uma caixa de areia em que uma criança é livre para brincar em segurança. Segundo Thiago Guimarães de Barros Cobra, o propósito destes ambientes é permitir a experimentação livre e criativa, com a supervisão de responsáveis técnicos e regulatórios, mitigando os riscos e consequências de uma implantação imediata em um ambiente real amplo5. A LC 182 de 2021 (Marco Legal das Startups e Empreendedorismo Inovador) conceituou, expressamente, o sandbox no ordenamento jurídico brasileiro em seu art. 2º, inciso II, como um "conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado". A mesma lei autorizou expressamente às entidades da administração pública nacional a utilizarem esta abordagem regulatória, em seu art. 11. Valendo-se de tal autorização legal a ANS propôs a TPS 5 e o processo 33910.020858/2024-62, contendo o sandbox para o Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, conforme descrito a seguir. 3. Motivações do sandbox regulatório da ANS Em dezembro de 2022, em momento ainda anterior a qualquer ato normativo próprio, a ANS sofrera ordem judicial nos autos do agravo em recurso especial 2.183.704 (AREsp 2183704), em decisão monocrática proferida pelo relator ministro Herman Benjamin, que determinou a necessidade de regulação e fiscalização da ANS sobre os cartões de desconto, sob o fundamento de que estes se assemelhariam a planos de saúde na medida em que ofertam "rede credenciada ou referenciada" a seus clientes6. Embora a própria ANS tenha recorrido da referida decisão e, até o momento, não tenha havido o efetivo trânsito em julgado do processo no qual a decisão fora prolatada, a ANS publicou em seu website, em 23 de outubro de 2024, notícia de que publicara a Tomada de Subsídios 5, voltada para receber propostas sobre as regras para a reformulação das regras dos planos ambulatoriais, a fim de incentivar a venda de planos com cobertura para realização de consultas e exames de forma segura para o consumidor. A referida TPS foi decidida como décimo terceiro item, extra pauta, na 612ª Reunião da Diretoria Colegiada da ANS, constando na ata a informação expressa de que dispensaria análise de impacto regulatório. Ato contínuo, a Agência editou norma visando a constituição de regras para a constituição e funcionamento de ambiente regulatório na Agência, a resolução 621 de 13 de dezembro de 2024, contendo, em seu artigo primeiro, regras de constituição e funcionamento de sandboxes para testar novos serviços, produtos ou tecnologias no setor de saúde suplementar; o artigo segundo, por sua vez, dispôs sobre as finalidades dos sandboxes, quais sejam, o incentivo à inovação, o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou tecnologias, a diminuição de custos e o aprimoramento do arcabouço regulatório; e o artigo terceiro dispôs sobre os requisitos para o estabelecimento de sandboxes pela Agência, quais sejam, a aderência às finalidades estabelecidas pela norma, a necessidade de suspensão de normas para teste de um produto ou serviço, o potencial de aprendizado regulatório e a necessidade de um ambiente regulado. Posteriormente, após coletadas as manifestações da sociedade civil pela TPS 5, a ANS, baseado no que foi antes exposto, veio a propor o sandbox para o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, pelo diretor Alexandre Fioranelli, em audiência pública realizada em fevereiro de 2025. A Agência apresentou como problema a ser resolvido pelo sandbox a dificuldade de acesso a planos de saúde por pessoas naturais, e as consequências a serem combatidas a sobrecarga do SUS - Sistema Único de Saúde, a expansão do mercado de cartões de desconto, o incremento de contratação de planos coletivos com poucas vidas e a demanda reprimida. De modo sintético, o produto a ser testado via sandbox, o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, conforme a própria apresentação, consistiria em um novo tipo de plano de saúde: mais simples e mais acessível focado em exames e com cobertura total para consultas em todas especialidades médicas, sem acesso a pronto socorro, internação e terapias. Até o momento de escrita deste artigo, a ANS ainda não havia publicado o edital definitivo para início do processo de seleção de incumbentes para participação no ambiente experimental de sandbox regulatório. No entanto, algumas críticas, inclusive por meio de ações judiciais que visam interromper o processo, já existem neste momento, sendo objeto deste estudo uma nova avaliação crítica sobre o tema, conforme exposto adiante. 4. Avaliação crítica do sandbox regulatório para um plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames Uma síntese das críticas externas ao sandbox regulatório posto pela ANS para a regulação de um "plano de saúde ambulatorial" pode ser encontrada nos autos do processo de 5006090-73.2025.4.03.6100, ação civil pública proposta pelo IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor em face da ANS, tanto na manifestação inicial do IDEC quanto na peça de requerimento de ingresso como amicus curiae apresentada pela ABCS - Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Saúde e Benefícios7. Em suma, essas consistem em críticas relativas 1) à ausência de competência conferida à ANS para criar qualquer novo tipo de plano de saúde, nos termos da lei 9.961/00, que cria a Agência e nos termos da lei 9.656/1994, que dispõe sobre o mercado de saúde suplementar (planos de saúde); 2) ao fato de que no AREsp 2183704, citado como motivação pela ANS para a instituição do sandbox, esta não foi ordenada ou autorizada a criar qualquer novo produto, mas tão somente a tratar da regulação dos cartões de desconto, bem como ao fato de que tal processo ainda encontra-se pendente de julgamento dos recursos interpostos pelas partes nele envolvidas, inclusive pela própria ANS8; e 3) à ausência de AIR - Análise de Impacto Regulatório, bem como de outros requisitos fundamentais para a implementação adequada de um sandbox regulatório, como exposto tanto na manifestação do IDEC9 quanto em Nota Técnica do MPF10, publicada paralelamente à propositura da ACP pelo IDEC. Passando a uma crítica interna, observa-se que ao longo de todo este estudo, as menções ao tema sandbox, tanto na sua conceituação doutrinária quanto, inclusive, na sua conceituação por expresso dispositivo legal, estão atreladas a um ambiente inovador tecnológico. A definição legal, por exemplo, como exposto acima, está no Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador. No entanto, o sandbox regulatório da ANS não se relaciona a novas tecnologias, tampouco a um mercado realmente novo. Fato é que o mercado de cartões de desconto existe, no mínimo, desde os anos 197011 e a discussão sobre os planos de saúde ambulatoriais existe, ao menos, desde os anos 2000. Esta dissonância não é meramente casual. Como também já exposto pelo IDEC , o sandbox regulatório proposto pela ANS não só é carente de um aspecto inovador, como também se mostra como um instrumento eleito pela Agência com o objetivo de colocar em pauta a discussão sobre o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, a despeito da questão da competência exposta no tópico anterior. Neste sentido, além dos vícios externos, o sandbox da ANS parece conter vícios internos, tanto quanto ao seu caráter inovador, como antes exposto  pelo IDEC e pela ABCS extensivamente na ACP, mas também quanto às suas motivações. Com efeito, embora a ANS fundamente o sandbox com base na decisão do STJ, como exposto, esta não determinou à ANS que criasse planos de saúde ambulatoriais. Ademais, quanto à fundamentação de que falta de acesso aos planos individuais por pessoas naturais, fato é que o produto proposto pela Agência, plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, não consiste num elemento que contenha qualquer aspecto tecnológico, inovador, que promova a competição ou reduza barreira de entrada (requisitos dos incisos I, II, e V da resolução 621/24); tampouco requer, comprovadamente, ante à ausência de AIR, a suspensão de normas ou um ambiente de testes (incisos II e III do art. 3º da resolução 621/24). Em verdade, a própria apresentação realizada pela ANS a título de exposição de motivos do sandbox regulatório demonstra que este é um produto muito similar aos já existentes e consolidados cartões de descontos. Por outro lado, a medida vem sendo defendida amplamente pelos agentes do mercado de plano de saúde suplementar, as operadoras de planos de saúde e suas entidades representantes, como alternativa aos cartões de desconto12. A própria ANS, em diversas manifestações de seu diretor presidente (prévias à instituição do sandbox), como exposto pelo IDEC na ACP, mostra que a intenção era abrir o mercado de cartões de desconto às operadoras de planos de saúde. A apresentação realizada pelo diretor Alexandre Fioranelli deixou isso claro quando colocou lado a lado os efeitos da medida sobre a população: A imagem, criada pela própria ANS, expõe seu objetivo: permitir que as operadoras de planos de saúde "absorvam" uma parte de um mercado hoje absorvido pelos cartões de desconto, de cerca de 10 milhões de pessoas. O sandbox regulatório para o Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames parece ser, neste sentido, uma estranha iniciativa regulatória na qual, de forma peculiar, tende-se não a corrigir, mas a criar uma falha de mercado. Essa tendência também foi apontada por relevantes especialistas do setor14. Com efeito, ao passo em que a medida não apresenta justificativa plausível quanto às suas próprias motivações (decisão do STJ, inovação, tecnologia, necessidade de suspensão de normas ou ambiente de testes), esta também não apresenta solução a qualquer das falhas de mercado comuns ao mercado de saúde, como o risco moral15, as externalidades, barreiras de entrada ou a assimetria informacional16. Neste sentido, também diante da própria fundamentação teórica sobre o instituto, o sandbox da ANS se mostra incoerente com suas próprias motivações. Isto porque não apresenta qualquer efetivo instrumento de proteção ao interesse público por meio da regulação, mas tão somente a intenção de abertura de um novo mercado aos agentes já regulados pela ANS. Tal iniciativa se mostra contrária, inclusive, a entendimentos pretéritos da própria ANS, quando esta definiu que cartões de desconto não são planos de saúde17 e do CADE, quando julgou sobre a validade de tais serviços e diferenciação destes para com os planos de saúde18. Ainda que se admitisse a necessidade de regulação dos cartões de desconto por quaisquer falhas de mercado atribuíveis a estes: seja a de assimetria informacional, risco moral, barreiras de entrada, ou quaisquer outras, observa-se que este tema não foi objeto da motivação apresentada pela ANS para a sua proposta regulatória. No entanto, a incoerência existente se dá pelo fato de que a ANS apresentou como motivação supostas falhas no mercado de planos de saúdes (especialmente os individuais), e como solução apresentou um sandbox regulatório que visa a abertura de mercado diverso (o de cartões de descontos) justamente a esses planos de saúde, sem especificar como tal fator traria melhoria de assistência, acesso, ou qualquer outro valor importante para a saúde suplementar, além de uma expansão do mercado das operadoras dos planos de saúde. Neste sentido, a crítica interna ao sandbox regulatório da ANS, a partir de suas motivações e com base na Teoria da Regulação, demonstra que a iniciativa, neste momento, não tem o condão de promover a defesa de vulneráveis, a redução de riscos ou externalidades, ou o incentivo à concorrência, mas, em verdade, favorece agentes que já dominam, hoje, o setor, gerando falha de mercado. 5. Conclusão O presente estudo teve por objetivo apresentar crítica interna à proposta de sandbox regulatório da ANS para a criação de um "plano de saúde ambulatorial". Conforme se observou, as iniciativas regulatórias estatais têm por objetivo a proteção dos indivíduos, especialmente os vulneráveis, em face dos agentes econômicos. Neste sentido, o sandbox é uma abordagem regulatória flexível e colaborativa, pela qual o ente regulador busca, por meio da suspensão de regras num ambiente controlado, em colaboração com os agentes econômicos, experimentar os impactos de inovações tecnológicas, novos produtos ou serviços, e também os impactos da regulação sobre tais inovações, a fim de otimizar e aumentar a precisão do processo regulatório. Embora a ANS tenha previsto, em suas motivações, que o sandbox por ela proposto objetivaria tais fins, a criação do plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames é passível de críticas externas e internas. A análise das motivações expostas pela ANS, da resolução 621/24, publicada pela própria Agência com o objetivo de suportar o seu processo regulatório experimental, e o cotejo destas com a proposta final de sandbox, demonstra que há uma incoerência em termos de motivação. Esta incoerência, neste estudo chamada "crítica interna", consiste no fato de que o sandbox da ANS não se refere a nenhum fenômeno de fato inovador e, além disso, contém no seu bojo a proposta de abertura de mercado às operadoras de planos de saúde, beneficiando tais agentes para um mercado hoje já consolidado e não regulado, porém, sem enfrentar qualquer das falhas de mercado apontadas pela própria Agência nas justificativas de sua proposta, tampouco quaisquer das possíveis falhas no mercado que se pretende absorver: o de cartões de desconto. Portanto, o sandbox proposto parece ser uma estranha iniciativa regulatória na qual tende-se não a corrigir, mas a criar falhas de mercado. Diante disso, é necessário que se faça um debate mais profundo, intenso, transparente, sólido e atualizado quanto à realidade do mercado e, sobretudo, voltado para o real interesse dos consumidores dos serviços de saúde no Brasil, objetivando, assim, propostas regulatórias que de fato atendam às necessidades dos cidadãos e não do setor econômico. _______ 1 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 2 PIRES, Breno. STF é acionado para obrigar Arthur Lira a abrir CPI dos Planos de Saúde. 09 ago. 2024. In Piauí. Disponível aqui. 3 SCOFIELD, Laura. Cancelamentos, reajustes e CPI: como operadoras influenciam Lei dos Planos no Congresso. In Agência Pública. 08 ago. 2024. Disponível aqui. 4 BRASIL. Agência Nacional de Saúde. Edital nº: 2/2024/DIPRO. Participação em Ambiente Regulatório Experimental. Disponível aqui. 5 COBRA, Thiago Guimarães de Barros. Sandbox Regulatório: Regulação experimental das finanças à saúde. Editora Dialética. São Paulo. 2024 p. 65. 6 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 7 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 8 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 9 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 10 BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica nº 3/2025/CS-SAÚDE/3ªCCR. 11 Vide manifestação da ABCS em: BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª vara Federal de São Paulo. 12 NIERO, Jamille. ANS quer testar novo modelo de plano de saúde: solução ou armadilha ao consumidor? In.. INFOMONEY. 13 mar. 2025. Disponível aqui. 13 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 14 FRAGA, Armínio. CHAPCHAP, Paulo. FARIAS, Rebeca et. al. Planos 'simplificados' impactam saúde pública. In. ESTADÃO. 23 abr. 2025. Disponível aqui. 15 Aqui, o risco moral é compreendido como o risco comportamental de que o agente de um sistema de saúde modifique o seu comportamento de acordo com o modelo do sistema. Da perspectiva do usuário, o risco moral pode consistir na modificação de comportamento no cuidado com a própria saúde, adotando padrões maléficos a si mesmo. Na perspectiva do provedor de serviços ou cobertura, pode consistir na indução de demanda pelo provedor de serviços de saúde, para aumentar sua própria lucratividade. Vide: CASTRO, Janice Dornellas de. Regulação em saúde: análise de conceitos fundamentais. Disponível em: "Sociologias, ano 4, n. 7, jan./jun. 2002, p. 122-135" 16 Idem. 17 BRASIL. Agência Nacional de Saúde. Cartilha da ANS aponta características de cartões pré-pagos e cartões de desconto. Disponível aqui. 18 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08700.005969/2018-29, Relª. Conselheira Lenisa Rodrigues Prado, 05.06.2020.
A judicialização da saúde no Brasil, embora consolidada como fenômeno social e jurídico, encontra-se em plena transformação. Historicamente, no setor público, as demandas judiciais concentravam-se no fornecimento de medicamentos ou tratamentos não padronizados pelo SUS, ganhando robustez com os julgamentos do Tema 6 e do Tema 1234 de repercussão geral no STF. Tais precedentes buscaram estabelecer critérios objetivos para o deferimento de pleitos envolvendo o direito à saúde, em especial quando se trata de fármacos de alto custo. Na saúde suplementar, por sua vez, a judicialização sempre orbitou em torno da extensão das coberturas contratadas, com especial atenção à (in)definição do caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS. Por muito tempo, a questão central era: há ou não obrigação de custeio? Essa dualidade entre os setores, no entanto, começa a se dissolver à medida que os litígios deixam de se restringir ao acesso e passam a enfrentar questões mais técnicas, estruturais e sistêmicas. Hoje, tanto o Poder Judiciário quanto os órgãos reguladores passam a exigir racionalidade e coerência técnico-científica nas condutas clínicas. A medicina baseada em evidências, anteriormente vista como uma diretriz de boas práticas, assume agora o papel de critério jurídico decisório. Em 2024, o NatJus - Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário registrou mais de 98.631 notas técnicas, um aumento de 40% em comparação com o ano anterior. O NatJus já contabiliza mais de 286 mil notas técnicas registradas no total, sendo 138.057 produzidas pelo NatJus Nacional e 148.351 pelos núcleos estaduais e do Distrito Federal. O NatJus também emite pareceres, mas a quantidade de pareceres não é mencionada especificamente nos resultados da pesquisa1. Medicina baseada em evidência é uma abordagem que busca otimizar a prática médica, utilizando a melhor evidência disponível para tomar decisões sobre o cuidado com o paciente. Em vez de confiar apenas na experiência pessoal ou em práticas tradicionais, a MBE busca integrar a pesquisa científica com a experiência clínica e as preferências do paciente.  O NatJus é um órgão vinculado aos tribunais que fornece pareceres técnicos, com base na medicina baseada em evidências, para auxiliar juízes em decisões envolvendo demandas de saúde - tanto no SUS quanto na saúde suplementar. As Cortes, por sua vez, começam a ponderar com mais rigor o nexo entre a conduta médica, os protocolos clínicos e os pleitos dos pacientes. Esse novo paradigma levanta uma série de reflexões: o que é, afinal, uma evidência robusta? Como equilibrar o conhecimento científico com a escuta qualificada do paciente? Como decidir entre o custo-efetividade de uma conduta e o impacto individual de sua negativa? Não por acaso, o sistema de saúde suplementar registra sinais de tensão. Em 2024, noticiou-se que o número de ações judiciais no setor ultrapassou 300 mil dobrando em relação aos últimos três anos2. O saldo de depósitos judiciais por parte das operadoras chegou a R$ 2,67 bilhões3. O envelhecimento acelerado da população, com expectativa de 70 milhões de idosos em 2050, e a desaceleração do crescimento populacional prevista para 2041, divulgados pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e ONU - Organização das Nações Unidas, impõem um novo desafio: menos contribuintes jovens para financiar os custos crescentes da longevidade. A ANS tem repensado profundamente seu modelo regulatório, especialmente no que diz respeito à fiscalização do setor de saúde suplementar e à definição de critérios técnicos para incorporação de procedimentos. Diante desse novo desenho, surgem possibilidades relevantes para mitigar conflitos: a inclusão de novos hospitais na rede credenciada, o aperfeiçoamento dos mecanismos de reembolso, maior implementação da telessaúde e o uso crescente da inteligência artificial na coordenação do cuidado. Essas medidas, se bem implementadas, podem representar alternativas eficazes à judicialização - ou ao menos, instrumentos de racionalização do conflito. A judicialização, nesse cenário, é tanto consequência quanto causa: pode ser uma tragédia para a sustentabilidade do sistema ou um remédio para forçar avanços regulatórios. A depender da resposta institucional - e da atuação técnica dos operadores do Direito -, seguirá suprindo lacunas ou se transformará em agente de coerência e aperfeiçoamento. O profissional jurídico da saúde precisa, portanto, evoluir. Conhecer os fundamentos da medicina baseada em evidências, entender o funcionamento regulatório da ANS, compreender os fluxos operacionais dos hospitais e operadoras, e acompanhar os debates bioéticos contemporâneos deixou de ser um diferencial - tornou-se uma exigência. A judicialização da saúde não é um fenômeno que será contido por decisões judiciais pontuais. É um processo em curso, que exige respostas estruturais. O Judiciário continuará a atuar enquanto o sistema falhar em antecipar e resolver os conflitos. A escolha está posta: evoluímos juntos - ou seguimos judicializando o desequilíbrio. _______ 1 REDE NATJUS. Rede NATJUS registra mais de 286 mil Notas Técnicas e se prepara para nova fase com o e-NATJUS 4.0. Disponível aqui. 2 BP MONEY. Número de ações contra planos de saúde cresce. Disponível aqui. 3 ISTOÉ DINHEIRO. Judicialização do setor de saúde chega ao limite no Brasil. Disponível aqui.
1. Aspectos gerais Iatrogenia deriva do grego antigo, que significa iatros (médico ou curandeiro) e genes (originado de ou gerado por), correspondendo a algo gerado ou causado por médico. Nessa linha, iatrogenia é o resultado de todos os eventos adversos, não desejados, mas previsíveis de ocorrência em matéria de saúde humana. Na sua clássica definição, a iatrogenia se circunscreve aos eventos adversos decorrentes de erro médico. Entretanto, iatrogenia é todas as reações orgânicas a um tratamento médico-hospitalar, ainda que adversos e não desejados, além do erro médico. Segundo Armond (2016, p.109), Um EA, ou iatrogenia, caracteriza um dano ou lesão não intencional causado por um cuidado prestado a um usuário do sistema de saúde, oriundo ou não de uma falha do profissional envolvido. O evento pode ocasionar incapacidade ou disfunção, seja temporária ou permanente, ou até a morte. É importante entender que o EA não está relacionado à evolução natural da doença de base do paciente. A exceção das hipóteses relacionadas ao erro médico, a iatrogenia pressupõe a prática do ato médico por profissional regularmente habilitado no contexto de uma relação de cuidado com a saúde humana. São eventos indesejáveis, mas na sua grande maioria não são considerados raros ou inovadores no universo da ciência médica. Assim sendo, a iatrogenia se refere a todas as reações adversas produzidas pelo corpo humano após a realização de um procedimento médico, terapia ou pela administração de medicamento durante o tratamento da saúde humana. É comum que os casos de iatrogenia não estejam incluídos nas hipóteses de responsabilidade civil por se entender que o evento danoso está dissociado da conduta principal, rompendo-se o nexo de causalidade. Não haveria dano a ser indenizado diante da ausência de relação causal entre conduta e dano. Entende-se que a iatrogenia, na modalidade distinta do erro médico, seria o infortúnio que se amoldaria às hipóteses de caso fortuito ou força maior. Nesse caso, não incidiria qualquer responsabilidade jurídica-penal ou civil. Sob essa perspectiva credita-se razoável apresentar os eventos adversos como hipóteses excludentes de responsabilidade jurídica. Indaga-se: a iatrogenia sempre estaria imune às responsabilidades civil e penal no direito brasileiro? 2. Prevenção nos eventos adversos Em qualquer conduta profissional a prevenção dos danos não é medida coadjuvante ou facultativa. Com maior rigor, é exigível a prevenção de danos nas condutas profissionais que giram em torno dos maiores bens jurídicos: a vida e saúde humana. Nessa quadra, antes de serem analisadas as múltiplas causas adversas a um tratamento de saúde - iatrogenia - há de serem analisadas as condutas preventivas exigíveis do profissional da saúde, ou a cargo da administração hospitalar, antes da ocorrência do evento propriamente dito. A título exemplificativo, citem-se os testes de alergia imprescindíveis antes de serem ministrados medicamentos potencialmente capazes de produzir danos indesejáveis, a exemplo da anestesia, do contraste com iodo e da utilização de penicilina. Além dessas hipóteses, citem-se também as transfusões de sangue, cujos procedimentos preparatórios de compatibilidade prévia devem ser observados, a exemplo das cautelas relacionadas à compatibilidade sanguínea, conservação e permanente acompanhamento da equipe médica. No Brasil, as condutas preventivas consistentes nos testes de alergia, como medidas antecedentes à realização de exames ou à administração de medicamentos, não ocorrem com frequência nos hospitais públicos e privados, transferindo-se a responsabilidade da autodeclaração do paciente como prova inequívoca à exclusão de qualquer responsabilidade médica e hospitalar pelo evento adverso. 3. Responsabilidade civil - prevenção, comissão e omissão A responsabilidade civil no Brasil incide, na grande maioria dos casos, nas formas omissiva ou comissiva. Assim, as condutas profissionais exigidas, na forma positiva (comissão) ou na forma negativa (omissão) são passíveis de produzirem danos, configurando a responsabilidade civil se comprovado o nexo causal entre a conduta e o dano. O Código Civil não previu, expressamente, a modalidade preventiva para a caracterização de responsabilidade civil. No Anteprojeto para revisão e atualização do Código Civil - lei 10.406, de 10/1/2002 -, no entanto, há previsão expressa da modalidade preventiva como forma de se impor responsabilidade civil, segundo art. 927, parágrafo 3º - verbis: "Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados." No Código Civil em vigor, art. 927 - "Aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.", não contemplando, nem afastando, expressamente, a responsabilidade civil preventiva. Apesar do quadro normativo suso citado, em matéria de tratamento da saúde vige a teoria da perda de uma chance momento em que todas as condutas profissionais se inserem, como regra, nas obrigações de meio em que o resultado é sopesado diante de todo atuar dos profissionais de saúde. Em sendo assim, ainda que não exista previsão expressa da responsabilidade preventiva no Código Civil em vigor, a teoria da perda de uma chance se aplica em todas as questões relacionadas aos cuidados com a saúde humana, motivo pelo qual as condutas preventivas, ainda que acessórias, são cogentes e passíveis de responsabilidade civil autônoma. 4. Standards - padrões de condutas recomendadas e adotados internacionalmente Nos múltiplos procedimentos médico-hospitalares existem evidências e são colacionados standards recomendados, em grande parte, pela OMS - Organização Mundial da Saúde. Os testes cutâneos - prick test ou skin prick test - são recomendados e não são invasivos, uma vez que pequenas quantidades de alérgenos são aplicadas na pele do paciente para, após certo período de tempo, serem observadas reação urticária ou inchaço no local da aplicação; os testes intradérmicos; os testes de patch, que correspondem aos testes de contato; os testes de raspagem; os testes de exposição oral, além dos testes de provocação, quando o paciente é exposto a quantidade pequena, e supervisionada, do alérgeno. Os testes realizados de forma prévia à constatação de possíveis alergias não excluem à realização de exames laboratoriais, principalmente o exame de sangue que tem o condão de constatar alergia à substância ou medicamento inerente ao tratamento principal. Os testes, ou exames prévios, ao procedimento-base são considerados imprescindíveis porque implementam maior segurança ao paciente, protagonista da relação médico-paciente. 5. O vácuo normativo brasileiro na iatrogenia Não há previsão normativa expressa para os casos de iatrogenia e os danos provenientes à sua configuração no direito brasileiro. A adversidade do evento, ou sua ocorrência em grau de menor intensidade pode ser previsível, se realizados todos os standards exigíveis e esperados dos profissionais de saúde. Cabe a administração hospitalar prover dos recursos necessários à realização de testes prévios, sob pena de ser configurada a responsabilidade civil solidária. A forma preventiva nas condutas relacionadas à saúde humana é de crucial importância, podendo configurar omissão, ainda que não se refira ao fato principal, para a tipificação de condutas culposas, já que o tipo culposo é aberto para que sejam provadas a negligência, imperícia ou imprudência na conduta esperada para o dever de cuidado. 6. Os litígios judiciais e a jurisprudência em torno da Iatrogenia A iatrogenia na modalidade de erro médico é factivelmente mais frequente no cômputo dos litígios judiciais brasileiros quando comparada a iatrogenia aplicável às demais hipóteses. A iatrogenia dissociada dos erros médicos, caracterizada por eventos adversos, previsíveis e indesejados, deve ser analisada de forma pormenorizada e por etapas, já que se trata de evento complexo. Dessa forma, a fase que antecede à ocorrência do evento imprevisto pode estar associada a comportamento reprovável, nas modalidades dolosa ou culposa, na adoção de conduta prévia à realização do ato principal. Em sendo assim, a iatrogenia pode ser passível de responsabilidade civil em todas as suas formas, se produzido resultado danoso, já que se não presente o erro médico, pode ser configurada a ausência de medidas preventivas à realização do exame, tratamento ou administração do medicamento prescrito no tratamento da saúde humana. Na temática relacionada às alergias, apesar da praxe médica indicar o que o histórico do paciente - anamnese - se apresente suficiente à indicação, ou não indicação de alergias, a autodeclaração do paciente não deve ostentar o tratamento jurídico hoje aplicado, uma vez que os processos alérgicos são absolutamente mutantes e involuntários. Assim, por mais que o paciente indique quando e como foi portador de alergias, a conduta do profissional da saúde deve ser a de proceder, de forma prévia, aos múltiplos testes alérgenos. A autodeclaração, portanto, não tem o condão de excluir a responsabilidade civil por culpa exclusiva da vítima, já que se trata de tema relacionado à ciência impassível de ser por ele exigível. A regra deve ser, portanto, a realização de testes de alergia antes da realização do exame de ressonância magnética, no caso de contrastes com iodo, assim como na administração de medicamentos e vacinas que possuam efeito alérgico cientificamente comprovado. Embora não se trate de circunstância comum, é possível que o paciente se recuse a realizar os testes prévios para constatar alergias antes da realização de exames ou administração de medicamentos e vacinas. Nesse caso, sempre será facultado ao profissional da saúde a interrupção por objeção de consciência, indicando-se outro profissional para dar continuidade ao procedimento médico. Quanto à recusa do paciente ao cuidado adicional no tratamento de sua saúde, tratando-se de paciente maior e cognitivamente capaz, entende-se que a assunção do risco não possa ser obstáculo à realização do exame, administração do medicamento ou vacina. Trata-se de entendimento analógico ao já emanado pelo STF, com repercussão geral, na admissão prévia das cirurgias sem transfusão de sangue aos pacientes da religião testemunha de Jeová. Ad argumentatum, até se pondera até que ponto o fato principal de fato aconteceria se tomadas as medidas preventivas necessárias à prática do ato: o choque anafilático aconteceria se os testes de alergia àquela espécie de anestesia fossem realizados? O óbito aconteceria se realizado o teste de alergia ao uso do contraste com iodo para a realização do exame com ressonância magnética? O choque hemolítico transfusional aconteceria na transfusão de sangue se realizados, preventivamente, os testes alérgenos antes da inserção do sangue humano à pessoa transfundida? 7. Considerações finais A iatrogenia não pode se apresentar como um salvo conduto para condutas temerárias que produzem riscos e danos à saúde humana. Ainda que o evento adverso à saúde do paciente seja indesejado, é previsível na maioria das evidências clínicas. As condutas preventivas não seguem à mesma natureza do fato principal e a ausência das cautelas preventivas são aptas a gerar dano autônomo. O tratamento da saúde humana está afeto à ciência universal, motivo pelo qual as melhores técnicas e standarts comportamentais devem ser observados em território brasileiro, sob pena de configuração da responsabilidade jurídica, penal e civil, como forma de alinhar as condutas dos profissionais da saúde e da administração hospitalar.     Os alegados altos custos hospitalares inerentes à prevenção de eventos adversos para a realização de testes de alergia, ou testes para identificar o antibiótico mais eficaz, não se constitui em argumento plausível pela natureza do bem tutelado - vida e saúde humanas -, assim como por todas as consequências advindas com o agravamento da saúde do paciente e novas hospitalizações, além do impacto previdenciário decorrente dos óbitos. Não são aceitáveis as taxas alarmantes de mortes por iatrogenia, em qualquer de suas modalidades, no momento em que se discutem as inúmeras funcionalidades da inteligência artificial e na implementação de medidas preventivas a danos, aptos a salvarem milhares de vidas humanas. São também inaceitáveis os obituários lacônicos no registro dos eventos adversos em matéria de saúde dificultando o ajuizamento das ações de responsabilidade jurídica. Expressões lacônicas a exemplo de "falência múltipla de órgãos" ou "complicações cirúrgicas" em muitos casos oculta, em verdade, casos de iatrogenia, ora por erro médico, ora por ausência de testes prévios, autônomos e necessários ao procedimento principal com foco na segurança do paciente. A edição do Estatuto do Paciente, lei nacional que deve prever direitos, deveres e prerrogativas do paciente, é urgente no Brasil. Os dissídios em matéria de saúde se multiplicam em franco abalo social à relação médico-paciente. Maiores garantias em prol do paciente, parte vulnerável nos contratos de saúde humana, principalmente no que tange aos riscos da iatrogenia, e as formas possíveis de evitar sua ocorrência devem ser implementados. A transparência de dados e sistema rígido de controle com a utilização dos mecanismos digitais é urgente para a melhoria da prestação de saúde, pública e privada, em território brasileiro como forma de que sejam reduzidos os casos de iatrogenia. _____________ ALBUQUERQUE, Aline. Direitos humanos dos pacientes. Curitiba. Ed. Juruá. 2016. ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. 5ª Ed. São Paulo: Ed.Saraiva. 1980. ANDRÉ, Victor Conte (coord). Responsabilidade Médica. Curitiba: Ed. Juruá. 2020. ARMOND, Guilherme. Segurança do Paciente. Rio de Janeiro: Ed. DOC Content.2016. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Ed. Malheiros.15ª edição 2014. DALCOMO, Margareth. Tempo para não esquecer. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo. 2021. 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Habitualmente, um indivíduo poderá ser responsabilizado criminalmente quando faz algo que o Direito pediu para não fazer. Contudo, em algumas situações, o Direito irá contrariar essa lógica e exigir que faça algo, ou seja, que não se abstenha, que não permaneça inerte. Nesses casos, então, esse indivíduo poderá ser responsabilizado se e quando deixar de fazer algo que é reivindicado e esperado pelo Direito. Alguns desses crimes omissivos se perfazem com a simples abstenção do sujeito1. Assim, o resultado danoso, mesmo quando existente, será indiferente para a consumação delitiva. Contudo, à vista da decisão que será aqui estudada, interessará particularmente os crimes omissivos que, por sua vez, vão impor ao indivíduo não apenas um dever de agir, mas, ainda, um agir para evitar um resultado concreto2. Essa necessidade de se evitar um resultado decorre da relação especial de proteção que existe entre determinadas pessoas e bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Mesmo assim, é salutar compreendermos que se busca(rá) nessas ocasiões uma causalidade jurídica, isto é, uma causalidade não fáctica. Isso porque o indivíduo que se omite responderá não por ter causado exata e diretamente o resultado, mas por não ter evitado sua ocorrência quando deveria (e poderia) tê-lo feito. O não impedimento do resultado, portanto, equivale a dar-lhe causa3. É o próprio Código Penal, aliás, que estabelece quais são as pessoas que não podem se omitir. Nesse sentido, a alínea "a" do §2º do seu art. 13 dispõe expressamente que o dever de agir incumbirá a quem tiver por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. Trata essa hipótese, então, justamente da relação entre médico e paciente ou, melhor, da obrigação de cuidado, proteção e vigilância que é, sabidamente, assumida por médicos e por outros profissionais da saúde em relação aos seus pacientes. Por isso, em suma, espera-se que estes indivíduos - médicos, enfermeiros, biomédicos, dentistas, etc. - garantam que nenhum resultado lesivo ocorra em desfavor daqueles que estejam sob seus cuidados, até porque, se esses não obstruírem eventuais processos causais que estejam se desenrolando diante deles, será considerado como se o tivessem causado4. Haverá, daí, responsabilização criminal legítima. Dito isso, é dizer que, em meados de 2018, o TJ/PR foi instado a decidir se um médico deveria ser considerado responsável pela condução de um parto normal que acabou ocasionando à vítima paralisia cerebral tetraplégica secundária, decorrente de anóxia neonatal grave e, então, condenado pela prática do crime de lesão corporal gravíssima por omissão5. Nesta ocasião, o Ministério Público sustentou que a parturiente deveria ter sido submetida a uma cesárea por não ter apresentado dilatação pélvica ou do colo uterino. Essa questão, contudo, foi afastada pelo Tribunal, que entendeu que a realização da cesariana não se mostrou uma medida necessária. Logo, não se mostrou um dever do médico. Ainda assim, o debate ganhou outros contornos relevantes. Foi constatado também que o parto transcorreu normalmente até a fase expulsiva, mas que, a partir daí, a expulsão do feto acabou sendo interrompida por conta de uma intercorrência denominada distócia de ombro6, o que, naturalmente, gerou um novo dever de agir (de cuidado) para o profissional em razão deste (também) novo processo causal. Assim, em vista dessa emergência obstétrica, o médico, com suporte de sua equipe, realizou manobras de McRoberts e de Rubin, que foram surtir efeito somente após decorrido algum tempo. Aliás, constou textualmente na decisão que foi exatamente nesse intervalo que o feto acabou entrando em situação de sofrimento fetal por anóxia com aspiração de líquido amniótico. Além disso, o parecer técnico do setor médico do CAOP de saúde pública do MPPR, que, inclusive, apoiou o entendimento definitivo do colegiado, registrou que "a falta de material adequado aumentou o tempo de expulsão do feto, piorando o quadro de hipoxemia da criança", que "não havia pediatra de plantão ou tratamento especializado" e, também, que "medidas de precaução, como presença de neonatologista e anestesiologista e controle rigoroso do bem estar fetal, não foram observadas ou sequer existiam no hospital". Desta maneira, o TJ/PR decidiu que o médico i) agiu de acordo com o que tinha em mãos para realizar o parto da vítima, seguindo as orientações do Ministério da Saúde ao priorizar o parto vaginal, lançou mão de todos os procedimentos médicos a seu alcance para que o ofendido viesse à luz com saúde perfeita e, quando verificada imprevisível intercorrência, empregou igualmente todas as técnicas disponíveis" e, assim, que ii) se mostrou ausente o nexo de causalidade entre a conduta do médico - que se revelou acertada e conforme à técnica médica usual - e o resultado lesivo. Por fim, sinalizou também que iii) o fato de que restaram ao recém-nascido sequelas graves decorreu de infortúnio que resultou em prolongamento do parto, não sendo este decorrente de omissão ou de negligência do réu". A absolvição do médico, convém já adiantar, mostrou-se uma medida acertada. Isso porque, à vista das circunstâncias tidas por comprovadas, parece evidente o não preenchimento de um pressuposto indispensável deste crime omissivo. Afinal, a omissão somente será penalmente relevante quando o omitente devia e, ainda, podia agir para evitar o resultado. Em outras palavras, neste caso concreto, exigiu-se do médico, sem dúvida, um dever de agir (justificado pela relação médico-paciente), mas, também, um dever de agir vinculado e dependente de um poder agir (justificado pela necessária avaliação da possibilidade física de agir). Assim, é dizer que a precária estrutura hospitalar, reconhecida no acórdão, impossibilitou física e definitivamente que o médico adotasse qualquer medida que pudesse, naquele momento emergencial, evitar um resultado danoso - que, de fato, ocorreu. Em outros termos, é dizer que o médico deveria, sim, ter agido para evitar o resultado, já que representava a garantia do e para o paciente de que este resultado não aconteceria, mas, por outro lado, não tinha condições materiais para evitá-lo. Por aqui se percebe, então, o porquê este médico não poderia ser responsabilizado criminalmente. O acórdão, contudo, ofereceu outros elementos para análise quando sinalizou que inexistiu nexo de causalidade entre a conduta deste médico e o resultado e que este decorreu, na verdade, de uma fatalidade. Assim, apesar de o TJ/PR ter fundamentado desta maneira, parece relevante assentar que este nexo se mostrou presente, posto que, por ser esperada uma causalidade jurídica (isto é, não fáctica, como já dito), esta se materializou ao tempo que o médico não conseguiu impedir o resultado lesivo. Se o médico tem e tinha a obrigação de evitar um dano ao seu paciente, e não o fez porque os recursos por ele utilizados se mostraram inadequados e/ou insuficientes, a impossibilidade física de recorrer aos meios eficazes o afasta tão somente de um dos pressupostos do crime (o poder agir), mas não do nexo de causalidade. Até porque, consta no acórdão, foi justamente o não uso de, por exemplo, fórceps ou de vácuo extrator que acabou prolongando o parto e colocando o feto em situação de sofrimento fetal. Existiu, então, salvo melhor juízo, um nexo de causalidade entre o deixar de adotar medidas eficazes e o resultado. Por outro lado, inexistiu qualquer possibilidade de o médico agir de forma diferente, ou seja, de utilizar os recursos adequados e, então, alterar o resultado do processo causal que se desenvolvia. Inclusive, por ter feito tudo o que poderia fazer, isto é, por ter recorrido ao que se mostrava disponível, não seria possível sequer falar em negligência médica (no caso, o crime de lesão em sua modalidade culposa). Por último, convém promover um brevíssimo diálogo entre a questão da imprevisibilidade no ambiente médico-hospitalar, também tratada no acórdão, e a responsabilidade penal do médico. Este enfrentamento derradeiro se mostra bastante pertinente porque, ainda que a importação de conceitos de outros ramos do Direito possa se mostrar uma ferramenta proveitosa, sua aplicação em processos criminais não pode deixar de lado o que já foi e o que vem sendo construído pela dogmática e prática penal. Desta maneira, essa concepção, que é natural do Direito Civil, precisa passar aqui por uma nova filtragem, especialmente por tratar de situações de isenção de responsabilidade. Essa abordagem, em síntese, defende que: Estará o médico isento de ser responsabilizado por aquele tipo de insucesso que, no transcorrer de sua atuação, não pode ser previsto ou que, mesmo previsto, foi inevitável. Todavia, para as intercorrências previstas deve ele utilizar-se de todos os meios específicos sugeridos pelos compêndios médicos, para evitar ou atenuar os efeitos deletérios, caso aquela intercorrência, que já era prevista, venha a se concretizar7. Assim, faz-se necessário tratar da evitabilidade do resultado, também pressuposto do crime omissivo, que se preocupa em considerar a possibilidade real de a ação do indivíduo, quando praticada, dar conta de impedir o resultado. Em alguns casos, a conduta devida, mesmo se e quando realizada, não tem a força para impedir o resultado danoso, isto é, este aconteceria de qualquer maneira. Nesta hipótese, então, o indivíduo não pode responder criminalmente, justamente porque o resultado se mostrou inevitável. Daqui é possível inferir e concluir i) que a imprevisibilidade de um evento potencialmente lesivo não excluirá a responsabilidade penal de um médico por omissão. Aliás, dado o avanço da Medicina, é plausível argumentar que são e serão cada vez mais previsíveis as intercorrências hospitalares. De todo modo, cabe também sublinhar que raridade não se confunde com previsibilidade. Então, eventual intercorrência não afastará o dever do profissional da saúde de agir e evitar o resultado danoso. Contudo, as circunstâncias singulares do caso podem, aí sim, impedir o sujeito de obstá-lo, o que, como visto, trará repercussões penais e, ainda, ii) que o uso dos meios sugeridos pela lex artis se mostrará relevante tão somente para afastar a responsabilidade do médico por eventual negligência, isto é, para afastá-lo de algum crime culposo. Isso porque, se o resultado for inevitável, não haverá como constatar a imprescindível relação de não impedimento entre médico e resultado, restando descabida uma condenação por omissão. Seguimos buscando o refinamento teórico da responsabilidade penal do médico e de outros profissionais da saúde que, como visto, tem recebido muitos holofotes recentemente. Pretende-se, com isso, lançar luz aos problemas que têm decorrido da criminalização crescente das condutas de profissionais da saúde que, ainda, não conseguiu ser acompanhada e amparada por uma teoria propriamente penal. Por fim, apenas a título de reflexão, "evitar um resultado" e "fazer o possível, dadas as circunstâncias" são condutas (e fins) notada e essencialmente distintas. Os profissionais da saúde servem ao paciente e devem servir a contento. Suas obrigações passam por aí. Assim, eventual resultado lesivo, como o que aconteceu no caso em questão, precisa poder ser justificado excepcionalmente. Desta maneira, o cenário narrado no acórdão, de absoluta e preocupante escassez estrutural do hospital, apesar de justificar a absolvição do acusado, deixou em destaque a responsabilidade de todos aqueles que fazem parte dessa relação de cuidado - hospitais, todos os profissionais que trabalham na saúde e, ainda, o Estado. Todos estes precisam de segurança para trabalhar, e essa parece perpassar pela necessidade primeira de se compreender e fixar a obrigação de cada um. _______ 1 São os chamados crimes omissivos próprios, como, por exemplo, a omissão de socorro (artigo 135, Código Penal) e a apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, Código Penal). 2 Aqui não há tipos específicos e gera-se uma tipicidade por extensão. Exemplo: um policial acompanha a prática de um roubo, deixando de interferir na atividade criminosa, propositadamente, porque a vítima é seu inimigo. Responderá por roubo, na modalidade comissiva por omissão (NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal. 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020, p. 290. 3 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 450. 4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 324. 5 TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0000159-97.2015.8.16.0097 - Ivaiporã - Rel.: Des. Antonio Loyola Vieira - J. 22.11.2018. 6 A distócia de ombro de uma emergência obstétrica em que a cabeça sai parcialmente por conta da impactação do diâmetro biacromial fetal entre o púbis e o promontório sacral maternos. 7 GIOSTRI, Hildegard. Erro Médico à Luz da Jurisprudência Comentada. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 68-69.
Um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro é o da igualdade, previsto ainda no preâmbulo da CF/1988, e positivado no art. 5º, caput, como direito fundamental. Nota-se, com isso, o claro intuito do legislador constituinte de dispor, sobremaneira, acerca do tratamento igualitário dos cidadãos, a não ser que existam razões justificáveis constitucionalmente para o tratamento desigual1. Exemplo de um tratamento jurídico diferenciado previsto pelo próprio texto constitucional em seus arts. 170, inciso IX, e 179, é o regime tributário do Simples Nacional, regulado, na sequência, por lei complementar própria (LC 123/2006). Trata-se, em síntese, de "[...] regime especial de tributação unificada opcional, diferenciada e favorecida, para pequenas atividades empresariais"2 Regime que surgiu com a finalidade de resguardar a atuação das micro e pequenas empresas no mercado de forma competitiva, sobretudo considerando seu relevante papel na sociedade, geradoras de empregos e fomentadoras da economia. Por essa razão, entende-se como justificada, de forma razoável e proporcional3, a diferenciação estabelecida entre as empresas. Sistematicamente, tal legislação fixa alíquotas diferentes a depender da atividade desempenhada pelo contribuinte, bem como da receita bruta auferida em 12 meses, organizadas em cinco anexos. No que diz respeito às clínicas médicas, são empresas enquadradas, originariamente, no anexo III da LC 123/2006 (Art. 18, § 5º-B, inciso XIX4), o qual estabelece como alíquota inicial 6%. No entanto, a depender do critério contábil denominado "fator R", o qual considera se as empresas têm ou não folha de salários e, caso tenha, se a relação entre tal folha e sua receita bruta é inferior a 28%, podem ser obrigadas a declarar e recolher seus tributos pelo anexo V, o qual conta com uma alíquota inicial de 15,50%, em razão da exceção prevista no art. 18, § 5º-M, inciso I, da LC 123/2006:  Art. 18. Omissis. § 5o-M. "Quando a relação entre a folha de salários e a receita bruta da microempresa ou da empresa de pequeno porte for inferior a 28% (vinte e oito por cento), serão tributadas na forma do anexo V desta Lei Complementar as atividades previstas: I - nos incisos XVI, XVIII, XIX, XX e XXI do § 5o-B deste artigo; [...]". Nota-se, portanto, que o legislador estabeleceu um critério de discriminação, o "fator R", para apenas alguns serviços originariamente tributados pelo anexo III, conforme o art. 18, § 5º-B da referida lei, quais sejam, os de fisioterapia (inciso XVI), arquitetura e urbanismo (inciso XVIII), medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem (inciso XIX), odontologia e prótese dentária (inciso XX) e psicologia, psicanálise, terapia ocupacional, acupuntura, podologia, fonoaudiologia, clínicas de nutrição e de vacinação e bancos de leite (inciso XXI). Ou seja, da simples leitura do referido artigo e seus incisos, depreende-se que vários outros serviços não foram submetidos a tal critério diferenciador, como, por exemplo, os de agência de viagem e turismo (inciso III) ou, ainda, de corretagem de seguros (inciso XVII). Assim, a partir dessa diferenciação, optou a legislação por aumentar a carga tributária de determinadas prestadoras de serviços, onerando umas mais do que outras, sem qualquer justificativa razoável ou proporcional para tanto. Nesse sentido, não se pode olvidar que a adoção de um discrímen em um sistema como o brasileiro, o qual eleva o princípio da isonomia como máximo da ordem jurídica, só é permitido se houver justificativa racional para essa escolha, bem como se tal critério for compatível com o texto constitucional. É como ensina, aliás, o constitucionalista Celso Antônio Bandeira de MELLO5:  [...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, inconcreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. In casu, percebe-se que não há quaisquer fundamentos que justifiquem o aumento da carga tributária a partir da incidência de um critério de discriminação, o qual, não é demais ressaltar, leva em conta tão somente se a empresa tem ou não folha de salários. E isto apenas para alguns dos serviços originariamente sujeitos à tributação do anexo III do Simples Nacional, o qual, destaca-se, prevê uma alíquota menor - dentre eles, os prestados por clínicas médicas, sobretudo aquelas menores, que não contam, muitas vezes, com expressivo número de funcionários. Nesse sentido, a despeito de ser louvável o intuito do legislador de valer-se do parâmetro da folha de pagamento para instituir o "fator R", de modo a beneficiar com uma carga tributária menor as pequenas empresas que tem mais funcionários, não se pode perder de vista que há diversos outros instrumentos legais para promoção do pleno emprego. O Simples Nacional, no entanto, ao menos não diretamente, não é um deles. Isto porque a finalidade constitucional desse tratamento jurídico-tributário diferenciado consiste no incentivo da atividade dos micros e pequenos empresários, diminuindo seus custos para que possam desenvolver-se no mercado. Agora, condicionar a carga tributária de alguns contribuintes beneficiários desse regime a um critério contábil que não corresponde, ao menos diretamente, a sua finalidade, deflagra, a nosso ver, uma ilegalidade. Isto porque, à tal diferenciação, falta a "[...] correlação lógica entre fator de discrímen e a desequiparação procedida"6. Trata-se, portanto, de tratamento desvantajoso às clínicas médicas, as quais, em que pese sejam legalmente enquadradas no anexo III do Simples Nacional, estão sujeitas a um ônus fiscal bem maior em razão de critério contábil de diferenciação incompatível com a ordem constitucional. Afinal, de acordo com as lições de Robert ALEXY, havendo um conflito entre princípios - o da igualdade e o da legalidade -, aplica-se a lei do sopesamento, da qual conclui-se que, in casu, considerando o papel da isonomia no ordenamento jurídico brasileiro, deverá prevalecer7. E, uma vez identificada tal inconstitucionalidade, cabe ao aplicador do direito questioná-la perante o Judiciário, de modo a fazer valer a máxima da igualdade, garantindo, assim, a paridade e competitividade entre os empresários beneficiários do regime tributário Simples Nacional. Referências ALEXY, Robert. Teoria geral dos direitos fundamentais. Tradução de: Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011  ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3.ed. São Paulo, Malheiros, 2015. MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo M. Simples Nacional: estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte comentado: LC 123, de 14.12.2006; LC 127, de 14.08.2007. São Paulo: RT, 2007. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. ______________ 1 "A Constituição, ao estabelecer que os contribuintes devem ser tratados igualmente, a não ser que existam razões para tratá-los diferentemente, instituiu o dever de justificativa do tratamento desigual, não do igual, razão pela qual não são os contribuintes que devem apresentar razões de extrema importância para serem tratados da mesma forma, mas é o ente estatal que deve aduzi-las para tratá-los de forma diferente". Humberto Ávila, Teoria da igualdade tributária, p. 204. 2 James Marins; Marcelo M Bertoldi, Simples Nacional, p. 68. 3 "Proporcional é a medida cuja utilização provoque mais efeitos positivos do que negativos à promoção dos princípios constitucionais. [...] ao ter que restringi-la, o ente estatal está obrigado a escolher aquele meio que promova, na sua inteireza, mais a ordem constitucional do que a restrinja". Humberto Àvila, Teoria da igualdade tributária, p. 168. 4 Art. 18. Omissis. § 5º-B "Sem prejuízo do disposto no § 1º do art. 17 desta Lei Complementar, serão tributadas na forma do Anexo III desta Lei Complementar as seguintes atividades de prestação de serviços: [...] XIX - medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem; 5 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 21-22. 6 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 37. 7 "Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro". Robert Alexy, Teoria geral dos direitos fundamentais, p. 167.
No Brasil, muitos cancelamentos de contratos de planos de saúde ocorrem de forma ilegal ou em desacordo com normativas editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Por isso, mesmo em casos de cancelamento por atraso de 60 (sessenta) dias ou mais, no pagamento das mensalidades, é possível reativar o contrato de plano de saúde cancelado pela via judicial. No tópico a seguir, serão apresentadas as regras sobre cancelamento de plano de saúde aplicadas aos planos individuais/familiares.  Regras aplicáveis aos planos de saúde individuais/familiares A lei 9.656/1998, que regulamenta os planos privados de assistência à saúde, estabelece apenas duas hipóteses de cancelamento do contrato de plano de saúde para os planos contratados individualmente (diretamente pela pessoa física/beneficiário com a operadora de saúde). 1. Fraude: conforme art. 13 da lei 9.656/1998, é proibida a suspensão ou cancelamento unilateral do contrato, salvo por fraude (qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com a intenção de prejudicar ou enganar outrem, ou de não cumprir determinado dever) [...]; 2. Inadimplência: não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; indicar o artigo.  A primeira hipótese de cancelamento mencionada na Lei 9.656/1998, a exemplo de empréstimo de carteirinha e fracionamento de recibo, são atos que dão direito à operadora de cancelar o contrato. A segunda hipótese que permite o cancelamento do contrato de plano de saúde é a inadimplência, ou seja, a ausência de pagamento da mensalidade. Situação também frequente, muitas vezes motivada por crises econômicas que o país enfrenta, dificuldades financeiras particulares ou até mesmo esquecimento por parte do beneficiário do plano de saúde. A regra de cancelamento por inadimplência mencionada no parágrafo anterior, sofreu alterações por meio da edição da resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023 (editada pela Agência Nacional de Saúde), que entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2025, a qual estabeleceu regras sobre a notificação por inadimplência e nova regra sobre a quantidade de dias de atraso que permite o cancelamento do contrato. A nova resolução estabelece em seu artigo art. 4º, § 3º que para que haja a exclusão do beneficiário ou a rescisão unilateral do contrato por inadimplência, deve haver, no mínimo, duas mensalidades não pagas, consecutivas ou não. Apesar dessa alteração, permanece a exigência de notificação prévia até o quinquagésimo dia de atraso, apenas com ampliação dos meios de notificação:  I - correio eletrônico (e-mail) com certificado digital ou com confirmação de leitura; II - mensagem de texto para telefones celulares via SMS ou via aplicativo de mensagens com criptografia de ponta a ponta; III - ligação telefônica gravada, de forma pessoal ou pelo sistema URA (unidade de resposta audível), com confirmação de dados pelo interlocutor; IV - carta, com aviso de recebimento (AR) dos correios, não sendo necessária a assinatura da pessoa natural a ser notificada; ou preposto da operadora, com comprovante de recebimento assinado pela pessoa natural a ser notificada. A notificação realizada por SMS ou aplicativo de mensagens para celulares prevista no inciso II do caput, somente será válida se o destinatário responder a notificação confirmando a sua ciência.  Esses novos meios de comunicação são mais adequados, seguros e estão em sintonia com o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor a respeito do dever de informação e direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º da lei 8.078 de 1990, isso porque estabelecem a exigência de confirmação de recebimento da notificação por parte do consumidor beneficiário do plano de saúde. A nova norma ainda estabelece, em seu artigo 15, que durante a internação de qualquer beneficiário, é proibida, por qualquer motivo, a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato da pessoa natural contratante por iniciativa da operadora ou a exclusão do beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora.  Do aviso especial obrigatório antes ao cancelamento do plano de saúde As operadoras de planos de saúde costumam encaminhar notificação prévia antes do cancelamento do contrato de plano de saúde por inadimplência, até o quinquagésimo dia de atraso. Regra que parece ser respeitada por todas as operadoras, salvo algumas exceções. Apesar disso, pode-se perceber, na prática, que muitas operadoras de planos de saúde permitem vários atrasos no pagamento das mensalidades, alguns deles superando os 60 dias previstos na lei, e não cancelam o contrato, mesmo possuindo esse direito, fato que cria no consumidor a expectativa de que seu plano não será cancelado caso venha a cometer novos atrasos no pagamento da mensalidade. A seguir, apresenta-se um exemplo para elucidar a hipótese. Imagine que Aparecida contratou um plano de saúde em dezembro de 2019. Após 4 (quatro) meses de vigência do plano de saúde, a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil e instalou-se uma grande crise econômica. Em razão desse fato, bem como diante de dificuldades financeiras, Maria começou a atrasar o pagamento das mensalidades. Entre maio e junho de 2020 ela permaneceu em atraso por 60 dias e pagou as atrasadas com 65 dias de atraso, mas seu plano de saúde não foi cancelado. Em outubro de 2020 ela pagou a mensalidade de agosto já com 70 dias de atraso, mas seu plano não foi cancelado. No mesmo ano ela cometeu mais um atraso semelhante a esses mencionados e, em 2021, ela também cometeu vários atrasos superiores a 60 dias, mas seu plano não foi cancelado. Porém, em março de 2022 ela pagou a mensalidade de janeiro de 2022 com 62 dias de atraso e seu plano de saúde foi cancelado, após aviso prévio. Indignada com a situação, ela notificou a operadora de saúde, mas seu plano não foi reativado. Então, ela demandou perante a Justiça e conseguiu uma decisão judicial liminar que determinou à operadora de saúde que reativasse o contrato cancelado por falta de pagamento. Apesar dos vários atrasos da consumidora, a atitude da operadora de saúde, de permiti-los e não cancelar o contrato, criou a expectativa de que ela poderia cometer novos atrasos, os quais não implicariam cancelamento do contrato. A mesma expectativa ocorreria nos casos de atrasos de 2 (duas) mensalidades, conforme a nova regra de cancelamento prevista na resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023. O cancelamento realizado pela operadora de plano de saúde enquadra-se em um comportamento não aceito pela doutrina e pela jurisprudência, que o princípio do "venire contra factum proprium", que proíbe comportamento contraditório, inesperado, que causa surpresa na outra parte. Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e realizados em períodos diferentes. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo.1 O que se espera evitar com a proibição do venire contra factum proprium é que a parte da relação jurídica contratual adote mais de um padrão de conduta, segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer.2 No exemplo citado, ao permitir que a consumidora cometesse atrasos no pagamento da mensalidade por mais de uma vez, inclusive, atingindo mais de 60 (sessenta) dias de inadimplência e não cancelar o contrato (factum proprium), o que se esperava da operadora era que continuasse a adotar esse padrão de conduta. De acordo com Guilherme Martins, "a omissão, mesmo que inicialmente lícita, também é capaz de gerar na parte contrária a legítima expectativa de que este não agir persistiria".3 Por isso, a segunda atitude da operadora (segundo comportamento), qual seja, cancelar o contrato após envio do mesmo aviso padrão, é considerada contraditória em relação às anteriores (as atitudes de não cancelar o contrato em atraso, mesmo tendo esse direito). Esses comportamentos de permitir atrasos, não cancelar o contrato e receber novas mensalidades após esses atrasos, é incompatível com a vontade de cancelar o contrato de plano de saúde. Em razão disso, é indispensável o envio de um "aviso especial de cancelamento de plano de saúde", a ser encaminhado ao beneficiário inadimplente, esclarecendo que os atrasos de 60 dias (ou atrasos de duas mensalidades, conforme nova regra da resolução 593/23), até então permitidos, não mais serão tolerados. Trata-se de um aviso complementar. O aviso padrão, encaminhado sempre até o quinquagésimo dia de inadimplência, conforme previsto na lei 9.656/1998, perde a sua finalidade quando, após o envio e recebimento, a operadora de saúde não cancela o contrato. A permissão de atrasos por parte da operadora e a ausência de cancelamento, mesmo após envio da notificação padrão, implica a necessidade de um aviso especial de cancelamento de plano de saúde, para que o beneficiário não seja surpreendido com o cancelamento do contrato. Esse aviso especial demonstra boa-fé objetiva e lealdade contratual, exigíveis tanto da operadora de plano de saúde quanto do beneficiário do plano de saúde pois, se uma das partes decide "mudar a regra do jogo" no meio da partida, é esperado que, pelo menos, a outra parte seja comunicada antecipadamente. Se esse aviso especial não for enviado, nascem o dever do plano de saúde e o direito do consumidor de reativação do contrato de plano de saúde cancelado por inadimplência. E, caso não seja reativado, é plenamente justificável e legítima a concessão de uma decisão judicial liminar ou uma sentença de mérito determinando a reativação do contrato. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 186. 2 PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade civil pré-contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 85 3 MARTINS, Guilherme Magalhães, A supressio e suas implicações. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, out./dez., 2009, p. 151.
Partindo do pressuposto dos 388 anos de escravização, para imprimir considerações a respeito dos direitos inerentes à população negra no Brasil, é necessário considerar como o racismo está implícito e, por vezes, escancarado, nas relações sociais. Como bem pontuado por Nascimento, "sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido" (2016, p. 59)1.  Para Moreira, ponderando que a construção da nossa sociedade é racista, é essencial a compreensão com base no direito antidiscriminatório (2020)2, o qual traz como princípio "[...] a necessidade de eliminação de práticas sociais que produzam desvantagens para as pessoas" (2017, p. 197)3.  Ainda de acordo com Moreira,  [...] o ponto central desse preceito está na sua importância na proteção de grupos sociais. Ele estabelece uma correlação direta entre desvantagem social e o pertencimento a grupos minoritários, o que o leva a afirmar que a existência social como membro de certas comunidades tem prioridade sobre a existência social como indivíduo na análise da igualdade. (2017, p. 197) Diante de um sistema historicamente excludente, em que a branquitude esteve associada a privilégios e a negritude à marginalização, o Brasil passou a aperfeiçoar os instrumentos de verificação da autodeclaração racial, como forma de garantir que os benefícios das ações afirmativas alcancem, de fato, os sujeitos a quem se destinam. As políticas de ações afirmativas visam, sem resquícios de dúvidas, reduzir as desigualdades historicamente consolidadas no país, e se apresentam como resultado da luta do movimento negro brasileiro. Por outro lado, os mecanismos de efetivação dessas políticas, principalmente no que se refere ao critério racial adotado para acesso às ações afirmativas, vêm se tornando fator desencadeador para profundas discussões. Antes mesmo de promulgada a lei de cotas (lei 12.711/12)4, as universidades brasileiras já adotavam a formação de bancas para heteroidentificar candidatos cotistas raciais (Silva et al., 2020)5. No entanto, entre os anos de 2003 e 2012, poucas instituições estruturaram comissões de forma sistemática. Na maioria dos casos, essas bancas eram constituídas de maneira pontual e reativa, especialmente em resposta ao aumento de denúncias de fraudes em autodeclarações raciais, situação que se tornava mais evidente no curso de Medicina. A intensificação da fiscalização e da responsabilização por fraudes nas políticas de cotas raciais revela a crescente atenção institucional e judicial dedicada aos desafios da heteroidentificação. Cada vez mais, os procedimentos adotados para validar a autodeclaração racial têm sido questionados, tanto na esfera administrativa quanto no âmbito do Judiciário, sobretudo diante de decisões baseadas em avaliações subjetivas e marcadas pela ausência de critérios claros e justificativas consistentes. A recorrência de situações envolvendo a exclusão de candidatos autodeclarados pardos para acesso ao curso de Medicina de Universidades Públicas ilustram as tensões provocadas pela subjetividade nos procedimentos de heteroidentificação, seja pela suposta ausência de traços fenotípicos compatíveis com o grupo racial beneficiado, seja pela falta de elementos objetivos ou por possíveis violações ao devido processo legal. No contexto das decisões judiciais envolvendo a validação fenotípica em processos seletivos para o curso de Medicina, ganhou ampla repercussão a condenação6, em dezembro de 2024, de um médico recém-formado pela UFAL - Universidade Federal de Alagoas, reconhecido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região como fraudador do sistema de cotas raciais destinadas a candidatos negros.  A 5ª turma ampliada da Corte determinou o pagamento de indenização por danos morais coletivos, reformando a sentença da 2ª vara da Justiça Federal em Alagoas, que havia negado os pedidos do Ministério Público Federal. O recurso, interposto em setembro de 2022, foi integralmente acolhido, com o reconhecimento de que o egresso utilizou indevidamente a autodeclaração racial, em desacordo com os critérios fenotípicos e a finalidade reparadora das ações afirmativas, comprometendo a efetividade da política pública de inclusão.  Merece ênfase o seguinte trecho extraído do acórdão:  [...]  A autodeclaração como critério para o ingresso no sistema de cotas deve ser pautada pela boa-fé, sendo válida a sua revisão quando existirem indícios de fraude.  A análise fenotípica do apelado, realizada através de imagens registradas em audiência e fotos extraídas de documentos de identificação, revelou ausência evidente de características físicas que o enquadrem como pardo ou negro, configurando fraude ao sistema de cotas raciais.  A má-fé na autodeclaração prejudica a eficácia das ações afirmativas, comprometendo ajustiça social e violando a igualdade material, além de lesionar direitos coletivos protegidos.  A fraude ao sistema de cotas gera dano moral coletivo, considerando o impacto negativo sobre a confiança no sistema e os valores de inclusão social que fundamentam a política pública.  O uso indevido da vaga reservada implica ressarcimento dos custos do curso, correspondentes ao valor médio de mensalidades em instituições privadas equivalentes, devidamente corrigidos. Embora o julgamento represente um precedente significativo no tratamento judicial de casos envolvendo possíveis fraudes em políticas afirmativas, é importante destacar que a decisão ainda não transitou em julgado, permanecendo passível de interposição de recurso.  Em outra situação, um estudante aprovado no curso de USP - Medicina da Universidade de São Paulo pelo sistema de cotas raciais foi impedido de efetivar a matrícula após ser considerado inapto pela banca avaliadora. O caso foi judicializado7 e o Poder Judiciário, ao reconhecer que a análise foi feita de forma virtual e que a referida modalidade poderia comprometer a adequada verificação fenotípica, determinou a nulidade do ato administrativo de exclusão, garantindo, assim, a matrícula do estudante, conforme destaque:  [...] A análise realizada pela banca de heteroidentificação deve ser objetiva, voltada apenas a aferir se o candidato possui as características fenotípicas que permitam que a sociedade lhe enxergue como negro, v.g., nariz negroide (dorso baixo e curto, com as narinas abertas e achatadas dando um aspecto de base nasal mais alargada), cabelo crespo e pele escura, e por isso deve assegurar ao candidato que essa averiguação seja realizada na melhor condição possível. E, análise virtual das características físicas do candidato pode se mostrar precária por não garantir efetivamente essas condições, já que, conforme visto, pode sofrer influências externas que causam deturpações na tomada de decisão dos membros da banca. [...] Pode-se concluir, portanto, com razoável probabilidade, que o autor foi prejudicado pelas condições externas na ocasião de sua avaliação, que foi realizada de forma virtual, levando a banca de heteroidentificação a entendimento diverso daquele que seria adotado caso a avaliação fosse realizada de forma presencial. Os casos aqui elencados, noticiados nacionalmente8, sinalizam um enfrentamento mais rigoroso aos procedimentos de heteroidentificação nas ações afirmativas, sobretudo no curso de Medicina, evidenciando a urgência de diretrizes claras, transparentes e garantidoras de direitos fundamentais, especialmente nos chamados "casos-limite", em que se insere grande parte da população parda brasileira. A autodeclaração, embora seja um importante instrumento de reconhecimento identitário e de reparação histórica, não pode ser compreendida de forma absoluta ou desvinculada da realidade social e fenotípica do indivíduo, contudo, ao mesmo tempo, a sua presunção de veracidade não pode, apenas por critérios subjetivos do avaliador, ser rechaçada.  Todo julgamento é conduzido por pessoas inevitavelmente atravessadas por experiências, percepções e valores pessoais. Desse modo, é no plano prático que os maiores desafios se materializam.  A ausência de critérios objetivos uniformes entre as comissões de heteroidentificação, a desconsideração de marcadores interseccionais (como gênero, classe e regionalidade) e a escassez de transparência nos processos decisórios frequentemente comprometem a finalidade do procedimento, que é assegurar justiça e isonomia.  No julgamento ADPF 1869, reafirmado no julgamento da ADC 4110, o STF, ao apreciar a constitucionalidade do procedimento de heteroidentificação, reconheceu que a autodeclaração do candidato não possui veracidade absoluta, contudo, deve ser o critério primário para o enquadramento racial, sendo a heteroidentificação um mecanismo subsidiário e apenas utilizado para evitar fraudes.  Destaca-se, nesse ponto, o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso: [...] 68. É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos da Lei nº. 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e a ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial. Com notável clareza, o STF firma o entendimento de que a garantia de validade do procedimento de heteroidentificação está profundamente ligada ao respeito ao contraditório, à ampla defesa e à dignidade da pessoa humana, elucidando que, em casos de dúvida quanto à identificação fenotípica, deve prevalecer a presunção de veracidade da autodeclaração do candidato, o que se aplica, também, à chamada "zona de incerteza" (ou "zona cinzenta"). Desse modo, ainda que as comissões de heteroidentificação racial estejam respaldadas na legalidade e constitucionalidade, e que o STF tenha delimitado parâmetros protetivos à dignidade do candidato, a latente subjetividade presente na própria estrutura do procedimento gera desconforto e inquietação, revelando importantes fragilidades, em especial quando não são observadas as garantias mínimas do devido processo legal.  A discussão aqui posta se correlaciona com o questionamento de Kabengele Munanga (2019, p. 104)11, que aponta: "quem é o negro que na sociedade brasileira tida como mestiça poderia ser beneficiado pelas cotas?". A indagação aponta reflexões quanto a construção das identidades negras no Brasil, principalmente no que se refere à pessoa autodeclarada negra da cor parda.  Miranda, Souza & Almeida (2020)12 e Bacelar (2021)13 discorrem que o "limbo racial" costumeiramente vinculado ao pardo se torna fato gerador para identificações raciais e, consequentemente, para o modo como o procedimento de heteroidentificar acontece, se conectando ao conceito de "zona cinzenta".  Para Osório, as principais controvérsias surgem quando os avaliados possuem traços que não se enquadram claramente nos padrões fenotípicos historicamente associados à negritude, gerando interpretações divergentes entre os membros das comissões. É como se estivessem "na fronteira entre dois grupos" (2013, p. 92)14. Nesses casos, a distinção entre quem deve ou não acessar políticas afirmativas baseadas em cor e fenótipo torna-se especialmente delicada, exigindo cautela redobrada por parte das comissões de heteroidentificação. Embora os pardos sejam contabilizados como parte da população negra, nos moldes do IBGE15 e do Estatuto da Igualdade Racial16, são frequentemente submetidos a interpretações divergentes no momento da heteroidentificação. Essa instabilidade na percepção do pertencimento racial pode resultar na exclusão de candidatos que, embora se autodeclarem negros, não correspondem à imagem fenotípica idealizada pelas comissões, o que compromete não apenas a legitimidade do procedimento, mas também a própria finalidade das ações afirmativas: promover inclusão e não gerar novas formas de exclusão.  A disparidade entre os métodos adotados pelas instituições quanto à padronização dos elementos fenotípicos observados e à formalização das decisões, resulta em julgamentos marcados por subjetividade exacerbada e, por vezes, contaminados por estereótipos ou vieses raciais. A depender da comissão e da região do país, uma mesma pessoa pode ser considerada apta ou inapta a ocupar uma vaga destinada a candidatos negros, o que demonstra a instabilidade e a inconsistência do sistema.  O procedimento de heteroidentificar deve verificar, com base em critérios fenotípicos, se há justificativa para o enquadramento nas políticas de cotas raciais. Nesse contexto, Rios pontua:  Reconhecer ao fenótipo papel decisivo decorre da constatação de que, no racismo e na atribuição de identidades étnico-raciais, organiza-se uma taxinomia de indivíduos e de grupos humanos a partir da ideia de raça, fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, [...] associação esta que se valeu, ao longo da história, de vários marcadores, desde a cor, até outras características antropofísicas e psíquicas. (2018, p. 236-237)17 Diante desse cenário, o reconhecimento da legalidade do procedimento de heteroidentificação não pode afastar a necessidade de que ele seja exercido com base em diretrizes técnicas, públicas e objetivas, em conformidade com os princípios do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana, sob pena de transformar a heteroidentificação em instrumento de negação do direito ao pertencimento racial e, portanto, de reprodução das mesmas lógicas de exclusão que as políticas afirmativas buscam combater. A efetividade do devido processo legal, nesses casos, não é apenas uma formalidade processual, mas um imperativo ético e jurídico para que o combate ao racismo institucional se dê de forma legítima e eficaz, uma vez que o objetivo não é invalidar a autopercepção identitária do indivíduo. Assim, trata-se de garantir que a política reparatória não se transforme, contraditoriamente, em novo instrumento de desigualdade ou gerador de judicialização, especialmente em um dos cursos mais concorridos do país. Conclui-se, portanto, que o aprimoramento dos procedimentos de heteroidentificação exige mais do que legalidade formal: impõe o compromisso ético com a justiça racial. As comissões precisam operar com responsabilidade técnica, consciência histórica e sensibilidade social, assegurando que a política de reserva de vagas para candidatos cotistas cumpra o seu papel de reparação e promoção da equidade, sem se tornar mais uma instância reprodutora de exclusões ou inseguranças jurídicas. ___________ 1 NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. 2 MOREIRA, A. J. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020. v. 1. 3 MOREIRA, A. J. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito/Justificando, 2017. 4 BRASIL. Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: L12711 (planalto.gov.br). Acesso em: 20 mar. 2025. 5 SILVA, Ana Claudia; CIRQUEIRA, Diogo; RIOS, Flavia & ALVES, Ana Luiza. 2020. Ações afirmativas e formas de acesso no ensino superior público: o caso das comissões de heteroidentificação. Novos estudos CEBRAP, v. 39 n. 2:329-347. 6 Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº. 0803282-58.2021.4.05.8000. Apelante: Ministério Público Federal. Apelado: Pedro Fellipe Pereira da Silva Rocha. Relator: Des. Federal Francisco Alves dos Santos Júnior. Julgamento em 12 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 7 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº. 1000706-09.2024.8.26.0136. Requerente: Alison dos Santos Rodrigues. Requerida: Universidade de São Paulo - USP. Juiz: Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula. Sentença proferida em 20 nov. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 8 G1. Médico recém-formado na UFAL é condenado a pagar indenização por fraude a cotas raciais. 10 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 9 ESTADÃO. Médico recém-formado terá que ressarcir Universidade Federal de Alagoas por fraude em cotas raciais. 12 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 10 CNN BRASIL. Juiz dá nova decisão em caso de aluno pardo barrado em Medicina na USP. 27 fev. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 186 - DF. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade - PSOL. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DJ 26 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2025. 12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 41 - DF. Requerente: Presidente da República. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, DJ 14 jun. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2025. 13 MUNANGA, Kabengele. 2019. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica. 14 MIRANDA, Ana Paula; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. Eu escrevo o quê, professor(a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas". Revista de Antropologia, v. 63, n.,3: e178854. 15 BACELAR, Gabriela. 2021. (Contra)mestiçagem negra: pele clara, anticolorismo e comissões de heteroidentificação racial. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia. 16 OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98. 17 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Distribuição da população por cor ou raça. Censo Demográfico 2022. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2025. 18 BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: L12288 (planalto.gov.br). Acesso em: 20 mar. 2025. 19 RIOS, R. R. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. In: DIAS, G. R. M.; TAVARES JUNIOR, P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 215-249. Disponível aqui. Acesso em: 17 mar. 2025.
A súmula vinculante 60, publicada pelo STF em setembro de 2024, representa um marco importante na organização do fluxo administrativo e judicial relativo ao fornecimento de medicamentos no SUS - Sistema Único de Saúde. Baseada em acordos interfederativos homologados pela Corte, essa súmula vinculante visa organizar e uniformizar o fluxo administrativo e judicial relacionado ao fornecimento de medicamentos pelos entes federativos. No total foram 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo STF, em governança judicial colaborativa, no Tema 1.234 com sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243), resultado de uma audiência realizada em 16/5/24, que contou com a participação dos entes federativos (União, Estados membros, municípios e Distrito Federal). Esses acordos abrangem seis pontos principais, que servem como diretrizes para a gestão dos pedidos e da judicialização da saúde:  I - competência; II - definição de medicamentos não incorporados; III - custeio; IV - análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS: V - plataforma nacional; VI - medicamentos incorporados.  No contexto deste artigo, destaca-se a diretriz VI que aborda os medicamentos incorporados  e estabelece, de forma objetiva, as responsabilidades e os procedimentos necessários à sua disponibilização. Conforme disposto no item 6 e no subitem 6.1 da súmula vinculante 60: 6) Em relação aos medicamentos incorporados, conforme conceituação estabelecida no âmbito da Comissão Especial e constante do Anexo I, os Entes concordam em seguir o fluxo administrativo e judicial detalhado no Anexo I, inclusive em relação à competência judicial para apreciação das demandas e forma de ressarcimento entre os Entes, quando devido; 6.1) A(o) magistrada(o) deverá determinar o fornecimento em face de qual ente público deve prestá-lo (União, estado, Distrito Federal ou Município), nas hipóteses previstas no próprio fluxo acordado pelos Entes Federativos, anexados ao presente acórdão". A súmula vinculante, vincula tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário, que devem aplicá-la integralmente. O descumprimento de suas disposições pode acarretar a nulidade do ato judicial, passível de correção por meio de reclamação constitucional, conforme disposto no art. 103-A, caput e §3º, da CF/88.  O Anexo I, mencionado no acordo interfederativo e disposto no acórdão do RE 1.366.243 (Tema 1.234 - STF), tornou-se de observância obrigatória por força de súmula vinculante. Esse anexo consolida as disposições específicas sobre o fornecimento de medicamentos no SUS - Sistema Único de Saúde, extraídas da portaria de consolidação 2, de 28/9/17, do Ministério da Saúde, referentes à competência, ao custeio e à distribuição de fármacos organizados em diferentes grupos, e estabelece o fluxo administrativo e judicial que deve ser rigorosamente observado por todos os entes federativos no processo de aquisição de medicamentos incorporados. Os grupos que compõem esse fluxo padronizado são assim organizados: Cada grupo estabelece a responsabilidade dos entes federativos pelo fornecimento e financiamento dos medicamentos incorporados.  Esses medicamentos podem estar incluídos no CEAF - Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, no CBAF - Componente Básico da Assistência Farmacêutica ou no CESAF - Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica. O CEAF engloba medicamentos de alto custo e complexidade, o CBAF é voltado para medicamentos essenciais da atenção básica, e o CESAF é direcionado a medicamentos estratégicos de saúde pública. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
O dia 26 de setembro de 2024 representa um marco temporal significativo para as tutelas judiciais relacionadas à entrega de medicamentos pela rede pública. Nessa data, o Tema 1.234, recentemente sumulado em 20 de setembro de 2024, e o Tema 6, sumulado em 26 de setembro de 2024, deram origem às súmulas vinculantes 60 e 61, respectivamente, consolidando importantes diretrizes para a análise e concessão de fármacos não incorporados, e incorporados, ao SUS. Como súmulas vinculantes, a observância de seus enunciados é obrigatória, tanto para Administração Pública quanto para o Poder Judiciário, que devem aplicá-las de forma integral. O descumprimento poderá resultar na nulidade do ato judicial, passível de correção por meio de Reclamação Constitucional, nos termos do art. 103-A, caput e §3º, da CF/88. Neste ponto, as súmulas vinculantes 60 e 61 trouxeram mudanças substanciais na judicialização da saúde, conferindo força presuntiva de validade às decisões da CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Regulamentada pela lei 12.401/11, a CONITEC tem a responsabilidade de assessorar o Ministério da Saúde na análise e deliberação sobre a incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias no âmbito do SUS, com base em critérios técnico-científicos e econômico-financeiros. Quando a CONITEC delibera sobre determinada tecnologia, ela emite um relatório de recomendação, que pode ser favorável ou não à sua incorporação. A decisão final de incorporação é formalizada por meio de portaria do Ministério da Saúde, que tem a prerrogativa de acatar ou não a recomendação da CONITEC. É a existência dessa portaria que torna obrigatória a oferta da tecnologia no SUS - Sistema Único de Saúde, para a condição clínica específica do paciente, conforme estabelecido nos PCDT - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6, conforme destacado à página 13: Afinal, se o medicamento foi incluído nas listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, não há mais que se discutir o seu custo, uma vez que essa variável é considerada pelas instâncias técnicas da Conitec e do Ministério da Saúde no momento da incorporação. Por outro lado, nos casos de não incorporação, embora a decisão tenha caráter técnico e se presuma válida, ela pode ser judicialmente questionada. No entanto, tal questionamento exige uma contestação específica, abordando os critérios e fundamentos utilizados pela CONITEC que motivaram a negativa. Nesses casos, é necessário demonstrar que a decisão administrativa contraria as diretrizes constitucionais, a legalidade ou a política pública de saúde, em observância ao disposto nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11. Além dessas hipóteses, o ato da CONITEC também pode ser objeto de controle judicial quando houver ausência de fundamentação técnica adequada, insuficiência na motivação da decisão ou inconsistências na análise das evidências científicas que embasaram a recomendação. A análise jurisdicional, conforme o item 4.2 da súmula vinculante 60, deve observar não apenas a legalidade dos atos administrativos, mas também a teoria dos motivos determinantes. Essa teoria estabelece que a validade do ato administrativo está vinculada à regularidade dos fundamentos que o sustentam. Como destacado pelo ministro Dias Toffoli no voto do RE 786540/DF, "por força da teoria dos motivos determinantes, a validade do ato administrativo fica vinculada à regularidade do fundamento aventado" (Tema 763, pág. 29). Adicionalmente, o descumprimento dos prazos legais para deliberação, previstos no art. 19-R da lei 8.080/90, bem como a inobservância do devido processo administrativo, especialmente em relação à transparência e à participação social, configuram hipóteses que autorizam a revisão judicial. Essas possibilidades de controle visam assegurar que as decisões administrativas estejam em conformidade não apenas com a legalidade formal, mas também com os princípios constitucionais que regem a administração pública e garantem a efetividade do direito à saúde. No exercício do controle de legalidade, conforme delineado no item 4.1 da súmula vinculante 60, o Poder Judiciário não pode substituir a discricionariedade técnica do administrador público. Sua atuação deve se limitar a verificar se o ato administrativo está em conformidade com os parâmetros constitucionais e legais, sem adentrar no mérito administrativo. Há, contudo, os casos em que o fármaco ou tecnologia ainda não foi avaliado pela CONITEC. Nestas situações, a ausência de análise não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, cabendo ao requerente demonstrar, com base em evidências científicas de alto nível, a imprescindibilidade clínica, a eficácia comprovada e a ausência de substitutos terapêuticos disponíveis no SUS (itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60). Nos casos em que o medicamento não foi avaliado pela CONITEC ou não está incorporado às listas de dispensação do SUS, a súmula vinculante 61 se torna imperativa ao estabelecer seis pressupostos cumulativos que devem ser observados para a excepcional concessão judicial do tratamento. O ônus probatório é do autor da ação, que deve demonstrar, de forma fundamentada, os seguintes requisitos: Negativa administrativa: Apresentação de prova da negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, conforme previsto no item 4 do Tema 1.234 (súmula vinculante 60), que exige a análise prévia do ato de indeferimento do fármaco; Legalidade da negativa: Contestação da ilegalidade do ato de não incorporação pela CONITEC, evidenciando a ausência de pedido de avaliação, ou demonstrando a mora injustificada na análise, conforme os prazos e critérios previstos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11; Ausência de substitutos terapêuticos: Demonstração da impossibilidade de substituição por outro medicamento disponibilizado nas listas do SUS ou nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas existentes; Medicina baseada em evidências: A comprovação da eficácia, segurança e efetividade do medicamento deve ser embasada em evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises. Nesse sentido, a consulta ao NATJUS ou a entes com expertise técnica pelo Juízo representa uma medida relevante para conferir a necessária robustez científica à decisão judicial, alinhando-a com a medicina baseada em evidências (item 3, "b" da súmula vinculante 61); Imprescindibilidade clínica: Laudo médico detalhado e fundamentado, emitido por profissional responsável pelo tratamento, comprovando a imprescindibilidade clínica do fármaco e descrevendo de forma clara os tratamentos já realizados e sua ineficácia; Incapacidade financeira: Prova da incapacidade financeira do paciente para arcar com o custo do medicamento, considerando sua realidade socioeconômica e a ausência de alternativas viáveis. Portanto, na ausência de avaliação pela CONITEC, a análise judicial deve ser rigorosa e pautada na comprovação robusta e fundamentada desses pressupostos. Por sua vez, a decisão judicial, sob pena de nulidade nos termos do item 3 da súmula vinculante 61, deve obrigatoriamente: a) analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC ou a negativa administrativa, à luz do caso concreto e da legislação aplicável; b) aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, mediante consulta prévia ao NATJUS ou a entes com expertise técnica, vedada a fundamentação exclusiva em documentos do autor; e, c) oficiar os órgãos competentes para avaliar a possibilidade de incorporação do medicamento no SUS. No que concerne à análise do ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC, ou da negativa administrativa, o Poder Judiciário deve observar os limites de sua atuação, conforme delineado na súmula vinculante 60 item 4.1. A função do magistrado, nesse contexto, não é substituir a discricionariedade técnica do administrador público, mas verificar se o ato administrativo específico está em conformidade com as diretrizes Constitucionais, a legislação de regência e as políticas públicas estabelecidas para o SUS. Nos casos em que a CONITEC não realizou a avaliação de determinado medicamento, a análise judicial deve se restringir a uma avaliação superficial, evitando adentrar nos pormenores técnicos do caso específico, uma vez que a ausência de avaliação prévia pela administração impede uma deliberação mais aprofundada. Nesses casos, é cabível também considerar a omissão no cumprimento dos prazos estabelecidos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90, que regulamentam o processo de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde. A falta de apreciação pela CONITEC não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, especialmente quando demonstrada a imprescindibilidade clínica do fármaco, a inexistência de alternativas terapêuticas disponíveis no SUS e a eficácia comprovada do medicamento, com fundamento na medicina baseada em evidências. Por outro lado, quando há uma decisão administrativa explícita de não recomendação de incorporação, o Judiciário deve realizar uma análise mais detalhada, considerando que a negativa envolve uma deliberação fundamentada sobre a eficácia e a segurança do tratamento. No que tange ao item 3, "b" da súmula vinculante 61, a decisão judicial que aprecia pedidos de concessão de medicamentos não incorporados ao SUS deve, sob pena de nulidade, aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento com base em consulta prévia ao NATJUS, sempre que disponível na respectiva jurisdição, ou a entes ou profissionais com expertise técnica na área da saúde. Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6 (p. 17), que determina: Desse modo, para examinar a licitude do ato administrativo comissivo ou omissivo da Conitec e aferir a presença dos demais requisitos, o magistrado deverá observar um requisito procedimental: a instauração de um diálogo institucional com o NATJUS ou entes com expertise técnica na área (como a própria Conitec ou profissionais do SUS). É esse diálogo que assegurará uma análise técnica à luz da medicina baseada em evidências, conferindo ao magistrado maior segurança quanto aos diversos aspectos envolvidos na demanda, como a fundamentação para a não incorporação do âmbito do SUS, a existência ou não de substituto terapêutico e a existência de prova científica de eficácia do fármaco. Ainda que o autor apresente documentos técnicos, como laudos, relatórios ou prescrições médicas, tais elementos não devem ser utilizados como fundamento exclusivo para a decisão judicial. A consulta a pareceres técnicos especializados é uma etapa essencial para garantir que a decisão esteja embasada em critérios científicos consistentes, alinhados com a medicina baseada em evidências, promovendo maior segurança e legitimidade ao processo decisório. Nesse contexto, a utilização do NATJUS ou de órgãos técnicos especializados se torna essencial, pois confere à decisão judicial a robustez científica necessária para evitar decisões baseadas exclusivamente em documentos unilaterais apresentados pelo autor. A análise técnica imparcial garante que sejam observados os parâmetros da Medicina Baseada em Evidências, proporcionando maior equilíbrio e segurança ao processo. Dessa forma, o diálogo institucional com órgãos de apoio técnico assegura que a decisão judicial esteja alinhada às diretrizes constitucionais e às políticas públicas de saúde, promovendo um julgamento mais justo e equitativo. Isso evita que a complexidade dos casos de saúde amplie desigualdades e assegura que os direitos fundamentais sejam resguardados com o devido embasamento técnico e jurídico. Em relação ao item 3, "c" da súmula vinculante 61, torna-se imprescindível que, nos casos excepcionais de concessão de medicamento não incorporado ao SUS, o juízo promova o envio de ofício "aos órgãos competentes para avaliarem a possibilidade de sua incorporação". Essa medida é justificada especialmente nos casos em que não houve análise prévia pela CONITEC, cabendo ao Judiciário atuar como fomentador de políticas públicas e corroborar com a eficiência e aperfeiçoamento do sistema de saúde. Conforme o art. 19-R da lei 8.080/90, o processo de incorporação deve ser concluído no prazo máximo de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, caso as circunstâncias exijam. Dessa forma, a ausência de pedido ou a demora injustificada na análise pela CONITEC deve ser observada pelo Juízo como elemento relevante a ser acentuado na decisão. Esse procedimento visa assegurar que a judicialização não apenas solucione o caso concreto, mas também contribua para a construção de soluções sistêmicas no âmbito da saúde pública. Como destacado no voto conjunto do Tema 6 (p. 19), essa prática é necessária para evitar decisões fragmentadas, garantindo que as demandas judiciais provoquem uma avaliação técnica formal. Nesse sentido: Por fim, na hipótese excepcional de concessão de medicamento não incorporado, a tese prevê a necessidade de intimação dos órgãos competentes para que avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS. Por exemplo, no caso de não haver pedido de incorporação, o magistrado deverá oficiar o Ministério da Saúde para que avalie a possibilidade de instruir pedido de análise pela Conitec, de modo que em demandas futuras haja uma análise técnica sobre aquele medicamento. Já no caso de mora na apreciação de pedido existente, será possível oficiar diretamente a Conitec para que conclua a análise. A partir desse procedimento será possível fazer com que a judicialização efetivamente contribua para o aperfeiçoamento do sistema de saúde, para a garantia da isonomia e da universalidade no atendimento à população e mesmo para a desjudicialização da assistência farmacêutica. Além disso, o ofício aos órgãos competentes também se mostra relevante nos casos em que há mora na apreciação de pedidos já existentes. Nessa hipótese, oficiar diretamente a CONITEC ou o Ministério da Saúde fomenta a celeridade na emissão de pareceres técnicos, promovendo maior eficiência na deliberação sobre a incorporação de medicamentos e garantindo uma resposta mais ágil e uniforme à sociedade. Portanto, a expedição do ofício cumpre duplo papel: suprir a omissão administrativa nos casos sem avaliação prévia e fomentar a celeridade na análise de pedidos pendentes, alinhando a atuação do Judiciário à promoção de políticas públicas eficazes e equânimes. Tal prática evita a perpetuação de decisões isoladas e favorece o fortalecimento do sistema público de saúde, garantindo maior isonomia e universalidade no atendimento à população. Assim, tanto nos casos em que houve a não recomendação de incorporação de um medicamento pela CONITEC quanto naqueles em que o Ministério da Saúde emitiu portaria formal de não incorporação, ou ainda nos casos de omissão na avaliação pela CONITEC, a análise judicial do caso concreto é indispensável. O juízo deve, com rigor, verificar se estão presentes os critérios e pressupostos estabelecidos pelas súmulas vinculantes 60 e 61, assegurando que a decisão judicial esteja fundamentada em evidências científicas consistentes, complementadas por subsídios técnicos do NATJUS, quando disponível, ou de outros entes com expertise na área da saúde (conforme itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60 e item 2 da súmula vinculante 61). A observância desses procedimentos não apenas assegura a legitimidade técnica das decisões judiciais, mas também contribui para a promoção de políticas públicas de saúde mais eficazes e equânimes. Desse modo, evita-se a fragmentação de decisões e se fortalece o SUS, assegurando os princípios de universalidade, equidade e eficiência no acesso ao direito fundamental à saúde. _____________ 1 BRASIL. STF. Súmula vinculante 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos três acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo STF, em governança judicial colaborativa, no Tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. 2 BRASIL. STF. Súmula vinculante 61. A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024. 3 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 1366243 - Tema 1.234. Disponível aqui. Acesso em: 2 out. 2024. 4 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 566471 - Tema 6. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024. 5 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 786540 - Tema 763. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.
A título de benefício para determinados contribuintes1, a legislação tributária prevê um regime simplificado de apuração do IRPJ - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e da CSLL - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a partir de suas receitas, qual seja, o do lucro presumido, o qual dispõe de uma alíquota fixa a ser considerada para o cálculo dos referidos tributos. Especificamente, a lei 9.249/95, ao disciplinar a matéria, estabeleceu, como regra, o percentual de 32% sobre a receita bruta auferida às prestadoras de serviços em geral. Contudo, tendo em conta o papel também extrafiscal da atuação estatal, o legislador previu tratamento diferenciado às pessoas jurídicas prestadoras de serviços hospitalares - e, depois da alteração legislativa dada pela lei 11.727/08, igualmente estendeu tal tratamento também aos serviços equiparados, como de auxílio diagnóstico e patologia clínica -, os quais, então, sujeitam-se ao percentual reduzido de 8% para apuração da base de cálculo do IRPJ, e de 12% para a CSLL. In verbis: Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a aplicação do percentual de 8% sobre a receita bruta auferida mensalmente, observado o disposto no art. 12 do decreto-lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, deduzida das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, sem prejuízo do disposto nos arts. 30, 32, 34 e 35 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995.§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este art. será de: [...]III - 32%, para as atividades de:a) prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares e de auxílio diagnóstico e terapia, patologia clínica, imagenologia, anatomia patológica e citopatologia, medicina nuclear e análises e patologias clínicas, desde que a prestadora destes serviços seja organizada sob a forma de sociedade empresária e atenda às normas da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária; [...] (g.n.) Art. 20. A base de cálculo da CSLL devida pelas pessoas jurídicas que efetuarem o pagamento mensal ou trimestral a que se referem os arts. 2º, 25 e 27 da lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, corresponderá aos seguintes percentuais aplicados sobre a receita bruta definida pelo art. 12 do decreto-lei 1.598, de 26 de dezembro de 1977, auferida no período, deduzida das devoluções, das vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos:I - 32% para a receita bruta decorrente das atividades previstas no inciso III do § 1º do art. 15 desta lei; [...]III - 12% para as demais receitas brutas. (g.n.) Da leitura dos referidos dispositivos, nota-se que, para além da natureza dos serviços prestados, há de se atender outros dois critérios, quais sejam, o da organização da empresa como sociedade empresária e, ainda, o atendimento às normas sanitárias da agência reguladora. Assim, seria possível concluir que, uma vez supridos tais requisitos, não haveria óbice para a redução tributária. Entretanto, a expressão "serviços hospitalares" causou dúvida na prática forense, sobretudo diante da Instrução Normativa da RFB 1.234/122 e do Ato Declaratório Interpretativo da RFB 19/073, os quais restringem o conceito de serviços hospitalares àqueles desenvolvidos estritamente em hospitais. Nesse sentido, tornou-se questão controversa levada aos tribunais se se trataria de um rol taxativo ou se o legislador a dispôs, propositadamente, de forma abrangente. Diante de tal repercussão, portanto, é que a matéria foi julgada sob o rito dos recursos repetitivos pelo STJ (REsp 1.116.399/BA), consolidando o Tema 217: Para fins do pagamento dos tributos com as alíquotas reduzidas, a expressão 'serviços hospitalares', constante do art. 15, § 1º, inciso III, da lei 9.249/95, deve ser interpretada de forma objetiva (ou seja, sob a perspectiva da atividade realizada pelo contribuinte), devendo ser considerados serviços hospitalares 'aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde', de sorte que, 'em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos'. (g.n.) Portanto, a partir de tal entendimento, as divergências interpretativas foram dirimidas, restando cristalino que, para fazer jus ao benefício da alíquota reduzida, os serviços prestados devem ser de natureza hospitalar ou equiparada, assim definidos aqueles destinados à promoção da saúde, um direito constitucional, sendo irrelevante, outrossim, se prestados necessariamente em hospital. Desse modo, coadunando legislação e jurisprudência, tem-se, definitivamente, os seguintes requisitos: (i) a natureza do serviço deve ser hospitalar ou equiparada, devendo ser destinado à promoção da saúde, sendo irrelevante as características do contribuinte; (ii) o serviço será considerado hospitalar ou equiparado independentemente do local onde foi prestado; (iii) o contribuinte deve estar organizado, em termos societários, como sociedade empresária e; (iv) o contribuinte deve estar de acordo com as normas sanitárias da Anvisa. Ainda, consolidou-se que meras consultas médicas não devem ser consideradas equiparadas. Portanto, quaisquer outras exigências por parte da autoridade coatora que tenham o fito de restringir tal benesse de tributação reduzida, deverão ser consideradas inconstitucionais, haja vista a violação ao princípio constitucional da legalidade tributária (art. 150, I, do Código Tributário Nacional). A partir de tal entendimento, é possível, então, que clínicas médicas, independentemente de sua especialidade, sujeitas ao regime de tributação do lucro presumido, pleiteiem a redução da carga tributária do IRPJ e da CSLL sobre as receitas auferidas em razão de realização de serviços de natureza hospitalar - ou equiparados -, tais como procedimentos cirúrgicos e exames de diagnósticos clínicos, bem como restituam (ou compensem) os valores recolhidos a maior de forma indevida. 1 "A princípio, todas as empresas podem optar pelo lucro presumido. As empresas obrigadas ao lucro real, e logicamente proibidas de utilizar o lucro presumido, são aquelas enquadradas nos seguintes casos: a. cuja receita total, no ano-calendário anterior, seja superior a R$ 78 milhões ou proporcional ao número de meses do período, quando inferior a 12 meses; b. instituições financeiras e equiparadas, inclusive empresas de seguros privados, capitalização, factoring e entidades de previdência privada aberta; c. que tiverem lucros, rendimentos ou ganhos de capital oriundos do exterior; d. que, autorizadas pela legislação tributária, usufruam benefícios fiscais relativos à isenção ou redução de imposto; ou e. que no decorrer do ano-calendário tenham efetuado pagamento mensal pelo regime de estimativa, inclusive mediante balanço ou balancete de suspensão ou redução". PÊGAS, Paulo Henrique Pêgas, Manual de contabilidade tributária, p. 324. 2 Art. 30. "Para os fins previstos nesta Instrução Normativa, são considerados serviços hospitalares aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde, prestados pelos estabelecimentos assistenciais de saúde que desenvolvem as atividades previstas nas atribuições 1 a 4 da Resolução RDC 50, de 21 de fevereiro de 2002, da Anvisa. Parágrafo único. São também considerados serviços hospitalares, para fins desta Instrução Normativa, aqueles efetuados pelas pessoas jurídicas: I - prestadoras de serviços pré-hospitalares, na área de urgência, realizados por meio de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) móvel instalada em ambulâncias de suporte avançado (Tipo "D") ou em aeronave de suporte médico (Tipo "E"); e II - prestadoras de serviços de emergências médicas, realizados por meio de UTI móvel, instalada em ambulâncias classificadas nos Tipos "A", "B", "C" e "F", que possuam médicos e equipamentos que possibilitem oferecer ao paciente suporte avançado de vida". 3 Art. único. "Para efeito de enquadramento no conceito de serviços hospitalares, a que se refere o art. 15, § 1º, inciso III, alínea "a", da lei 9.249, de 26 de dezembro de 1995, os estabelecimentos assistenciais de saúde devem dispor de estrutura material e de pessoal destinada a atender a internação de pacientes, garantir atendimento básico de diagnóstico e tratamento, com equipe clínica organizada e com prova de admissão e assistência permanente prestada por médicos, possuir serviços de enfermagem e atendimento terapêutico direto ao paciente, durante 24 horas, com disponibilidade de serviços de laboratório e radiologia, serviços de cirurgia e/ou parto, bem como registros médicos organizados para a rápida observação e acompanhamento dos casos".
De um tempo para cá o avanço do Direito Penal sobre a saúde tem se mostrado cada vez mais notório, especialmente sobre áreas que, antes, quando dialogadas com o Direito, tratavam tão somente - ou majoritariamente - da responsabilidade civil e/ou ética dos seus profissionais. Assim, em meados de dezembro de 2024, uma decisão do STJ trouxe mais um capítulo à (já não tão curta e recente) história de construção, consolidação e expansão de um Direito Penal médico. Desta vez, em sede do HC 971.681-GO, o min. Herman Benjamin foi instado a decidir sobre a prisão preventiva de uma biomédica que foi presa em flagrante em Goiânia/GO, após morte de sua paciente (por parada cardíaca) em uma clínica de procedimentos estéticos. Em razão desse fato, em um momento sabidamente embrionário do procedimento penal, foram vislumbrados três crimes distintos: exercício ilegal da Medicina (art. 282, CP), execução de serviço de alto grau de periculosidade (art. 65, CDC) e, ainda, venda ou manutenção em depósito para venda matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo (art. 7º, IX, lei 8.137/90). O pedido liminar defensivo que, em suma, pretendeu a revogação da prisão cautelar, ainda que mediante a aplicação de cautelares alternativas ou a substituição por prisão domiciliar, foi rejeitado. O ministro registrou que a matéria levantada não havia sido examinada pelo Tribunal de origem, fato este que o levou a entender que a intervenção da Corte nesta ocasião restaria inviabilizada. Contudo, à vista da possibilidade da súmula 691 do STF ser superada em casos de flagrante ilegalidade ou de teratologia da decisão impugnada, com a concessão da ordem de ofício, parece razoável sinalizar, desde já, que o ministro também não observou qualquer problema na decisão impugnada. Desta maneira, ganharam destaque a prisão em flagrante de uma biomédica, a conversão dessa prisão em preventiva e, principalmente, a manutenção desta prisão mesmo após questionada por defesa técnica. Foi exatamente essa tríade, inclusive, que ganhou as manchetes dos mais diversos canais de comunicação e redes sociais. Apesar disso, outro assunto merece(ria) idêntica (ou até maior) visibilidade, que é a reprodução de interpretações tecnicamente apressadas de importantes institutos e conceitos penais - leituras essas que costumavam ser vistas, até então, quando réus pertenciam a um outro núcleo do Direito Penal, isto é, quando tratávamos de réus presos por crimes patrimoniais comuns, tráfico de drogas, etc. Esse fenômeno, aliás, ao fim e ao cabo, parece logo confirmar e reforçar o avanço do Direito Penal sobre a atuação de profissionais da saúde, isto é, médicos, biomédicos, enfermeiros, etc. O conceito nuclear que integrou a decisão do min. Herman Benjamin e que merece um enfrentamento vertical é o de prisão preventiva. Essa prisão, que é essencialmente uma medida de cautela, busca garantir o desenvolvimento normal do processo e, consequentemente, a eficaz aplicação do poder de atribuir pena1. Daqui já é possível perceber que essa prisão em absolutamente nada se confunde com a prisão que decorre de uma sentença condenatória e, também, que os seus requisitos e fundamentos serão distintos dos necessários à concessão de, por exemplo, medidas cautelares reais (do fumus boni iuris e do periculum in mora), regidas, bem se sabe, por vasta e rica doutrina civilista. Assim, o que se exige para o decreto de uma medida cautelar como a prisão preventiva, guiada, agora, por uma doutrina penal e processual penal, é a demonstração do fumus commissi delicti e, muito, do periculum libertatis. Importa(rá), então, a probabilidade da ocorrência de um delito (não mais de um direito) e, ainda, uma situação de perigo concreto criada pela conduta do imputado. Aqui, o risco que deriva do atraso inerente ao tempo que pode transcorrer até uma sentença definitiva passa a ser irrelevante e cede espaço para o risco de frustração da função punitiva (por fuga do acusado), de graves prejuízos ao processo (pela ausência do acusado) ou para qualquer outro risco ao normal desenvolvimento do processo. Em síntese, o perigo não brota mais do lapso temporal entre provimento cautelar e o definitivo, mas, sim, da situação (potencial, concreta e objetiva) de liberdade do sujeito passivo2. O CPP, aliás, acompanha essa sistemática. O seu art. 312 estabelece expressamente que a prisão preventiva só poderá ser aplicada "como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado". Neste exato sentido, decisões recentes do STJ têm reforçado a instrumentalidade desta medida cautelar e, ainda, a necessidade de o tomador de decisão demonstrar concretamente o periculum libertatis3. É neste enredo que o princípio da provisionalidade, que rege a aplicação da prisão preventiva, ganha destaque. Ao tempo que se nota que a prisão preventiva é situacional, ou seja, tutela uma situação fática, esse princípio passa a indicar que, desaparecido o suporte fático legitimador da medida cautelar, a segregação precisa cessar imediatamente. Além disso, essa provisionalidade recebe contornos ainda mais relevantes da redação do art. 282, § 6º, do CPP, que estabelece que "a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar". Esses artigos transmitem aos magistrados uma mensagem simples: a prisão preventiva pressupõe o esgotamento das possibilidades de substituição por medidas cautelares diversas. Dito de outro modo, o decreto dessa cautelar mais gravosa deverá suceder obrigatoriamente a análise do preenchimento dos seus requisitos e, depois, da insuficiência das medidas cautelares mais brandas. E não resta dúvida de que a inviabilidade dessas medidas alternativas não é e não pode ser presumida. Muito pelo contrário. Se for este o caso, deverá o(a) tomador(a) de decisão explicar textualmente porque as considerou insuficientes. Assim, superado esse mergulho na teoria das prisões cautelares, é preciso destacar que a prisão preventiva do caso concreto foi decretada para impedir que a biomédica continuasse fazendo procedimentos estéticos. Sendo essa uma alegação que, sim, pode(ria) eventualmente justificar uma medida cautelar - até mesmo a prisão -, faltaria verificar ainda se outras alternativas não dariam conta desse objetivo. Bastaria verificar, antes do decreto da prisão, se o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a proibição de contato com determinadas pessoas, a proibição de ausentar-se da Comarca, o recolhimento domiciliar no período noturno, a suspensão do exercício de natureza econômica ou financeira e/ou a monitoração eletrônica não impediriam que a biomédica permanecesse atuando. A resposta parece se mostrar afirmativa, apesar de o magistrado singular, o Tribunal de Justiça e STJ terem entendido que a restrição de liberdade seria o único meio idôneo para este fim. Apesar desse entendimento, é preciso argumentar que a prisão, neste caso, não se apresenta como a única maneira de se fazer cessar a prática de novas infrações penais - e daqui já se nota que o seu decreto e sua manutenção se mostraram equivocados. Isso pode ser compreendido a partir do bom senso (às vezes é importante recorrer a ele), mas, principalmente, a partir do que estabelece o art. 282 do CPP e, também, do alcance das medidas cautelares alternativas previstas no art. 319 deste mesmo diploma legal. Se, então, os incisos do art. 282 dispõem que o magistrado, ao aplicar qualquer medida cautelar, inclusive a prisão preventiva, deverá levar em consideração a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado, deve(ria) ter considerado que as penas (de detenção) dos delitos imputados à biomédica eram substancialmente baixas - o que reflete objetivamente na avaliação da gravidade do crime supostamente praticado e, naturalmente, da proporcionalidade e necessidade da medida definitiva a ser tomada - e, claro, que os supostos delitos foram cometidos em um local conhecido e bem delimitado no espaço e por uma pessoa que, muito provavelmente, indicaria um local onde pode(ria) ser encontrada. Por aqui logo se percebe, portanto, que a possibilidade real de encontrar a biomédica e de controlar as suas atividades indica fortemente que a sua prisão se mostra não só desnecessária como, também, ilegal e inconstitucional. Do mesmo modo, se o parágrafo 6º deste art. 282 estabelece que este mesmo magistrado deve ainda checar a utilidade das medidas cautelares mais leves, deve(ria), então, ter, pelo menos, explicado o porquê a proibição de acesso à clínica e a estabelecimentos similares, a proibição de contato com todo e qualquer paciente, a suspensão de sua atividade econômica e a monitoração eletrônica não serviriam para fazer cessar a reiteração criminosa - se esse for, de fato, o caso. Nada disso parece ter acontecido. Neste caso, aliás, a clínica de procedimentos estéticos foi interditada e isso aconteceu pronta e justamente para evitar que a biomédica continuasse atuando. Vê-se, pois, por este ângulo, um esvaziamento da serventia da preventiva e, quem sabe, até mesmo das demais medidas cautelares, que, como prevê o CPP, não precisam ser obrigatoriamente adotadas (art. 321, CPP). Apenas a título argumentativo, ainda que a clínica não tivesse sido interditada, parece que as demais medidas cautelares alternativas também teriam o condão de interromper as atividades desta profissional. Ocorre que é conhecida a dificuldade de se executar e fiscalizar o cumprimento dessas outras medidas - fato esse que torna o decreto da prisão preventiva uma medida mais conveniente. Contudo, a superação dessa dificuldade é ônus do Estado e a biomédica - assim como todo e qualquer profissional da saúde - não poderia estar pagando por isso. Portanto, é relevante assentar que as cautelares diversas da prisão poderiam - logo, deveriam - ter sido aplicadas neste caso (como visto, poderia até ter sido discutido o cabimento da liberdade provisória sem qualquer cautelar) e, assim, a prisão da biomédica se mostrou abusiva. Desta maneira, nota-se não só o avanço do Direito Penal sobre a área médica, mas, especialmente, o avanço do bem conhecido Direito Penal simbólico sobre a atuação de muitos profissionais da saúde, que, sabidamente, vem minando todo e qualquer garantia do cidadão. 1 MARTINEZ, Sara Aragoneses et al. Derecho Procesal Penal.  2 ed. Madrid, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, 1996, p. 387. 2 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 357. 3 Habeas Corpus 945.542, ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 4/11/24.
A Medicina contemporânea, impulsionada pela Era Digital, enfrenta o desafio da crescente influência das redes sociais na percepção dos pacientes sobre os procedimentos estéticos. A cirurgia plástica, em especial, tornou-se um dos principais alvos desse fenômeno, com publicidades que frequentemente induzem a superexpectativas. Diante desse cenário, estas breves reflexões têm o intuito de demonstrar que o dever de informação do cirurgião plástico assume um caráter qualificado, tanto em relação ao processo de consentimento esclarecido, quanto no marketing médico, sob pena de ser responsabilizado pela violação ao dever de informação ou, ainda, converter a natureza jurídica obrigacional em uma obrigação de resultado. O dever de informação na cirurgia plástica: um padrão qualificado A cirurgia plástica estética, diferentemente de procedimentos médicos terapêuticos, possui caráter eletivo e visa à melhoria da aparência do paciente, sem necessariamente envolver um risco iminente à saúde. Contudo, toda intervenção cirúrgica envolve variáveis biológicas e fatores alheios ao controle do profissional, de modo que a obtenção de um resultado específico não pode ser garantida. Por isso, defende-se o posicionamento de que a obrigação do cirurgião plástico, mesmo em procedimentos estritamente estéticos, deve ser classificada como de meios, e não de resultado.1 A distinção tradicional entre cirurgias estéticas e reparadoras, além de artificial, desconsidera que a Medicina opera em um campo de incertezas, tornando inadequado impor ao cirurgião um compromisso absoluto com o sucesso do procedimento. Essa abordagem encontra respaldo na doutrina e jurisprudência de países como Espanha e Portugal, nos quais se reconhece que o dever do médico é empregar a técnica correta e agir com diligência, sem a presunção automática de responsabilidade pelo insucesso da cirurgia estética. A maior parte das controvérsias jurídicas envolvendo cirurgia plástica surge da falha de uma comunicação eficiente sobre os riscos inerentes e peculiaridades de cada procedimento, o que pode gerar expectativas irreais no paciente. Esse aspecto transforma o dever de informação em um pilar central no contexto dessa especialidade médica, exigindo que o profissional esclareça não apenas os riscos tradicionais do procedimento, mas também suas limitações, tempo de recuperação, possibilidade de insatisfação e necessidade de retoques. Complicações como contratura capsular em mamoplastias com prótese, abertura de pontos em cirurgias mamárias, fibroses e necroses em lipoaspirações, assimetrias em cirurgias faciais e dificuldades no fechamento palpebral após blefaroplastias são apenas alguns exemplos de intercorrências que devem ser devidamente informadas. Além disso, procedimentos como preenchimento glúteo e lipoescultura apresentam riscos específicos que demandam cautela redobrada, especialmente em relação à procedência dos materiais utilizados. Ainda, vale destacar que o corpo humano reage de forma individualizada, podendo apresentar respostas imprevisíveis, mesmo quando o profissional emprega a técnica adequada, os melhores recursos disponíveis e atua com perícia. Alterações biológicas inesperadas, hipersensibilidades e variações na cicatrização podem impactar o resultado, tornando impossível garantir um desfecho idêntico para todos os pacientes. Além disso, o êxito da cirurgia plástica depende significativamente dos cuidados pós-operatórios adotados pelo próprio paciente, um fator que foge, em grande parte, ao controle do médico. Diante disso, reforça-se a necessidade de um consentimento esclarecido abrangente e detalhado, assegurando que o paciente compreenda as possíveis complicações e que o profissional atue com transparência e diligência.  Afinal, sendo a cirurgia plástica um ato médico como qualquer outro, sua obrigação deve ser de meios, cabendo, portanto, ao cirurgião demonstrar que forneceu todas as informações, esclareceu adequadamente, e prestou o devido acompanhamento, afastando-se qualquer culpa por eventos adversos intrínsecos ao procedimento. Em Portugal, André Dias Pereira também defende que, para as intervenções médico-cirúrgicas não terapêuticas, há um dever de informação qualificado, mais rigoroso, tornando-se um elemento fundamental para equilibrar a relação entre médico e paciente, garantindo que este esteja plenamente ciente dos riscos inerentes ao procedimento e das limitações quanto à previsibilidade dos resultados. Este entendimento segue o critério da necessidade do tratamento para avaliação do conteúdo do dever de informação; isto é, quanto menos necessário for o tratamento, mais rigorosa deve ser a informação. Destaca o doutrinador que o critério da necessidade de tratamento é "codeterminante do quantum de informação a prestar, sendo aliás, este aspecto e não o da natureza jurídica da obrigação (de meios ou de resultado) que verdadeiramente distingue a cirurgia estética pura das intervenções terapêuticas".2 Imagine-se o caso de uma mulher negra e fumante que procura um cirurgião plástico para realizar uma mamoplastia redutora. Durante a consulta, o médico explicou o procedimento de forma genérica, mas não abordou riscos específicos relacionados à cicatrização e às variações anatômicas individuais. A paciente, predisposta a desenvolver queloides devido à sua etnia e ao hábito de fumar, que compromete a vascularização dos tecidos, não foi informada sobre o aumento do risco de cicatrizes hipertróficas e necrose do complexo aréolo-mamilar. No pós-operatório, ela desenvolveu cicatrizes espessas e necrose parcial, necessitando de procedimentos reparadores. Se este litígio fosse julgado, poderia o médico ser responsabilizado por violação ao dever de informação. Quando a obrigação de meios se transforma em obrigação de resultado André Dias Pereira explica que, entre os juristas portugueses, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro sustentam que a obrigação do médico pode ser considerada de resultado quando ele garante um tratamento totalmente seguro e sem sequelas, especialmente em cirurgias estéticas, ao apresentar fotografias apenas de casos bem sucedidos sem esclarecer suas limitações. Além disso, essa obrigação pode surgir quando o profissional promete um desfecho específico, como ocorre em cirurgias estéticas com projeções geométricas detalhadas (croquis).3-4 Um aspecto relevante a ser considerado no cenário do dever de informação qualificado em cirurgia plástica é que, se mal utilizadas algumas ferramentas - croquis, fotografias e simulações digitais -, o paciente pode ser induzido a acreditar que o resultado será idêntico ao projetado. Se o profissional não esclarece que esses materiais são apenas ilustrações aproximadas, pode-se argumentar que houve não apenas violação ao dever de informação, mas transformação da obrigação médica de meios para obrigação de resultado, levando à presunção de culpa caso não atinja a expectativa gerada. Vale destacar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a boa-fé é um princípio fundamental na relação contratual entre médico e paciente, especialmente em cirurgias plásticas, onde as expectativas do paciente são frequentemente elevadas pela natureza eletiva e estética do procedimento. A boa-fé objetiva impõe deveres de transparência, lealdade e cooperação ao profissional de saúde, garantindo que o paciente tome sua decisão de forma plenamente informada e sem ser induzido a erro. Nesse contexto, o uso de croquis, fotografias e simulações digitais deve ser conduzido com responsabilidade, evitando criar a falsa impressão de um resultado garantido, sob pena de violação da boa-fé contratual. Assim, quando o profissional promete um resultado específico ou se utiliza dos recursos supracitados (croquis, fotografias e simulações digitais) de forma imprópria - omitindo os riscos e variações individuais -, há um desvio do caráter original da obrigação médica, que deveria ser de meios, transformando-a em uma obrigação de resultado. Nesse caso, eventual insucesso da cirurgia poderia levar à presunção de culpa do cirurgião, uma vez que o paciente confiou na promessa de um desfecho idealizado. No contexto jurídico espanhol, vislumbra-se que ocorreu há duas décadas uma evolução jurisprudencial significativa no que se refere à tradicional concepção dicotômica sobre a natureza da obrigação médica. Explica Julio César Galán Cortés que, desde 2005, o Tribunal Supremo na Espanha (STS758/2005), tem o entendimento consolidado no sentido de que, as obrigações do médico na denominada medicina voluntária ou satisfativa - aí incluídos os procedimentos estritamente estéticos ou a cirurgia reparadora - são considerados como obrigações de meios, com uma exigência rigorosa no que se refere à informação sobre seus riscos, alternativas e inconvenientes. Apenas nos casos em que houver um asseguramento do resultado por parte do médico ou quando a publicidade o indicar ou sugerir, essa obrigação poderá ser qualificada como de resultado.5 Galán Cortés destaca que o cirurgião estético não deve ser colocado em condição inferior à do cirurgião geral, pois o fator aleatório e a resposta individual de cada paciente tornam conceitualmente inadequada a classificação de sua obrigação como uma obrigação de resultado. Contudo, explica que, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações, sua obrigação possa assumir essa natureza, especialmente quando há uma informação parcial, tendenciosa ou incompleta, induzindo o paciente a acreditar que o procedimento é simples, isento de riscos e que o resultado é praticamente garantido. Além disso, o autor espanhol observa que, frequentemente, essa percepção equivocada é amplificada pela própria publicidade promocional, que, ao ser elaborada com o único intuito de atrair clientes, direciona intencionalmente o público para essa falsa expectativa. Por esse motivo, nesse tipo de cirurgia, a transparência e a clareza das informações prestadas ao paciente devem ser priorizadas. O fator determinante para a responsabilização, em grande parte dos casos julgados por tribunais espanhóis, especialmente nas duas últimas décadas, reside na qualidade e abrangência da informação prestada ao paciente, destacando-se o dever qualificado de esclarecimento sobre os riscos, as limitações da técnica e a possibilidade de variações individuais nos resultados. Assim, em litígios envolvendo cirurgia plástica, a transparência na relação médico-paciente assume um papel central na delimitação da responsabilidade profissional. Em linhas gerais, sustenta-se que, na cirurgia plástica, a obrigação pode ser transformada e qualificada como de resultado quando: i) há promessas explícitas de um resultado específico, seja verbalmente, seja por meio de simulações irreais; ou ii) a publicidade induz o paciente a acreditar que o sucesso do procedimento é garantido. O papel da publicidade digital na criação de superexpectativas Atualmente, em redes sociais, são frequentes as publicações com "antes e depois" impressionantes, promessas de transformação e o uso de simulações digitais sem ressalvas suficientes em postagens, criando um ambiente em que o paciente, muitas vezes, acredita estar adquirindo um produto garantido, e não se submetendo a um procedimento médico sujeito a variações biológicas. As redes sociais desempenham um papel crucial na formação da decisão do paciente, mas, quando utilizadas de forma irresponsável, tornam-se um fator de risco para desalinhamento de expectativas. Entre os principais elementos que contribuem para essa distorção, destacam-se: i) uso exclusivo de casos bem-sucedidos - omitindo resultados medianos ou insatisfatórios; ii) legendas que sugerem garantia de resultado - expressões como "seios perfeitos garantidos" ou "abdômen dos sonhos em uma única cirurgia" criam uma percepção errônea sobre o procedimento; iii) influência de digital influencers - a recomendação por figuras públicas pode reforçar a crença na previsibilidade do resultado, sem consideração pelos fatores individuais. Além desses aspectos, a própria dinâmica das redes sociais favorece a disseminação de uma imagem idealizada da cirurgia plástica, muitas vezes descolada da realidade clínica. Os filtros, retoques digitais e até o ângulo das fotos contribuem para uma percepção distorcida, dificultando que o paciente compreenda as limitações reais da intervenção. O impacto dessa exposição pode ser significativo, levando a uma busca cada vez mais intensa por cirurgias baseadas em padrões irreais. Esse fenômeno, conhecido como "Snapchat Dysmorphia"6, reforça a necessidade de um dever de informação ainda mais rigoroso por parte do profissional de saúde. A criação de superexpectativas pode levar não apenas à insatisfação do paciente, mas também à presunção de culpa do profissional, pois, como já dito, a natureza jurídica da sua obrigação passa a ser de meios. Quando a publicidade digital utilizada pelo cirurgião não esclarece devidamente as limitações do procedimento e, mais do que isso, gera a expectativa de determinado resultado, sua obrigação pode ser interpretada como de resultado, transferindo para ele o ônus da frustração do paciente. Vale consignar que, em âmbito ético, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamenta a publicidade médica por meio do Código de Ética Médica e outras Resoluções do CFM, estabelecendo diretrizes para evitar a mercantilização da Medicina e a criação de expectativas irreais nos pacientes. A recente Resolução CFM nº 2.336/2023 permitiu a divulgação de imagens de "antes e depois" em redes sociais, para fins estritamente pedagógicos, além de possuir restrições importantes, como a proibição de edição digital das imagens, a necessidade de autorização expressa do paciente e a exigência de informações sobre variações individuais e possíveis limitações dos resultados. A omissão desses aspectos pode ser interpretada como prática antiética e resultar em sanções disciplinares. Além disso, de acordo com o Manual de Publicidade Médica da Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos do Conselho Federal de Medicina (Codame-CFM), a apresentação do "antes e depois" deve ter, obrigatoriamente, quatro etapas: i) quando sinais e sintomas apontam para procurar um médico; ii) fotos ou vídeos de pacientes antes do tratamento, utilizando ao menos quatro diferentes pacientes; iii) fotos ou vídeos de pacientes após a intervenção médica, mostrando possíveis resultados alcançados, utilizando imagens de ao menos quatro diferentes pacientes. Quando possível, deve ser apresentada a evolução para diferentes biotipos e faixas etárias; iv) descrição de possíveis resultados insatisfatórios e complicações, que podem ser demonstrados através de ilustrações, fotografias ou texto. Assim, cabe ao médico agir com boa-fé, transparência e responsabilidade, utilizando suas plataformas digitais para também educar o paciente sobre riscos, variações anatômicas e limitações da cirurgia, garantindo que o consentimento esclarecido seja um processo real e não apenas um requisito formal. A publicidade médica digital deve ser pautada na informação ética e científica, evitando qualquer forma de promessa de resultado ou indução ao erro, para preservar não apenas a confiança na relação médico-paciente, mas também a integridade da profissão médica. Diretrizes para uma publicidade ética e transparente nas redes sociais A publicidade médica, especialmente no campo da cirurgia plástica, deve ser conduzida de maneira transparente e responsável, evitando a criação de superexpectativas nos pacientes. Para garantir que a divulgação de informações sobre procedimentos estéticos respeite princípios éticos e legais, recomenda-se a adoção das seguintes diretrizes: (i) Evitar promessas de resultados garantidos: a linguagem utilizada em ambiente digital deve ser objetiva e não deve induzir o paciente a acreditar que um determinado procedimento resultará necessariamente em um desfecho específico. Expressões como "seios perfeitos garantidos" ou "abdômen dos sonhos em uma única cirurgia" devem ser evitadas. (ii) Divulgar informações realistas sobre riscos e limitações: todo procedimento cirúrgico possui riscos e variações de resultados conforme fatores biológicos individuais. Dessa forma, as redes sociais devem ser utilizadas também para esclarecer o público sobre as possíveis complicações e a necessidade de retoques. (iii) Uso adequado de imagens de "antes e depois": conforme a Resolução CFM nº 2.336/2023, a publicação de imagens comparativas só é permitida para fins estritamente educativos, sem qualquer manipulação digital. Ademais, deve ser explicitado na descrição da postagem que os resultados podem variar conforme as características individuais de cada paciente. Ademais, é essencial considerar as quatro etapas do uso de imagem conforme o Manual de Publicidade da Codame-CFM. (iv) Simulações digitais com ressalvas: o uso de ferramentas tecnológicas para projeção de resultados deve ser acompanhado de esclarecimentos sobre sua natureza ilustrativa. Na publicidade digital deve ser inserida a informação de que as simulações não garantem um resultado exato, mas apenas uma referência aproximada. (v) Uso consciente da influência digital: médicos que possuem grande alcance nas redes sociais devem ter ainda mais cautela com a informação divulgada, reconhecendo a responsabilidade sobre a formação de opinião dos pacientes. O conteúdo compartilhado deve ser sempre embasado cientificamente e não pode ser direcionado apenas para fins promocionais desmedidos. (vi) Evitar sensacionalismo e expressões apelativas: o marketing digital deve ser pautado na seriedade e no compromisso ético com a saúde do paciente. Publicações que explorem medos, inseguranças ou promessas de "vida transformada" podem ser consideradas antiéticas e ilícitas. A adoção dessas diretrizes contribui para um ambiente de publicidade médica mais transparente, protegendo não apenas os direitos dos pacientes, mas também a credibilidade da própria classe médica. O cirurgião plástico, ao utilizar as redes sociais e outros meios de divulgação digital, deve ter a consciência de que a informação e a publicidade adequadas são essenciais para preservar a integridade da relação médico-paciente. Notas conclusivas O avanço da publicidade digital impõe à cirurgia plástica a necessidade de redefinir seus padrões de transparência, ética e comunicação, resgatando a essência da Medicina como um compromisso com a verdade e o cuidado. O dever de informação qualificado não se encerra na assinatura do termo de consentimento, mas permeia toda a jornada do paciente, desde o primeiro contato com a publicidade médica até o acompanhamento pós-operatório. Em um mundo onde imagens editadas e discursos persuasivos moldam percepções, a palavra do médico deve ser um farol de clareza e responsabilidade, guiando escolhas conscientes e protegendo a autonomia do paciente. A crescente judicialização da insatisfação estética revela: sempre que a publicidade médica se sobrepõe à ética, a obrigação de meios se transfigurará em obrigação de resultado, ampliando o risco de responsabilização do profissional. Para evitar esse cenário, a conduta médica deve ser alicerçada na boa-fé, na informação rigorosa e na transparência irrestrita, assegurando que a expectativa do paciente seja construída sobre bases reais, e não sobre promessas ilusórias. Nesse contexto, o papel do advogado torna-se essencial. A assessoria jurídica adequada não apenas resguarda o profissional contra litígios desnecessários, mas também fortalece a integridade da prática médica, orientando estratégias publicitárias dentro dos limites éticos e legais. O diálogo entre a Medicina e o Direito, quando bem conduzido, não representa uma limitação, mas sim uma ferramenta de segurança e credibilidade, garantindo que o exercício profissional permaneça alinhado à sua verdadeira missão: promover bem-estar com responsabilidade e respeito à dignidade do paciente. 1 Nesse sentido, destacam-se: i) KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 51 ss; ii) DANTAS, Eduardo. Direito médico. 8. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 199-232. 2 PEREIRA, André Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 397-400. 3 PEREIRA, André Dias. Direitos dos pacientes e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 717-719. 4 Em trabalho anterior, já defendíamos que "ao publicizar os resultados pretéritos, o profissional pode atrair uma obrigação de resultado, pois incute no paciente que aquele resultado individual e subjetivo pode ser replicado em terceiros" (MASCARENHAS, Igor; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 24/2/22. Disponível aqui. 5 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad civil médica. 9. ed, Navarra: Civitas, 2024, p. 236-237; 245-248. 6 O conceito de "Snapchat Dysmorphia" surgiu em 2018, cunhado por dermatologistas e cirurgiões plásticos para descrever um fenômeno no qual pacientes buscam procedimentos estéticos para se parecerem com suas versões filtradas e editadas em aplicativos como Snapchat, Instagram e TikTok. Os filtros e editores de imagem oferecem transformações instantâneas que alteram traços faciais, deixando a pele mais lisa, o nariz mais fino, os olhos maiores, a mandíbula mais definida e os lábios mais volumosos. Esse novo "padrão" digital cria uma dissonância entre a autoimagem real e a idealizada, levando algumas pessoas a desenvolverem insatisfação extrema com sua aparência.
A chegada do fim de 2024 traz consigo uma reflexão: O que fizemos do Direito Médico neste ano? Como alguém que começou na área em 2011 como estagiário no CRMPB, tenho visto uma nova fase do Direito Médico e não considero que essa nova fase seja qualitativamente produtiva. No início, tínhamos como mentores os livros-manuais de Miguel Kfouri Neto, Genival Veloso, Eduardo Dantas/Marcos Coltri, Heloísa Helena Barboza e livros da área de autores como Fernanda Schaefer, Luciana Dadalto, Maria Fátima Freire de Sá/Bruno Naves. Na atualidade, surgem especialistas de todos os cantos e formas. Em tempos de vidas aceleradas, os profissionais recém egressos no mercado buscam "fast-formation" com "fast-mentores" com pouca ou nenhuma experiência comprovada. Acontece que os "antigos" mestres são ainda necessários e atuais. A grande verdade é que o Direito Médico não é a mina de ouro. Não será através do Direito Médico que o profissional dará uma virada de 180º na sua vida e passará a cobrar honorários de seis dígitos de forma repentina. Não que os honorários de seis dígitos não sejam possíveis, mas sua construção não é uma corrida de 100 metros rasos, mas uma longa e sofrida prova de IronMan. A grande realidade é que o perfil exigido do profissional contemporâneo requer base normativa, técnica médica e jurídica muito grande e verticalizada. O tão sonhado oceano azul, na verdade, é um mar tormentoso, inquieto e que sobrepuja os aventureiros. Se, no passado, o Direito Médico era encarado pelo grande público como um subproduto das grandes áreas como Penal e Civil, hoje é um campo de atuação própria, digno de constar expressamente nas "tabelas mínimas de honorários" das seccionais da OAB, como já acontece nos Estados de Rondônia, Sergipe e Pernambuco. Ocorre que mesmo dentro dessa nova área, novas subáreas têm surgido. Atualmente temos empresarial médico, civil médico, penal médico, tributário médico, administrativo médico, processo sancionador ético médico. O atual campo de expertise no Direito Médico exige, da mesma forma que a medicina, um maior aprofundamento e densidade téorico-prática. Se o CFM e os CRMs valorizam o RQE - Registro de Qualificação de Especialista e os próprios médicos, ainda que não formalmente especialistas, tendem a verticalizar sua atuação em razão do volume do conhecimento médico, de igual forma, os juristas precisam verticalizar conhecimento. Alguns tribunais, a exemplo do TJ/PR, possuem câmaras próprias destinadas à discussão da responsabilidade civil, por exemplo, razão pela qual essa prática facilita o debate jurídico, pois desembargadores e integrantes do MP terão uma maior relação com a matéria tratada. Para os profissionais da advocacia, o aprofundamento teórico-prático se releva ainda mais fundamental em razão das inúmeras particularidades do Direito Médico para o campo correlato mais amplo. Ocorre que no campo da docência e da advocacia, temos vivido um "efeito Dunning-Kruger" constante, ou seja, pessoas com um viés cognitivo que superestimam suas proprias habilidades de atuação. Profissionais sem nenhum preparo passam a escrever, atuar e defender interesses dos clientes sem perceber o vazio cognitivo que os ocupa.    O cliente, por outro lado, vive um mar de assimetria informacional. Primeiro por desconhecer as particularidades do mundo jurídico e, em um segundo momento, por não conseguir fazer uma escolha racional de um bom profissional, posto que há flagrante seleção adversa - fenômeno tratado na economia em que um dos agentes, em razão da insuficiência e má percepção das informações, acaba tomando decisões erradas. Como bem destaca Warren Buffet, "são necessários 20 anos para construir uma reputação e apenas 5 minutos para destruí-la". Logo, contratar o profissional errado pode gerar cenários catastróficos. Precisamos questionar: Como é possível explicar a discussão sobre obrigação de meio e resultado médica, resultado adverso, iatrogenia, princípio da confiança, erro honesto, responsabilidade objetiva mitigada, negligência informacional e tantos outros conceitos próprios do Direito Médico sem que haja uma preparação técnico-teórica adequada? A maior complexidade médico-jurídica exige que os caminhos inicialmente desbravados por aqueles citados no início do texto sejam percorridos e avançados, pois a medicina está em contínua evolução.1 Se, no passado, o médico podia se dar ao "luxo" de não informar o paciente e exercer uma Medicina paternalista, essa realidade não mais subsiste. Se no passado era possível verificar condenações em valores módicos, hoje as condenações por erro médico podem ultrapassar, com facilidade, os sete dígitos. Observa-se que no ano de 2024 vimos uma possível mudança de entendimento do STJ sobre responsabilidade das unidades hospitalares por atos de médicos não subordinados e também por responsabilidade dentro da equipe. Paralelamente, houve um avanço na definição dos critérios de responsabilidade em caso de negligência informacional para procedimentos eletivos. Nesse cenário, o Poder Judiciário precisa trazer segurança jurídica e balizar: Os parâmetros exigidos para consentimento; O que seria imperícia, imprudência e negligência; Critérios de responsabilidade e solidariedade entre equipe; Consolidar os parâmetros de responsabilidade das unidades por atos de profissionais não prepostos; Definir o critério de responsabilidade hospitalar para casos de infecção hospitalar; Definir o critério de responsabilização hospitalar para casos de erro em decorrência de exame laboratorial/diagnóstico. Ocorre que todas essas discussões precisam ser conduzidas não por um modelo fast, mas por um modelo técnico e sério que considere todos os impactos e desafios que circundam o ato médico. Faço votos de que não sejamos conquistados pelo canto da sereia e que seja possível fazer um debate qualificado. Paralelamente, considerando que todos somos potenciais pacientes e seremos impactados pelas decisões judiciais relativas aos critérios apontados, que o STJ promova uma abordagem democrática com a inclusão de amicus curiae para qualificação do debate. 1 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American Clinical and Climatological Association, v. 122, p. 48, 2011.
No julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN1, que resultou no Tema 6, ligado à judicialização da saúde, o STF ampliou os critérios para o fornecimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, independentemente do custo, com repercussão geral. Até então, os juízes se orientavam pelos critérios cumulativos firmados no Tema 1063 do STJ. No sistema de precedentes brasileiro, o Tema 6 do STF causará grande impacto nos processos em andamento e futuros, pois o CPC exige que os tribunais mantenham a jurisprudência estável e coerente, e que os juízes e os tribunais, por sua vez, observem os precedentes (art. 927 do CPC). Neste contexto, a técnica da superação (overruling) é essencial para a observância dos precedentes, e o Tema 6 do STF representa uma mudança significativa em relação ao Tema 106 do STJ, quanto à obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos não incorporados pelo SUS. Os arts. 926 e 927 do CPC reforçam a necessidade de uniformidade e estabilidade na jurisprudência, vinculando todos os juízes e tribunais às teses definidas pelos tribunais de vértice, sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, § 1º, incisos V e VI, e art. 927, inc. III, § 1º, ambos do CPC. A doutrina aponta que o sistema de precedentes do CPC brasileiro difere dos países de common law3. No common law, os julgamentos são proferidos no âmbito de stare decisis, aplicando raciocínios idênticos a casos semelhantes4 5. Nos países anglo-americanos, o precedente é a razão necessária e suficiente para um resultado jurídico, mesmo que a potencialidade de generalidade ou replicabilidade seja pequena ou nula6. No Brasil, a vinculação dos juízes às teses fixadas pelos tribunais superiores, está ligada, essencialmente, ao viés gerencialista, que busca solucionar a crescente judicialização em diversos assuntos.  O julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN, que estabeleceu o Tema 6 do STF, busca uniformizar a interpretação de questões constitucionais relevantes, definindo parâmetros para o deferimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS. Como mencionado, o overruling permite ajustar ou substituir os precedentes, conforme novas leis, mudanças sociais ou econômicas, ou novos entendimentos.  Um exemplo clássico de overruling é o caso Brow v. Board of Education (1954), que revogou o precedente estabelecido em Plessy v. Ferguson (1896) nos EUA7. No Brasil, o julgamento do HC 82.959-SP pelo STF8 mudou o entendimento sobre a progressão de regime para condenados por crimes hediondos. O art. 927, §4º do CPC prevê a revisão de precedentes para preservar a segurança jurídica, a proteção da confiança e a isonomia.   Na doutrina, a superação é necessária para adaptar o direito às mudanças9, corrigir erros passados10, ou atualizar os precedentes às demandas da sociedade11. A doutrina reconhece que tanto o Tribunal que criou o precedente12 quanto o Tribunal de hierarquia superior pode superá-lo13. Portanto, a superação de precedentes vinculantes é vital para a flexibilidade e evolução do sistema jurídico brasileiro, permitindo ajustes nos julgamentos, em face da crescente judicialização da saúde. Entre 2021 e 2022, houve o aumento de 19% de processos sobre saúde14, com o crescimento de 198% na primeira instância em nove anos, enquanto os processos gerais caíram 6%. Na segunda instância, os processos de saúde subiram 85%, enquanto os gerais reduziram 32%. Em 30/4/24, 62% dos processos de saúde envolviam entes públicos, enquanto 38% as empresas de saúde suplementar15. No TJ/SP, em 2023, foram distribuídos 121.203 novos processos, um aumento de 23% em relação ao ano anterior16. Os assuntos mais judicializados entre 2020 e 2022 incluíram fornecimento de medicamentos, tratamento médico-hospitalar, reajuste contratual e leitos hospitalares. Desde a criação do e-NATJUS em 2018, os dez medicamentos mais solicitados foram: Tetraidrocanabinol+canabidiol; Dupilumabe; Canabidiol; Esilato de nintedanibe; Rivaroxabana; Pembrolizumabe; Aripiprazol; Dapagliflozina; Cloridrato de duloxetina; Insulina glargina.  Embora o Tema 106 do STJ tenha contribuído para maior clareza e uniformidade às decisões judiciais, o volume de ações judiciais de saúde não foi reduzido substancialmente.  A judicialização da saúde é um dos maiores problemas do Poder Judicial, segundo o presidente do STF17, cujo Tema 6 procura definir se o Estado é obrigado a fornecer um medicamento não listado pelo SUS para pacientes sem condições de pagar.   Assim, para avaliar se Tema 106 do STJ foi superado pelo Tema 6 do STF, aplicando o overruling, é preciso entender as diferenças entre os dois Temas e como a superação de precedentes funciona.  O Tema 106 do STJ exige três requisitos cumulativos: (a) comprovação médica da necessidade do medicamento e ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS; (b) comprovação da incapacidade financeira da pessoa de arcar com o custo do medicamento; (c) registro na Anvisa. O Tema 6 do STF, por sua vez, estabelece os seguintes parâmetros cumulativos: (a) negativa administrativa de fornecimento do medicamento (item 4 do Tema 1.234); (b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec; (c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS; (d) comprovação científica da eficácia e segurança do fármaco, respaldada por evidências científicas de alto nível; (e) imprescindibilidade clínica do tratamento; (f) comprovação da incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento. Em termos comparativos, os requisitos do Tema 6 do STF são mais rigorosos e complexos, pois incluem, por exemplo, a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível, o que não era explicitamente requerido no Tema 106 do STJ. A única semelhança entre os temas é exigência de comprovação da incapacidade financeira do paciente. Com base nas diferenças e na técnica do overruling, podemos inferir que o Tema 6 do STF, não apenas complementa, mas também amplia significativamente os requisitos estabelecidos pelo Tema 106 do STJ, estabelecendo um novo padrão mais rigoroso e detalhado para a concessão de medicamentos fora da lista do SUS. Considerando os dados extraídos do Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do CNJ, e do relatório da saúde, publicado em 2019, podemos antever alguns possíveis impactos significativos do Tema 6 do STF, tanto nas demandas em andamento, como nos futuros casos futuros: 1) a inclusão de requisitos como a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível tornarão o processo judicial mais complexo e exigente, dificultando o acesso de pacientes sem recursos ou conhecimento jurídico insuficiente; 2) a complexidade destas ações poderá criar desigualdades no acesso à saúde, favorecendo os grandes litigantes habituais18, neste caso, os entes públicos federativos; 3) pacientes, com menos recursos, estarão excluídos dos juizados especiais à luz dos arts. 3º e 35 da lei 9.099/95, caso seja indispensável a produção pericial de grande complexidade, além do impeditivo do valor da causa (art. 3º, inc. I da lei 9.099/95 e art. 2º da lei 12.153/09), caso observado o limite do tratamento anual, previsto no Tema 1234 do STF. Os novos requisitos do Tema 6 do STF podem contribuir para a sustentabilidade financeira do SUS, ajudando a controlar melhor a alocação de recursos e evitando que as decisões judiciais desestabilizem a gestão financeira do SUS, ao beneficiar uma minoria em alocações de tratamento de alto custo.  Entretanto, a necessidade de atender a esses parâmetros mais rigorosos pode aumentar o tempo de tramitação das ações judiciais, exigindo maior análise e fundamentação dos juízes, tais como o exame das recomendações da Conitec e da comprovação científica do fármaco, respaldado por evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise. Antes, as decisões concessivas de medicamentos se baseavam, principalmente, em relatórios médicos ou prescrições. Em São Paulo, apenas 72 das mais de 80 mil decisões fazem referência à Conitec19. O Tema 6 do STF estabelece a deferência do Poder Judiciário às recomendações da Conitec, não podendo ser rediscutida em ações individuais, o que pressionar por políticas de saúde mais bem estruturadas e transparentes, reduzindo a necessidade de judicialização. Em resumo, os novos parâmetros do Tema 6 são muito mais rigorosos e detalhados, tornando a concessão judicial de medicamentos não incorporados às listas do SUS uma medida excepcional20. _________ 1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informação à sociedade. RE 566.471 (Tema 6). Critérios para fornecimento de medicamentos fora da lista oficial do SUS. Brasília, DF:  Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Precedentes Qualificados. Brasília, DF:  Superior Tribunal de Justiça. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024. 3 MITIDIERO, Daniel Francisco. Op. Cit., 2017. 4 MANCUSO, Rodolgo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014. 5 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Paula Pessoa. Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode confundir precedentes com as técnicas do CPC para solução da litigância de massa? São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019. 6 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Op. Cit., 2019. 7 USA. U.S. Supreme Court. Brown v. Board of Education of  Topeka, 343, U.S. 294 (1955). Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 8 BRASIL. STF. HC 82.959-SP. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 23/02/2006. Disponível aqui. Acesso em 20.10.2024. 9 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. 10 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 11-95, 2012. 11 ARENHART, Sérgio Cruz et al, Op. Cit., 2019. 12 MACEDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. 13 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2016. 14 BRASIL. APM. Infográfico apresenta panoramas da Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024. 15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Painel Sistema e-NATJUS, Núcleo Técnico do Poder Judiciário. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 30.4.2024. 16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Op. cit., 30.4.2024.  17 BRASIL. STF celebra conclusão de julgamento sobre fornecimento de medicamentos de alto custo. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 18 GALANTER, Marc. Por que" quem tem" sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no direito. São Paulo, FGV Direito, 2018. 19 Cf. BRASIL, CNJ. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas, e propostas de solução. Disponível aqui. 20 Para acessar o texto do artigo completo do autor: Disponível aqui.
Sem conflito de interesse e sua importância No texto "O Pacto da Trindade", que aborda a interconexão entre a medicina, Direito e seguros, destaca-se o seguro de RCP - Responsabilidade Civil Profissional como um pilar importante na gestão de riscos médicos, especialmente em um cenário de crescente judicialização da relação médico-paciente.1 Como ressaltado pelo ministro do STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva: "a responsabilidade civil é fundamental para a justa reparação de danos a terceiros, enquanto o seguro oferece proteção financeira e promove confiança nas atividades econômicas".2 Os corretores de seguros, conforme a lei 4.594/64, são intermediários que devem agir com autonomia e independência, identificando e recomendando a modalidade de seguro que melhor atenda às necessidades do segurado.   A conscientização sobre a importância do RCP e a atuação responsável e técnica dos corretores podem minimizar os riscos e promover uma prática médica mais segura e ética. Verdades e mitos sobre o seguro de RCP médica O seguro de RCP - Responsabilidade Civil Profissional é uma proteção necessária para médicos, garantindo cobertura em casos de indenizações por erros que resultem em danos a pacientes.  Existem vários mitos em torno do seguro de RCP para médicos, clínicas e hospitais.  Erros em serviços de saúde são frequentemente percebidos como raros, mas essa crença não reflete a realidade. De acordo com a OMS - Organização Mundial da Saúde, desde 2019, cinco pacientes morrem a cada minuto devido a falhas evitáveis no cuidado, incluindo infecções hospitalares, erros médicos e administrações incorretas de medicamentos por equipes multidisciplinares. A probabilidade de um paciente falecer por erro evitável é de 1 em 300 - um risco significativamente maior em comparação aos acidentes aéreos, cuja chance de fatalidade é de 1 em 3.000.000.3 Médicos não enfrentam processos e tampouco são condenados. Outras inverdades são a crença de que os médicos são infalíveis e não enfrentam condenações. Dados mostram que, até 2023, o Brasil registrou 573.750 processos judiciais relacionados à medicina, resultando em uma média alarmante de 1,02 processos por médico. Na Bahia, a taxa de condenação é de 50%. Esses números destacam a realidade da judicialização da medicina.4 Ter um seguro aumenta o risco de processos. Muitos acreditam que contratar um seguro de RCP pode aumentar as chances de ser processado e/ou condenado. Essa suposição é equivocada, pois a maioria dos pacientes não têm acesso à informação de que o médico possui uma apólice de RCP.  Ademais, é fundamental destacar que, em casos que envolvem alegações de erro médico, a elucidação dos fatos ocorre por meio de uma perícia judicial, que é quase uma condição sine qua non para a resolução do processo. Desafios na contratação: Um dos principais obstáculos para a contratação do seguro de RCP médica é o preconceito em relação ao custo. Muitos médicos, especialmente os recém-formados, não sabem que existem opções acessíveis, com prêmios que podem ser menores do que o valor de dois plantões. É crucial desmistificar a ideia de que apenas certas especialidades, como obstetrícia e cirurgia plástica, precisam desse seguro. Profissionais de todas as áreas podem se beneficiar da proteção oferecida pelo RCP. Além disso, o preço das apólices para especialidades de maior risco reflete a lógica atuarial: quanto maior a exposição ao risco, maior o prêmio. Portanto, a contratação de um seguro deve ser vista como um investimento na segurança da carreira. Superadas essas barreiras, ao considerar a contratação do seguro de RCP, os médicos devem lembrar que a segurança de suas práticas e suas carreiras depende de decisões informadas e conscientes. Como afirmou Napoleon Hill, "o plano mais seguro é não depender da sorte." 5 Como funciona o seguro de RCP médica O seguro de RCP para médicos, também conhecido como E&O - Errors and Omissions ou RCP, é um seguro baseado em reclamações (claims made basis). Sua contratação prevê indenização a terceiros, desde que atendidos dois requisitos principais6: Danos ocorridos: Os danos ou o fato gerador devem ter ocorrido durante a vigência da apólice ou no período de retroatividade. Reclamação formal: A reclamação deve ser apresentada por terceiro ao segurado durante a vigência da apólice ou dentro de um prazo adicional. O fato gerador refere-se a falhas profissionais resultantes de atos médicos executados pelo segurado com culpa, ou seja, sem dolo, que causam danos a terceiros. Essa falha pode ocorrer em qualquer serviço profissional prestado ao paciente, como consultas, diagnósticos, interpretação de exames, prescrição de medicamentos e procedimentos cirúrgicos. Para que a cobertura do seguro seja válida, tanto a assistência médica quanto a falha e o dano devem ocorrer entre o início e o fim da vigência da apólice, que geralmente é de doze meses, ou durante o período de retroatividade. O que é a retroatividade? A retroatividade é a data que determina o início da cobertura de um novo seguro, podendo se referir a um período anterior à primeira apólice de uma série contínua, renovada ou não renovada com o mesmo segurador. Este conceito é especialmente relevante no seguro de RCP, principalmente no contexto médico. Ao contrário de seguros como automóvel ou de vida (pessoas), nos quais os eventos cobertos têm datas claras, as falhas profissionais médicas podem ser identificadas muito tempo depois. Por exemplo, um erro durante uma cirurgia pode só ser descoberto anos após o procedimento, permitindo que o paciente processe o médico até cinco anos após a descoberta. Fala-se em prescrição quinquenal, pois o STJ firmou entendimento de que ações de indenização por erro médico estão sujeitas ao prazo prescricional de cinco anos, conforme o art. 27 do CDC7, contado a partir do momento em que o paciente tem ciência do dano e de sua autoria (AgInt no AREsp 1.381.799/SP)8. Por isso, o seguro de RCP é considerado de "cauda longa". Ao mudar de seguradora, é crucial que o segurado verifique se a nova apólice mantém a data de retroatividade da(s) apólice(s) anterior(es). Caso contrário, reclamações sobre eventos anteriores à nova vigência não estarão cobertas. O seguro é a base de reclamação! O seguro de RCP médica está diretamente ligado ao processo de reclamação, ou seja, terceiros solicitam indenização ao segurado por danos que possam ter causado. Para que o seguro seja acionado, é crucial que o terceiro, seja a vítima ou um familiar, registre a reclamação relacionada ao médico. Além disso, o segurador deve ser informado sobre eventos que possam resultar em reclamações durante a vigência da apólice. Isso inclui tanto incidentes já reclamados quanto aqueles que podem gerar futuras demandas. Quando um dano a um terceiro/paciente ocorre devido a uma ação ou omissão do segurado, isso é considerado um sinistro, mesmo que ainda não haja uma reclamação formal. O segurado tem a obrigação, em respeito ao princípio da boa-fé, de notificar a seguradora sobre o sinistro, mesmo que a reclamação não tenha sido oficialmente apresentada. A comunicação da reclamação e do sinistro é fundamental para o início do processo de regulação, permitindo a apuração das causas e dos danos cobertos. Omissões nesse processo podem levar ao não aproveitamento da apólice vigente e a negativas em futuras apólices. Benefícios do seguro de RCP médica Frisa-se que cada seguradora tem liberdade para definir os benefícios do produto, o que significa que não existem dois seguros de RCP médica idênticos, com variações nas exclusões e situações não cobertas, nas definições de conceitos e dos benefícios ao segurado.  No entanto, há produtos no mercado que oferecem benefícios relevantes para médicos e organizações de saúde. Aqui estão algumas das principais coberturas que um seguro de RCP médica deve incluir: 1. Custos de defesa: Médicos enfrentam o risco de processos, mesmo sem erro. Para evitar prejuízos financeiros, a cobertura de defesa é imprescindível. Ela cobre despesas como honorários de advogados, peritos, assistentes técnicos e custos processuais, incluindo taxas para conciliadores e recursos. É crucial que essa proteção se estenda a ações judiciais cíveis, criminais e processos administrativos, como sindicâncias e questões éticas perante os CRMs e o CFM, além de situações envolvendo o Procon. 2. Honorários contratuais de advogado: Os honorários contratuais são um benefício fundamental do seguro de RCP médica, permitindo que o segurado escolha seu advogado, uma decisão baseada na confiança. A seguradora não deve impor limites ou tabelas para os honorários. O pagamento ou reembolso deve seguir critérios como razoabilidade, complexidade do caso e a relação entre risco e benefício econômico. Para advogados especializados em Direito Médico, a experiência e a reputação também devem ser consideradas na definição dos honorários. 3. Indenizações ou responsabilidade civil profissional: A principal cobertura deste seguro é a indenização por responsabilidade civil profissional, essencial para proteger médicos de perdas financeiras em casos de danos a pacientes. Se o médico for responsabilizado civilmente em uma sentença judicial transitada em julgado, a seguradora pagará a indenização, garantindo proteção financeira. É importante verificar as coberturas da apólice, já que algumas seguradoras não cobrem danos morais puros, que não resultam de danos estéticos ou corporais. Os tipos de prejuízos que podem ser indenizados incluem: Danos estéticos, dano moral puro, dano material, pensionamento, lucros cessantes, perda de uma chance e dano existencial, todos relevantes para o risco médico. 4. Acordos judiciais e/ou extrajudiciais: O segurado deve evitar agravar o risco (princípio do absenteísmo) e mitigar prejuízos (Duty to Mitigate the Loss). Assim, é sensato que médicos segurados e seguradores busquem acordos, seja extrajudiciais ou, em casos já judiciais, acordos judiciais, especialmente em situações de erro médico que causam dano ao paciente. Essa abordagem beneficia pacientes, médicos e seguradoras. Como observado por Luciana Dadalto e Igor Mascarenhas, as seguradoras podem participar na resolução de conflitos entre médicos e pacientes9. A prática de medical disclosure, associada à cobertura, oferece uma proteção adicional aos cuidados com o paciente e contribui para uma sociedade mais segura. Entretanto, conforme o art. 787, § 2º do CC/02, é obrigatório que o segurador participe do acordo10. O pagamento do acordo celebrado entre médico e paciente depende da anuência expressa do segurador, sendo recomendada uma abordagem triangular: médico/hospital segurado - paciente/familiares - segurador, respeitando o limite máximo de cobertura contratada. 5. Proteção da imagem profissional ou gerenciamento de crises ou despesas de publicidade ou custos de restituição de imagem: Com a intensa exposição nas mídias sociais, médicos enfrentam riscos à sua reputação devido a condenações precipitadas, tanto por pacientes quanto pela imprensa. Nesse contexto, a proteção da imagem e a reputação moral do profissional são essenciais.  Contar com uma assessoria especializada em comunicação e proteção de imagem, além de consultores em relações públicas e media training, é tão crucial quanto a contratação de um advogado especializado em Direito Médico. Essa abordagem oferece segurança e vantagens significativas para o médico em momentos de crise. 6. Extensão para pessoa jurídica do médico: Dada a legalidade da terceirização da mão-de-obra médica e a praxe no mercado da "pejotização" nos serviços de saúde, é crucial que médicos que contratam seguro de RCP médica para pessoa física, também, tenham suas coberturas aplicáveis à pessoa jurídica.  Essa questão ganha relevância, pois pacientes e familiares podem optar por processar apenas o médico em seu CNPJ, e não como pessoa física. Isso ocorre porque, ao terem acesso a esse dado - seja ao buscar reembolsos de planos de saúde ou deduções no imposto de renda -, muitas vezes adotam como estratégia processual incluir apenas o nome empresarial do médico (pessoa jurídica) no polo passivo da ação. Assim, acreditam que será aplicado o caput do art. 14 do CDC, em vez da exceção prevista no § 4º do mesmo dispositivo11.  Portanto, é indispensável que o seguro não imponha limitações quanto ao número de sócios na pessoa jurídica e que não condicione a simultaneidade da reclamação contra as esferas física e jurídica do médico.    7. Quebra de sigilo profissional: O sigilo médico é um dos deveres fundamentais da profissão. Portanto, é crucial que haja cobertura para reclamações relacionadas a violações desse sigilo, desde que ocorram no exercício da atividade profissional.  8. Ato do bom samaritano: Embora pareça que todos os médicos estão prontos para prestar primeiros socorros, a realidade é que muitos, independentemente de sua experiência ou especialização, podem se sentir inseguros em emergências.  A não prestação de assistência pode resultar em acusações de omissão de socorro, enquanto ações inadequadas podem levar a responsabilizações. Essa situação gera um dilema para os profissionais.  Recentemente, foi proposta uma lei, projeto 3.132/24, que buscava tornar obrigatória a identificação de médicos em voos nacionais e internacionais, ressaltando a importância de estarem preparados para agir em emergências. 9. Cônjuge, espólio, herdeiros e representantes: Ao contratar um seguro de RCP médica, é essencial considerar a possibilidade de indenização por perdas decorrentes de reclamações que, devido à incapacidade legal ou falecimento do segurado, podem ser direcionadas a seu cônjuge, companheiro em união estável, espólio, herdeiros ou representantes legais.  Essa cobertura é fundamental, pois processos judiciais podem se arrastar por anos, em alguns estados por mais de uma década.  10. Outras coberturas: Médicos em perfis específicos e especialidades devem considerar outras coberturas, como a proteção para chefes de equipe e/ou diretores médicos.  Aqueles que atuam em telemedicina precisam de proteção contra reclamações relacionadas a esse serviço.  Além disso, profissionais que realizam ou autorizam transporte de pacientes e/ou tratamento médico domiciliar devem garantir essas coberturas em seu seguro de RCP. Considerações finais O seguro de RCP - Responsabilidade Civil Profissional é urgente para médicos, clínicas e hospitais, proporcionando proteção financeira e reputacional em um contexto de crescente judicialização da medicina. Desmistificar crenças equivocadas sobre o RCP é fundamental; ele não aumenta o risco de processos, mas sim fortalece a prática médica, garantindo segurança e ética no cuidado com o paciente. A conscientização sobre a importância do RCP médica e a atuação responsável dos corretores de seguros são cruciais para que os profissionais da saúde acessem opções adequadas. Ao priorizar essa contratação, os médicos não apenas protegem suas carreiras, mas também reforçam a confiança da sociedade nos serviços de saúde. __________ 1. REBOUCAS, Rodrigo Souza Linhares. O Pacto da trindade: Medicina, Direito e Seguros. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-medico-e-bioetica/416105/o-pacto-da-trindade-medicina-direito-e-seguros. Acesso em 07 out. 2024. 2. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison Rêgo. Seguros e Responsabilidade Civil. Indaiatuba-SP: Editora Foco, 2024.  3. Erros Médicos causam 2,6 milhões de morte por ano. A OMS inclui erros de diagnósticos entre as principais causas de dano ao paciente. Disponível em: https://www.practicumscript.education/pt_pt/atualidade-practicum-script/a-oms-inclui-erros-de-diagnostico-entre-as-principais-causas-de-dano-ao-paciente. Acesso em 07 out 2024. 4. ASSIS, Renato. Infográfico 2024. Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. 2024.    5. HILL, Napoleon. Pense e enriqueça. Tradução do original norte-americano. Think and Grow Rich. p. 50. Disponível em: https://aguasonline.wordpress.com/wp-content/uploads/2013/06/pense-e-enriquec3a7a-napoleon-hill.pdf. Acesso em: 05 dez 2024. 6. Circular SUSEP nº. 637, de 27 de julho de 2021. Dispõe sobre os seguros do grupo responsabilidade. Disponível em https://www2.susep.gov.br/safe/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/25074.  Acesso em: 08 de outubro de 2024. 7. Código de Defesa do Consumidor. Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. 8. "[..] a ação proposta para cobrança de indenização por erro médico está submetida ao prazo prescricional de cinco anos, conforme estabelecido no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, os seguintes julgados: AgRg no AREsp n. 626.816/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 07/06/2016, DJe 10/06/2016; AgRg no AREsp n. 792.009/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 1º/03/2016, DJe 7/3/2016." (AgInt no AREsp n. 1.381.799/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 6/6/2019, DJe de 14/6/2019.)  9. DADALTO, Luciana e MASCARENHAS, Igor de Lucena. Seguros e Responsabilidade Civil. O Papel do Seguro de Responsabilidade Civil na Resolução Adequada de Conflitos Envolvendo Profissionais da Medicina e Pacientes: O Papel das Seguradoras. Indaiatuba-SP: Editora Foco, 2024.  10. Código Civil. Art. 787. No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro. § 2º É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador. 11. Código de Defesa do Consumidor. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. 12. NAJDEK, Thabata. Dossiê Seguradoras RC Médico. Editora Venda Segura, 2024.  13. GOLDBERG, Ilan. Direito dos seguros: comentários ao art. 787 do Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2023. 14. MIRAGEM, Bruno. Direito dos Seguros. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2024.
Um trecho da clássica obra de C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, descreve, de certa forma, um recente caso julgado pelo TJ/RJ1. O episódio da referida obra versa sobre uma conversa entre o Sr. Castor e as crianças escolhidas, demonstrando o medo que possuíam da Feiticeira e a pressa que estavam para encontrar o leão Aslam: "- Ela vai de trenó, e nós vamos a pé: nunca chegaremos antes. - Tudo está perdido, então? - perguntou Susana. - Deixe de aflições, minha filha, e vá buscar naquela gaveta meia dúzia de lenços. Claro que não está tudo perdido. Não chegaremos antes dela, mas poderemos escolher um caminho diferente daquele que ela pensa. Assim talvez a gente escape.2" O caso mencionado tratou de uma ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais proposta por uma consumidora idosa que, por um lapso de memória, deixou de pagar cinco mensalidades do plano de saúde, ensejando o cancelamento deste pela operadora.  Em suma, a reclamação da consumidora baseou-se em dois motivos: a ausência de cobrança da operadora do plano de saúde acerca da inadimplência e a falta de notificação prévia para o cancelamento do respectivo contrato. Sobre a inadimplência, cabe ressaltar que a autora informou que possuía o plano de saúde há mais de 20 anos, bem como apresentou um laudo médico demonstrando que se encontrava acometida por um declínio cognitivo progressivo de causa neurodegenerativa, o qual causou o esquecimento do pagamento das mensalidades do plano de saúde. No mais, a fim de evidenciar a sua boa-fé contratual, a consumidora depositou judicialmente as parcelas pendentes de pagamento. Já a operadora do plano de saúde alegou que o cancelamento do contrato ocorreu em razão do inadimplemento da consumidora e após a regular notificação prévia. Antes de tratar do julgamento do caso, para fins de estudo neste artigo, cabe tecer algumas considerações a respeito da relação contratual existente entre as partes, do esquecimento e da inadimplência da consumidora.   De acordo com a lei 9.656/98 (lei dos planos de saúde), o contrato individual de plano de saúde pode ser resolvido no caso de inadimplência superior a sessenta dias, conforme ocorrido no caso em tela3. Contudo, nesse aspecto, em primeiro lugar, cabe recordar que o contrato de plano de saúde possui um caráter existencial, haja vista que o seu objeto é tutela da pessoa humana4, de modo que este tipo de contrato deve ser norteado pelo direito social à saúde (art. 6º, CF) e, notadamente, pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF)5. Nesse mesmo sentido, importa registrar que, apesar da autonomia privada se tratar de um princípio basilar nas relações contratuais, há limites a serem observados na esfera contratual, fundamentalmente calcados no princípio da boa-fé objetiva (art. 4º, III do CDC6; art. 422 do CC7), corolário da solidariedade social insculpida na CF/888. Deste modo, não obstante a legislação apontada pela operadora do plano de saúde permitir, numa primeira análise, o cancelamento do plano de saúde da consumidora em razão do inadimplemento, o formalismo na aplicação da lei deverá abrir espaço à análise do perfil funcional da relação jurídica, ou seja, a interpretação da norma deverá observar a finalidade contratual perseguida em conformidade com os valores constitucionais envolvidos9.  Nessa linha de raciocínio, observa-se no caso em apreço que o esquecimento do pagamento das mensalidades do plano de saúde em decorrência de uma doença se trata, sem sombra de dúvidas, de uma situação jurídica merecedora de tutela10, tendo em vista que considerar a prevalência da autonomia privada, fincada na liberdade contratual, violaria frontalmente a integridade psicofísica da autora, a qual teria grande dificuldade de obter o tratamento médico necessário, colocando em risco sua saúde. Portanto, considerando as peculiaridades do caso concreto (vulnerabilidade da autora idosa, tempo de uso do plano de saúde, adimplemento do contrato durante anos, enfermidade da autora, depósito judicial das parcelas inadimplidas), a violação da boa-fé objetiva resta delineada na hipótese11. Nessa esteira, o parâmetro hermenêutico para aplicação do princípio da boa-fé objetiva se caracteriza em razão da inobservância do comportamento leal, voltado à tutela da confiança dos envolvidos, por parte da operadora do plano de saúde, de maneira a promover um ambiente contratual sadio e colaborativo. Nesse contexto, cabe lembrar que a doutrina versa que a boa-fé objetiva possui uma tríplice função: (i) jurígena (fonte autônoma de deveres jurídicos); (ii) limitativa (limite ao exercício de direitos subjetivos); e (iii) hermenêutica (critério de interpretação dos negócios jurídicos)12. No presente caso, analisando-se o aspecto funcional do contrato de plano de saúde em questão, nota-se que a violação do princípio da boa-fé objetiva se deu no âmbito de todas as suas funções. A função jurígena da boa-fé objetiva alude ao reconhecimento de direitos e deveres implícitos a ambas as partes, o que, na hipótese, se relaciona ao dever de confiança e lealdade no pacto contratual. Ao tratar da função hermenêutica, conforme motivos anteriormente expostos, poder-se-ia defender que a expectativa da autora ao manter um contrato por longo período certamente não era sofrer uma interrupção abrupta do serviço ajustado, pelo que o critério interpretativo serviria, nesta hipótese, para corrigir o desequilíbrio contratual existente entre as partes13. Igualmente, o abuso do direito restou caracterizado14, tendo em vista o comportamento desleal da ré, a qual se valeu da sua posição contratual para promover uma resolução sem observar o caso concreto e os requisitos necessários para tanto.  Apesar de não haver menção sobre este ponto nos autos, na hipótese também seria possível ventilar a aplicação do Tema 1.082 do STJ15, o qual dispõe sobre a impossibilidade de cancelamento do plano de saúde ao usuário que estiver em tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou incolumidade física. Porém, o aludido tema também versa que há necessidade de que o consumidor esteja adimplente com o contrato de plano de saúde, o que dificultaria a aplicação da tese no caso em questão. Sob outra perspectiva, considerando a relação consumerista existente16, observa-se que o cancelamento unilateral do plano de saúde se tratou de um ato próprio da operadora, afastando eventual discussão sobre a responsabilidade desta quando derivada de atos praticados por terceiros (hospitais, clínicas e médicos)17. Na hipótese, o ato praticado pela operadora atraiu a incidência da responsabilidade civil objetiva decorrente do defeito na prestação de serviço (art. 14 do CDC18), caraterizado pela frustração da legítima expectativa da consumidora causada pelo cancelamento unilateral do plano de saúde e pela violação do dever de informação (art. 6º, III do CDC) em virtude da ausência de notificação prévia 19.  Em relação à falta de notificação prévia, a parte final do art. 13, II da lei dos planos de saúde deixa clara a obrigatoriedade de a operadora notificar o usuário do plano acerca da inadimplência. No caso, a autora alegou a ausência de notificação prévia, enquanto a ré informou que realizou a notificação apresentando uma correspondência nos autos. Neste ponto, importa mencionar que a consumidora relatou que a notificação citada pela operadora foi entregue a terceiro, sendo que esta situação não foi rebatida pela operadora,  fazendo com que o não recebimento da notificação se tornasse um fato incontroverso20. Ainda sobre o tema, vale ressaltar que, na época do julgamento em comento, as regras sobre a notificação por inadimplência e a ciência do consumidor eram regidas pela RN ANS 593/23. Retornando ao julgamento do caso, cumpre expor que a sentença foi prolatada pelo juízo singular julgando procedente o pleito autoral para determinar à ré a manutenção do plano de saúde e uma indenização por danos morais no valor de R$ 6.000,00. Em síntese, o magistrado entendeu que a notificação prévia não foi devidamente cumprida.  A operadora do plano de saúde interpôs recurso de apelação em face da sentença, reiterando a argumentação exposta na defesa, especialmente baseada na legalidade do cancelamento em decorrência do inadimplemento pelo período de cinco meses e na regularidade da notificação.  Ao julgar o recurso, a 9° Câmara de Direito Privado do Estado do Rio de Janeiro entendeu que a inadimplência momentânea da consumidora em razão da enfermidade que a acometia alinhada ao tempo de contratação do plano de saúde e a busca pela solução administrativa do imbróglio são fatores que justificam a manutenção do plano de saúde, sendo certo que a conduta da operadora "não se amolda aos parâmetros da boa-fé objetiva, que se afigura como uma crença que permeia todo o ordenamento jurídico como forma regulamentadora das relações humanas". Noutro ponto do acórdão, o julgador reforçou o dever de lealdade e confiança intrínseco à relação contratual, destacando que "devem as partes respeitar reciprocamente os interesses legítimos e as expectativas razoáveis de cada uma delas na relação contratual que as vincula, agindo de forma leal, sem abusar ou obstruir a execução da avença, abstendo-se de causarem ou auferirem vantagem indevida ou excessiva." Ademais, foi ressaltado que a ré não se desincumbiu do ônus probatório relativo  à ausência de notificação da autora, descumprindo a determinação emanada na lei 9656/98. Desta forma, foi negado provimento ao recurso interposto pela ré, sendo mantida a sentença em sua integralidade.  Percebe-se, assim, que, apesar do inadimplemento contratual, considerando as particularidades do caso concreto, mediante uma interpretação sistemática e teleológica do acordo firmado entre as partes, em observância ao princípio da boa-fé objetiva, o tribunal carioca entendeu por resguardar os interesses e legítimas expectativas da consumidora, parte vulnerável da relação jurídica.  Na história narrada, a operadora em vez de se prestigiar a lealdade no trato, valorizando a transparência, a luminosidade na relação, preferiu o caminho da escuridão e do abuso.  Nessa trilha, a obra anunciada no início deste artigo manifesta alguns anseios próprios do ser humano, como a passagem que versa sobre Lúcia, uma das crianças escolhidas, que teve a missão de encontrar uma fórmula mágica para curar a invisibilidade do povo da ilha. Ao se dirigir ao andar de cima, local onde era guardado o livro mágico, Lúcia iniciou a sua leitura "e assim continuou durante mais de trinta páginas. Se pudesse decorá-las, teria aprendido a achar um tesouro enterrado, a lembrar coisas esquecidas, a esquecer coisas aborrecidas, a adivinhar se os outros dizem a verdade, a evitar e chamar o vento, o nevoeiro, a neve, a geada, a mergulhar as pessoas no sono (como aconteceu ao pobre Príncipe das Orelhas de Burro).21" __________ 1 Apelação Cível n. 0858238-34.2024.8.19.0001, Des. Rel. Paulo Sérgio Prestes dos Santos, 9ª Câmara de Direito Privado, julgado em 06/11/2024, TJ-RJ. 2 LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. Volume único. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Trad. por Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel. Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2012, p. 49. 3 Lei n. 9.656/98. Art. 13.  Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei têm renovação automática a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação. Parágrafo único. Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas: II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o qüinquagésimo dia de inadimplência;      4 "Quando o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar: torna-se uma necessidade lógica reconhecer, em razão da natureza especial do interesse protegido, que é exatamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular e o ponto de referência objetivo da relação." (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, p. 764) 5 "Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução de desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direito e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento." (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil - Tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro, p. 54) 6 CDC. Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; 7 Código Civil. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 8  "Se a solidariedade fática decorre da necessidade imprescindível da coexistência humana, a solidariedade como valor deriva a consciência racional dos interesses em comum, interesses esse que implicam, para cada membro, a obrigação moral de "não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito". Esta regra não tem conteúdo material, enunciando apenas uma forma, a forma da reciprocidade, indicativa de que "cada um, seja o que for que possa querer, deve fazê-lo pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro. É o conceito dialético de "reconhecimento" do outro." (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009 p. 111/112) 9 "Nesses  termos,  a  obrigação  deixa de ser  concebida  com  um  fim  em  si  mesmo  para  ser valorada, na sua essência, como um instrumento de cooperação social para a satisfação de certo  interesse do credor.5Esta  sua  função  jurídica  orienta todo  o desenvolvimento a  relação  obrigacional  até  o  momento  de  sua  extinção,  servindo,  em  particular,  de parâmetro  para  a  valoração  do  comportamento  das  partes,  que  são  chamadas,  de acordo com a cláusula geral da boa-fé objetiva, a colaborarem mutuamente para a plena realização dos seus legítimos interesses." (KONDER,  Carlos  Nelson;  RENTERÍA,  Pablo. A  funcionalização  das  relações  obrigacionais: interesse  do  credor  e  patrimonialidade  da  prestação. Civilistica.com. Rio  de  Janeiro,  a.1,  n.  2, jul.-dez./2012. Disponível aqui. Acesso realizado em 07/11/2024) 10 A tutela da autonomia privada ocorrerá quando o ato praticado atender a uma função juridicamente relevante. (PERLINGIERI, Pietro. Op. cit.) 11 "A incidência da boa-fé implica a multiplicação de deveres das partes. Assim, são observados não apenas os deveres principais da relação obrigacional (o dever de pagar o preço ou entregar a coisa, por exemplo), mas também deveres anexos ou laterais, que não dizem respeito diretamente com a obrigação principal, mas sim com a satisfação de interesses globais das partes, como os deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação, informação, ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte." (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor, 6ª Ed., RT, 2016, p. 146) 12 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 45. 13 Sobre o assunto, cabe destacar o art. 47 do CDC, o qual dispõe que: "s cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor." 14 Código Civil. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 15 Tema 1.082, STJ - A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida. 16 Súmula n. 608, STJ. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. 17"A responsabilidade objetiva das operadoras de planos de saúde não se aplica aos casos de erro médico. Melhor dizendo, prova-se a culpa do médico (ou inverte-se o ônus da prova) e sua responsabilidade contamina a operadora, qualquer que seja a relação jurídica entre ambos - empregado, credenciado ou referenciado." (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de et al. Responsabilidade Civil na Área da Saúde. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.) 18 CDC. Art.14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 19 "Assim, qualquer defeito na prestação do serviço impõe a responsabilização objetiva e solidária da operadora em virtude de um risco-proveito por ela assumido e a responsabilização subjetiva do profissional liberal que motivou os danos físicos ou morais causados ao paciente." (SCHAEFER, Fernanda. Responsabilidade Civil dos Planos e Seguros de Saúde. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p.17.)20 "Agravo interno no agravo em recurso especial. Plano de saúde. Cancelamento da apólice. Notificação prévia. Necessidade. Notificação entregue a terceiro. Fundamento não impugnado. Súmula 283/STF. Artigo 1021, § 4º, do Código de Processo Civil. Caráter protelatório não evidenciado. Inviabilidade. Precedentes. Não provido. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de não admitir a rescisão unilateral, mesmo em caso de inadimplência do consumidor, sem que antes a operadora do plano de saúde proceda à notificação prévia do usuário. Precedentes. 2. No caso, o pressuposto adotado no acórdão de recorrido, de que a notificação prévia ao cancelamento da apólice foi encaminhada a terceiro, sem relação com o segurado, não foi impugnado pelo recorrente. Incidência da Súmula 283/STF. 3. O mero não conhecimento ou improcedência de recurso interno não enseja a automática condenação na multa do artigo 1.021, § 4º, do CPC/2015, devendo ser comprovado o manifesto propósito protelatório, o que não ocorreu na espécie. 4. Agravo interno a que se nega provimento." (STJ - AgInt no AgInt no AREsp: 2404980 SP 2023/0238196-4, Relator: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 22/04/2024, T4 - Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 13/05/2024). 21 LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. Volume único. A viagem do Peregrino da Alvorada, Trad. por Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel. Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2012. p. 459. 
IntroduçãoAtualmente, o Brasil é o segundo país do mundo no ranking das cirurgias plásticas, o que inclui intervenções embelezadoras em geral (ISAPS, 2021, p. 5). Vive-se em uma sociedade cada vez mais técnica, globalizada, do consumo e digital, com publicidades médicas sendo realizadas nas redes sociais, em que variados profissionais postam fotos de "antes e depois" e mostram resultados de intervenções já realizadas, o que atrai potenciais pacientes, que buscam médicos para realizarem procedimentos eletivos e de cunho estético.1 Tais procedimentos são caracterizados, por parte da doutrina2 e da jurisprudência (exemplo: entendimento do STJ exarado no AREsp 328.110), como obrigações de resultado, por envolverem grandes expectativas dos pacientes. Data máxima vênia, não concordamos com essa visão, sobretudo porque a Medicina é uma ciência inexata e porque há diversos fatores, para além da atuação do médico, por exemplo, o comportamento do paciente, que repercutem no resultado embelezador da intervenção. Dito isso, este panorama de busca pela beleza e pelo bem-estar em termos de autoestima vem atraindo muitos homens, pois há maior diversidade de possibilidade de intervenções, tais como procedimentos de harmonização genital peniana. Trata-se de procedimento invasivo cada vez mais comum e que vem sendo estudado por entidades do âmbito médico, pois existem diversas técnicas para sua execução. O uso de ácido hialurônico é uma das mais indicadas, pois demonstra segurança em relação à aplicação da substância e sua interação com o organismo humano (CRM-SC, 2021, p. 2). No entanto, mesmo com todo este contexto de procura, existem médicos que não se sentem confortáveis em realizar tais intervenções, sobretudo devido à falta de consenso científico sobre este procedimento na genitália masculina (Dae Yul Yang et al, 2020, p. 5). Muitos médicos, em razão desta incerteza quanto aos efeitos a longo prazo destes procedimentos, ponderam se há real indicação de serem realizados3 ou, se é algo que o paciente pretende realizar mesmo possuindo o órgão genital dentro do considerado padrão pela literatura científica. Destarte, quando procurado pelo paciente, compete ao médico analisar, a partir de sua autonomia profissional, se pretende e se se sente confortável em realizar tais procedimentos, sobretudo com base na ponderação de riscos, benefícios e, ainda, de acordo com as normativas editadas pelo CFM - Conselho Federal de Medicina. Depois disso, o médico precisa esclarecer ao paciente sobre os riscos referentes ao procedimento, informando-o de forma ampla sobre a intervenção, bem como apresentar opções de conduta conservadora e, uma vez que o paciente tenha compreendido e consentido na realização do ato, o médico deve agir nos termos da lex artis e da boa prática médica, optando por métodos mais seguros dentre os existentes. 1. Relação médico-paciente e deveres de informação e esclarecimento para o consentimento A relação médico-paciente é sui generis, tem como base a confiança e assimétrica por natureza, sobretudo porque o médico é o detentor do conhecimento técnico frente ao paciente, que normalmente é leigo em assuntos médicos. Por este motivo, cabe ao médico, antes de qualquer ato , conversar com o paciente, para que este compreenda o que será realizado em seu organismo. O médico precisa informar e esclarecer, de forma rigorosa, sobre todos os riscos do procedimento, sobretudo aqueles de cunho eletivo, no sentido de que "mesmo os acidentes mais raros e as sequelas mais infrequentes devem ser relatados" (Kfouri Neto, 2021, p. 236). Ressalte-se que, quando a intervenção tem o caráter exclusivamente estético, o sentido terapêutico está diluído em um conjunto de motivos de ordem pessoal (França, 2021, p. 231), vez que o sentido primário é embelezar. Tais procedimentos dizem respeito à Medicina do aprimoramento (enhancement), vez que o paciente visa a uma melhora subjetiva do próprio corpo a partir de diferentes interesses, baseados em seus desejos e valores individuais (Siqueira, 2019, p. 281). Além disso, é certo que a saúde envolve um estado completo de bem-estar físico, mental e espiritual, não somente ausência de doenças e enfermidades (OMS, 1947), daí porque, sobretudo nestes casos de procedimentos embelezadores, cabe ao paciente decidir o que pretende fazer em sua esfera corporal, o que reflete o paradigma da autonomia, ligado à dignidade humana e aos direitos fundamentais de vida digna e liberdade. Neste sentido, adota-se a premissa de que o consentimento do paciente é a pedra de toque que legitima a intervenção médico-cirúrgica (Siqueira, 2019, p. 81), sobretudo nos procedimentos eletivos de harmonização genital masculina, que repercutem na saúde mental, autoestima e confiança dos pacientes que, por motivos diversos, podem não estar satisfeitos com a aparência de seu pênis. Ademais, é importante ressaltar que o consentimento do paciente deve ser visto como um processo de comunicação, pois não basta ao médico somente informar, o profissional deve se certificar de que o paciente compreendeu o que foi dito (Kfouri Neto, 2021, p. 267), bem como eventualmente sanar dúvidas que venham a surgir. Isto é, o consentimento do paciente para o ato médico será considerado válido se a pessoa tiver sido suficientemente esclarecida para que possa tomar uma decisão autodeterminada (Barroso, 2010, p. 8), no sentido de que o conteúdo da informação deve ser o mais completo possível, de forma que o paciente consiga sopesar os prós e contras da intervenção (Hilgendorf, 2019, p. 48). Após o consentimento válido do paciente, que está relacionado ao dever de esclarecimento, cabe ao médico agir de acordo com as normas referentes à lex artis, que abrangem regras universalmente reconhecidas da ciência médica e, ainda, os demais deveres de cuidado gerais da boa prática médica (Brito, 2002, p. 376). Ressalte-se que a lex artis são normas específicas de comportamento, fixadas e aceitas por certos círculos profissionais, destinadas a conformar as atividades respectivas dentro de padrões de qualidade, além de evitarem a concretização de perigos para bens jurídicos que podem resultar de tais atividades (Dias, 2004, p. 646). Isto é, o médico, quando da intervenção, precisa seguir standards de comportamento seguro, sobretudo para preservar a incolumidade física do paciente e garantir sua segurança. Ademais, segundo Souza (2009, p. 19), o profissional, no momento da realização de determinado procedimento, deve avaliar o princípio do risco-benefício, que diz respeito a um critério ético-jurídico que obriga tanto o médico quanto o paciente, possuindo relação com os deveres de cuidado aos quais o profissional está vinculado, incluindo as consequências daquela intervenção frente ao paciente individualmente considerado, ainda mais se o procedimento for eletivo, que envolve um processo de reflexão por parte do paciente. 2. Procedimentos de harmonização genital masculina: Autonomia profissional e autonomia do paciente Com efeito, em relação aos procedimentos de harmonização genital masculina, existem técnicas possíveis de serem utilizadas pelo médico, mas, ao mesmo tempo, alguns profissionais ainda se sentem inseguros, justamente pela falta de consenso das Sociedades de especialidades. Isto é, há médicos que defendem a realização da intervenção de aumento peniano e outros que rechaçam a realização destes procedimentos, independentemente das técnicas utilizadas. No entanto, alguns fatores precisam ser avaliados, tais como a indicação do procedimento e as autonomias do médico e do paciente. A Sociedade Brasileira de Urologia (SBU, 2019)4, por exemplo, aduz que a maioria dos homens que buscam atendimento visando aumento peniano possui pênis com tamanho normal, sem anormalidades anatômicas. Por isso, para a entidade, a orientação ética e honesta é não indicar a cirurgia nestes pacientes, e sim conduta conservadora com tratamento psicológico/emocional. Neste caso, segundo a SBU, haveria um quadro de dismorfofobia, no qual o paciente tem uma percepção distorcida das dimensões da sua genitália. Logo, entendem que a proposta de aumento peniano como um procedimento cosmético do pênis normal é ainda considerada uma técnica experimental. Reforçam, também, que várias técnicas de alongamento e/ou ganho de espessura peniana têm sido descritas, mas nenhuma se mostrou efetiva e segura, vez que ainda faltam maiores evidências nestes procedimentos. O índice de complicações e insatisfações com tais procedimentos é grande e ainda não apresenta resultados satisfatórios. Em parecer, aduzem que o CFM define tais procedimentos como experimentais, indicando a resolução 1.482/975, já revogada e, portanto, não se aplica. É fato que, até o momento, a literatura acerca deste tema, nacional e estrangeira, ainda não apresenta um consenso, pois há os que entendem que, a depender da técnica, o método é sim seguro, tais como os procedimentos com uso de ácido hialurônico (AH), já utilizado usualmente em cirurgias estéticas ou modeladoras faciais, conforme resultado dos estudos de Zhang et al (2022)6 e Oates e Sharp (2017).7 Por outro lado, há estudos que apontam a falta de literatura robusta que ateste a segurança destes procedimentos a longo prazo (Zilg e Rasten-Almqvist, 2017)8, questionando indicação do procedimento para estes pacientes. Na conclusão dos estudos mencionados, lançam a reflexão sobre a real necessidade do procedimento ou se é algo psicológico do paciente, que pode eventualmente estar se comparando com outras pessoas, sofrendo pressão estética da mídia e por isso, pode ter buscado o procedimento. Assim, há uma gama de profissionais que entende que o tratamento da situação deve se dar no âmbito de questões psicoterapêuticas e não com a intervenção de harmonização peniana em si (Silvinato et. al, 2020). Como não há consenso entre os médicos sobre a segurança da técnica, não obstante não sejam procedimentos proibidos, o que se tem é que, na prática, compete a cada profissional9, ponderando riscos e benefícios e sentindo-se confortável, decidir se pretende realizar tais intervenções, mesmo quando procurados por pacientes, o que tem relação com o direito básico referente à autonomia do médico.10 Assim, quando procurado por algum paciente, cabe ao médico decidir, a partir de sua autonomia profissional, se irá realizar o ato médico e, a partir daí, se optar pela realização da intervenção, deve informar e esclarecer o paciente sobre os riscos e efeitos daquele procedimento, ponderando o posicionamento de entidades médicas mesmo sem questionamento por parte dos pacientes da comprovação baseada em literatura médica.11 Ademais, independentemente da indicação do procedimento a partir da perspectiva do médico (se o paciente possui micro pênis ou não, por exemplo), cabe ao paciente decidir se pretende realizar a intervenção, de modo que, aqui, pode ser feita uma analogia com procedimentos de prótese mamária. Ora, se determinada mulher possui seios de um tamanho "normal", mas, mesmo assim, queira realizar o procedimento estético, que tem relação com sua saúde mental e autoestima, bem como com seu conceito subjetivo de beleza, cabe a ela ter uma conversa com o médico assistente de confiança e optar pela realização ou não da intervenção. Deste modo, de forma semelhante aos procedimentos de harmonização genital masculina, cada paciente deve ser avaliado de modo criterioso pelo médico e por equipe multidisciplinar antes da realização do procedimento.12 Logo, o paciente precisa estar ciente do que pode ocorrer frente ao procedimento, eventuais resultados, efeitos colaterais e problemas daí decorrentes. A título de exemplo, se o médico faz o procedimento de aumento peniano em determinado paciente com uso de ácido hialurônico, deve informar à pessoa que pode ser que, depois de um tempo, sejam necessárias reaplicações do fármaco no pênis e que não é um resultado harmonizador eterno. Da mesma forma, precisa explicar que há risco, mesmo que baixo, de infecção, edema, dor, deformidade genital, nodulações e até mesmo perda tecidual. No mesmo sentido, se o médico opta por utilizar polimetimetacrilato (PMMA) em procedimento de harmonização peniana, precisa explicar todos os riscos que englobam a substância ao paciente, ainda mais porque, segundo estudo realizado pelo Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC, 2021), elencado em nota conjunta das câmaras técnicas de urologia e cirurgia plástica sobre tais intervenções, tem-se que a resolução de deformidades decorrentes do uso de tal substância é bastante complicada, por tratar-se de substância inabsorvível difusamente distribuída no corpo peniano cuja retirada necessariamente implica na retirada do tecido saudável adjacente. Na mesma linha, caso determinado resultado adverso seja inerente ao procedimento realizado, é crucial que o médico, além de explicar e conversar com o paciente, faça constar tais hipóteses em termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), sobretudo para evitar eventual alegação futura de negligência informacional, o que, por si só, pode ser causa de responsabilização do profissional, que pode ser condenado a pagar indenização ao paciente, como já decidiu o STJ em situações envolvendo questionamento de conduta médica em geral (Exemplo: REsp 1.848.862).13 3. Inexistência de responsabilidade, dever de informar e riscos inerentes Uma vez que o paciente esteja informado e esclarecido sobre o ato médico, sobretudo em relação aos riscos inerentes relacionados ao procedimento, eventual efeito adverso não pode ser imputado ao médico, nem a título de negligência informacional, tampouco com fundamento em suposto erro na intervenção. Isso porque não se admite responsabilidade automática e presumida do médico, ainda mais se ele cumpriu os deveres de esclarecimento e de informação, cruciais para a validade do consentimento dado pelo paciente. Ademais, para que seja fixada a responsabilidade do médico, é preciso comprovar que o profissional agiu de forma culposa, a saber, imprudente, negligente ou imperita, e que esta conduta tenha relação causal e normativa com os danos que o paciente alega ter sofrido. Como dito, também se admite a responsabilização com base em negligência informacional, mas, se o médico informou ao paciente sobre os riscos do procedimento e explicou sobre eventuais efeitos adversos daí decorrentes, o que, normalmente, resta comprovado via documentos, esta tese acusatória perde força. No entanto, é importante ressaltar que, caso o médico deixe de abordar informação relevante ao paciente antes de este decidir pela realização do procedimento, tal omissão pode dar ensejo a demandas ético-disciplinares, cíveis e eventualmente criminais, sobretudo com fundamento na negligência informacional e na violação aos deveres de transparência e esclarecimento. Portanto, na prática, tem-se que a comunicação entre as partes, considerando-se a vulnerabilidade técnica do paciente em relação ao médico, evita problemas jurídicos e reflete segurança, o que reflete tanto a autonomia profissional quanto a do paciente. Considerações finais Por esta razão, entende-se que, a partir de sua autonomia profissional e da ponderação de riscos e benefícios, é possível que o médico dê seguimento ao procedimento de harmonização genital masculina estética, que guarda relação com a promoção da saúde mental do paciente e ao seu bem-estar, sobretudo porque tais procedimentos envolvem autoestima, autoconfiança e o conceito de beleza do paciente individualmente considerado. Ademais, existe a necessidade de o médico avaliar caso a caso de forma específica, os anseios individuais dos pacientes e, ao fim e ao cabo, cumprir, de modo completo, os deveres de informação e esclarecimento. Ainda assim, o médico deve proceder à realização do ato de forma segura, optando pela técnica que trouxer menos riscos ao paciente (Exemplo: Utilização de ácido hialurônico), o que refletirá diligência e cuidado, bem como poderá afastar alegações futuras de negligência informacional ou má execução do ato médico caso algum resultado adverso se faça presente. ________ 1 Devem ser respeitadas as normas de publicidade médica elencadas no Código de Ética Médica, Resolução 2.336/2023 do Conselho Federal de Medicina e Manual da CODAME, bem como orientações do CRM/CFM sobre a temática, sob pena de o médico ser investigado em razão da prática de infração ética. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - V. II / Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. - 29. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 64. Nas obrigações de resultado, a execução considera-se atingida quando o devedor cumpre o objetivo final, pois a essência da prestação é o bem jurídico almejado ao passo que, nas de meio, o devedor se obriga a empreender esforços para atingir certo objetivo, não se comprometendo, porém, a obtê-lo, sendo que a inexecução se caracteriza pelo desvio de certa conduta ou omissão de certas precauções a que alguém se comprometeu, não sendo relevante o resultado final. 3 A título de exemplo, analisam se o paciente possui micro pênis, que é aquele que apresenta um comprimento 2,5 desvios-padrão abaixo da média para a idade. SCUCH, Thiago et. al. Pênis de Comprimento Reduzido em Idade Pré-Puberal: Avaliação Inicial e Seguimento. Disponível aqui. Acesso em 16. Set. 24. 4 Sobre o posicionamento da SBU, ver: PARECER sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024 5 Entendemos, com todo respeito, que é o caso de avaliação particularizada de cada paciente e de cada caso, ainda mais para se considerar o que é um pênis de tamanho "normal" e o que não é. Ademais, o ato normativo editado pelo CFM que aduzia que tal procedimento era experimental foi revogado, disponível aqui. No mesmo sentido, uma intervenção que era experimental em 1997 pode não ser mais considerada deste modo quase três décadas depois, ainda mais porque, como dito, não há nenhum tipo de vedação em relação aos procedimentos de aumento peniano, mas sim algo que, na prática, dependerá de cada médico. 6 ZHANG, Chun-Long et al. Penile augmentation with injectable hyaluronic acid gel: an alternative choice for small penis syndrome. Asian Journal of Andrology (2022) 24, 1-6; doi: 10.4103/aja20223; published online: 08 April 2022. 7 OATES, Jayson; SHARP, Gemma. Nonsurgical Medical Penile Girth Augmentation: Experience-Based Recommendations. Aesthetic Surgery Journal, 2017, Vol 37(9) 1032-1038, DOI: 10.1093/asj/sjx068. 8 ZILG, Brita; Rasten-Almqvist, Petra. Fatal Fat Embolism After Penis Enlargement by Autologous Fat Transfer: A Case Report and Review of the Literature. J Forensic Sci, 2017, doi: 10.1111/1556-4029.13403. 9 Para fins de não alongarmos o texto, o enfoque será dado à conduta do médico que realiza tais procedimentos, muito embora, hoje, outros profissionais, por exemplo, biomédicos, divulguem e realizem tais procedimentos de harmonização peniana, o que resvala na complexa discussão sobre a invasão do ato médico e eventual caracterização do crime de exercício ilegal da Medicina, que não são os objetos do presente artigo. 10 Ver Cap. I- VII, VIII e XVI, Cap. II- VIII, Cap. III - art. 20, todos do Código de Ética Médica (Resolução 2.217/2018 do CFM). 11 Ressalte-se que aguardar respaldo das especialidades médicas para assegurar este procedimento, obviamente, não anula os riscos de complicações, mas gera segurança jurídica aos médicos que se dispõem a realizar tais intervenções. 12 Pode ser que, por exemplo, o paciente seja diagnosticado com transtorno dismórfico corporal e acredite que tem uma ou mais imperfeições ou defeitos na aparência física, porém, esse defeito na realidade não existe ou é leve. Disponível aqui. Acesso em 11 set. 2024. 13 O STJ condenou o médico a indenizar o paciente devido ao descumprimento do dever de informação. Inteiro teor da decisão disponível aqui. Acesso em 13 set. 2024. ________ CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SANTA CATARINA (CRM-SC). Nota conjunta das câmaras técnicas de urologia e cirurgia plástica sobre procedimentos médicos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso: 30 jul. 2024. HILGENDORF, Eric. Introdução ao direito penal da medicina / Eric Hilgendorf: tradução Orlandino Gleizer. - 1. Ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2019. INTERNATIONAL Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS). Disponível aqui. Acesso em 17 jul. 2024. NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade civil do médico / Miguel Kfouri Neto. - 11. Ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo Thomson Reuters Brasil, 2021. OATES, Jayson; SHARP, Gemma. Nonsurgical Medical Penile Girth Augmentation: Experience-Based Recommendations. Aesthetic Surgery Journal, 2017, Vol 37(9) 1032-1038, DOI: 10.1093/asj/sjx068. PORTAL da Urologia, 2019. Parecer sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 30 jul. 2024. SCUCH, Thiago et. al. Pênis de Comprimento Reduzido em Idade Pré-Puberal: Avaliação Inicial e Seguimento. Disponível aqui. Acesso em 16. Set. 24SILVINATO, Antônio et. al. Cirurgia estética genital masculina. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024. SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia. SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de Souza. O médico e o dever legal de cuidar. Revista Bioética, 2006, pp. 229-238, p. 231. PARECER sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024. YANG, Dae Yun et al. The journal of sexual Medicine, 2020. A Comparison Between Hyaluronic Acid and Polylactic Acid FillerInjections for Temporary Penile Augmentation in Patients with SmallPenis Syndrome: A Multicenter, Patient/Evaluator-Blind,Comparative, Randomized Trial. Disponível aqui. Acesso em 30 jul. 2024. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - V. II / Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. - 29. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. ZHANG, Chun-Long et al. Penile augmentation with injectable hyaluronic acid gel: an alternative choice for small penis syndrome. Asian Journal of Andrology (2022) 24, 1-6; doi: 10.4103/aja20223; published online: 08 April 2022. ZILG, Brita; Rasten-Almqvist, Petra. Fatal Fat Embolism After Penis Enlargement by Autologous Fat Transfer: A Case Report and Review of the Literature. J Forensic Sci, 2017, doi: 10.1111/1556-4029.13403
A Súmula Vinculante 60, publicada pelo STF em 20/9/24, tem como principal objetivo harmonizar a análise e fornecimento de medicamentos pelo SUS e os processos de judicialização relacionados ao tema. Essa súmula está vinculada ao Tema 1.234, que abordou questões relevantes sobre a judicialização da saúde, estabelecendo um novo patamar para o tratamento dessas demandas, com base nos acordos interfederativos homologados pelo STF no RE 1.366.243/SC. A Súmula Vinculante tem como objetivo promover uma articulação entre os Poderes Judiciário e Executivo, visando organizar o fluxo de demandas judiciais e administrativas. No entanto, é importante destacar que, embora essa articulação busque padronizar os procedimentos, podem surgir obstáculos ao acesso à justiça, com restrições que, em excesso, podem dificultar o acesso de cidadãos a medicamentos e tratamentos não oferecidos diretamente pelo SUS. Por ser uma Súmula Vinculante, seu conteúdo tem observância obrigatória tanto pelo Judiciário quanto pela Administração Pública, estabelecendo uma regra uniforme para o tratamento de casos similares. Em situações de descumprimento ou divergência nas decisões judiciais, a reclamação constitucional se torna um instrumento relevante, conforme previsto no art. 102, I, "l", da CF/88, assegurando que o entendimento do STF seja respeitado e evitando interpretações conflitantes decorrentes da aplicação da súmula. Os três acordos homologados pelo STF no contexto do Tema 1.234, referenciados pela Súmula Vinculante 60, estabelecem seis diretrizes principais para a gestão dos pedidos e para a judicialização da saúde, quais sejam: Competência; Definição de medicamentos não incorporados; Custeio; Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS; Plataforma nacional; Medicamentos incorporados. No que tange à primeira diretriz, que trata da fixação de competência, cria-se uma regra de competência jurisdicional absoluta para demandas relacionadas a medicamentos não padronizados pelo SUS, mas registrados pela ANVISA. Quando o valor anual do tratamento com o fármaco for igual ou superior a 210 salários-mínimos, a competência será da Justiça Federal. O valor do tratamento é calculado com base no CAP - Coeficiente de Adequação de Preços aplicando o PMVG - Preço Máximo de Venda ao Governo, estabelecidos pela CMED - Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Esse critério reflete o real custo para a Administração Pública, que adquire medicamentos por preços inferiores ao valor praticado no setor privado. Para os fármacos cujo valor anual é inferior a 210 salários-mínimos, a competência será definida de acordo com as diretrizes sobre custeio, que serão abordadas na terceira diretiva do acordo, relacionada ao custeio. A segunda diretriz estabelece a definição de medicamentos não incorporados, fundamental para evitar interpretações discrepantes e assegurar a correta aplicação da Súmula Vinculante 60. Conforme o item 2.1 do acordo homologado, medicamentos não incorporados são aqueles que não constam na política pública do SUS; incluem medicamentos previstos nos PCDTs - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para outras finalidades (experimentais), medicamentos sem registro na ANVISA, ou aqueles usados fora da indicação aprovada (off-label) sem respaldo em PCDTs ou que não integrem listas do componente básico. A clareza conceitual desse termo visa proporcionar segurança jurídica e uniformidade no tratamento das demandas relacionadas a medicamentos não incorporados, evitando que sua aplicação gere dúvidas ou interpretações conflitantes no âmbito judicial. A terceira diretriz trata dos critérios de custeio, observando a competência para os casos em que o valor do tratamento anual, valor da causa, não atinge 210 salários-mínimos. As ações envolvendo medicamentos não incorporados e cujo valor da causa seja inferior a esse limite poderão ser ajuizadas na Justiça Estadual, atribuindo regras de ressarcimento e financiamento dos medicamentos não incorporados entre os entes federados União e Estados membros. Quanto ao valor da causa, o acordo interfederativo estabelece que: Valor da causa entre 7 e 210 salários-mínimos: As ações podem ser propostas na Justiça Estadual, onde o ente estado demandado custeará o tratamento. Após o custeio, o ente estado poderá ser ressarcido em 65% dos valores desembolsados (3.3.1). Para medicamentos oncológicos, o percentual de ressarcimento será de 80% (3.4). Valor da causa abaixo de 7 salários-mínimos: As ações devem ser propostas na Justiça Estadual, sendo que o ente estado demandado assumirá integralmente os custos do tratamento. Nos casos em que o valor da causa seja inferior a 7 salários-mínimos, o custeio deverá ser integralmente assumido pelo ente estadual, sem possibilidade de ressarcimento. Novamente, para o valor da causa se aplica o CAP-PMVG - Coeficiente de Adequação de Preços por Preço Máximo de Venda ao Governo. Nos casos em que o medicamento prescrito não possui registro na ANVISA, a competência para julgar e custear o tratamento é da Justiça Federal, sendo responsabilidade da União assumir integralmente os custos. Aplica-se, nesse contexto, a tese fixada no Tema 500 do STF, afetada por repercussão geral. A quarta diretriz trata da Análise Judicial do Ato Administrativo de Indeferimento de Medicamento pelo SUS, estabelecendo uma regra de observância obrigatória para a atuação judicial. O juízo competente deve, sob pena de nulidade do ato jurisdicional, conforme os arts. 489, §1º, V e VI, e 927, III, §1º, ambos do CPC, proceder à análise tanto do ato comissivo ou omissivo da CONITEC em relação à não incorporação do fármaco, quanto da negativa de fornecimento na via administrativa. O juízo deve verificar se a decisão de não incorporar o medicamento foi devidamente justificada, uma vez que a validade do ato administrativo depende da regularidade dos fundamentos que o sustentam. É relevante destacar que, mesmo quando a CONITEC não recomenda a incorporação de um medicamento, a análise judicial continua essencial. A ausência de incorporação ou de análise pela CONITEC não implica automaticamente o indeferimento da demanda judicial. Cabe ao Judiciário avaliar as necessidades específicas do caso concreto, assegurando que o direito à saúde seja respeitado e que a omissão administrativa não cause prejuízos ao paciente. O autor da ação deve demonstrar a imprescindibilidade do medicamento não incorporado, com base na Medicina Baseada em Evidências, comprovando não apenas a segurança e eficácia do fármaco, mas também a inexistência de substitutos terapêuticos já fornecidos pelo SUS. É extremamente importante reiterar que a não recomendação pela CONITEC não significa que o fármaco não poderá ser deferido judicialmente. Pelo contrário, nos termos da STA 175-AgR, o ministro relator Gilmar Mendes decidiu o seguinte: "deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente." A ressalva mencionada pelo ministro relator Gilmar Mendes é clara: Sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente, o tratamento oferecido pelo SUS deve ser priorizado. Isso quer dizer que, mesmo em casos de não recomendação pela CONITEC, o ônus da prova continua a recair sobre o autor, que deve demonstrar, de forma inequívoca, a ineficácia ou inadequação do tratamento disponibilizado pelo SUS. Entretanto, essa exigência probatória rigorosa pode representar um obstáculo significativo para muitos pacientes do SUS, que frequentemente não possuem os recursos financeiros ou acesso a especialistas para elaborar a prova técnica necessária. A continuidade de utilização do e-NATJUS se mostra essencial para garantir uma análise qualificada do caso concreto, funcionando como um órgão de assessoramento técnico ao juízo. Ele auxilia na avaliação de demandas de saúde ao fornecer pareceres embasados em evidências científicas, permitindo que o juízo tome decisões mais informadas e seguras. Dessa forma, o e-NATJUS contribui diretamente para a equidade no acesso à justiça, garantindo que questões técnicas complexas, como tratamentos e medicamentos não incorporados, sejam tratadas com o rigor necessário, sem sobrecarregar os litigantes com exigências probatórias desproporcionais. Na quinta diretriz, observa-se a criação de uma "Plataforma Nacional", que tem como objetivo a implementação de um sistema integrado entre os entes federativos e o Poder Judiciário. Essa iniciativa visa centralizar informações essenciais acerca das demandas administrativas e judiciais de acesso a medicamentos, promovendo uma otimização do fluxo de informações entre os diferentes entes envolvidos. No que tange aos medicamentos incorporados, a sexta diretriz do acordo interfederativo estabelece um fluxo administrativo e judicial a ser seguido por todos os entes federativos. O fluxo administrativo aprovado é baseado na portaria de vonsolidação 2, de 28/9/17, que organiza os medicamentos disponíveis no SUS em diferentes grupos, definindo as responsabilidades de custeio, aquisição e distribuição. Dessa forma, cada grupo de medicamentos, que pode incluir o CEAF - Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o CBAF - Componente Básico da Assistência Farmacêutica ou o CESAF - Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica, delimita claramente a responsabilidade dos entes federativos no fornecimento e financiamento, otimizando o acesso a medicamentos essenciais e assegurando um tratamento uniforme nas demandas judiciais. A observância rigorosa dessas disposições é crucial para garantir a eficiência na prestação dos serviços de saúde, minimizando a possibilidade de litígios desnecessários e divergências entre as esferas de governo. É possível constatar que a implementação da Súmula Vinculante 60 pelo STF representa um marco na organização do fornecimento de medicamentos pelo SUS, estabelecendo diretrizes que visam otimizar o fluxo administrativo e judicial. Entretanto, é imperativo que a nova norma respeite a inafastabilidade da jurisdição, conforme previsto no art. 5º, XXXV da CF/88. Embora a intenção de reduzir a litigância no Judiciário seja compreensível, isso não deve criar obstáculos ao acesso à justiça para aqueles que dependem do SUS. Assim, qualquer acordo entre entes federativos deve ser um mecanismo que assegure o acesso equitativo à saúde, e não uma barreira que impeça a população de buscar seus direitos. Neste contexto, o Judiciário deve desempenhar um papel fundamental como guardião dos direitos individuais, analisando as demandas por medicamentos com uma perspectiva que considere a realidade clínica dos pacientes. A análise cuidadosa e individualizada é crucial, principalmente em casos de tratamentos oncológicos, nos quais a interrupção pode ter consequências graves. Portanto, o sucesso da implementação da Súmula Vinculante 60 dependerá de um monitoramento contínuo que mantenha o foco na dignidade do paciente e na efetividade do direito à saúde no Brasil, promovendo um sistema de saúde mais justo e equitativo. _________ BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 1366243 - Tema 1.234. Disponível aqui. Acesso em: 2 out. 2024. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. e-NatJus. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 4 de 18 de dezembro de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. Ministério da Saúde (MS).  Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 27 de set. 2024.
O presente estudo aborda as repercussões jurídicas e éticas decorrentes do uso de redes sociais para fins publicitários por profissionais médicos, com enfoque na responsabilização civil desses profissionais. A análise examina a distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado na prática médica e discute o impacto da publicidade sobre as expectativas dos pacientes. À luz das disposições do CDC e das resoluções do CFM, são investigadas as circunstâncias em que a publicidade inadequada pode configurar alteração da obrigação contratual, transformando-a em obrigação de resultado, com consequências jurídicas adversas para os profissionais. O estudo visa oferecer uma reflexão sobre os riscos e responsabilidades inerentes ao uso das mídias digitais por médicos, especialmente no tocante à criação de expectativas infundadas.  1. Introdução A utilização de redes sociais por profissionais de saúde para a divulgação de serviços médicos tornou-se uma prática amplamente difundida, sendo vista, muitas vezes, como uma ferramenta eficaz para a captação de pacientes e a promoção de suas atividades. Contudo, esse fenômeno suscita complexas questões jurídicas e éticas, especialmente quando se considera o regime de responsabilidade civil aplicável a tais profissionais. O exercício da medicina é tradicionalmente classificado como uma obrigação de meio, ou seja, o médico compromete-se a empregar os melhores recursos e conhecimentos disponíveis, sem, no entanto, garantir um resultado específico. No entanto, quando a publicidade veiculada nas redes sociais cria a expectativa de resultados garantidos, a relação contratual pode ser alterada, convertendo-se em uma obrigação de resultado, o que pode levar à responsabilização do médico em caso de insucesso. Este artigo tem por objetivo analisar a responsabilidade civil do médico sob essa perspectiva, com base nas disposições do CDC e nas normas éticas do CFM. 2. Distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado na prática médica No âmbito do direito civil, a distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é de fundamental importância para a compreensão da responsabilidade do médico. A obrigação de meio, predominante na prática médica, impõe ao profissional o dever de agir com diligência, perícia e prudência, empregando todos os meios disponíveis para o sucesso do tratamento, mas sem garantir a obtenção de um resultado específico. Essa natureza da obrigação decorre da imprevisibilidade dos fatores biológicos que influenciam os tratamentos médicos. Por outro lado, a obrigação de resultado implica a entrega de um desfecho concreto e previamente estabelecido. Esse tipo de obrigação é excepcional no campo da saúde, dada a natureza incerta dos tratamentos e a resposta variável de cada organismo aos procedimentos. Em raras situações, como em certos procedimentos estéticos, pode-se considerar a existência de uma obrigação de resultado, mas tal circunstância é incomum e deve ser interpretada de forma restritiva. 3. A Influência da publicidade médica nas redes sociais A publicidade médica, especialmente quando veiculada nas redes sociais, tem o potencial de alterar a percepção do paciente acerca da natureza da obrigação assumida pelo médico. Ao fazer uso de meios publicitários, o profissional deve abster-se de prometer resultados garantidos ou de sugerir que o sucesso do tratamento é assegurado, pois tal prática pode configurar a transmutação da obrigação de meio para obrigação de resultado. Essa alteração é prejudicial, na medida em que expõe o médico à responsabilidade civil, caso o desfecho prometido não seja atingido. A resolução CFM 1.974/11, posteriormente atualizada pela resolução CFM 2.336/23, estabelece parâmetros rigorosos para a publicidade médica, objetivando impedir que os profissionais façam uso de linguagem sensacionalista, de autopromoção ou de garantias infundadas quanto aos resultados dos tratamentos. Em consonância, o CDC, em seu art. 37, considera publicidade enganosa aquela que induz o consumidor ao erro, seja por veicular informações inverídicas, seja por omitir dados relevantes. Dessa forma, a publicidade que sugere a certeza de um resultado positivo gera uma obrigação de resultado, afastando o caráter de imprevisibilidade inerente à prática médica e aumentando o risco de litígios. 4. A responsabilidade civil do médico no âmbito da publicidade A responsabilidade civil do médico decorre do descumprimento de sua obrigação ou da prática de atos que configurem negligência, imprudência ou imperícia. Quando a publicidade médica, veiculada por meio das redes sociais, cria no paciente a expectativa de um resultado garantido, o médico pode ser responsabilizado judicialmente, mesmo que tenha agido em conformidade com os preceitos técnicos da medicina. Exemplo 1: Um cirurgião plástico divulga em suas redes sociais a realização de lipoaspirações com a promessa de "resultados permanentes" e "satisfação garantida". Se o paciente, após o procedimento, não alcançar o resultado esperado, o médico poderá ser responsabilizado civilmente, pois, ao prometer um desfecho específico, compromete-se a uma obrigação de resultado. Exemplo 2: Uma clínica de emagrecimento anuncia que seus tratamentos garantem a perda de "até 10 kg em um mês". O paciente, ao não atingir o objetivo prometido, poderá demandar judicialmente, alegando que a clínica descumpriu a obrigação contratual de resultado. Esses exemplos ilustram como a publicidade inadequada pode aumentar os riscos de responsabilização civil para o médico, convertendo a obrigação de meio em uma obrigação de resultado. 5. Consequências da responsabilidade civil por publicidade enganosa As consequências jurídicas da responsabilização civil do médico por publicidade enganosa ou abusiva são vastas, podendo incluir: Danos materiais: O paciente pode pleitear a restituição dos valores pagos pelo tratamento, bem como a reparação de despesas adicionais incorridas para corrigir complicações. Danos morais: A frustração gerada pela expectativa não atendida pode ensejar a reparação por danos morais, especialmente em casos de abalo psicológico ou emocional. Danos estéticos: Em situações que resultem em deformidades físicas ou cicatrizes, o paciente poderá buscar indenização por danos estéticos. Responsabilidade ética e administrativa: Além da responsabilização civil, o médico pode ser submetido a processos disciplinares perante o Conselho Regional de Medicina, estando sujeito a sanções que variam desde advertências até a suspensão do exercício profissional. A publicidade inadequada ou sensacionalista não apenas compromete a reputação do profissional, mas também pode acarretar graves consequências financeiras e éticas, comprometendo sua atuação no mercado. 6. Conclusão O uso da publicidade nas redes sociais por profissionais médicos deve ser conduzido com extremo cuidado, dentro dos limites impostos pela ética e pela legislação vigente. As promessas de resultados concretos e garantidos em campanhas publicitárias expõem o médico ao risco de responsabilização civil, caso o desfecho não seja alcançado, desviando-se da tradicional obrigação de meio que rege a prática médica. A publicidade médica deve ser sempre pautada pela transparência e veracidade, esclarecendo que os resultados podem variar de acordo com as particularidades de cada paciente. Além disso, é imperativo que o consentimento informado seja devidamente utilizado, garantindo que o paciente tenha plena ciência dos riscos e limitações dos tratamentos propostos, prevenindo expectativas irreais e, por conseguinte, eventuais litígios.
No livro "Nação Tarja Preta"1, a psiquiatra norte-americana Anna Lembke, expõe de forma incisiva como a relação entre médicos e a indústria farmacêutica pode levar a consequências devastadoras para pacientes e para a prática médica, como um todo. A autora, que é professora em Stanford, descreve como a influência das grandes indústrias farmacêuticas pode resultar em prescrições excessivas e inadequadas, contribuindo diretamente para crises de saúde pública, como a devastadora epidemia de opioides existente nos EUA2. No caso específico dos opioides, Lembke detalha como, em poucos anos, foi moldado um ambiente no qual o médico passou a ser refém de um sistema que ela denomina como "enlouquecido" e em que aqueles profissionais que se opunham à prescrição excessiva de opioides passaram a ser estigmatizados. Essa situação evidencia o risco envolvido quando há conflito de interesse na atuação médica e demonstra uma tendência global de regulamentação na área da saúde. Os EUA promulgaram a lei de abrangência federal denominada Physician Payments Sunshine Act3 em 2010, mas o Brasil ainda discute o assunto, com alguns projetos de lei tramitando há anos4, sem previsão de quando ocorrerá a deliberação definitiva. O único Estado brasileiro que regulamenta o assunto é Minas Gerais, por meio da lei Estadual 22.440/16. Nesse contexto e exercendo suas prerrogativas, o Conselho Federal de Medicina se antecipou à lei federal, publicando, em setembro de 2024 a Resolução CFM 2.386/24 (com vigência em março de 2025), para normatizar os vínculos entre médicos e indústrias (farmacêuticas de insumos de saúde e equipamentos médicos) bem como para trazer maior transparência e fortalecer a confiança nas relações médico-paciente, evitando que os interesses financeiros se sobreponham à qualidade do cuidado prestado. 1. Obrigação de Informar Vínculos com Indústrias (Art. 2º): Uma das principais exigências da resolução é a obrigação do médico de informar quaisquer vínculos com indústrias farmacêuticas, de insumos da área da saúde e equipamentos médicos, bem como com empresas intermediadoras da venda desses produtos. A comunicação deve ser feita no 'CRM-Virtual' do Conselho Regional de Medicina no qual o médico possui inscrição ativa. A resolução detalha que o médico deve informar o nome das empresas com as quais mantém vínculo e comunicar ao Conselho quando a relação se encerrar, sendo o prazo da obrigação de 60 dias contados do recebimento do benefício. Apesar de existir menção à 'remuneração' e a 'benefício', não há uma delimitação das situações que podem ser consideradas como geradoras do vínculo ou do conflito de interesse, fato que pode gerar interpretações dissonantes ou conflituosas. Na prática, seria importante para o médico compreender, por exemplo, se um almoço patrocinado por um laboratório deverá ser informado, sendo desejável que o CFM se manifeste nesse sentido. 2. Definição do Vínculo e Situações Abrangidas (Art. 3º) Conforme delimitado no art. 3º do referido ato normativo, o vínculo se caracteriza por um contrato formal ou prestação ocasional para desenvolver atividades ligadas à indústria, divulgar produtos ou para proferir palestras. Devem informar o vínculo, portanto, todo médico que firma contrato para desenvolver 'ocupação ligada às empresas da indústria farmacêutica'. Porém, não ficou claro se a obrigação se estende aos profissionais empregados naquelas empresas, mediante contrato de trabalho sem tempo determinado. Abrange essa obrigação de informar, a participação de médicos em pesquisas e desenvolvimento de produtos e a condição de membro de comissões técnicas, como a Conitec -Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e de outros conselhos deliberativos da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar ou Anvisa  -Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Demonstra-se, nesse art. 3º, a significativa preocupação com a possibilidade de influência e interferência de profissionais que atuam perante órgãos públicos, na definição de políticas que repercutam no dispêndio de altas somas de dinheiro público. 3. Proibição de Recebimento de Benefícios em relação a divulgação de produtos sem registro na Anvisa (Art. 4º e 5º) A norma proíbe o recebimento de quaisquer benefícios relacionados a medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais e equipamentos hospitalares que não tenham registro na Anvisa. Essa disposição busca impedir a promoção de técnicas ou procedimentos ainda não validados ou sem a adequada comprovação científica. A exceção existe para os casos de protocolos de pesquisa aprovados por comitês de ética em pesquisa, quando, ainda em fase de testes, dependem da participação dos médicos, que podem ser remunerados pelos patrocinadores. Importante, portanto, que tais relações estejam bem amparadas por contratos específicos, evitando questionamentos ou penalidades. 4. Declaração de Conflitos de Interesse em Exposições Públicas (Art. 6º) Assim como havia sido definido no art. 10, da resolução CFM 2.336/23, que trata da propaganda e publicidade médicas, a recente norma reitera a obrigação do médico em declarar seus conflitos de interesse em entrevistas, debates, palestras e quaisquer eventos. Apesar de a resolução anterior ter previsto o disclosure apenas em 'eventos para o público leigo', esta ampliou a abrangência e incluiu os 'eventos médicos'. Tal disposição, conforme bem ponderaram os Dantas e Coltri, decorre da necessidade de "equilibrar a liberdade de expressão e a promoção de serviços médicos com a garantia de que tais práticas não comprometam a confiança pública na profissão médica"5 . Sendo assim, não há vedação da prática de tais atos, apenas pretende-se garantir que potenciais interesses sejam evidenciados. 5. Exceções à Regra (Art. 7º) Não obriga à a notificação por parte do médico o recebimento de amostras grátis de medicamentos, assim classificadas pela legislação específica6, o que é razoável e evita a necessidade de um controle demorado e custoso para o profissional. Ademais, já existe regulação sobre a forma como as amostras podem ser distribuídas, cabendo à farmacêutica tal gestão. Também foram excluídos da obrigação, informar os rendimentos decorrentes de investimentos, como ações e/ou cotas de participação em empresas do setor de saúde. Neste caso, apesar de a resolução evitar a exposição de rendimentos decorrentes do trabalho - na maioria das vezes, por questões fiscais, as remunerações pela prestação do serviço médico são contabilizadas em sociedade constituída com este propósito7 - essa exceção pode, em alguns casos, desviar a norma de seu objetivo de promover a transparência. Não é raro um médico administrar ou investir diretamente nas centenas de startups voltadas à área da saúde - healthtechs - e o fazem com o objetivo de obter a valorização do patrimônio das sociedades investidas8. Vislumbra-se, portanto, um potencial conflito de interesses, que, se ocultado, pode prejudicar a confiança no profissional. A terceira exceção ocorre nos benefícios recebidos por 'sociedades científicas' ou 'entidades médicas' de forma genérica, inexistindo uma especificação dos propósitos ou do tipo jurídico de tais instituições. Considerações finais Apesar de não ter força de lei9, a resolução CFM 2.386/24 representa um avanço significativo na regulação das interações entre médicos e a indústria da saúde, ao colocar luz sobre eventuais conflitos de interesse que possam influenciar a prescrição ou a aquisição pelo poder público de medicamentos e outros produtos médicos. Ressalta-se que ela não pretende proibir a relação de médicos com as empresas da saúde, sendo livre e até benéfica a associação e contratação entre as partes, para que exista diálogo, troca de conhecimento e a difusão de novas terapêuticas ou tecnologias, diante da constante evolução da medicina. O que se pretende evitar são situações, como a que se deflagrou nos Estados Unidos, em que o médico perde sua autonomia diante de uma imposição perversa de atores com grande poder de influência, desvirtuando os propósitos da Medicina e o comprometimento ético do médico. Para o médico, o cumprimento dessas normas reitera seu compromisso com a prática ética e fortalece a confiança do paciente, fundamentais para a preservação da integridade da profissão e a manutenção de um ambiente seguro e responsável. ________ 1 LAMBKE, Anna. Nação Tarja Preta: o que há por tras da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. São Paulo: Vestígio, 2024. 208 p. 2 Disponível aqui. Acesso em 25.09.24. 3 Section 6002, da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010, essa legislação se tornou um marco na transparência das relações entre médicos e a indústria, servindo como referência para normas similares ao redor do mundo. 4 Tramita na Câmara o PL 7.990/2017, no qual estão apensados os demais: PL 11.050/18, PL 11.177/18, PL 204/19 e PL 1.041/24. Disponível aqui. Acesso em 24/09/24. 5 DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 5. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024. 672 p. P. 490. 6 A RDC 60/2009, da ANVISA, dispõe sobre a produção, dispensação e controle de amostras grátis de medicamentos e dá outras providências. 7 Nesse sentido: COSTA, Vivian Carla da. Sociedade simples de médicos e a contribuição previdenciária patronal. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2024. 8 Neste sentido: MÉDICA, Afya Educação. Conheça 10 médicos empreendedores de sucesso. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. SAÚDE, Futuro da. Número de rodadas de investimentos em healthtechs se mantém, mas valores são menores ano a ano. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. 9 As resoluções do Conselho Federal de Medicina vinculam eticamente todos os médicos enquanto exercendo sua profissão, em todas os campos possíveis, nos termos do Código de Ética Médica (Resolução CFM 2.217/10). O descumprimento pode repercutir em penalidades, aplicadas conforme a gravidade da infração.   
Resumo O presente trabalho visa discutir o contexto para edição da resolução 238/16 do CNJ determinando aos tribunais a criação do Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário e analisar o impacto dessa ferramenta essencial para a condução segura dos processos judiciais em saúde pública e suplementar permitindo o equilíbrio entre a garantia do direito individual à saúde e a higidez do SUS e da Saúde Suplementar. A nota técnica e o parecer técnico-científico elaborados pelo Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário permitem que o magistrado decida com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, observando os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, diretrizes diagnósticas e terapêuticas, rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, garantindo a aplicação dos princípios da universalidade, integralidade, equidade, acesso igualitário, mutualismo e solidariedade intergeracional. Para tanto, analisar-se-á a estatística dos Tribunais de Roraima e Goiás quanto à urgência ou não do pedido, e quanto à manifestação pela procedência, procedência parcial ou improcedência do pedido. Os dados apresentaram que no TJ/RR 12,31% dos pareceres foram considerados urgentes e no TJ/GO 18,14%. Quanto ao mérito do parecer no TJ/RR 53,79% foram totalmente favoráveis. Os dados comprovaram a hipótese de que a remessa do processo ao NatJus não atrasa a prestação jurisdicional e permite que a decisão esteja em consonância com a medicina baseada em evidências. Introdução A judicialização da saúde pública e suplementar cresceu significativamente, demandando a intervenção dos Tribunais Superiores e do CNJ devido ao impacto financeiro nos orçamentos público e privado. Esse aumento é impulsionado pela demanda crescente por medicamentos e tecnologias ainda não incorporados ao SUS e ao rol de procedimentos da ANS, com risco de descontinuidade da política pública de saúde e o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de planos de saúde. De acordo com dados do CNJ, em 2020 havia 416,42k processos relacionados à saúde pública e 206,28k relacionados à saúde suplementar no Brasil. Esses números subiram para 511,07k e 290,89k, respectivamente, em 2024. A Suspensão de Tutela Antecipada 175 foi um marco na jurisprudência sobre o direito à saúde, oportunidade que o STF estabeleceu diretrizes importantes, como a solidariedade dos entes federativos, a intervenção judicial para garantir a eficácia das políticas de saúde e a exigência de registro de medicamentos na ANVISA. O tribunal destacou a prioridade do tratamento previsto no SUS, mas permitiu alternativas em casos de ineficácia clínica e ausência de PCDT - Protocolo Clínico, vedados os tratamentos experimentais. Essa decisão, embora sem efeito vinculante, tem forte poder persuasivo e influenciou a criação de ampla jurisprudência nos Temas 6, 793, 1.234 e 500 do STF, e Tema 106 e IAC 14 do STJ. O CNJ, por meio de diversas resoluções, implementou importantes medidas para racionalizar a judicialização da saúde. Foi estabelecido o Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitorar as demandas de saúde (resolução 107/10) e criados os Comitês Estaduais de Saúde. Além disso, foram especializadas varas em comarcas que possuem mais de uma vara de Fazenda Pública. A estruturação dos NatJus foi formalizada pela resolução 238/16, juntamente com a recomendação de priorizar o julgamento de processos relativos à saúde suplementar (resolução 43/13). O CNJ também elaborou o fluxo de cumprimento adequado das decisões judiciais em saúde (resolução 146/23) e organizou as Jornadas Nacionais da Saúde para debater questões relacionadas à judicialização. Apesar das diretrizes, parte da magistratura resiste em remeter processos ao NatJus, citando a "extrema urgência" dos casos, a autonomia judicial e médica, ou a ausência de NatJus no tribunal correspondente. No entanto, pesquisas mostram que muitos casos não são urgentes, e alguns pedidos são improcedentes. A resistência à consulta ao NatJus compromete a observância dos protocolos do SUS, recomendações da CONITEC, obrigatoriedade de registro na ANVISA, avaliação de evidências científicas, eficácia e custo-efetividade, essenciais para decisões técnicas em saúde. Objetivo Apresentar estudo estatístico comprovando a imprescindibilidade de remessa dos processos ao NatJus para a devida qualificação técnica das decisões judiciais em saúde, em observâncias às determinações dos Tribunais Superiores, CNJ e FONAJUS, a fim de que se tenha o maior grau de certeza possível do benefício do medicamento ou tecnologia demandada, observando-se os princípios da saúde pública e suplementar. Métodos Foi realizado o levantamento manual nas notas técnicas produzidas pelo NatJus do TJ/RR no período de 2019 a julho de 2024 pesquisando a urgência ou não do parecer e se procedente, parcialmente procedente ou improcedente o pedido. No NatJus de Goiás foi feito o levanto manual das notas técnicas produzidas no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024 buscando-se a análise de frequência de objetos e classificadores de objetos referentes aos processos, que solicitaram urgência. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do Conselho Federal de Medicina.  Dessa forma, o tema foi abordado por meio do método dedutivo. A pesquisa foi realizada quanto à natureza de forma aplicada, com a abordagem quantitativa, objetivo descritivo e procedimento técnico documental, cuja aplicação tem por finalidade a elaboração de instrumento de pesquisa adequado à realidade a ponto de delinear a problemática em questão. Discussão Urgência e Emergência na Judicialização da Saúde Na judicialização da saúde, a maioria das petições iniciais inclui pedido de tutela de urgência, argumentando que o paciente corre risco iminente de morte ou lesão irreversível de órgão-alvo. Esse tom apelativo frequentemente leva magistrados a decidir rapidamente, sem consultar notas técnicas do NatJus ou ouvir gestores de saúde, criando cenário propício para o surgimento de demandas predatórias, oferta de terapias ineficazes, inobservância das filas de espera, desestruturação das políticas públicas e comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro da saúde suplementar. É essencial adotar critérios seguros para a definição temporal da necessidade da apreciação dessas liminares, conforme a legislação e protocolos médicos. Dois marcos normativos são referência: A Resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina 1.451/95 define urgência como agravo à saúde necessitando de assistência imediata, e emergência como risco iminente de vida. A lei 9.656/98, para planos de saúde, limita emergência a riscos imediatos de vida e urgência a casos de acidentes ou complicações gestacionais. A diferença entre urgência e emergência está no nível de gravidade. Urgências não envolvem risco de vida iminente, mas requerem atendimento rápido para evitar agravamento. Emergências exigem atendimento imediato devido a ameaça à vida. A organização de filas de cirurgias e atendimentos utiliza protocolos médicos como o Protocolo de Manchester, que classifica pacientes em cinco níveis de prioridade, do atendimento imediato à espera de até 240 minutos. Cirurgias são classificadas em quatro grupos de prioridades: Eletivas, prioridade médica, urgência e emergência. Cirurgias eletivas, como mamoplastia reparadora, podem esperar. Prioridade médica usa o parâmetro Time-Sensitive, talhado pela Sociedade Americana de Cardiologia, quando atrasos maiores que 1 a 6 semanas podem afetar negativamente desfechos. Cirurgias de urgência devem ocorrer em até 24 ou 48 horas, como apendicectomias. Cirurgias de emergência, como ferimentos por arma de fogo, requerem atenção imediata. O parecer do CFM do Espírito Santo (Parecer Consulta 006/15) delineia a classificação das cirurgias: Eletivas podem ser programadas, urgências requerem atenção em até 48 horas, e emergências exigem ação imediata. Esses parâmetros ajudam a organizar o sistema de saúde e garantir que casos mais graves recebam prioridade. O projeto de lei 2.728/21 que dispõe sobre prazos máximos para a realização de procedimentos cirúrgicos eletivos no âmbito do SUS, apresenta os seguintes parâmetros: Prioridade absoluta: 60 dias; Prioridade moderada: 120 dias; Prioridade baixa: 180 dias. A lei 12.732/12, que dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna, estabelece prazo para seu início no prazo de até 60 dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico. O uso inadequado da judicialização na saúde viola a isonomia de acesso, como no caso do Ceará, que regula a fila cirúrgica pela classificação de SWALIS, na qual as categorias A1 e A2 (maior gravidade) possuem prioridade sobre o critério cronológico, que deve ser observado nas categorias B, C e D (menor gravidade). Em caso de judicialização, independente do grau de gravidade da doença o paciente também tem prioridade sobre a ordem cronológica. Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Roraima Foram levantadas manualmente as notas técnicas produzidas entre os anos de 2019 a agosto de 2024. Foram apuradas 1.186 notas técnicas oportunidade em que se constatou que em 251 (21,16%) não houve pedido de apreciação de urgência, 146 (12,31%) foram consideradas urgentes e 789 (66,52%) consideradas não urgentes. Destas 267 (33,84%) foram prioridade médica, 290 (36,75%) eletivas e 232 (29,4%) medicamentos (não urgentes). Quanto ao mérito do pedido 638 (53,79%) foram favoráveis, 133 (11,21%) não favoráveis, 387 (32,63%) parcialmente favoráveis e 28 (2,36%) inconclusivos. Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Goiás Foi realizada a análise dos processos remetidos ao NatJus, que solicitaram urgência no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do CFM. Foram solicitados em caráter de urgência 2.365, dentre os quais apenas 429 (18,14%) foram classificados como urgentes e 1.936 (81,86%) não urgentes. Portanto, considerando que a Portaria 1/24 prevê a disponibilização da nota técnica em até 24h nos casos urgentes, não se justifica decidir sem a manifestação do NatJus. Conclusão A judicialização da saúde no Brasil revela um cenário complexo, onde o uso excessivo e muitas vezes inadequado de tutelas de urgência tem impactado negativamente tanto o sistema público quanto o privado. A pesquisa demonstra que, na grande maioria das vezes, as demandas judiciais não representam situações de urgência real, sugerindo a necessidade de um processo mais criterioso na concessão de decisões judiciais. Isso é corroborado pelas estatísticas do NatJus dos Tribunais de Justiça de Roraima e Goiás, que evidenciam que apenas uma pequena fração dos casos requer intervenção imediata, com apenas 53,79% classificados como totalmente procedentes. O estudo reafirma a importância de utilizar critérios objetivos e baseados em evidências científicas, como aqueles estabelecidos pelas resoluções do CFM, para diferenciar entre casos de urgência e emergência. O Protocolo de Manchester e a classificação de cirurgias em eletivas, prioridade médica, urgência, e emergência são ferramentas essenciais para garantir que os casos mais graves recebam a devida prioridade, evitando o colapso do sistema de saúde e assegurando o uso racional dos recursos disponíveis. Além disso, é fundamental que os magistrados se apoiem nas notas técnicas emitidas pelo NatJus para orientar suas decisões, assegurando que estejam alinhadas com as diretrizes dos Tribunais Superiores e do CNJ. A resistência de parte da magistratura em consultar o NatJus compromete a implementação de políticas de saúde eficazes e baseadas em evidências, prejudicando tanto a eficiência quanto a equidade do sistema de saúde. Portanto, a integração de mecanismos de controle rigorosos e a educação contínua dos profissionais do direito e da saúde sobre a importância das decisões técnicas são passos cruciais para conduzir a judicialização da saúde de forma responsável. Ao garantir que o direito à saúde seja exercido de maneira justa e eficaz, pode-se promover um sistema de saúde mais sustentável e equitativo para todos. _________ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Estatísticas processuais de direito à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. s.d. Disponível aqui. Acesso em: 06/08/2024. ITRIA, A. Fundamentos de Avaliação de Tecnologias em Saúde. USP e UNB, 2024. MARTIMBIANCO, R. et al. Saúde Baseada em Evidências - Conceitos, Métodos e Aplicação Prática. 1. ed. São Paulo: Atheneu, 2023. SCARABEL, R. Saúde Suplementar: Estrutura e Operação do Sistema Brasileiro. Mackenzie, 2024.
No início de outubro deste mês, o STF divulgou no DOU - Diário Oficial da União a súmula vinculante 61, que estabelece diretrizes para o Judiciário avaliar solicitações de fornecimento de medicamentos de alto custo ainda não incorporados ao SUS. Essas diretrizes seguem os critérios estabelecidos no julgamento do tema 6 de repercussão geral, no RE 566.471. Alguns dias antes, o STF já havia publicado a súmula vinculante 60, determinando que os pedidos e análises de medicamentos na rede pública de saúde, bem como seus desdobramentos administrativos e jurisdicionais, devem observar os termos dos três acordos interfederativos homologados pelo STF, no contexto da governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Inicialmente, observa-se que as referidas súmulas estabelecem diretrizes aplicáveis exclusivamente ao SUS e às relações dentro do regime jurídico administrativo. O STF decidiu retomar a publicação de súmulas vinculantes no contexto da judicialização da saúde, destacando sua importância na uniformização da interpretação das normas e na garantia de previsibilidade nas decisões judiciais. Desde que a corte começou a transformar seus julgados em teses com repercussão geral, houve uma queda significativa na edição de súmulas vinculantes. Em 2023, foi publicada a súmula vinculante 59, sendo que a última anterior a ela datava de 2015. Embora os julgados com repercussão geral tenham efeito ultra partes e alcancem outros casos, sua aplicação se restringe ao âmbito interno do Poder Judiciário. Em contrapartida, as Súmulas Vinculantes impactam toda a administração pública, incluindo o Poder Executivo. O resgate desse instituto jurídico é fundamental, especialmente considerando sua relevância em questões como a dispensação de medicamentos de alto custo, registro de fármacos e a incorporação de tecnologias sanitárias no SUS1. Um ponto específico que foi objeto de deliberação pelo STF tanto no tema 6 como no 1.234, e que avança em relação ao tema 106 do STJ1, é a deferência imposta aos juízes e juízas às decisões da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS sobre a incorporação de novos medicamentos ao SUS. Em regra, e excetuando eventuais vícios processuais na análise, não é permitido ao Judiciário reavaliar ou desconsiderar o mérito da recomendação da Conitec, que, assim, se torna vinculante2. Mas em relação à saúde suplementar? As operadoras de planos de saúde serão impactadas por tais decisões? Haverá uma tendência de deferência, por parte do Poder Judiciário, às decisões da Cosaúde - Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar? Nesse contexto, é fundamental entender como ocorrem as ações e os serviços de saúde no país. O sistema de saúde no Brasil é caracterizado por sua natureza mista, combinando um robusto sistema público, o SUS, com a participação significativa do setor privado. O Sistema Único de Saúde é responsável por oferecer acesso universal e gratuito a serviços e ações de saúde, diretamente ou através de instituições privadas, que atuam de forma complementar, priorizando a equidade e a integralidade no atendimento. Cerca de 70% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS. No entanto, a crescente demanda por serviços de saúde, aliada ao subfinanciamento crônico, tem levado muitos brasileiros a buscarem alternativas no setor privado. As operadoras de planos e seguros de saúde desempenham um papel relevante nesse cenário, oferecendo uma variedade de serviços que buscam atender às necessidades específicas dos beneficiários. Esses planos, que possuem regulamentação própria, através da lei 9.656/98, podem proporcionar agilidade no atendimento e acesso a uma gama mais ampla de especialidades médicas, muitas vezes reduzindo o tempo de espera em comparação ao sistema público. Assim, os planos de saúde se tornam uma opção atrativa para aqueles que desejam maior comodidade e uma abordagem mais personalizada ao cuidado de saúde. A saúde suplementar no Brasil pode se organizar de diversas maneiras, oferecendo opções variadas para atender às necessidades dos usuários. Entre os modelos disponíveis, destacam-se a autogestão, onde empresas e entidades criam planos de saúde para seus colaboradores; a medicina de grupo, que reúne profissionais para oferecer serviços de forma integrada; as cooperativas médicas, que promovem a colaboração entre médicos para proporcionar atendimento de qualidade; e os seguros de saúde, que garantem cobertura financeira para despesas médicas. Essa diversidade permite que os beneficiários escolham a alternativa que melhor se adequa ao seu perfil e às suas necessidades de cuidado. Assim como na saúde pública, na Saúde Suplementar enfrenta-se um aumento exponencial na judicialização. Cada vez mais, os beneficiários de planos de saúde recorrem à justiça para obter tratamentos e serviços em saúde. Isso acontece quando as operadoras se recusam a cobrir procedimentos, medicamentos ou internações que os beneficiários consideram essenciais para sua saúde, ocorrendo o denominado fenômeno da jurisdicionalização do processo decisório.3 4 5 Essa tendência reflete a busca dos usuários por garantir acesso a cuidados médicos que julgam necessários para sua saúde (integridade psicofísica) e vida digna, mas que as operadoras se negam a fornecer.6 No entanto, é importante notar que a negativa de procedimentos na saúde suplementar, especialmente aqueles já incluídos no rol da ANS e reconhecidos pela jurisprudência, tem consequências que vão além do setor privado, afetando diretamente o sistema público de saúde e os cofres públicos. Quando as operadoras negam cobertura para procedimentos que deveriam ser oferecidos, muitos beneficiários se veem forçados a recorrer ao SUS como alternativa, seja pela urgência do tratamento, pela falta de recursos para iniciar um processo judicial, ou pela demora na resolução de casos já judicializados. Esta situação gera uma sobrecarga adicional no SUS, que já enfrenta desafios significativos de financiamento e capacidade. Consequentemente, há um aumento nos gastos do erário, pois o sistema público acaba absorvendo custos que, por direito, deveriam ser de responsabilidade das operadoras privadas. Além disso, a negativa de cobertura pelas operadoras também pode levar a um aumento na judicialização contra o próprio SUS, com pacientes entrando com ações contra o Estado exigindo tratamentos que foram negados pelos planos de saúde. É importante refletir que as operadoras de planos de saúde atuam em um mercado altamente regulado e com riscos bem conhecidos. O setor de saúde suplementar no Brasil é conhecido por sua alta lucratividade, e as operadoras entram no mercado cientes das regulamentações e obrigações legais. No entanto, parece haver uma relutância em assumir esses riscos inerentes ao negócio. A negativa de procedimentos já incluídos no rol da ANS sugere uma tentativa de maximizar lucros às custas da saúde dos beneficiários, uma postura que pode ser vista como uma forma de transferir riscos e custos para os beneficiários e para o sistema público de saúde. A implementação de mecanismos mais eficientes de ressarcimento ao SUS por parte das operadoras e a revisão dos critérios de solvência e reservas técnicas das operadoras poderiam ajudar a garantir que elas possam cumprir suas obrigações.7 A Conitec desempenha um papel crucial na avaliação e incorporação de novos medicamentos ao SUS, garantindo que as decisões sejam baseadas em evidências científicas e na eficiência dos tratamentos. Sua função de estabelecer critérios rigorosos é fundamental para a sustentabilidade do sistema de saúde pública e para a proteção dos recursos financeiros. Já na Saúde Suplementar, a avaliação de tecnologias em saúde (ATS) que é composta pelos membros da CAMSS - Câmara de Saúde Suplementar e tem por finalidade assessorar a ANS na definição da amplitude das coberturas assistenciais dos planos de saúde. A discussão sobre a autonomia técnica que um governo, ou uma operadora de plano de saúde, deve adotar em contraste com a crescente exigência de integrar novas tecnologias na área da saúde se revela, cada vez mais, um desafio persistente. Como podemos quantificar o valor de uma vida saudável? Até que ponto, enquanto sociedade, estamos dispostos a investir em benefícios para a saúde? Qual deve ser o critério que determina esse benefício e ele varia conforme a etapa da vida ou a condição de saúde considerada? Em novembro de 2022, a Conitec definiu os limites de custo-efetividade para a inclusão de tratamentos. Com isso, foi sugerido o uso de um valor-referência de R$ 40 mil por ano de vida ajustado pela qualidade (QALY), correspondente a 1 PIB per capita. Para situações específicas, como doenças raras, a recomendação foi de considerar três vezes esse valor-referência8. Já na saúde suplementar, verifica-se que as discussões sobre parâmetros de avaliação econômica no processo de atualização do Rol ainda estão engatinhando. Isso porque o cenário da saúde suplementar é bem mais complexo, pois envolve aspectos como a fragmentação do setor, a diversidade de fontes pagadoras, a dificuldade de negociação de preço, o modelo baseado no mutualismo, a falta de protocolos clínicos padronizados e falta dos debates sobre equidade. Como tratar uma cooperativa de cinco mil vidas, e uma operadora com dois milhões de vidas, com os mesmos critérios? Por certo não podemos desconsiderar o impacto orçamentário e tratar como uma consequência que os contratantes têm que cobrir. Mas também não se pode esquecer que estamos tratando, em regra, de relações jurídicas de direito privado. Apesar do alto custo das tecnologias sanitárias e da necessidade de uma avaliação econômica criteriosa, é fundamental destacar que, ao contrário SUS, as operadoras oe planos de saúde, exceto os planos de autogestão, funcionam sob um regime jurídico de direito privado e têm como objetivo primordial a maximização do lucro. Essa lógica de mercado impõe que, em busca de resultados financeiros, as operadoras podem negligenciar a qualidade do atendimento e o acesso dos usuários aos tratamentos necessários. Não se pode aceitar que a saúde dos indivíduos seja comprometida em nome da distribuição de lucros para acionistas; garantir o acesso à saúde deve sempre prevalecer sobre a busca pelo lucro, refletindo uma responsabilidade social (função social do contrato e deveres anexos) que é negligenciada por muitas dessas instituições. A recente lei 14.454/22, que estabelece que o Rol da ANS é meramente exemplificativo, surgiu como efeito backlash causado por uma decisão anterior do STJ, no EREsp 1.886.929, que restringia o acesso a medicamentos e insumos necessários, e que não estivessem devidamente incorporados nas listagens do referido órgão regulador, salvo em situações excepcionais. Com essa nova regulamentação, as operadoras de planos de saúde são agora obrigadas a fornecer tratamentos que tenham respaldo em evidências científicas, ampliando assim o acesso a terapias inovadoras e essenciais, mesmo que ainda não estejam no rol da ANS. Além disso, as tecnologias incorporadas pela Conitec devem ser automaticamente analisadas pela ANS, garantindo que, à medida que novas evidências e tecnologias sejam reconhecidas, também sejam incluídas no rol de coberturas obrigatórias. Essa mudança representa um avanço significativo na defesa dos direitos dos beneficiários, promovendo uma saúde suplementar mais justa e equitativa. Verifica-se, porquanto, que a deferência conferida pelo STF às decisões da Conitec, conforme registrado nas Súmulas Vinculantes 60 e 61, ainda encontra limitações para aplicação na judicialização da saúde suplementar. O aprimoramento do setor deverá perpassar por iniciativas como o processo de pesquisa acoplado à incorporação (para avaliar se a tecnologia em saúde entrega o que foi prometido); acordos de risco compartilhados justos e transparentes; regras de excepcionalidades para segmentos específicos (oncologia, doenças raras e ultrarraras, por exemplo). E não podemos nos esquecer da necessidade de repensar a regulação de preços de tecnologias sanitárias no Brasil. Trata-se de demanda premente que a CMED Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos aprimore seus mecanismos de precificação, especialmente diante do cenário atual em que tecnologias sanitárias milionárias têm se tornado cada vez mais comuns. A falta de transparência nas práticas de precificação não só compromete a sustentabilidade do sistema de saúde público e suplementar, mas também facilita abusos por parte da indústria farmacêutica, que pode explorar lacunas regulatórias para aumentar os preços de forma desproporcional. Ao estabelecer critérios claros e justos para a avaliação de preços, a CMED poderia garantir que os custos dos medicamentos sejam mais acessíveis e que os recursos do sistema de saúde sejam utilizados de maneira eficiente, promovendo um equilíbrio entre inovação e justiça social. A transparência nesse processo é essencial para que pacientes, profissionais de saúde e gestores possam tomar decisões informadas, assegurando que o acesso a tratamentos essenciais não seja comprometido por interesses econômicos desmedidos. Ou como asseverou Paul Farmer, aclamado antropólogo e médico estadunidense, e cofundador da organização Partners In Health: "A saúde não é um produto para ser vendido, mas um direito fundamental de cada ser humano." Essa afirmação ressalta a importância de priorizar, sempre e invariavelmente, o bem-estar das pessoas acima de considerações meramente financeiras. ________ 1 FILHO, João Trindade Cavalcante. As súmulas vinculantes ainda respiram (por aparelhos). In: Portal Consultor Jurídico, de 01 de outubro de 2024. 2 SANTOS, Bruno Henrique Silva. Temas 6 e 1.234 do STF, Conitec e Poder Judiciário - A dança do quadrado. In: Migalhas, de 08 de outubro de 2024. Disponível aqui. 3 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: PERFIL DAS DEMANDAS, CAUSAS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO. Instituto De Ensino E Pesquisa - INSPER. Disponível aqui.  Acesso em 14 de outubro de 2024. 4 Ferraz OLM. Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020. 5 AGÊNCIA BRASIL. SUS tem mais de R$ 2,9 bilhões a receber das operadoras de planos de saúde. 2018. Disponível aqui. Acesso em: acesso em 14 de outubro de 2024. 6 COSTA, Fabricio Veiga; MOTTA, Ivan Dias da; ARAÚJO, Dalvaney Aparecida de. Judicialização da saúde: a dignidade da pessoa humana e a atuação do STFno caso dos medicamentos de alto custo. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, 3, 2017 p. 844-874 7 SEBASTIANI, Rafael Teixeira, & OLIVEIRA, Rogério Nogueira de (2024). O fenômeno da judicialização da saúde no Brasil: análise pautada nos dados do CNJ existentes entre 2008 e 2023. CONTRIBUCIONES A LAS CIENCIAS SOCIALES, 17(5), e6707. https://doi.org/10.55905/revconv.17n.5-064 8 LIMA, Jordão Horácio da Silva Lima. Quanto custa uma vida? Reflexões quanto à adoção de limiares de custo-efetividade pelo SUS. In: Migalhas, 13 de junho de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 out 2024. ________ 1 A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
Imagine que um paciente de baixa renda descobre que os tratamentos disponíveis na rede pública de saúde não são capazes de tratar sua doença. O médico que o assiste prescreve outro, afirmando que existem estudos atestando que existe uma alternativa de cura. A questão que se coloca é a seguinte: o paciente pode processar o Estado para o custeio do medicamento fora dos limites estabelecidos pelas políticas públicas? O STF vem enfrentando a questão da judicialização de medicamentos desde a promulgação da Constituição. Recentemente, em setembro de 2024, publicou as teses dos temas 1.2341 e 62, disciplinando a maneira pela qual é possível buscar medicamentos fora das políticas. A análise desses temas é o objeto deste breve artigo. Na ocasião, o STF firmou claro posicionamento ao determinar que o Judiciário deve adotar uma postura de deferência às decisões tomadas pelo gestor da saúde e de contenção na intervenção sobre a execução das políticas públicas da área. Esse não é um posicionamento recente. De forma mais ampla, o STF já havia, no julgamento do agravo regimental em suspensão de tutela antecipada 175, em 20103, buscado privilegiar, como regra, o que foi planejado pela autoridade administrativa, permitindo a entrega de medicamentos fora da política pública apenas em casos excepcionais. A relevância dos novos temas está no aprofundamento dessas diretrizes, com o desenvolvimento de critérios bastante complexos para autorizar a dispensação de medicamentos não padronizados. Não farei uma análise completa dos temas. O objetivo é compreender os critérios capazes de solucionar a situação descrita no início. Algumas qualificações devem ser realizadas à hipótese formulada: o paciente possui uma patologia e, por motivos individuais, não reage ou não pode utilizar o medicamento padronizado disponível no SUS; ele recebe prescrição médica de medicamento de alto custo que não está incluído nas políticas públicas, embora tenha registro na Anvisa; o medicamento jamais teve a incorporação ao SUS analisada pela Conitec4; e, finalmente, o paciente não possui capacidade econômica para adquiri-lo com recursos próprios. Eis a pergunta: O que o paciente deve demonstrar, a partir dos recentes julgamentos do STF, para receber o medicamento do Estado? Medicina baseada em evidências e a opinião do médico assistente A regra geral estabelecida pelo STF é a de que, independentemente do custo, a ausência de inclusão de medicamento nas listas de dispensação do SUS impede o fornecimento por decisão judicial (tema 6, tese 1). Excepcionalmente, presentes diversas condições, a parte pode postular medicamentos não disponibilizados (tema 6, tese 2). De forma simplificada, dentre outros requisitos, pode-se afirmar que o paciente deve demonstrar que: (1) o medicamento é imprescindível para tratar sua saúde; (2) ele não pode ser substituído por outro padronizado; e (3) existem evidências científicas de que é efetivo e seguro5. Analisar esses requisitos não é algo que se possa fazer dentro do domínio teórico do direito, mas dentro do domínio da saúde. Não vamos solucionar a controvérsia citando princípios jurídicos ou o texto da CF/88, mas buscando evidências científicas de cada um desses predicados. O STF expressamente determinou que a demonstração dessas circunstâncias deve ser feita com base em critérios de medicina baseada em evidências (MBE), sendo vedada a tomada de decisão fundamentada unicamente na opinião do médico da parte (tema 6, tese 3, 'a' e 'b'). Para compreender o que isso significa, precisamos analisar, ainda que de forma superficial, as características centrais do movimento da MBE e, como consequência, a posição da opinião do médico dentro da hierarquia das evidências científicas. O movimento da MBE teve início nos anos 1990, buscando discutir, a partir de observações clínicas reais, quais são as evidências disponíveis para determinar que um tratamento é eficaz. A premissa básica do movimento é a ideia de que existe uma conexão íntima entre evidência de alta qualidade e verdade, ou seja, só podemos acreditar que um tratamento é efetivo se existirem pesquisas confiáveis que sustentem essa conclusão6. Em outras palavras, aquilo em que podemos acreditar depende da confiabilidade da evidência disponível, sendo certo que o grau de confiança nessa evidência é determinado pelos processos de produção do conhecimento. A criação de padrões sobre o que conta como evidência traz vantagens, mas também gera um problema. As principais vantagens são a garantia de que o conhecimento será construído por métodos que asseguram resultados confiáveis e, no tratamento dos pacientes, a possibilidade de criar protocolos de atendimento baseados em regras de probabilidade. No entanto, o problema surge justamente nessa última vantagem: nem todas as pessoas reagem aos tratamentos de acordo com a média esperada para a população7. Os modelos mais populares de hierarquia dividem as evidências, da menos para a mais confiável, na seguinte ordem: opinião de especialista, estudos de caso, estudos observacionais, ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análise. Os pormenores dessas evidências aqui não são pertinentes. Para o argumento, basta destacar que o STF expressamente afirmou que a parte tem o ônus de demonstrar a necessidade do medicamento não incorporado a partir de "evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise" (tema 1.234, tese 4.4). Nesse contexto, qualquer documento emitido pelo médico equivale à opinião de um especialista e, portanto, recebe o menor grau de confiabilidade dentro da hierarquia. NATJUS - Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário Se a opinião do médico não é suficiente, qual é a forma exigida para comprovação de que o medicamento não disponibilizado é efetivo e necessário para o tratamento de saúde? Segundo o STF, o magistrado tem o dever de submeter o processo à prévia análise do NATJUS - Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário, sob pena de nulidade da decisão proferida por descumprimento de precedente vinculante. Se não existir NATJUS na respectiva jurisdição, ele deve consultar entidades ou pessoas com expertise técnica na área (tema 6, tese 2, "b"). O NATJUS, com base nos documentos juntados aos autos - inclusive laudo médico descrevendo a patologia, os tratamentos já realizados e a impossibilidade de substituição da medicação por outra padronizada -, fará a análise técnica do pedido formulado, emitindo parecer. A decisão judicial será proferida levando em consideração esse documento. Não é possível dispensar a participação do NATJUS, por exemplo, trazendo aos autos uma publicação de revisão sistemática em revista científica apoiando a prescrição. A publicação não é autocertificadora da qualidade do estudo, ou seja, a revisão sistemática deve ser analisada por seus próprios méritos metodológicos e não pelo simples fato de ter sido publicada. A ressalva é importante, pois estudo recente apontou a existência de 3.035 revisões sistemáticas publicadas na plataforma PubMed realizadas por um único autor, o que indica que elas devem ter sua metodologia analisada com precaução8. Segundo o mesmo estudo, a complexidade que envolve a realização de revisões sistemáticas não recomenda que elas sejam realizadas por apenas uma pessoa, mas por uma equipe, considerando as diferentes competências envolvidas (expertise clínica, metodológica e estatística)9. Na hipótese de não existir NATJUS, o juiz deve ouvir especialistas. O STF emprega a expressão entes ou pessoas com "expertise técnica na área", o que torna legítimo perguntar: qual é a área na qual a entidade ou o profissional devem ter expertise? Imagine que o paciente no nosso exemplo hipotético sofra de uma condição cardíaca. A área de expertise deve ser a cardiologia, a avaliação da metodologia em evidências científicas ou ambas? Um cardiologista sem formação na metodologia do conhecimento científico, ou seja, alguém que não é capaz de distinguir, por exemplo, entre revisões sistemáticas de boa e de má qualidade, certamente não será capaz de cumprir aquilo que foi determinado pelo STF. O profissional adequado, portanto, no mínimo deve ter boa formação em MBE e, se possível, formação em cardiologia. Em um plano ideal, obviamente, ambas as formações são recomendáveis, mas não é possível dispensar a formação metodológica, sob pena de introduzir no processo uma prova baseada, na prática, em uma opinião do especialista. Em outras palavras, embora os médicos sejam especialistas em suas áreas de atuação, nem sempre estão capacitados para realizar análises metodológicas. As habilidades necessárias para esse tipo de estudo não faziam parte dos currículos acadêmicos tradicionais e, mesmo atualmente, estão presentes em poucos programas universitários. Em suma, o pedido para entrega de medicamento não disponibilizado no SUS depende da comprovação, a partir de evidências científicas de alto nível devidamente constatadas por alguém com capacidade de realizar esse tipo de análise, de que o medicamento é imprescindível para o tratamento da doença, não pode ser substituído por outro padronizado e é efetivo e seguro. Se todos os pressupostos indicados no tema 6 forem comprovados nos autos, o STF permite a procedência do pedido e determina que o magistrado oficie ao Ministério da Saúde para que avalie a incorporação desse medicamento aos programas de atenção farmacológica. ________ 1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.366.243, tema 1.234 de repercussão geral. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje. 19/09/2024. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 566.471, tema 06 de repercussão geral, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac Min. Gilmar Mendes e Min. Roberto Barroso. Tribunal Pleno, julgado em 21 set. 2024. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STA 175 AgR. Rel. Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje, 30/04/2010. 4 Note que, dentro dessa ideia geral de deferência administrativa, se a Conitec emitir parecer contrário à incorporação do medicamento ao SUS, não poderá o Judiciário determinar a entrega, exceto se ficar comprovada alguma ilegalidade no processo administrativo, vedada a incursão no mérito do ato administrativo (tema 6, tese 3, alínea 'a'). 5 Tema 6, tese 2, alíneas 'c', 'd' e 'e'. Os demais requisitos são os seguintes: registro na Anvisa; negativa administrativa do fornecimento do medicamento; ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação; e incapacidade financeira de custeio.  6 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H.; ASHCROFT, Richard E. Epistemologic Inquiries in Evidence-Based Medicine. Cancer Control, v. 16, n. 2, p. 158-168, abr. 2009. 7 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H. Progress in evidence-based medicine: a quarter century on. The Lancet, v. 390, p. 415-423. 8 PACHECO, Rafael Leite. et al. Many systematic reviews with a single author are indexed in PubMed. Journal of Clinical Epidemiology, v. 156, abr. 2023. p. 124-126. 9 Ibid., p. 125.