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Iatrogenia no tratamento da saúde humana - uma abordagem global

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Atualizado às 10:59

1. Aspectos gerais

Iatrogenia deriva do grego antigo, que significa iatros (médico ou curandeiro) e genes (originado de ou gerado por), correspondendo a algo gerado ou causado por médico. Nessa linha, iatrogenia é o resultado de todos os eventos adversos, não desejados, mas previsíveis de ocorrência em matéria de saúde humana. Na sua clássica definição, a iatrogenia se circunscreve aos eventos adversos decorrentes de erro médico. Entretanto, iatrogenia é todas as reações orgânicas a um tratamento médico-hospitalar, ainda que adversos e não desejados, além do erro médico. Segundo Armond (2016, p.109),

Um EA, ou iatrogenia, caracteriza um dano ou lesão não intencional causado por um cuidado prestado a um usuário do sistema de saúde, oriundo ou não de uma falha do profissional envolvido. O evento pode ocasionar incapacidade ou disfunção, seja temporária ou permanente, ou até a morte. É importante entender que o EA não está relacionado à evolução natural da doença de base do paciente.

A exceção das hipóteses relacionadas ao erro médico, a iatrogenia pressupõe a prática do ato médico por profissional regularmente habilitado no contexto de uma relação de cuidado com a saúde humana. São eventos indesejáveis, mas na sua grande maioria não são considerados raros ou inovadores no universo da ciência médica. Assim sendo, a iatrogenia se refere a todas as reações adversas produzidas pelo corpo humano após a realização de um procedimento médico, terapia ou pela administração de medicamento durante o tratamento da saúde humana.

É comum que os casos de iatrogenia não estejam incluídos nas hipóteses de responsabilidade civil por se entender que o evento danoso está dissociado da conduta principal, rompendo-se o nexo de causalidade. Não haveria dano a ser indenizado diante da ausência de relação causal entre conduta e dano. Entende-se que a iatrogenia, na modalidade distinta do erro médico, seria o infortúnio que se amoldaria às hipóteses de caso fortuito ou força maior. Nesse caso, não incidiria qualquer responsabilidade jurídica-penal ou civil.

Sob essa perspectiva credita-se razoável apresentar os eventos adversos como hipóteses excludentes de responsabilidade jurídica. Indaga-se: a iatrogenia sempre estaria imune às responsabilidades civil e penal no direito brasileiro?

2. Prevenção nos eventos adversos

Em qualquer conduta profissional a prevenção dos danos não é medida coadjuvante ou facultativa. Com maior rigor, é exigível a prevenção de danos nas condutas profissionais que giram em torno dos maiores bens jurídicos: a vida e saúde humana.

Nessa quadra, antes de serem analisadas as múltiplas causas adversas a um tratamento de saúde - iatrogenia - há de serem analisadas as condutas preventivas exigíveis do profissional da saúde, ou a cargo da administração hospitalar, antes da ocorrência do evento propriamente dito.

A título exemplificativo, citem-se os testes de alergia imprescindíveis antes de serem ministrados medicamentos potencialmente capazes de produzir danos indesejáveis, a exemplo da anestesia, do contraste com iodo e da utilização de penicilina.

Além dessas hipóteses, citem-se também as transfusões de sangue, cujos procedimentos preparatórios de compatibilidade prévia devem ser observados, a exemplo das cautelas relacionadas à compatibilidade sanguínea, conservação e permanente acompanhamento da equipe médica.

No Brasil, as condutas preventivas consistentes nos testes de alergia, como medidas antecedentes à realização de exames ou à administração de medicamentos, não ocorrem com frequência nos hospitais públicos e privados, transferindo-se a responsabilidade da autodeclaração do paciente como prova inequívoca à exclusão de qualquer responsabilidade médica e hospitalar pelo evento adverso.

3. Responsabilidade civil - prevenção, comissão e omissão

A responsabilidade civil no Brasil incide, na grande maioria dos casos, nas formas omissiva ou comissiva. Assim, as condutas profissionais exigidas, na forma positiva (comissão) ou na forma negativa (omissão) são passíveis de produzirem danos, configurando a responsabilidade civil se comprovado o nexo causal entre a conduta e o dano.

O Código Civil não previu, expressamente, a modalidade preventiva para a caracterização de responsabilidade civil. No Anteprojeto para revisão e atualização do Código Civil - lei 10.406, de 10/1/2002 -, no entanto, há previsão expressa da modalidade preventiva como forma de se impor responsabilidade civil, segundo art. 927, parágrafo 3º - verbis: "Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados."

No Código Civil em vigor, art. 927 - "Aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.", não contemplando, nem afastando, expressamente, a responsabilidade civil preventiva.

Apesar do quadro normativo suso citado, em matéria de tratamento da saúde vige a teoria da perda de uma chance momento em que todas as condutas profissionais se inserem, como regra, nas obrigações de meio em que o resultado é sopesado diante de todo atuar dos profissionais de saúde.

Em sendo assim, ainda que não exista previsão expressa da responsabilidade preventiva no Código Civil em vigor, a teoria da perda de uma chance se aplica em todas as questões relacionadas aos cuidados com a saúde humana, motivo pelo qual as condutas preventivas, ainda que acessórias, são cogentes e passíveis de responsabilidade civil autônoma.

4. Standards - padrões de condutas recomendadas e adotados internacionalmente

Nos múltiplos procedimentos médico-hospitalares existem evidências e são colacionados standards recomendados, em grande parte, pela OMS - Organização Mundial da Saúde.

Os testes cutâneos - prick test ou skin prick test - são recomendados e não são invasivos, uma vez que pequenas quantidades de alérgenos são aplicadas na pele do paciente para, após certo período de tempo, serem observadas reação urticária ou inchaço no local da aplicação; os testes intradérmicos; os testes de patch, que correspondem aos testes de contato; os testes de raspagem; os testes de exposição oral, além dos testes de provocação, quando o paciente é exposto a quantidade pequena, e supervisionada, do alérgeno.

Os testes realizados de forma prévia à constatação de possíveis alergias não excluem à realização de exames laboratoriais, principalmente o exame de sangue que tem o condão de constatar alergia à substância ou medicamento inerente ao tratamento principal.

Os testes, ou exames prévios, ao procedimento-base são considerados imprescindíveis porque implementam maior segurança ao paciente, protagonista da relação médico-paciente.

5. O vácuo normativo brasileiro na iatrogenia

Não há previsão normativa expressa para os casos de iatrogenia e os danos provenientes à sua configuração no direito brasileiro.

A adversidade do evento, ou sua ocorrência em grau de menor intensidade pode ser previsível, se realizados todos os standards exigíveis e esperados dos profissionais de saúde. Cabe a administração hospitalar prover dos recursos necessários à realização de testes prévios, sob pena de ser configurada a responsabilidade civil solidária.

A forma preventiva nas condutas relacionadas à saúde humana é de crucial importância, podendo configurar omissão, ainda que não se refira ao fato principal, para a tipificação de condutas culposas, já que o tipo culposo é aberto para que sejam provadas a negligência, imperícia ou imprudência na conduta esperada para o dever de cuidado.

6. Os litígios judiciais e a jurisprudência em torno da Iatrogenia

A iatrogenia na modalidade de erro médico é factivelmente mais frequente no cômputo dos litígios judiciais brasileiros quando comparada a iatrogenia aplicável às demais hipóteses.

A iatrogenia dissociada dos erros médicos, caracterizada por eventos adversos, previsíveis e indesejados, deve ser analisada de forma pormenorizada e por etapas, já que se trata de evento complexo. Dessa forma, a fase que antecede à ocorrência do evento imprevisto pode estar associada a comportamento reprovável, nas modalidades dolosa ou culposa, na adoção de conduta prévia à realização do ato principal.

Em sendo assim, a iatrogenia pode ser passível de responsabilidade civil em todas as suas formas, se produzido resultado danoso, já que se não presente o erro médico, pode ser configurada a ausência de medidas preventivas à realização do exame, tratamento ou administração do medicamento prescrito no tratamento da saúde humana.

Na temática relacionada às alergias, apesar da praxe médica indicar o que o histórico do paciente - anamnese - se apresente suficiente à indicação, ou não indicação de alergias, a autodeclaração do paciente não deve ostentar o tratamento jurídico hoje aplicado, uma vez que os processos alérgicos são absolutamente mutantes e involuntários. Assim, por mais que o paciente indique quando e como foi portador de alergias, a conduta do profissional da saúde deve ser a de proceder, de forma prévia, aos múltiplos testes alérgenos.

A autodeclaração, portanto, não tem o condão de excluir a responsabilidade civil por culpa exclusiva da vítima, já que se trata de tema relacionado à ciência impassível de ser por ele exigível. A regra deve ser, portanto, a realização de testes de alergia antes da realização do exame de ressonância magnética, no caso de contrastes com iodo, assim como na administração de medicamentos e vacinas que possuam efeito alérgico cientificamente comprovado.

Embora não se trate de circunstância comum, é possível que o paciente se recuse a realizar os testes prévios para constatar alergias antes da realização de exames ou administração de medicamentos e vacinas. Nesse caso, sempre será facultado ao profissional da saúde a interrupção por objeção de consciência, indicando-se outro profissional para dar continuidade ao procedimento médico.

Quanto à recusa do paciente ao cuidado adicional no tratamento de sua saúde, tratando-se de paciente maior e cognitivamente capaz, entende-se que a assunção do risco não possa ser obstáculo à realização do exame, administração do medicamento ou vacina. Trata-se de entendimento analógico ao já emanado pelo STF, com repercussão geral, na admissão prévia das cirurgias sem transfusão de sangue aos pacientes da religião testemunha de Jeová.

Ad argumentatum, até se pondera até que ponto o fato principal de fato aconteceria se tomadas as medidas preventivas necessárias à prática do ato: o choque anafilático aconteceria se os testes de alergia àquela espécie de anestesia fossem realizados? O óbito aconteceria se realizado o teste de alergia ao uso do contraste com iodo para a realização do exame com ressonância magnética? O choque hemolítico transfusional aconteceria na transfusão de sangue se realizados, preventivamente, os testes alérgenos antes da inserção do sangue humano à pessoa transfundida?

7. Considerações finais

A iatrogenia não pode se apresentar como um salvo conduto para condutas temerárias que produzem riscos e danos à saúde humana. Ainda que o evento adverso à saúde do paciente seja indesejado, é previsível na maioria das evidências clínicas. As condutas preventivas não seguem à mesma natureza do fato principal e a ausência das cautelas preventivas são aptas a gerar dano autônomo.

O tratamento da saúde humana está afeto à ciência universal, motivo pelo qual as melhores técnicas e standarts comportamentais devem ser observados em território brasileiro, sob pena de configuração da responsabilidade jurídica, penal e civil, como forma de alinhar as condutas dos profissionais da saúde e da administração hospitalar.    

Os alegados altos custos hospitalares inerentes à prevenção de eventos adversos para a realização de testes de alergia, ou testes para identificar o antibiótico mais eficaz, não se constitui em argumento plausível pela natureza do bem tutelado - vida e saúde humanas -, assim como por todas as consequências advindas com o agravamento da saúde do paciente e novas hospitalizações, além do impacto previdenciário decorrente dos óbitos.

Não são aceitáveis as taxas alarmantes de mortes por iatrogenia, em qualquer de suas modalidades, no momento em que se discutem as inúmeras funcionalidades da inteligência artificial e na implementação de medidas preventivas a danos, aptos a salvarem milhares de vidas humanas.

São também inaceitáveis os obituários lacônicos no registro dos eventos adversos em matéria de saúde dificultando o ajuizamento das ações de responsabilidade jurídica. Expressões lacônicas a exemplo de "falência múltipla de órgãos" ou "complicações cirúrgicas" em muitos casos oculta, em verdade, casos de iatrogenia, ora por erro médico, ora por ausência de testes prévios, autônomos e necessários ao procedimento principal com foco na segurança do paciente.

A edição do Estatuto do Paciente, lei nacional que deve prever direitos, deveres e prerrogativas do paciente, é urgente no Brasil. Os dissídios em matéria de saúde se multiplicam em franco abalo social à relação médico-paciente. Maiores garantias em prol do paciente, parte vulnerável nos contratos de saúde humana, principalmente no que tange aos riscos da iatrogenia, e as formas possíveis de evitar sua ocorrência devem ser implementados.

A transparência de dados e sistema rígido de controle com a utilização dos mecanismos digitais é urgente para a melhoria da prestação de saúde, pública e privada, em território brasileiro como forma de que sejam reduzidos os casos de iatrogenia.

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