A prova possível na judicialização de medicamentos não incorporados para doenças raras: Interpretação sistêmica das súmulas vinculantes 60 e 61
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Atualizado em 4 de julho de 2025 12:35
O portador de doença rara, enquanto usuário do SUS, é titular de direitos expressamente garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), notadamente o direito universal e igualitário ao acesso à saúde (art. 196, CRFB/1988).
Essa condição, por si só, deveria assegurar o atendimento integral de suas necessidades clínicas pela rede pública, nos moldes dos princípios da integralidade, equidade e universalidade que regem o SUS (art. 7, I, II e IV da lei 8.080/1990).
Na prática, contudo, os pacientes acometidos por enfermidades de baixa prevalência enfrentam um cenário de desassistência e invisibilidade. Faltam protocolos clínicos específicos, há escassez de medicamentos incorporados e, não raramente, a omissão estatal perpetua a exclusão desses indivíduos do cuidado público efetivo.
Ao contrário do que ocorre com doenças mais prevalentes, muitas delas contempladas por diretrizes terapêuticas padronizadas, o indivíduo com doença rara frequentemente encontra obstáculos regulatórios, científicos e logísticos que dificultam ou inviabilizam o acesso ao tratamento adequado.
Reconhecendo essas especificidades clínicas e os desafios assistenciais próprios das doenças raras, o Ministério da Saúde instituiu, por meio da portaria GM/MS 199/14 (atualmente incorporada à portaria de consolidação 2/17, em seu anexo XXXVIII), a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Para os fins dessa política pública (art. 3º do anexo XXXVIII da portaria de consolidação 2/17): "considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 a cada 2.000 habitantes.".
Trata-se, portanto, de um grupo populacional estatisticamente reduzido, o que impacta diretamente na priorização e no desenvolvimento de terapias específicas.
Mais delicados ainda são os casos de doenças ultrarraras, cuja prevalência é igual ou inferior a 1 caso para cada 50 mil habitantes, conforme previsto no art. 2º da resolução 563/17 do Conselho Nacional de Saúde.
Essa baixa prevalência, aliada à complexidade clínica, contribui para a ausência de protocolos e a não incorporação de medicamentos ao SUS. Por essa razão, frequentemente o acesso ao tratamento é negado, restando ao paciente buscar o Judiciário para garantir o fármaco prescrito.
Nesse contexto, reconhecendo as peculiaridades que envolvem os portadores de doenças raras e ultrarraras, o STF, ao julgar o RE 657.718/MG (Tema 500 da repercussão geral), estabeleceu critérios específicos para a concessão judicial de medicamentos sem registro sanitário na Anvisa.
A tese firmada ao estabelecer critérios excepcionais para a concessão judicial de medicamentos sem registro na Anvisa, em seu item 3, "I", excepcionou expressamente os casos de doenças raras e ultrarraras, afastando a exigência de pedido de registro no Brasil, reconhecendo a inviabilidade regulatória em razão da baixa prevalência e do desinteresse comercial.
Neste sentido, o voto vista do ministro Alexandre de Moraes, proferido no julgamento do Tema 500 (RE 657.718/MG), no qual reconhece expressamente a excepcionalidade das doenças raras (p. 15):
Então, há essa problemática da dificuldade de análise dos medicamentos órfãos até por parte da Anvisa, uma vez que não pedido o registro, também ela não tem obrigatoriedade de analisar. São aqueles medicamentos destinados a doenças que atingem até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas a cada dois mil indivíduos, nos termos do art. 3º da portaria 199, de 1914, que definiu, no Brasil, com parâmetros mundiais, obviamente, o que é doença rara e semi rara. É crucial, obviamente, que, nesses casos, haja um procedimento de análise para verificação da disponibilidade desses medicamentos.
Na mesma linha, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vista (p. 21), reforça a necessidade de flexibilização excepcional para medicamentos órfãos, nos seguintes termos:
A única exceção em relação a esse requisito seria o caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, para os quais não houve solicitação de registro, em razão da falta de viabilidade econômica. Nesses casos, a parte deverá demonstrar que (i) a doença é rara conforme os critérios da RDC - Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa 205/17 (enfermidade que atinge até 65 pessoas em cada 100 mil) e (ii) não há protocolo clínico específico do Ministério da Saúde para o tratamento da doença.
Inclusive, a súmula vinculante 60 (SV 60), resultado da sistematização do Tema 1.234, ao tratar em sua diretriz II sobre a "definição de medicamentos não incorporados", recepciona expressamente o entendimento fixado no Tema 500 do STF, determinando sua aplicação aos casos de fármacos não incorporados em razão da ausência de registro sanitário na Anvisa (item 2.1.1 da SV 60).
Quanto aos fármacos com registro na Anvisa, mas ainda não incorporados ao SUS, seja por ausência de solicitação, mora na análise pela Conitec e/ou inexistência de portaria específica do Ministério da Saúde, impõe-se especial cautela interpretativa, a fim de que não se estabeleçam limitações injustificadas ao acesso de pacientes com doenças raras aos tratamentos prescritos.
Nesse cenário, a SV 60, em sua Diretriz IV, trata da "Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamentos pelo SUS", enquanto a súmula vinculante 61 (SV 61), decorrente do Tema 6, estabelece critérios cumulativos para a concessão excepcional de medicamentos não incorporados, desde que possuam registro sanitário na Anvisa.
Dentre as condições, destaca-se, por sua rigidez, a imposição ao demandante de demonstrar, mediante evidências científicas de alto nível, a segurança e a eficácia do fármaco, conforme a Medicina Baseada em Evidências, bem como a ausência de substituto terapêutico na rede pública para a condição clínica (itens 4.3 e 4.4 da SV 60 e item 2, "d" da SV 61).
Isso porque a exigência de evidências de alto nível, quando aplicada a pacientes com doenças raras e ultrarraras, pode inviabilizar o acesso ao tratamento, resultando em completa desassistência clínica, limitada, quando muito, a cuidados paliativos.
Para fins de compreensão quanto à qualificação das evidências científicas - especialmente no que se refere ao denominado alto nível - destaca-se, como referência metodológica o sistema GRADE - Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation, mencionada nas diretrizes metodológicas disponibilizadas pela própria Conitec em seu sítio oficial.1
O sistema GRADE, classifica a qualidade da evidência científica, especialmente no tocante à segurança e eficácia na utilização de um fármaco, em quatro níveis: muito baixo, baixo, moderado e alto, conforme (Brasil, 2014, p. 19):
No sistema GRADE, a avaliação da qualidade da evidência é realizada para cada desfecho analisando para uma dada tecnologia, utilizando o conjunto disponível de evidência. No GRADE, a qualidade da evidência é classificada em quatro níveis: alto, moderado, baixo, muito baixo, [...].
Essa graduação representa diferentes níveis de confiabilidade, variando desde evidências menos estruturadas até estudos metodologicamente robustos, sendo o grau de qualidade determinado pelas características técnicas, metodológicas e resultados de cada estudo.
No sistema GRADE, o que justifica a progressão do nível de evidência não é apenas a constatação de eficácia em casos pontuais, mas sim a reprodutibilidade sistemática de resultados, com análise estatística robusta e metodologia científica rigorosa (BRASIL, 2014, p. 23).
Portanto, não há como se alcançar o patamar de "alto nível" com base em dados isolados ou experiências clínicas individuais. A exigência por ensaios randomizados de larga escala reflete justamente essa necessidade de uniformidade, controle de variáveis e validação estatística dos resultados obtidos.
Isto é, o "alto nível" de evidência, pressupõe a existência de ensaios clínicos randomizados,2 revisões sistemáticas3 ou meta-análises4 que atestam a consistência dos resultados. Em contrapartida, o "nível muito baixo" corresponde a construções empíricas5 e observacionais,6 baseadas na experiência clínica do profissional médico para sustentar a indicação de determinado fármaco.
Trata-se de critério técnico justificável em cenários de ampla base populacional, mas inaplicável a doenças raras e ultrarraras, cuja baixa prevalência inviabiliza estudos amplos e atualizados.
Exigir, nesses casos, evidências de alto nível como condição para concessão do tratamento equivale a negar, na prática, o próprio direito à saúde, impondo ao paciente um ônus probatório desproporcional. Tal exigência compromete a efetividade da tutela jurisdicional e enfraquece a proteção constitucional garantida pelos arts. 6º e 196 da CRFB/1988.
Diante disso, a interpretação sistemática, assegura a coerência do ordenamento jurídico e preserva a integridade dos preceitos constitucionais, como o direito à saúde (art. 196, da CRFB/1988), o acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB/1988) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/1988). Conforme leciona Barroso (2003, p. 136):
A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.
Conforme expressamente consignado no ponto 4 da ementa do RE 566.471/RN (Tema 6 do STF): "a análise conjunta do presente Tema 6 e do Tema 1.234 é, assim, fundamental para evitar soluções divergentes sobre matérias correlatas".
Sob essa ótica, a SV 61 deve ser interpretada em conjunto com a SV 60, que incorpora expressamente o Tema 500 do STF, o qual admite a flexibilização probatória para medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras.
Não se pode admitir, portanto, que as súmulas vinculantes 60 e 61 sejam interpretadas de forma isolada, a ponto de estabelecer um ônus probatório intransponível que, na prática, inviabiliza o acesso à saúde, especialmente para pacientes acometidos por doenças de baixa prevalência (raras e ultrarraras).
Esse resultado interpretativo comprometeria não apenas a efetividade da jurisdição constitucional, como também anularia, por via oblíqua, os comandos da própria Constituição Federal.
Deste modo, é imperioso reconhecer que, nos casos de doenças raras e ultrarraras, mesmo quando se trate de medicamentos com registro sanitário vigente na Anvisa, a carga probatória exigida não pode ser superior àquela delineada para medicamentos sem registro, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade e tão logo da vedação do excesso (art. 5º, § 2º da CRFB/1988).
Noutras palavras, de modo lógico e coerente, não se justifica exigir grau de prova mais rígido em favor de pacientes que buscam medicamentos registrados, ainda que não incorporados ao SUS, do que se exige nos casos excepcionais de ausência de registro na Anvisa, quando se está diante de fármaco essencial ao tratamento de condição clínica rara.
Portanto, a aplicação cega e descontextualizada da exigência de Medicina Baseada em Evidências, em seu alto nível, sem considerar os limites epistêmicos das doenças raras e ultrarraras, converte-se em injustiça manifesta, pois torna inócuo o direito ao tratamento e, consequentemente, o próprio direito à vida.
Diante disto, é dever do Poder Judiciário, na condição de garantidor dos direitos fundamentais, aplicar os critérios técnicos de forma compatível com os princípios constitucionais, ajustando a exigência probatória à realidade epidemiológica da enfermidade e à viabilidade concreta de produção científica. A interpretação sistemática das súmulas vinculantes 60 e 61, em consonância com o Tema 500 do STF, convergem nesse sentido.
1 Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/avaliacao-de-tecnologias-em-saude/diretrizes-metodologicas. Acesso em: 7 jun. 2025.
2 Ensaios clínicos randomizados são estudos que alocam os participantes de forma aleatória entre grupos de controle e experimental, com o objetivo de comparar efeitos terapêuticos de maneira imparcial. A randomização busca equilibrar características entre os grupos e a ocultação da alocação evita viés de seleção, garantindo maior validade aos resultados do estudo - Disponível aqui. Acesso em: 19/6/25.
3 A Revisão Sistemática (Brasil, 2012, p.13): é um sumário de evidências provenientes de estudos primários conduzidos para responder uma questão específica de pesquisa. Utiliza um processo de revisão de literatura abrangente, imparcial e reprodutível, que localiza, avalia e sintetiza o conjunto de evidências dos estudos científicos para obter uma visão geral e confiável da estimativa do efeito da intervenção.
4 A meta-análise (Brasil, 2012, p. 13): é uma análise estatística que combina os resultados de dois ou mais estudos independentes, gerando uma única estimativa de efeito. A metanálise estima com mais poder e precisão o "verdadeiro" tamanho do efeito da intervenção, muitas vezes não demonstrado em estudos únicos, com metodologia inadequada e tamanho de amostra insuficiente.
5 As construções empíricas se referem ao conhecimento clínico baseado na prática médica cotidiana, sustentado por observações individuais, experiência profissional e relatos de caso, sem método científico rigoroso. São classificadas como estudos observacionais descritivos e, conforme diretriz do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014, p. 20): "opiniões de especialista não é caracterizada formalmente como evidência, devendo buscar preferencialmente outras fontes de informação, como por exemplo estudos observacionais não comparados (série e relatos de casos)".
6 Os estudos observacionais analíticos apresentam delineamento metodológico estruturado, com análise comparativa entre grupos. Destacam-se: (i) o estudo de coorte, que acompanha indivíduos expostos e não expostos ao longo do tempo a determinada condição; e (ii) o estudo caso-controle, que compara indivíduos com e sem determinada condição.
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BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. Ed. São Paulo: S araiva, 2003.
BRASIL. Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução n. 563 de 10 de novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 4/6/25.
BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 27/9/24.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: sistema GRADE - manual de graduação da qualidade da evidência e força de recomendação para tomada de decisão em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27/9/24.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 61. A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24/12/24.