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Consentimento esclarecido na era digital: Duas faces de um mesmo desafio

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Atualizado em 5 de setembro de 2025 09:18

Na era digital, ocultar o uso da IA em decisões médicas pode invalidar o consentimento?

O consentimento esclarecido (ou consentimento informado, consentimento consciente, entre outras denominações), entendido como o "reconhecimento da autonomia do paciente em se submeter ou não a técnicas médicas de pesquisa, prevenção, diagnóstico e tratamento, respeitados suas crenças e valores morais", trata-se de "decisão livre, voluntária, refletida, autônoma, não-induzida, tomada após um processo informativo e deliberativo sobre o procedimento ou procedimentos biomédicos a serem adotados nos termos informados" (Schaefer, 2012) e ganha contornos inéditos na era digital. 

O tema pode ser analisado por ao menos dois novos prismas complementares. De um lado, o uso das tecnologias como meio de colher ou aprimorar o processo de consentimento do paciente, aproximando médico e enfermo. De outro, o uso das tecnologias como objeto do consentimento, especialmente quando sistemas de inteligência artificial começam a rotineiramente influenciar diagnósticos e condutas clínicas. E é nesse segundo prisma que se concentra o maior desafio: em que medida o consentimento do paciente é válido quando ele desconhece que a tomada de decisão médica foi moldada, em maior ou menor medida, por sistemas algorítmicos?

O primeiro prisma, que trata do digital como meio de obtenção do consentimento, apresenta desafios, mas também oportunidades relevantes. Assinaturas eletrônicas, registros auditáveis e até soluções como blockchain podem oferecer agilidade e segurança. Contudo, consentir é compreender, e essa compreensão depende de linguagem acessível, de canais de diálogo e da verificação da real capacidade de consentir e, principalmente, de uso de signos e símbolos que possam ser compreendidos pelo usuário. Assim, se o processo se reduzir por exemplo a um clique, corre-se o risco de se perder a substância do processo de consentimento. Nesse ponto, ferramentas de legal design ou design da informação podem contribuir para transformar termos técnicos e burocráticos em informações claras, visuais e interativas, promovendo maior compreensão do seu conteúdo (Bortolini, Garcia, Faleiros Júnior, 2023). 

Deve-se lembrar que em um país marcado pela desigualdade digital e pelo baixo letramento, inclusive em saúde, confiar apenas em interfaces eletrônicas pode acentuar exclusões, deixando de fora justamente os pacientes que mais precisam de informação qualificada. Por isso, o digital pode ser um aliado poderoso na formação e obtenção do consentimento, mas jamais substitui a mediação humana que deve estar no centro da relação médico-paciente.

O segundo prisma de análise, no entanto, projeta o maior desafio dos próximos tempos: o digital como próprio objeto do consentimento, especialmente quando algoritmos e sistemas de inteligência artificial passam a influenciar diagnósticos e condutas clínicas. Ou seja, trata-se de refletir sobre a necessidade de informar ao paciente que a tomada de decisão médica não resulta apenas do julgamento humano, mas foi construída, em maior ou menor grau, com o apoio de sistemas algorítmicos. Já não basta, portanto, o consentimento sobre os riscos, benefícios e alternativas tradicionais. Na era da inteligência artificial, é indispensável revelar que a recomendação médica foi construída, e em que medida, por um algoritmo.

Glenn Cohen (2020), professor da Harvard Law School, sustenta que a validade do consentimento se torna questionável quando o paciente não sabe que a sugestão do médico foi orientada por algoritmos. O autor apresenta o seguinte exemplo: imagine um paciente com câncer de próstata que, após ouvir sobre os riscos e benefícios de uma cirurgia, aceita realizá-la. Se não lhe foi dito que a indicação do procedimento surgiu da análise de um sistema de inteligência artificial, Cohen entende haver vício no consentimento do paciente, que não foi informado sobre as influências algorítmicas na tomada de decisão médica. 

Para reforçar esse ponto, Glenn Cohen (2020) recorre a precedentes da jurisprudência norte-americana sobre outros temas, mas que podem ser aplicados por analogia. Ele lembra, por exemplo, os casos de ghost surgery, quando um paciente consente com a cirurgia a ser realizada por determinado médico, mas outro acaba assumindo o bisturi. A justiça americana entende que o consentimento não foi válido, porque houve omissão de uma informação essencial. Outro exemplo oferecido pelo autor vem dos casos sobre qualificação profissional. Em Johnson v. Kokemoor, o tribunal responsabilizou um cirurgião por não revelar sua inexperiência em um tipo específico de operação, considerando que a falta de informação comprometeu a autonomia do paciente. Se ocultar a inexperiência do profissional médico já tem o condão, para a jurisprudência americana, de invalidar o consentimento, seria válido aquele fornecido sem conhecimento de que a decisão clínica foi influenciada por uma inteligência artificial cujos critérios nem sempre são transparentes?

Há ainda os conflitos de interesse não revelados, como no caso Moore v. Regents of California, em que o médico ocultou que pretendia lucrar com células extraídas do paciente, e a Suprema Corte da California reconheceu a violação do dever de informar (Cohen, 2020). Assim, se interesses econômicos ocultos são suficientes para macular o consentimento do paciente, não seria igualmente grave deixar de informar a ele que determinada ferramenta de inteligência artificial está sendo usada por razões de custos, conveniência ou pesquisa, e não apenas por critérios clínicos?

Esses exemplos demonstram que, embora ainda não haja norma expressa sobre o emprego da inteligência artificial na medicina, a lógica do entendimento dos tribunais converge para uma mesma conclusão: ocultar elementos decisivos da prática clínica pode invalidar o consentimento, de maneira que, a depender da ótica com que se analise a questão, a omissão sobre o papel dos algoritmos em um determinado caso pode não ser um mero detalhe, mas configurar verdadeira quebra do dever de informação.

Esses dilemas se tornam ainda mais críticos quando lembramos que a inteligência artificial carrega inúmeros riscos já identificados pela doutrina. Além da opacidade da chamada caixa-preta dos algoritmos, também é preocupante a questão dos vieses algorítmicos. Diferentemente do erro técnico ocasional, os vieses decorrem da própria forma como os sistemas são treinados, por exemplo com dados incompletos, insuficientes, geograficamente deslocados ou carregados de preconceitos que acabam sendo replicados e amplificados pelo sistema. Isso significa que a decisão clínica orientada por inteligência artificial pode ser não apenas opaca, mas também estruturalmente tendenciosa. Pesquisas já apontaram, por exemplo, algoritmos de triagem que subestimam a gravidade de pacientes negros em relação a pacientes brancos, ou sistemas que interpretam sintomas femininos com menor acurácia por terem sido treinados majoritariamente com dados de homens (Bortolini, 2024).

Nessas situações, ocultar do paciente que a indicação terapêutica foi moldada por uma inteligência artificial não apenas retira informação essencial, mas também o priva da possibilidade de avaliar se aceita correr os riscos de uma decisão enviesada. 

Assim, a omissão quanto ao uso de algoritmos pode colocar em xeque a validade do consentimento informado. O CC, em seu art. 15, consagra a necessidade de consentimento expresso para intervenções médicas, e o Código de Ética Médica exige que o paciente seja informado sobre diagnóstico, riscos, benefícios e alternativas de tratamento. Se uma decisão é orientada por inteligência artificial, esse dado se torna parte integrante da informação necessária para que a escolha seja livre e consciente. Ocultar tal elemento significa oferecer um quadro incompleto, o que fragiliza a autonomia do paciente e pode gerar responsabilidade para o médico.

O consentimento não é uma mera autorização, mas integra o direito fundamental à autodeterminação do paciente, conferindo legitimidade ao ato médico. Mais do que formalidade, ele se apoia em princípios como veracidade, confidencialidade, fidelidade e transparência, que funcionam como cláusulas gerais da relação médico-paciente (Schaefer, 2012). Na era digital, deve-se questionar se o paciente deve saber não apenas o que lhe será feito, mas também como a decisão médica foi construída, inclusive se contou com a participação ou foi majoritariamente influenciada por um algoritmo. 

O futuro da saúde digital, portanto, não será marcado apenas por termos eletrônicos ou novas plataformas de coleta de consentimento. O verdadeiro ponto de inflexão será garantir transparência sobre o papel da inteligência artificial e de outras tecnologias no processo decisório médico.

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1 BORTOLINI, Vanessa Schmidt; GARCIA, Alexandre de Souza; FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. Legal Design como instrumento para redução da assimetria informacional na relação médico-paciente. In: Tecnologias disruptivas, direito e proteção de dados, 2023, Franca - SP. GIOLO JÚNIOR, Cildo; GOMES, Fávio Cantizani; OLIVEIRA, Maria Cláudia Santana de (Org.). Anais do I Congresso Internacional de Direito, Políticas Públicas, Tecnologia e Internet [recurso eletrônico]. Franca: Faculdade de Direito de Franca, 2023. v. 9. p. 96-103.

2 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024.

3 COHEN, I. Glenn. Informed Consent and Medical Artificial Intelligence: What to Tell the Patient?. The Georgetown Law Journal, v. 108, p. 1425-1467, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 1 ago. 2025.

4 SCHAEFER, Fernanda. A nova concepção do consentimento esclarecido. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 1 (2012), nº 10.