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A reforma do Código Civil e o critério de filiação na gestação de substituição

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Atualizado às 14:17

A gestação de substituição, como o próprio nome sugere, é um fenômeno reprodutivo caracterizado pela "procriação para outrem"1. Com os avanços da Medicina Reprodutiva e o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida (RHA), como a conhecida fertilização in vitro (FIV), esses arranjos tornaram-se consideravelmente mais complexos, dada a multiplicidade de possíveis participantes no processo reprodutivo.

Costumo citar, por seu valor ilustrativo, o caso Buzzanca v. Buzzanca2, julgado nos EUA: a aplicação da FIV permitiu um cenário em que o embrião foi formado a partir de gametas de doadores, fertilizado em laboratório e implantado em uma gestante de substituição, que daria à luz a uma criança destinada a beneficiar terceiros. Se a reprodução humana costuma ser vista como um projeto íntimo, restrito ao casal, aqui ela se distribui entre diferentes indivíduos, tornando-se um processo técnico, fragmentado e compartilhado.

É justamente nesta dissociação entre material genético, gestação e intenção parental que emergem os desafios na determinação da filiação.

O título paradoxal proposto pelo jurista português Guilherme de Oliveira, em 1992 - "Mãe há só uma (duas)!"3 - parece provocativo, mas ainda é pouco ambicioso. Talvez pudéssemos dizer "Mãe há só três"4: a mulher que forneceu o material genético, a que gestou a criança e a beneficiária do procedimento.

No caso da paternidade, o alcance do brocardo pater semper incertus est é ainda mais ampliado: pode-se considerar o próprio marido da gestante de substituição, com base na presunção legal de que o pai é o marido da mãe (caso se adote a ideia de que a maternidade decorre necessariamente do parto), o doador de esperma e o beneficiário do procedimento.

Afinal, quem é, de fato, pai e mãe na gestação de substituição?

Na atualidade, embora não exista regulamentação legal específica no Brasil, a gestação de substituição tem sido admitida com fundamento no direito ao livre planejamento familiar, ex vi art. 226, § 7º, da Constituição Federal, regulamentado pela lei 9.263/1996 (conhecida como Lei do Planejamento Familiar), cujo art. 9º assegura o acesso a métodos de concepção cientificamente aceitos5. Complementarmente, a resolução nº 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece diretrizes para a prática médica no âmbito das técnicas de RHA, incluindo a gestação de substituição, e, embora não possua força de lei, essa orientação tem, na prática, determinado a forma como esses procedimentos são realizados no país6. No campo registral, diante da necessidade de afastamento da presunção de maternidade decorrente do parto7, o Provimento nº 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), prevê que o nome da mulher que deu à luz não constará no registro de nascimento, conforme indicado na declaração de nascido vivo, sendo necessária, ainda, a assinatura de um termo de compromisso pela gestante de substituição para esclarecer a filiação (art. 513, § 1º). Assim, apenas os responsáveis pelo projeto parental constarão no registro, mesmo que o material genético provenha de terceiros8.

Observe que, até aqui, o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na ausência de regulamentação legal específica, tem privilegiado o critério volitivo na definição do vínculo jurídico de filiação na gestação substitutiva, em detrimento dos critérios exclusivamente gestacional ou genético. Ou seja, na gestação de substituição, o parto deixa de ser o marco definidor da maternidade9 e, embora a gestante e os demais envolvidos desempenhem papéis fundamentais para viabilizar o nascimento, é a intenção inicial dos pais pretendidos que fundamenta e dá sentido a todo o processo10.

Esse entendimento, aliás, reflete o conteúdo normativo do art. 1.597, inciso V, do atual Código Civil, que presume a paternidade dos filhos "havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido". Trata-se de uma exceção ao princípio do biologismo11, fundamentado na vontade dos intervenientes na constituição do estatuto parental e inerentes responsabilidades.

Aliás, se analisada com a devida atenção, é precisamente na gestação de substituição que a mulher beneficiária pode ser equiparada ao pai que não contribuiu com seu material genético no processo heterólogo: ambos se revelam progenitores sociais12.

Já no contexto do Projeto de revisão e atualização do Código Civil - atualmente tratado no âmbito do PL 4/25 -, percebe-se, igualmente, a valorização do elemento volitivo, atribuindo-se a parentalidade em favor dos beneficiários. Isso se reflete na previsão de que "[a] cessão temporária de útero deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem se atribuirá o vínculo de filiação" (art. 1.629-O), bem como na determinação de que "[o] registro de nascimento da criança nascida em gestação de substituição será levado a efeito em nome dos autores do projeto parental, assim reconhecidos pelo oficial do Registro Civil" (art. 1.629-P).

Pode-se afirmar, assim, que o Projeto do CC atribui a condição de pais, no contexto da gestação de substituição, aos beneficiários - os autores do projeto parental. Ainda que o elemento volitivo possa, eventualmente, entrelaçar-se com o vínculo genético, nos casos em que haja contribuição genética de um ou de ambos os beneficiários, o texto não exige a utilização dos gametas dos respectivos beneficiários.

Ademais, a definição prévia em favor dos beneficiários, configura um critério legal que derroga a regra geral de estabelecimento da filiação prevista no Código Civil, afastando, nesse contexto específico, a atribuição da maternidade à mulher que deu à luz.

Ainda sobre a gestante de substituição, alguns doutrinadores têm manifestado preocupação com a ausência, no Projeto do CC, de um dispositivo que afaste expressamente a possibilidade de arrependimento por parte desta, caso manifeste desejo de permanecer com a criança após o nascimento. Nesse sentido, tem-se sugerido a inclusão de um parágrafo único ao art. 1.629-L - que atualmente dispõe, em seu caput, que "[a] gestação por substituição é permitida para casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica". A proposta doutrinária prevê que esse parágrafo único contenha a seguinte redação: "Não é reconhecido à gestante o direito de arrependimento após o nascimento da criança que foi gerada por esta técnica"13.

Embora se compartilhe do entendimento de que não se deve reconhecer à gestante de substituição uma espécie de "direito ao arrependimento" (assunto desenvolvido na obra sobre gestação de substituição14), e até mesmo se entenda as preocupações daqueles autores, a necessidade de um dispositivo como esse me parece desnecessária, pois trata-se de afirmar o óbvio. Se o próprio legislador, ao disciplinar a gestação de substituição, excepciona a regra geral de filiação para atribuí-la aos beneficiários, é logicamente incompatível que a gestante possa, após o parto, reivindicar a condição de mãe em termos jurídicos. Caso se recuse a entregar a criança após o parto, a resposta já se encontra prevista no ordenamento jurídico: a gestante de substituição estaria sujeita aos mesmos crimes aplicáveis a qualquer pessoa que retire os filhos de seus pais legais, como sonegação de estado de filiação e subtração de incapaz, nos termos dos arts. 243 e 249, do Código Penal15.

De outro lado, relativamente à intervenção dos doadores de gametas no processo reprodutivo, o art. 1.629-K, § 2º, do Projeto, estabelece expressamente que "[n]enhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador".

Por fim, no que se refere ao marido da gestante, o Projeto do CC não reproduz a exigência prevista no item VII/3/f), da resolução n.º 2.320/2022, do CFM, que exige a "aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável". Embora sem força de lei, tal exigência busca, forçando muito a nota, "afastar" a presunção de que o pai é aquele que o casamento indica (art. 1.597, do CC). No entanto, à luz do próprio Projeto do CC, essa exigência não se sustenta, pois não há qualquer incerteza jurídica quanto à definição da filiação: pai e mãe, na gestação de substituição, são apenas os beneficiários. E só.

__________

1 CORTE-REAL, Carlos Pamplona. Os efeitos familiares e sucessórios da procriação medicamente assistida (P.M.A.). ASCENSÃO, José de Oliveira (coord.). In: Estudos de Direito da Bioética. Coimbra: Almedina, 2005, p. 93-112, p. 104.

2 Buzzanca v. Buzzanca, 72 Cal. Rptr. 2d 280 (1998).

3 OLIVEIRA, Guilherme de. Mãe há só uma (duas)! Contrato de gestação. Coimbra: Coimbra Editora.

4 Como provocou ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação Assistida e Direito. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez. Coimbra: Almedina, 1998, p. 645-676, vol. 1, p. 667.

5 SCHETTINI, Beatriz. Vácuo legal em matéria de reprodução humana assistida. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 17-35, p. 22.

6 RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Patrimonialidade na gestação de substituição. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 283-305, p. 283

7 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Compêndio biojurídico sobre reprodução humana assistida. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, pp. 221-222.

8 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de família contemporâneo. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 499.

9 RAPOSO, Vera Lúcia. De mãe para mãe: Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60.

10 HILL, John Lawrence. What does it mean to be a 'parent'? The claims of biology as the basis for parental rights. New York University Law Review, n.º 66, mai. 1991, p. 353-420, p. 415.

11 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003, p. 882.

12 SÁ, Mafalda de. O estabelecimento da filiação na gestação de substituição: à procura de um critério. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 15, n.º 30, 2018, p. 67-89, p. 74.

13 Nomeadamente VALADARES, Amanda de Oliveira; FONSECA, Gabriel Carvalho. A gestante pode mudar de ideia? A (im) possibilidade de reconhecer o arrependimento da gestante de substituição no anteprojeto de reforma do código civil brasileiro. OLIVEIRA, Lucas Costa de; GUIMARÃES, Luíza Resende (orgs.). In: Anais do X Congresso Mineiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Editora Expert. 2024, p. 527-549, p. 543.

14 DE BONE, Leonardo Castro. Gestação de substituição: do fenômeno reprodutivo aos problemas do contrato. Londrina: Thoth, 2025, pp. 135-141.

15 MELO, Diogo Leonardo Machado de. Uma lei federal para reprodução assistida no Brasil? Consultor Jurídico, nov. 2022, n.p.