Plano individual de parto: Autonomia, limites e preparo jurídico do obstetra
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Atualizado em 15 de julho de 2025 11:46
A autonomia da paciente, especialmente no contexto obstétrico, constitui expressão concreta de sua dignidade e dos direitos fundamentais à liberdade, à saúde, à autodeterminação e aos direitos sexuais e reprodutivos, consagrados na Constituição Federal de 1988, em dispositivos infraconstitucionais e em diversas resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina.
No campo da saúde, o exercício dessa autonomia se concretiza por meio de deveres atribuídos ao médico, sobretudo o dever de informação, que pressupõe esclarecimentos precisos, em linguagem acessível e compatível com o nível de compreensão do assistido, permitindo-lhe consentir ou recusar, de forma livre e consciente, os procedimentos propostos.
O Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) reforça aludido dever em diversos dispositivos (arts. 22, 24, 31, 32 e 34), sendo complementado pela resolução CFM 2.232/19, que dispõe expressamente no art. 1º: "a recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão."
Contudo, é importante destacar que a autonomia da paciente, embora garantida pela legislação e reafirmada pela resolução CFM 2.232/19, não possui caráter absoluto, especialmente em contextos de risco iminente de morte.
Além disso, as diretivas expressas pela gestante devem ser analisadas à luz da autonomia técnica do médico, igualmente respaldada por fundamentos legais e deontológicos. Essa relação (entre os limites da vontade da paciente e a atuação profissional adequada) apresenta desafios recorrentes na prática obstétrica, inclusive quando a parturiente apresenta um plano individual de parto com escolhas que podem ser incompatíveis com a segurança assistencial ou com as melhores evidências científicas disponíveis. O PIP - plano individual de parto é um documento que registra previamente os desejos da gestante em relação ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato. É uma diretiva antecipada de vontade, em que a mulher expressa preferências sobre procedimentos, intervenções e condutas que afetarão diretamente seu corpo e sua experiência de parto. Representa um instrumento de proteção à integridade física e psíquica da mulher, funcionando como barreira contra condutas de apropriação ou desrespeito ao seu corpo.
Embora não seja condição para a realização do parto, o PIP é um direito da gestante, expressamente reconhecido por diretrizes do Ministério da Saúde1, recomendação do CFM2 e por algumas legislações estaduais3. Cabe ao médico garantir que a paciente seja esclarecida sobre esse direito, em respeito aos princípios elementares da bioética.
Ainda assim, sua aplicação na prática exige cautela, pois envolve decisões clínicas que impactam diretamente a saúde materno-fetal, impondo-se, em razão disso, equilíbrio ético, técnico e jurídico, sem respostas absolutas ou soluções padronizadas.
Plano de parto: elaboração conjunta, balizas técnico-jurídicas e busca de consenso por meio do diálogo
Conquanto o PIP tenha sido concebido para salvaguardar a autonomia, preferências e protagonismo da gestante, é recomendável que sua elaboração conte com a participação técnica do profissional. A efetividade do documento depende de construção colaborativa, pautada na medicina baseada em evidências e nos limites legais da atuação médica. Compete ao obstetra orientar a paciente de forma clara, realista e juridicamente adequada, esclarecendo riscos, benefícios e inviabilidades clínicas ou normativas de determinadas escolhas.
Por exemplo, caso a gestante manifeste o desejo de submeter-se a um parto domiciliar, compete ao médico esclarecer, de forma respeitosa, que o CFM, apesar de não ter editado resolução com caráter proibitivo, orienta que o parto ocorra em ambiente hospitalar, por ser mais seguro para a mãe e o bebê (recomendação CFM 1/12), em razão de riscos de eventos imprevisíveis, como distócias, sofrimento fetal e necessidade de intervenções emergenciais. A depender da circunscrição do médico, todavia, há resoluções em vigor que vedam a participação médica em partos fora do ambiente hospitalar, como é o caso das resoluções CREMESP 111/2004 e CRM-SC 193/19.
O plano de parto deve ser, via de regra, abraçado pela equipe responsável pela assistência. Quando o documento é apresentado apenas no dia do parto, tendo sido elaborado sem a participação do médico plantonista, cabe a ele receber o documento, avaliá-lo e, sempre que possível, seguir suas diretrizes, sem prejuízo de dialogar com a paciente sobre seu conteúdo, à luz das condições clínicas apresentadas, das possibilidades técnicas da unidade de saúde e das evidências científicas disponíveis.
É recomendável conciliar os desejos da paciente e a conduta assistencial adequada, propondo alternativas tecnicamente viáveis. A título de exemplo, diante da recusa de uma cesariana indicada, pode-se propor uma tentativa de parto instrumental com fórceps, se houver viabilidade clínica. Essa abordagem está em conformidade com o art. 2º, parágrafo único, da resolução CFM 2.232/19, que prevê: "o médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível." O parecer CFM 5/24 também reforça essa diretriz ao tratar do plano individual de parto, orientando que o profissional ofereça opções seguras diante de impasses.
Impasse entre a vontade da paciente e a conduta médica: Deveres do obstetra em contextos críticos
Se a vontade da gestante representar risco grave à sua saúde ou à do feto, sem consenso possível, o médico deve seguir as diretrizes abaixo:
- Em caso de risco iminente de morte, a intervenção médica, a princípio, se impõe como dever legal e ético, mesmo sem consentimento prévio, conforme o art. 11 da resolução CFM 2.232/19 e o art. 146, §3º, I, do Código Penal.
A modo exemplificativo, diante de um quadro de eclâmpsia com convulsões e instabilidade hemodinâmica, é lícito (e obrigatório) propor a antecipação do parto por cesariana, ainda que a paciente tenha registrado preferência pelo parto vaginal em seu plano de parto.
Se a paciente estiver lúcida e em condições de compreender, o diálogo deve ser priorizado, esclarecendo-se os riscos envolvidos e a necessidade da conduta proposta. Nos casos em que não há tempo hábil para o consentimento ou a paciente se encontra inconsciente, o médico deverá realizar intervenção médica imediata, desde que tecnicamente fundamentada, proporcional e registrada no prontuário, para salvaguarda da vida da mãe e/ou do feto.
Cumpre dizer que está em trâmite a ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100 (2ª Vara Cível Federal de São Paulo).
Na referida ação, foi inicialmente concedida tutela de urgência para suspender a eficácia do § 2º do art. 5º da resolução CFM 2.232/20094 (que previa a possibilidade de a recusa terapêutica da gestante ser considerada abuso de direito em relação ao feto) bem como suspender parcialmente os arts. 6º e 10º da mesma norma.
O juízo afastou a prerrogativa conferida ao médico de interpretar livremente o conceito de "abuso de direito" por parte da gestante em relação ao feto, com o objetivo de coibir condutas médicas autoritárias. Ainda assim, reconheceu-se que o risco efetivo à vida ou à saúde da gestante e/ou do feto deverá ser considerado fundamento legítimo para restringir a escolha da paciente.
Convém destacar que a sentença revogou a referida liminar, mas seus efeitos foram restabelecidos por decisão monocrática proferida pelo desembargador Mairan Maia, do TRF da 3ª Região, ao apreciar pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta pelo Ministério Público Federal. O mérito do recurso, até a presente data (30/6/25), permanece pendente de julgamento.
- Na ausência de risco iminente de morte, ou seja, fora do contexto de uma emergência obstétrica, a escolha da paciente não deve ser acolhida quando colidir com a autonomia técnica do médico. Um exemplo é a insistência da gestante em se submeter ao parto normal mesmo diante de herpes genital ativa no momento do parto, prática contraindicada pela literatura médica.
Nessas circunstâncias, o médico deve observar os requisitos previstos no art. 12, parágrafo único, da Resolução CFM 2.232/19, em consonância com o Parecer CFM 2/24:
i) Documentar minuciosamente a conduta indicada, os riscos da recusa e a contraindicação clínica da intervenção pretendida pela paciente;
ii) Formalizar a recusa da paciente por escrito, em vídeo ou áudio, com declaração de ciência dos riscos e assinatura de duas testemunhas, anexando ao prontuário;
iii) Comunicar a direção técnica da instituição para avaliar a substituição do profissional.
Na ausência de outro médico disponível, o obstetra não poderá se afastar, mas também não está obrigado a executar uma intervenção contraindicada, devendo adotar postura expectante e formalizar a recusa da paciente ao tratamento indicado, nos mesmos moldes descritos acima.
Objeção de consciência: quando recusar é legítimo, e quando não é permitido
Nas situações em que a conduta solicitada pela paciente, ainda que lícita e prevista na literatura médica, conflita com valores morais, íntimos ou religiosos do profissional, configurando objeção de consciência, ele poderá se abster de realizá-la, nos termos dos arts. 7º e 8º da Resolução CFM 2.232/19. É o caso, por exemplo, de um obstetra que se nega a realizar laqueadura tubária durante cesariana ou praticar aborto terapêutico, por motivos de foro íntimo. Em tais contextos, o objetor deve:
i) Manifestar sua objeção à paciente, com urbanidade e clareza, colocando-se à disposição para fornecer as informações necessárias à continuidade da assistência por outro profissional;
ii) Registrar no prontuário a sua objeção, sem juízo de valor sobre a decisão da paciente;
iii) Comunicar formalmente à direção técnica da instituição, para que seja providenciada a substituição imediata por outro médico não objetor.
Em caso de urgência, risco de morte ou ausência de outro obstetra, o médico tem o dever de atuar, independentemente de objeções pessoais.
Planos de parto e judicialização: Entre a escolha da parturiente e a responsabilidade médica
O Judiciário tem reconhecido a legitimidade dos planos de parto. Em recente julgado, o TJ/RS confirmou a condenação de hospital por impedir, sem justificativa válida, a presença do pai na sala de parto, desrespeitando o plano previamente apresentado e gerando indenização por dano moral.5
Por outro lado, o cumprimento do PIP pode ser relativizado diante de intercorrências. Foi o que entendeu o juízo da 2ª Vara Cível de Sorocaba/SP, ao julgar improcedente pedido de indenização por suposto desrespeito ao plano de parto.6
A autora alegava ter sido vítima de "violência obstétrica" porque não houve contato pele a pele na primeira hora de vida da bebê, o clampeamento do cordão umbilical foi precoce e porque a doula não pôde acompanhá-la no centro cirúrgico.
Contudo, o perito esclareceu que houve laceração perineal de 3º grau com rompimento de esfíncter anal, o que exigiu correção cirúrgica urgente e inviabilizou a presença do bebê e da doula na sala operatória. Além disso, o clampeamento precoce foi indicado diante da presença de circular cervical justa no bebê, medida necessária para evitar hipóxia.
O juízo concluiu que as condutas adotadas pela equipe médica estavam alinhadas à boa prática obstétrica e respaldadas por evidências científicas.
Assim, o caso ilustra que o disposto no plano de parto pode ceder frente a situações de risco real para mãe e/ou bebê.
Notas finais: O parto como território de escuta, ciência e confiança
Com o fortalecimento da autonomia da gestante, o plano individual de parto passou a exigir do obstetra uma atuação ainda mais consciente, humana e respaldada. A construção de uma assistência segura depende da compatibilização entre os limites da ciência médica e os desejos expressos pela paciente.
Diante de recusas terapêuticas ou exigências inexequíveis, cabe ao médico orientar com paciência, registrar adequadamente e manejar a situação com escuta qualificada, em conformidade com as normas éticas e legais.
O plano de parto, embora valioso, não é absoluto. Pode, inclusive, não ser acolhido diante de riscos concretos à saúde ou à vida. Ainda assim, não se admitem condutas médicas arbitrárias, como submeter a gestante, à força, a procedimentos que rejeita, o que violaria sua dignidade. Nessas situações, o diálogo continua sendo o recurso mais eficaz para conduzir decisões em cenários limítrofes.
Enfim, este artigo buscou oferecer algumas balizas jurídicas à prática obstétrica, sem pretensão de respostas definitivas, até porque nem as resoluções do CFM, tampouco decisões como a proferida na ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100, solucionam plenamente os impasses do parto.
Em todos os casos, o bom senso, uma conversa franca e a precisão técnica devem conduzir as ações médicas. Contar com suporte jurídico especializado é medida estratégica para reduzir riscos e judicializações.
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1 BRASIL. Ministério da Saúde; Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. 51?p. Disponível aqui. Acesso em: 27/6/25.
2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Parecer CFM nº?5/2024. [Parecer sobre Plano Individual de Parto]. Brasília: CFM, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 jun. 2025.
3 SÃO PAULO (Estado). Lei nº 17.431, de 14 de outubro de 2021. Dispõe sobre o direito ao plano de parto e pós-parto imediato no âmbito do Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Poder Executivo, São Paulo, 15 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em 27/6/25
4 Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientese objeção de consciência na relação médico-paciente
5 TJRS. Recurso Inominado n. 5010431-62.2018.8.21.0019, 2ª Turma Recursal da Fazenda Pública, Rel. Daniel Henrique Dummer, j. 19 jun. 2024, publ. 2 jul. 2024.
6 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. 3ª Vara Cível de Sorocaba. Processo n. 1031702-86.2020.8.26.0602. Ação de indenização por danos morais. Sentença da Juíza Alessandra Lopes Santana de Mello. Sorocaba, SP, 20 out. 2023.
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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.232/ 2019. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Parecer CFM nº 5/2024. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.
BRASIL. Justiça Federal. São Paulo. 2ª Vara Cível Federal. Ação Civil Pública nº 5021263-50.2019.4.03.6100. Ministério Público Federal x Conselho Federal de Medicina. Classe: Ação Civil Pública Cível. São Paulo, em tramitação. Acesso em 30/6/25.