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A nova judicialização da saúde: Evidências, regulação e sustentabilidade em debate

terça-feira, 3 de junho de 2025

Atualizado às 07:29

A judicialização da saúde no Brasil, embora consolidada como fenômeno social e jurídico, encontra-se em plena transformação. Historicamente, no setor público, as demandas judiciais concentravam-se no fornecimento de medicamentos ou tratamentos não padronizados pelo SUS, ganhando robustez com os julgamentos do Tema 6 e do Tema 1234 de repercussão geral no STF. Tais precedentes buscaram estabelecer critérios objetivos para o deferimento de pleitos envolvendo o direito à saúde, em especial quando se trata de fármacos de alto custo.

Na saúde suplementar, por sua vez, a judicialização sempre orbitou em torno da extensão das coberturas contratadas, com especial atenção à (in)definição do caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS. Por muito tempo, a questão central era: há ou não obrigação de custeio? Essa dualidade entre os setores, no entanto, começa a se dissolver à medida que os litígios deixam de se restringir ao acesso e passam a enfrentar questões mais técnicas, estruturais e sistêmicas.

Hoje, tanto o Poder Judiciário quanto os órgãos reguladores passam a exigir racionalidade e coerência técnico-científica nas condutas clínicas. A medicina baseada em evidências, anteriormente vista como uma diretriz de boas práticas, assume agora o papel de critério jurídico decisório.

Em 2024, o NatJus - Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário registrou mais de 98.631 notas técnicas, um aumento de 40% em comparação com o ano anterior. O NatJus já contabiliza mais de 286 mil notas técnicas registradas no total, sendo 138.057 produzidas pelo NatJus Nacional e 148.351 pelos núcleos estaduais e do Distrito Federal. O NatJus também emite pareceres, mas a quantidade de pareceres não é mencionada especificamente nos resultados da pesquisa1.

Medicina baseada em evidência é uma abordagem que busca otimizar a prática médica, utilizando a melhor evidência disponível para tomar decisões sobre o cuidado com o paciente. Em vez de confiar apenas na experiência pessoal ou em práticas tradicionais, a MBE busca integrar a pesquisa científica com a experiência clínica e as preferências do paciente. 

O NatJus é um órgão vinculado aos tribunais que fornece pareceres técnicos, com base na medicina baseada em evidências, para auxiliar juízes em decisões envolvendo demandas de saúde - tanto no SUS quanto na saúde suplementar.

As Cortes, por sua vez, começam a ponderar com mais rigor o nexo entre a conduta médica, os protocolos clínicos e os pleitos dos pacientes.

Esse novo paradigma levanta uma série de reflexões: o que é, afinal, uma evidência robusta? Como equilibrar o conhecimento científico com a escuta qualificada do paciente? Como decidir entre o custo-efetividade de uma conduta e o impacto individual de sua negativa?

Não por acaso, o sistema de saúde suplementar registra sinais de tensão. Em 2024, noticiou-se que o número de ações judiciais no setor ultrapassou 300 mil dobrando em relação aos últimos três anos2. O saldo de depósitos judiciais por parte das operadoras chegou a R$ 2,67 bilhões3.

O envelhecimento acelerado da população, com expectativa de 70 milhões de idosos em 2050, e a desaceleração do crescimento populacional prevista para 2041, divulgados pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e ONU - Organização das Nações Unidas, impõem um novo desafio: menos contribuintes jovens para financiar os custos crescentes da longevidade. A ANS tem repensado profundamente seu modelo regulatório, especialmente no que diz respeito à fiscalização do setor de saúde suplementar e à definição de critérios técnicos para incorporação de procedimentos.

Diante desse novo desenho, surgem possibilidades relevantes para mitigar conflitos: a inclusão de novos hospitais na rede credenciada, o aperfeiçoamento dos mecanismos de reembolso, maior implementação da telessaúde e o uso crescente da inteligência artificial na coordenação do cuidado.

Essas medidas, se bem implementadas, podem representar alternativas eficazes à judicialização - ou ao menos, instrumentos de racionalização do conflito.

A judicialização, nesse cenário, é tanto consequência quanto causa: pode ser uma tragédia para a sustentabilidade do sistema ou um remédio para forçar avanços regulatórios. A depender da resposta institucional - e da atuação técnica dos operadores do Direito -, seguirá suprindo lacunas ou se transformará em agente de coerência e aperfeiçoamento.

O profissional jurídico da saúde precisa, portanto, evoluir. Conhecer os fundamentos da medicina baseada em evidências, entender o funcionamento regulatório da ANS, compreender os fluxos operacionais dos hospitais e operadoras, e acompanhar os debates bioéticos contemporâneos deixou de ser um diferencial - tornou-se uma exigência.

A judicialização da saúde não é um fenômeno que será contido por decisões judiciais pontuais. É um processo em curso, que exige respostas estruturais. O Judiciário continuará a atuar enquanto o sistema falhar em antecipar e resolver os conflitos. A escolha está posta: evoluímos juntos - ou seguimos judicializando o desequilíbrio.

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1 REDE NATJUS. Rede NATJUS registra mais de 286 mil Notas Técnicas e se prepara para nova fase com o e-NATJUS 4.0. Disponível aqui.

2 BP MONEY. Número de ações contra planos de saúde cresce. Disponível aqui.

3 ISTOÉ DINHEIRO. Judicialização do setor de saúde chega ao limite no Brasil. Disponível aqui.