Responsabilidade penal por omissão e imprevisibilidade no ambiente médico-hospitalar
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Atualizado em 2 de maio de 2025 06:36
Habitualmente, um indivíduo poderá ser responsabilizado criminalmente quando faz algo que o Direito pediu para não fazer. Contudo, em algumas situações, o Direito irá contrariar essa lógica e exigir que faça algo, ou seja, que não se abstenha, que não permaneça inerte. Nesses casos, então, esse indivíduo poderá ser responsabilizado se e quando deixar de fazer algo que é reivindicado e esperado pelo Direito.
Alguns desses crimes omissivos se perfazem com a simples abstenção do sujeito1. Assim, o resultado danoso, mesmo quando existente, será indiferente para a consumação delitiva. Contudo, à vista da decisão que será aqui estudada, interessará particularmente os crimes omissivos que, por sua vez, vão impor ao indivíduo não apenas um dever de agir, mas, ainda, um agir para evitar um resultado concreto2.
Essa necessidade de se evitar um resultado decorre da relação especial de proteção que existe entre determinadas pessoas e bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Mesmo assim, é salutar compreendermos que se busca(rá) nessas ocasiões uma causalidade jurídica, isto é, uma causalidade não fáctica. Isso porque o indivíduo que se omite responderá não por ter causado exata e diretamente o resultado, mas por não ter evitado sua ocorrência quando deveria (e poderia) tê-lo feito. O não impedimento do resultado, portanto, equivale a dar-lhe causa3.
É o próprio Código Penal, aliás, que estabelece quais são as pessoas que não podem se omitir. Nesse sentido, a alínea "a" do §2º do seu art. 13 dispõe expressamente que o dever de agir incumbirá a quem tiver por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. Trata essa hipótese, então, justamente da relação entre médico e paciente ou, melhor, da obrigação de cuidado, proteção e vigilância que é, sabidamente, assumida por médicos e por outros profissionais da saúde em relação aos seus pacientes.
Por isso, em suma, espera-se que estes indivíduos - médicos, enfermeiros, biomédicos, dentistas, etc. - garantam que nenhum resultado lesivo ocorra em desfavor daqueles que estejam sob seus cuidados, até porque, se esses não obstruírem eventuais processos causais que estejam se desenrolando diante deles, será considerado como se o tivessem causado4. Haverá, daí, responsabilização criminal legítima.
Dito isso, é dizer que, em meados de 2018, o TJ/PR foi instado a decidir se um médico deveria ser considerado responsável pela condução de um parto normal que acabou ocasionando à vítima paralisia cerebral tetraplégica secundária, decorrente de anóxia neonatal grave e, então, condenado pela prática do crime de lesão corporal gravíssima por omissão5.
Nesta ocasião, o Ministério Público sustentou que a parturiente deveria ter sido submetida a uma cesárea por não ter apresentado dilatação pélvica ou do colo uterino. Essa questão, contudo, foi afastada pelo Tribunal, que entendeu que a realização da cesariana não se mostrou uma medida necessária. Logo, não se mostrou um dever do médico. Ainda assim, o debate ganhou outros contornos relevantes.
Foi constatado também que o parto transcorreu normalmente até a fase expulsiva, mas que, a partir daí, a expulsão do feto acabou sendo interrompida por conta de uma intercorrência denominada distócia de ombro6, o que, naturalmente, gerou um novo dever de agir (de cuidado) para o profissional em razão deste (também) novo processo causal. Assim, em vista dessa emergência obstétrica, o médico, com suporte de sua equipe, realizou manobras de McRoberts e de Rubin, que foram surtir efeito somente após decorrido algum tempo. Aliás, constou textualmente na decisão que foi exatamente nesse intervalo que o feto acabou entrando em situação de sofrimento fetal por anóxia com aspiração de líquido amniótico.
Além disso, o parecer técnico do setor médico do CAOP de saúde pública do MPPR, que, inclusive, apoiou o entendimento definitivo do colegiado, registrou que "a falta de material adequado aumentou o tempo de expulsão do feto, piorando o quadro de hipoxemia da criança", que "não havia pediatra de plantão ou tratamento especializado" e, também, que "medidas de precaução, como presença de neonatologista e anestesiologista e controle rigoroso do bem estar fetal, não foram observadas ou sequer existiam no hospital".
Desta maneira, o TJ/PR decidiu que o médico i) agiu de acordo com o que tinha em mãos para realizar o parto da vítima, seguindo as orientações do Ministério da Saúde ao priorizar o parto vaginal, lançou mão de todos os procedimentos médicos a seu alcance para que o ofendido viesse à luz com saúde perfeita e, quando verificada imprevisível intercorrência, empregou igualmente todas as técnicas disponíveis" e, assim, que ii) se mostrou ausente o nexo de causalidade entre a conduta do médico - que se revelou acertada e conforme à técnica médica usual - e o resultado lesivo. Por fim, sinalizou também que iii) o fato de que restaram ao recém-nascido sequelas graves decorreu de infortúnio que resultou em prolongamento do parto, não sendo este decorrente de omissão ou de negligência do réu".
A absolvição do médico, convém já adiantar, mostrou-se uma medida acertada. Isso porque, à vista das circunstâncias tidas por comprovadas, parece evidente o não preenchimento de um pressuposto indispensável deste crime omissivo. Afinal, a omissão somente será penalmente relevante quando o omitente devia e, ainda, podia agir para evitar o resultado. Em outras palavras, neste caso concreto, exigiu-se do médico, sem dúvida, um dever de agir (justificado pela relação médico-paciente), mas, também, um dever de agir vinculado e dependente de um poder agir (justificado pela necessária avaliação da possibilidade física de agir).
Assim, é dizer que a precária estrutura hospitalar, reconhecida no acórdão, impossibilitou física e definitivamente que o médico adotasse qualquer medida que pudesse, naquele momento emergencial, evitar um resultado danoso - que, de fato, ocorreu. Em outros termos, é dizer que o médico deveria, sim, ter agido para evitar o resultado, já que representava a garantia do e para o paciente de que este resultado não aconteceria, mas, por outro lado, não tinha condições materiais para evitá-lo. Por aqui se percebe, então, o porquê este médico não poderia ser responsabilizado criminalmente.
O acórdão, contudo, ofereceu outros elementos para análise quando sinalizou que inexistiu nexo de causalidade entre a conduta deste médico e o resultado e que este decorreu, na verdade, de uma fatalidade. Assim, apesar de o TJ/PR ter fundamentado desta maneira, parece relevante assentar que este nexo se mostrou presente, posto que, por ser esperada uma causalidade jurídica (isto é, não fáctica, como já dito), esta se materializou ao tempo que o médico não conseguiu impedir o resultado lesivo.
Se o médico tem e tinha a obrigação de evitar um dano ao seu paciente, e não o fez porque os recursos por ele utilizados se mostraram inadequados e/ou insuficientes, a impossibilidade física de recorrer aos meios eficazes o afasta tão somente de um dos pressupostos do crime (o poder agir), mas não do nexo de causalidade. Até porque, consta no acórdão, foi justamente o não uso de, por exemplo, fórceps ou de vácuo extrator que acabou prolongando o parto e colocando o feto em situação de sofrimento fetal. Existiu, então, salvo melhor juízo, um nexo de causalidade entre o deixar de adotar medidas eficazes e o resultado. Por outro lado, inexistiu qualquer possibilidade de o médico agir de forma diferente, ou seja, de utilizar os recursos adequados e, então, alterar o resultado do processo causal que se desenvolvia. Inclusive, por ter feito tudo o que poderia fazer, isto é, por ter recorrido ao que se mostrava disponível, não seria possível sequer falar em negligência médica (no caso, o crime de lesão em sua modalidade culposa).
Por último, convém promover um brevíssimo diálogo entre a questão da imprevisibilidade no ambiente médico-hospitalar, também tratada no acórdão, e a responsabilidade penal do médico. Este enfrentamento derradeiro se mostra bastante pertinente porque, ainda que a importação de conceitos de outros ramos do Direito possa se mostrar uma ferramenta proveitosa, sua aplicação em processos criminais não pode deixar de lado o que já foi e o que vem sendo construído pela dogmática e prática penal. Desta maneira, essa concepção, que é natural do Direito Civil, precisa passar aqui por uma nova filtragem, especialmente por tratar de situações de isenção de responsabilidade. Essa abordagem, em síntese, defende que:
Estará o médico isento de ser responsabilizado por aquele tipo de insucesso que, no transcorrer de sua atuação, não pode ser previsto ou que, mesmo previsto, foi inevitável. Todavia, para as intercorrências previstas deve ele utilizar-se de todos os meios específicos sugeridos pelos compêndios médicos, para evitar ou atenuar os efeitos deletérios, caso aquela intercorrência, que já era prevista, venha a se concretizar7.
Assim, faz-se necessário tratar da evitabilidade do resultado, também pressuposto do crime omissivo, que se preocupa em considerar a possibilidade real de a ação do indivíduo, quando praticada, dar conta de impedir o resultado. Em alguns casos, a conduta devida, mesmo se e quando realizada, não tem a força para impedir o resultado danoso, isto é, este aconteceria de qualquer maneira. Nesta hipótese, então, o indivíduo não pode responder criminalmente, justamente porque o resultado se mostrou inevitável.
Daqui é possível inferir e concluir i) que a imprevisibilidade de um evento potencialmente lesivo não excluirá a responsabilidade penal de um médico por omissão. Aliás, dado o avanço da Medicina, é plausível argumentar que são e serão cada vez mais previsíveis as intercorrências hospitalares. De todo modo, cabe também sublinhar que raridade não se confunde com previsibilidade. Então, eventual intercorrência não afastará o dever do profissional da saúde de agir e evitar o resultado danoso. Contudo, as circunstâncias singulares do caso podem, aí sim, impedir o sujeito de obstá-lo, o que, como visto, trará repercussões penais e, ainda, ii) que o uso dos meios sugeridos pela lex artis se mostrará relevante tão somente para afastar a responsabilidade do médico por eventual negligência, isto é, para afastá-lo de algum crime culposo. Isso porque, se o resultado for inevitável, não haverá como constatar a imprescindível relação de não impedimento entre médico e resultado, restando descabida uma condenação por omissão.
Seguimos buscando o refinamento teórico da responsabilidade penal do médico e de outros profissionais da saúde que, como visto, tem recebido muitos holofotes recentemente. Pretende-se, com isso, lançar luz aos problemas que têm decorrido da criminalização crescente das condutas de profissionais da saúde que, ainda, não conseguiu ser acompanhada e amparada por uma teoria propriamente penal.
Por fim, apenas a título de reflexão, "evitar um resultado" e "fazer o possível, dadas as circunstâncias" são condutas (e fins) notada e essencialmente distintas. Os profissionais da saúde servem ao paciente e devem servir a contento. Suas obrigações passam por aí. Assim, eventual resultado lesivo, como o que aconteceu no caso em questão, precisa poder ser justificado excepcionalmente. Desta maneira, o cenário narrado no acórdão, de absoluta e preocupante escassez estrutural do hospital, apesar de justificar a absolvição do acusado, deixou em destaque a responsabilidade de todos aqueles que fazem parte dessa relação de cuidado - hospitais, todos os profissionais que trabalham na saúde e, ainda, o Estado. Todos estes precisam de segurança para trabalhar, e essa parece perpassar pela necessidade primeira de se compreender e fixar a obrigação de cada um.
_______
1 São os chamados crimes omissivos próprios, como, por exemplo, a omissão de socorro (artigo 135, Código Penal) e a apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, Código Penal).
2 Aqui não há tipos específicos e gera-se uma tipicidade por extensão. Exemplo: um policial acompanha a prática de um roubo, deixando de interferir na atividade criminosa, propositadamente, porque a vítima é seu inimigo. Responderá por roubo, na modalidade comissiva por omissão (NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal. 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020, p. 290.
3 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 450.
4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 324.
5 TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0000159-97.2015.8.16.0097 - Ivaiporã - Rel.: Des. Antonio Loyola Vieira - J. 22.11.2018.
6 A distócia de ombro de uma emergência obstétrica em que a cabeça sai parcialmente por conta da impactação do diâmetro biacromial fetal entre o púbis e o promontório sacral maternos.
7 GIOSTRI, Hildegard. Erro Médico à Luz da Jurisprudência Comentada. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 68-69.