Fator R: (Des)vantagem para clínicas médicas sujeitas ao Simples Nacional
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado em 17 de abril de 2025 15:16
Um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro é o da igualdade, previsto ainda no preâmbulo da CF/1988, e positivado no art. 5º, caput, como direito fundamental. Nota-se, com isso, o claro intuito do legislador constituinte de dispor, sobremaneira, acerca do tratamento igualitário dos cidadãos, a não ser que existam razões justificáveis constitucionalmente para o tratamento desigual1.
Exemplo de um tratamento jurídico diferenciado previsto pelo próprio texto constitucional em seus arts. 170, inciso IX, e 179, é o regime tributário do Simples Nacional, regulado, na sequência, por lei complementar própria (LC 123/2006). Trata-se, em síntese, de "[...] regime especial de tributação unificada opcional, diferenciada e favorecida, para pequenas atividades empresariais"2 Regime que surgiu com a finalidade de resguardar a atuação das micro e pequenas empresas no mercado de forma competitiva, sobretudo considerando seu relevante papel na sociedade, geradoras de empregos e fomentadoras da economia. Por essa razão, entende-se como justificada, de forma razoável e proporcional3, a diferenciação estabelecida entre as empresas.
Sistematicamente, tal legislação fixa alíquotas diferentes a depender da atividade desempenhada pelo contribuinte, bem como da receita bruta auferida em 12 meses, organizadas em cinco anexos. No que diz respeito às clínicas médicas, são empresas enquadradas, originariamente, no anexo III da LC 123/2006 (Art. 18, § 5º-B, inciso XIX4), o qual estabelece como alíquota inicial 6%. No entanto, a depender do critério contábil denominado "fator R", o qual considera se as empresas têm ou não folha de salários e, caso tenha, se a relação entre tal folha e sua receita bruta é inferior a 28%, podem ser obrigadas a declarar e recolher seus tributos pelo anexo V, o qual conta com uma alíquota inicial de 15,50%, em razão da exceção prevista no art. 18, § 5º-M, inciso I, da LC 123/2006:
Art. 18. Omissis. § 5o-M. "Quando a relação entre a folha de salários e a receita bruta da microempresa ou da empresa de pequeno porte for inferior a 28% (vinte e oito por cento), serão tributadas na forma do anexo V desta Lei Complementar as atividades previstas: I - nos incisos XVI, XVIII, XIX, XX e XXI do § 5o-B deste artigo; [...]".
Nota-se, portanto, que o legislador estabeleceu um critério de discriminação, o "fator R", para apenas alguns serviços originariamente tributados pelo anexo III, conforme o art. 18, § 5º-B da referida lei, quais sejam, os de fisioterapia (inciso XVI), arquitetura e urbanismo (inciso XVIII), medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem (inciso XIX), odontologia e prótese dentária (inciso XX) e psicologia, psicanálise, terapia ocupacional, acupuntura, podologia, fonoaudiologia, clínicas de nutrição e de vacinação e bancos de leite (inciso XXI). Ou seja, da simples leitura do referido artigo e seus incisos, depreende-se que vários outros serviços não foram submetidos a tal critério diferenciador, como, por exemplo, os de agência de viagem e turismo (inciso III) ou, ainda, de corretagem de seguros (inciso XVII).
Assim, a partir dessa diferenciação, optou a legislação por aumentar a carga tributária de determinadas prestadoras de serviços, onerando umas mais do que outras, sem qualquer justificativa razoável ou proporcional para tanto.
Nesse sentido, não se pode olvidar que a adoção de um discrímen em um sistema como o brasileiro, o qual eleva o princípio da isonomia como máximo da ordem jurídica, só é permitido se houver justificativa racional para essa escolha, bem como se tal critério for compatível com o texto constitucional. É como ensina, aliás, o constitucionalista Celso Antônio Bandeira de MELLO5:
[...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, inconcreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.
In casu, percebe-se que não há quaisquer fundamentos que justifiquem o aumento da carga tributária a partir da incidência de um critério de discriminação, o qual, não é demais ressaltar, leva em conta tão somente se a empresa tem ou não folha de salários. E isto apenas para alguns dos serviços originariamente sujeitos à tributação do anexo III do Simples Nacional, o qual, destaca-se, prevê uma alíquota menor - dentre eles, os prestados por clínicas médicas, sobretudo aquelas menores, que não contam, muitas vezes, com expressivo número de funcionários.
Nesse sentido, a despeito de ser louvável o intuito do legislador de valer-se do parâmetro da folha de pagamento para instituir o "fator R", de modo a beneficiar com uma carga tributária menor as pequenas empresas que tem mais funcionários, não se pode perder de vista que há diversos outros instrumentos legais para promoção do pleno emprego. O Simples Nacional, no entanto, ao menos não diretamente, não é um deles. Isto porque a finalidade constitucional desse tratamento jurídico-tributário diferenciado consiste no incentivo da atividade dos micros e pequenos empresários, diminuindo seus custos para que possam desenvolver-se no mercado. Agora, condicionar a carga tributária de alguns contribuintes beneficiários desse regime a um critério contábil que não corresponde, ao menos diretamente, a sua finalidade, deflagra, a nosso ver, uma ilegalidade. Isto porque, à tal diferenciação, falta a "[...] correlação lógica entre fator de discrímen e a desequiparação procedida"6.
Trata-se, portanto, de tratamento desvantajoso às clínicas médicas, as quais, em que pese sejam legalmente enquadradas no anexo III do Simples Nacional, estão sujeitas a um ônus fiscal bem maior em razão de critério contábil de diferenciação incompatível com a ordem constitucional. Afinal, de acordo com as lições de Robert ALEXY, havendo um conflito entre princípios - o da igualdade e o da legalidade -, aplica-se a lei do sopesamento, da qual conclui-se que, in casu, considerando o papel da isonomia no ordenamento jurídico brasileiro, deverá prevalecer7.
E, uma vez identificada tal inconstitucionalidade, cabe ao aplicador do direito questioná-la perante o Judiciário, de modo a fazer valer a máxima da igualdade, garantindo, assim, a paridade e competitividade entre os empresários beneficiários do regime tributário Simples Nacional.
Referências
ALEXY, Robert. Teoria geral dos direitos fundamentais. Tradução de: Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011
ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3.ed. São Paulo, Malheiros, 2015.
MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo M. Simples Nacional: estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte comentado: LC 123, de 14.12.2006; LC 127, de 14.08.2007. São Paulo: RT, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
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1 "A Constituição, ao estabelecer que os contribuintes devem ser tratados igualmente, a não ser que existam razões para tratá-los diferentemente, instituiu o dever de justificativa do tratamento desigual, não do igual, razão pela qual não são os contribuintes que devem apresentar razões de extrema importância para serem tratados da mesma forma, mas é o ente estatal que deve aduzi-las para tratá-los de forma diferente". Humberto Ávila, Teoria da igualdade tributária, p. 204.
2 James Marins; Marcelo M Bertoldi, Simples Nacional, p. 68.
3 "Proporcional é a medida cuja utilização provoque mais efeitos positivos do que negativos à promoção dos princípios constitucionais. [...] ao ter que restringi-la, o ente estatal está obrigado a escolher aquele meio que promova, na sua inteireza, mais a ordem constitucional do que a restrinja". Humberto Àvila, Teoria da igualdade tributária, p. 168.
4 Art. 18. Omissis. § 5º-B "Sem prejuízo do disposto no § 1º do art. 17 desta Lei Complementar, serão tributadas na forma do Anexo III desta Lei Complementar as seguintes atividades de prestação de serviços: [...] XIX - medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem;
5 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 21-22.
6 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 37.
7 "Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro". Robert Alexy, Teoria geral dos direitos fundamentais, p. 167.