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A tese do aviso especial complementar antes do cancelamento do plano de saúde

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Atualizado às 10:48

No Brasil, muitos cancelamentos de contratos de planos de saúde ocorrem de forma ilegal ou em desacordo com normativas editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS.

Por isso, mesmo em casos de cancelamento por atraso de 60 (sessenta) dias ou mais, no pagamento das mensalidades, é possível reativar o contrato de plano de saúde cancelado pela via judicial.

No tópico a seguir, serão apresentadas as regras sobre cancelamento de plano de saúde aplicadas aos planos individuais/familiares. 

Regras aplicáveis aos planos de saúde individuais/familiares

A lei 9.656/1998, que regulamenta os planos privados de assistência à saúde, estabelece apenas duas hipóteses de cancelamento do contrato de plano de saúde para os planos contratados individualmente (diretamente pela pessoa física/beneficiário com a operadora de saúde).

1. Fraude: conforme art. 13 da lei 9.656/1998, é proibida a suspensão ou cancelamento unilateral do contrato, salvo por fraude (qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com a intenção de prejudicar ou enganar outrem, ou de não cumprir determinado dever) [...];

2. Inadimplência: não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; indicar o artigo. 

A primeira hipótese de cancelamento mencionada na Lei 9.656/1998, a exemplo de empréstimo de carteirinha e fracionamento de recibo, são atos que dão direito à operadora de cancelar o contrato.

A segunda hipótese que permite o cancelamento do contrato de plano de saúde é a inadimplência, ou seja, a ausência de pagamento da mensalidade. Situação também frequente, muitas vezes motivada por crises econômicas que o país enfrenta, dificuldades financeiras particulares ou até mesmo esquecimento por parte do beneficiário do plano de saúde.

A regra de cancelamento por inadimplência mencionada no parágrafo anterior, sofreu alterações por meio da edição da resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023 (editada pela Agência Nacional de Saúde), que entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2025, a qual estabeleceu regras sobre a notificação por inadimplência e nova regra sobre a quantidade de dias de atraso que permite o cancelamento do contrato.

A nova resolução estabelece em seu artigo art. 4º, § 3º que para que haja a exclusão do beneficiário ou a rescisão unilateral do contrato por inadimplência, deve haver, no mínimo, duas mensalidades não pagas, consecutivas ou não.

Apesar dessa alteração, permanece a exigência de notificação prévia até o quinquagésimo dia de atraso, apenas com ampliação dos meios de notificação: 

I - correio eletrônico (e-mail) com certificado digital ou com confirmação de leitura; II - mensagem de texto para telefones celulares via SMS ou via aplicativo de mensagens com criptografia de ponta a ponta; III - ligação telefônica gravada, de forma pessoal ou pelo sistema URA (unidade de resposta audível), com confirmação de dados pelo interlocutor; IV - carta, com aviso de recebimento (AR) dos correios, não sendo necessária a assinatura da pessoa natural a ser notificada; ou preposto da operadora, com comprovante de recebimento assinado pela pessoa natural a ser notificada. A notificação realizada por SMS ou aplicativo de mensagens para celulares prevista no inciso II do caput, somente será válida se o destinatário responder a notificação confirmando a sua ciência. 

Esses novos meios de comunicação são mais adequados, seguros e estão em sintonia com o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor a respeito do dever de informação e direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º da lei 8.078 de 1990, isso porque estabelecem a exigência de confirmação de recebimento da notificação por parte do consumidor beneficiário do plano de saúde.

A nova norma ainda estabelece, em seu artigo 15, que durante a internação de qualquer beneficiário, é proibida, por qualquer motivo, a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato da pessoa natural contratante por iniciativa da operadora ou a exclusão do beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora. 

Do aviso especial obrigatório antes ao cancelamento do plano de saúde

As operadoras de planos de saúde costumam encaminhar notificação prévia antes do cancelamento do contrato de plano de saúde por inadimplência, até o quinquagésimo dia de atraso. Regra que parece ser respeitada por todas as operadoras, salvo algumas exceções.

Apesar disso, pode-se perceber, na prática, que muitas operadoras de planos de saúde permitem vários atrasos no pagamento das mensalidades, alguns deles superando os 60 dias previstos na lei, e não cancelam o contrato, mesmo possuindo esse direito, fato que cria no consumidor a expectativa de que seu plano não será cancelado caso venha a cometer novos atrasos no pagamento da mensalidade.

A seguir, apresenta-se um exemplo para elucidar a hipótese.

  • Imagine que Aparecida contratou um plano de saúde em dezembro de 2019. Após 4 (quatro) meses de vigência do plano de saúde, a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil e instalou-se uma grande crise econômica. Em razão desse fato, bem como diante de dificuldades financeiras, Maria começou a atrasar o pagamento das mensalidades. Entre maio e junho de 2020 ela permaneceu em atraso por 60 dias e pagou as atrasadas com 65 dias de atraso, mas seu plano de saúde não foi cancelado. Em outubro de 2020 ela pagou a mensalidade de agosto já com 70 dias de atraso, mas seu plano não foi cancelado. No mesmo ano ela cometeu mais um atraso semelhante a esses mencionados e, em 2021, ela também cometeu vários atrasos superiores a 60 dias, mas seu plano não foi cancelado. Porém, em março de 2022 ela pagou a mensalidade de janeiro de 2022 com 62 dias de atraso e seu plano de saúde foi cancelado, após aviso prévio. Indignada com a situação, ela notificou a operadora de saúde, mas seu plano não foi reativado. Então, ela demandou perante a Justiça e conseguiu uma decisão judicial liminar que determinou à operadora de saúde que reativasse o contrato cancelado por falta de pagamento.

Apesar dos vários atrasos da consumidora, a atitude da operadora de saúde, de permiti-los e não cancelar o contrato, criou a expectativa de que ela poderia cometer novos atrasos, os quais não implicariam cancelamento do contrato.

A mesma expectativa ocorreria nos casos de atrasos de 2 (duas) mensalidades, conforme a nova regra de cancelamento prevista na resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023.

O cancelamento realizado pela operadora de plano de saúde enquadra-se em um comportamento não aceito pela doutrina e pela jurisprudência, que o princípio do "venire contra factum proprium", que proíbe comportamento contraditório, inesperado, que causa surpresa na outra parte. Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e realizados em períodos diferentes. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo.1

O que se espera evitar com a proibição do venire contra factum proprium é que a parte da relação jurídica contratual adote mais de um padrão de conduta, segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer.2

No exemplo citado, ao permitir que a consumidora cometesse atrasos no pagamento da mensalidade por mais de uma vez, inclusive, atingindo mais de 60 (sessenta) dias de inadimplência e não cancelar o contrato (factum proprium), o que se esperava da operadora era que continuasse a adotar esse padrão de conduta.

De acordo com Guilherme Martins, "a omissão, mesmo que inicialmente lícita, também é capaz de gerar na parte contrária a legítima expectativa de que este não agir persistiria".3

Por isso, a segunda atitude da operadora (segundo comportamento), qual seja, cancelar o contrato após envio do mesmo aviso padrão, é considerada contraditória em relação às anteriores (as atitudes de não cancelar o contrato em atraso, mesmo tendo esse direito). Esses comportamentos de permitir atrasos, não cancelar o contrato e receber novas mensalidades após esses atrasos, é incompatível com a vontade de cancelar o contrato de plano de saúde.

Em razão disso, é indispensável o envio de um "aviso especial de cancelamento de plano de saúde", a ser encaminhado ao beneficiário inadimplente, esclarecendo que os atrasos de 60 dias (ou atrasos de duas mensalidades, conforme nova regra da resolução 593/23), até então permitidos, não mais serão tolerados. Trata-se de um aviso complementar.

O aviso padrão, encaminhado sempre até o quinquagésimo dia de inadimplência, conforme previsto na lei 9.656/1998, perde a sua finalidade quando, após o envio e recebimento, a operadora de saúde não cancela o contrato.

A permissão de atrasos por parte da operadora e a ausência de cancelamento, mesmo após envio da notificação padrão, implica a necessidade de um aviso especial de cancelamento de plano de saúde, para que o beneficiário não seja surpreendido com o cancelamento do contrato.

Esse aviso especial demonstra boa-fé objetiva e lealdade contratual, exigíveis tanto da operadora de plano de saúde quanto do beneficiário do plano de saúde pois, se uma das partes decide "mudar a regra do jogo" no meio da partida, é esperado que, pelo menos, a outra parte seja comunicada antecipadamente.

Se esse aviso especial não for enviado, nascem o dever do plano de saúde e o direito do consumidor de reativação do contrato de plano de saúde cancelado por inadimplência. E, caso não seja reativado, é plenamente justificável e legítima a concessão de uma decisão judicial liminar ou uma sentença de mérito determinando a reativação do contrato.

__________

1 ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 186.

2 PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade civil pré-contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 85

3 MARTINS, Guilherme Magalhães, A supressio e suas implicações. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, out./dez., 2009, p. 151.