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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
As reflexões acerca da responsabilidade civil dos profissionais da saúde, e mais particularmente dos médicos, corriqueiramente giram em torno de se discutir se, em virtude de erro médico - isto é, sobretudo nos casos de desvios de conduta no decorrer de procedimentos cirúrgicos ou mesmo nas hipóteses de mau diagnóstico - caberá determinar que o próprio profissional venha a responder por danos causados aos pacientes e, eventual e reflexamente, aos seus familiares. O propósito deste texto, todavia, será diverso: cumprirá doravante averiguar de que modo os profissionais da saúde poderão ser responsabilizados pela violação à autonomia de seus pacientes. Noutros termos, debater-se-á a possibilidade de imputar responsabilização civil aos médicos que, ainda quando empreendam adequadamente as melhores técnicas disponíveis para preservar a vida e a saúde dos pacientes - isto é, independentemente do cometimento de erro -, vêm a atuar em contrariedade à livre expressão de vontade destes. No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e pacientes, o consentimento informado é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos a serem seguidos. Atualmente, prevalece a noção de que a declaração do paciente para consentir com o ato médico é obrigatória, qualquer que seja a magnitude da intervenção e seus procedimentos e riscos. Nas relações médico-paciente, a liberdade para tomar decisões acerca dos tratamentos aos quais o paciente deseja ou não se submeter contribui para nele reconhecer o status de pessoa, e não de mero objeto da atividade médica. Todavia, somente cabe falar em verdadeiro consentimento informado se o paciente for capaz de compreender o teor do Termo de Consentimento Informado, cujo vocabulário deve ser suficientemente preciso e compreensível ao paciente, para que proporcione completo entendimento sobre seus termos. É necessário, pois, que o médico promova uma efetiva interação com seus pacientes, observando as condições e as limitações concretas de cada um, explicando-lhes cada aspecto do conteúdo do Termo, para que este possa ser uma fonte de segurança para ambos. O postulado acabado de referir é imprescindível para estabelecer que o consentimento somente será como válido se as informações transmitidas aos pacientes forem bastantes para a formação da sua convicção. À míngua de informação, ou sendo ela incompleta ou imprecisa para sustentar um consentimento devidamente esclarecido, poder-se-á afirmar que, ainda que o paciente tenha aposto sua assinatura no Termo que lhe tiver sido apresentado, o consentimento obtido será considerado inválido, passando a conduta médica a ser tratada como um ato não autorizado,1 incidindo, a partir daí, as regras que imputem a ele a responsabilidade civil pela intervenção não permitida sobre a integridade física de terceiros. Do mesmo modo, caso reste demonstrado que o próprio médico levou o paciente a prestar o consentimento, valendo-se, para tanto, de artifícios indevidos, seja mediante o induzimento malicioso capaz de deturpar a realidade dos fatos (dolo), seja em virtude de ameaça de mal injusto (coação), poderá responder civil e criminalmente, em virtude de atuar mediante constrangimento ilegal, ao intervir sobre a integridade física do paciente sem que este tivesse manifestado validamente sua permissão para tal fim. A averiguação sobre quais circunstâncias se enquadrariam em um comportamento inadequado do médico, contudo, exige prudência. Não se pode acusar o profissional de agir mediante coação quando vier a sugerir fortemente que seu paciente se submeta a determinada intervenção médico-cirúrgica, desde que se reserve a este a liberdade suficiente para rejeitar o tratamento proposto. A mera tentativa de persuasão, enfim, não induz a presença de vício. Outra será a hipótese, entretanto, caso o médico venha a reduzir a capacidade de resistência do paciente, ao colher seu consentimento após a ingestão de analgésicos, sedativos ou outros produtos farmacêuticos que lhe comprometam o discernimento.2 Neste caso, será indubitável a ausência de voluntariedade na manifestação de vontade, ficando comprometida sua validade, o que, em última instância, revela inaceitável desrespeito à autonomia do paciente, capaz de gerar a responsabilização civil do profissional envolvido. Enfim, a inobservância dos requisitos necessários para a validade do consentimento informado não permite dizer que houve verdadeira anuência, o que poderá acarretar a responsabilidade civil do profissional, seja pelos danos provocados ao paciente, seja pela intervenção não consentida sobre a sua integridade física. Nestes casos, mesmo que não haja danos à incolumidade física, caberá atestar, quando menos, a existência de ato ilícito praticado contra o direito à autodeterminação do paciente. É preciso, pois, atestar um postulado essencial neste domínio: não é necessária a existência de danos à saúde do paciente para que o profissional incorra em responsabilização pessoal; o desrespeito à autonomia do enfermo já justifica o reconhecimento de um dano à liberdade de escolha do paciente. Em tais circunstâncias, ainda que se demonstre que o profissional atuou em estrita observância das normas e técnicas próprias de seu ofício, caberá atribuir-lhe o dever de reparar o dano, consistente na violação de um espaço necessário de autonomia do paciente, a quem competirá, em última análise, a decisão sobre os rumos a tomar em relação à sua saúde. Malgrado seja de se exigir a exteriorização do consentimento do paciente, como elemento primeiro para a prática de qualquer intervenção médica, há situações excepcionais que permitem ao médico agir de imediato, independentemente da anuência do próprio paciente ou da autorização de seus representantes legais. Com efeito, em caso de iminente perigo de vida ou de lesões graves e irreversíveis, quando o paciente não está apto a prestar o consentimento, a urgência para a tentativa de preservar a vida ou integridade física justifica a intervenção médica imediata. Trata-se do denominado privilégio terapêutico, que consiste na faculdade de atuação médica, diante de situações de mal iminente, sem que seja necessário recorrer previamente ao consentimento do paciente.3 Nas circunstâncias acima descritas, não caberá falar na prática de ato ilícito, seja nas esferas civil, penal ou administrativa. O médico estará amparado por figuras jurídicas, previstas no ordenamento brasileiro, que excluem a ilicitude - no caso, o estado de necessidade e o exercício regular de um direito reconhecido, que encontram guarida nos arts. 23 do Código Penal e 188 do Código Civil. Aqui, tampouco caberá falar na existência de dano, atuando o profissional amparado pelo consentimento presumido do paciente, afastando-se a própria responsabilidade civil. A propósito, cabe firmar a ideia de que a omissão do médico, nos casos em que lhe é possível salvar a vida do paciente, é que será passível de reparação civil. A decisão de agir de ofício, sem que se colha o consentimento do paciente para a intervenção sobre a sua integridade física, tem caráter eminentemente subsidiário: somente será legítima tal conduta se o paciente estiver verdadeiramente inabilitado para manifestar sua vontade. A urgência da medida, neste domínio, também desempenhará papel preponderante: não se admitirá a realização do procedimento médico caso seja possível esperar pela decisão daquele que, embora pudesse estar apto a consentir, em condições normais, se acha apenas momentaneamente privado de o fazer. Justifique-se que, nas aludidas situações, caberá atestar a presença de uma autêntica presunção de consentimento. Parte-se do pressuposto de que, caso o indivíduo estivesse em condições de se manifestar, autorizaria, à partida, a realização das intervenções necessárias para preservar-lhe a vida e a saúde. Este regime especialíssimo de ausência de ilicitude e também de responsabilidade, diante da falta de consentimento expresso, somente se justifica pela natureza dos bens jurídicos a preservar e pela extrema urgência de agir. Outra circunstância em que poderá ser legítima a conduta médica, independentemente da manifestação de prévio assentimento por parte do paciente, consiste nos casos em que se fizer imprescindível o alargamento da operação. WOLFGANG FRISCH4 esclarece que a medida será adequada quando o paciente prestar seu consentimento para uma intervenção médica de determinada natureza e dimensão, descobrindo-se posteriormente ao início da sua realização que seria recomendável alargar a operação, para estendê-la para além dos limites do consentimento dado, já não sendo mais possível obtê-lo, por estar o paciente sedado e sob o efeito de anestesia. O mesmo autor relata um caso, submetido ao Tribunal Federal alemão, em que o médico tinha obtido da sua paciente o consentimento para erradicar um tumor no útero; durante a operação, contudo, verificou-se ser imprescindível remover todo o órgão para conter o alastramento do tumor, informação não levada oportunamente à paciente, o que tornava o procedimento, portanto, não consentido. Nestas hipóteses de risco agudo de vida ou de grave lesão corporal, não havendo meios de comunicar ao paciente a necessidade de se alargar o procedimento, será possível admitir que o apelo ao consentimento presumido legitima a conduta do médico.  É preciso, cabe salientar, que o profissional da saúde atue com enorme cautela para aferir a presença de situações de justificado consentimento presumido: elas apenas se manifestam se restar incontroverso o fato de ser absolutamente necessária e urgente a intervenção, revelando-se ser inexigível ao médico conduta diversa. Quando o profissional atuar no estrito limite da necessidade terapêutica, será descabida a imputação de qualquer responsabilização por sua conduta, servindo o consentimento presumido, portanto, como um verdadeiro fator de exclusão da responsabilidade civil. Em vias de conclusão, restando incontroverso o respeito ao primado da liberdade do paciente, caberá reconhecer, como inarredável consequência, que o desrespeito às escolhas do paciente quanto aos procedimentos a adotar em relação à sua saúde acarretará um autêntico dano à autonomia, a provocar a verificação da responsabilidade civil do profissional, ainda que atue em estrito cumprimento das leges artis e que não haja qualquer prejuízo ou lesão à vida, à saúde e à incolumidade do enfermo. Há, todavia, que reconhecer o advento de circunstâncias em que a urgência na adoção de medidas médicas prepondera; em casos tais, sendo impossível colher do próprio paciente ou de seus responsáveis a manifestação de vontade, emergirá a figura do consentimento presumido, a isentar o profissional de qualquer responsabilidade por seu comportamento, ainda que reste provado, posteriormente, que a atuação médica contrariou, de algum modo, a verdadeira intenção do enfermo. O que se impõe, em todo caso, é o excessivo zelo com que cabe apreciar a questão. Profissionais da saúde lidam rotineiramente com incessantes situações delicadas e muitas vezes extremas, e sua responsabilização há de ser atribuída, se for o caso, com acurada parcimônia. De toda sorte, em se verificando o desrespeito aos limites do consentimento prestado pelos pacientes, será inevitável constatar verdadeira violação à liberdade destes, o que não deixa de se caracterizar como uma conduta de violência contra o sagrado espaço de manifestação da individualidade de pessoas que, mesmo em circunstância de extrema vulnerabilidade, deverão decidir os traços e rumos de seus próprios destinos. __________ 1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento para intervenções médicas prestado em formulários: uma proposta para o seu controlo jurídico. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXVI, 2000, p. 451. 2 SILVA, Marcelo Sarsur Lucas da. Considerações sobre os limites à intervenção médico-cirúrgica não consentida no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 43. Belo Horizonte, julho-dezembro de 2004, p. 100. 3 RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português: elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: Centro de Direito Biomédico. Coimbra: Ed. Coimbra, 2001, p. 279. 4 FRISCH, Wolfgang. Consentimento e consentimento presumido nas intervenções médico-cirúrgicas. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (Dir.). Revista Portuguesa da Ciência Criminal, a. 14, ns. 1 e 2. Coimbra: Ed. Coimbra, janeiro-julho de 2004, p. 110-112.
Nossa Constituição Federal condiciona proteção jurídica à família não importando o modelo do qual ela se reveste. O vértice legal é a proteção do núcleo familiar e, que tem como ponto de partida, e também seu término, a tutela da pessoa humana. Se é na família que se promove os valores afetivos e de solidariedade humana, não se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas de seus membros seja de uma filiação advinda de forma biológica, civil ou socioafetiva. Por isso, os princípios inerentes à convivência familiar, baseada no afeto recíproco entre os integrantes deve se estender ao direito sucessório de forma igualitária, sob pena de contrariar o ditame constitucional. Para atribuição do devido a cada um dos herdeiros, para a prevenção por preterição entre co-herdeiros e ainda para diminuição de ações judiciais para acesso ao quinhão hereditário, seria importante haver mecanismo jurídico de imediata referência à filiação que associe os pais aos filhos biológicos, adotivos ou socioafetivos, declarados ou reconhecidos, porque assim, evitaria que alguns descendentes e sua estirpe, não tivessem acesso ao acervo hereditário a que tenham direito, por herança. E qual mecanismo poderia haver? Pela proposta da anotação registrária dos descendentes em assento de nascimento dos pais, lege ferenda. Reflexão inicial: a importância do registro civil reside na comprovação da autenticidade e publicidade sobre dados relativos ao estado da pessoa, cujos dados serão, na maioria das vezes, essenciais para eficácia da relação jurídica como se lê do próprio artigo 1º da Lei 6.015/73. Ele prepondera na preocupação com o tráfico de informações e no comprometimento com a garantia dos direitos fundamentais e ao final, aos próprios direitos da personalidade. Logo, o registro civil das pessoas naturais confere suporte legal à família, isso porque não existindo o registro, também juridicamente se tornam inexistentes as pessoas, as relações de parentalidade e seu acesso a todos os seus direitos subjetivos. A legalidade se dá por meio do registro, através do qual se atribuem os direitos e obrigações. Diante disso, vê-se que o registro civil confere acesso à busca da identidade familiar e, pelo registro de nascimento, surgirá documento originário da pessoa natural. Ele servirá de base para emissão de todos os demais assentos (casamento, óbito, etc.). Nele, se contém os elementos do estado da pessoa natural (estado individual) que individualizam a pessoa para a prática de atos e realização de negócios. E tão importante quanto ao registro de nascimento está o registro da extinção da pessoa natural, ou seja, a lavratura do registro de óbito conduzirá o acesso efetivo à legítima pelos descendentes do de cujus. E ainda. O sistema de registro civil se mantém também atualizado com outros atos que tornam o registro mais completo. Esses atos podem ser visualizados pelas averbações que alteram o conteúdo do estado da pessoa ou, os efeitos deste registro, mas também, pelas anotações as quais indicam que existe um outro ato de registro civil relativo à mesma pessoa, o que permite que a publicidade seja completa e que uma certidão atualizada indique a existência e a localização de atos registrários (registro ou averbação) posteriores que alteram o estado da pessoa natural. Essas anotações registrárias apenas produzem efeitos meramente publicitários e conduzem início de prova da existência de outro registro ou averbação. A anotação do óbito de uma pessoa no seu registro de nascimento e de casamento confere início à prova do óbito, mas não faz prova plena dele, isso só se dará com a certidão de óbito. Como se vê, as anotações formam uma "rede" que permite a busca por todos os registros de seus atos e fatos da vida civil. Elas são indispensáveis à plena publicidade, segurança e certeza dos assentamentos do registro civil. Na maioria das vezes, as alterações do estado civil das pessoas naturais não se verificam no mesmo local onde foi lavrado, originariamente, o assento de nascimento, e que devem constar averbações e anotações concernentes a todas as modificações do estado civil. As anotações eram comunicadas entre cartórios por meio de cartas, mas hoje é feito por meio da CRC-comunicações (artigo 106, § único da lei 6.015/73). A anotação registrária, portanto, é elemento de indicação que faz remissão a atos anteriormente praticados, através dela se faz o cruzamento das informações sobre os principais fatos da vida civil da pessoa natural. E aqui concentra-se nosso interesse neste ato registrário chamado anotação. Se a anotação registrária reserva a ideia de dar notícia de atos realizados no registro civil pela pessoa natural, mostrando os principais fatos que houveram em sua vida (meramente publicitários), mas que são considerados início de prova sobre a existência de outro registro ou averbação os quais produzem efeitos comprobatórios, por que então não se reconhecer e considerar a possibilidade do registro na sua inteireza e possibilitar a anotação dos filhos no assento de nascimento dos pais e, na de óbito ulteriormente, para que assim possa-se identificar de forma irrefutável quem são os descendentes para reconhecimento imediato das pessoas partícipes da sucessão legítima daquela pessoa natural que anotou (através do Oficial do Cartório) os filhos em seu livro de nascimento e, que posteriormente, após sua morte, poderão ser anotados, pelo registrador, no livro de óbito do de cujus? Caso haja a morte da pessoa natural, será realizado o registro do seu óbito com as anotações de sua morte em seu assento de nascimento e, no de casamento, se houver. Os filhos do de cujus, naturalmente serão os primeiros a receber a herança, mas para isso, deverão se apresentar em inventário a ser formalizado (judicial ou extrajudicial) por meio de suas certidões de nascimento ou casamento atualizadas. Caso alguns (ou todos) dos filhos não tenham conhecimento da morte do pai/mãe e, não foram declarados na certidão de óbito à época, pelo declarante, pois sequer os irmãos (bilaterais ou unilaterais, socioafetivo, reconhecidos) tios, avós, sobrinhos, se conhecem e nem possuem seus registros em cartório idêntico ao do de cujus, dificultará a esse descendente vivo e registrado de ter acesso à legítima quando desconhecido, culposa ou dolosamente, pelos outros descendentes, no momento da distribuição dos quinhões. Se não fosse só por este motivo que a anotação registrária oferece segurança jurídica de acesso à legítima, também pode servir de prevenção, pois, sabendo quem é o herdeiro, de imediato, evita que mais tarde aquele que não participou da partilha perca bens ou as rendas sobre os bens de sua legítima. E mais. Vale lembrar que todos os descendentes do doador, responderão pela contemplação do não favorecido, pois o herdeiro necessário não poderá ser prejudicado podendo buscar sua quota na herança de quem quer que seja (artigo 1.824 do Código Civil). De fato, como não é possível o conhecimento de todos os filhos/irmãos de plano, caso houvesse a possibilidade da apresentação de certidões - do transmitente/herdeiro de cota de sua herança - expedidas pelo Cartório de Registro Civil, potencialmente geraria a confiança e boa-fé ao adquirente resguardando-o de futuros pleitos judiciais, bem como ao herdeiro/vendedor de indenizações futuras dos outros co-herdeiros. Numa situação exemplificativa de ação investigatória de paternidade cumulada com petição de herança e, a paternidade sendo reconhecida, o bem imóvel alienado a terceiros de boa-fé pelos os outros co-herdeiros (consoante o disposto no art. 1.826 do Código Civil) só deveriam eles restituir os frutos percebidos aos outros herdeiros após caracterizada sua má-fé. Passados vários anos entre a abertura da sucessão e o cálculo da cota de cada herdeiro na herança, dever-se-á realizar perícia para avaliação dos bens segundo critérios atuais, tendo em vista a falta de certeza de correspondência dos montantes utilizados na partilha com os de mercado, assim como a ausência de parâmetros seguros para aferição dos valores históricos. Assim sendo, a apuração de perdas e danos será dificultosa e merecerá formulação jurídica de prevenção de dano em casos como esse. Se não fosse só pelos argumentos acima, também ainda é possível, pedido de indenização (pelos co-herdeiros preteridos) no tocante à utilização de bens alheios (artigo 186 Código Civil). As normas de enriquecimento injustificado, no que couber, também são aplicáveis (artigo 884 Código Civil) visto que se privou da posse os demais herdeiros do bem que faziam jus. E ainda que de ordem moral, havendo prejuízo ao herdeiro (relíquias de família, valor afeição) serão indenizáveis a título de perdas e danos. Sabendo-se, ainda, que a legítima dos herdeiros necessários, ou metade indisponível, enquanto vivo o doador, não pode ser atingida por nenhuma hipótese de liberalidade, às doações irregulares - após apuradas as falsas transferências onerosas - merecerão apuração de danos causados à privação dos bens. Diante disso, a anotação registrária dos filhos nos assentos de nascimento de seus pais ampliaria as chances de conhecer de plano, de forma irrefutável, os co-herdeiros. Ao conhecer de plano os co-herdeiros que, até aquele momento encontram-se registrados e anotados nos assentos de nascimento e de óbito dos pais, evitaria o dolo por parte de um deles em sonegar bens da legítima (art. 1.992 Código Civil) ao que caberia responder perante os demais co-herdeiros pelo valor do bem, mais perdas e danos (art. 1.995 Código Civil)1. __________ 1 VALESI, Raquel Helena. Efetividade de acesso à legítima pelo registro civil. Rio de Janeiro:Processo, 2019.
quinta-feira, 23 de março de 2023

Distanásia e responsabilidade civil médica*

Ao redor do mundo, os termos obstinação terapêutica, futilidade terapêutica e esforço terapêutico1 são, comumente, usados para nomear este o prolongamento artificial e indevido da vida biológica. Para fins didáticos, optou-se, neste artigo, por usar o termo distanásia posto que é o mais conhecido no Brasil. O neologismo distanásia foi criado a partir da junção de dois radicais gregos: "dis", que denota o que é disfuncional e "thanatos", palavra grega que significa morte.  Assim, a distanásia é o termo que nomeia a morte que ocorre de maneira anômala, o que, na contemporaneidade, é entendida como a morte postergada, em que suporte artificiais são usados "mesmo quando flagrantemente infrutíferos para o paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento ao lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso."2 Em verdade, a distanásia é o oposto da eutanásia pois, enquanto nesta objetiva-se abreviar a vida biológica, naquela objetiva-se posterga-la. Assim, se na discussão da eutanásia a incurabilidade e a irreversibilidade são argumentos legítimos para que a morte seja antecipada, no que tange à distanásia, é exatamente o caráter incurável e irreversível da doença e/ou do estado clínico que deslegitima o prolongamento artificial da morte e do morrer. A disfuncionalidade da distanásia existe exatamente porque há a compreensão de que quando não é mais possível a cura, ao paciente devem ser prestados todos os cuidados para que o desfecho de sua morte ocorra com o menor sofrimento possível para ele e seus familiares. E a distanásia não é um cuidado, ela é um não cuidado. Os estudos comprovam que em termos de fim de vida a hora de parar de tratar é uma das mais tormentosas decisões para os profissionais de saúde3. Todavia, vem ganhando aceitação entre bioeticistas e paliativistas a ideia de que a futilidade terapêutica precisa ser combatida e que cabe ao médico a decisão de quando não investir mais no paciente4. A título de exemplo, o Código de Ética e Deontologia Médica da Organização Médica Colegial da Espanha estabelece que a prática do esforço terapêutico é infração ética, mas não há nenhuma lei punindo civil e criminalmente os médicos por essa prática5.  No Brasil, a palavra distanásia não é encontrada em nenhuma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), nem mesmo no Código de Ética Médica6, o que não significa que a prática seja permitida aos médicos brasileiros. A resolução n. 2.156/2016 do CFM trata dos critérios de admissão do paciente em Unidade de Terapia Intensiva, evidenciando que pacientes "com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, não são apropriados para admissão em UTI, cabendo ao médico intensivista analisar o caso concreto e justificar em caráter excepcional."7 O artigo 35 do Código de Ética Médica veda ao médico "(...)exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos", cabendo a interpretação a contrario sensu de que o médico que praticar o esforço terapêutico incorrerá em infração ética. O artigo 41, muito utilizado para averiguação de condutas éticas nos cuidados com o paciente em fim de vida, dispõe: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Há nesse artigo a figura de vários institutos atribuídos à discussão do fim de vida: a) eutanásia: prática vedada pelo caput; b) ortotanásia: prática permitida na primeira parte do parágrafo único: c) distanásia: prática vedada na segunda parte do parágrafo único, quando o CFM afirma que o médico não deve "empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas". Percebe-se assim que, apesar de o artigo 41 ser explícito quanto à proibição da eutanásia e deixar implícita a vedação da distanásia, uma interpretação conforme com a o artigo 35 permite a conclusão de que esta também é uma prática antiética. Deve-se, neste contexto, perquirir a existência de fundamentos jurídicos para responsabilizar civilmente o médico por ter agido para prolongar a vida do paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura. Para tanto, é preciso averiguar se: (i) se o direito à vida é também um direito/dever de ser mantido vivo a qualquer custo; (ii) a distanásia é um tratamento desumano ou degradante. Quanto ao primeiro fundamento, Cynthia Pereira Araújo e Sandra Marques Magalhães8 afirmam que eventual reconhecimento de um direito à distanásia implicará no reconhecimento de que há direitos prejudiciais ao paciente e há salvaguardas à má prática médica, razão pela qual defendem a impossibilidade deste reconhecimento. Quanto ao segundo, é necessário retomar o conceito de distanásia e seu propósito: Trata-se do uso desproporcional do suporte avançado causando sofrimento ao paciente com o objetivo de prolongar o processo de morrer. Ou seja, está-se diante de um tratamento desumano e degradante que distancia o paciente de seu direito à morte digna reconhecido por Flávia Piovesan9 como um direito constitucional, decorrente do "direito à liberdade, à autonomia, ao respeito e à vida, no marco de um Estado laico, no qual impera a razão pública e secular." Historicamente, o ofensor é responsabilizado quando comprovado ato ilícito, dano, nexo de causalidade e culpa. Schreiber10 afirma que como resultado direto da erosão dos filtros tradicionais da reparação - ou, em outras palavras, da relativa perda de importância da culpa e do nexo causal como óbices ao ressarcimento dos danos sofridos - um maior número de pretensões indenizatórias passou a ser acolhido pelo Poder Judiciário. Diante desse cenário, a responsabilidade civil tem, cada vez mais, sido amparada no binômio dano/reparação. Nesse contexto, Rosenvald11 afirma que é preciso pensar que a responsabilização do ofensor tem a finalidade compensatória, mas também de prevenção de comportamentos. E, no caso em tela, resta claro a necessidade também prevenir o comportamento médico que - sob o pretexto de salvar a vida do paciente - acaba por prolongar danosamente o processo de morrer. __________ *O presente texto trata-se de uma atualização do artigo DADALTO, Luciana. Investir ou desistir: análise da responsabilidade civil do médico na distanásia. In: Nelson Rosenvald; Marcelo Milagre. (Org.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. 1ed.Inddaiatuba: Foco, 2017, v. 1, p. 487-497. 1 Para aprofundamentos nessas nomenclaturas recomenda-se: AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2015. Vol. 191, n. 11. 2 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Eutanásia. In: GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão; DADALTO, Luciana. Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo: Almedina, 2017, p. 106. 3 WILKINSON, DJC; SAVULESCU, J. Knowing when to stop: futility in the intensive care unit. In: Current Opinion in Anaesthesiology. 2011 Apr; 24(2): 160-165. 4 AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine Volume 191 Number 11 June 1 2015. 5 Disponível aqui, acesso em 13 mar. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (Código de Ética Médica). Disponível aqui, 13 mar. 2023 7 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.156, de 17 de novembro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 mar. 2023. 8 ARAÚJO, Cynthia Pereira; MAGALHÃES, Sandra Marques. Obstinação terapêutica: um não direito. In: DADALTO, Luciana. Cuidados Paliativos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Foco, 2022, p.331-344. 9 PIOVESAN, Flávia. Proteção jurídica da pessoa humana e o direito à morte digna. In: DADALTO, Luciana; GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão. Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo, Almedina, 2017, p. 77. 10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013. 11 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.91.
Diante dos nove anos em vigor do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14 - MCI) e do crescente aumento do uso das redes no País, verifica-se a necessidade de se revisitar temas abordados pela norma. De fato, os ambientes online tornaram-se mais complexos e as interações ali promovidas vêm provocando repercussões sociais e políticas relevantes. Nesse sentido, a discussão do Recurso Extraordinário 1.037.396 pelo Supremo Tribunal Federal mostra-se essencial para a proteção de direitos na rede e a manutenção de uma internet livre, aberta e democrática. Discutir a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet1 envolve diretamente a análise de direitos fundamentais e de possíveis limites ao discurso e à liberdade de expressão na rede. A preocupação com a temática, vale lembrar, não se encontra restrita ao Brasil. A Suprema Corte dos Estados Unidos, no início de 2023, realizou uma série de audiências no contexto dos casos Gonzalez vs. Google e Twitter vs. Taamneh. Na Europa, em novembro de 2022, o Digital Services Act e o Digital Market Act entraram em vigor. As duas normas europeias visam a proteger os direitos dos usuários de serviços digitais e estabelecer condições adequadas para a promoção da inovação, do crescimento e da competitividade, tanto no mercado único europeu quanto globalmente. Elas impactam diretamente a atuação de agentes intermediários e de plataformas online. No debate, há também a Lei Alemã para as Redes Sociais (NetzDG) de 2018. Com base no panorama atual, é importante que a construção interpretativa do Marco Civil da Internet se dê em diálogo com as contemporâneas reflexões acerca da moderação de conteúdos online, as normas internacionais de direitos humanos e de governança da rede, a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (lei 13.709/18 - LGPD) e a estratégia nacional de inteligência artificial. Contudo, desenvolver tal interpretação traz mais dúvidas do que respostas ao intérprete. No presente texto, a partir de três eixos, pretende-se apresentar questões que envolvem a caracterização dos provedores, suas responsabilidades e deveres, seus papéis na moderação de conteúdos online e suas respectivas atuações no cenário público nacional. I) Em primeiro lugar, é necessário esclarecer a definição e quais plataformas e/ou sujeitos podem ser qualificados como provedores de aplicações de internet no MCI. Seria possível pensar em outras categorias de provedores, para além dos mencionados nos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet (respectivamente, o provedor de conexão à internet e o provedor de aplicações de internet)? O artigo 19 seria uma norma prioritariamente estruturada para contemplar as atividades das redes sociais virtuais e de seus usuários? Em que medida a estrutura do provedor de aplicações, sua influência sobre o discurso público e sua possibilidade de exercer um controle prévio sobre os conteúdos postados pelos seus usuários podem impactar o tratamento legal a ele conferido? Como deverá ser desenhado o sistema de deveres e responsabilidades dos provedores de aplicações de internet? II) Acerca do regime de responsabilidade civil aplicável, parece adequado tecer as seguintes questões: a possibilidade de análise e edição do conteúdo de terceiro poderia tornar o provedor de aplicações, em alguma circunstância, corresponsável em caso de dano? A remoção de conteúdos questionados só deverá ocorrer após ordem judicial específica, como regra? Não são incomuns as críticas e falas diversas e plurais nas redes. Como situações com um grau maior de subjetividade devem ser tratadas pelos provedores e pelo Poder Judiciário? Não se pode perder de vista que entre as cores branca e preta, há vários tons de cinza... Quais exceções legais ao artigo 19 do MCI poderiam ser consideradas legítimas no ordenamento jurídico brasileiro? Seria possível aplicar outras exceções ao artigo 19, para além dos artigos 21 e 19, parágrafo 2º, do Marco Civil da Internet, os quais tratam, respectivamente, da divulgação não autorizada de imagens íntimas e de conteúdo protegido por direitos autorais? Essa é uma discussão extremamente interessante em nosso debate. É necessário frisar que a responsabilização dos agentes deve se dar de acordo com as suas atividades (Art. 3º, VI, do MCI). Portanto, eventual regime de responsabilidade civil deverá ser desenvolvido com base no serviço efetivamente prestado pelo provedor em questão, nos sujeitos envolvidos na relação e no poder e gerência que ele possui sobre o conteúdo que é disponibilizado em seu ambiente. O artigo 19 do Marco Civil da Internet - já aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em diversas situações que envolveram, especialmente, redes sociais e conteúdos lesivos a terceiros publicados por seus usuários - traz relativo equilíbrio ao regime de responsabilidade civil de provedores de aplicações de internet por conteúdo de terceiro, bem como segurança jurídica acerca da regra aplicável à relação. No caso, conforme o artigo 19 do Marco Civil, a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet será subjetiva por omissão e derivará do não cumprimento da ordem judicial que determinou a remoção do conteúdo danoso (inserido por terceiro em seu ambiente). Foi estipulado que a retirada de conteúdo deverá ocorrer no âmbito e nos limites técnicos do serviço prestado, orientação importante que considera as peculiaridades de cada provedor. Ao colocar o Poder Judiciário como instância legítima para definir o que é ou não um conteúdo ilícito, passível de remoção, o MCI determinou que a responsabilidade civil do referido provedor não nasceria imediatamente após o descumprimento de uma notificação privada / extrajudicial. A lei 12.965/14 não impede que os provedores de aplicações possam determinar requisitos para a remoção direta de conteúdos em seus termos e políticas de uso e atendam a possíveis notificações extrajudiciais enviadas, quando serão responsáveis diretamente pela remoção e/ou filtragem do material. Ainda que essa perspectiva pareça interessante em certos casos, como nas questões envolvendo desinformação, deve-se evitar que os provedores abusem de suas posições e que venham a filtrar ou realizar bloqueios a conteúdos sem uma justificativa plausível (que deve estar de acordo com as normas constitucionais) e sem que sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa às partes ali envolvidas.  Na ausência de um sistema adequado de responsabilização, serão enfrentadas consequências negativas pela sociedade, como, por exemplo, a diminuição da confiança de usuários e intermediários no uso e no desenvolvimento de ferramentas de comunicação na Internet, além do estímulo de ações governamentais e de agentes privados a estabelecerem mecanismos de controle e censura na Internet, o que levaria a processos arbitrários de remoção de conteúdos e excessiva vigilância dos cidadãos.   III) Diversos aspectos de nossa vida e sociedade vêm sofrendo interferências de algoritmos e serviços de plataformas. O mercado de tecnologia e seus sujeitos estabelecem continuamente tendências e necessidades, especialmente diante da concentração de players e atividades por eles desenvolvidas. Há, cada vez mais, tanto a análise e predição de comportamentos quanto a captura de nossa atenção. Nesse cenário, muito se tem questionado acerca do papel das mídias sociais e dos canais de comunicação no debate público. Acerca da moderação de conteúdos e do desenvolvimento de políticas internas e normas legais, cabe indagar: quais parâmetros as plataformas deveriam utilizar na elaboração de seus termos de uso e na sua atividade de moderação? Como tornar a moderação de conteúdo mais objetiva, precisa e contextual, especialmente nos casos que envolverem disseminação em massa de desinformação? Como desenvolver um processo mais responsivo, transparente e participativo?  Parece interessante, no cenário atual, que o controle acerca da moderação de conteúdos não seja integralmente transferido aos agentes de mercado. Cabe também ao Estado, às instituições públicas democráticas e entidades independentes apontarem premissas base e orientarem - de forma geral e mínima - plataformas e intermediários por meio, por exemplo, de políticas públicas, reuniões multissetoriais, resoluções e normas legais. Nesse sentido, debate-se hoje a possibilidade de uma autorregulação regulada. Haveria, assim, apoio a uma auto-organi­zação dos agentes privados, de acordo com a expertise e as dinâmicas próprias do mercado, mas também o estabelecimento de parâmetros gerais de inte­resse público importantes ao Estado democrático. Proteger os direitos humanos no ambiente digital mostra-se urgente e necessário, por meio de normas equilibradas e aplicáveis de forma ampla às diversas problemáticas. Normas e interpretações casuísticas, de viés autoritário ou meramente importadas sem um debate consistente, devem ser afastadas. É, aqui, que a discussão ampla, séria e acadêmica apresenta o seu relevo. Traçar as diretrizes desse debate é tarefa fundamental e exige uma reflexão constante, alinhada ao desenvolvimento tecnológico e às mudanças sociais, políticas e culturais. __________ 1 "Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação."
Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute a (relevante) possiblidade de compensação in re ipsa da perda indevida de tempo no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO, a teoria e os(as) julgadores(as) das instâncias ordinárias debatem há tempos a autonomia e a cumulação da compensação por lesão ou "dano" temporal. Obviamente, não é fato imputável ao STJ, pois este depende de Recursos Especiais manejados com observância dos requisitos constitucionais. Nesse contexto, a ministra Nancy Andrigui alertou em voto sobre o desvio produtivo que o "dano temporal" ainda não alcançou aquele Tribunal: "(...) não é objeto do presente recurso especial o exame da existência, no direito brasileiro, do chamado dano temporal, tampouco a sua possível indenização através do regime da responsabilidade civil prevista no Código Civil" (STJ, voto REsp n. 2.017.194/SP, j. 25/10/2022, g.n.). Na teoria, sinteticamente1, a proteção do tempo nasce como "novo" substrato fático dos danos morais em sentido amplo (extrapatrimoniais) em especial por André Gustavo Corrêa de Andrade2 (2005). Com efeito, a proteção temporal tem sua real expansão a partir dos estudos de Marcos Dessaune (2011), na popular "teoria do desvio produtivo". Contudo, na ocasião, Dessaune apresentou um óbice à emancipação e autonomia compensatória da tutela temporal: "(...) o 'tempo' (...) merece tratamento jurídico especial que o destaque, fora da mencionada cláusula geral de tutela da personalidade - a qual provavelmente aprisionaria o desvio produtivo a um mero 'novo fato gerador de dano moral'(...)".3 Desse modo, no avançar jurisprudencial da tutela do tempo pela responsabilidade civil, tal proteção surgiu como "ampliação dos casos de dano moral" e um "filtro relativo aos meros aborrecimentos", os quais muitas vezes impendem justas compensações morais - afirmou Flávio Tartuce4. Nesse cenário - com olhar protetivo aos mais frágeis e muito além da famigerada "guerra de las etiquetas" -, é possível avançar no abrandamento da vulnerabilidade temporal5 via responsabilidade civil, especialmente ao visualizar a conduta do fornecedor de impor a perda indevida do tempo como um fato transvestido de antijuridicidade - ou seja, de um "pressuposto do dever de reparar", uma palavra hábil para "adjetivar a conduta do causador do dano", como registrou Marcos Catalan6. Para sanear a questão do "aprisionamento" da lesão temporal como "mero novo fato gerador de dano moral", por volta de 20137-8 foi iniciado o debate sobre a autonomia da compensação da lesão temporal, sob o nome "dano temporal" para - aproveitando o "know-how" do STJ acerca da autonomia da compensação das lesões ou "danos" estéticos -, conferir maior visibilidade à proteção do tempo e, desse modo, alcançar maiores efeitos pedagógicos no mercado de consumo. Apesar da "timidez" da proposta interpretativa sobre a autonomia compensatória do tempo, o Poder Judiciário de 1º grau passou a dar, paulatinamente, feedbacks à tese. Nesse campo, o Juiz Fernando Antônio de Lima, em 28.8.2014, tangenciou a autonomia da compensação da lesão temporal: "Isso traduz hipótese de reparação, autônoma, se a parte-autora assim o desejasse, ou por danos morais, nos termos pleiteados na inicial em razão da perda de tempo produtivo ou útil direito (...)" (Jales-SP, Processo n. 0005804-43.2014.8.26.0297). Ou seja, o juiz paulista compreendeu que o pedido voltado à compensação autônoma poderia ser analisado, acaso fosse formulado. Em 17.12.2014, a Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) propôs ação em prol de consumidor e, pela técnica da cumulação de pedidos, pleiteou as compensações por lesões morais e temporais. Em 19.8.2019, o Juiz Paulo Benevides dos Santos julgou procedentes os pedidos cumulados, condenando o fornecedor bancário ao pagamento de 20 (vinte) salários mínimos por danos temporais e 10 (dez) salários mínimos referentes aos danos morais. Pontuou ainda o juiz: "Aplica-se a ambos a súmula 362 do STJ (...); estende-se o raciocínio para os danos temporais, não obstante ter-se reconhecido sua autonomia em relação aos danos morais, pelo fato de se tratar de dano de natureza extrapatrimonial" (Maués-AM, Processo n. 0001622-07.2014.8.04.5800). Por outro lado - antes mesmo da condenação supracitada cumulando o dano moral "em sentido estrito" (da dor psicológica) com o "dano" temporal -, o juiz Rafael Cró homologou acordo nos autos com a mesma referida cumulação. Ao sentenciar, ponderou: "O acordo celebrado preenche todas as formalidades legais. Por oportuno, ressalta-se a posição deste Magistrado no sentido de que além de ser possível a reparação pelos danos moral e material, há nítida autonomia na reparação do dano temporal" (Maués-AM, Processo n. 0000265-21.2016.8.04.5800, j. 11.8.2016). Em sentença de 28.9.2020, a Juíza Maria Eunice Torres do Nascimento - por pedido expresso e cumulado da Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) em prol de consumidor de 3.9.2018 -, condenou expressamente o fornecedor à compensação de danos morais (em dez mil Reais) e de danos temporais (em cinco mil Reais). A juíza, ao lado dos elementos geradores do clássico conceito de "dano moral" (sentido estrito), ressaltou "a perda desarrazoada do tempo útil do consumidor configurador de dano temporal" (Manaus-AM, Processo n. 0640771-53.2018.8.04.0001). Desse modo, o Judiciário brasileiro vem alertando sua posição ampliativa da proteção do tempo do consumidor. Mas não parou por aí... O juiz Fernando da Fonseca Gajardoni tem a lavra do (possivelmente) 1º acórdão de turmas recursais a reconhecer a compensação autônoma dos "danos" temporais. Assim pronunciou-se: "Há no caso, verdadeiro dano temporal. (...) A perda do tempo, por si só, não enseja a violação à psiquê humana. Todavia, o seu desperdício em vão, por causa de outrem, deve ser protegido pelo ordenamento jurídico". (1ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal - Franca/SP - Recurso Inominado Cível n. 1000847-46.2020.8.26.0434, j. 30.11.2020). Durante o período exposto, a teoria sobre a proteção do tempo avançou. Marcos Dessaune9, por exemplo, publicou duas edições de seu clássico livro aproximando o "dano por desvio produtivo" do "dano existencial"10, expandindo ainda o debate para o Direito do Trabalho. Por outro lado, a teoria produzida na UERJ, em especial por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, alertou sobre a problemática do termo "dano" temporal lançando sua opção técnica por "lesão temporal". Noutro passo, os estudos da UFSC, por Daniel Deggau Bastos12 e Rafael Peteffi da Silva13, apontam o cuidado teórico para não se criar uma nova (e desnecessária) categoria no mesmo nível que os danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Na UFRGS, destaque especial à Laís Bergstein14, debatendo o "menosprezo planejado". Entre a UFAM e UFSC, Alexandre Morais da Rosa15 e Maia ressaltam que a "opção" por "lesão temporal" ou "dano temporal" depende de escolhas teóricas por um conceito "amplo" ou "restrito" de "danos morais". O STJ, v.g., possui tendência à especificação dos "danos" extrapatrimoniais em "subcategorias" - vide o verbete n. 387 de sua Súmula citando o "dano estético". Em tal período, o Poder Legislativo também caminhou. No Amazonas, editou-se o pioneiro "Estatuto do Tempo do Consumidor" (Lei Amazonense n. 5.867, de 29.4.2022; autor: dep. estadual João Luiz). A lei amazonense reavivou os debates legislativos e inspirou a Câmara dos Deputados (PL n. 1.954, de 8.7.2022; autor: dep. federal Carlos Veras). No Senado Federal há ainda o PLS n. 2.856, de 24.11.2022 (autor: Sen. Fabiano Contarato). O PLS citado recebeu a atenção de Alexandre Freitas Câmara (TJRJ), inclusive abarcando críticas16 à terminologia "desvio produtivo". Recentemente, em meio à "quentura" do debate, a solução do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) se voltou mais à substância constitucional-protetiva do consumidor (art. 5º, XXXII e art. 170, V) que à forma. Nos dizeres do desembargador Paulo Lima - relator do 1º acórdão de Tribunal catalogado a tutelar autônoma e cumulativamente as compensações por danos morais e temporais -, o importante está em compensar, de algum modo, a lesão temporal sofrida (TJAM, Ap. Cível n. 0679992-38.2021.8.04.0001, j. 9.2.2023). Nessa senda, inobstante a autonomia (e cumulação) compensatória da perda indevida de tempo ainda esteja longe do STJ, a Justiça Ordinária do Brasil não está "fechando os olhos" à vulnerabilidade temporal. Por outro lado, no momento, é mais urgente à responsabilidade civil e ao direito do consumidor a observação de como o Tribunal da Cidadania cumprirá, como intérprete da legislação federal, o mandamento constitucional de proteção do consumidor (inclusive através da dimensão temporal da vida) ao fixar tese no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO - atenção! __________ 1 São muitas as autoras e os autores atentos à evolução do debate sobre o tempo humano, alguns destaques, dentre outros: (1) BORGES, Gustavo. VOGEL, Joana Just. O dano temporal e sua autonomia na Responsabilidade Civil. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021; (2) FARIAS, Cristiano de Farias. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022; (3) GAGLIANO, Pablo Stolze. Responsabilidade Civil pela perda do tempo. Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, COAD, p. 29-32, Mai. 2013; (4) BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Juspodivm, 2021; (5) GUGLINSKI, Vitor Vilela. O Dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. Revista de Direito do Consumidor, nº 99, São Paulo: RT, Mai.-Jun. 2015; (6) BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019; (7) CORRÊA, Bruna Gomide. Dano ao tempo do consumidor: autonomia do dano temporal e o direito fundamental de defesa do consumidor. Londrina(PR): Thoth, 2022; (8) AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade Civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Plácido, 2018; entre outros. 2 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral em caso de descumprimento de obrigação contratual. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29, 2005, p. 134-148 3 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Ed. RT, 2011, p 133-135, g.n.. 4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 423. 5 Sobre vulnerabilidade temporal: MAIA, Maurilio Casas. Vulnerabilidade Temporal e Estatuto do Tempo do Consumidor (ETC): Comentário à Lei Amazonense 5.867/2022 - um subsistema protetivo em diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 142, p. 307-326, Jul.-Ago. 2022. 6 CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. 2ª ed. Idaiatuba-SP: Foco, 2019, p. 41. 7 MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal, desvio produtivo e perda do tempo útil e/ou livre do consumidor: Dano cronológico indenizável ou mero dissabor não ressarcível? Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, Mai. 2013p. 26 e 28. 8 MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 92, p. 161-176, Mar.-Abr. 2014. 9 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória (ES): Edição Especial do autor, 2017; ______. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3ª ed. Vitória (ES): Edição do Autor, 2022. 10 Sobre o dano existencial: SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do Direito Civil: Estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 223. 12 BASTOS, Daniel Deggau. Responsabilidade civil pela perda do tempo: o dano ressarcível e as categorias jurídicas indenizatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 13 BASTOS, Daniel Deggau. Silva, Rafael Peteffi da. A busca pela autonomia do dano pela perda do tempo e a crítica ao compensation for injury as such. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 2, 2020. 14 BERGSTEIN, Laís. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: RT, 2019. 15 ROSA, Alexandre Morais da. MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal na Sociedade do Cansaço: uma categoria lesiva autônoma? In: BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019, p. 27-46. 16 CÂMARA, Alexandre Freitas. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão.
As repercussões dos múltiplos usos das técnicas de reprodução humana assistida no campo da responsabilidade civil são infindáveis, formando um mosaico de situações jurídicas existenciais, patrimoniais e dúplices1 que permitem a configuração de danos indenizáveis, que, de forma didática e sintética, podem ser categorizadas em três eixos centrais: (i) relações entre médicos, clínicas ou centros de reprodução assistida e seus pacientes, de índole existencial, eis que a tutela do corpo e da saúde se colocam em cena, mas com importantes reverberações patrimoniais, visto que geralmente são técnicas que envolvem custos dos mais diversos; (ii) impactos no direito ao planejamento familiar, uma vez que envolve a elegibilidade às técnicas e a formação de entidades familiares com o nascimento da futura prole; e, (iii) as questões relativas à criopreservação de embriões excedentários, incluindo a sua qualificação e destinação. A rigor, tais procedimentos conformam um conjunto de técnicas paliativas que permitem a concretização do projeto parental por aqueles que não podem ter filhos biologicamente vinculados naturalmente, seja em razão da infertilidade ou da elegibilidade individual ou por casais homoafetivos ou transgêneros. A inexplicável e persistente inexistência de lei específica sobre o tema no Brasil aprofunda os dilemas e as inseguranças em relação ao uso das técnicas de reprodução assistida. Com sua contumaz percuciência, Stefano Rodotà pontua que a responsabilidade civil é "como uma campainha de um alarme", uma vez que "se presta muito a seguir as novas tendências determinadas em uma organização social, e que oferece a elas uma primeira forma de tutela, que demandariam uma intervenção do legislador, que ainda não estão maduras e percebidas pela sociedade e pelos parlamentos."2  Decerto que a variada cartilha de problemas que rondam a reprodução humana assistida, ainda que infiram situações delicadas, não permite mais afirmar que não estariam devidamente sazonadas para deslinde pelo legislador. Pelo contrário, o "apagão" legal inunda cada vez mais o Poder Judiciário com demandas reparatórias, que poderiam ser evitadas com uma disciplina jurídica equilibrada, que contemplasse os múltiplos interesses e previamente balizassem os valores envolvidos a partir da moldura imposta pela legalidade constitucional. A responsabilidade civil no cenário atual funciona mais como um "extintor de incêndio" do que "campainha de alerta", de viés nitidamente paliativo, cuja tendência é o agravamento nos próximos anos, uma vez que inexiste mobilização congressual voltada à aprovação de uma lei sobre a matéria e mesmo que tal iniciativa se desenhasse nos próximos anos a composição da vigente legislatura não parece ter a sensibilidade necessária para legislar adequadamente sobre o assunto. As episódicas regras dispersas no direito brasileiro (como, por exemplo, o art. 1.597 do Código Civil, e o art. 5º, da Lei de Biossegurança) e as normas de caráter administrativo (como o Provimento n. 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que trata entre outros temas sobre o "registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida") e deontológico, estas editadas pelo Conselho Federal de Medicina, revelam a fragilidade das relações jurídicas e os dramáticos impasses frutos da escassa disciplina jurídica sobre a temática. Desde 1992, resoluções são publicadas pelo órgão fiscalizador com o objetivo de balizar as condutas médicas e resguardar sua atuação, embora, na prática, constituam o principal referencial ético, com repercussões no campo jurídico, sobre a reprodução humana assistida no Brasil, o que descortina a hipertrofia legislativa do CFM em temas bioeticamente sensíveis e carentes de produção legal no âmbito do Poder Legislativo brasileiro3. A acelerada sucessão de atos normativos nos últimos anos demonstra a urgente necessidade de regulamentação do tema e evidencia o déficit democrático na tomada de decisões sobre os mais variados dilemas que permeiam a procriação humana artificial.4 A Resolução n. 2.320, de 1º de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina, repete diversas disposições já presentes nas resoluções anteriores, mas inova ao suprimir a disciplina de pontos importantes como, por exemplo, o descarte de embriões, antes, denominados abandonados, o que, a rigor, parecia afrontar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Por outro lado, permanece o limite etário de 50 anos às candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida, a vedação da redução embrionária na hipótese de gestação múltipla, a limitação da transferência de embriões de acordo com a idade das mulheres, bem como a proibição do caráter lucrativo da doação de gametas ou embriões e da cessão temporária de útero. Com isso, velhas questões ressurgem e geram impasses desconfortáveis para os pacientes de tais técnicas, notadamente no campo do diagnóstico genético pré-implantacional, da atual possibilidade de conhecimento dos doadores de gametas ou embriões com parentesco até o 4º (quarto) grau, desde que não incorra em consanguinidade, e, por fim, a destinação dos embriões após divórcio, separação, dissolução da união estável e falecimento. Sob o ângulo da relação entre clínicas, centros, serviços, médicos e pacientes envolvidos na aplicação e uso das técnicas de reprodução assistida, visualizam-se os elementos caracterizadores de uma relação de consumo que atrai, por conseguinte, a incidência da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Cuida-se, por óbvio, de relação terapêutica na qual, além do diploma consumerista, incidem as normas éticas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina, em especial, úteis para fixação dos deveres imputados aos médicos envolvidos, eis que, nos termos do art. 14, § 4º da Lei Protetiva, a responsabilidade dos profissionais liberais é de natureza subjetiva. Desse modo, à luz dos arts. 186 combinado com 927 do Código Civil, é indiscutível que a aferição da culpa é essencial para fins de configuração do dever de indenizar. Por outro lado, cabe destacar que o deslocamento da culpa subjetiva, calcada na análise do clássico tripé negligência, imprudência e imperícia, em viés psíquico, cede espaço, em especial em relação aos profissionais liberais, para a denominada "culpa normativa", extraída do comportamento esperado pelos pacientes a partir dos vetores ditados pela boa e ética prática médica, notadamente em situações nas quais há normas deontológicas previstas. Nesse cenário, em especial, as clínicas, centros ou serviços são responsáveis pelo "controle de doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e pelo descarte de material biológico humano dos pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida". Deve, ainda, manter registro permanente das "gestações e seus desfechos (dos abortamentos, dos nascimentos e das malformações de fetos ou recém-nascidos), provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões"; "exames laboratoriais a que são submetidos os pacientes, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças" (Resolução n. 2.320 do CFM). Em relação, portanto, às clínicas, centros e serviços de reprodução humana assistida, ressalta-se que a responsabilização civil é de ordem objetiva, uma vez constatada a falha na prestação do serviço, independentemente de culpa. Cristaliza-se, ademais, a imputação de deveres específicos por meio da aludida resolução, além dos deveres atinentes à segurança, informação e diligência na prestação de tais serviços especializados. Instigante reflexão, com profunda implicação no campo da responsabilidade civil, relaciona-se com a natureza da obrigação concernente ao procedimento da reprodução assistida - se de meios ou de resultado. A rigor, a complexidade que envolve tais técnicas permite a exigência da máxima diligência dirigida ao emprego adequado das técnicas e do esclarecimento necessário em todos as etapas que envolvem os ciclos artificiais da procriação. Entretanto, a trajetória de mercantilização da reprodução artificial evidencia que o sonho de ter filhos foi capturado pela lógica do lucro,5 o que descortina práticas publicitárias que margeiam a ilicitude e mascara riscos que atingem especialmente mulheres na busca pela concretização do desejo maternal. Esse cenário desperta e incentiva expectativas desarrazoadas, descompromissada com os dados estatísticos, facilmente frustráveis, o que impõe identificar, com base na informação prestada na relação médico-paciente, mas também nos anúncios publicitários, o enevoado limite entre a obrigação de diligência e a de resultado, mas, em especial, pela violação do dever de informação e falhas no consentimento livre e esclarecido.  Cabe sublinhar que o "mercado" da reprodução assistida envolve recursos financeiros significativos, como já acentuado, o que inclusive descortina o problema do acesso da população que não tem condições econômicas e que recorrem ao Poder Público6 ou aos planos privados de saúde. Inclusive, após intensa controvérsia sobre o tema do custeio das despesas pelos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do tema repetitivo 1067, firmou tese no sentido de, salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear tratamento médico de fertilização in vitro. A questão submetida ao julgamento residiu na definição em relação à obrigatoriedade ou não de cobertura, pelos planos de saúde, da técnica de fertilização in vitro.7 Para além da questão atuarial e jurídica, é fato que a decisão reforça a exclusão de um conjunto de pessoas que permanecerão com dificuldades e barreiras para a concretização do projeto parental, bem como não colocou em destaque a fundamentalidade do direito ao planejamento familiar. Se tais questões se revelam extremamente intrincadas, em especial se considerando o forte aumento pela busca das técnicas procriativas artificiais no Brasil,8 não restam dúvidas que a frustração ou desistência do projeto parental despertam como situações potencialmente lesivas a direitos fundamentais dos envolvidos, não raras vezes, configurando como verdadeiras violações ao direito ao planejamento familiar hábeis a serem suas pretensões indenizadas em razão do injusto dano provocado. A colisão de princípios constitucionais deflagra meticulosa atividade ponderativa trilhada pelo intérprete no itinerário que revele a máxima efetividade dos valores maiores em jogo. Convém identificar duas hipóteses para melhor enquadrar a responsabilização civil dos atores em cena. Em primeiro lugar, eclode a questão do destino dos embriões excedentários após o divórcio, separação, dissolução da união estável ou morte de um ou ambos os parceiros9. A relevância do tema impõe que o destino seja acordado entre o casal ainda durante a preparação para a realizações dos ciclos de reprodução assistida e antes da geração dos embriões por meio de manifestação de vontade nos termos de consentimento livre e esclarecido, específicos e revogáveis, por excelência, e, preferencialmente, renovados a cada tentativa, inclusive com a expressa declaração do desejo de doação. Vale salientar que a vigente Resolução n. 2.320/2022 estabelece que o consentimento livre e esclarecido é obrigatório e deve abranger todos os aspectos médicos, biológicos, jurídicos e éticos, de forma detalhada.10 Indispensável, portanto, que tais documentos sejam específicos sobre o destino dos embriões nas hipóteses mencionadas, sob pena de obtenção de um consentimento frágil a partir de uma informação inadequada e entremeada entre tantos outros dados e autorizações, conforme determina a própria resolução em seu item V.3.11 Por consequência, qualquer falha na obtenção segura e pormenorizada do consentimento gera a responsabilidade da clínica ou centro de reprodução assistida, de forma objetiva, uma vez que configurado a violação ao dever de informação, inclusive, com sensíveis repercussões que, a depender do caso, devem ser levados em consideração no momento da quantificação do dano. A revogabilidade do consentimento a qualquer tempo, desde que antes da implantação do embrião, provoca os mais calorosos debates em razão da possibilidade de desistência de um dos parceiros, geralmente causada em razão do divórcio ou da dissolução da união estável. Tal situação é tributária da intrínseca anatomia dos atos de autonomia existencial, uma vez que o consentimento há de ser contemporâneo, bem como suas repercussões impactem na esfera de interesses de terceiros, cuja titularidade sequer se iniciara, eis que pessoa futura, ainda a ser concebida e eventualmente nascida com vida. Em célebre caso, o ex-noivo processou a atriz colombiana Sofia Vergara para obter a custódia dos embriões e implantá-los em gestante substituta. A noticiada batalha judicial foi favorável à atriz, uma vez que a decisão determinou que os embriões apenas poderiam ser implantados mediante sua autorização. No Brasil, já há decisões judiciais favoráveis ao descarte de embriões excedentes no processo de fertilização in vitro na hipótese de divórcio, ainda que um dos parceiros tenha previamente manifestado a vontade de o embrião ser custodiado pelo outro.12 A situação é ainda mais dramática quando um dos parceiros, por motivos médicos, não mais pode ter filhos biologicamente vinculados, a não ser por meio do uso do embrião crioconservado. Discute-se se tal celeuma teria os rumos alterados neste caso, prevalecendo o direito ao planejamento familiar da mulher ou do homem impossibilitado de ter filhos biológicos por outros meios. A revogação do consentimento é um ato legítimo e compatível com a autodeterminação existencial, que exige sua atualidade para sua efetivação. Desse modo, é perfeitamente possível a desistência de um dos pares que haviam antes por meio de ciclos de fertilização in vitro gerado embriões excedentários e manifestado sua vontade para algum fim legalmente permitido. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já examinou caso no qual entendeu como legítima a posterior recusa do ex-parceiro em autorizar o uso dos embriões após o término do relacionamento, mas que as consequências patrimoniais negativas do ato deveriam ser indenizadas, condenando-o em arcar com metade do custo do tratamento, uma vez que à época consentiu com a realização do procedimento, ainda que verbalmente. No caso em questão, uma mulher, após relacionamento extraconjugal mantido por aproximadamente 02 anos e planos de constituírem família, inclusive com futuros filhos, contratou os serviços de uma clínica de reprodução assistida, tendo suportado integralmente os custos. Após o término da relação, o parceiro revogou seu consentimento, impedindo o prosseguimento do tratamento. Inconformada, a mulher ajuizou ação declaratória com pedido de danos materiais e morais, argumentando, ainda, o fato de ter 46 anos e que a gestação poderia acontecer até completar os 50 anos. Observa-se, portanto, que não houve dano moral ressarcível na hipótese de posterior desistência após o término da relação afetiva, havendo discussão apenas em relação aos eventuais danos patrimoniais devidamente comprovados.13 Nessa linha, não parece razoável sequer invocar a possibilidade de indenização por perda de uma chance, uma vez que a revogação do consentimento antes da implantação no útero da mulher não configura ato ilícito e nem interrompe uma vantagem legitimamente esperada ou evita um prejuízo. A responsabilidade civil pela perda de uma chance descortina novas hipóteses fáticas deflagradoras do dever de indenizar por meio do reconhecimento de lesão injusta a um bem jurídico. Diante disso, não parece razoável que a possibilidade de revogação de uma situação existencial desperte uma frustração de acordo com premissas probabilísticas de uma chance séria e real, uma vez que a desistência não configura - permita-se a insistência - ato ilícito. A taxa de sucesso das técnicas de reprodução assistida, como já afirmado, é reduzida e a criopreservação de embriões, independentemente do destino acordado entre o casal, não gera legítima expectativa de concretização do projeto parental. Vale gizar que a possibilidade do nascimento de um futuro filho por meio de técnicas de reprodução assistida não caracteriza uma chance séria e real e nem é possível comprovar que tal resultado poderia ser esperado, salvo se por falha no dever de informação da equipe médica ou erro de diagnóstico, o que altera o bem jurídico lesado e os fundamentos da responsabilização civil. O pleito de indenização pelo insucesso da reprodução assistida já alcançou o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do AREsp. 178.254, um casal pleiteou a indenização por danos morais e materiais por imprudência e negligência do médico na condução do procedimento de reprodução assistida. Após 4 anos de tentativas sem êxito, o casal procurou outro médico que prescreveu o exame de cariotipagem, considerado de praxe em tais casos, no qual restou constatada uma anomalia em dois cromossomos. A alegação de que a conduta médica negligente impactou na decisão do casal de continuar com as tentativas não logrou sucesso na Corte Superior, que manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que não houve omissão e os fundamentos do acórdão bastariam a justificar, encontrando óbice na súmula 7 do STJ.14 A reprodução humana assistida é tema que fascina, subverte com a ilusória imutabilidade da ordem natural e comprova a dessacralização da natureza. Não por outra razão, desafia, no campo da filiação, o estabelecimento da paternidade e da maternidade, passando em revista institutos centrais do direito das famílias e sucessório. Entretanto, repousa nos domínios da responsabilidade civil os fronteiriços dilemas da utilidade e dos limites do remédio indenizatório, que reverbera um nítido caráter paliativo, uma vez que embora possível, nem sempre se mostra como o antídoto adequado diante da frustração para os impasses dos desejos parentais. Mesmo com o progresso biotecnológico nem sempre conseguimos ser o timoneiro de nossas existências e nem sempre o recurso à responsabilidade civil servirá como instrumento satisfatório para compensar a violação ao projeto parental diante da "perda de uma chance" pela desistência de um dos envolvidos diante da revogação do consentimento ou a frustração em razão do descarte indevido ou falha do dever de informar a respeito da viabilidade de concretização do desejo de ter filhos, de alguma forma, biologicamente vinculados. __________ 1 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida e a proteção da pessoa humana nas situações jurídicas dúplices. In: ROSELVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. 2. ed., Indaiatuba, SP: Foco, 2021. 2 Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./set., 2022, p. 287-288. 3 As alterações das resoluções que disciplinam as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida vêm ocorrendo desde 1992, na seguinte ordem: Resolução CFM nºs 1.358/1992; 1.957/2010; 2013/2013; 2.121/2015; 2.168/2017; 2.283/2020, 2.294/2021 e 2.320/2022. 4 Sobre o tema, seja consentido remeter a PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. A reprodução humana assistida e a atuação do Conselho Federal de Medicina: as repercussões da nova resolução 2.294/21. In: DALSENTER, Thamis (coord.). Migalhas de Vulnerabilidade, jul., 2021. Disponível aqui. Acesso em 26 set. 2022. 5 Cf. FROENER, Carla; CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, SP: Foco, 2021, passim. 6 O Superior Tribunal de Justiça condenou o Estado do Rio de Janeiro a custerar tratamento de fertilização in vitro de uma mulher com dificuldade uma mulher que tinha dificuldade para engravidar em razão da endometriose e obstrução das trompas, mas não podia pagar pelos procedimentos. V. STJ, REsp. 1.617.970-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, jul. 20 set. 2016. Em sentido contrário, o STJ ao analisar agravo regimental no REsp. 1.471.559 não reverteu a decisão do TJRJ que concluiu que não é razoável obrigar o Estado ao alto gasto com o tratamento. 7 Recursos Especiais ns. 1.822.420/SP, 1.822.818/SP e 1.851.062/SP. 8 Segundo dados do 13º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões - SisEmbrio, criado pela Resolução de Diretoria Colegiada/Anvisa RDC nº 29, de 12 de maio de 2008, em 2019 foram realizados 44.705 ciclos de fertilização in vitro, o que revela um aumento de 3,7% em relação ao ano anterior. 9 Cf. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. Os desafios da reprodução assistida post mortem e o alcance do testamento genético: ampliando as formas de disposição do próprio corpo após a morte. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Org.). Arquitetura do planejamento sucessório - Tomo III. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 159-174. 10 Resolução n, 2.320/2022, item I.4: "O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a  técnica  proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão entre as partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida". 11 "Antes da geração dos embriões, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino dos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los". 12 De acordo com a decisão da 5ª Turma Cível do TJDFT, que manteve a sentença que julgou procedente o pedido de descarte dos embriões após o divórcio, "a vontade procriacional pode ser alterada-revogada de maneira legítima e válida até a implantação do embrião crioconservado". Disponível aqui. Acesso em 25 jan. 2023. 13 TJMG, Ap. Civ. 1.0000.19.073065-5/001, 16ª Câm. Civ., Rel. Marcos Henrique Caldeira Brant, julg. 22 jan. 2020. 14 AREsp. N. 178-254-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 23 mai. 2012.
Introdução  A relação entre médicos e pacientes, consoante às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente, que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. Portanto, ao tentar resguardar o direito dos pacientes e garantir uma maior segurança jurídica, a atividade, o entendimento majoritário da doutrina e a jurisprudência brasileira enquadram o ofício médico como uma prática de consumo. Contudo, as modificações dessa relação tão singular fizeram com que o paciente conquistasse os valores da dignidade, autonomia e liberdade frente à proteção da sua saúde em sua integralidade. Diante disso, o elemento essencial da atividade médica e o elemento essencial da atividade consumerista se distinguem.  Breve abordagem histórica da relação médico-paciente                O cuidado à beira do leito e a fidúcia entre médicos e pacientes, segundo Vasconcelos (2020), já se fazia presente na Antiguidade, quando havia uma forte crença na ligação entre os humores da saúde humana e os humores dos deuses, época em que o exercício médico adotava meios peculiares de apresentação de diagnóstico e tratamento para a tentativa da cura. Por meio da observação física do paciente, seguida do assinalar da provável existência de doença que - enquanto mera consequência de atos anteriores - carecia da busca pelos erros cometidos pelo padecente com o intento de identificação da entidade mítica contrariada a que se deveria recorrer, evocando-se, a ela, a restauração da saúde. (VASCONCELOS, 2020) No momento atual da relação, faz-se necessário observar a vulnerabilidade do paciente. O ser vulnerável é um sujeito com susceptibilidade de ser ferido e um ser vulnerado é aquele que antes era susceptível, agora, efetivamente ferido. Segundo Patrão Neves (2006), a vulnerabilidade possui o sentido adjetivo e subjetivo, ambos formalmente na acepção do princípio. A vulnerabilidade no sentido subjetivo refere-se à condição humana, o reconhecimento da sua finitude, sendo uma condição inafastável. Já no sentido adjetivo, caracteriza-se por circunstâncias ou características "temporárias", podendo ser afastável. Como também, existe a vulnerabilidade social, onde um contexto torna grupos sociais desprotegidos, desamparados e/ou desfavorecidos, seja por exclusão social, dificuldade de acesso aos avanços e benefícios advindos do desenvolvimento, por estigmatização e vivências de preconceitos históricos, ou por uma redução de possibilidades de resguardo de direitos. E a vulnerabilidade enquanto princípio ético universal, disciplinado pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005, p.7). Desse modo, a relação entre médicos e paciente, assim como às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa então, a vivenciar a respeito e reconhecimento da sua vulnerabilidade e valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A atual aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na atividade médica A relação médico-paciente, como observamos anteriormente, modificou-se como passar do tempo, assim, faz-se necessária identificar, inicialmente, a natureza jurídica desta relação, por existir uma correlação legal e interpretativa que envolve a responsabilidade civil; fazendo-se necessário, o estudo comparativo, dos integrantes dessa atividade obrigacional no universo legislativo eis que há divergência jurisprudencial sobre este vínculo. Atualmente, há uma corrente amplamente majoritária, que entende pela incidência do Código de Defesa do Consumidor à relação paciente-médico, que conforme Nilo (2020, p.83) preceitua, está sob dois argumentos: a) a subsunção dos conceitos de paciente e médico, aos conceitos de consumidor e fornecedor trazidos pelo artigo 3º do diploma consumerista; e b) a vulnerabilidade do paciente, cuja proteção encontraria guarida nesse diploma protetivo, em razão do Princípio da Vulnerabilidade, adotado expressamente pelo artigo 4º, inciso I, do Código (BRASIL, 1990). Em contrapartida, existe uma segunda corrente que entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico. Na aritmética da moral, que o professor Sander (2012) denomina como utilitarismos, existem bens da vida ou bens jurídicos que não podem ser submetidos à mesma escala de valor, dentre eles a vida e a saúde. No entendimento da medicina - e os juristas devem tentar imergir nesta alteridade - a saúde não é uma mercadoria, não podendo jamais ser enquadrada como objeto de consumo e, por via oblíqua, os próprios profissionais que não têm o lucro como seu objeto principal - mola propulsora de qualquer atividade empresarial (COELHO, 2015, p. 54) - não poderiam ser alocados na categoria de "fornecedores" ou "prestadores de serviço" comuns, como prescreve o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) No entanto, um olhar mais atento pode revelar que este enquadramento decorre muito mais de um mérito da proposital ampla definição legal oferecida pela normativa consumerista, do que pela correspondência prática efetiva da relação paciente-médico minimamente ética. Ademais, conforme leciona Gonçalves (2015, p. 205), apoiado em decisões do Superior Tribunal de Justiça, "a interpretação das leis não deve ser formal", assim como a "interpretação meramente literal deve ceder passo quando colide com outros métodos de maior robustez e cientificidade". Uma leitura sistemática do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, revela que o art. 39, XII considera como prática abusiva "deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério". Entretanto, sob pena de incorrer em falta ético-profissional e, até mesmo por questões práticas, o médico não pode garantir um termo final para um tratamento (apesar de poder estabelecer um prognóstico), assim como não pode, por norma, ficar condicionado ao aperfeiçoamento de um acordo para estabelecer o termo inicial de tratamentos de urgência, emergência ou em algumas situações não eletivas associadas ao iminente perigo de vida (BRASIL, 1990). Ainda com relação às antinomias, a normativa consumerista determina que não se possa estabelecer um contrato em que o dano não seja indenizável, desta forma, aqueles casos de iatrogenia (dano médico justificável), não poderia ser aplicado. Segundo Nilo (2019, p. 84), um médico não pode exercer a promoção da saúde como uma mera prestação de serviço que vai ser trocada pelo dinheiro do seu paciente. Nem o paciente pode conceber que a sua própria saúde seja mero objeto de troca comercial numa relação de consumo. Em uma cadeia produtiva qualquer, todos os insumos, inclusive a própria mão de obra humana, são enxergados como mais uma despesa pelo empresário. Os custos que impactam no lucro interferem na estratégia. Na Medicina, essa lógica difere, já que, sobretudo está a saúde do paciente, pois, ao médico é vedado permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens do seu empregador, ou superior hierárquico, ou do financiador público, ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente, ou da sociedade, conforme está disposto no art. 20 do Código de Ética Médica (CFM, 2019). Em suma, não se pode imaginar que um típico fornecedor, exercendo livremente a sua atividade mercantil, seja impedido de fazer promoção de seus serviços. E mais, como poderia um "prestador de serviços comum" ser obrigado a trabalhar de forma gratuita, por dever profissional, independente de contraprestação acordada ou nomeação judicial? Contudo, os médicos, segundo a deontologia médica, não podem deixar de atender um paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Desse modo, conforme Takahashi (2021, p. 282), não teve o legislador, ao elaborar o Código de Defesa do Consumidor, a intenção de reger a atividade médica, visto que, o interesse protegido foi o comercial, ou seja, difere do interesse que permeia a relação entre médico e o paciente, não podendo conceber que a saúde seja objetivada, em que estaríamos contrariamente aos próprios avanços e conquistas bioéticas. Outro ponto importante é a questão da vulnerabilidade do consumidor, conforme já elencado neste artigo. Em que, na incidência da norma consumerista, se fala de uma vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor, para que ele não seja lesado na aquisição de um produto/serviço, bem como, possua segurança jurídica dentro do contrato consumerista. A vulnerabilidade do paciente decorrente da sua patologia. Podendo ser reduzida através de um diálogo informacional. O médico está em posição de superioridade ao paciente, porém, a vulnerabilidade que afeta o paciente na relação com o seu médico é uma vulnerabilidade que decorre da informação acerca da sua patologia. Diante disso, é possível chegar a uma relação horizontal, a partir do momento que o médico cumprir um processo informacional, empoderando seu paciente de conhecimento, falando a linguagem do paciente de forma humanística, fazendo com que o enfermo compreenda de forma efetiva os riscos, objetivos e alternativas do tratamento que está sendo proposto.  Assim, o médico reduz a vulnerabilidade do paciente e ele tem sua autonomia e autodeterminação respeitada, podendo realizar uma escolha esclarecida, que pode culminar em uma aceitação ou em uma recursa de tratamento. Em contrapartida, observando a vulnerabilidade do consumidor, percebe-se que ela foi criada para protegê-lo da massificação da economia, uma vez que, foi elaborado em um momento de processos inflacionário e em uma consequente elevação do custo de vida, o qual desencadeou fortes mobilizações sociais no sentido de proteção do cliente. Logo, visa resguardá-lo dentro de uma relação mercantil, que tem o lucro como objeto principal, sendo contrária à vulnerabilidade do consumidor. Ademais, a teoria do risco, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor para o regime de responsabilidade consumerista, não se mostra plausível com a natureza da relação paciente-médico. Na teoria do risco, o fornecedor responde objetivamente em função da prestação de um serviço que adiciona um risco ao consumidor, entretanto o médico não age no intuito de criar um perigo adicional para o paciente, mas atua sempre para redução do agravo na vida/na saúde do paciente que chega ao consultório.  (BRASIL, 1990).  Por fim, é notória diferença a hierarquia dos objetos na perspectiva deontológica e na perspectiva mercantil do CDC. Observa-se que, na relação médica regida pela deontologia, o ápice da pirâmide é a saúde e bem-estar do paciente. Já na perspectiva mercantilista, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, o ápice da pirâmide está no lucro e no interesse comercial. Desse modo, pode-se concluir que a segunda corrente entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico, frente à divergência de hierarquia entre os objetos protegidos. Considerações finais  Concluímos que, a incidência da normativa consumerista, nessa relação, implica consequências processuais, como a inversão do ônus da prova, prazo prescricional maior, vedação à denunciação da lide. É admirável a proteção da vulnerabilidade do consumidor, quando estamos diante de um contrato de adesão, como nos casos de plano de saúde, em que temos o lucro como elemento essencial, visto que, nesse caso, o consumidor se encontra em uma situação desigual e para que tenha seus direitos reconhecidos necessita de instrumentos processuais protetivos. Entretanto, como observamos no decorrer desse artigo, a evolução da relação médico-paciente, não nos permite considerá-la desigual, pois o paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo, segundo a moral e a doença, sendo essa uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde demonstra o cumprimento do processo informacional do médico, não possibilitando uma presunção automática de vulnerabilidade do paciente. Uma vez que, pacientes informados/esclarecidos e com acessos aos documentos médicos, não é, parte vulnerável. Logo, é necessária uma análise do caso concreto antes de considerar o paciente hipossuficiente, se ele não teve acesso às mesmas possibilidades probatórias do médico, deve ser invertido o ônus da prova, mas caso, as possibilidades probatórias sejam as mesmas, não se deve redistribuir o ônus da prova, conforme é disciplinado no Código de Processo Civil, no seu artigo 373, §1, que a inversão deve ser justa e equânime. Desse modo, é necessária uma maior reflexão acerca da incidência das regras consumeristas, principalmente, por conta das especificidades que a cercam. Por fim, é fundamental um maior debate, uma mudança de interpretação, pois a relação médico-paciente não deve ser mercantilizada por se tratar de intimidade, de dignidade, em que as partes possuem o único objetivo, o restabelecimento da saúde do paciente.  Referências  BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. 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Não havia, até a chegada da lei 14.478/2022, regulamentação legal no Brasil para a prestação de serviços de ativos virtuais. As prestadoras de serviços de ativos virtuais são chamadas exchanges ou corretoras. A lei chega para tentar proteger os consumidores nesse mercado e implantar boas práticas de governança e, sobretudo, transparência. No passado - e ainda hoje de certa forma - ocorria certa assimetria informacional entre os dados que o consumidor conhece e os dados que a corretora dispõe. Para diminuir essa assimetria é importante que a corretora faça prova robusta de suas reservas, mediante auditoria independente. Fundamental é conhecer os mecanismos de salvaguarda dos ativos dos clientes. Tudo recomenda maior transparência nas relações informacionais. Aliás, essa é uma das diretrizes do direito privado no século XXI. Nesse contexto, a regulamentação era necessária e é bem-vinda. O colapso da FTX em 2022 - a segunda maior exchange do mundo - representou um dos maiores escândalos financeiros dos EUA (mais de 1 milhão de credores perderam dinheiro com a fraude na FTX). Em dezembro de 2022, o fundador da corretora de criptomoedas FTX, Sam Bankman-Fried, foi preso nas Bahamas tendo os EUA pedido sua extradição (ele, aliás, em 2022 foi o segundo maior doador para as campanhas eleitorais nos EUA, tendo doado cerca de 77 milhões de dólares). Foram surgindo, aos poucos, para espanto de muitos, notícias sobre os desvios - maliciosos e ilícitos - que a empresa realizava usando ativos de clientes. Talvez para esses e outros que agem assim caiba a frase perspicaz de San Tiago Dantas, notável civilista nascido no início do século passado, que escreveu que "nada é mais próximo do máximo da ingenuidade do que o máximo da esperteza".    O Marco cripto (lei 14.478/2022) é lei fundamentalmente voltada para regrar as empresas que operam neste mercado, alterando pouco a situação dos usuários (ainda que traga mais segurança para esses, pelo menos em tese). A grande questão em termos de segurança do usuário - chamada segregação patrimonial - ficou de fora do arcabouço legislativo, por conta de lobby de parte do setor, o que é de se lamentar. A custódia de ativos é um tema central nesse mercado (a forma mais segura é armazenar os ativos em cold storage, que são sistemas desconectados da internet). A segregação patrimonial consiste, essencialmente, na imposição de separar o que é patrimônio da corretora e o que é do cliente, não podendo a corretora (exchange) manejar o patrimônio do cliente em outras aplicações, por exemplo. Em outras palavras, havendo segregação, a exchange fica obrigada a manter o dinheiro dos usuários (consumidores) isolado dos ativos corporativos dela, corretora (exchange). Assim, caso a corretora fique insolvente, o consumidor poderá reaver seu patrimônio. Sem segregação patrimonial, as corretoras - um mercado que não tem as limitações legais aplicáveis aos bancos, por exemplo - podem aplicar e emprestar recursos dos consumidores, o que é perigoso, como a experiência recente demonstra. A lei 14.478/2022 (arts. 2º e 4º) não definiu qual órgão ou entidade da administração pública federal ficará responsável pela tarefa regulatória e fiscalizatória. O mais provável é que venha a ser atribuída ao Banco Central a complexa tarefa de regular a questão em termos infralegais. É até possível - embora polêmico - que a segregação patrimonial (antes mencionada) venha a ser imposta por ato normativo infralegal do BACEN. Aliás, o real impacto da legislação dependerá, em boa medida, da normativa infralegal que virá. A CVM também terá função relevante nesse painel regulatório. Aliás, segundo reportagem do Valor Econômico de 22/12/2022, "influenciadores digitais, temas relacionados a práticas ESG e ofertas de security tokens distribuídas pelas principais corretoras cripto entraram no radar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para o biênio 2023-2024. O regulador incluiu esses tópicos no plano de supervisão baseada em risco para o próximo biênio, em que irá analisar os riscos ligados a tais atividades". O desafio das normas jurídicas nesse setor é imenso - deve o legislador, de um lado, conferir clareza ao mercado e segurança aos usuários. Por outro, deve evitar inibir inovações numa área essencialmente dinâmica e disruptiva. Aliás, em meio ao colapso da FTX - que trouxe imenso pânico, com sério abalo de credibilidade do mercado cripto como um todo - ocorreu algo inédito: os próprios players passaram a pedir que houvesse alguma regulamentação. Isso, antes, não ocorria: pelo menos a imensa maioria dos atores era contrário a qualquer regulamentação. O discurso contrário à regulamentação, no entanto, é ingênuo e pouco realista. A regulamentação é necessária não só para dar segurança aos consumidores como também para permitir a entrada de valores mais amplos nesse novo universo, valores provindos dos chamados institucionais - os grandes bancos, os fundos de investimento internacionais com reservas bilionárias. Regulação, se bem feita, rima com estabilidade e segurança jurídica. Assim, em termos econômicos, é possível que a regulação traga benefícios ao setor, havendo certa semelhança com o que aconteceu com as fintechs - termo que surgiu a partir da união entre as palavras finança e tecnologia, buscando soluções digitais de questões financeiras -, como o Nubank, por exemplo. Elas, as fintechs, ao serem regulamentadas, passaram a concorrer com os grandes bancos na prestação de serviços, ampliando consideravelmente sua carteira de clientes. Espera-se que a nova legislação traga ao mercado cripto brasileiro segurança, clareza regulatória, e maior adoção entre as pessoas. Afinal, trata-se de mercado que ainda é visto com desconfiança por muitos, confundido com fraudes e pirâmides financeiras (que existem, é bom que se diga). Trata-se de mercado que ainda sofre as dores do crescimento, que está aprendendo - através da dor e da perda patrimonial de muitos - a separar projetos sérios e fundamentados de outros sem lastro ou seriedade. É necessário ainda aprimorar os instrumentos de combate à lavagem de dinheiro através das criptomoedas. Olhando para a sociedade é fácil ver que vivemos dias em que os bens físicos perdem muito da primazia que tiveram nos séculos passados. Há uma clara desmaterialização dos bens. Paralelamente, os serviços ganham intensa, e progressiva, relevância econômica. Nossas profissões surgem a cada dia - ligadas, sobretudo, ao mundo digital - e muitas delas são financeiramente mais atrativas do que aquelas convencionais. Talvez não exageraríamos se disséssemos que muitos pais, hoje, não conseguem compreender bem o trabalho dos filhos. Enfim, podemos dizer, em autêntico truísmo, que o mundo mudou, está mudando. Além disso a tecnologia hoje permite organizar informações que antes se encontravam dispersas. O patrimônio, hoje, se virtualiza, perde a materialidade que tinha no passado. Hoje, aliás, não só os produtos e serviços migraram para o universo digital, mas também as fraudes e os crimes. Serviços que hoje são centralizados em instituições financeiras serão cada vez mais descentralizados. O sistema bancário assumirá outro perfil, novos e interessantes modelos de negócio chegam e outros chegarão - baseados em algoritmos, criptografia e blockchains. A figura do intermediário tende a perder importância, com modelos menos centralizados. Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes.  Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes1. Aliás, em meados do século passado Pontes de Miranda lembrava que a realidade dos direitos é independente da materialidade do objeto. As mudanças em hábitos sociais também são marcantes. Por exemplo, é interessante observar que novos tipos de sanções estão surgindo. Sanções sociais, amplamente difundidas por meio de mídias sociais. Também os mecanismos de avaliação através de clientes (Uber, por exemplo), sites de reclamação virtual, entre muitas outras. Os danos à imagem que podem ocorrer - seja a empresas, seja a pessoas físicas - são muito reais nesses casos. O curioso é que as novas gerações tendem a não buscar os mecanismos judiciais para resolver disputas (como compras que deram errado), mas costumam preferir caminhos ligados a algoritmos ou outras soluções digitais2. Talvez possamos acrescentar que as sanções sociais sempre existiram. Hoje, porém, atingem velocidade e difusão impressionantes. São muito mais temidas que outras sanções. Aliás, as mudanças que a internet trouxe - e continua trazendo - para a sociedade são tão intensas que impactam até a língua que é falada e escrita3. O século XXI tem redefinido muitas de nossas antigas certezas. Novas tecnologias renovam velhos hábitos. Um dos modos mais eficazes de criar valor no século XXI é unir criatividade à tecnologia. Aliás, podemos dizer que a pandemia fortaleceu - e acelerou - ainda mais a migração para o universo digital.  Luís Roberto Barroso lembra que a "conjugação da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões"4. Em termos jurídicos, os desafios são muitos. Os princípios, valores e funções do direito privado são formados pelo espírito coletivo de determinada época. Eles traduzem fontes que dialogam e definem dinâmicas respostas. Nos dias em que vivemos - ultraconectados e velozes - o direito privado se vê desafiado a abraçar novos papéis e a aceitar novas funções. Ele dialoga com a sociedade complexa em que se insere, daí extraindo multifacetado perfil. Não nega a complexidade social e tecnológica, nem vira as costas para as profundas mudanças em curso - que repercutem profundamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Tradicionalmente o direito costuma regular as relações sociais olhando para trás, para a tradição - mesmo diante das tecnologias. Acontece que isso não pode ser feito diante de tecnologias disruptivas. O direito, para permanecer relevante, precisa se adaptar dinamicamente às novas realidades. Convém relembrar da frase de George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - escrita nos anos 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". Em termos de criptoativos, muitos debates surgirão nos próximos anos (sobretudo sobre sucessão de ativos virtuais, sobre a penhora deles e, fora do campo do direito privado, a questão da tributação). Fora esses pontos específicos, talvez seja importante reconhecer que os potenciais regulatórios do direito são limitados (em relação às criptos). Se é verdade que o Estado pode regulamentar e até controlar as corretoras (exchanges), que nada mais são que empresas centralizadas (semelhantes a tantas empresas tradicionais do mercado financeiro), o mesmo não se pode dizer, por exemplo, do Bitcoin. Este é, por excelência, descentralizado, e nenhum governo ou qualquer outra entidade terá sucesso ao tentar controlá-lo, ao que nos parece. Aqui, portanto, o direito pode pouco, novas realidades se impõem e ninguém sabe ao certo os próximos passos disruptivos que virão. Cabe ainda uma palavra sobre a IA (Inteligência Artificial) neste contexto. Ninguém se atreve a negar quão fortes são os impactos da IA nas dinâmicas sociais atuais. Trata-se de algo que está profundamente vinculado à nossa (atual) vida diária, ainda que nem sempre percebamos5. A IA possui vasta conectividade e pode tomar decisões de forma muita rápida. É uma ferramenta com extraordinária capacidade de gestão, com potenciais notáveis, únicos (a lista de usos ocuparia muitas páginas, citemos apenas alguns: aplicativos variados de celular, operações bancárias, veículos, aviação, navegação, drones, medicina, educação, serviços de segurança, robôs industriais, operações na bolsa, turbinas eólicas, e até armas autônomas letais). Não é exagero afirmar que a IA, hoje, salva vidas nas múltiplas aplicações possíveis (pensemos na medicina, na aviação, em mecanismos variados de segurança). Aliás, a IA atinge hoje campos que sequer imaginamos (um exemplo trivial: a bola da Copa do Mundo de 2022 possuía sensores que enviavam dados 500 vezes por segundo para 26 antenas ao redor do campo, tudo comandado pela inteligência artificial). As funcionalidades algorítmicas são inestimáveis, assim negativas como positivas, cabendo ao direito reprimir umas e promover outras. O direito relativo à IA (Inteligência Artificial) deverá refletir um pouco o próprio campo tecnológico que pretende regrar. Será em certa medida complexo, dinâmico, terá tons profundamente atuais. Trará uma espécie de balanceamento entre ser estável e ser ágil. Terá que aprender a lidar com padrões técnicos e não com pura retórica. Precisará contar com padrões de avaliação que são constantemente revisados. Enfim, os desafios não são desprezíveis. Aliás, a  própria filosofia do direito terá que se debruçar sobre a normatividade tecnológica6. Requisitos e funções da ordem jurídica podem estar em jogo. Convém ao olhar doutrinário distinguir o essencial do acessório, o passageiro do permanente, tentar discernir as linhas de tendência mais relevantes. É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. Estamos mudando muito, e muito rápido. É preciso ter aquele senso, dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo. Voltando ao Marco da Criptos (lei 14.478/2022), este deve ser interpretado, em diálogo das fontes, juntamente com o CDC e a LGPD. Há uma convergência sistêmica entre os microssistemas, que resultam numa proteção privilegiada ao cidadão (seja como consumidor, como titular de dados, como investidor). O desafio, hoje, é concretizar os direitos fundamentais - e a solidariedade social - dentro do direito privado (mas não só nele). Não é desejável que haja burocracia, é preciso regras claras e fiscalização para salvaguardar os ativos dos clientes. A (difícil) fórmula é proteger o consumidor sem cercear o ambiente de inovação que existe nesse setor. Aliás, o art. 13 do Marco das criptomoedas prevê que se aplicam às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições do CDC. Essa previsão didática, pedagógica, é importante - embora o CDC fosse aplicável ainda sem ela. De todo modo, com a dicção expressa da lei 14.478/2022, ficam previamente afastadas quaisquer discussões hesitantes: o CDC é aplicável ao serviços prestados pelas corretoras de criptomoedas7. Além de tudo isso, em outra situações, o fato de ser aplicar o CDC favorece, sem dúvida, uma interpretação integrada e herdeira de toda a principiologia construída ao longo de mais de 30 anos de sua vigência. O CDC é uma lei comprometida com os valores deste século, que dirige os olhos para os interesses da vítima, especialmente em condições de vulnerabilidade. É um microssistema que vem, ao longo das décadas, sendo em grande parte reconstruído e forjado por intensa construção jurisprudencial, superando uma concepção individualista em favor de uma visão aberta, dinâmica e funcional. As soluções que o direito privado precisa oferecer são mais complexas, porque a sociedade é mais complexa. Essa relação vai sempre existir. Sociedades marcadas por maior simplicidade e estabilidade nas relações sociais aceitam melhor soluções estáticas e relativamente simples. O século XXI exige, ao contrário, esquemas dinâmicos e funcionais, que devem refletir a pluralidade e os desafios imensos oriundos da revolução digital. Essas tecnologias cada vez mais farão parte de nossas vidas, e de modo profundo. A questão é compatibilizar isso com princípios éticos e respeito aos direitos fundamentais. O desafio é buscar soluções preventivas e funcionais. As reflexões contextualizadas, os diálogos entre as fontes normativas, a teoria dos direitos fundamentais redefinem as respostas jurídicas do século XXI, com forte tom ético e solidarista. O direito, hoje mais que ontem, é aprendizado constante. O que nos serviu ontem não necessariamente servirá hoje - e precisamos todos, individual e coletivamente, ter a sensibilidade para ouvir as respostas do amanhã. __________ 1 O Enunciado 687 das Jornadas de Direito Civil (CJF) enfatiza: "O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo". A justificativa do Enunciado aponta como exemplos dessa categoria: Bitcoins, direitos autorais sobre conteúdos digitais; perfis, publicações e interações em redes sociais e plataformas digitais com potencial valor econômico; arquivos em nuvem, sites, etc. Dizemos nós: qualquer outro criptoativo (altcoins) também entram nessa categoria, além dos NFTs e outras tantas possibilidades (como a propriedade intelectual dos códigos-fontes dos algoritmos). 2 MAGALHÃES, Matheus L. Puppe. Disruptive technologies and the rule of law: autopoiesis on an interconnected society. BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JR, José Luiz de Moura (Coords). Direito Digital e Inteligência Artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 536. 3 McCULLOCH, Gretchen. Because Internet: understanding the new rules of language. Nova York: Riverhead Books, 2019. 4 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78. 5 PASQUALE, Frank. The Black Box Society: the secret algorithms that control money and information. Harvard University Press, 2016; SALES, Philip James. Algorithms, Artificial Intelligence and Law. Judicial Review, v. 25, n. 1, 2020; FRISCHMANN, Brett; SELINGER, Evan, Re-engineering Humanity, Cambridge University Press, Cambridge, 2018; BUCKLAND, Michael. Information and society. Cambridge: The Mit Press, 2017; FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016; SARMAH, Simanta Shekhar. 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Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, 6 PAGALLO, Ugo; DURANTE, Massimo.The philosophy of law in an information society. In: FLORIDI, Luciano (Ed.). The Routledge handbook of philosophy of information. Londres: Routledge, 2016. 7 Sendo aplicável o CDC, concretamente falando, o usuário das corretoras poderá se valer, por exemplo: a) da possibilidade de solicitar a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII); b) da possibilidade de propor a ação em seu domicílio, ainda que outro seja o domicílio da corretora (CDC, art. 101, I); c) do prazo prescricional mais amplo (5 anos, segundo o art. 27 do CDC, ao invés de 3, do Código Civil, para a prescrição da pretensão da reparação civil); d) as corretoras não podem ser valer da denunciação da lide (o art. 88 do CDC veda em algumas hipóteses, mas o STJ foi além, afirmando: "Não é possível, em nenhum caso, nos processos que têm como objeto relações de consumo, haver denunciação à lide (STJ, AgRg no AREsp 157.812); e) sem falar que são inválidas as cláusulas contratuais que excluam ou mesmo atenuem o dever de indenizar, em caso de dano (CDC, art. 51, I). Convém lembrar ainda que os deveres de informação, por parte dos fornecedores de produtos e serviços, no âmbito do CDC, são singularmente fortes".
Com a aprovação da lei 14.470/2022, que alterou a lei 12.529/2011 (a Lei de Defesa da Concorrência), objetivou-se o fortalecimento do arcabouço jurídico para propositura de ações de reparação por danos concorrenciais pelas vítimas de condutas praticadas por agentes econômicos que ofendem a livre concorrência. Trata-se da velha conhecida ação indenizatória, respaldada no instituto da responsabilidade civil, estrutural e funcionalmente disciplinado pelo Código Civil, que assegura o exercício da pretensão reparatória em qualquer hipótese de dano indenizável. No âmbito das infrações econômicas, a ação indenizatória ganhou alguns contornos próprios, especialmente a partir da recente alteração da Lei de Defesa da Concorrência, que adotou sistemática incomum na nossa tradição jurídica, diante da possibilidade de dobra no valor da indenização em algumas hipóteses (conforme o §1º adicionado ao artigo 47 da Lei). Tal possibilidade, agora expressamente prevista em nosso ordenamento, constitui exceção ao princípio da reparação integral, este que funciona como piso e teto no valor da indenização, ao determinar a reparação na medida da verificação dos prejuízos, nem menos, nem mais. Para o melhor aproveitamento das potencialidades da ação indenizatória, inclusive para sua efetiva contribuição, juntamente com as respostas administrativa e criminal também existentes para o aprimoramento do ambiente concorrencial brasileiro, é fundamental que os jurisdicionados bem conheçam o ferramental relacionado às ações de reparação (em geral), e também bem compreendam as questões que exsurgem na seara concorrencial. Dentre elas, uma que se destaca é a dificuldade de distribuição das responsabilidades, tanto de quem quanto para quem.  Isto é, uma vez conhecidos os fatos violadores da concorrência e sua autoria, há ainda o desafiador trabalho de calcular os prejuízos decorrentes da infração, a proporção devida a cada vítima, e quem deve responder por cada fração, uma vez que os danos concorrenciais, por sua própria natureza, são espraiados, sempre impactam a coletividade - não à toa esta é expressamente referida no artigo 1º da Lei de Defesa da Concorrência como a titular dos bens jurídicos protegidos pela norma concorrencial. Diante da perspectiva coletiva, é possível compreender mais facilmente que agentes econômicos que atuam em cadeia de distribuição podem ser vítimas de outro(s) agente(s), mas ao mesmo tempo repassar os prejuízos sofridos nas relações de mercado, tornando-se, a um só tempo, vítimas e autores de danos. Em tais situações, o intérprete deverá analisar o caso sob a perspectiva do nexo de causalidade entre os danos sofridos e a conduta do(s) agente(s) econômico(s). Com efeito, em sede de reparação de danos, inclusive os concorrenciais, a apuração do nexo de causalidade importa para dois desafios principais: o primeiro relacionado à dificuldade da prova da existência de vínculo entre a conduta imputável (com ou sem culpa, conforme a responsabilidade seja subjetiva ou objetiva) e o dano sofrido e, notadamente, a suficiência do vínculo para fins de imputação do dever de indenizar.  Lembre-se que em sede de infrações econômicas, se o conhecimento da conduta ilícita não é levado a público, por vezes eventuais partes prejudicadas sequer terão ciência do vínculo entre eventual lesão econômica sofrida e o ato ilícito que lhe deu origem, tampouco terão acesso aos meios de comprovação para fins de obtenção de posterior reparação. Mas, apesar das (enormes) dificuldades com a prova do vínculo entre o dano e o ilícito, ela deve ocorrer, pois a responsabilidade civil tem seus próprios pressupostos, que devem ser observados. O segundo desafio tem relação com a definição da proporção exata da contribuição da conduta lesiva para o resultado danoso, afinal qualquer prejuízo econômico pode ser causado por múltiplas variáveis, havendo prejuízos que podem ser provocados por fatores externos à ação do agente infrator, mas que se somam à sua conduta, dando novos contornos aos danos, mas não necessariamente imputáveis ao agente.  Esta questão fica mais delicada em situações de crises sucessivas como as que temos vivido, como a de origem sanitária iniciada em 2020, a política que começou até antes da sanitária, e, mais recentemente, o impacto da guerra da Ucrânia em todas as economias conectadas em cadeia global. As questões que se relacionam ao tema do adequado sopesamento das causas, e, mais especificamente, ao tema do eventual rompimento do nexo de causalidade, exigem dos intérpretes especial atenção ao que seja causa juridicamente relevante para imputação da responsabilidade civil a qualquer agente infrator. Afinal, o autor do dano deve sempre responder na medida de sua efetiva participação para o resultado, seja nas hipóteses em que tem culpa, ou mesmo quando não tem, quando a responsabilização é objetiva e a culpa não é condição para a imputação de responsabilidade. A vítima de danos concorrenciais pode buscar, em princípio, sua reparação junto a mais de um agente econômico envolvido na produção do resultado danoso - devendo, entretanto, as partes ter cuidado com as inovações legislativas trazidas pela Lei 14.470/2022, que, também de maneira excepcional no ordenamento brasileiro, mudou substancialmente a regra sobre a solidariedade dos agentes (em situações ligadas à assinatura, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, de um acordo de leniência ou um termo de compromisso de cessação de prática, conforme o novo §3º incluído no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência).  Sem prejuízo das questões atinentes à solidariedade, especialmente nas relações em cadeia vertical, o elemento causal deve ser objeto de atenção tanto das vítimas, para que possam obter o ressarcimento pelos danos sofridos, quanto do agente econômico que se insere na cadeia de distribuição, pois este pode ser, como mencionado, vítima e também causador de danos a terceiros, ao repassar adiante os prejuízos sofridos. É possível cogitar da responsabilização solidária em alguns casos, sendo o agente aí entendido como coautor que pode ser acionado pela(s) vítima(s).  Mas em outros casos, ele será mais uma vítima, que se soma a outras na coletividade, considerando os possíveis impactos nos seus próprios resultados econômicos.  Daí a importância dos estudos sobre a causalidade, sobre a qual várias teorias já foram desenvolvidas pela doutrina, em esforço contínuo de dar solução aos problemas de distribuição de responsabilidades e quantificação do valor indenizatório.  Nessa temática, de acordo com a previsão legal contida no artigo 403 do Código Civil, confirma-se a adoção, pelo legislador brasileiro, da teoria da causa direta e imediata, a qual, temperada pela teoria da causalidade necessária, permite apontar mais de um responsável em situações jurídicas complexas, tais como as relacionadas aos danos concorrenciais. Em um artigo desenvolvido para a Revista IBERC, editada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, busquei apresentá-las e apontar, seguindo a contribuição de diversos autores que me precederam, como as teorias podem funcionar para a atribuição, ou, no sentido inverso, para o afastamento do dever de indenizar por um agente econômico inserido em relações de cadeia com outros agentes infratores. O nexo causal acaba sendo elemento chave para dar tratamento adequado a muitas situações, dentre as quais, aquelas conhecidas como de pass-on defense, ou defesa por efeito repasse no curso das cadeias verticais de produção, que vem à tona quando um agente econômico que sofre prejuízos em suas operações em decorrência de conduta lesiva de outro agente eventualmente os repassa adiante ao longo da cadeia produtiva, integral ou parcialmente.   No julgamento de condutas de qualquer agente no mercado, inclusive eventuais repasses de prejuízos, a racionalidade econômica impõe reconhecer oscilações que podem ocorrer nos preços e nas práticas comerciais por múltiplas razões, e, justamente há que se identificar razões e práticas legítimas, considerando que nosso sistema jurídico é orientado pela livre iniciativa e operante pela lógica de mercado.  Mas isto não equivale a reconhecer que quaisquer oscilações possam ser justificáveis, fazendo com que, em alguns casos, o repasse seja antijurídico e interpretado de diferentes maneiras, conforme a perspectiva do sujeito cujos interesses se busca tutelar. Assim, em sede de danos concorrenciais, além do cuidado com as inovações trazidas pela Lei 14.470/2022, é preciso, antes, atentar à normativa geral trazida pela Código Civil referente ao instituto da responsabilidade civil.  Ao estabelecer um sistema jurídico que aponta o nexo causal como elemento que opera de um lado como pressuposto constituinte e quantificador, mas de outro também regulador do dever de reparação, em verdadeira função dúplice, o legislador na prática em algumas situações facilitou a reparação, em outras impôs limite à pretensão reparatória.  Fica o convite para a abordagem mais aprofundada sobre o tema na primeira edição de 2023 da Revista IBERC.  Boa leitura!
Recorrentemente o Poder Judiciário é acionado em demandas judiciais propostas por adquirentes ou condomínios que, alegando a ocorrência de vícios construtivos nas edificações (unidades autônomas ou áreas comuns), requerem a condenação das empresas para a realização dos reparos devidos (indenização pecuniária ou obrigação de fazer). Não se negue que aquele que adquire uma unidade autônoma em construção tem o direito de receber o imóvel em regulares condições de uso e habitabilidade e com a observância do escorreito atendimento às boas práticas da engenharia civil. Todavia, reconheça-se que boa parte das edificações (sobretudo aquelas de grande porte) está sujeita à necessidade de alguns ajustes quando da sua conclusão, dada as complexidades que envolvem a construção civil. Nesse sentido, é comum às construtoras manterem um departamento de assistência técnica cujo objetivo é atender aos diversos chamados que podem surgir imediatamente após a entrega da edificação. Isso porque ao receber a sua unidade autônoma, o adquirente pode notar, por exemplo, mau acabamento da pintura, incorreto funcionamento de instalações elétricas ou hidráulicas ou a necessidade de ajustes diversos. O condomínio, representado pelo síndico, também costuma solicitar reparos, principalmente após a ocupação do edifício, oportunidade em que a edificação é efetivamente testada em sua plenitude. Mas além dos defeitos construtivos aparentes e simples, mesmo após determinado período de ocupação, os adquirentes e síndicos podem se deparar com vícios ocultos, ou seja, aqueles que somente serão efetivamente constatados meses ou até mesmo anos após a entrega da edificação. Cite-se, nessa esteira, infiltrações em paredes e subsolos, problemas estruturais, inadequação de materiais empregados na obra, erros do projetos, dentre outras questões. A partir do aparecimento dos vícios e havendo relação de consumo, os consumidores possuem pretensões distintas. Sendo a hipótese de vícios aparentes e de fácil constatação, o Código de Defesa do Consumidor confere ao consumidor o prazo de 90 dias para reclamá-los (art. 26, inciso II). O mesmo CDC também estabelece que na hipótese de os vícios serem ocultos, o prazo para a reclamação inicia-se a partir do momento em que o defeito ficar evidenciado (art. 26, § 3º). O Código Civil, a seu turno, também dispõe a respeito dos prazos conferidos ao adquirente na hipótese do aparecimento de vícios construtivos. Como medida mais drástica, o Código permite que o adquirente possa redibir o contrato (ou obter o abatimento no preço) no prazo decadencial de um ano, contado da entrega efetiva (art. 445). Contudo, caso o vício, por sua natureza, só possa ser conhecido mais tarde, o prazo conta-se do momento em que dele tiver ciência o adquirente (art. 445, § 1º). Discute-se, todavia, qual a extensão do vício que permitiria a redibição do contrato, com a devolução integral dos valores pagos pelo adquirente. Embora a parte lesada pelo inadimplemento possa escolher entre a indenização (e, consequentemente, manutenção do contrato) ou resolução do vínculo (art. 475, do Código Civil), diversos autores entendem que se o descumprimento contratual não for relevante o suficiente, não cabe a opção do mecanismo resolutório, tal como defendem Araken de Assis1 e Ruy Rosado de Aguiar Júnior2. Na doutrina mais contemporânea, Giovanni Ettore Nanni3 destaca que "[...] para fins de resolubilidade [...] o inadimplemento perpetrado no caso concreto deve ser não apenas incurável como também necessita de qualificação adicional: ser severo"4. O debate doutrinário leva em consideração a ausência de regra específica no Código Civil brasileiro (contrariamente à legislação italiana5 e portuguesa6) de dispositivo que inadmita a resolução quando o inadimplemento contratual tiver escassa importância (scarsa importanza). Por outro lado, o artigo 395, parágrafo único, determina que "se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos". Justamente por isso é que se defende que se o vício construtivo for sanável e não impactar na habitabilidade da edificação, o pleito resolutório deve ser afastado, para que o contrato seja mantido, sem prejuízo da possibilidade de propositura de ação indenizatória para o reparo. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já entendeu que a inadequação do sistema de ar-condicionado em empreendimento hoteleiro não admite a redibição do contrato, considerando que perícia prévia reputou o vício como sanável e quantificou o valor de reparo7. Mas se não é o caso de redibição do contrato, seja porque os requisitos para tanto não estão previstos, seja porque a opção do lesado é o reparo e a manutenção do contrato, qual o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória? Não obstante certa hesitação da jurisprudência (em especial dos tribunais estaduais), o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que, a partir da constatação do vício, o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória (e não redibição contratual, reitere-se) é decenal8. Esse entendimento foi reforçado a partir do EREsp nº 1.280.825/RJ que considerou que nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral do art. 205 do Código Civil9. Ocorre que o prazo decenal, estabelecido genericamente para a pretensão referente à indenização dos vícios construtivos, talvez deva ser repensado pela doutrina, assim como o "prazo quinquenal de garantia" normalmente referido pela jurisprudência10 e localizado no artigo 618, do Código Civil. Tal como já asseverado por Nelson Rosenvald e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, o fato de o contrato de compra e venda poder ser considerado de longa duração não significa que o fornecedor está obrigado a uma garantia ad eternum12.  Há que se pensar que toda edificação é formada por diversos sistemas e materiais construtivos distintos. A fundação de uma edificação deve ser projetada para que resista por muitos e muitos anos e, portanto, o prazo de vida útil deve ser extenso. Contudo, a pintura da fachada normalmente tem prazo de vida útil de até três anos e, após tal interregno, há perda da garantia do sistema e a edificação deve ser repintada. Como se nota, na construção civil há sistemas que são feitos para perdurarem no tempo por longo prazo, enquanto a pintura, o rejunte dos pisos, as lâmpadas, dentre outros elementos ou componentes possuem prazo de vida útil inferiores. Não é possível, portanto, atribuir genericamente o prazo de cinco anos como a "garantia" da construção, seja porque esse prazo é insuficiente para garantir a estabilidade da fundação que, por exemplo, possui prazo de vida útil superior a trinta anos, seja porque o prazo é extenso demais para garantir componentes e sistemas mais simples. A prática no contencioso envolvendo ações de vícios construtivos demonstra que dentre as diversas demandas propostas, algumas ações pleiteiam o reparo de sistemas cujo prazo de vida útil já foi exaurido, há anos. Normalmente acompanhada de um parecer técnico de engenharia, são apontados diversos vícios construtivos, mas não se demonstra que o sistema reclamado ainda possui prazo de vida útil vigente ou que a manutenção predial foi realizada, tal como determina o Manual de Uso e Operação da edificação. Não há separação entre o que efetivamente é vício construtivo (de responsabilidade do construtor) e o que pode ser considerado vício decorrente (i) da ausência de manutenção; (ii) da irregularidade de uso ou (iii) do transcurso do prazo de vida útil do sistema, o que poderia afastar a responsabilidade do construtor. Nesse sentido, é necessário maior debate acadêmico sobre questões técnicas envolvendo a construção civil. A manutenção predial, por exemplo, é indispensável a qualquer construção e engloba um plexo de cuidados técnicos aptos a preservar o bom desempenho de uma edificação13. Sem que a manutenção predial seja realizada, não há como se atingir a vida útil e o desempenho dos sistemas, elementos e componentes construtivos. Assim, "a manutenção não pode ser feita de modo improvisado e casual. Ela deve ser entendida como um serviço técnico, cuja responsabilidade exige capacitação apurada"14. Inexiste no Brasil legislação federal que obrigue expressamente os condomínios a realizarem as manutenções prediais devidas, bem como registrarem em livro próprio as ações adotadas. A regra genérica que obriga o síndico a diligenciar a conservação e guarda das partes comuns estabelecida no art. 1.348, inciso V, do Código Civil, em nosso ver, é insuficiente. É verdade que a Lei Estadual (RJ) nº 6400/2013 foi um passo importante, porque determina a realização periódica de autovistoria nos condomínios, bem como a emissão de laudo técnico cujos apontamentos obrigam o Condomínio. Lamenta-se, contudo, que a legislação tenha aplicação regional, apenas no estado do Rio de Janeiro. Diante da ausência de legislação federal que regule questões envolvendo manutenção predial, prazos de vida útil e garantias da construção civil, algumas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) foram editadas nos últimos anos. Tais normas possuem papel relevante no âmbito da engenharia civil, mas também poderiam ter relevância no direito. A NBR 5674 de 2012 dispõe dos requisitos para a gestão da manutenção em edificações de forma a preservar as características originais da edificação e prevenir a perda de desempenho decorrente da degradação dos sistemas, elementos ou componentes da construção civil. Referida norma, portanto, estabelece um conjuntos de ações e registros que devem ser realizados pelos condomínios para o bom atendimento da manutenção predial. Já a ABNT 15575-1 de 2013, conhecida como "norma de desempenho", estabelece os prazos de vida útil dos sistemas construtivos e os prazos mínimo de desempenho, bem como destaca a importância da manutenção predial para que a construção possa atingir referidos prazos. Mais recentemente, a NBR 17170 de 2022 estabeleceu prazos recomendados de garantia que, segundo a norma, deve ser [...] o tempo em que o fornecedor é responsável perante o consumidor por corrigir falhas nos produtos por ele fornecidos e originados no processo de sua concepção e produção, desde que seja realizada a manutenção devida, os produtos sejam corretamente utilizados e observadas as demais condições prevista no manual de uso, operação e manutenção deste produto. Como exposto acima, é verdade que as referidas normas técnicas, embora relevantes no âmbito da construção civil, nem sempre são levadas em consideração pelo intérprete do direito brasileiro. Apesar do artigo 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor determinar que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços colocar no mercado qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas da ABNT, não obriga o consumidor a atender às disposições das referidas normas. O objetivo do presente artigo é apontar que nas ações indenizatórias envolvendo vícios construtivos, não deve o intérprete se valer de soluções genéricas e simples. O Código Civil, em nosso ver, não é suficiente para estabelecer as regras necessárias envolvendo os prazos para tais ações e é papel da doutrina o melhor desenvolvimento da matéria. Como defende José Carlos Puoli15, os prazos estabelecidos no Código Civil deveriam ser alterados. Enquanto a matéria não é suficientemente tratada pelo legislador, é necessário que o juiz, nas ações envolvendo vícios construtivos, atente-se para saber se (i) o sistema sobre o qual se reclama está (ou não) dentro do prazo de vida útil; (ii) se o usuário (adquirente ou condomínio) observou as determinações relacionadas à manutenção predial. Na hipótese de ambas as respostas serem afirmativas, a responsabilidade civil do construtor estará mais evidenciada, facilitando a prova pericial normalmente produzida nesse tipo de demanda. Esperamos que a doutrina reconheça que no âmbito do direito imobiliário, o conhecimento técnico de engenheiros, arquitetos e órgãos técnicos, tal como é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas, podem contribuir muito na resolução de conflitos e na melhor elaboração das leis. __________ 1 Segundo o Autor o "[...] inadimplemento relativo impede, irrevogavelmente, o acesso ao mecanismo resolutório [...]. Por conseguinte, o inadimplemento deverá se revestir de características muito relevantes para autorizar a resolução. A existência se manifesta nas várias modalidades de descumprimento. Sua reiteração constante, nessas áreas, indica talvez o interesse na preservação do vínculo, em detrimento do seu desfazimento, e aponta o inadimplemento absoluto, porque, elimina em definitivo a possibilidade de o obrigado prestar, como única modalidade admissível em sede resolutiva". (ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114). 2 "[...] para a dissolução do vínculo e quebra do contrato, certamente há de se exigir um incumprimento mais forte e qualificado, que esteja, assim, a atingir o contrato na sua substância, e não em simples acidente ou qualidade. Para o cumprimento fora do tempo, referido no art. 394 como causador de perdas e danos, o art. 395, parágrafo único adjetiva-o como inútil, para só então autorizar a resolução. Analogicamente, se há de considerar as demais espécies de incumprimento: para resolver, a falta deve atingir substancialmente a relação, afetando a 'utilidade' da prestação. Como a utilidade deriva da capacidade da coisa ou do ato em satisfazer o interesse do credor, temos que a prestação inútil - que pode ser enjeitada e levar à resolução do contrato e mais perdas e danos - é a feita com atraso ou imperfeições tais que ofendam substancialmente a obrigação, provocando o desaparecimento do interesse do credor, por inutilidade. Ao reverso, quando, não obstante a mora, o cumprimento ainda é possível e capaz de satisfazer basicamente o interesse do credor ou quando, apesar da imperfeição do cumprimento, parcial ou com defeitos, foram atendidos os elementos objetivos e subjetivos a serem atingidos pelo cumprimento, diz-se que o adimplemento foi substancial e atendeu às regras dos arts. 394, 395 e 389 do Código Civil, afastando-se a resolução." (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. p. 132). 3 NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 580. 4 No mesmo sentido vide BIAZI, João Pedro de Oliveira de. Resolução do contrato de compra e venda na incorporação imobiliária: breves considerações sobre o art. 43-A da Lei 4.591/1964. Migalhas. Publicado em 09/02/2023. Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2023. 5 Art. 1.455. Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). Tradução livre: "O contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes for de pouca importância, resguardado o interesse da parte contrária". 6 Artigo 802.º (Impossibilidade parcial) 1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização. 2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância. Artigo 808.º (Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento) 1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente. 7 "[...] MÉRITO. Insurgência que prospera. Existência de vício no sistema de ar-condicionado que, no caso em tela, não autoriza a resolução contratual. Vício que é passível de reparação e não há comprovação de que obsta o exercício da atividade hoteleira, finalidade da contratação. Autores que, ao contrário, afirmaram que não questionam vícios na prestação de serviços hoteleiros e o resultado financeiro da exploração hoteleira [...] Sucumbência dos autores. RECURSOS PROVIDOS." (TJSP, Apelação Cível 1024047-23.2019.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Viviani Nicolau). 8 DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. 2. Ação ajuizada em 19/07/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 08/01/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é o afastamento da prejudicial de decadência e prescrição em relação ao pedido de obrigação de fazer e de indenização decorrentes dos vícios de qualidade e quantidade no imóvel adquirido pelo consumidor. 4. É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (art. 26, II e § 1º, do CDC). 5. No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no art. 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 ("Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra"). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ, REsp n. 1.721.694/SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03/09/2019, DJe de 05/09/2019.) 9 STJ, EREsp n. 1.280.825/RJ, Segunda Seção, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/06/2018, DJe de 02/08/2018. Ainda a respeito dos prazos envolvidos na construção civil, vide GUERRA, Alexandre. Incorporações imobiliárias. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2.011. p. 649 e seguintes; GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 649 e seguintes; BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. A responsabilidade civil do incorporador imobiliário. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 681 e seguintes. 10 TJSP, Apelação Cível 1004648-61.2020.8.26.0048, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Augusto Rezende; j. 27/10/2022; Data de Registro: 27/10/2022. 11 ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsability. Conjur. Publicado em: 02/03/2022. Acesso em 17 fev. 2023. 12 No mesmo sentido, José Carlos Puoli aduz: "É dizer, não pode ser eternizado, nem tampouco desarrazoadamente grande, o período dentro do qual um construtor/incorporador irá responder pela construção realizada. É que, se assim acontece, eleva-se a insegurança, estimulam-se conflitos e, ainda, é acarretado relevante aumento no custo da produção, com efeitos deletérios não apenas para construtores/incorporadores, mas também para contratantes e consumidores de 'produtos imobiliários', que acabam tendo que conviver com preços mais elevados no mercado". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670. 13 GOMIDE, Tito Lívio Ferreira. A manutenção das obras de construção civil deve ser obrigatória e periódica? Blog do Instituto de Engenharia. Disponível aqui. Acesso em: 25 jan. 2020. Como bem destacado por Carlos Pinto Del Mar "Nenhum edifício é imune à degradação provocada pelo ambiente, pelo uso ou pelas características intrínsecas de seus materiais constituintes. Mesmo que tenha sido concebido, projetado e construído corretamente, devem ser esperados problemas causados pelo desgaste normal dos produtos de construção utilizados. A negligência nas atividades de manutenção provoca degradação do edifício construído, gerando consequentemente uma também crescente insatisfação de seus usuários". (DEL MAR, Carlos Pinto. Direito na construção civil. São Paulo: Pini/Leud, 2015. p. 184). 14 NBR 5.674: Manutenção de Edificações - Procedimento, p. 02. 15 Segundo o autor: "[...] parece necessário que a verificação destes prazos seja alterada, para que não mais prevaleça a generalização que tem sido verificada na prática, cumprindo que se contemple leitura conjunta de fatores jurídicos e técnicos, de forma que se possa ter mais uma justa solução destes caso, seja para prestigiar o dono de uma edificação que precisa obter o justo 'reparo' das decorrências de um vício construtivo, seja para não onerar desarrazoadamente o construtor/incorporador que deve se ver isento da obrigação de responder pelo bem, desde que ultrapassado um prazo razoável de tempo, o qual varia em vista do tipo de construção que se estiver tratando". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670.
O Direito de Danos no Brasil tem como um de seus princípios basilares a regra insculpida pelo artigo 935 do Código Civil, que fixa a independência entre as esferas cível e criminal. Pela máxima contida no dispositivo, certas condutas poderão corresponder à sanção estatal pela aplicação da pena aos fatos considerados típicos e também poderão culminar na responsabilização civil em favor da vítima. A independência permite que as jurisdições caminhem por vias próprias. É porque a responsabilidade jurídica, como gênero, admite fontes diversas, como bem observa Maria Helena Diniz "Na responsabilidade penal o lesante deverá suportar a respectiva repressão, pois o Direito Penal vê, sobretudo, o criminoso; na esfera civil, ficará a obrigação de recompor a posição do lesado, indenizando-lhe os danos causados, daí tender apenas à reparação, por vir principalmente em socorro da vítima e de seu interesse, restaurando seu direito violado"1. Por esta mesma razão é que a parte ofendida, embora não seja obrigada, pode aguardar que todo o trâmite processual penal seja concluído para que somente depois proponha a respectiva ação de reparação de danos. Garantem-lhe tal faculdade a suspensão da prescrição prevista pelo artigo 200 do Código Civil, mas também a previsão do artigo 63 do Código de Processo Penal, o qual prevê a chamada ação civil ex delicto, isto é, execução da reparação de danos mediante apresentação de título consistente em sentença penal condenatória transitada em julgado2. Todavia, em celebração ao princípio da segurança jurídica e também da prevenção às decisões conflitantes, há exceção à independência prevista no corpo do artigo 935 do Código Civil. Isso porque, uma vez decididos no juízo criminal, a autoria e o fato não mais poderiam ser objeto de discussão no juízo cível. Em outros termos, transitada em julgado uma sentença penal condenatória ou absolutória, não mais se faria necessário o reexame de fato e autoria no juízo cível, que restaria adstrito, quando o caso, à discussão do quantum indenizatório. A ressalva é compatível com a previsão do artigo 315 Código de Processo Civil3, que autoriza a suspensão do processo até que se resolva no juízo criminal a verificação da existência de fato delituoso, complemento ao que já constava do parágrafo único do artigo 64 do Código de Processo Penal. Feita a ressalva é preciso reconhecer, portanto, que havendo sentença penal condenatória, pouco se pode fazer em matéria de instrução probatória no juízo cível que extrapole o debate da extensão dos danos. Hipótese distinta quando ocorre sentença absolutória. Afastada a participação do autor da suposta ofensa ou, ainda, ocorrendo excludentes de ilicitude como o reconhecimento de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de um direito, não há como persistir em demanda reparatória no juízo cível4. De outro lado, nos casos de arquivamento de inquérito ou se a absolvição decorre, por exemplo, do reconhecimento da atipicidade do fato ou da extinção da pretensão punitiva, mantém-se a independência das jurisdições e será possível ao ofendido a propositura da ação civil para a rediscussão de fato e autoria. Confirmam essas conclusões a questão levada, por intermédio do Recurso Especial nº 1.802.170/SP5, ao julgamento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a independência das jurisdições, quando a sentença absolutória decorre da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. No caso, a Relatora Nancy Andrighi destaca que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". Em suma, a prescrição na seara criminal não exaure o debate quanto à autoria ou existência do evento, mantendo hígida a regra da independência. Ocorre, porém, que o avanço da técnica processual tem implementado métodos alternativos de resolução dos litígios, incluindo a esfera criminal, como se extrai do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), regulamentado no Brasil por ocasião do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019) e incluído no Código de Processo Penal pela disciplina do artigo 28-A6. Em apertada síntese, o ANPP é oferecido pelo Ministério Público como substitutivo da denúncia quando, não cabendo arquivamento do feito, tratar-se de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, desde que o acusado aceite confessar circunstancialmente (a autoria do fato supostamente delituoso), fixando-se uma medida de reparação e reprimenda alternativa, tal qual elencado nos incisos do dispositivo legal regulamentador. É possível dizer que mecanismos de tal estirpe possuem natureza de negócios jurídicos pré-processuais, isso porque ao aceitar essa posição idealmente mais benéfica instituída com a formalização do acordo, o acusado suprime o "processo, a produção da prova e o contraditório em troca de um sancionamento mais célere e consentido pela defesa"7. A questão que se coloca é, havendo ANPP e eventualmente esbarrando a conduta tanto na esfera criminal quanto na cível, é possível a utilização do acordo homologado para afastar a independência das jurisdições, partindo da premissa de que a autoria e existência do fato encontram-se resolvidas na justiça penal? Em outros termos, qual seria o alcance de um ANPP homologado para além da esfera criminal e como isso impacta na prática o debate da responsabilidade civil? A questão merece algum aprofundamento. Inicialmente, como mencionado, a interpretação sistemática do artigo 935 do Código Civil pressupõe, como exceção à regra da independência das jurisdições, a existência de sentença penal transitada em julgado. O diálogo entre tal dispositivo e o artigo 63 do Código de Processo Penal ao prever a ação civil ex delicto não revela interpretação diversa. Ou seja, apenas e tão somente a sentença penal condenatória transitada em julgado legitima, neste ponto, o exercício de uma pretensão executória. Ocorre que o ANPP tem características próprias de negócio jurídico prévio ao processo, ou seja, oriunda da renúncia ao enfrentamento da persecução e suas repercussões; dele não decorre sentença penal condenatória transitada em julgado. Significa também dizer que não há um mínimo de instrução probatória, uma vez que tudo resolve-se antes mesmo de eventual denúncia8, da qual o parquet abre mão pela realização do acordo. Em oportunidades pregressas, o Superior Tribunal de Justiça já pôde manifestar-se quanto à imprescindibilidade da sentença penal condenatória como pressuposto para afastar a regra geral de independência entre as jurisdições nas ações civis ex delicto. A lição fica evidenciada na análise do Recurso Especial nº 678.143/MG, sob a Relatoria do Ministro Raul Araújo9: [...]No entanto, a executoriedade da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou seu aproveitamento em ação civil ex delicto proposta no juízo cível (CPP, art. 64; CPC, arts. 110 e 265, IV) depende da definitividade da condenação, ou seja, da formação da coisa julgada criminal, até mesmo pela máxima constitucional de que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII)10. Em aprofundamento daquilo que fundamentou o Ministro Raul Araújo, talvez seja possível concluir que a repercussão da aplicação do ANPP em esferas diversas da criminal toca pontos de relevância constitucional, aos quais é possível agregar o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à não autoincriminação, como se verá. Não se pode perder de vista que a confissão circunstancial é elemento objetivo para a realização do acordo, pelo que consta do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Questiona-se, portanto, se essa confissão teria o condão de cravar a existência do fato e sua autoria, tornando-os incontroversos para o juízo cível e permitindo a excepcional quebra da independência entre as jurisdições. Primeiro, é preciso refletir sobre a natureza desta confissão tomada a termo pelo Ministério Público como elemento essencial à realização do acordo. O legislador, não por acaso, escolhe a expressão confissão formal e "circunstancial". Palavras não são em vão e neste caso a circunstancialidade decorre daquilo que se extrai do dicionário, ou seja, episódico, incidental, casual11. Não se confunde com o termo "circunstanciado", que, ao contrário, remete àquilo que é enunciado de forma pormenorizada, em todas as circunstâncias12. A confissão obtida no ANPP, pela letra fria da lei, tem finalidade exclusiva e limitada ao acordo, com objetivo evidente da obtenção do benefício identificado pela supressão do processo e suas eventuais consequências. Ainda são residuais os debates no ambiente cível, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha analisado questões similares em oportunidades recentes, notadamente vinculadas ao uso de acordos de leniência na esfera administrativa ou no aproveitamento de outras ações penais. Analisando a questão, Sílvio Luis Ferreira da Rocha e Oswaldo Henrique Duek Marques13 destacam o fato de que a obtenção extraprocessual da confissão não deveria, em princípio, prejudicar o confitente em outras esferas "pois o valor probatório da confissão seria nulo, pelo fato de não ter sido obtido em procedimento judicial". Nos autos de Agravo Regimental Pet. nº 7065-DF14, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, há interessante posicionamento de divergência adotado pelo Ministro Gilmar Mendes quanto ao compartilhamento de termos obtidos em colaboração premiada, que vai ao encontro da posição de Rocha e Duek Marques acima colacionada. Em sua análise, o Ministro destaca que o compartilhamento de declarações obtidas consensualmente em acordos de leniência para outras searas não incluídas expressamente no acordo podem condenar institutos de acordo ao seu esvaziamento, colocando em risco a sua própria efetividade, assim como possibilitaria a vulneração de direitos daquele que consentisse colaborar. Neste sentido, é preciso reconhecer que a confissão obtida circunstancialmente nos casos de ANPP decorre de uma declaração episódica, cujo objetivo revela-se na busca do sujeito em ver-se à salvo da persecução penal o que, após o balizamento das consequências, lhe pareceu mais favorável do que suportar o peso do processo. Entender de forma diversa, em casos similares, seria como atribuir ao colaborador o inconstitucional ônus da produção de provas contra si mesmo. Ademais, como bem destaca o Ministro Gilmar Mendes na mencionada divergência, "a utilização de tais elementos probatórios, produzidos pelo próprio colaborador, em seu prejuízo, de modo distinto do firmado com a acusação e homologado pelo Judiciário é prática abusiva, que viola o direito à não autoincriminação". Extrai-se daí que, uma vez entabulado o ANPP, em decorrência da própria publicidade do ato homologatório15, ficaria difícil frear que interessados dele tomassem conhecimento, todavia, nestes casos a utilização do termo serviria não para afastar a independência das jurisdições, mas para dar corpo e força às alegações da vítima na eventual instrução processual civil. Não é demais destacar que nem mesmo como prova emprestada o ANPP poderia ser usado com o fito de afastar o debate da autoria e da existência do fato, visto que o Código de Processo Civil exige a observância do contraditório16, atributo consolidado como requisito primordial pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 617.428-SP17; condição esta ausente nos negócios jurídicos pré-processuais, como o acordo de não persecução penal. Dito isso, longe de encerrar o debate, parece que, para fins de excepcionar a regra da independência das jurisdições cível e criminal contida no artigo 935 do Código Civil, o acordo de não persecução penal não preenche requisitos adequados, seja como título apto à ação civil ex delicto, seja para tornar incontroverso o fato e autoria, pois lhe faltam característica de sentença transitada em julgado: devido processo legal e ampla dilação probatória, sustentando-se sobre uma confissão, que nos próprios termos da lei, é específica para o ato e não pormenorizada e ampl. Conclui-se, destarte, havendo ANPP mantém-se necessária a instrução probatória quanto ao fato e autoria na esfera cível, sob pena de colocar em posição de vulnerabilidade não apenas a finalidade do instituto de transação em si, mas também direitos e garantias fundamentais a serem observados no estado democrático de direito e pela desejável interpretação civil-constitucional dos institutos jurídicos. __________ 1 Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 7. 26.ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 40. 2 Em sentido convergente é a posição de Cláudio Luiz Bueno de Godoy in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. PELUSO, Cezar (Coord.). São Paulo: Manole, 2007, p. 779. 3 Disponível em aqui. 4 CPP. Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Disponível aqui. 5 REsp n. 1.802.170/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/2/2020, DJe de 26/2/2020. 6 Disponível aqui. 7 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. O acordo de não persecução penal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2020 e 2021. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 191/2022, p. 93/120. Jul-Ago de 2022. 8 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Acordo de não persecução penal e a expansão da justiça criminal: natureza, retroatividade e consequências ao descumprimento. Boletim Revista do Tribunais Online, vol. 27/2022. Maio de 2022: "Por outro lado, mecanismos como a transação penal e o acordo de não persecução penal possuem natureza distinta, ao passo que não são direcionados à produção de provas, mas exatamente à exclusão completa do processo e de sua finalidade cognitiva epistêmica. Enquanto a colaboração premiada busca, de certo modo, produzir provas para se verificar os fatos imputados, a transação penal e o ANPP excluem por completo o processo e qualquer pretensão cognitiva." 9 REsp n. 678.143/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 22/5/2012, DJe de 30/4/2013. 10 No mesmo sentido: REsp n. 1.829.682/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 9/6/2020. 11 Confira aqui. 12 Confira aqui. 13 Acordo de não persecução penal e suas repercussões no âmbito administrativo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 95, Abr-Mai de 2020, p. 15. Os autores bem explicam sua posição: "Milita a favor dessa ideia o princípio do devido processo legal, pois evidente que a confissão teve por propósito beneficiar-se do acordo de não persecução penal. Ademais, a confissão obtida seria de natureza extraprocessual, prestada perante a Polícia ou Ministério Público, e, portanto, destituída de valor probatório, conforme se verifica do próprio sistema, ao admitir como provas emprestadas apenas aquelas submetidas ao crivo do devido processo legal judicial". 14 Pet 7065 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 30/10/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 19-02-2020  PUBLIC 20-02-2020. 15 Admite-se que no bojo do acordo sejam inseridas cláusulas de sigilo ou limitação de acesso. 16 CPC. Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório. 17 EREsp n. 617.428/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/6/2014, DJe de 17/6/2014.
A morte é vida intensa demais para quem fica1, e ela, em um certo dia de 2003, cindiu sem cerimônia um casal de catarinenses. Ainda em luto, Sebastião foi ao INSS solicitar sua pensão. Ao final de um tempo, entretanto, seu pleito foi rejeitado, porque no registro do óbito, e por consequência na certidão a partir dele tirada, o sobrenome de sua falecida esposa estava lamentavelmente errado. Se a morte, especialmente para quem ama, já é uma ofensa, um dano irreversível, um erro alheio é sempre capaz de piorar as coisas. Na época, chegando ao cartório, o viúvo soube que somente o juiz poderia reparar o erro. E assim se fez. O sobrenome foi retificado, porém não antes de três longos anos. Nesse período, Sebastião ficou sem a pensão. Indignado, mais uma vez bateu à porta do Poder Judiciário, desta vez querendo, em face do Estado de Santa Catarina, a indenização do seu prejuízo. O Estado resistiu, isentando-se de culpa instância após instância, até que a história chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 842.846. O Ministro Luiz Fux, percebendo que a pendenga extrapolava, até com folga, a perda individual do viúvo, afetou o julgamento ao sistema da repercussão geral, criando-se o Tema 777. O que fosse ali decidido repercutiria nos quatro cantos do país, servindo de regra, dali em diante, para os demais casos semelhantes, e vinculando as futuras decisões judiciais. Historicamente, em situações assim, os donos de cartório, mesmo quando não tinham culpa, muitas vezes viravam réus, e precisavam enfrentar duas correntes adversas que lhe atribuíam responsabilidade objetiva perante o usuário: (i) Uma primeira corrente defendia existir relação de consumo, fazendo incidir o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor2, o que não soa correto, já que os emolumentos têm natureza tributária (taxa), e os usuários são contribuintes, e não consumidores; e (ii) A segunda corrente baseia-se no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal3: sendo prestadores de serviço público, os titulares de cartórios, em nome da coerência do sistema, devem respondem objetivamente. Esta não parece ser a melhor interpretação, ante a literalidade do texto constitucional, que utiliza a expressão "pessoas jurídicas". Ora, os delegatários são pessoas naturais, que prestaram concurso público (art. 236, parágrafo 3º, da Constituição Federal4), e pagam seus impostos nesta condição. Tal dispositivo, assim, aplica-se ao Estado (pessoa jurídica de direito público), mas não aos cartórios. Claramente este era um cenário de insegurança jurídica e ineficácia judicial que demandava uma solução. Então, em 2019, tantos anos depois, o julgamento do RE 842.846 finalmente aconteceu. Como a unanimidade em assuntos polêmicos é algo mesmo raro, os Ministros se dividiram em três correntes: - para os Ministros Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, o Estado, mesmo sem culpa, responde objetiva e diretamente pelo erro do delegatário, desde que demonstrados o dano e o nexo de causalidade; - os Ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, a seu turno, concordaram que a responsabilidade do Estado é objetiva, porém subsidiária; ou seja, primeiro responde o titular do cartório que errou, também independentemente de culpa, e somente então, se este não tiver bens penhoráveis, o Estado vira o alvo, devendo cobrir o prejuízo; - finalmente, o Ministro Marco Aurélio Mello isentou o Estado de qualquer responsabilidade, cabendo esta unicamente ao delegatário. Com oito votos, a primeira corrente foi a vencedora, sendo criada a tese segundo a qual "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa". Em outras palavras, desde então, de forma vinculante, no país inteiro, a pessoa que sofreu o dano não precisa acionar o cartório; ela pode simplesmente demandar o Estado, sem precisar provar sua culpa, tendo apenas que provar a ocorrência do erro, o dano sofrido e o nexo causal entre o erro e o prejuízo. Ainda conforme a tese, o Estado, se condenado, tem não só o direito, mas o dever, sob pena de improbidade administrativa, de exigir o reembolso do titular do cartório, sempre que, e somente se, constatar a existência de dolo ou culpa. Tal suprema decisão, na prática, tirou os cartórios da linha de fogo a que sempre foram arrastados. Como visto, quando algo se passava, mesmo sem culpa da serventia, a tendência era sua inclusão no polo passivo da ação judicial. Só uma minoria, como Sebastião, se aventurava a mirar o Estado, enfrentando os riscos do dissenso jurisprudencial. A nova tese, contudo, chacoalhou a antiga equação de risco-benefício. Desde então, o que se vê nos tribunais estaduais foram decisões em sintonia, como ilustram os acórdãos a seguir, proferidos em sete Estados diferentes: Mato Grosso: "Ação de retificação de registro civil e indenização por dano moral. Transtornos causados pela serventia e pelo tabelião ... Tema 777 do STF... A serventia e os tabeliães não têm responsabilidade civil pelos atos praticados no exercício de sua função pública que causem prejuízo a terceiros, e são delegatários do Estado. Portanto, este é que deve figurar no polo passivo da demanda em que se discute o dano moral, e tem assegurado o direito de ajuizar ação regressiva".5 Mato Grosso do Sul: "O Supremo Tribunal Federal, ao... reconhecer a responsabilidade civil objetiva do Estado para reparar danos causados a terceiros pelo tabeliães, assegurando o dever de regresso contra o responsável, consignou que a responsabilidade do Estado, é direta, primária e solidária, premissa que permitia concluir que, além da já reconhecida possibilidade de questionamento da responsabilidade subjetiva do delegatório, a responsabilidade objetiva do Estado incidiria na modalidade solidária", sendo "indiscutível a legitimidade do Estado para figurar no polo passivo da lide".6 Paraná: "Extravio de registro de nascimento em cartório. Falha na prestação do serviço. Responsabilidade objetiva do Estado... Tema 777 do STF".7 Santa Catarina: "Entendimento em divergência com a tese jurídica firmada no Tema 777 do STF, tão somente quanto à fundamentação, para fazer constar o dever de regresso contra o responsável, em homenagem ao tema 777 do STF".8 Rio Grande do Sul: "Recorre o estado sustentando que foi incluído no polo passivo da demanda unicamente em vista da responsabilização solidária por ato do Tabelionato de notas. Destaca que os oficiais de registro não estão submetidos ao regime jurídico disciplinado pelo artigo 37 da Constituição Federal. ... delineando que os oficiais de registro são responsáveis pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. Entretanto, no julgamento do tema 777 o STF (RE 842.846) fixou a tese de que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa".9 São Paulo: (i) "Nulidade de escritura pública de venda e compra de imóvel... Reconhecimento judicial de falsidade da procuração apresentada, porque o outorgante já era falecido ao tempo da lavratura desse ato notarial... O Estado responde pelos danos decorrentes de ato dos delegatários de serviço público, quando praticados no exercício da função. Tema 777 do STF"10; (ii) "Conforme restou decidido no julgamento do RE nº 842.846/SC, a responsabilidade do Estado é objetiva, sendo cabível o direito de regresso nos casos em que a conduta tiver sido praticada com culpa ou dolo. Reforma da r. sentença para afastar a condenação solidária do tabelião (e seus herdeiros), de modo a se restringir a condenação apenas em face da Fazenda do Estado de São Paulo"11; e (iii) "O tabelião interino não deve responder solidariamente, apenas resguardado à Fazenda possibilidade de regresso em face do tabelião interino à época dos fatos. ... recurso da Fazenda Pública não provido, com observação quanto à aplicação do Tema 777, do E. STF ao feito, caracterizando a responsabilidade objetiva da Fazenda e, portanto, excluindo a responsabilidade solidária do corréu".12 Rio de Janeiro: "Responsabilidade objetiva e solidária do ente público em relação aos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções delegadas, causem danos a terceiros. Incidência do Tema 777 do STF".13 Como se vê, a antiga discussão acima está ficando no passado. Desde 2019 não há mais dúvida: em regra é melhor acionar o Estado, sem ter que provar culpa ou dolo, do que correr o risco numa ação contra o tabelião ou registrador, cuja responsabilidade é subjetiva. O sistema ficou mais coerente e justo, afinal. Pois não custa sublinhar, um imenso conjunto de delegatários em todo o país é formado por verdadeiros heróis da resiliência, que lutam diariamente para não terminarem o mês no vermelho, sem estrutura, com um caminhão crescente de regras e procedimentos a seguir, e com a espada da Corregedoria Geral de Justiça do Estado sobre as suas cabeças. Acionar tais pessoas significa correr um grande risco, mesmo em caso de sentença favorável, de não encontrar patrimônio penhorável. Assim, sendo mais difícil ganhar; e mesmo ganhando, sendo arriscado não levar, porque acionar o delegatário? Daí que a tendência, com a estabilização da jurisprudência, é que as ações futuras passem a ser dirigidas contra o Estado, e este, nas ações de regresso, quando ajuizadas, terá o ônus da prova contra o delegatário14, pois a Tese 777 é explícita em restringir a responsabilidade destes "aos casos de dolo ou culpa". O tempo revelará se a alvissareira decisão do STF será, em definitivo, motivo de alívio para notários e registradores. __________ *Este artigo é o desenvolvimento de outro publicado originalmente no Jornal do Notário nº 190, mar/abr 2019, pp. 26-27. Agradeço penhoradamente a Beatriz Delgado pelo trabalho de pesquisa jurisprudencial. 1 MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record, p. 152 2 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 3 Art. 37 (...) §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 4 Art. 236 (...) §3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 5 TJ-MT 10031402620178110041 MT, Relator: RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Data de Julgamento: 25/08/2021, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/08/2021 6 TJ-MS - AC: 08004608920208120018 MS 0800460-89.2020.8.12.0018, Relator: Des. Geraldo de Almeida Santiago, Data de Julgamento: 16/09/2021, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 21/09/2021 7 TJ-PR - RI: 00008090820198160194 Curitiba 0000809-08.2019.8.16.0194 (Acórdão), Relator: Aldemar Sternadt, Data de Julgamento: 31/08/2021, 4ª Turma Recursal, Data de Publicação: 31/08/2021 8 TJ-SC - APL: 00030413520108240016 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 0003041-35.2010.8.24.0016, Relator: Carlos Adilson Silva, Data de Julgamento: 09/11/2021, Segunda Câmara de Direito Público 9 TJ-RS - AC: 70083822106 RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Data de Julgamento: 04/11/2020, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 20/11/2020 10 TJ-SP - AC: 10198261720148260224 SP 1019826-17.2014.8.26.0224, Relator: J. M. Ribeiro de Paula, Data de Julgamento: 22/01/2021, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 22/01/2021 11 TJ-SP - AC: 10008600220188260568 SP 1000860-02.2018.8.26.0568, Relator: Camargo Pereira, Data de Julgamento: 04/05/2021, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 04/05/2021 12 TJ-SP - AC: 10057242020178260568 SP 1005724-20.2017.8.26.0568, Relator: Leonel Costa, Data de Julgamento: 27/04/2020, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/04/2020 13 TJ-RJ - APL: 00067341720168190061, Relator: Des(a). MARGARET DE OLIVAES VALLE DOS SANTOS, Data de Julgamento: 12/06/2019, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL 14  Enunciado 77 da I Jornada de Direito Notarial e Registral, realizada em mai/22: "As atividades notariais e de registros públicos são desempenhadas em caráter privado, sendo pessoal a responsabilidade civil e criminal do tabelião e ou do registrador por seus atos e omissões, de modo que as serventias extrajudiciais não possuem capacidade processual e são desprovidas de personalidade jurídica".
Em 27 de dezembro de 2022, foi publicada a lei 14.510, que "altera a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional". De imediato, é necessário fazer três observações. A primeira nota dirige-se à parte inicial da ementa dada à norma: "autorizar a prática de telessaúde". A prática da telessaúde, inclusive dentro do Sistema Único de Saúde, já era adotada em diversas ações e serviços de saúde antes mesmo da crise sanitária decorrente da Covid-19 ou de regulamentações do Conselho Federal de Medicina. A histo'ria da telemedicina na~o e' ta~o recente quanto se imagina. O seu surgimento, assim como os questionamentos e'ticos e juri'dicos que de sua pra'tica decorrem, remontam ha' mais de um se'culo, confundindo-se com o pro'prio desenvolvimento das tecnologias de comunicac¸a~o e informa'tica. No Brasil, embora tenha chegado tardiamente em razão do pouco acesso às novas tecnologias e do alto custo de implantação e utilização, o uso da telemática em saúde teve início na década de 80, quando começaram a ser desenvolvidos diversos projetos de informática em saúde. Desde então, ações e serviços de telessaúde e de telemedicina são desenvolvidos nos sistemas públicos e privados de saúde e, durante a pandemia de Covid-19, confirmaram a sua importância e aniquilaram muitas resistências (em especial da classe médica). A segunda observação dirige-se ao fato de estar a revogar lei já revogada: a lei 13.989/201, que autorizou o uso da telemedicina, em caráter emergencial, durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Há duas imprecisões importantes: a primeira é de que não havia lei anterior proibindo o uso da telemedicina no Brasil, portanto, não era necessária uma lei para autorizar o seu uso durante a pandemia, bastava que os conselhos profissionais a ela não se opusessem. O próprio Conselho Federal de Medicina autorizava o uso da telemedicina para a realização de alguns atos médicos desde 2002 (Resolução n. 1.643, CFM, revogada pela Resolução n. 2.314/22, CFM2-3). Segundo, ao que tudo indica, a vigência da lei 13.989/20 não estava propriamente condicionada à existência "da crise" provocada pelo SARS-Cov-2, mas sim, parece estar subordinada à vigência do estado de emergência sanitária de importância internacional no Brasil, o que seria tecnicamente mais apropriado. Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de emergência4 sanitária, definido como "uma situação extraordinária que constitui um risco de saúde pública para outros Estados através da disseminação internacional de doenças e por potencialmente exigir uma resposta internacional coordenada" (Regulamento Sanitário Internacional5 - RSI)6. A categorização da Covid-19 como uma emergência de saúde pública internacional possui não apenas um caráter sanitário, mas também político, servindo de alerta à comunidade internacional sobre as necessárias medidas de cooperação para contenção da doença. No Brasil, o fundamento constitucional do estado de emergência está previsto nos arts. 136 e 141, CF e, na área sanitária, também no Decreto Legislativo n. 395/20097, que ratificou o RSI, e no decreto 7.616/118, que dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e determina que a declaração será efetuada pelo Poder Executivo federal, por meio de ato do Ministro de Estado da Saúde, o que de fato foi feito com a publicação da Portaria n. 1889, GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, seguida da lei 13.979/2010, que dispôs sobre as medidas de enfrentamento da Covid-1911. Apenas em 22 de abril de 2022, por meio da Portaria n. 91312, GM/MS, declarou-se o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV). Com vacatio legis de 30 dias, oficialmente o ESPIN foi encerrado em 23 de maio de 2022 e, por consequência, todas as normas cuja vigência era excepcional (vinculadas ao ESPIN) automaticamente foram revogadas. Portanto, desnecessário que a lei 14.510/22 fizesse qualquer menção à revogação da lei 13.979/20, porque ela já não estava mais vigente. A terceira observação refere-se aos conceitos de telessaúde e de telemedicina constantes na lei 14.510/22. A Telemática13 em Saúde caracteriza-se pela utilização de meios de telecomunicação e informática para a prática de atividades sanitárias que tenham por objetivo promover, prevenir ou recuperar a saúde individual e coletiva. Didaticamente, pode-se dividir as finalidades da Telemática em Saúde em dois grandes grupos (espécies) que reúnem uma multiplicidade de técnicas de práticas de saúde a distância que variam conforme o seu objetivo. Adotando-se essa orientação tem-se, então, dois grandes grupos: a Telessaúde que engloba todas as ações voltadas para a prevenção de doenças (Medicina Preventiva), educação e coleta de dados e, portanto, direcionadas a uma coletividade, a políticas de saúde pública e disseminação do conhecimento. E o segundo grupo que é denominado Telemedicina e abarca toda a prática médica à distância voltada para o tratamento e diagnóstico de pacientes individualizados (identificados ou identificáveis)14. Assim, são exemplos de Telessaúde: a teledidática; a telefonia social; as comunidades; bibliotecas virtuais e videoconferências; os aplicativos didáticos para smartphones. Já os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telemedicina (resolução 2.314/22, CFM) são: teleconsulta ou consulta em conexão direta; teleatendimento; teletriagem; telepatologia; telerradiologia (resolução 2.107/2014, CFM); telemonitoramento ou televigilância (homecare); telediagnóstico; telecirurgia (resolução 2.311/2022, CFM); teleterapia; sistemas de apoio à decisão; aplicativos de atendimento para smartphones15. As revogadas resoluções 1.643/2002 e 2.227/18, CFM, incorreram na mesma confusão conceitual tratando sob o mesmo guarda-chuva telemedicina diferentes tipos de procedimentos, inclusive os tipicamente de telessaúde. A confusão persiste com a resolução 2.314, CFM, publicada em 5 de maio de 2022, que em seus considerandos afirma que "o termo telessaúde é amplo e abrange outros profissionais da saúde, enquanto telemedicina é específico para a medicina e se refere a atos e procedimentos realizados ou sob responsabilidade de médicos"; e define no art. 1° a "a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde". Perpetuando o mesmo equívoco e ainda confundindo as modalidades com as técnicas e os instrumentos utilizados, a lei 14.510, define no art. 1°, a telessaúde como sendo aquela que "abrange a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área de saúde regulamentadas pelos órgãos do Poder Executivo federal", sendo "modalidade de prestação de serviços a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, que envolve, entre ouros, a transmissão segura de dados e de informações de saúde, por meio de textos, de sons, de imagens ou outras formas adequadas" (art. 26-B, da lei 8.080/90). Para alguns pode parecer bobagem discutir esses conceitos. Mas, na prática, as implicações são diferentes16. É preciso compreender corretamente o que se está a regular e autorizar a fim de se garantir mínima segurança jurídica. Feitas essas breves considerações iniciais, é necessário também analisar o que é o princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio da telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90). Verificadas as justificativas do projeto de lei17, parece o princípio conduzir mais a um ideal bioético de adoção responsável da telemática em saúde, do que propriamente tem um conteúdo jurídico, embora desse não possa se desvencilhar. Segundo Cláudio Choen18 "a ética é algo de dentro do indivíduo (dever com); a moral é imposta pela sociedade (tenho que respeitar as normas); somos julgados pelas atitudes (o que fazemos, o que optamos); e essa atitude será sua responsabilidade (responder por ela). Assim, a moral digital tem como finalidade melhorar a sociedade, trazendo inovações, otimizando processos, possibilitando vantagens e até melhorando a qualidade de vida. Sem esse propósito, seu uso não é ético". Portanto, sob o ponto de vista ético ou de cultural organizacional, a responsabilidade digital estaria associada a práticas e estratégias adotadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz, além de torná-los mais acessíveis. No entanto, a ausência de técnica legislativa ou de traduções imprecisas de princípios contidos em normas estrangeiras19, como é o caso da inclusão do princípio da "responsabilidade digital" como princípio da telessaúde na lei 14.510/22, pode confundir em vez de auxiliar. Do ponto de vista jurídico, o tal princípio parece estar mais direcionado ao que se entende por accountability20, parte importante da governança de dados (plano ex ante21no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos. A Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18/LPGD) estabeleceu como um de seus princípios, o da responsabilidade (art. 6o., X, LGPD), que reafirma a responsabilidade dos agentes de dados pelo tratamento de dados pessoais e consequente conformidade com os marcos legais (art. 50, LGPD). "É esse o espírito do princípio da accountability descrito no art. 6°, inciso X! O foco é a ampliação do espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post"22. Sendo a LGPD inafastável da telemática em saúde (qualquer que seja a sua espécie), a Lei n. 14.510/22, ao estabelecer o princípio da responsabilidade digital como princípio informador da telessaúde no Brasil, parece estar a determinar que todos aqueles que utilizem sistemas telemáticos nas ações e serviços de saúde (públicos ou privados) são obrigados a fornecer segurança aos seus titulares e adotar boas práticas de governança capazes de garantir a privacidade sobre os dados tratados. Para a aplicação dos diversos princípios estabelecidos na LGPD (art. 6°), "caberá ao controlador dos dados pessoais, observados a estrutura, a escala e o volume de suas operações, bem como a sensibilidade dos dados tratados, a probabilidade e a gravidade dos danos para os titulares dos dados, implementar programas de governança em privacidade de dados que, no mínimo, possuam as seguintes características: a) demonstre o comprometimento do controlador em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento, de forma abrangente, de normas e boas práticas relativas à proteção de dados pessoais; b) seja aplicável a todo o conjunto de dados pessoais que estejam sob seu controle, independentemente do modo como se realizou sua coleta; c) seja adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas operações, bem como à sensibilidade dos dados tratados; d) estabeleça políticas e salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade; e) tenha o objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular, por meio de atuação transparente e que assegure mecanismos de participação do titular; f) esteja integrado a sua estrutura geral de governança e estabeleça e aplique mecanismos de supervisão internos e externos; g) conte com planos de resposta e incidentes de remediação; e h) seja utilizado constantemente com base em informações obtidas a partir do monitoramento contínuo e avaliações periódicas"23. A falta de um marco legal mais claro acerca da proteção de dados na telemática em saúde (para além da LGPD) exige um esforço redobrado para se compreender o seu alcance. Por isso, "padrões de segurança da informação precisam ser estabelecidos de forma segura diante dos graves riscos de incidentes de segurança de dados pessoais sensíveis24", qualquer que seja o sistema de saúde ou a ação e o serviço em que se adote a telemática em saúde. A segurança de dados exige conduta proativa e mitigação de riscos25 (accountability), ainda mais quando se está a realizar tratamento de dados sensíveis (como os dados de saúde). Portanto, quando se estabelece como princípio da telessaúde no Brasil a responsabilidade digital, não se está a falar apenas de otimização e transparência de processos, mas especialmente, se está a impor "um circuito decisório justo sobre o fluxo informacional. Essa deve ser a essência do princípio da accountability no campo da proteção de dados"26, dever geral de segurança capaz de proteger a autodeterminação informativa como principal fundamental que é (art. 5°, LXXIX, CF/88). __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui e aqui. 3 Vide também, Portaria n. 1.348/2022, Ministério da Saúde. Disponível aqui. 4 Disponível aqui e aqui. 5 Implementação do RSI - 58o. Conselho Gestor - 72a. Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas. O RSI entrou em vigor no dia 15 de junho de 2007. Disponível aqui. 6 No entanto, a declaração de pandemia só foi feita pela OMS em 11 de março de 2020. 7 Disponível aqui. Tradução do RSI aprovada pelo Congresso Nacional. Disponível aqui. "Emergência de saúde pública de importância internacional" significa um evento extraordinário que, nos termos do presente Regulamento, é determinado como: (i) constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença e (ii) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada". 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Portaria n. 356, 11 de março de 2020, Ministério da Saúde - Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19).  12 Disponível aqui. 13 Telemática é o resultado das expressões telecomunição e informática que engloba sistemas, processos, procedimentos e instrumentos. Telecomunicações, na definição de Ralph M. Stair e George W. Reynolds "referem-se à transmissão eletrônica de sinais para as comunicações, incluindo meios como telefone, rádio e televisão. [...]. A comunicação de dados, um subconjunto especializado das telecomunicações, refere-se à coleta eletrônica, ao processamento e à distribuição dos dados - geralmente, entre os dispositivos de hardware do computador. A comunicação de dados é completada por meio do uso da tecnologia de telecomunicação" (STAIR, R.M.; REYNOLDS, G.W. Telecomunicações e redes. In: _____. Princípios de sistemas de informação. Trad. Alexandre Melo de Oliveira. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2002. p. 172). Informática é a junção dos termos informação + automática, sendo considerada "a ciência que estuda o tratamento automático e racional da informação".  Termo utilizado pela primeira vez em 1957 pelo alemão Karl Steinbuch, em artigo publicado sob o título Informatik: Automatische Informationsverarbeitung (Informática: Processamento de Informação). Mas o termo se popularizou a partir de 1962 quando foi empregado pelo francês Philippe Dreyfus (informatique) na designação da sua empresa "Sociedade de Informática Aplicada" (SIA). Em 1967 a Academia Francesa adotou o termo para designar a "ciência do tratamento da informação" e a partir de então o termo se difundiu por todo mundo (LANCHARRO, E.A.; LOPEZ, M.G.; FERNANDEZ, S.P. Informática básica. São Paulo: Pearson Makron Books, 1991. p. 01). 14 SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico (Coords.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. Indaiatuba, SP: Foco, 2022. 15 SCHAEFER; GLITZ (Coords.), ibid. 16 Exemplo claro da confusão ocorreu durante a pandemia de Covid-19. O Ofi'cio n. 1726/20, CFM, encaminhado ao Ministério da Saúde solicitava a liberação de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta, para o período de emergência sanitária. Procedimentos bem diversos daquele liberado pela Portaria n. 467/20, MS (que autorizava a teleconsulta, embora se refira à telemedicina de maneira genérica) e pela Lei 13.989/20, que autorizava a telemedicina (também em conceito tecnicamente errado) durante a situação de emergência em saúde pública de importância internacional. Resultado, o que se pediu estava muito aquém do que foi liberado. O que ocorreu na prática estava muito além do que se pretendia autorizar. Daí a importância de se delimitar corretamente telemedicina e telessaúde e todas as suas variáveis, para se compreender sobre o que se está a legislar. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Como, por exemplo, A HIPAA (Health Insurance Portability and Accountability Act, 1996) americana.   20 "Na língua inglesa, entretanto, há outros termos representativos de outros sentidos para o conceito jurídico de responsabilidade. Ao lado de liability, colocam-se três outros vocábulos: responsability; answerability e accountability. Os três podem ser traduzidos para a língua portuguesa como 'responsabilidade', mas seus sentidos, em verdade, diferem do conteúdo monopolístico que as jurisdições da civil law conferem à liability, como palco iluminado da responsabilidade civil (arts. 927 a 954, do Código Civil). Em comum, os três vocábulos transcendem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas camadas à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e à velocidade dos arranjos sociais contemporâneos. Enfim, tem-se a accountability, e a partir dela ampliamos o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil e a regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post" (ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JUNIOR, José de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (Coords.) Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomas Reuters, 2022). 21 No plano ex post "a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, norteando a identificação e a quantificação de responsabilidade e lastreando o estabelecimento de remédios mais adequados (e sua gradação/dosagem)" (id., p. 779). 22 (id., p. 791-792). 23 GIOVANNINNI JUNIOR, Josmar Lenine. Fase 4: governança de dados pessoais. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega (Coord.). LGPD. Manual de Implementação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 167-188). 24 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Patient Safety in e-Health and Telemedicine. Lex Medicinae - Revista de Direito da Medicina, n. Especial (2014), p 95-106. Disponível aqui. World Health Organization (WHO). Global Observatory for eHealth [Internet]. Geneva: WHO; 2005. Disponível aqui. 25 MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo. Editorial. Civilistica. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. 26 DIAS, Daniel. Notas sobre o princípio da accountability. Disponível aqui.
O artigo se propõe a debater a existência da lista bancária proibida como uma forma de retaliação pelo exercício do direito de ação dos consumidores que acionam os bancos e, em razão das ações favoráveis, são penalizados com restrição de crédito. Ações contra bancos e financeiras não são incomuns. De acordo com dados consolidados no CNJ e também pelas próprias cortes Estaduais1, ao lado de empresas de transporte aéreo, concessionárias e telefonia celular, os bancos estão no ranking de maiores acionados por consumidores no Judiciário. Se, como já abordado na Coluna do IBERC2, o excesso de processos é, em parte, uma falha no controle regulatório, na medida em que 40% das ações decorrem de relação de consumo entre consumidores e bancos/telefonia que nem sequer precisariam chegar ao Judiciário, a litigância excessiva apenas prejudica o próprio desenvolvimento das atividades jurisdicionais. Ocorre que, é isso um dado concreto, os processos chegam ao Judiciário. Consumidores que entendem que foram lesados buscam o Judiciário para defesa dos seus interesses. O presente texto se propõe a analisar o pós-processo. Consideremos o seguinte caso hipotético: João litiga judicialmente em face de Banco X e a ação é julgada procedente com o reconhecimento de que a conduta do Banco foi ilícita. Dois meses após o pagamento da indenização arbitrada, João é cientificado pelo Banco que seu limite do cartão de crédito será, no prazo de 60 dias, reduzido em 40% em decorrência de análise interna. Inconformado com a redução de limite, o consumidor questiona a razão da redução, porém não recebe nenhuma resposta esclarecedora. Em não raras situações, os bancos têm promovido retaliações, sob o argumento de exercício regular de direito, em prejuízo daqueles que acionam o Judiciário. Nesse sentido, consumidores que já possuem um histórico de litigância contra bancos são notificados de uma redução de limites no cartão de crédito ou acesso ao crédito, por exemplo. Em um cenário de redução de crédito, mostra-se fundamental verificar os elementos objetivos e subjetivos do caso. São exemplos recorrentes as situações de redução de crédito em desfavor de consumidores com alta pontuação no Serasa Score, sem variação de renda e adimplentes com suas obrigações. Se, por um lado, é direito subjetivo dos bancos promover uma análise do crédito e, eventualmente, reduzir ou majorar os limites disponíveis, tem-se que as empresas precisam motivar essa redução de crédito justamente para afastar eventual revanchismo pelo exercício do direito de ação dos consumidores. O fato de a redução de crédito ser unilateral não afasta o dever de motivação e transparência, notadamente por representar uma consolidação do dever de informação. A inversão do ônus da prova e a distribuição dinâmica do ônus da prova exigem que o Banco prove, administrativa ou judicialmente, a razão da redução do limite de crédito, sob pena de presunção de que se trata de uma retaliação em decorrência do ajuizamento, pelo consumidor, de uma ação judicial. Assim, surge a existência de uma lista proibida bancária, uma espécie de relação de personae non gratae. O consumidor não consegue provar a existência da lista, mas a falta de motivação e uma atuação direcionada em prejuízo, curiosamente, daqueles que já litigaram em face da Instituição bancária apenas reforça a hipótese de que ela existe. Nesse sentido, a jurisprudência já se manifestou sobre a existência da lista proibitiva3: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. NEGATIVA DE CONCESSÃO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO JUDICIAL CONTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DESCABIMENTO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTUM MANTIDO. Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência exarada na ação de indenização por dano moral decorrente da não concessão de crédito em razão do ajuizamento de ação judicial contra instituição bancária. A prática de elaboração e consulta de "lista" com nomes de consumidores que buscaram tutela judicial em face de abusividades que entendiam presentes em contratos bancários são atos flagrantemente ilegais e abusivos. As instituições financeiras negam sua existência, pois cientes da impossibilidade de registro de tais fatos, que atenta, inclusive, contra o direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, na forma do artigo 5º, XXXV, da CF. Nenhuma lista negativa pode ser criada, fomentada ou consultada se o seu conteúdo for a restrição de crédito a quem ingressou com ação judicial contra empresa integrante do sistema financeiro, por seu caráter limitador de direitos e discriminatório. In casu, logrou a parte autora produzir prova dos fatos constitutivos do seu direito, demonstrando suficientemente os fatos narrados na exordial. As testemunhas ouvidas no feito apontaram que a lista existe e a demandante teve o crédito negado por conta de sua inclusão. Em razão... disso, responde o segundo requerido por ter alimentado o sistema com a informação, que no caso concreto ainda encontrava-se equivocada, já que não ajuizou a parte autora ação revisional, mas demanda declaratória de inexistência de débito. Por sua vez, a responsabilidade do segundo requerido decorre do fato de ter acessado o cadastro e negado crédito à parte demandante. Outrossim, não há que se falar em descabimento de aplicação de pena de multa para fins de dar efetividade ao provimento cominatório dirigido à exclusão do cadastro, que encontra previsão legal no art. 461 do CPC. Sentença de procedência mantida. APELAÇÕES DESPROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70050395730, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, Julgado em 01/10/2015). DANO MORAL Responsabilidade Civil "Restrição Interna" do banco contra o autor, em razão de débitos em uma conta bancária que não contratou. Informação que, apesar de não acessível a terceiros, limita o acesso do correntista à plenitude dos serviços oferecidos pela Instituição Financeira aos consumidores nas mesmas condições - A existência de restrições internas ou outras espécies de "listas negras", consiste em prática ilegal, uma vez que, pelo art. 43 e seu § 1º da Lei n. 8.078/90, o consumidor tem direito a ter acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes, e os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão - Clandestinidade e abusividade O conhecimento da existência de informações depreciativas, ainda que inverídicas e reservadas, traz ao negativado mais que mero aborrecimento ou dissabor, mas verdadeiro constrangimento e ofensa à honra, por ser considerado mau pagador, sendo desnecessárias maiores provas disso, o que se presume. Fixação. Razoabilidade - Recurso do réu e apelo adesivo desprovidos. (TJ-SP - APL: 03195829820098260000 SP 0319582-98.2009.8.26.0000, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 18/06/2013, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/06/2013) RECURSO INOMINADO. PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULADO COM EXTINÇÃO DE DÍVIDA. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE SERVIÇO BANCÁRIO EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO CREDITÓRIA INTERNA, EM "LISTA NEGRA" MANTIDA PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ENVOLVIDAS. SENTENÇA QUE AFASTOU A PRETENSÃO DO CONSUMIDOR. PROVIMENTO DO RECURSO PARA RECONHECER A ILICITUDE DAS RESTRIÇÕES CREDITÓRIAS, COM ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MORAIS CONFIGURADOS, CANCELANDO AINDA A DÍVIDA IMPUTADA AO CONSUMIDOR SEM PROVA DA ORIGEM. (TJ-BA 103898220081 BA, Relator: WALTER AMÉRICO CALDAS, 5ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS, Data de Publicação: 16/07/2010) RELAÇÃO DE CONSUMO - INDENIZATÓRIA - INGRESSO EM LISTA NEGRA COMO REPRESÁLIA - APONTAMENTO INDEVIDO DO NOME DO CONSUMIDOR NO SERASA - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO OPE LEGIS - INÉRCIA DA INSTITUIÇÃO RÉ - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - OCORRÊNCIA - LISTA NEGRA QUE TERIA SIDO CRIADA A PARTIR DE PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL ANTERIOR CONTRA A INSTITUIÇÃO - CONDUTA ILEGAL, ABUSIVA E DISCRIMINATÓRIA - SITUAÇÃO VIVENCIADA PELA AUTORA QUE ULTRAPASSA A SEARA DO MERO DISSABOR - PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO - DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Alegação de negativa de crédito decorrente de inserção do nome da correntista em lista negra dos bancos, além do apontamento do nome da autora em cadastros de inadimplentes. A lista negra configura instrumento ilícito de retaliação, pelo simples fato de o consumidor ter ingressado com demanda judicial contra instituição financeira, desestimulando o exercício do direito de ação garantido constitucionalmente. Dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva atrelada à teoria do risco do empreendimento. A inclusão do nome da parte em cadastro de inadimplentes, por si só, gera, independentemente de prova, o dano moral in re ipsa. Verbete Sumular 89 do TJ/RJ. Negado provimento ao apelo principal, restando improvido o recurso adesivo. (TJ-RJ - APL: 00112421020188190037, Relator: Des(a). EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, Data de Julgamento: 07/07/2020, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2020-07-10) É sabido, contudo, da existência de decisões em sentido contrário que apontam para a existência de listas de restrição não públicas não geram o dever de indenizar, porém o cerne de debate não se trata da publicidade ou não da lista, mas sim da impossibilidade do banco de reduzir o limite de crédito por razão revanchista. É cristalino que, a partir de critérios técnicos, o banco tem o direito subjetivo de reduzir limites de cartão de crédito ou negar acesso ao crédito. O problema jurídico reside no uso dessa redução / limitação como uma punição pelo direito de ação, o que deturpa o instituto. O art. 187 do Código Civil dispõe que: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. "O abuso de Direito está caracterizado como o exercício de um direito em contrariedade aos limites da prerrogativa individual"4. Isto posto, é preciso perceber que a redução/limitação de acesso ao crédito quando não baseada em critérios técnicos, viola a eticidade e a própria finalidade econômica do contrato, violando-se, portanto, a função social do contrato. Os bancos simplesmente não podem dizer que farão determinadas condutas baseadas em critérios unilaterais e arbitrários. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. A instituição bancária tem a discricionariedade de analisar se deve manter, reduzir ou majorar o acesso ao crédito, porém essa decisão é técnica, não podendo jamais ostentar um critério punitivo. Reduções e limitações ao crédito enquanto resposta punitiva ao direito de ação não podem existir em um ordenamento em que o acesso ao Judiciário deve ser garantido. Ser penalizado com redução/limitação ao crédito em decorrência de ter provocado o Judiciário não se mostra compatível com os valores que regem o Direito Civil e, sobretudo, o Direito Constitucional. O exercício legítimo do direito de ação não pode ser obstaculizado ou penalizado por restrições ao crédito, de modo que a redução ao crédito, enquanto direito subjetivo dos bancos, não pode ser deturpado ou transformado em instrumento de vingança, retaliação ou mesmo de ameaça. Essa conduta das instituições financeiras é um claro exemplo de abuso de direito e, pior, violador não apenas do Código Civil, mas também uma espécie de penalização do exercício do direito constitucional de ação. A verdade é que esta conduta - além de ilícita - cria uma dupla judicialização, pois todos aqueles que litigaram uma vez e foram inseridos na "Lista Proibida" buscarão o Judiciário novamente para serem reparados pelo novo dano causado, o que apenas aumenta o número de processos e fomenta uma litigância que seria evitável. Desta feita, será preciso garantir condenações exemplares, significativas e efetivamente punitivas com o condão de eliminar a existência da referida lista e, consequentemente, garantir o direito constitucional de ação, além da proteger o livre exercício de direitos do consumidor, sem que ele sofra restrições e/ou retaliações. __________ 1 Conheça as 30 empresas mais acionadas na Justiça do Rio de Janeiro em 2018. 2018. CONJUR. Acesso em 07 de fev. 2023; TJAM. "Mutirão dos Grandes Litigantes" começa com total de 80 processos analisados pelo 3.º Juizado Especial Cível. 2022. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023; MIGALHAS. Órgãos Federais e estaduais lideram 100 maiores litigantes da Justiça: Setor público Federal e bancos respondem por 76% dos processos em tramitação. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023. 2 KHOURI, Paulo R. Roque A. Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais. 2020. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2022 3 Algumas decisões e autores tratam da lista proibitiva como "lista negra", porém, por uma questão de respeito e atualização vocabular, entendemos que a lista proibitiva ou lista de restrição se mostra mais adequado. 4 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da Medicina Defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 141, p. 339-355, 2022.
A recém-promulgada Lei da Telessaúde (lei 14.510, de 27 de dezembro de 2022) acrescentou artigos à Lei do Sistema Único de Saúde (lei 8.080, de 19 de setembro de 1990), especificamente quanto ao uso das tecnologias digitais nos atendimentos médicos. Os arts. 26-D e 26-E, introduzidos pela nova lei, impõem o dever de observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina. Além disso, por tratar-se de atendimento médico prestado por meio virtual, a nova lei elencou, entre os seus princípios, o da confidencialidade dos dados e o da responsabilidade digital (art. 26-A, IX). Diante dessa terminologia trazida pela nova lei, cumpre indagar sobre o que vem a ser essa tal "responsabilidade digital" e sobre como ela se harmoniza com as demais formas de responsabilidade jurídica. Dentro do panorama de uma teoria geral da responsabilidade, podemos dizer que há um princípio geral, segundo o qual "somos responsáveis pelo que possa suceder ao outro". A responsabilidade jurídica é uma das manifestações desse princípio, ao lado da responsabilidade moral, da social e da política. Ao longo da Era Moderna, houve uma discriminação das várias espécies de responsabilidade jurídica, iniciando pelo desmembramento da responsabilidade civil em relação à penal e prosseguindo com o surgimento da responsabilidade administrativa e da política em sentido estrito. Desde que alcançou sua emancipação dogmática, no início da Era Moderna, a responsabilidade civil é um campo que se expande continuamente, na medida em que se modificam os relacionamentos sociais e surgem novas estruturas danosas. Hodiernamente, diante da passagem da sociedade da informação para a sociedade digital, as preocupações se voltam para os danos que possam surgir como decorrência do tráfego de dados e informações nos ambientes virtuais da Internet, controlados pelas plataformas digitais e com emprego de inteligência artificial. A maioria dos estudiosos está de acordo em que a primitiva função reparatória da responsabilidade civil é insuficiente para enfrentar os problemas que surgem na sociedade contemporânea, notadamente em matéria de tecnologias digitais. A busca por soluções para os problemas que surgem das constantes transformações sociais tem aproximado os estudiosos do sistema do Common Law, que admite outras funções para a responsabilidade civil, além da função reparatória que é marcante no sistema do Civil Law. Uma das constatações realizadas nos últimos tempos é no sentido de que a palavra "responsabilidade" possui diversos significados análogos nos idiomas de origem latina, como é o caso do português, ao passo que o idioma inglês apresenta diversos termos para as distintas formas de responsabilidade jurídica. Elena Simina Tanasescu explica que há três expressões no idioma inglês que exprimem a ideia de responsabilidade: responsibility, que corresponde a um preceito ético com status de princípio, como o da igualdade e o da liberdade, que envolve o cuidado que a pessoa deve ter com as consequências de suas ações; liability, que é a responsabilidade legal, implementada na lei, a fim de viabilizar a responsabilização individual; e accountability, que se refere aos deveres de quem desempenha algum tipo de atividade de cumprir as normas e regulamentos, bem como de prestar contas de seus atos1. Semelhante entendimento pode ser encontrado nos recentes estudos de Nelson Rosenvald, Carlos Edison Monteiro Filho e José Luiz Faleiros Filho, para quem o termo responsibility designa o sentido moral de responsabilidade, que é voluntariamente aceito, sem necessidade de imposição legal, ao passo que a liability corresponde ao sentido clássico da responsabilidade civil no Civil Law, com função estritamente compensatória dos danos. Já a accountability envolve deveres de prestação de contas sobre a adoção e a observância de normas regulatórias de governança e boas práticas que estabeleçam padrões técnicos e de segurança. Em complemento, a answerability consiste no dever de transparência e explicabilidade quanto aos processos que envolvem determinada atividade2. Os deveres de cumprimento de normas técnicas, de explicabilidade e de prestação de contas (accountability e answerability) se manifestam em diversos campos de atividade, inclusive no âmbito do direito público, conforme apontado por Elena Simina Tanasescu e por José Faleiros Júnior3. Podemos citar como exemplo o dever de cumprir as normas da ABNT, por parte das empresas de construção civil, sob pena de multa ou até mesmo rescisão do contrato público ou particular. Outro exemplo é o dever imposto aos profissionais de saúde de cumprir os Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas - PCDT e as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas - DDT, baixados e atualizados pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de orientar e padronizar o atendimento, diagnóstico e tratamento no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Ou ainda os deveres impostos a diversas categorias profissionais quanto às normas deontológicas baixadas pelos respectivos conselhos. Entretanto, a mais recente legislação sobre tratamento de dados pessoais tem dado ênfase à prevenção e à precaução contra danos, impondo deveres de boas práticas e compliance aos agentes de tratamento de dados pessoais, conforme consta do art. 6º da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD e dos arts. 12 e seguintes do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho - RGPD, de 27 de abril de 20164. De acordo com Bruno Bioni, a LGPD adota uma lógica eminentemente precautória, que "aposta na capacidade dos agentes de tratamento de dados de adotarem medidas preventivas de danos"5. Todos esses deveres de adotar medidas voltadas para a prevenção de danos se inserem em um campo de responsabilidade abrangidos pela rubrica da accountability e da answerability. A questão é saber por qual modo esses deveres se relacionam com as demais formas de responsabilidade jurídica, particularmente com a responsabilidade civil. Se tomarmos este instituto como sistema amplo e multifuncional, a accountability e a answerability integram o sistema, como camadas da responsabilidade civil, conforme lembrado por Nelson Rosenvald. Se entendermos o mesmo instituto em seu sentido clássico e estrito, com a função primordial de reparar os danos causados, os deveres compreendidos pela accountability e pela answerability se encontram na antessala do sistema, atuando ora na prevenção ao dano ex ante, ora na determinação do nexo de causalidade ex post factum. Não podemos perder de vista o mencionado fenômeno da expansividade da responsabilidade civil ao longo da modernidade. A busca constante por novas soluções diante das transformações sociais e do surgimento de outras estruturas danosas conduz ao elastecimento da responsabilidade civil que, com isso, vai se afastando pouco a pouco de sua conformação inicial, cuja única função era a de possibilitar a reparação dos danos causados. No momento atual, diante da necessidade de fortalecimento da função preventiva e precaucional, toma corpo esse conjunto de deveres compreendido pela accountability e pela answerability, os quais são voltados para impedir a ocorrência do dano6. Nelson Rosenvald e José Faleiros Júnior explicam que, em matéria de proteção de dados pessoais, a accountability e a answerability atuam ex ante e ex post factum. Na fase anterior ao dano, servem como guia para os agentes de tratamento de dados, os quais podem inclusive estabelecer regras de governança e boas práticas com a finalidade de evitar a ocorrência de danos. Na fase posterior, servem como guia para o reconhecimento do nexo de causalidade entre o dano e a atividade, norteando a identificação e a quantificação da responsabilidade civil e administrativa7. Ao que tudo indica, porém, a accountability e a answerability não se confundem com a responsabilidade civil em sentido estrito (civil liability), uma vez que que esses deveres existem a despeito da existência de um dano a ser reparado. São deveres que devem ser cumpridos com a finalidade de evitar a ocorrência do dano, mesmo que este jamais se concretize. Todavia, uma vez concretizado o dano, o cumprimento dos deveres de accountability e de answerability são determinantes para verificação do nexo de causalidade, podendo afastar ou mitigar a responsabilidade do agente (LGPD, art. 44). Em contrapartida, o dever de reparar o dano (civil liability) existe em incontáveis situações independentes dos deveres de accountability e de answerability. A compreensão da polissemia do termo "responsabilidade" nos idiomas de origem latina e da multiplicidade de expressões análogas no idioma inglês certamente é útil para o entendimento da estrutura e do funcionamento do sistema contemporâneo de responsabilidade civil, especialmente diante do surgimento das tecnologias digitais. Uma conclusão possível é que os deveres de accountability e answerability aos poucos se constituem em um campo de responsabilidade jurídica, consistente nos deveres de cumprir normas técnicas, de prestação de contas e de explicabilidade, cujo descumprimento produz consequências próprias, no âmbito regulatório, podendo também ensejar responsabilidade civil, administrativa e criminal. Outra conclusão possível é que, ao menos em tema de tratamento de dados, o sistema de responsabilidade civil (civil liability) funciona de maneira articulada, de sorte que o cumprimento ou descumprimento dos deveres abrangidos pela accountability e pela answerability são determinantes para caracterização do dever de indenizar. Disso resulta que, ao referir-se à responsabilidade digital, entre os princípios que norteiam a telessaúde, a lei 14.510/2022 emprega o termo "responsabilidade" no sentido de accountability. Com efeito, a responsabilidade digital, na verdade accountability digital, refere-se aos deveres de cuidado que se deve ter, tanto em relação às condutas (postar, curtir, comentar e compartilhar) quanto em relação ao tráfego de dados e informações no ambiente virtual da Internet8. A responsabilidade digital está relacionada ao exercício da cidadania digital, no sentido de que os usuários devem contribuir para que a tecnologia seja utilizada de forma adequada, responsável e não criminosa9. No âmbito corporativo, a responsabilidade digital pode ser entendida como um desdobramento da responsabilidade social aplicada ao contexto das tecnologias digitais10. Desse modo, a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação. __________ 1 TANASESCU, Elena Simina; Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. On responsibility in public law. Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011, mensal. 2 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, [s. l.], 6 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2022; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. Acesso em: 30 out. 2022. 3 TANASESCU, Elena Simina. On responsibility in public law, cit., p. 6; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Administração pública digital: proposições para o aperfeiçoamento do regime jurídico administrativo na sociedade da informação. Indaiabuba: Foco, 2020. p. 130-147. 4 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 18-20. 5 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 41. 6 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD, cit.; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility, cit. 7 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 777-779. 8 Disponível aqui. Acesso em: 27 dez. 2022. 9 NUNES, Danilo Henrique; LEHFELD, Lucas Souza. Cidadania digital: direitos, deveres, lides cibernéticas e responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, [S. l.], v. 22, n. 35, 2019. DOI: 10.22171/rej.v22i35.2542. Disponível aqui. Acesso em: 29 dez. 2022. 10 LONDOÑO-CARDOZO, José; PÉREZ DE PAZ, Maria. A responsabilidade digital organizacional: fundamentos e considerações para seu desenvolvimento. Revista de Administração Mackenzie, 22(6), 1-31, 2021. doi:10.1590/1678-6971/eRAMD210088. Disponível aqui. Acesso em: 28/12/2022.
Algum tempo atrás, escrevi aqui sobre um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), que, num caso bastante sensível, majorou o valor de indenização por danos morais fixado nas instância inferiores. Um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta. A indenização pelo dano moral (houve condenação por danos materiais também) foi fixada, no 1º grau, em R$ 120 mil para cada uma das autoras da ação (esposa e filha da vítima). As autoras não recorreram da sentença, mas o réu sim. O Tribunal estadual reduziu a indenização para R$ 30 mil para cada uma delas (25% do valor fixado pelo Juízo) por conta da "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima". As autoras (esposa e filha da vítima) e o réu recorrem ao STJ. Elas para aumentar o valor da indenização moral (e outras discussões quanto aos danos patrimoniais). Ele, para diminuir ainda mais o valor da indenização dos danos morais. O Superior aumentou a condenação, e fixou a indenização para R$ 150 mil para a esposa e R$ 150 mil para a filha da vítima. Esse foi o percurso do valor da indenização pelo dano moral: de R$ 240 mil para R$ 60 mil e, depois, para R$ 300 mil. Destaco: o valor fixado pelo STJ foi superior ao indenizado pelo 1º grau, contra cuja sentença as autoras não recorreram. O julgamento dos recursos foi monocrático, por aplicação da súmula 7. As partes manearam agravos, que foram julgados conjuntamente. Transcrevo a ementa na parte que interessa (a fixação do quantum indenizatório pelo dano moral): RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. ... 7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência. 8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30 mil viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150 mil, a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso. Na época em que publiquei a primeira parte desse artigo, não havia sido disponibilizada a íntegra dos acórdãos, mas eu já pude destacar alguns pontos importantes, do ponto de vista da prestação jurisdicional e da reflexão doutrinária. Repito-os: (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da súmula 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação. Agora, os acórdãos foram publicados, e confirma-se que eles constituem um ambiente privilegiado para o estudo do direito civil e processual civil, bastando ver alguns temas que acresço aos itens antes indicados. A alegação de negativa de prestação jurisdicional. O excesso de linguagem no acórdão. A juntada de novos documentos no curso da ação. O dano em ricochete. A legitimidade ativa. A legítima defesa da honra como matéria de defesa processual ("...uma retórica odiosa, desumana e cruel, com a repulsiva tentativa de se imputar à vítima a causa de sua própria morte"). Culpa concorrente. A relação entre as responsabilidades civil e criminal. O julgamento em perspectiva de gênero: o STJ disse: "A adoção de pensamento diverso contribui para a banalização e perpetuação de violência (principalmente contra as mulheres), cabendo do Poder Judiciário atuar como contrafator a essa cultura antiquada, impondo a vigência da lei a fim de se evitar a perpetração de comportamentos bárbaros"). O método bifásico para a fixação da indenização. O termo final da condenação ao pagamento de pensão alimentícia. Em suma, para aqueles professores e estudiosos que trabalham com a metodologia de estudo de caso (para ensinar e para aprender), o acórdão é um ótimo exemplo do direito teórico e prático. Destaco, entre as várias temáticas suscitadas pelo julgamento, uma que me parece muito relevante, e que diz respeito à variabilidade do valor da indenização. O STJ fixou a indenização em valor maior do que aquele fixado pelo 1º grau, de cuja sentença as autoras não recorreram. Pode isso? E se isso pode, qual o fundamento técnico para tanto? Quer me parecer que a questão pode ser respondida a partir de três razões: A um, a própria ontologia do dano moral e dos critérios da fixação de sua indenização. Na espécie, seguindo uma sólida tradição, o STJ utilizou o método bifásico. Na 1ª fase, remeteu ao valor de 300 a 500 salários-mínimos no caso de evento morte e, na 2ª fase, levou em conta as peculiaridades do caso concreto (gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes etc); os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade foram utilizados também como argumento para cassar a decisão do Tribunal estadual. A dois, as perspectivas horizontal e vertical do princípio da devolutibilidade recursal. Se a dimensão horizontal desse princípio diz respeito à extensão do efeito devolutivo (o quanto da decisão foi impugnada, a extensão do recurso), a dimensão vertical diz respeito a quais matérias sobem ao exame do órgão superior (a profundidade). Bem por isso o acórdão assentou "nota-se que, no caso vertente, a apelação devolveu ao Tribunal a questão referente à configuração, ou não, dos danos morais em razão da concorrência de culpas (dimensão horizontal). [...] Assim, ao analisar a matéria a ele devolvida, o Tribunal estadual argumentou que [...] a vítima foi responsável por gerar um sentimento de revolta, o que configura a sua culpa concorrente (dimensão vertical)". Não há, então, erro do STJ, mesmo que as autoras não tivessem recorrido da decisão do 1º Grau (isto é, tivessem acolhido a indenização de R$ 120 mil para cada). A três, os papéis e a dinâmica da responsabilidade civil, numa sociedade em constante mudança. No dizer do acórdão, "Por conseguinte, a responsabilidade civil assume um papel mais flexível, menos dogmático e com maior atenção aos reais anseios da sociedade, com a difícil tarefa de distinguir aquilo que deverá, ou não, ser reparado". Tentei responder apenas uma das inquietações que surgem a partir do acórdão. As outras ficam para o leitor pensar e responder. Assim se estuda o Direito. Assim se aprende o Direito.
A fisioterapia e a terapia ocupacional são duas importantes profissões inseridas dentro da área da saúde, segundo o que consta nas Resoluções nº 04/20021 e 06/20022, ambas do Conselho Nacional de Educação - Conselho Pleno (CNE/CP). Os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais tiveram sua profissão reconhecida por meio do Decreto-Lei nº 9383, de 13 de outubro de 1969. Entretanto, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), trata-se de uma Autarquia Federal, constituída em 1975, por meio da Lei nº 6.3164, que normatiza ambas as profissões, bem como exerce o controle ético, científico e social. O Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia, aprovado por meio da Resolução nº 4245, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o fisioterapeuta presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e recuperação da sua saúde e cuidados paliativos, sempre tendo em vista a qualidade de vida, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde vigente no Brasil" (artigo 4º). A atuação dos fisioterapeutas tem um papel fundamental na qualidade de vida das pessoas, pois trabalha diretamente com o bom funcionamento do corpo, evitando ou melhorando disfunções que causam dor, desconforto ou interferem nas capacidades motoras. Na atualidade, a prevenção de acidentes e a promoção da saúde primária são as principais funções da fisioterapia. Por sua vez, o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional, aprovado por meio da Resolução nº 4256, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o terapeuta ocupacional presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção, prevenção de agravos, tratamento, recuperação e reabilitação da sua saúde e cuidados paliativos, bem como estabelece a diagnose, avaliação e acompanhamento do histórico ocupacional de pessoas, famílias, grupos e comunidades, por meio da interpretação do desempenho ocupacional dos papéis sociais contextualizados, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde, de assistência social, educação e cultura, vigentes no Brasil" (artigo 4º). A terapia ocupacional traz inúmeros benefícios para a vida diária das pessoas, de todas as idades que possam apresentar dificuldades para realização das atividades comuns da rotina diária. Na atualidade, a terapia ocupacional desempenha um papel importantíssimo, vez que auxilia tanto nos aspectos físicos como psíquicos do ser humano. Conclui-se que a atividade do fisioterapeuta visa a execução de métodos e técnicas fisioterapêuticas, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade física do paciente; enquanto a atividade do terapeuta ocupacional visa a execução de métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade mental do paciente (Decreto-Lei n. 938/69, artigos 3º e 4º7). O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, com a finalidade de cumprir o propósito legal para o qual foi constituído, vem aprovando várias Resoluções e regulamentando as matérias necessárias para as duas profissões. No entanto, algumas dessas Resoluções foram objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente, em 22/11/22, dentre elas a Resolução nº 808, de 09 de maio de 1987, que prevê o direito dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais de diagnosticar, prescrever tratamentos e dar alta ao paciente, de forma autônoma e sem qualquer vínculo com o médico. Esta é uma celeuma antiga que envolve médicos e fisioterapeutas. Por isso, a matéria foi analisada pelo STJ em 2005, momento no qual a Ministra Nancy Andrighi decidiu que: "Nos termos da legislac¸a~o que regula a mate´ria - Decreto-Lei nº 938/69 e Lei nº 6316/75, os profissionais de fisioterapia e terapia ocupacional esta~o habilitados, ta~o somente a executar os me´todos e te´cnicas indicados pelos me´dicos especializados, de acordo com a a´rea afetada que necessite de recuperac¸a~o, sendo-lhes vedado fazer o diagno´stico e indicar o tratamento a ser realizado, atividade esta reservada aos profissionais da medicina"9. Na época, a Ministra citou a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Representação nº 1.056 - DF, que declarou a constitucionalidade dos artigos 3º e 4º do Decreto-lei nº 938/69 e do art. 12 da lei nº 6.316/75, constando na referida fundamentação da Suprema Corte: "a) ao me'dico cabe a tarefa de diagnosticar, prescrever tratamentos, avaliar resultados; b) ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional, diferentemente, cabe a execuc¸a~o das te'cnicas e me'todos prescritos". Mesmo com o mencionado entendimento do STJ e do STF, tramitava desde 2004 uma ação ordinária ajuizada perante a 9ª Vara Federal de Porto Alegre - RS (Processo nº 2004.71.00.0039.549-1), pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul em face do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, visando declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de alguns direitos assegurados aos respectivos profissionais, previstos por algumas resoluções do COFFITO, além de obrigação de fazer. O principal fundamento para o ajuizamento da ação foi o de que alguns dos termos utilizados na referida resolução concedem direitos que extrapolam a competência profissional primária fixada pelo Decreto-Lei nº 938/69 e invadem a esfera profissional e privativa atribuída aos médicos, o que colocaria em risco a saúde e a vida da coletividade. Para os autores da ação, o diagnóstico é ato privativo do médico, nos termos da Lei nº 12.842/201310 e, portanto, seria ilegal ser esse direito assegurado aos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A ação principal foi extinta sem julgamento do mérito, uma vez que o juiz Candido Alfredo Silva Leal Junior, acolheu a preliminar da defesa quanto à ilegitimidade ativa do Sindicato e a inadequação da via eleita, configurando a falta de interesse processual. Em sede recursal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4) cassou a decisão de primeira instância e determinou a remessa dos autos à Vara Federal de origem para nova decisão de mérito. Com isso, foi interposto Recurso Especial (REsp), que restou inadmitido, fazendo com que o processo retornasse e, após os trâmites legais, fosse novamente sentenciado em outubro de 2012, pela M.M. Juíza, que julgou improcedentes os pedidos formulados, após rejeição das preliminares. Da nova sentença mencionada, foi interposto um novo Recuso de Apelação, do qual foram opostos embargos, que foram rejeitados. Com isso, a parte recorrente interpôs REsp11, que foi admitido pelo fato de não terem sido acolhidos os embargos, restando matéria a ser decidida. Posto isso, a matéria chegou ao STJ após mais de 17 anos de tramitação e da última decisão do Superior Tribunal sobre o tema. Mesmo com várias discussões abordadas no REsp, o foco principal se deu quanto ao questionamento formulado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul quanto à possível ilegalidade ou inconstitucionalidade da previsão contida no artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, pelo fato de constar: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional, sendo esta, um processo pelo qual, através de metodologias e técnicas fisioterapêuticas, são analisados e estudados os desvios físico-funcionais intercorrentes, na sua estrutura e no seu funcionamento, com a finalidade de detectar e parametrar as alterações apresentadas, considerados os desvios dos graus de normalidade para os de anormalidade; prescrever, baseado no constatado na avaliação físico-funcional as técnicas próprias da Fisioterapia, qualificando-as e quantificando-as; dar ordenação ao processo terapêutico baseando-se nas técnicas fisioterapêuticas indicadas; induzir o processo terapêutico no paciente; dar altas nos serviços de Fisioterapia, utilizando o critério de reavaliações sucessivas que demonstrem não haver alterações que indiquem necessidade de continuidade destas práticas terapêuticas" (grifos nossos). O julgamento do Recurso Especial ocorreu em 21 de junho de 2022, cujo Ministro Relator Gurgel de Faria entendeu pela ilegalidade de "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia" - previstos no citado artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO - em consonância com o citado entendimento do STF. Ficou claro que as profissões do fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e médico são autônomas, mas interdependentes. Em que pese a inexistência de hierarquia, ambas atuam em conjunto e em benefício do paciente, mas o diagnóstico, a prescrição e a alta são atos privativos dos médicos, em conformidade com a Lei nº 12.842/2013. Todavia, houve oposição de Embargos de Declaração12 contra a decisão mencionada, com efeitos infringentes, no qual o Ministro Benedito Gonçalves, em decisão diametralmente oposta ao que havia sido decidido, proferiu voto para dar provimento ao recurso do CREFITO-5/RS e COFFITO e rejeitar o recurso do CREMERS e SIMERS. Com isso, a Primeira Turma do STJ, por maioria, vencida a Ministra Regina Helena Costa, decidiu em consonância com o voto vista citado, acolhendo os embargos de declaração do CREFITO-5/RS e COFFITO, permanecendo incólume a previsão acerca da possibilidade de os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais para "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia". Do exposto, conclui-se que a demanda chegou até o STJ pela existência de um conflito real sobre a correta interpretação e alcance do termo diagnóstico, contido na Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO. Entretanto, a recente decisão do STJ não foi suficiente para solucionar o tema diante da divergência das decisões proferidas pela própria Turma Julgadora. Isso porque incialmente entenderam pela ilegalidade do diagnóstico realizado pelos fisioterapeutas, conforme decisão proferida no Recurso Especial. Contudo, poucos dias após, eles mudaram a decisão quando do julgamento dos Embargos, opostos em face da decisão do Resp, para considerar legal o diagnóstico realizado pelo fisioterapeuta. Obviamente que é assegurado ao judiciário decidir de forma contrária. No entanto, a fundamentação para a mudança não foi suficientemente clara, permitindo a manutenção das dúvidas. E isso pode ser constatado através de algumas matérias noticiadas após o julgamento dos embargos, dentre elas a publicada com o título "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento"13. Por outro lado, a notícia veiculada pelo site oficial do STJ, datado de 24.11.22, intitulada como: "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos"14, traz a seguinte narrativa: "Ao julgar os embargos de declaração no REsp 1.592.450, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, concluiu que é permitido ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional diagnosticar doenças, prescrever tratamentos e dar alta terapêutica" (grifos nossos). Não sei se os leitores observaram de forma atenta, mas destacamos em negrito os termos utilizados na matéria veiculada no próprio STJ, que, inadequadamente e, ampliando a interpretação judicial e, a previsão contida na Resolução analisada prevê que: os fisioterapeutas podem diagnosticar doenças e dar alta terapêutica. Evidente a não compreensão sobre o real alcance e interpretação da Resolução, mas, principalmente, o entendimento do STJ sobre a matéria. Inobstante a inequívoca dúvida quanto a legalidade ou não do fisioterapeuta diagnosticar, temos ainda que compreender qual o conteúdo inserido dentro desse possível diagnóstico atribuído ao fisioterapeuta. Para isso, iniciaremos através dos ensinamentos trazidos pelo fisioterapeuta João Noura15, que fundamentado no dicionário médico explica que diagnóstico é "ato de determinar se uma condição está ou não presente, e Avaliação (cuja tradução mais aproximada, na ausência de assessment, é evaluation) é definida como o ato de examinar e, consequentemente, determinar o nível ou quantidade de algo (que podemos entender como sendo uma abordagem probabilística à presença de uma condição)". Ele explica que o diagnóstico, conduta privativa do médico, visa a identificação da condição do paciente (presença ou não de lesão muscular, por exemplo) através da "avaliação, prescrição e interpretação de exames complementares". Por outro lado, ao fisioterapeuta compete a função de mera avaliação dos sinais e sintomas, bem como histórico do paciente constatar: a condição diagnosticada pelo médico, a necessidade de encaminhamento ao médico ou prescrever as técnicas próprias da fisioterapia ao caso concreto. Em resumo, o diagnóstico só poderá ser realizado pelo médico, pois consiste na identificação da patologia primária do paciente. Conduta essa que exige conhecimentos específicos estudados na Medicina, dentre eles a "fisiopatologia, patocronia e literatura associada às condições de saúde", como explica o citado autor. Por outro lado, a avaliação, pode ser realizada tanto por médicos como por fisioterapeutas, razão pela qual o artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, estabelece: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional...". Contudo, chamem o diagnóstico, como aquele relacionado com a identificação da doença (diagnóstico médico) ou com sinais e sintomas relacionados com a mesma - como é o caso do comprometimento motor ou limitações funcionais, que são denominados de "diagnóstico fisioterapêutico" - deve ser realizado com o máximo de cautela e conhecimento técnico, para viabilizar o alcance da expectativa pretendida, segurança e bem estar do paciente. Inobstante à existência das duas espécies de diagnósticos apresentadas, conclui-se que a Resolução analisada faz uso da terminologia diagnóstico de maneira equivocada, considerando o real propósito ser a mera avaliação, como consta do texto da própria resolução. Sendo assim, o STJ perdeu uma grande oportunidade de distinguir o conceito de ambas as expressões, delimitá-lo e estabelecer a abrangência das atividades de ambas as profissões, sem que se possa falar em invasão de competências e possibilitar a identificação clara das responsabilidades incidentes. Sem a especificação quanto ao limite de atuação de cada profissional e a existência inequívoca das dúvidas quanto ao diagnóstico, teremos consequências para ambos os profissionais. Primeiramente, se o fisioterapeuta pode diagnosticar, seja exclusivamente a avaliação físico-funcional ou a doença, terá como ônus inerente a responsabilidade civil e penal pelos atos por ele praticados. Por outro âmbito, quando o fisioterapeuta apenas realiza a avaliação físico funcional, fundamentando-se em laudo e exames fornecidos pelo médico responsável pelo diagnóstico, toda e qualquer conduta do fisioterapeuta estará justificada na documentação médica. Portanto, na hipótese de tratamento fisioterapêutico inadequado, mas em consonância com o laudo, a responsabilidade civil pelos danos por ventura ocasionados será atribuída ao médico, com base na responsabilidade de terceiro. De modo que o fisioterapeuta só será responsabilizado por danos decorrentes dos seus atos exclusivos, como escolha da técnica ou método inadequados, forma de realização da fisioterapia ou mesmo período de tratamento. Jamais por diagnóstico errado praticado pelo médico. Importante lembrar que é muito complicado para o fisioterapeuta assumir os riscos decorrentes do diagnóstico, especialmente diante de possíveis intercorrências da doença, pelo fato de não ser capacitado tecnicamente. Além disso, o fisioterapeuta deve ter em mente o ônus que está atraindo para si, quando poderia estar isento, caso reconheça tratar-se de um conhecimento específico dos médicos, haja vista o aprofundamento nos estudos necessários para um diagnóstico mais seguro, seja para hipóteses de meras entorses ou casos mais complexos. Portanto, antes das comemorações por parte dos fisioterapeutas em decorrência da decisão proferida pelo STJ, muita cautela é necessária, pois esse é o primeiro passo de um caminho longo a ser percorrido, pois muitos fatos serão desencadeados diante das omissões que deveriam ter sido supridas para obtenção da efetiva segurança, seja para o paciente, ou mais especialmente para os profissionais envolvidos.  Por fim, não se pretende delimitar totalmente o alcance prático do que fora decidido, mas trazer um alerta para estes profissionais, demonstrando que o momento é de extrema atenção e comedimento redobrado, em relação à responsabilidade civil inerente aos direitos supostamente reconhecidos, que poderiam ser atribuídos com exclusividade aos médicos, considerando a maior capacitação técnica, como bem explicado no artigo do fisioterapeuta João Noura. __________ 1CNE/CES. Resolução nº 4, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Fisioterapia. Disponível aqui. 2 CNE/CES. Resolução nº 6, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 3 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Disponível aqui. 4 Lei nº 6.316, de 17 de dezembro de 1975. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e dá outras providências. Disponível aqui. 5 COFFITO. Resolução nº 424, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Disponível aqui. 6 COFFITO. Resolução nº425, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 7 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Art. 3º É atividade privativa do fisioterapeuta executar métodos e técnicas fisioterápicos com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do ciente. Art. 4º É atividade privativa do terapeuta ocupacional executar métodos e técnicas terapêuticas e recreacional com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade mental do paciente. 8Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução n. 80, de 9 de maio de 1987. Disponível aqui. 9 STJ, REsp nº 693.466- RS, Relatora Ministra Eliana Calmon. Segunda Turma.  Julgado em 03.11.2005, DJ. 14.11.2005.  10 Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Art. 4º São atividades privativas do médico: § 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I - agente etiológico reconhecido; II - grupo identificável de sinais ou sintomas; III - alterações anatômicas ou psicopatológicas. Disponível aqui. 11 STJ, REsp nº 1.592.450 - RS, Relator Ministro Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 21.06.2022, DJ. 30.06.2022. 12 STJ, EDcl no REsp nº  1.592.450 - RS, Relator Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 22.11.2022. 13 VITAL, Danilo. "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento". 14 STJ. "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos". Disponível aqui. 15 NOURA, João. O "Diagnóstico", e porque é que não o queremos na Fisioterapia. Publicado em 19.07.22. Disponível aqui.
O Direito Ambiental tem como objeto de estudo a proteção do meio ambiente visando a sadia qualidade de vida dos cidadãos. O preceito está positivado no art. 225 da Constituição Federal, que garante a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e à sociedade o dever de preservá-lo. Didaticamente, divide-se a proteção ao meio ambiente em quatro partes que são integradas e interdependentes: natural, artificial, cultural e do trabalho. Em qualquer dos aspectos, há sempre o foco no controle da poluição com vistas a garantir um meio ambiente seguro e adequado aos que aqui habitam. A poluição sonora em ambientes urbanos (meio ambiente artificial) é um grande desafio às autoridades e pessoas que moram nas cidades e metrópoles. A razão é clara: exposto à polução sonora o indivíduo tende a ter piora sensível na qualidade de vida, aumentando o estresse, trazendo dificuldades para dormir, entre outras consequências danosas daí advindas. Tanto assim que a lei brasileira é farta em regulamentar o tema da poluição sonora para minimizar os prejuízos evidentes à saúde humana. Cite-se a regulamentação pela lei 6.938/1981, passando pela Lei de Contravenções Penais (art. 42, incisos I e III), Lei dos Crimes Ambientais (art. 54) e pelo art. 1.277 do Código Civil. Ademais, as leis municipais também estabelecem limites de emissão de ruídos conforme o zoneamento desenhado pelo Plano Diretor. No caso específico da cidade de São Paulo o tema é trazido pela lei municipal 16.402/2016 e decreto municipal 57.443/20161. Os níveis de ruído são, em regra, definidos pelas leis municipais, sempre observando dados científicos sobre o tema, que sugerem limite máximo até 60 (sessenta) decibéis durante o dia de até 50 (cinquenta) decibéis após 22 horas. A Organização Mundial de Saúde apresenta escala de decibéis relativa à emissão de ruídos e suportabilidade humana. Por outro lado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas propõe escala de decibéis de níveis de ruídos aceitáveis em espaço urbano e rural. Vejamos1: O art. 3º da lei 6.938/1981, define em seu inciso III a poluição como sendo "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos". Por outro lado, a mesma lei define poluidor como sendo "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (inciso IV). Portanto, a emissão de ruído acima do indicado pela ABNT ou pela lei municipal pode ser considerado poluição sonora. Ademais, sendo "poluidor" aquele que direta ou indiretamente causa a degradação ambiental, o poluidor pode ser aquele tem a posse do imóvel (locatário ou comodatário) e o proprietário, que seria considerado poluidor "indireto" em razão do uso nocivo da propriedade. Vale lembrar que a responsabilidade civil do poluidor, nesse caso é objetiva, com fundamento no § 1º do art. 14 da lei 6.938/1981: "(...) Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade". A questão seria, então, solucionada pelas regras e princípios do Direito Ambiental, diante da característica de direito ou interesse difuso e/ou interesse individual homogêneo, cabendo a interposição de Ação Civil Pública por qualquer dos legitimados definidos no art. 5º da LACP, para a responsabilização civil dos poluidores, além das imposições de sanções administrativas e penais cabíveis. Trata-se, portanto, de responsabilidade civil objetiva e solidária, obrigando ao ressarcimento dos danos materiais e morais. Caberia pedido de tutela de urgência ou emergência para cessar o ruído, bem como pedido de indenização por dano moral coletivo pela via difusa, devendo o valor ser destinado ao fundo de direitos difusos e coletivos. Na mesma ação coletiva, seria possível o legitimado formular pedido fundamentado em direito individual homogêneo (indisponível, nesse caso, por se tratar de direito à saúde) para indenização aos moradores prejudicados pela poluição sonora. No entanto, conceituada a poluição sonora e definidos os seus parâmetros, resta saber se caberia (além da propositura de ação civil pública) ação individual fundamentada no direito de vizinhança, para responsabilizar os poluidores. A regra geral da tutela coletiva de direitos é clara: a propositura de ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais (art. 104 do CDC), devendo ser observada a interpretação do Superior Tribunal de Justiça para a ocorrência de suspensão das ações individuais até a o julgamento da ação coletiva (Tema 923). Direitos de vizinhança Os denominados direitos de vizinhança são direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não necessariamente da contiguidade. As regras de vizinhança têm por objetivo harmonizar a vida em sociedade e o bem-estar, sem deixar à margem as finalidades do direito de propriedade3. Além disso, o Direito de Vizinhança é marcado por uma relação jurídica fática: não há uma relação jurídica especial que liga os proprietários vizinhos, a relação é, portanto, propter rem, vinculando o proprietário ou o possuidor do imóvel perante seus vizinhos. Trata-se de situação jurídica de direito das coisas. O conflito de vizinhança deve ser solucionado pelo Código Civil quando um dos proprietários ou possuidores de prédios vizinhos exerce atividade sobre o seu próprio imóvel a qual repercute em outra propriedade. Sílvio Rodrigues destaca que três espécies de ato são capazes de provocar conflito de vizinhança: os ilegais, os abusivos e o lesivos4. Os atos ilegais ocorrem quando um vizinho prejudica o outro praticando um ato ilícito, respondendo pelos danos causados nos termos dos art. 186 e, se o caso, do art. 927, ambos do Código Civil. Já o abuso de direito pode ocorrer nas relações de vizinhança quando um proprietário, mesmo no exercício do seu direito, se dele usar abusivamente. Os atos lesivos dizem respeito ao uso da propriedade de forma irregular, desrespeitando a legislação vigente, em especial as regras estabelecidas pelo Código Civil e do Estatuto das Cidades, ou restrições advindas de licenças ambientais conforme o Estudo de Impacto de Vizinhança para obras de maior potencial ofensivo. A par das discussões sobre a responsabilidade civil objetiva ou subjetiva em direito de vizinha, a poluição sonora pode ser considerada ato lesivo, que diz respeito ao uso da propriedade de forma irregular, devendo seguir a regra da responsabilidade civil objetiva do possuidor e do proprietário, na forma do art. 14 da Lei 6.938/1981 acima transcrito. Ressalta-se, por fim, que o art. 1.277 do Código Civil autoriza o proprietário ou possuidor do prédio a fazer cessar as interferências prejudiciais causadas por outro vizinho: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Breve conclusão Não resta dúvida, portanto, que nas hipóteses de poluição sonora a via adequada para que haja a cessação da emissão de ruído, bem como a indenização pelo desrespeito ao meio ambiente sadio, é a Ação Civil Púbica, por ser mais abrangente e adequada à defesa dos interesses difusos. É cabível, na mesma ação, pedido individual homogêneo para o ressarcimento dos prejuízos dos moradores e outras pessoas que foram afetadas pela emissão de ruídos. Por outro lado, havendo uso nocivo da propriedade, o proprietário ou possuidor lesado tem legitimidade para estar em juízo, em ação individual, para pleitear a cessação da emissão de ruído, danos materiais e morais advindos da poluição sonora, sem prejuízo de eventual ação coletiva em andamento.  Referências bibliográficas DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. PEREIRA. Caio Mário. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2018. __________ 1 Importante notar que o tema está em ebulição na cidade de São Paulo, tendo sido aprovado projeto de lei que aumentou o limite máximo para 75 decibéis em eventos e nos espaços denominados "dark kitchens" (vale notar, a regra geral continua sendo 65 decibéis o volume máximo de ruído tolerado até às 22 horas, passando para 55 decibéis após esse horário). Sobre o assunto, veja aqui. 2 Disponível aqui. 3 San Tiago Dantas, em sua clássica obra sobre Direito de Vizinhança, explica que, para que haja "conflito de vizinhança", é sempre necessário "que um ato praticado pelo possuidor de um prédio, ou o estado de coisas por êle mantido, vá exercer os seus efeitos sôbre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incómodos ao seu morador. Essa "interferência", essa repercussão in alieno, é o elemento fundamental do conflito. O rumor que se propaga, a fumaça que se espalha no ar, a umidade que se infiltra no solo, tudo que atinge um prédio em consequência de um fato, ocorrido em outro, constitui "interferência" e pode motivar a reclamação do proprietário incomodado, dando nascimento, assim, ao conflito. Não basta, porém, que se verifique "interferência" num prédio, para a colisão de interesses daí resultante ser chamada "conflito de vizinhança". Esta última expressão tem compreensão mais limitada, abrange espécies mais precisas e menos numerosas, e é essencial lhe fixemos a amplitude, antes de avançar no estudo dos problemas que temos de considerar". O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 20. 4 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 125.
A partir da edição do Código Civil de 2002, poucas foram as categorias jurídicas que denotaram tamanha expansão quanto o direito à privacidade. Em duas décadas, testemunhou-se o deslocamento do espaço lateral que a privacidade ocupava para a centralidade de discussões em diversas áreas: de certo modo, tratar da dimensão normativa das relações jurídicas (em seus diversos matizes) passou a significar, também, a tratar do alcance normativo da privacidade. É possível identificar diversas causas para este movimento centrípeto da privacidade; porém, uma delas parece expressar particular importância: o desenvolvimento potencializado da tecnologia da informação, que promove o uso incessante de algoritmos para a coleta e processamento de dados e viabiliza o predomínio, hoje percebido, das plataformas digitais. Surge disso, nas palavras de Ana Frazão, "[...] a ideia de uma economia movida a dados [...], já que os dados pessoais são hoje o novo 'petróleo' ou principal insumo das atividades econômicas"1, perspectiva que globalmente vem sendo denominada como data-driven economy.2 De modo similar, Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, afirma que esse predomínio das plataformas digitais implica na consolidação da "era do capitalismo de vigilância" ("The Age of Surveillance Capitalism"), que caracteriza "[...] uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como material livre para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda"3. Tal modelo compreende a estruturação das plataformas digitais para além de simples ferramentas de usuários, porquanto, ao erigirem-se como verdadeiro modelo de negócios, criam um ecossistema de interação entre agentes empreendedores que viabiliza substanciais trocas econômicas. Essas trocas, ao seu turno, consubstanciam-se por meio da colheita de dados pessoais dos usuários das referidas plataformas e, do mesmo modo, da expansão da utilização de produtos e objetos dotados de interfaces tecnológicas (smartwatches, termostatos informatizados, palmilhas inteligentes, etc) que os conectam com a internet e a outros dispositivos, otimizando o dia a dia de consumidores em ambiente doméstico e profissional. É nesse espaço de inovação que Eduardo Magrani define a consolidação da chamada "Internet das Coisas", globalmente referida pela sigla IoT (Internet of Things), como "[...] um ecossistema de computação onipresente [...] voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas [...]. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em objetos que interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade"4. Apesar de atrativo, todo esse cenário parece colocar em xeque a definição da privacidade balizada exclusivamente no paradigma da autodeterminação informativa, que a compreende a partir do controle de dados e informações pessoais por cada sujeito - paradigma esse que, apesar de relevante, já se mostra insuficiente em face dos desafios contemporâneos. É necessário, portanto, ir além, justamente porque a privacidade expressa importante valor normativo se reconhecida como eixo para o exercício das liberdades, sendo o vetor de projeção e gênese dos direitos da personalidade na medida em que se reconhece que as expressões de nossa existência dela (da privacidade) surgem. E, se assim o é, a privacidade pode também servir como chave de configuração de um sistema normativo desinente de institutos correlacionados do Direito Civil que possam contribuir com os mecanismos de tutela da personalidade humana já encetados na ordem jurídica. Esse viés abre espaço para uma compreensão renovada da Responsabilidade Civil e de seu contributo à proteção da privacidade como vetor de projeção dos direitos da personalidade e exercício de liberdades, justamente a partir do reconhecimento do traçado multifuncional que vem sendo a ela atrelada. De plano, cumpre destacar que desde a primavera de 1988, a Responsabilidade Civil no Brasil tem sido objeto de crescentes modificações e flexibilizações, inicialmente derivadas do giro conceitual que fixou na vítima do evento lesivo o foco de maior atenção5. Bem por isso é que Nelson Rosenvald afirma que a Responsabilidade Civil expressa contemporaneamente uma face multifuncional, envelopando funções de reparação, punição e precaução, acabando por se mostrar "[...] dúctil e maleável às exigências de um direito civil, comprometido com as potencialidades transformadoras da Constituição Federal."6 Esse traçado multifuncional da Responsabilidade Civil pode se mostrar útil ao desafio de tutela da personalidade humana inaugurado pela data-driven economy a partir do crescente interesse verificado na doutrina nacional para uma melhor compreensão sobre a restituição derivada de lucros ilícitos, corporificadas normativamente a partir de duas figuras oriundas do common law: o disgorgement (estruturado como a remoção dos lucros ilícitos) e o restitutionary damages (delineado com a restituição dos lucros ilícitos). Em recente obra sobre o tema, Nelson Rosenvald explica que a restituição pelo lucro ilícito é usualmente encarada por meio do modelo fragmentado erigido pelo instituto do enriquecimento sem causa, alicerçado no art. 884 do CC/20027. Em um comparativo com o sistema normativo alemão, o autor sustenta8 que o instituto do enriquecimento sem causa pode funcionar como "[...] fonte de obrigações, apto a ocasionar o exercício da ação in rem verso" em hipóteses de enriquecimento obtido por fato injusto; enriquecimento pela frustração negocial indevida descrita no art. 885 do CC/20029; e o enriquecimento decorrente da prestação de terceiro, hipótese regulada pelo art. 305 do diploma material cível em vigor.10 Adiante, é forçoso reconhecer que o modelo de restituição pelo lucro ilícito, se melhor explorado nos limites da Responsabilidade Civil brasileira, poderá servir como um mecanismo de tutela restitutória em face da apropriação indevida de dados pessoais por meio de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos de IoT. Ora, se mesmo com os escândalos de hackers e coleta não autorizada de dados pessoais o Facebook arrecadou lucro recorde no último trimestre de 2018, alcançando a cifra de US$ 6.800.000.000.000,00 (seis bilhões e oitocentos milhões de dólares)11, a restituição pelo lucro ilícito poderia ser compreendido como uma contribuição adequada da Responsabilidade Civil (i) ao desestímulo gradual da continuidade da atual tecnorregulação da coleta de dados pessoais e (ii) à possível restituição e consequente tutela concreta da privacidade erodida pelas plataformas digitais que protagonizam a atual economia movida a dados. Neste ponto, é necessário sublinhar que o dano caracterizado pelas plataformas digitais possui feições singulares no âmbito da data-driven economy. Ainda que a captura e processamento incessante e não autorizados de dados pessoais atinja interesses juridicamente tutelados (como bem categoriza Anderson Schreiber ao tratar da definição jurídica de dano12), verificados na personalidade humana e privacidade, a mera eficácia indenizativa do ato ilícito não se mostra, a rigor, adequado ao propósito de uma tutela e reparação efetivas. Há que se melhor investigar a projeção da eficácia restitutória derivada dos atos ilícitos praticados em tal âmbito, justamente para que se alcance o contributo acima assinalado. Ponderando sobre a definição de civilização vertida por Mario Vargas Llosa e a tutela da propriedade imaterial, Nelson Rosenvald afirma hipótese que bem se amolda ao cenário da data-driven economy: a ampliação incalculável de possibilidade de novas violações aos direitos da personalidade e o estabelecimento de lucros consideráveis a partir dessas condutas ilícitas. Em suas palavras: A par de todas estas vicissitudes - inerentes à civilização do espetáculo -, comparados aos direitos das propriedades intelectuais, vê-se que os direitos da personalidade apresentam similar necessidade de tutela. Um infinito número de violações é possível, não existe tutela preventiva efetiva e a proteção oferecida pelo direito penal é insuficiente. Ademais da consolidada reparação do dano moral, o resguardo de situações existenciais pode ser implementado por tutelas inibitórias e pretensões desmonetizadas, como retratações e direito de resposta. Todavia, esses remédios são inadequados para levar em consideração o alto nível de proteção que estes direitos demandam. Além disso, consideráveis lucros podem ser produzidos pela violação de atributos intrínsecos à pessoa, em quantias muito superiores aos danos estimados, especialmente pela inerente dificuldade de sua avaliação. Essa combinação de fatores, torna atrativa sob o cálculo matemático a reiteração dessas violações [...]13.  Assim, no estabelecimento da Responsabilidade Civil inserta no sistema normativo fundado na privacidade e esteado no Direito Civil, mostra-se possível identificar na investigação comprometida do instituto estabelecido no art. 884 do CC/2002 a trilha de contributo que possa nos levar ao estabelecimento concreto da restituição do lucro derivado de práticas ilícitas aos titulares dos dados pessoais que tiveram sua privacidade, em sentido além da autodeterminação informativa, erodida. Eis, então, um primeiro passo para (re)pensarmos qual é o papel que a Responsabilidade Civil efetivamente poderá desempenhar na tutela da privacidade compreendida como eixo principal do desenvolvimento da personalidade humana (e de seus direitos correlatos), bem como para o exercício de liberdades por cada sujeito. Referências CORRÊA, Rafael. Os plúrimos sentidos da privacidade e sua tutela: a questão da proteção de dados pessoais e sua violação na atual construção jurisprudencial brasileira. In: FACHIN, Luiz Edson et al [Coords.] Jurisprudência Civil Brasileira. Métodos e problemas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s).Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora,2011. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. ______. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.  WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-DrivenEconomy. Roadmap for usageandexploitationof Big Data in Europe [livro eletrônico]. Springer InternationalPublishing, 2016.  WALDMAN, Ari Ezra. Privacy as Trust. Informationprivacy for aninformation age [livro eletrônico]. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.  ZUBOFF, Shoshana. The Age ofSurveillanceCapitalism. The fight for a human future atthe new frontierofPower [livro eletrônico]. New York: PublicAffairs, 2019. __________ 1 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 333. 2 WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-Driven Economy. Roadmap for usage and exploitation of Big Data in Europe. Springer International Publishing, 2016 [livro eletrônico]. 3 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019 [livro eletrônico]. Já na abertura da obra, Zuboff assim consigna o primeiro verbete definidor do "capitalismo de vigilância": "1. A new economic order that claims human experience as free raw material for hidden comercial practices of extraction, predictions, and sales." Posição 102. 4 MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. 5 Tais perspectivas redundam, inclusive, em alteração da nomenclatura do instituto, passando a ser encarado como "direito de danos" ou "responsabilidade por danos". A perspectiva do giro paradigmático é espelhada com clareza na reflexão de Luiz Edson Fachin: "Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. [...] A imputação tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas." FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 113-114. 6 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 5-6. 7 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.  Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. 8 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 325-328. 9 Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir. 10 Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento. 11 Em ano de crise, Facebook ganha usuários e lucro bate recorde. Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em novembro de 2022. 12 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013. 13 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 437-438.
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Ao longo da atuação da Comissão, um dos pontos mais discutidos foi, sem dúvidas, o da Responsabilidade Civil. A importância deste assunto se deve, sobretudo, ao fato de que o Projeto de Lei 21/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados, previa a adoção preferencial do regime de responsabilidade de natureza subjetiva, o que atraiu forte onda de críticas por parte da doutrina especializada, tendo sido esta discordância uma das razões preponderantes para a própria instalação da Comissão de Juristas. Especialistas ouvidos nas audiências públicas, como Anderson Schreiber, Caitlin Mulholland, Gisela Sampaio e Nelson Rosenvald, apontavam para os perigos de uma regulamentação descuidada do tema, sob pena de se acabar gerando verdadeira fratura no sistema de Responsabilidade Civil brasileiro. Ao mesmo tempo, representantes de inúmeros setores, especialmente daqueles ligados à indústria e ao mercado, se manifestaram na defesa da regulamentação da matéria, a fim de favorecer a segurança jurídica e permitir a criação de um ecossistema de governança mais adequado. Diante de opiniões tão radicalmente contrárias, a opção escolhida pela Comissão parece tender ao equilíbrio. Com nítida inspiração nas recentes propostas de regulamentação do tema pela União Europeia, especialmente na Resolução de 20 de outubro de 2020 do Parlamento Europeu, o anteprojeto busca regular o tema a partir dos riscos gerados pelos diversos sistemas de Inteligência Artificial, evitando o perigo - e a tentação - de conferir resposta única para um problema multifacetado. Se muitos são os sistemas de IA e os riscos a eles associados, muitos devem ser os regimes de Responsabilidade Civil. Da mesma forma, para além deste aspecto objetivo, o anteprojeto faz um recorte subjetivo, diferenciando as soluções de acordo com os sujeitos envolvidos na causação do dano. Atenta-se, assim, para os critérios da tipologia, autonomia, riscos e sujeitos da IA, como já tivéramos a oportunidade de identificar como tendência mundial para o tema ainda no ano de 2019.1 O recorte feito pela Comissão se estrutura, então, em dois aspectos centrais: sujeitos e tipos de IA, a depender do tipo de risco envolvido. Em relação aos sujeitos, o regime de responsabilidade proposto só seria aplicável aos chamados "agentes de IA" (art. 4º, inciso IV), que são, respectivamente, o "fornecedor de sistema de IA" (art. 4º, inciso II) e o "operador de sistema de IA" (art. 4º, inciso III). No entanto, antes de analisar as figuras, necessário dar um passo atrás para compreender o que são sistemas de IA. Na definição do inciso I do art. 4º, sistema de inteligência artificial (IA) é todo "sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real." O conceito - em atenção a críticas feitas por especialistas ao longo das audiências públicas - não se restringe às técnicas de aprendizado de máquina (machine learning), projetando-se, também, para outras técnicas de IA. Em relação aos agentes, tem-se que o fornecedor de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito" (art. 4º, inciso II). Já o operador de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional." No fundo, a figura dos fornecedores se confunde, em grande medida, com a dos desenvolvedores de tecnologias, seja para colocação no mercado, seja para utilização própria, ainda que a título gratuito. Por outro lado, os operadores são aqueles sujeitos que utilizem a tecnologia, desde que não o façam para fins de atividade pessoal de caráter não profissional. Além disso, em seu artigo 29 - e na mesma direção do artigo 45 da LGPD -, o anteprojeto excluiu da incidência do regime criado pela lei as hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo, as quais "permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Como se pode perceber, o anteprojeto optou por uma regulação com âmbito de incidência mais restrito, eis que ficaram de fora, por exemplo, os usuários de IA de caráter não profissional, o Estado - cujo regime de responsabilidade tem sede constitucional -, bem como os fornecedores previstos pelo CDC, ainda que profissionais liberais. Exemplificativamente, o regime previsto no anteprojeto não é aplicável (i) ao proprietário de carro autônomo ou de robô doméstico que cause acidente em atividade não profissional; (ii) ao Estado quando utilize IA e venha a causar danos; (iii) ao hospital que realize cirurgia robótica com IA e cause dano estético ao paciente; e, enfim, (iv) ao médico, quando profissional liberal, que cause dano ao paciente após se valer de alguma ferramenta de IA. Tais situações continuarão sendo regidas pela legislação pertinente, cabendo à doutrina e à jurisprudência a definição dos regimes de responsabilidade aplicáveis a cada hipótese. Por outro lado, o regramento proposto seria aplicável aos contextos de relações interempresariais, quando, por exemplo, uma empresa desenvolva um software de IA para outra e tal software venha a causar algum tipo de dano. Observe-se, contudo, que será preciso, ainda, verificar, no caso concreto, se existe ou não vulnerabilidade apta a atrair a aplicação da legislação consumerista. Há, contudo, situações que estão numa zona cinzenta. Veja-se, nessa direção, o caso do condomínio que utilize sistema de IA e cause dano a condômino. Por certo, não se trataria, em princípio, de relação de consumo, mas ainda haveria dúvidas em relação ao elemento "atividade pessoal de caráter não profissional" para se determinar se o condomínio se enquadraria como operador ou não. Em relação ao recorte objetivo, isto é, os tipos de IA, o artigo 27 diferencia em seus parágrafos 1º e 2º o regime aplicável a depender se o sistema de IA é de alto risco e risco excessivo ou não. Como regra geral, o caput dispõe que: "o fornecedor ou operador de sistema de IA que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema." A reparação integral evidenciada no dispositivo também consta do rol de princípios do anteprojeto, que em seu art. 3º, inciso X, elenca "prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos." Outrossim, a fim de se evitar a irresponsabilização em casos de delegação ou supervisão, o caput traz o aposto explicativo de que os agentes serão responsáveis não importando qual seja o grau de autonomia do sistema de IA. Conforme o parágrafo 1º, "[q]uando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano." E, de acordo com o parágrafo 2º, "[q]uando se tratar de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima." Ou seja: para IAs de alto risco ou risco excessivo, a responsabilidade será objetiva e, em atenção ao nexo de causalidade, dependerá da participação de cada um na causação do evento lesivo, não havendo que se falar em solidariedade. Já em relação aos demais tipos de IA, o regime será de natureza subjetiva, com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima. O artigo 28 destaca, na sequência, que os agentes de IA não serão responsabilizados quando "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA;" e "II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Destaca-se que as excludentes se aplicam para todos os tipos de sistemas de IA, independentemente do risco. Resta, por derradeiro, explicar, resumidamente, as classificações de IA em risco excessivo e alto risco. Em linhas gerais, as IAs de risco excessivo são aquelas proibidas pela lei. No fundo, risco excessivo é o risco inaceitável (utilizando-se a terminologia europeia) e sua disciplina se concentra nos artigos 14 a 16. O artigo 14 traz em seu caput que "[s]ão vedadas a implementação e uso de sistemas de IA: I - que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos deste lei; II - que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei; III - pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional." De nítida inspiração na proposta do AI Act europeu, ficaram de fora, de forma explícita, a proibição a armas letais autônomas e as restrições às deepfakes. No artigo 15, buscou-se disciplinar a vigilância de massa, isto é, o chamado mass surveillance: "Art. 15. No âmbito de atividades de segurança pública, somente é permitido o uso de sistemas de identificação biométrica à distância de forma contínua em espaços acessíveis ao público, quando houver previsão em lei federal específica e autorização judicial em conexão com a atividade de persecução penal individualizada, nos seguintes casos: I -para persecução de crimes passíveis de pena máxima de reclusão superior a dois anos; II - busca de vítimas de crimes ou pessoas desaparecidas; III - crime em flagrante. Parágrafo único. A lei a que se refere o caput deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal e o controle judicial, bem como os princípios e direitos previstos nesta Lei, especialmente a garantia contra a discriminação e a necessidade de revisão da inferência algorítmica pelo agente público responsável antes da tomada de qualquer ação em face da pessoa identificada." Por fim, dispôs o artigo 16 que "[c]aberá à Autoridade Competente regulamentar os sistemas de IA de risco excessivo." Em relação ao alto risco, a disciplina se resume aos artigos 17 e 18. O primeiro traz um rol taxativo: "Art. 17.  São considerados sistemas de IA de alto risco aqueles utilizados para as seguintes finalidades: I - aplicação como dispositivos de segurança na gestão e funcionamento de infraestruturas críticas, tais como controle de trânsito e redes de abastecimento de água e eletricidade; II - de educação e formação profissional, incluindo sistemas de determinação de acesso a instituições de ensino e formação profissional ou para avaliação e monitoramento de estudantes; III - de recrutamento, triagem, filtragem, avaliação de candidatos, tomada de decisões sobre promoções ou cessações de relações contratuais de trabalho, repartição de tarefas e controle e avaliação do desempenho e do comportamento das pessoas afetadas por tais aplicações de IA nas áreas de emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria; IV - avaliação de critérios de acesso, elegibilidade, concessão, revisão, redução ou revogação de serviços privados e públicos que sejam considerados essenciais, incluindo sistemas utilizados para avaliar a elegibilidade de pessoas naturais quanto a prestações e serviços públicos de assistência e seguridade; V - avaliação da capacidade de endividamento das pessoas naturais ou estabelecer sua classificação de crédito; VI - envio ou estabelecimento de prioridades para serviços de resposta a emergências, incluindo bombeiros e assistência médica; VII - administração da justiça, incluindo sistemas que auxiliem autoridades judiciárias na investigação dos fatos e na aplicação da lei; VIII - veículos autônomos quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas; IX - aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos; X - sistemas biométricos de identificação; XI - investigação criminal e segurança pública, em especial, para avaliações individuais de riscos pelas autoridades competentes, a fim de determinar o risco de uma pessoa cometer infrações ou de reincidir, ou o risco para potenciais vítimas de infrações penais ou para avaliar os traços de personalidade e as características ou o comportamento criminal passado de pessoas singulares ou grupos; XII - estudo analítico de crimes relativos a pessoas naturais, permitindo às autoridades policiais pesquisar grandes conjuntos de dados complexos, relacionados ou não relacionados, disponíveis em diferentes fontes de dados ou em diferentes formatos de dados, no intuito de identificar padrões desconhecidos ou descobrir relações escondidas nos dados; XIII - investigação por autoridades administrativas para avaliar a credibilidade dos elementos de prova no decurso da investigação ou repressão de infrações, para prever a ocorrência ou a recorrência de uma infração real ou potencial com base na definição de perfis de pessoas singulares; XIV - gestão da migração e controle de fronteiras." Apesar de taxativo, o rol poderá ser atualizado pela Autoridade Competente, figura esta criada pelo anteprojeto e que deverá ser escolhida em momento posterior. Segundo o artigo 18: "[c]aberá à autoridade competente atualizar a lista dos sistemas de IA de risco excessivo ou de alto risco, identificando novas hipóteses, com base em pelo menos um dos seguintes critérios: a)  a implementação ser em larga escala, levando-se em consideração o número de pessoas afetadas e a extensão geográfica, bem como a sua duração e frequência; b) o sistema puder impactar negativamente o exercício de direitos e liberdades ou a utilização de um serviço; c) o sistema tiver alto potencial danoso de ordem material e moral, bem como discriminatório; d) o sistema afetar pessoas de um grupo específico vulnerável. e)  serem os possíveis resultados prejudiciais do sistema de IA irreversíveis ou de difícil reversão; f) um sistema de IA similar já ter causado danos materiais ou morais; ou g) baixo grau de transparência, explicabilidade e auditabilidade do sistema de IA, que dificulte o seu controle ou supervisão; h) alto nível de identificabilidade dos titulares dos dados, incluindo o tratamento de dados genéticos e biométricos para efeitos de identificação única de uma pessoa singular, especialmente quando o tratamento inclui combinação, correspondência ou comparação de dados de várias fontes; i) quando existirem expectativas razoáveis do afetado quanto ao uso de seus dados pessoais no sistema de IA, em especial a expectativa de confidencialidade, como no tratamento de dados sigilosos ou sensíveis. Parágrafo único. A atualização da lista pela autoridade competente deve ser precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e audiência públicas e de análise de impacto regulatório." Outra norma de grande relevância está contida no artigo 41 do anteprojeto, que se insere na disciplina do ambiente regulatório experimental para inovação (sandbox regulatório) em IA. Segundo o dispositivo: "Os participantes no ambiente de testagem da regulamentação da IA continuam a ser responsáveis, nos termos da legislação aplicável em matéria de responsabilidade, por quaisquer danos infligidos a terceiros em resultado da experimentação que ocorre no ambiente de testagem." A regra, de inspiração imediata em disposição semelhante na Proposta do AI Act europeu tem por finalidade evitar a irresponsabilização por danos no âmbito das sandboxes. Dito diversamente: o fato de haver eventuais atenuações no rigor de normas regulatórias não implicaria a ausência de responsabilidade por danos eventualmente causados. Em linhas finais, cumpre pontuar que o regime de Responsabilidade Civil proposto pelo anteprojeto tem âmbito de aplicação bastante limitado e manifesta clara tendência pela objetivação da responsabilidade, considerados os inegáveis riscos de danos causados pelos sistemas de Inteligência Artificial. Caberá ao Congresso Nacional, em aprofundamento dos trabalhos da Comissão, refletir de modo mais detido em relação a temas como securitização obrigatória e fundos compensatórios, que têm se revelado como tendência global na matéria. E, à doutrina, caberá aprofundar as discussões em relação à gestão de riscos - incluindo precaução e prevenção -, governança, boas práticas e medidas de accountability, à luz dos diversos dispositivos sugeridos pelo anteprojeto. O texto traz, inequivocamente, importantes avanços não apenas em matéria de Responsabilidade Civil, como em outros temas centrais para o desenvolvimento da IA, com a inclusão da pessoa humana em seu epicentro. No entanto, não se trata de um trabalho pronto e acabado, mas de um pontapé inicial para o jogo que recomeça agora no campo do Congresso. E, aproveitando o clima de Copa e a inspiração "galvanesca": segue o jogo, amigo! __________ 1 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed.
Introdução Com mais de 500 mil médicos no Brasil1, a maioria dos acadêmicos e profissionais optam por fazer Residência Médica - com duração de 2 a 5 anos - e tornarem-se especialistas em determinada área do corpo humano. Atualmente o CFM2 reconhece 55 especialidades médicas e 59 áreas de atuação. Dentre as 55 especialidades oficiais existem algumas que ainda podem ser pouco conhecidas pelo público em geral, como a acupuntura, a medicina de emergência ou a medicina preventiva e social. Interessante expor que o CFM não reconhece "medicina estética" e "medicina integrativa" como especialidades médicas. Aos médicos que não cursaram uma residência ou não possuem um título de especialista, a nomenclatura correta é "médico generalista" e não "clínico geral" como comumente são chamados, haja vista que "clínico geral" é o título do médico especialista em Clínica Médica. Pediatria Aqueles que optam por fazer a especialidade mais fofa de todas cursam um programa de residência médica com duração de 3 anos. A pediatria é a opção de 10,1% dos médicos brasileiros e 74,4% deles são mulheres3. Dentre as atribuições de um pediatra está o dever de cuidado, principalmente em casos de suspeita de abusos sexuais e maus-tratos com contra seus pequenos pacientes. Nestes casos cabe ao especialista a notificação obrigatória ao Conselho Tutelar e em alguns casos ao Ministério Público, como dispõe o artigo 13 do ECA4. Mesmo que o público-alvo desses especialistas sejam menores de idade, o Código de Ética Médica enfatiza a importância de manter o sigilo profissional entre o médico e o paciente. Dispõe o artigo 745 que é vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente criança ou adolescente, desde que estes tenham capacidade de discernimento, inclusive a seus pais ou representantes legais, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. Sendo assim, se o pediatra quebrar o sigilo fora das hipóteses que lhe são permitidas, poderá haver responsabilidade civil. Considerando a natureza da atividade do médico pediatra, os erros mais comuns dentro desta especialidade são a negligência e o erro de diagnóstico. A negligência, nas palavras de França6, se caracteriza pelo não fazer, pela inércia, pela indolência e como exemplo podemos citar: não requerer exames pré-operatórios, não requisitar exames complementares, não considerar o relato dos pais/responsáveis ou não fazer perguntas aos pais/responsáveis. Compreendendo que a maioria dos pacientes possuem dificuldade em verbalizar por conta da própria idade, aos pediatras cabe colher informações suficientes dos pacientes e dos pais/responsáveis para fechar um diagnóstico correto. E é então que surge o erro de diagnóstico. Kfouri7 leciona: Sobretudo na Pediatria, quando o paciente, de tenra idade, não pode dizer o que sente - e o médico, muitas vezes, guia-se por observações transmitidas pela mão da criança - o diagnóstico fica ainda mais difícil. O exame do pequeno paciente deve ser minucioso, detalhado, sem descurar o mau mínimo indício que sirva à identificação da patologia. O erro de diagnóstico escusável não gerará dever de indenizar porque não constitui culpa médica. Porém, se o erro for resultado de negligência ou ignorância, haverá responsabilidade civil médica. Ortopedia A ortopedia e traumatologia é a segunda especialidade médica mais masculina de todas, com 93,5% dos médicos homens8, perde apenas para urologia. Outro importante segundo lugar que esta especialidade ocupa é no ranking do STJ das especialidades médicas mais processadas no Brasil, fica atrás apenas da G.O. A ortopedia tem um importante traço: a subespecialização extrema. Só em relação aos membros superiores, podem existir as seguintes subespecialidades: cabeça, pescoço, ombro, cotovelo e mãos. O ortopedista, via de regra, contrai obrigação de meio com seu paciente, mas possui uma importante exceção. Kfouri9 aduz: Isso significa não existir a imposição de curar sempre, de obter êxito em todas as intervenções, mas sim de aplicar os conhecimentos da ciência médica contemporânea, dispensar cuidados atentos e de boa qualidade ao paciente, enfim, de envidar os melhores esforços no sentido de atingir o resultado esperado, mas sem garantia plena de sucesso. Cirurgias como artroplastias, fixação interna de fratura óssea e colocação de próteses são exemplos de procedimentos cirúrgicos comuns para os ortopedistas e consideradas como obrigação de meio. Uma perguntinha rápida: Já quebrou o braço? Já assinou o gesso de um colega que quebrou o braço? Pois bem, a doutrina compreende que a colocação de aparelho gessado é obrigação de resultado, haja vista a simplicidade da tarefa. A ortopedia é uma especialidade majoritariamente cirúrgica e como todas as intervenções no organismo humano apresenta riscos considerados habituais, entre eles: lesão do nervo radial, reoperação e infecções. Kfouri10 sintetiza "na ortopedia cada caso deve ser examinado segundo um modelo abstrato, encontradiço na literatura médica, mas que varia segundo os ditames da ciência, a prática comum ou o que seja desejável, naquele tipo de atividade". Nesta especialidade o erro mais comum consiste no erro de diagnóstico na leitura de exames de imagem e eventual falha na identificação de fraturas. A lógica da indenização segue a mesma: se for escusável não haverá dever de indenizar, contudo, se decorrer de ignorância ou negligência, haverá responsabilidade civil médica. Oftalmologia A visão está entre os sentidos mais importantes do ser humano e ao oftalmologista cabe atuar no cuidado clínico e cirúrgico dos olhos. No país, 3,6% dos médicos optaram por esta especialidade que possui mais de 16 subespecialidades, como por exemplo: retina, catarata, glaucoma, lente de contato, córnea, oncologia ocular entre outras. Dentre os especialistas, 60% dão homens. A obrigação contraída pelo oftalmologista é de meios, não de resultado e vale expor que não se pode comparar a cirurgia destinada a corrigir disfunção visual, ainda que leve, à cirurgia embelezadora. Nesse sentido, alerta Kfouri11: Toda cirurgia realizada no olho, seja na parte externa, câmara média ou posterior, envolve risco ao paciente, que deve ser alertado sobre tal circunstância, e a finalidade da intervenção é o ganho funcional, a melhora da acuidade visual. A catarata é a maior causa de cegueira no Brasil, por isso está entre as cirurgias oftalmológicas mais comuns no país. Este procedimento cirúrgico consiste em substituir o cristalino opaco pelo implante de uma lente intraocular com o uso de laser. Mesmos nesses casos não há que se falar em obrigação de resultados, continua sendo uma obrigação de meio. Uma questão de ordem prática consiste em responder duas perguntas curiosas: 1. O oftalmologista pode ser dono de uma ótica? 2. O oftalmologista pode indicar uma ótica específica? A resposta é não para ambos os questionamentos e estão, respectivamente, respaldadas nos artigos 12 e 16 da lei 24.492/34. Considerações finais Nota-se que a maioria dos médicos brasileiros optam por tornar-se especialista e que cada especialidade médica exige do especialista cuidados próprios que variam conforme o perfil do seu paciente. A escuta atenciosa e a anamnese completa continuam sendo meios importantes para chegar a um diagnóstico correto. A obrigação nas três especialidades médicas aqui citadas são de meio, como aduz a regra geral dentro da responsabilidade civil médica, a exceção do procedimento de colocação tala gessada dentro da ortopedia. Yasmin Folha Machado é Professora universitária. Advogada. Doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas dirigido pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Referências bibliográficas KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. __________ 1 SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 2 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 3 SCHEFFER, M. et al., p. 69 4 Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. 5 RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 6 P. 259 7 KFOURI, 2019, p. 252 8 SCHEFFER, M. et al., p. 72 9 KFOURI, 2021, p. 363 10 2021, p. 364. 11 2021, p. 369
Resenha: Este artigo apresenta críticas ao PL 2856/2022, do Senado Federal, que propõe incluir no CDC a regulamentação do "desvio produtivo do consumidor". O texto dialoga criticamente com a obra de Marcos Dessaune, autor da "teoria do desvio produtivo do consumidor", e aponta uma série de falhas do projeto, esperando assim contribuir para seu aperfeiçoamento. Tive minha atenção recentemente chamada para um projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, "para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor". Li o projeto e o considerei muito ruim. Daí esse breve trabalho, destinado a apresentar minhas críticas ao texto projetado.1 Inicio descrevendo o projeto, que é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto ("Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor") e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção ("Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor"), formada pelos arts. 25-A até 25-F). Pois já tenho, aqui, uma crítica, de ordem terminológica: fala o texto do projeto em "desvio produtivo do consumidor". E essa expressão é equivocada. Vale registrar, porém - e antes de tudo - que a expressão só aparece na epígrafe da Seção que se pretende acrescentar ao texto do Código de Defesa do Consumidor, não sendo empregada em nenhum dos artigos projetados. A expressão "desvio produtivo" tem sido empregada para fazer alusão à lesão sofrida por alguém que tem de gastar parte de seu tempo para resolver (ou tentar resolver) um problema causado por outro sujeito de uma relação jurídica, especialmente em relações de consumo. O autor da expressão assim se refere ao fenômeno: "evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa".2 E sobre a expressão, diz Dessaune: "Inicialmente, denominei o fenômeno socioeconômico em análise "desvio dos recursos produtivos do consumidor", por ser um nome mais completo e autoexplicativo. Porém, a necessidade de dispor de um nome menor e mais simples, tanto para o título do livro quanto para as inúmeras citações ao longo da obra, levou-me a simplificá-lo e a reduzi-lo para "desvio produtivo do consumidor". Note-se, contudo, que nessa nova expressão cunhada não empreguei o adjetivo "produtivo" para qualificar o desvio do consumidor como sendo um ato "producente" ou "improducente". Diversamente, utilizei tal adjetivo em sua acepção de "relativo à produção", indicando tão somente que, em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos "que produzem" (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".3 O fato de o criador da expressão ter de explicar que ao falar em "desvio produtivo" não emprega o adjetivo produtivo para qualificar o substantivo desvio já é suficiente para mostrar como a expressão é falha. E ainda afirma que o fez em razão de uma suposta "necessidade de dispor de um nome menor e mais simples". Com todas as vênias, mas ciência não se faz por simplificações, ainda que terminológicas. Vale, aqui, a mesma afirmação que - sobre a expressão "exceção de pré-executividade" - fez José Carlos Barbosa Moreira: "Está claro que o ponto não interessará a quem não dê importância à terminologia - a quem suponha, digamos, que em geometria tanto faz chamar triângulo ou pentágono ao polígono de três lados, e que em anatomia dá na mesma atribuir ao fígado a denominação própria ou a de cérebro. Mas - digamos com franqueza - tampouco interessará muito o que esses pensem ou deixem de pensar".4 Mesmo depois da explicação dada pelo autor da expressão, porém, as coisas não melhoram. Diz Dessaune que usou o adjetivo produtivo no sentido de "relativo à produção", para indicar que, "em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos 'que produzem' (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".5 O que se percebe, então, é que o adjetivo produtivo estaria a qualificar o substantivo (omitido na expressão) recursos. Haveria, portanto, um desvio de recursos produtivos do consumidor, especialmente de seu tempo. É preciso considerar, porém, que não só o tempo "produtivo" pode ser perdido quando se tenta resolver um problema como esses descritos pelo autor da expressão. Aliás, para a imensa maioria da população brasileira, o tempo a ser empregado na tentativa de resolução de problemas causados por fornecedores é, exatamente, um tempo que não seria dedicado a atividades produtivas, já que as pessoas em geral não podem simplesmente dedicar parte do tempo que dedicam a suas atividades profissionais para isso. É no tempo de folga, que poderia ser dedicado a atividades nada produtivas, que em geral se pode tentar resolver esses problemas. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Esse texto pretende ser um diálogo com as ideias sobre o tema de Marcos Dessaune, autor da assim chamada "teoria do desvio produtivo do consumidor" e integrante da comissão responsável pela redação do anteprojeto que resultou no projeto de lei aqui criticado. Ao aludido autor, de cujas ideias divirjo, fica aqui a manifestação de meu respeito, convencido de que é pelo confronto de ideias, especialmente das divergentes, que a Ciência Jurídica pode evoluir. 2 DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 15-16. 3 Idem, pág. 23, nota de rodapé n. 19. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Exceção de Pré-Executividade: uma denominação infeliz. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 121. 5 DESSAUNE, op. cit., pág. 23, nota de rodapé n. 19.
O reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo (CDC, art. 4º, I) e fator diferenciador da legislação brasileira no âmbito do direito comparado. Trata-se de fundamento dogmático das relações de consumo, premissa que tanto justifica quanto orienta e conforma a proteção dos consumidores a partir da sua base constitucional1 de valorização da pessoa2 e suas normas de ordem pública e interesse social estabelecidas em favor do consumidor. A primeira inovação nesse tema é que com a atualização trazida pela Lei 14.181/2021, uma gradação da vulnerabilidade do consumidor, já reconhecida pela doutrina3, foi incorporada à legislação (a exemplo do disposto no CDC, art. 54-C, IV), preferindo-se a expressão proposta por Bruno Miragem, vulnerabilidade agravada. No contexto do Mercosul, incorporou-se a noção de hipervulnerabidade de algumas categorias de consumidores. O bloco consagrou um importante passo na defesa do consumidor com a aprovação da Resolução 11/2021, sobre a proteção ao consumidor hipervulnerável, que resolve: "Art. 1° - Considerar como consumidores em situação de hipervulnerabilidade as pessoas físicas com vulnerabilidade agravada, desfavorecidos ou em desvantagem por razão de sua idade, estado físico ou mental, ou circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais que provoquem especiais dificuldades para exercer com plenitude seus direitos como consumidores no ato concreto de consumo que realizarem. A presunção de hipervulnerabilidade não é absoluta e deve ser atendida no caso concreto, em função das circunstâncias da pessoa, tempo e local."4-5 Cada Estado deverá adotar internamente de maneira gradual medidas tendentes a, por exemplo, implementar políticas de orientação, assessoramento, assistência e acompanhamento aos consumidores hipervulneráveis quanto às reclamações no âmbito das relações de consumo, proteger contra publicidade e ofertas enganosas ou abusivas e promover a proteção de dados e intimidade desses consumidores, dentre outras. Instrumentos e mecanismos que reassegurem o equilíbrio nas relações de consumo são imperiosos e consistem, por exemplo, no acesso a meios adequados de resolução de litígios e de facilitação da instrução probatória em favor do consumidor.6 A efetividade da tutela de direitos perpassa a identificação de fatores socioeconômicos que interferem nas relações humanas. A vulnerabilidade7 não é uma característica reservada aos consumidores, mas um fenômeno social, presente em diversas esferas. Um de seus efeitos é o regime de dependência e a erosão da autonomia. Esses temas são estudados por Martha Fineman, para quem  a vulnerabilidade deve resultar em medidas responsivas do Estado.8 A igualdade que é assegurada pela lei9 ainda não é suficiente para alcançar a efetividade dos seus efeitos nos mercados. Vive-se um cenário de vulnerabilidade estrutural, de dependência recíproca entre agentes e instituições sociais e a sua mitigação perpassa a compreensão de que a noção de homem médio - geralmente imaginado em uma versão "Brooks brothers" do sujeito de direitos - está muito distante da realidade. Um estudo de Siciliani, Cristine Riefa e Gamper apresenta quatro theories of harm (scam, lemon, schock, subsidy), ou teorias sobre os danos causados aos consumidores, que acentuam a sua vulnerabilidade e demandam providências no âmbito do Direito10. É interessante perceber a gradação feita pelos autores, que bem destacam que parte das pessoas não é suscetível a alguns dos riscos identificados, diferenciando as pessoas mais ingênuas ou com diversas camadas de vulnerabilidade. Essa percepção é especialmente importante para o julgador e para o intérprete da legislação. A primeira delas é a teoria do golpe, que descreve situações em que consumidores ingênuos são deixados à mercê de fornecedores injustos. Eles não percebem o risco de que o produto ou serviço oferecido possa ser inútil. No esquema, a demanda é totalmente injustificada e os falsários competem para enganar. Os exemplos tradicionais incluem esquemas em pirâmide, falsas loterias ou sorteios de prêmios, ou falsas reivindicações médicas. Nessas situações, o máximo prejuízo financeiro é experimentado por uma categoria de consumidores mais vulneráveis. Nem os consumidores sofisticados nem as empresas justas querem negociar nesses falsos "mercados". Como eles podem evitá-los, não há incentivos suficientes para que empresas injustas melhorem a maneira como operam. A segunda teoria, do limão (que nos remete aos market for "lemons"11), os consumidores não podem realmente julgar a qualidade do que é oferecido. Isto diz respeito principalmente à falta de experiência ou aos bens de crédito. Consumidores sofisticados e empresas em conformidade com a legislação querem ser ativos no mercado, mas a presença de consumidores ingênuos e empresas injustas pode implicar em riscos à concorrência, por vezes fazendo com que ambos se retirem do mercado. Exemplos tradicionais incluem carros, relógios, serviços de reparos. A assimetria informacional é o fator preponderante nesse contexto, que acentua a vulnerabilidade dos consumidores. A terceira teoria, do "choque", retrata as diferenças de resultados (e prejuízos) quando consumidores ingênuos e sofisticados são confrontados com o mesmo uso generalizado de práticas enganosas, mas os consumidores sofisticados são capazes de detectar as tentativas dos comerciantes de enganar. Esta teoria do dano se aplica principalmente aos atributos de busca (como preço ou termos e condições). O choque é sentido apenas por consumidores ingênuos que não detectaram a prática desleal e exemplos típicos incluem preços diferenciados e cláusulas contratuais abusivas, inclusive as restritivas de responsabilidade. É nesse contexto que as dark patterns ou práticas deceptivas são alocadas. Não há uma definição unânime sobre o que são os padrões comerciais deceptivos ou dark patters, que "são usados por algumas empresas online para coagir, dirigir ou enganar os consumidores a tomarem decisões não intencionais e potencialmente prejudiciais."12 Também conhecidas como práticas de design enganosas, as dark patters podem ser descritas como "truques usados em sites e aplicativos que fazem você fazer coisas que você não queria fazer, como comprar ou se inscrever para algo"13. Vários exemplos destas práticas que atraem os consumidores (e não se confundem com de nudges ou técnicas de neuromarketing) são listados por organizações preocupadas com a segurança de ambientes online.14 Estudos mais recentes de dark patters confirmam os efeitos que essa arquitetura de escolhas causa aos consumidores. O crescente uso de dados pessoais tem acentuado a vulnerabilidade dos consumidores e incrementando os riscos de danos. Os preços personalizados (que utilizam as informações coletadas sobre um consumidor ou um subconjunto de consumidores para oferecer um preço diferente daquele ao qual o consumidor estaria sujeito se tivesse pegado o produto em uma prateleira física) podem colocar uma barreira extra aos consumidores. Se todos os preços são personalizados, há um obstáculo a mais para o consumidor saber quais preços são propostos a outros consumidores e identificar se lhe está sendo cobrado um valor justo ou adequado. Mas as práticas de preços discriminatórios são prejudiciais não apenas aos consumidores, mas também aos fornecedores comprometidos com um tratamento justo no mercado de consumo. A mera proibição da prática comercial não se revela como medida suficiente para conter os danos aos consumidores de maneira eficaz.15 Da mesma forma, o mero alerta acerca do uso de decisões automatizadas não alcança todos os consumidores.16 A aplicação das sanções administrativas conhecidas no microssistema de defesa dos consumidores em conjunto com as dispostas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018) pode ser um incentivo à conformidade, mas depende da identificação e comprovação da prática comercial abusiva, o que é bastante difícil nos mercados. No relatório da OCDE, sugerem-se como medidas alternativas: exigir que a empresa obtenha a permissão dos consumidores para usar seus dados pessoais para personalizar os preços, informando-os que os preços ou descontos oferecidos são personalizados e como foi calculado (incluindo as informações pessoais que foram usadas para definir o preço). Além disso, sugere-se que a empresa publique um preço uniforme listado para todos os consumidores que desejem optar por não personalizar os preços.17 Por fim, na teoria do "subsídio", há um desequilíbrio do mercado e surge o risco de os consumidores ingênuos serem discriminados pela generalidade dos comerciantes, com consumidores sofisticados se beneficiando dessa exploração. A falta de previsão ou disciplina por parte dos consumidores ingênuos significa que os comerciantes desleais são capazes de cobrar taxas elevadas - muitas das quais os consumidores sofisticados podem evitar -, sendo assim subsidiados por consumidores vulneráveis. Isto inclui, por exemplo, taxas adicionais ou multas. No Brasil observava-se um subsídio cruzado entre consumidores de maior e menor renda no que concerne as formas de pagamento. A proibição de cobranças de preços diferentes em razão da modalidade de pagamento persistiu até 2017, quando uma medida provisória, posteriormente convertida na Lei n. 13.455/2017, autorizou a diferenciação. Consumidores mais pobres, que não tinham acesso a crédito, pagavam mais por produtos ou serviços em razão dos custos acrescidos pelo amplo uso cartão de crédito por outra parcela da população. Até hoje, no setor bancário, os exemplos são abundantes, a começar pela isenção de inúmeras taxas, tarifas e anuidades com que investidores maiores são beneficiados, o que revela o custo acrescido da pobreza. Para a mitigação dos efeitos da assimetria informacional aos consumidores, buscam-se ferramentas jurídicas e tecnológicas, que promovam um ambiente de negócios fair by design. A percepção das múltiplas camadas e graus de vulnerabilidade que cometem os consumidores é um convite a todos os leitores desta reconhecida e importante coluna do IBERC para uma reflexão conjunta sobre as nossas pesquisas e políticas. Referências ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020. BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. MARQUES, Claudia Lima Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. SICILIANI P, RIEFA C, GAMPER H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível em: https://darkpatterns.uxp2.com/. Ambos acessados em 20 de março de 2022. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. 2 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. 3 A concepção de hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade exacerbada é explicada nos escritos de Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Cristiano Heineck Schimitt (Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 65.), Marcelo Schenk Duque (O dever fundamental do estado de proteger a pessoa da redução da função cognitiva provocada pelo superendividamento. Revista de Direito do Consumidor, v. 94,  Jul.-Ago., 2014. p. 157-179.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores. 4 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. 5 A Resolução elenca como hipervulneráveis: "a) ser criança ou adolescente; b) ser idoso, conforme a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos; c) ser pessoa com deficiência; d) ter a condição de pessoa migrante; e) ter a condição de pessoa turista; f) pertencer a comunidades indígenas, povos originários ou minorias étnicas; g) encontrar-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica; h) pertencer a uma família monoparental a cargo de filhas/os menores de idade ou com deficiência; i) ter problemas graves de saúde." (MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível aqui. Acesso em: 25 abr. 2022.) 6 BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. 7 Conceito multifacetado complexo que comporta diferentes interpretações - conf. KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. 8 FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. 9 FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). 10 Siciliani P, Riefa C and Gamper H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. 11 Veja: ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020.  12 OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. 13 Deceptive Design: formerly darkpattersns.org. Design enganoso: antigamente darkpattersns.org. Disponível aqui.  Acesso em 20 de março de 2022. 14 Veja: The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível aqui. Ambos acessados em 20 de março de 2022. 15 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. 16 Sobre o tema, veja a tese de doutoramento de Guilherme Mucelin, defendida perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, orientada pela Profª Drª Sandra Regina Martini e intitulada "Direito de validação das decisões individuais automatizadas baseadas em perfis de consumidores". 17 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. In the United Kingdom, under the application of the Consumer Contracts (Information, Cancellation and Additional Charges) Regulations 2013 implementing the Consumer Rights Directive, the sanction for non-disclosure of this information would be breach of statutory duty (Reg 18) and /or breach of contract.)
A resposta à pergunta que intitula este artigo define os rumos da política criminal de um país e impacta diretamente no comportamento social de sua nação. As normas jurídicas e seus operadores devem buscar que a resposta a tal questionamento seja sempre negativa, de modo a garantir a obediência das leis pelos cidadãos. Nesse contexto, surge a lei 14.470/22, com menos de 1 semana de vigência, mas com mais de 5 anos de trajetória legislativa. Fruto do PL 11.275/18, originário do PLS 283/16, a nova lei altera a Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) para recrudescer a política de combate às violações à ordem econômica. Importante ressaltar que as infrações à ordem econômica impactam fortemente a população, pois seus efeitos tendem a atingir de milhares a milhões de vítimas, tanto que a proteção à concorrência e ao consumidor está prevista na Constituição Federal e muitas de tais infrações são também consideradas crimes, conforme texto da lei 8.137/90. E como a nova lei poderá mudar o equilíbrio entre incentivos e desincentivos à prática de infrações concorrenciais? Novamente, devemos retornar à pergunta inicial: o crime compensa? Tratando-se de crimes econômicos no Brasil, a resposta até o momento é: SIM. Isso porque os infratores não devolvem às vítimas os ganhos obtidos ilicitamente. Apesar de existirem inúmeras demandas individuais e coletivas, além de ações civis públicas, que visam a reparação dos prejudicados por cartéis (pior das infrações à concorrência) e outras condutas de abuso de poder econômico, não há no Brasil ainda uma condenação final em favor das vítimas de qualquer um dos grandes cartéis condenados pelo CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. São muitas as dificuldades enfrentadas pelas vítimas na busca pela indenização de seu prejuízo e a lei recém-promulgada auxiliará no enfrentamento de algumas dessas questões. Destacam-se 3 temas principais do texto da lei 14.470/22: a criação do dano em dobro; a harmonização do prazo prescricional e a data inicial de sua contagem; e a vedação expressa à presunção de repasse do dano. A nova lei determina que todos os prejudicados por infrações à ordem econômica terão direito ao ressarcimento em dobro por seu prejuízo. É o chamado double damage, que tem como paralelo internacional o treble damage, previsto pela legislação americana para as infrações de cartel, entre outras. No ordenamento pátrio também não é novidade, visto que a pena civil ocorre em outras situações, como nos casos do segurador de má-fé, do cobrador de dívida já paga e do construtor invasor de má-fé1. A importância dessa previsão legal não reside apenas no fato (óbvio) de ressarcir em dobro a vítima das infrações concorrenciais, mas principalmente em gerar grande desincentivo à prática do ilícito. A persecução privada dos danos concorrenciais é essencial para complementar a iniciativa pública de punição dos infratores, pois torna o ilícito financeiramente inviável. Na medida em que o violador devolve todo o lucro que obteve com sua prática infratora e ainda paga uma multa ao Estado, ele passa a ter prejuízo com o ilícito. Mas ainda há potenciais ganhos derivados do fato de que a taxa de detecção das violações pelo Estado é inferior a 100% e que também são poucas as vítimas que buscam o ressarcimento por seus danos, por diversos motivos. Assim, a implementação do dano em dobro equilibra a situação. De outro lado, a nova lei também não descuida dos incentivos à própria descoberta dos ilícitos, ao usar o dano em dobro também como medida de aumento do incentivo à confissão das infrações por seus agentes. Tal efeito é obtivo pelo fato de o recente diploma excluir a imposição do dano em dobro para os signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação de prática com a autoridade de defesa da concorrência, bem como gerar uma excludente da responsabilização solidárias em benefício dos mesmos. O segundo ponto de importância da lei é a definição expressa do prazo e termo inicial da prescrição. Antes da promulgação da lei em comento, o prazo prescricional era dúplice, sendo de 5 anos para as vítimas enquadradas no conceito de consumidor do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e de 3 anos para as demais vítimas, conforme previsão do artigo 206, §3º, V do Código Civil. A partir de agora, todas as vítimas estão sujeitas ao prazo quinquenal. A nova lei também elimina em definitivo eventual dúvida que ainda houvesse sobre a interpretação legal do prazo inicial para a contagem da prescrição. O Tribunal de Justiça de São Paulo (perante o qual tramita a grande maioria das demandas de indenização por dano concorrencial do país) já havia consolidado o entendimento de que a data da publicação da decisão final do CADE demarca o termo de início da contagem da prescrição2, seguindo o entendimento das normas e decisões internacionais3. A nova lei, portanto, não inova, mas confirma a interpretação já adotada para a legislação vigente, na medida em que determina que a contagem do prazo prescricional só pode ser iniciada quando ocorre a ciência inequívoca do ilícito pela vítima (em respeito à já consagrada teoria da actio nata) e indica de modo expresso que tal ciência ocorre somente no momento da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE. Ainda, a nova lei determina expressamente que o repasse do sobrepreço não pode ser presumido e estipula que o ônus da prova de tal alegação é do réu, ou seja, do agente que infringiu a norma concorrencial. Novamente, o tema era objeto de muita discussão nos tribunais brasileiros e a solução podia ser obtida a partir da intepretação das normas já vigentes nos Códigos Civil e de Processo Civil. Contudo, a inclusão do §4º no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência é de grande importância para eliminar qualquer dúvida e definir cabalmente a regra processual aplicável. O uso da teoria do repasse dos danos pelos infratores é fonte de grande protelação processual e criava grandes dificuldades às vítimas, que não podiam ter acesso aos dados econômicos de formação de preço de toda a cadeia produtiva. Novamente, a solução trazida pela nova lei se alinha com as legislações americana e europeia, mantendo o Brasil na vanguarda da regulação sobre o tema. Por fim, vale dizer que o PL 11.275/18 previa em seu texto final a obrigatoriedade da inserção de cláusula arbitral nos acordos celebrados pelo CADE (seja leniência ou termo de cessação de conduta), de modo a delegar à vítima a escolha de qual procedimento utilizar para conduzir sua demanda (judicial ou arbitral), mas foi vetado pela Presidência da República. Certamente, a arbitragem traria impulso ainda maior às iniciativas de indenização dos danos concorrenciais, em razão da maior celeridade e tecnicidade de tal procedimento em comparação ao processo judicial. Mas tal veto não retira o brilho da lei 14.470, que nasceu vocacionada para mostrar que a partir de agora, no Brasil, o crime econômico certamente não compensa. ___________ 1 Vide artigos 773, 940 e 1.259 do Código Civil. 2 Vide decisões nesse sentido: TJ/SP - Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP - AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP - AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP - Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020.   3 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia (artigo 10º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho) e nos EUA (Clayton Act 15 U.S.C. § 16(i)) asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da concorrência. ___________ *Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Doutor, mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pela Análise Advocacia, pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior.
1 Introdução Nos últimos anos tem-se visto um aumento na busca por tratamentos faciais e corporais. Ao mesmo tempo, observa-se que os profissionais da saúde, notadamente, para fins deste artigo, da medicina e da odontologia, têm se dedicado bastante a métodos e técnicas de harmonização facial e corporal, seja para fins estéticos ou por motivos de saúde ou funcionais. Em tempos de hiperexposição nas redes sociais, em que se fala em tom de brincadeira que "só vale se postar", médicos e dentistas demonstram anseios pelo direito de divulgar resultados de tratamentos nas mídias sociais como forma de publicizar os procedimentos e técnicas que colocam a disposição dos pacientes, deparando-se com conflitos éticos e legais no que concerne à violação de direitos da personalidade e suposta mercantilização da profissão. Ambos os conselhos se manifestaram a respeito. 2 O atual estado da arte sobre divulgação de fotos de pacientes no Conselho Federal de Medicina O Conselho Federal de Medicina (CFM) enfrentou a matéria na resolução 2.126/15, que altera a resolução 1.974/2011, e estabelece critérios para a propaganda em medicina. Esta última norma, inclusive, dispõe, acertadamente, em seu texto que a publicidade médica deve ter fins educativos, diferenciando-se de anúncios de produtos e práticas comerciais.  Com efeito, a vida e o corpo humanos não são mercadorias, assim como não devem ser mercantilizados os cuidados com a pessoa. Reside aí a diferença entre se falar em "preço" e "valor" quando se faz menção ao ser humano na concepção kantiana de dignidade1. A res. 2.126/15 estabelece, na exposição de motivos, preocupação com o que chamou de "mudança avassaladora" ocasionada pelos avanços tecnológicos das mídias sociais, que passaram a permitir postagens imediatas, muitas vezes feitas por impulso, sem a necessária reflexão sobre abordagens e consequências, e que vieram a ocasionar "uma avalanche de demandas" nos conselhos ético-profissionais da área médica. Desta feita, considerando, inclusive, a proteção constitucional à vida privada, honra, e imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88), alterou o art. 13 da res. 1.974/11 para inserir a proibição à publicação de imagens de "antes e depois" de procedimentos. Mais do que isso, para garantir que os fins estabelecidos nas normas de ética médica sejam cumpridos, estabelece que a publicação reiterada de imagens de "antes e depois" por pacientes e terceiros, bem como elogios repetidos com frequência devem ser investigados pelos Conselhos Regionais de Medicina. A regra é clara no sentido de trazer um tratamento voltado a impossibilitar que a norma seja burlada de maneira indireta. Em que pese as não raras publicações de resultados de antes e depois de procedimentos que se pode ver nas redes sociais, e eventuais decisões favoráveis à prática de publicidade por médicos em juízo de primeira instância, o CFM tem logrado êxito e reverter decisões desse tipo em segunda instância e segue firme na defesa das normas éticas. Todavia, o tema está longe de ser pacificado e, não obstante nossa opinião em sentido contrário, considerando o risco que pode representar a mercantilização da saúde e uma eventual corrida em busca de resultados prometidos por profissionais2, é possível que haja mudanças de entendimento, a exemplo do que aconteceu no Conselho Federal de Odontologia. 3 Análise da Resolução 196/2019 do Conselho Federal de Odontologia O Conselho Federal de Odontologia (CFO), historicamente, dispunha de tratamento similar ao aplicado pelo Conselho Federal de Medicina no que diz respeito à publicidade. Do mesmo modo que o CFM, o CFO também rechaça a mercantilização da profissão e traz disciplina ética contrária a ver o paciente como "fatia de mercado". O ser humano é muito mais do que isso. No entanto, recentemente, o CFO, por meio da Resolução 196/2019, adotou posicionamento mais moderado a respeito da divulgação de fotos e resultados de tratamentos odontológicos nas redes sociais por profissionais da odontologia. Com efeito, a norma de 2019 considera o destaque que as mídias sociais têm conquistado como canais de divulgação dos temas mais diversos, dentre os quais se incluem temas e trabalhos odontológicos. Diante disso, considera imperiosa a "necessidade de se regulamentar os critérios de uso de expressões, imagens e outras formas que impliquem na divulgação da odontologia, dos cirurgiões-dentistas e dos tratamentos odontológicos". Observa-se, portanto, que diante da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de evitar a utilização das redes sociais para divulgar imagens de diagnósticos e resultados, o CFO preferiu atender aos apelos da classe e disciplinar a matéria. Apesar das críticas, pertinentes, à época, no sentido de que a Resolução 196/2019 seria incompatível com o Código de Ética Odontológica, que só permite a publicação de imagens de "antes e depois" para fins acadêmicos, não se pretende analisar esta abordagem no presente artigo. Pretende-se, aqui, analisar especificamente a tutela de direitos da personalidade na norma em comento. A esse respeito, mister ressaltar que a redação da Res. 196/2019 do CFO, ainda na parte dos "considerandos", reconhece que o direito à imagem é tutelado no ordenamento jurídico brasileiro com o status de direito fundamental pela Constituição Federal, e também pelo art. 20 do Código Civil, que disciplina a necessidade de autorização para divulgação da imagem de terceiros. Percebe-se, pois, que apesar do risco de mercantilização da profissão, o CFO permite a divulgação de autorretratos e de imagens de "antes e depois", mas desde que haja prévia e expressa autorização do paciente no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme dispõe os arts. 1º e 2º: Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. [...] Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. (Grifos nossos) Cumpre ressaltar que, conforme disciplina o artigo 3º da mesma resolução, a exceção de publicações científicas com a devida autorização, é vedada a publicação de fotos e vídeos do transcurso ou realização dos procedimentos odontológicos.  Ocorre que, apesar da Resolução do CFO ser muito clara sobre a necessidade de autorização prévia e expressa do paciente no TCLE, aparentemente muitos profissionais estão desconsiderando a segunda parte dos dispositivos supracitados (arts. 1º e 2º), além de desconsiderar completamente o artigo 3º da Resolução, posto que não são raras as ocasiões em que se observa divulgação de fotos e vídeos produzidos durante a realização de procedimentos. 4 A proteção do direito à imagem no ordenamento jurídico brasileiro É compreensível que o profissional se sinta envaidecido ou orgulhoso ao final de um trabalho bem sucedido, mister quando se traz satisfação pessoal ou maior e melhor qualidade de vida ao paciente, quando o procedimento, para além de resultados estéticos, tinha por objetivo corrigir distúrbios funcionais, como dificuldade de mastigação ou alterações na fala corrigidos após tratamentos ortodônticos e cirurgias ortognáticas. Todavia, por mais que o profissional se sinta "autor" daquele corpo ou, no caso dos cirurgiões dentistas, daquela face, não é de uma pintura ou escultura que se está a falar. O médico ou dentista não é autor de uma obra de arte sobre a qual detém os direitos autorais e, consequentemente, possibilidade de divulgar os resultados conforme sua vontade. Trata-se, o paciente, de uma pessoa, de um ser humano com valores ontológicos e cuja existência, em sua completude, é digna de respeito. Os direitos da personalidade que estão postos em tela, portanto, são outros, dizem respeito aos direitos de imagem daquele(a) que está se submetendo ao tratamento médico ou odontológico. Na lição do professor Paulo Lôbo, o direito à imagem se trata da reprodução da figura humana no todo ou em parte, cuja exposição não autorizada é repelida3. De fato, a Constituição Federal de 1988 tutela o direito à imagem na qualidade de direito fundamental, no art. 5º, X, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] (Grifos Nossos) Cumpre salientar, ainda, que o Código Civil atual cuidou dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21, tratando especificamente do direito à imagem no art. 20, onde resta claro que a divulgação ou reprodução da imagem de terceiros só é permitida se autorizada. Fala-se aqui da imagem externa da pessoa (retrato ou efígie), uma vez que a imagem atributo é tutelada pela garantia constitucional de proteção à honra. A partir da análise dos dispositivos da CF/88 e do Código Civil de 2002, compreende-se que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a divulgação não autorizada de fotos do paciente é passível de indenização por dano moral. Concorda-se com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald quando eles afirmam que decorre o dano moral da "simples e objetiva violação a direito da personalidade"4. Com efeito, a Constituição brasileira de 1988 tratou de ambos os institutos em conjunto no art. 5º, inciso X. Deve-se concluir, com Paulo Lôbo, que a "interação não é ocasional, mas necessária" (LÔBO, 2001, pág. 79). Observa-se que os "direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, possuem a mesma natureza do dano moral, também não patrimonial"5. Corroborando com este entendimento, a súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça disciplina que: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais". 5 Conclusões Em suma, eventuais permissões de divulgação de imagens de pacientes por normas éticas de conselhos profissionais só podem acontecer em consonância com o que disciplina a lei (Código Civil) e a Constituição Federal. Eventual permissão de divulgação de imagens de diagnóstico e resultado pelo CFM, notadamente fotos de "antes e depois", devem se adequar à proteção legal e constitucional, respeitando o direito de escolha do paciente, que deve autorizar expressamente em TCLE. A resolução 196/19 do CFO está adequada ao que diz o texto Constitucional e o CC/2002, uma vez que a divulgação de "antes e depois" só é permitida mediante autorização prévia do paciente em TCLE. Os profissionais, portanto, devem se adequar à resolução caso queiram utilizar fotos de pacientes para divulgar seus métodos e técnicas nas redes sociais, sendo a divulgação não autorizada passível de indenização por dano moral decorrente de violação de direito à imagem. _________________ *Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa é doutora e mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, com realização de estágio doutoral no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal da Paraíba. Associada do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Presidente do Instituto Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil Constitucional (IDCC). Advogada. Conselheira Estadual da OAB-PB. Secretária-Geral da Rede de Advogadas em Sororidade da OAB-PB. _________________ 1 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. 2 O perigo existe, sobretudo, em relação ao fato de que produto ou serviço prestado é realizado em um ser humano. O resultado é incerto, posto que o corpo humano não é uma ciência exata e nem sempre os resultados de uma pessoa se replicarão ipsis literis em outra. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. 4 Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241 5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80. _________________ Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80.
Na sessão do dia 9 de agosto de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal e Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial (REsp.) 2.009.210/RS, sedimentou o entendimento pelo qual Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica aos casos de responsabilidade pelo fato decorrentes de impactos ambientais das etapas do processo produtivo anteriores à colocação do produto no mercado. Tais situações, portanto, para além de seus óbvios efeitos no campo do direito ambiental, também repercutem no âmbito consumerista, caracterizando hipóteses de responsabilidade pelo fato do produto (CDC, art. 12). No julgamento daquele recurso, acompanharam unanimemente o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Na origem, a indenizatória teve como causa de pedir remota a produção de ruído intenso, emissão de fuligem, gases poluentes, materiais particulados, odores fétidos e vazamento de amônia decorrentes da atividade econômica desempenhada por sociedade empresária voltada ao beneficiamento, industrialização e comercialização de carnes de aves, que por diversas vezes já houvera sido alvo de processos administrativos e inquéritos civis por violação de normas de direito ambiental. Tal situação, que perdurara por vários anos, alegadamente acarretou à autora daquela demanda judicial, dentre outros sintomas, hipoxemia, fortes cefaleias, fadiga, ardência nos olhos, náusea, diarreia, vômito e mal-estar. Importante observar que estes fatos se reportam às etapas do processo de produção de proteína animal anteriores à introdução do produto no mercado, ou seja, àquelas fases que antecedem a aquisição ou utilização do bem propriamente ditas pelo destinatário final. No caso concreto, a vítima sequer chegou a consumir os produtos fabricados pelo frigorífico, mas residia próximo ao seu parque industrial, de modo que os danos lhe advieram pela exposição duradoura aos impactos ambientais da atividade econômica do fornecedor. Ao poluir o ambiente, o frigorífico ofendeu os direitos da personalidade e o direito à saúde da demandante, que foi equiparada a consumidor ao ser considerada vítima de acidente de consumo (CDC, art. 17), fazendo jus a indenização pelo fato do produto (CDC, arts. 12 e 17). Em suas razões de recurso especial, a autora do ilícito ambiental alegou, em síntese: a) não incidência do CDC às ações de indenização por danos morais fundadas em dano ambiental; b) não caracterização de acidente de consumo; c) não enquadramento da demandante/recorrida como consumidora por equiparação (bystander), e; d) impossibilidade de inversão do ônus da prova. Como se percebe, o debate girou em torno da natureza consumerista da relação jurídica entre a empresa poluidora e o particular vitimado por danos ambientais anteriores à inserção do produto no mercado de consumo. Num primeiro momento, considerando que o conceito jurídico de consumidor constante do art. 2º do CDC pressupõe a aquisição ou utilização de produto pelo destinatário final, poder-se-ia imaginar que prejuízos decorrentes de poluição industrial ficassem adstritos à legislação ambiental, não podendo ser açambarcados pela legislação consumerista. Todavia, como já tivemos oportunidade de defender alhures1, é plenamente possível equiparar a consumidor toda e qualquer pessoa que tenha sofrido danos oriundos dos impactos ambientais da produção, ainda que cronologicamente anteriores à disponibilização do produto ao público consumidor em geral, estendendo-lhe o regime jurídico protetivo do CDC. Isso ocorre, pois, a figura do bystander, descrita no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, rompe a lógica meramente contratual da relação de consumo, impondo-lhe uma perspectiva ampliada, de maneira a contemplar também todos os atingidos pelos efeitos ambientais prévios da produção, inclusive as futuras gerações. No Tribunal da Cidadania, o tema já vem sendo maturado há quase uma década. Em agosto de 2014, no julgamento do REsp 1.354.348/RS2, a Quarta Turma daquela corte, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, aplicou o prazo prescricional quinquenal do art. 27 do CDC à pretensão indenizatória decorrente da contaminação do solo e das águas subterrâneas na localidade onde o bystander residia. Ratificando o enquadramento da vítima do dano ambiental como consumidor por equiparação, a Segunda Seção do STJ, em abril de 2016, analisando o Conflito de Competência 143.204/RJ3, entendeu ser competente o foro do domicílio das vítimas do evento (CDC, art. 17 c/c 101, I) para conhecer e julgar indenizatória proposta por pescadores artesanais que tiveram suas atividades pesqueiras prejudicadas por derramamento de óleo em área marinha. Também aqui se buscava reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental, tendo sido os autores considerados vítimas de acidente de consumo. Mais recentemente, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.833.216/RO4, a Quarta Turma daquele colegiado expressamente afirmou que "a jurisprudência desta Corte Superior admite, nos termos do art. 17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais". Aliados a entendimentos sobre responsabilidade pelo fato do produto já consolidados no âmbito do STJ, os precedentes acima referidos nos permitem constatar que sua jurisprudência evoluiu no sentido de: a)       Equiparar a consumidor aquele que, mesmo não participando diretamente da relação de consumo, "venha a sofrer consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica"5; b)      Admitir a equiparação da vítima de danos ambientais a consumidor, por força do art. 17 do CDC6; c)       Reconhecer que o acidente de consumo caracterizador da responsabilidade pelo fato do produto pode ocorrer durante o processo de produção, antes da aquisição ou utilização do produto pelo destinatário final, ainda nas etapas de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, etc. O reconhecimento da responsabilidade do fornecedor pelo fato ambiental do produto, com a aplicação do CDC aos danos ecológicos oriundos das etapas industriais precedentes à colocação do produto no mercado, reafirma a interface indissociável entre os microssistemas protetivos do meio-ambiente e do consumidor, de modo a convergir a proteção consumerista à tutela ambiental, paradigma do direito do consumo sustentável. _____________ 1 RIBEIRO, Alfredo Rangel. Direito do Consumo Sustentável. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Pág. 262/263. 2 STJ, REsp n. 1.354.348/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe de 16/9/2014. 3 STJ, CC n. 143.204/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 13/4/2016, DJe de 18/4/2016. 4 AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021. 5 STJ, AgRg no REsp n. 1.000.329/SC, Quarta Turma, julgado em 10/8/2010, DJe de 19/8/2010; REsp n. 1.574.784/RJ, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 25/6/2018; REsp n. 1.787.318/RJ, Terceira Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 18/6/2020; REsp n. 1.327.778/SP, Quarta Turma, julgado em 2/8/2016, DJe de 23/8/2016. 6 STJ, CC 143.204/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 18/04/2016; REsp 1354348/RS, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 16/09/2014; AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021; AgInt nos EDcl no CC 132.505/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/11/2016, DJe 28/11/2016. _____________ *Alfredo Rangel Ribeiro é Advogado, sócio fundador do escritório de advocacia Santiago & Rangel Advogados. Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da UFPB. Professor titular do Departamento de Direito do Centro Universitário de João Pessoa. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa.  
Caio Júlio César é reconhecido, ainda hoje, como um general brilhante. Embora tenha promovido uma guerra ilegal e cometido inúmeras atrocidades (reconhecidas como tais até em sua época), muito do que se acredita saber sobre suas batalhas na Gália foram forjadas em seus famosos comentários, produzidos e divulgados ao longo do combate, com o propósito de informar e entreter a população romana. César tratou de reduzir os seus próprios riscos antes de atravessar o Rubicão. Já no final do Século XIX, nos Estados Unidos da América, Nikola Tesla e Thomas Edison disputavam o estabelecimento da forma de distribuição de energia elétrica que passaria a ser o padrão nacional. A arena daquele combate foi, justamente, a publicitária: Edison teria recorrido ao suposto risco do sistema concorrente propondo que o sacrifício da elefanta Topsy se desse com a utilização da tecnologia rival. A ampla divulgação do uso letal da invenção de Tesla ajudou a garantir o monopólio de patentes de Edison. Esses exemplos só reforçam aquilo que já sabemos: informação e publicidade entrelaçam-se desde sempre e com propósitos variados: seja para construir uma reputação, seja para fomentar o consumo. No Brasil as técnicas publicitárias sempre estiveram fortemente associadas ao 'comércio' razão pela qual a Constituição da República, ao estabelecer a competência legislativa sobre o tema, se refere à "propaganda comercial" (art. 22, XXIX) e é o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que lhe dá tratamento geral. Não é, contudo, apenas a atividade empresarial1 que se vale de estratégias de comunicação com a finalidade de viabilizar seus objetivos e desempenho. Também outras atividades econômicas o fazem, ainda que não 'mercantis'. Esta classificação, aliás, é, como se sabe, um resquício da antiga distinção entre atividades de conteúdo civil (profissões liberais e sociedades simples, por exemplo) daquelas de conteúdo outrora comercial (sociedades e atividades empresariais). Explicava-se, então, que atividades econômicas de cunho intelectual (como aquelas associadas às artes e às ciências) seriam distintas daquelas que buscariam o lucro por meio da organização dos fatores de produção (capital, mão de obra e insumos) e com isso, também seria o tratamento dispensado a cada atividade: dos tipos de registros até a estratégia de comunicação disponível. Entendia-se, então, que a publicidade não se destinava aos profissionais liberais, que construiriam sua clientela em conjunto com sua reputação. Contudo, como em outros pontos do Direito Privado brasileiro, a nitidez dos contornos desta distinção fica cada vez menos definida. Assim, por exemplo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça que exige que o produtor rural comprove o exercício de atividade empresarial para pretender a recuperação judicial2, também aceitou o processamento de pedido de associação civil educacional3. Contribuem em especial para essa 'sensação' de fluidez, talvez, a incidência da cláusula geral de boa-fé objetiva (impondo os deveres de transparência, informação e lealdade) e a ampliação da proteção do consumidor àqueles legalmente equiparados e aos vulneráveis expostos às práticas de mercado. Aliado a isso, o amplo acesso à Internet modificou não só a forma de expressão individual e a comunicação, como ampliou o espaço e o público para a autopromoção individual. O culto da celebridade e o apego a influenciadores gerou um novo padrão de mercantilização da comunicação em que todos podem estar sujeito ao merchandising e tudo pode ser objeto de publicidade. É neste espaço em transformação, então, que se encontram os limites da publicidade para algumas atividades econômicas não empresariais, tais como a Advocacia e os serviços de profissionais liberais da Saúde. Para destacar este ponto e entendermos o denominador comum para a publicidade profissional é que escolhemos analisar a utilização do paciente/cliente como porta voz da publicidade/marketing e como a Medicina, a Odontologia e a Advocacia lidam com esta forma de expressão publicitária. Como sabemos, proliferam nas redes sociais exemplos de publicações e fotos de celebridades (ou não) pacientes/clientes (ou não) indicando/visitando profissionais em seus consultórios/escritórios. No caso da Medicina e da Odontologia, seguem-se, ainda, as publicações explicativas de exames, procedimentos e/ou resultados com a imagem ou depoimento do paciente/cliente. O engajamento e a promoção destes posts são forma evidente de comunicação publicitária. Como não poderia deixar de ser, a regulamentação profissional dos profissionais da Saúde acaba se preocupando profundamente com a questão da imagem do paciente ao ponto de o Código de Ética médica (art. 75)4 e a regulamentação da publicidade médica (art. 3º, "g")5 proibirem totalmente sua exposição, mesmo como seu consentimento, como forma de divulgação de técnica, método e/ou resultado do procedimento. A regulamentação da publicidade odontológica, por sua vez, adota posição intermediária6, permitindo a foto de selfies com pacientes (art. 1º)7 e imagens do diagnóstico e conclusão do tratamento ("antes e depois" - art. 2º)8, desde que haja - em ambos os casos - o seu consentimento expresso, proibindo-se, contudo, imagens de materiais biológicos (§1º) e da realização do procedimento em si (art. 3º)9. Assim, enquanto os médicos não poderiam se valer de posts com pacientes (em situações gerais de visita, selfies, exames, comparações, procedimentos, etc.) como forma de publicidade (direta ou indireta), os odontólogos poderiam, desde que tomassem o cuidado de obter a autorização prévia e não divulgassem o procedimento em si. Na outra ponta do tratamento regulamentar, encontra-se marketing jurídico. Simplesmente não há detalhamento do tratamento da imagem do cliente para fins de publicidade para além de uma menção exemplificativa10. Selfies, depoimentos gravados e visitas ao escritório estariam liberadas? Pode-se dizer, então, que as diferentes regulamentações guardam um denominador comum? Acreditamos que sim. Isso porque todas as três profissões analisadas pautam-se pelo sigilo profissional11 e pela não 'mercantilização' de sua atividade12. Desta forma, o dever de sigilo deixa de estar apenas na esfera ético-profissional para também instruir a relação contratual mantida com o paciente/cliente. Como se sabe, o descumprimento deste dever é considerado violação positiva do contrato e, como tal, faz incidir as consequências da responsabilidade obrigacional (dentre elas, as indenizatórias). Além disso, deve-se sempre destacar que o serviço quando colocado no mercado (por qualquer agente, empresarial ou não) deve obedecer às normas regulamentares competentes, dentre elas, aquelas relacionadas ao exercício profissional. Assim, o prestador de serviço que utiliza a imagem de seu cliente/paciente para fins publicitários pode estar colocando no mercado um serviço viciado (Art. 20, §2º13 do CDC) e, portanto, realizando uma prática comercial abusiva (art. 39, VIII14 do CDC), dando ensejo, também, às consequências administrativas cabíveis (art. 56 do CDC) para além das indenizatórias. Deve-se, ainda, lembrar que estão equiparados a consumidores todos aqueles sujeitos a este tipo de prática (art. 29 do CDC). Além disso, a imagem - por si só - é um dado do paciente/cliente e, nos termos da lei 13.709/18, se o seu tratamento se der sem sua autorização e/ou causar dano, haverá responsabilização civil solidária do controlador e do operador de dados (art. 42 e seguintes), além, é claro, das consequências administrativas correspondentes. Por fim, lembre-se que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça considera que a utilização desta imagem pode, eventualmente, motivar uma pretensão indenizatória que prescinda da demonstração de dano15. Assim, resta claro que os prestadores de serviços profissionais devem avaliar a exposição de seus clientes/pacientes com finalidade publicitária como um potencial risco. A avaliação desta relação de custo x benefício que pode ser encarada, hoje, como o denominador comum buscado. ______________  Frederico Glitz é advogado, mestre e Doutor em Direito Privado e com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias. ______________  1 Entendida como "atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços" (art. 966 do Código Civil). 2 Tema Repetitivo 1145 - "Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro." 3 "(...) No âmbito de tutela provisória e, portanto, ainda em juízo precário, reconhece-se que há plausibilidade do direito alegado: legitimidade ativa para apresentar pedido de recuperação judicial das associações civis sem fins lucrativos que tenham finalidade e exerçam atividade econômica." (STJ, AgInt no TP nº 3654 / RS, julgado em 08/04/2022). 4 "Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente." (Resolução CFM nº 1.931/2009). 5 "Art. 3º É vedado ao médico: (...) g) Expor a figura de seu paciente como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, ainda que com autorização expressa do mesmo, ressalvado o disposto no art. 10 desta resolução [trabalhos e eventos científicos]; (Resolução CFM nº 1.974/2011). 6 "Art. 44. Constitui infração ética: (...) VI - divulgar nome, endereço ou qualquer outro elemento que identifique o paciente, a não ser com seu consentimento livre e esclarecido, ou de seu responsável legal, desde que não sejam para fins de autopromoção ou benefício do profissional, ou da entidade prestadora de serviços odontológicos, observadas as demais previsões deste Código;" (Resolução CFO nº 118/2012). 7 "Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 8 "Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 9 "Art. 3º. Fica expressamente proibida a divulgação de vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo ao transcurso e/ou à realização dos procedimentos, exceto em publicações científicas." (Resolução CFO nº 196/2019) 10 Quando aborda a criação de conteúdo, o Anexo do Provimento OAB 205/2021 menciona que ela "deve ser orientada pelo caráter técnico informativo, sem divulgação de (...) clientes (...)." 11 Arts 73 e seguintes da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 5º, II da Resolução CFO nº 118/2012 e Art. 35 e seguintes da Resolução OAB nº 02/2015. 12 Art. 58 da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 4º, parte final, da Resolução CFO nº 118/2012; Art. 4º do Provimento OAB nº 205/2021 13 "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...) § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." (grifo nosso). 14 "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);" (grifo nosso). 15 Por exemplo, Súmula STJ nº 403: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais."
Introdução  Um dos temas relevantes e polêmicos no âmbito da responsabilidade civil guarda relação com o arbitramento judicial dos danos imateriais. Como quantificar, por exemplo, a lesão, a ofensa, ao corpo? à honra, ao nome? Daniel Silva Fampa e João Vitor Penna formulam a seguinte pergunta: "Quanto vale uma indenização por dano extrapatrimonial?1 As indagações acima trazidas, em que pese tenha a parte quantificado na petição inicial, a título de pedido, ficarão a cargo do juiz no sentido da resposta em sede de arbitramento da quantia a ser devida. Discussão, então, que pode ocorrer, é de as partes não se contentarem com o valor: uma, dizendo ser irrisório; a outra, muito elevado, podendo, inclusive, o debate ir para a seara de um julgamento realizado fora dos limites do pedido. Portanto, nossa proposta, nestas breves linhas, é a de analisar o processo civil válido à luz do arbitramento judicial contextualizado ao pedido feito pela parte.  1. Arbitramento do dano imaterial  Em relação ao arbitramento, percebemos que a doutrina destaca a atuação do magistrado no caso concreto, pois:  O juiz, investindo-se na condição de árbitro, deverá fixar a quantia que considera razoável para compensar o dano sofrido. Por isso pode o magistrado valer-se de quaisquer parâmetros sugeridos pelas partes, ou mesmo adotados de acordo com sua consciência e noção de equidade, esta, na visão aristotélica de "justiça no caso concreto"2.  1.1 O CPC e a exigência do valor pretendido pela parte  O Código de Processo Civil é muito claro quanto à exigência de que a parte indique o valor da causa, também em relação ao dano imaterial: "Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido". Pedido, a seu turno, significa o "[...] que o autor veio buscar em juízo com a sua propositura".3 Mesmo que parte traga ou até sugira determinada quantia, o certo é que a reparação do dano imaterial deverá ocorrer através da função compensatória, como leciona Bruno Miragem, justamente pela natureza da ofensa, que torna impossível o retorno ao estado anterior ao da lesão.4 2. O arbitramento à luz do art. 492, do CPC  A norma do caput do art. 492, do Código de Processo Civil, apresenta a seguinte redação: "Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado". A doutrina, ensinando sobre o dispositivo processual civil acima transcrito, aduz que: "A regra do processo civil é que a sentença seja conforme ao pedido do demandante".5 De sorte que, caso não observada tal regra pelo juiz, a sentença se caracterizará como infra petita, ou seja, aquela que deixa de analisar um pedido ou um dos pedidos cumulados. Pode ocorrer de ser extra petita (justamente a discussão mais abaixo trazida ao STJ), com julgamento fora do pedido feito pelo autor da ação. Pode, ainda, revelar-se a sentença ultra petita, quando o órgão jurisdicional vai além dos limites do pedido. Independentemente desses casos, haverá desconformidade com o pedido, podendo a sentença vir a ser invalidada.6 Neste sentido ilustramos com a posição do Superior Tribunal de Justiça: Ao analisar a peça exordial, constata-se que houve requerimento pela condenação a título de dano moral em valor a "ser fixado por V. Exa. em não menos que 40 salários mínimos": [...] Tem-se, portanto, que não foi estabelecido valor indenizatório máximo referente aos danos morais, tendo a autora feito mera estimativa e deixado a quantificação ao arbítrio judicial.7 3. Conclusão  Em que pese às dificuldades de arbitramento do valor a título de danos imateriais, haja vista as inúmeras variáveis ou critérios a ser adotado pelo julgador, uma conclusão nos parece certa: em havendo a prova da ofensa a direitos da personalidade, o magistrado, ao arbitrar e, antes, apresentar a fundamentação clara no sentido de como julgou procedente o pedido e chegou à quantia, não terá violado a norma do art. 492, do CPC, independentemente do valor indicado pelo autor, se a título de sugestão trazida na inicial. Por outro lado, se o demandante define um valor (e não o sugere), parece-nos certo afirmar que o arbitramento não pode superar o valor do pedido, sob pena, aí sim de ocorrer o julgamento justamente fora dos limites do pedido. Por outro lado, isso não significa dizer que o juiz, convencido da prova da ofensa a direitos da personalidade fique refém do valor atribuído à causa, mas, sim, arbitre quantia a observar o limite máximo, mas não mínimo, justamente pela compensação que a quantia oferece dada a natureza do dano. Portanto, julgado procedente o pedido, mas em relação ao quantum, o ordenamento não o vincula de forma automática ao pedido. Tanto sentença como acórdão, ao chegarem ao arbitramento que, no caso concreto, observe as lições da doutrina em relação às funções da responsabilidade civil, com toda a certeza, terão mirado a lisura do processo civil no ponto:   (1)    Função reparatória: a clássica função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado, como forma de requilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil ao ofensor como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: possuir o objetivo de inibir atividades potencialmente danosas.8  De sorte que a validade do processo não poderá, neste aspecto, ser questionada ao ponto de nulidade da sentença ou do acórdão, como muito bem elucidado pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve o julgador fazer a diferença entre um pedido a título de valor sugerido ou meramente estimativo, daquele pedido com valor certo, previamente definido pela parte.  ____________ *Felipe Cunha de Almeida é Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor, advogado, parecerista. ____________ 1 FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 426. 3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 440. 4 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 211. 5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 6 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 7 Ementa: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. VIOLAÇÃO AO ART. 492 DO CPC/2015. PEDIDO EXORDIAL MERAMENTE ESTIMATIVO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O magistrado, ao arbitrar a indenização por danos morais, não fica vinculado ao valor meramente estimativo indicado na petição inicial, podendo fixá-lo ao seu prudente arbítrio sem que se configure, em princípio, julgamento extra petita. Precedentes. 2. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no REsp n. 1.837.473/PR Rel. Min: Raul Araújo. Julgado em: 26/11/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201902709828&dt_publicacao=19/12/2019. Acesso em: 26 ago. 2022). 8 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 40. ____________ BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.  BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 de março de 2015. Disponível em: .  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.  FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022.  FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015.  GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.  MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.  MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 
No começo de 2022, foi lançado o documentário "Pai Nosso?" no Netflix1, que trata da história do médico Donald Cline. Cline foi um especialista em reprodução humana assistida muito famoso nos anos de 1970. Ele realizou diversos procedimentos de RHA, sempre alegando que estava utilizando material genético de um doador ou do próprio casal, como de praxe nesta modalidade de prestação de serviços. Entretanto, anos depois, por meio de teste de ancestralidade e utilização de um site, diversas pessoas começaram a encontrar meio-irmãos desconhecidos. Ao longo do documentário, descobre-se que espantosamente o médico utilizava o próprio material genético na inseminação das mulheres, sem qualquer consentimento ou informação prévia, tendo gerado uma "legião" de "meio-irmãos", muitos deles convivendo, estabelecendo laços de amizade ou vínculos de trabalho sem ter ideia da origem genética comum.  O documentário relata de forma sensível as reações emocionais dos envolvidos, bem como a "saga" em busca de sua punição. Devido às leis norte-americanas da época, o ato cometido pelo médico não se caracterizou como crime. Ele respondeu por obstrução de justiça, tendo permanecido um ano em liberdade condicional, além do pagamento da multa. Um ano após a multa, o médico entregou sua licença para o Conselho Médico e foi decidido que ele jamais poderia se inscrever novamente nem poderia ter sua licença restituída. Em 2019, em Indiana, foi aprovada a lei que tornava crime a "fraude na fertilização". Assim, caso outro médico viesse a realizar a mesma conduta que Cline, responderia por ato ilícito no âmbito penal. Apesar da grande discussão criminal da conduta do médico, outra esfera do direito também foi violada - o campo do Direito Civil - mais especificamente o direito contratual e a responsabilidade civil. Pensando no ordenamento jurídico brasileiro, a reprodução humana assistida é exteriorizada na forma de um contrato, que consiste em um negócio biojurídico2, porquanto reveste-se dos pressupostos de um acordo de vontades juridicamente tutelado. Tal documento contém os termos estipulados pelas partes, segundo as diretrizes da recentíssima resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina. Dessa forma, há uma responsabilidade consubstanciada na imprescindibilidade de cumprimento integral das cláusulas ali pactuadas, caso contrário é possível a discussão tal violação. Segundo Flaviana Rampazzo Soares3, a responsabilidade negocial exige um vínculo obrigacional prévio entre as partes e a ocorrência de um dano, devido ao descumprimento, total ou parcial, do negócio. Tal situação se amolda quando há um contrato de prestação de serviços relacionados  à reprodução humana assistida entre a clínica e o paciente, e este acordo não é cumprido. No Brasil, um caso de grande repercussão  - amplamente divulgado pela mídia, à época - envolvendo um médico especialista em reprodução humana assistida, foi o de Roger Abdelmassih. Ele foi acusado de ter cometido diversos crimes de estupro e de manipulação genética irregular contra 74 pacientes, entre 1990 a 2008. No âmbito da responsabilidade civil, o mencionado profissional da área da saúde foi condenado a pagar indenização no montante de R$500 mil reais a título de danos morais a um casal de irmãos gêmeos porque ele trocou o material genético durante o procedimento. Assim, foi concluído que o médico utilizou o material genético de um desconhecido sem o consentimento nem a autorização dos pais4. O termo de consentimento consiste em um documento importantíssimo para garantir que a informação foi efetivamente prestada ao paciente e que este aceitou se submeter ao procedimento ou ao tratamento. Em 2018, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão em que condenou um hospital ao pagamento de R$200 mil a um paciente e seus pais, pela falta de informação sobre um procedimento cirúrgico. No caso por último mencionado, o paciente tinha sofrido um traumatismo crânio-encefálico após um acidente e tinha tremores no braço direito. O médico sugeriu um procedimento cirúrgico para que o paciente retornasse com os seus movimentos. Entretanto, após a cirurgia, o paciente teve uma piora do seu quadro clínico, não conseguindo mais andar e tendo se tornado dependente de cuidados específicos. Segundo  a perícia, embora não houvesse ocorrido erro médico,  o  resultado da cirurgia era um risco do paciente que não foi informado . No caso em tela, não havia Termo de Consentimento. Dessa forma, fica evidente a importância da presença desse documento. Segundo a Resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina, o termo de consentimento deve seguir a seguinte formalidade e conteúdo: 4.O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas  de  reprodução  assistida.  Os  aspectos  médicos  envolvendo  a  totalidade  das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como  os  resultados  obtidos  naquela  unidade  de  tratamento  com  a  técnica  proposta.  As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo  com  a  concordância,  por  escrito,  obtida  a  partir  de  discussão  entre  as  partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida. Flaviana Rampazzo Soares, com muita propriedade, aponta no mesmo sentido: O consentimento esclarecido tem, em seu núcleo, uma permissão que também é decisão proveniente de processo informativo e deliberativo delineado, percorrido e experimentado pelo paciente e, em regra, acompanhado pelo médico, em maior ou menor extensão, de acordo com as circunstâncias concretas.5 Retornando à análise sobre a  troca de material genético, nos Estados Unidos, foi noticiado em 2019, que uma clínica foi processada por esse motivo. No caso em tela,  um casal asiático teve dois filhos sem nenhum traço dos pais. Por meio de exame, foi comprovado que o material genético utilizado, tanto masculino como feminino, não era do casal, mas sim de outros pacientes . Apesar da manifestação de vontade do casal no sentido de permanecer com as crianças, tiveram que entregá-las aos pais biológicos. Na ação movida pelo casal contra a clínica, a alegação central foi imperícia médica, negligência, agressão, inflição intencional de sofrimento emocional e quebra de contrato6. Ademais, é importante destacar que, no caso de procedimento de reprodução humana assistida, deve-se ressaltar dois momentos: a) Antes da realização do procedimento, a clínica é responsável por manusear e armazenar todo o material, devendo mantê-lo em condições adequadas; b ) No momento da realização do procedimento, o médico tem a responsabilidade de realizar o procedimento na forma acordada7, lembrando que não é possível acordar de forma contrária à lei nem à Resolução do Conselho Federal de Medicina. Em caso de descumprimento de qualquer dessas etapas, é possível requerer a responsabilização civil dos envolvidos, como aconteceu no caso do médico Roger Abdelmassih. O procedimento de reprodução humana assistida no Brasil tem sido cada vez mais popular, culminando até na  "técnica" (não "assistida"- diga-se de passagem) de inseminação caseira, que não é recomendada pelas autoridades sanitárias, por razões evidentes e preocupantes.  Já em relação aos procedimentos realizados em clínica, o SISEmbrio emitiu seu 13º Relatório do Sistema Nacional de produção de embriões, que constatou que 100380 embriões  foram criopreservados em 2019, correspondendo a um aumento significativo do número de criopreservações. Em decorrência desse grande número de embriões criopreservados (excedentes), é muito importante que haja a devida e efetiva fiscalização para que situações de troca ou substituição sem autorização não se concretizem. Mesmo havendo a possibilidade de resolver os casos na esfera da responsabilidade civil, além da esfera penal, a valoração pecuniária se torna a única sanção possível, apesar de incapaz de sanar os prejuízos  no âmbito existencial dos envolvidos. Assim, impedir ou dificultar  a ocorrência de tais casos, parece ser a melhor alternativa. De fato, a relação de confiança8 que se estabelece nos bionegócios reprodutivos reveste-se de caráter peculiar, porquanto embora se trate de uma tentativa (com o auxílio das novas tecnologias) de geração de filhos, por meio de serviço altamente especializado, o "pano de fundo" existente transcende questões patrimoniais. Ora, lida-se com sonhos compartilhados pelos contratantes e terceiros voltados à concretização de projeto parental e - para muitos - ao atingimento da felicidade e plenitude existencial. Neste sentido, Carla Froener e Marcos Catalan: É inconteste que o avanço da biotecnologia despertou o seu interesse, em especial, por conta dos sonhos que involucra, sonhos que vão da aplicação de fármacos tonificantes ou de realização de cirurgias plásticas rejuvenescedoras at e a gestação de filhos que talvez - e apenas talvez - tragam alguma esperança a vidas que parecem despidas de sentido.9 Entretanto, para além dos motivos ensejadores da avença entre a clínica e o paciente, inconteste que o material genético criopreservado, bem como os embriões efetivamente gerados, merecem cuidado, zelo e comprometimento em relação ao seu armazenamento e utilização correta, tempestiva e responsável ética e juridicamente, a fim de que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em pesadelo inábil a ser "apagado", ainda que com o auxílio da tutela ético-jurídica. Referências FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reproducao humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015. SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006. SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021. SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021. __________ 1 Netflix. Acesso em 18.10.22. 2 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. 3 SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021.  4 Disponível aqui. Acesso em 15.10.22. 5 RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 246 6 Clínica dos EUA é processada por trocar embriões fertilizados in vitro. Acesso em 10.10.22 7 PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015.  8 Neste sentido, ao  mencionar os contratos de telemedicina, Fernanda Schaefer: "Destarte, o princípio da confiança e um dever necessário  ser observado pelas partes contratantes, em especial por médicos e pesquisadores, face a grande vulnerabilidade técnica, cultural, física e emocional de seus pacientes ou pesquisados, pois e um dos parâmetros para a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana em todas as suas vertentes, inclusive bioética."  SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006.p. 144. 9 FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020, p.84.
terça-feira, 1 de novembro de 2022

Sigilo médico e violação positiva do contrato

No âmbito da coercibilidade juspositiva do dever de boa-fé objetiva nos contratos médicos, é essencial o instituto da responsabilidade civil, em especial, a aplicação da teoria da violação dos deveres anexos, derivados do mister de lealdade, em todas as fases contratuais, também denominada de violação positiva do contrato. Trata-se da teoria que originalmente surgiu no Direito alemão, tendo como principal expoente Karl Larenz, mas que chegou a ter desdobramentos de forma autônoma no Brasil e em Portugal. Pode ser atualmente apontada como mais um subsídio de grande valia para perseguir a observância do sigilo médico na prática clínico-hospitalar, baseando-se no dever de boa-fé objetiva, sob pena de responsabilidade civil fundamentada na violação desse princípio geral. A responsabilidade civil contratual difere da responsabilidade extracontratual delitual. Nesta, o objeto do instituto é a reparação de um dano ilegalmente causado por uma pessoa, fora de uma relação contratual, em um cenário no qual, na maioria dos casos, a vítima e o autor são desconhecidos entre si até a ocasião do ato danoso, ao passo que a responsabilidade contratual advém das obrigações decorrentes dessa espécie de negócio jurídico, quando se configura, em tese, um inadimplemento. Na evolução da responsabilidade contratual, merece destaque a teoria da violação dos deveres anexos ou da violação positiva do contrato, a qual defende que, mesmo ocorrendo o adimplemento de uma obrigação principal contratual, seja configure um inadimplemento, relativo ou absoluto, por terem sido transgredidos outros deveres pautados na lealdade. Na violação positiva do contrato, tal como preceitua Menezes Cordeiro1: A boa-fé é chamada a depor em dois níveis: no campo da determinação das prestações secundárias e da delimitação da própria prestação principal, ela age sobre as fontes, como instrumento de intepretação e de integração; no dos deveres acessórios, ela tem papel dominante na sua gênese [..]. Os deveres acessórios, reportados à boa-fé, traduzem, deste modo, uma síntese histórica, típica nos quadros da terceira sistemática e da evolução juscientífica subsequente, entre a consideração central do problema, ditada pelos estudos teoréticos da complexidade inter-obrigacional e o influxo periférico adveniente de problemas reais e concretos, veiculada pela prática da violação positiva do contrato, na parte relevante desta, para o efeito em causa. Os deveres resultantes do princípio da boa-fé são chamados de deveres secundários, anexos, instrumentais2, ou, ainda, de deveres acessórios de lealdade. Fazem com que as partes sejam obrigadas a, na pendência contratual, não se comportar de modo que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações. Da aplicação da boa-fé objetiva, surgem também deveres de atuação positiva, como o dever de sigilo em relação aos elementos obtidos por via de pendência contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte; impondo atuação com vista a preservar o objetivo e a economia contratuais.3 Pontes de Miranda4 explica que esses deveres são como deveres-meio, deveres de atitude ou conduta, que impõem a necessidade de haver diligência e compreensão recíproca, com o objetivo de que a prestação se cumpra, atinja o seu fim do melhor modo possível. Martins-Costa5 classifica os deveres obrigacionais decorrentes da boa-fé da seguinte forma: a) deveres anexos ou instrumentais - servem para otimizar o adimplemento satisfatório, fim da relação obrigacional, não dizem respeito ao que prestar, mas como a prestação ocorre; b) deveres de proteção ou laterais -  destinados a implementar uma ordem de proteção entre as partes, não se ocupam do prestar, mas do interesse de proteção; têm o fito de evitar a ocorrência de danos injustos para a contraparte da relação obrigacional. Sabendo que a pauta da boa-fé faz referência ao resgate da confiança manifestada e posta em causa, bem como a consideração da reciprocidade entre as partes,6 apesar de serem nomeados como deveres acessórios, é possível afirmar que "os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio conteúdo dos deveres principais".7 A obediência à boa-fé deixa de configurar como mero dever reflexo, secundário, incidental, como se tivesse menos relevância que a obediência a um outro dever tido como 'principal'. A relevância desse raciocínio não se circunscreve na área teórica, volta-se para que na prática da relação obrigacional, as partes contratantes vislumbrem o dever de comportamento probo com a relevância que o princípio geral em questão demanda. Apesar da importância da boa-fé, deve-se alertar que esse princípio não é a resposta de todos os problemas da responsabilidade civil,8 e nem se tem a pretensão de que ele seja suscitado como a dignidade da pessoa muitas vezes tem sido apontada, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, como se fosse uma salvação para todos os dilemas jurídicos. O que se defende é o aproveitamento das funções principiológicas da forma mais completa e ponderada possível, utilizando a capacidade integradora, construtiva e interpretativa da boa-fé objetiva. É verdade que o princípio geral em enfoque apresenta sim a subjetividade das suas raízes morais, como já se apontou, mas deve-se atentar que, ao ser concretizado no âmbito de aplicação das relações clínicas, os parâmetros da sua observância vão se mostrando cada vez mais explícitos, palpáveis e objetivos. Sob essa perspectiva, pode-se, com tranquilidade, asseverar que na relação clínica é possível que um médico utilize da melhor forma a técnica científica para a qual teve formação e domina, chegando a curar, diminuir os sintomas ou dar conforto paliativo ao paciente e, ainda assim, em relação à sua prestação obrigacional, seja configurado um inadimplemento, por violação positiva do contrato - em outros termos, por ter violado a boa-fé objetiva - na hipótese, por exemplo, de ter contrariado o segredo médico no curso do tratamento. Na adoção da perspectiva de prestação obrigacional ampliada, conforme a teoria social dos contratos e a teoria da violação dos deveres anexos, pode-se frisar, pois, que o dever do médico não se limita à prática da obrigação tradicionalmente tida como principal. Sendo assim, tão ou mais importante, mostra-se a persecução da honestidade e de seus valores correlatos na prática científica da medicina. O adimplemento do contrato médico somente estará completamente concluído quando em todas as fases contratuais for observada a obediência à boa-fé objetiva. Esclarece-se, pois, que ao lado da mora e da impossibilidade de cumprimento, a violação positiva do contrato corresponde a uma terceira espécie de descumprimento das obrigações, e abrange as hipóteses de mau cumprimento da prestação principal e da inobservância dos deveres acessórios, dentre estes, o dever de proteção, de informação e de lealdade.9 Como no âmbito da relação médico-paciente, a violação mais latente da proteção, do resguardo informacional e da lealdade se materializa no desrespeito ao sigilo médico; conclui-se que a boa-fé objetiva figura como mais um argumento de suma importância para se proteger juridicamente este que é um dos mais antigos preceitos da Ética Médica. Como contraponto, no rol de possíveis justificativas para o afastamento do sigilo médico, pode-se apontar a teoria do incumprimento eficiente para, em sede de análise econômica do Direito, verificar a plausibilidade da sua aplicação às questões que dizem respeito à proteção dos dados clínicos. O incumprimento eficiente, tal como explicita o Professor Fernando Araújo,10 resulta da junção de duas ideias: o contrato é mero instrumento de afetação de recursos econômicos, por meio da interdependência e das trocas. Para que se alcance a eficiência social, faz-se necessário que os ganhos de uns não impliquem em perdas dos demais, levando em conta a eficiência dos atos cujos benefícios ultrapassem, ainda que apenas marginalmente, a indenização e que evite o averbamento de perdas por qualquer das partes. O incumprimento é tido como eficiente nas hipóteses em que o inadimplemento gera mais ganhos que os prejuízos do credor frustrado. Há o aumento de bem-estar para uma das partes, sem que enseje perda de bem-estar para outrem. Em muitos casos, o incumprimento eficiente, na verdade, deveria ser designado como ajustamento eficiente, pois consiste no reconhecimento de alternativas mais vantajosas à continuação do contrato.11 Salienta-se que eficiente "é aquilo que maximiza a finalidade das partes, é aquilo que faz justiça à intenção delas".12 Com isso, é possível vislumbrar alguns casos excepcionalíssimos, em que seria viável suscitar a teoria do incumprimento eficiente para justificar uma violação do sigilo médico, por exemplo: os casos em que há indícios relevantes de que a recusa aos tratamentos evidencia um quadro depressivo. Sendo assim, a participação da família seria de grande importância, para contribuir com a deliberação sobre qual é a melhor conduta clínica a ser utilizada. Em razão das dificuldades existentes na prática clínica, o paciente pode esquivar do paternalismo médico, há tanto tempo sedimentado no senso comum; bem como devido aos riscos que essa teoria apresenta à construção da confiança e a sedimentação da boa-fé objetiva podendo, inclusive, fragilizar a teoria da violação positiva do contrato. Acredita-se que a adoção da teoria do incumprimento suficiente à relação médico-paciente apresenta mais probabilidade de agravar a vulnerabilidade do enfermo, que potenciais benefícios. Julga-se, pois, ser preferível adotar construções teóricas que exaltem e consubstanciem o respeito à confiança, como princípio ético e jurídico. No exemplo suscitado acima, o problema poderia ser resolvido com base na aferição da capacidade de consentir, para legitimar ou não a vontade do enfermo, sem necessitar recorrer à teoria do incumprimento suficiente.  Nessa acepção, a coercibilidade do Direito serve para suscitar, em âmbito de responsabilidade civil, um dever de reparação, pautado na violação positiva dos contratos, embasado no entendimento de que o desrespeito ao sigilo médico caracteriza a violação da confiança e, por consequência, resulta na desobediência do princípio geral que preconiza a lealdade no âmbito contratual, a boa-fé objetiva. Por fim, no que tange a extensão temporal do dever de sigilo médico, com base na pós-eficácia de alguns direitos da personalidade, especialmente dos que se ligam à privacidade,13 é plenamente possível afirmar que após a morte do paciente remanesce a incidência da boa-fé objetiva a ponto de haver a sobrevida do dever de sigilo profissional no âmbito clínico e hospitalar, sob pena de configurar a violação positiva do contrato. __________ 1 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 602. 2 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 37. 3 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 606. 4 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo 26. Rio de Janeiro: Editor Borsói, 1959, p. 282. 5 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Ebook, p. 155-158. 6 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 410-411. 7 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 34. 8 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 160. 9 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol II., Coimbra: Almedina, 1984, p. 1291. 10 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735. 11 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735-737. 12 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 241, grifos do autor. 13 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Direito ao sigilo médico após a morte do paciente. Curitiba: Juruá, 2022.