COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
A partir da edição do Código Civil de 2002, poucas foram as categorias jurídicas que denotaram tamanha expansão quanto o direito à privacidade. Em duas décadas, testemunhou-se o deslocamento do espaço lateral que a privacidade ocupava para a centralidade de discussões em diversas áreas: de certo modo, tratar da dimensão normativa das relações jurídicas (em seus diversos matizes) passou a significar, também, a tratar do alcance normativo da privacidade. É possível identificar diversas causas para este movimento centrípeto da privacidade; porém, uma delas parece expressar particular importância: o desenvolvimento potencializado da tecnologia da informação, que promove o uso incessante de algoritmos para a coleta e processamento de dados e viabiliza o predomínio, hoje percebido, das plataformas digitais. Surge disso, nas palavras de Ana Frazão, "[...] a ideia de uma economia movida a dados [...], já que os dados pessoais são hoje o novo 'petróleo' ou principal insumo das atividades econômicas"1, perspectiva que globalmente vem sendo denominada como data-driven economy.2 De modo similar, Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, afirma que esse predomínio das plataformas digitais implica na consolidação da "era do capitalismo de vigilância" ("The Age of Surveillance Capitalism"), que caracteriza "[...] uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como material livre para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda"3. Tal modelo compreende a estruturação das plataformas digitais para além de simples ferramentas de usuários, porquanto, ao erigirem-se como verdadeiro modelo de negócios, criam um ecossistema de interação entre agentes empreendedores que viabiliza substanciais trocas econômicas. Essas trocas, ao seu turno, consubstanciam-se por meio da colheita de dados pessoais dos usuários das referidas plataformas e, do mesmo modo, da expansão da utilização de produtos e objetos dotados de interfaces tecnológicas (smartwatches, termostatos informatizados, palmilhas inteligentes, etc) que os conectam com a internet e a outros dispositivos, otimizando o dia a dia de consumidores em ambiente doméstico e profissional. É nesse espaço de inovação que Eduardo Magrani define a consolidação da chamada "Internet das Coisas", globalmente referida pela sigla IoT (Internet of Things), como "[...] um ecossistema de computação onipresente [...] voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas [...]. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em objetos que interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade"4. Apesar de atrativo, todo esse cenário parece colocar em xeque a definição da privacidade balizada exclusivamente no paradigma da autodeterminação informativa, que a compreende a partir do controle de dados e informações pessoais por cada sujeito - paradigma esse que, apesar de relevante, já se mostra insuficiente em face dos desafios contemporâneos. É necessário, portanto, ir além, justamente porque a privacidade expressa importante valor normativo se reconhecida como eixo para o exercício das liberdades, sendo o vetor de projeção e gênese dos direitos da personalidade na medida em que se reconhece que as expressões de nossa existência dela (da privacidade) surgem. E, se assim o é, a privacidade pode também servir como chave de configuração de um sistema normativo desinente de institutos correlacionados do Direito Civil que possam contribuir com os mecanismos de tutela da personalidade humana já encetados na ordem jurídica. Esse viés abre espaço para uma compreensão renovada da Responsabilidade Civil e de seu contributo à proteção da privacidade como vetor de projeção dos direitos da personalidade e exercício de liberdades, justamente a partir do reconhecimento do traçado multifuncional que vem sendo a ela atrelada. De plano, cumpre destacar que desde a primavera de 1988, a Responsabilidade Civil no Brasil tem sido objeto de crescentes modificações e flexibilizações, inicialmente derivadas do giro conceitual que fixou na vítima do evento lesivo o foco de maior atenção5. Bem por isso é que Nelson Rosenvald afirma que a Responsabilidade Civil expressa contemporaneamente uma face multifuncional, envelopando funções de reparação, punição e precaução, acabando por se mostrar "[...] dúctil e maleável às exigências de um direito civil, comprometido com as potencialidades transformadoras da Constituição Federal."6 Esse traçado multifuncional da Responsabilidade Civil pode se mostrar útil ao desafio de tutela da personalidade humana inaugurado pela data-driven economy a partir do crescente interesse verificado na doutrina nacional para uma melhor compreensão sobre a restituição derivada de lucros ilícitos, corporificadas normativamente a partir de duas figuras oriundas do common law: o disgorgement (estruturado como a remoção dos lucros ilícitos) e o restitutionary damages (delineado com a restituição dos lucros ilícitos). Em recente obra sobre o tema, Nelson Rosenvald explica que a restituição pelo lucro ilícito é usualmente encarada por meio do modelo fragmentado erigido pelo instituto do enriquecimento sem causa, alicerçado no art. 884 do CC/20027. Em um comparativo com o sistema normativo alemão, o autor sustenta8 que o instituto do enriquecimento sem causa pode funcionar como "[...] fonte de obrigações, apto a ocasionar o exercício da ação in rem verso" em hipóteses de enriquecimento obtido por fato injusto; enriquecimento pela frustração negocial indevida descrita no art. 885 do CC/20029; e o enriquecimento decorrente da prestação de terceiro, hipótese regulada pelo art. 305 do diploma material cível em vigor.10 Adiante, é forçoso reconhecer que o modelo de restituição pelo lucro ilícito, se melhor explorado nos limites da Responsabilidade Civil brasileira, poderá servir como um mecanismo de tutela restitutória em face da apropriação indevida de dados pessoais por meio de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos de IoT. Ora, se mesmo com os escândalos de hackers e coleta não autorizada de dados pessoais o Facebook arrecadou lucro recorde no último trimestre de 2018, alcançando a cifra de US$ 6.800.000.000.000,00 (seis bilhões e oitocentos milhões de dólares)11, a restituição pelo lucro ilícito poderia ser compreendido como uma contribuição adequada da Responsabilidade Civil (i) ao desestímulo gradual da continuidade da atual tecnorregulação da coleta de dados pessoais e (ii) à possível restituição e consequente tutela concreta da privacidade erodida pelas plataformas digitais que protagonizam a atual economia movida a dados. Neste ponto, é necessário sublinhar que o dano caracterizado pelas plataformas digitais possui feições singulares no âmbito da data-driven economy. Ainda que a captura e processamento incessante e não autorizados de dados pessoais atinja interesses juridicamente tutelados (como bem categoriza Anderson Schreiber ao tratar da definição jurídica de dano12), verificados na personalidade humana e privacidade, a mera eficácia indenizativa do ato ilícito não se mostra, a rigor, adequado ao propósito de uma tutela e reparação efetivas. Há que se melhor investigar a projeção da eficácia restitutória derivada dos atos ilícitos praticados em tal âmbito, justamente para que se alcance o contributo acima assinalado. Ponderando sobre a definição de civilização vertida por Mario Vargas Llosa e a tutela da propriedade imaterial, Nelson Rosenvald afirma hipótese que bem se amolda ao cenário da data-driven economy: a ampliação incalculável de possibilidade de novas violações aos direitos da personalidade e o estabelecimento de lucros consideráveis a partir dessas condutas ilícitas. Em suas palavras: A par de todas estas vicissitudes - inerentes à civilização do espetáculo -, comparados aos direitos das propriedades intelectuais, vê-se que os direitos da personalidade apresentam similar necessidade de tutela. Um infinito número de violações é possível, não existe tutela preventiva efetiva e a proteção oferecida pelo direito penal é insuficiente. Ademais da consolidada reparação do dano moral, o resguardo de situações existenciais pode ser implementado por tutelas inibitórias e pretensões desmonetizadas, como retratações e direito de resposta. Todavia, esses remédios são inadequados para levar em consideração o alto nível de proteção que estes direitos demandam. Além disso, consideráveis lucros podem ser produzidos pela violação de atributos intrínsecos à pessoa, em quantias muito superiores aos danos estimados, especialmente pela inerente dificuldade de sua avaliação. Essa combinação de fatores, torna atrativa sob o cálculo matemático a reiteração dessas violações [...]13.  Assim, no estabelecimento da Responsabilidade Civil inserta no sistema normativo fundado na privacidade e esteado no Direito Civil, mostra-se possível identificar na investigação comprometida do instituto estabelecido no art. 884 do CC/2002 a trilha de contributo que possa nos levar ao estabelecimento concreto da restituição do lucro derivado de práticas ilícitas aos titulares dos dados pessoais que tiveram sua privacidade, em sentido além da autodeterminação informativa, erodida. Eis, então, um primeiro passo para (re)pensarmos qual é o papel que a Responsabilidade Civil efetivamente poderá desempenhar na tutela da privacidade compreendida como eixo principal do desenvolvimento da personalidade humana (e de seus direitos correlatos), bem como para o exercício de liberdades por cada sujeito. Referências CORRÊA, Rafael. Os plúrimos sentidos da privacidade e sua tutela: a questão da proteção de dados pessoais e sua violação na atual construção jurisprudencial brasileira. In: FACHIN, Luiz Edson et al [Coords.] Jurisprudência Civil Brasileira. Métodos e problemas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s).Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora,2011. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. ______. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.  WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-DrivenEconomy. Roadmap for usageandexploitationof Big Data in Europe [livro eletrônico]. Springer InternationalPublishing, 2016.  WALDMAN, Ari Ezra. Privacy as Trust. Informationprivacy for aninformation age [livro eletrônico]. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.  ZUBOFF, Shoshana. The Age ofSurveillanceCapitalism. The fight for a human future atthe new frontierofPower [livro eletrônico]. New York: PublicAffairs, 2019. __________ 1 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 333. 2 WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-Driven Economy. Roadmap for usage and exploitation of Big Data in Europe. Springer International Publishing, 2016 [livro eletrônico]. 3 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019 [livro eletrônico]. Já na abertura da obra, Zuboff assim consigna o primeiro verbete definidor do "capitalismo de vigilância": "1. A new economic order that claims human experience as free raw material for hidden comercial practices of extraction, predictions, and sales." Posição 102. 4 MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. 5 Tais perspectivas redundam, inclusive, em alteração da nomenclatura do instituto, passando a ser encarado como "direito de danos" ou "responsabilidade por danos". A perspectiva do giro paradigmático é espelhada com clareza na reflexão de Luiz Edson Fachin: "Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. [...] A imputação tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas." FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 113-114. 6 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 5-6. 7 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.  Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. 8 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 325-328. 9 Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir. 10 Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento. 11 Em ano de crise, Facebook ganha usuários e lucro bate recorde. Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em novembro de 2022. 12 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013. 13 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 437-438.
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Ao longo da atuação da Comissão, um dos pontos mais discutidos foi, sem dúvidas, o da Responsabilidade Civil. A importância deste assunto se deve, sobretudo, ao fato de que o Projeto de Lei 21/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados, previa a adoção preferencial do regime de responsabilidade de natureza subjetiva, o que atraiu forte onda de críticas por parte da doutrina especializada, tendo sido esta discordância uma das razões preponderantes para a própria instalação da Comissão de Juristas. Especialistas ouvidos nas audiências públicas, como Anderson Schreiber, Caitlin Mulholland, Gisela Sampaio e Nelson Rosenvald, apontavam para os perigos de uma regulamentação descuidada do tema, sob pena de se acabar gerando verdadeira fratura no sistema de Responsabilidade Civil brasileiro. Ao mesmo tempo, representantes de inúmeros setores, especialmente daqueles ligados à indústria e ao mercado, se manifestaram na defesa da regulamentação da matéria, a fim de favorecer a segurança jurídica e permitir a criação de um ecossistema de governança mais adequado. Diante de opiniões tão radicalmente contrárias, a opção escolhida pela Comissão parece tender ao equilíbrio. Com nítida inspiração nas recentes propostas de regulamentação do tema pela União Europeia, especialmente na Resolução de 20 de outubro de 2020 do Parlamento Europeu, o anteprojeto busca regular o tema a partir dos riscos gerados pelos diversos sistemas de Inteligência Artificial, evitando o perigo - e a tentação - de conferir resposta única para um problema multifacetado. Se muitos são os sistemas de IA e os riscos a eles associados, muitos devem ser os regimes de Responsabilidade Civil. Da mesma forma, para além deste aspecto objetivo, o anteprojeto faz um recorte subjetivo, diferenciando as soluções de acordo com os sujeitos envolvidos na causação do dano. Atenta-se, assim, para os critérios da tipologia, autonomia, riscos e sujeitos da IA, como já tivéramos a oportunidade de identificar como tendência mundial para o tema ainda no ano de 2019.1 O recorte feito pela Comissão se estrutura, então, em dois aspectos centrais: sujeitos e tipos de IA, a depender do tipo de risco envolvido. Em relação aos sujeitos, o regime de responsabilidade proposto só seria aplicável aos chamados "agentes de IA" (art. 4º, inciso IV), que são, respectivamente, o "fornecedor de sistema de IA" (art. 4º, inciso II) e o "operador de sistema de IA" (art. 4º, inciso III). No entanto, antes de analisar as figuras, necessário dar um passo atrás para compreender o que são sistemas de IA. Na definição do inciso I do art. 4º, sistema de inteligência artificial (IA) é todo "sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real." O conceito - em atenção a críticas feitas por especialistas ao longo das audiências públicas - não se restringe às técnicas de aprendizado de máquina (machine learning), projetando-se, também, para outras técnicas de IA. Em relação aos agentes, tem-se que o fornecedor de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito" (art. 4º, inciso II). Já o operador de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional." No fundo, a figura dos fornecedores se confunde, em grande medida, com a dos desenvolvedores de tecnologias, seja para colocação no mercado, seja para utilização própria, ainda que a título gratuito. Por outro lado, os operadores são aqueles sujeitos que utilizem a tecnologia, desde que não o façam para fins de atividade pessoal de caráter não profissional. Além disso, em seu artigo 29 - e na mesma direção do artigo 45 da LGPD -, o anteprojeto excluiu da incidência do regime criado pela lei as hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo, as quais "permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Como se pode perceber, o anteprojeto optou por uma regulação com âmbito de incidência mais restrito, eis que ficaram de fora, por exemplo, os usuários de IA de caráter não profissional, o Estado - cujo regime de responsabilidade tem sede constitucional -, bem como os fornecedores previstos pelo CDC, ainda que profissionais liberais. Exemplificativamente, o regime previsto no anteprojeto não é aplicável (i) ao proprietário de carro autônomo ou de robô doméstico que cause acidente em atividade não profissional; (ii) ao Estado quando utilize IA e venha a causar danos; (iii) ao hospital que realize cirurgia robótica com IA e cause dano estético ao paciente; e, enfim, (iv) ao médico, quando profissional liberal, que cause dano ao paciente após se valer de alguma ferramenta de IA. Tais situações continuarão sendo regidas pela legislação pertinente, cabendo à doutrina e à jurisprudência a definição dos regimes de responsabilidade aplicáveis a cada hipótese. Por outro lado, o regramento proposto seria aplicável aos contextos de relações interempresariais, quando, por exemplo, uma empresa desenvolva um software de IA para outra e tal software venha a causar algum tipo de dano. Observe-se, contudo, que será preciso, ainda, verificar, no caso concreto, se existe ou não vulnerabilidade apta a atrair a aplicação da legislação consumerista. Há, contudo, situações que estão numa zona cinzenta. Veja-se, nessa direção, o caso do condomínio que utilize sistema de IA e cause dano a condômino. Por certo, não se trataria, em princípio, de relação de consumo, mas ainda haveria dúvidas em relação ao elemento "atividade pessoal de caráter não profissional" para se determinar se o condomínio se enquadraria como operador ou não. Em relação ao recorte objetivo, isto é, os tipos de IA, o artigo 27 diferencia em seus parágrafos 1º e 2º o regime aplicável a depender se o sistema de IA é de alto risco e risco excessivo ou não. Como regra geral, o caput dispõe que: "o fornecedor ou operador de sistema de IA que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema." A reparação integral evidenciada no dispositivo também consta do rol de princípios do anteprojeto, que em seu art. 3º, inciso X, elenca "prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos." Outrossim, a fim de se evitar a irresponsabilização em casos de delegação ou supervisão, o caput traz o aposto explicativo de que os agentes serão responsáveis não importando qual seja o grau de autonomia do sistema de IA. Conforme o parágrafo 1º, "[q]uando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano." E, de acordo com o parágrafo 2º, "[q]uando se tratar de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima." Ou seja: para IAs de alto risco ou risco excessivo, a responsabilidade será objetiva e, em atenção ao nexo de causalidade, dependerá da participação de cada um na causação do evento lesivo, não havendo que se falar em solidariedade. Já em relação aos demais tipos de IA, o regime será de natureza subjetiva, com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima. O artigo 28 destaca, na sequência, que os agentes de IA não serão responsabilizados quando "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA;" e "II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Destaca-se que as excludentes se aplicam para todos os tipos de sistemas de IA, independentemente do risco. Resta, por derradeiro, explicar, resumidamente, as classificações de IA em risco excessivo e alto risco. Em linhas gerais, as IAs de risco excessivo são aquelas proibidas pela lei. No fundo, risco excessivo é o risco inaceitável (utilizando-se a terminologia europeia) e sua disciplina se concentra nos artigos 14 a 16. O artigo 14 traz em seu caput que "[s]ão vedadas a implementação e uso de sistemas de IA: I - que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos deste lei; II - que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei; III - pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional." De nítida inspiração na proposta do AI Act europeu, ficaram de fora, de forma explícita, a proibição a armas letais autônomas e as restrições às deepfakes. No artigo 15, buscou-se disciplinar a vigilância de massa, isto é, o chamado mass surveillance: "Art. 15. No âmbito de atividades de segurança pública, somente é permitido o uso de sistemas de identificação biométrica à distância de forma contínua em espaços acessíveis ao público, quando houver previsão em lei federal específica e autorização judicial em conexão com a atividade de persecução penal individualizada, nos seguintes casos: I -para persecução de crimes passíveis de pena máxima de reclusão superior a dois anos; II - busca de vítimas de crimes ou pessoas desaparecidas; III - crime em flagrante. Parágrafo único. A lei a que se refere o caput deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal e o controle judicial, bem como os princípios e direitos previstos nesta Lei, especialmente a garantia contra a discriminação e a necessidade de revisão da inferência algorítmica pelo agente público responsável antes da tomada de qualquer ação em face da pessoa identificada." Por fim, dispôs o artigo 16 que "[c]aberá à Autoridade Competente regulamentar os sistemas de IA de risco excessivo." Em relação ao alto risco, a disciplina se resume aos artigos 17 e 18. O primeiro traz um rol taxativo: "Art. 17.  São considerados sistemas de IA de alto risco aqueles utilizados para as seguintes finalidades: I - aplicação como dispositivos de segurança na gestão e funcionamento de infraestruturas críticas, tais como controle de trânsito e redes de abastecimento de água e eletricidade; II - de educação e formação profissional, incluindo sistemas de determinação de acesso a instituições de ensino e formação profissional ou para avaliação e monitoramento de estudantes; III - de recrutamento, triagem, filtragem, avaliação de candidatos, tomada de decisões sobre promoções ou cessações de relações contratuais de trabalho, repartição de tarefas e controle e avaliação do desempenho e do comportamento das pessoas afetadas por tais aplicações de IA nas áreas de emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria; IV - avaliação de critérios de acesso, elegibilidade, concessão, revisão, redução ou revogação de serviços privados e públicos que sejam considerados essenciais, incluindo sistemas utilizados para avaliar a elegibilidade de pessoas naturais quanto a prestações e serviços públicos de assistência e seguridade; V - avaliação da capacidade de endividamento das pessoas naturais ou estabelecer sua classificação de crédito; VI - envio ou estabelecimento de prioridades para serviços de resposta a emergências, incluindo bombeiros e assistência médica; VII - administração da justiça, incluindo sistemas que auxiliem autoridades judiciárias na investigação dos fatos e na aplicação da lei; VIII - veículos autônomos quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas; IX - aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos; X - sistemas biométricos de identificação; XI - investigação criminal e segurança pública, em especial, para avaliações individuais de riscos pelas autoridades competentes, a fim de determinar o risco de uma pessoa cometer infrações ou de reincidir, ou o risco para potenciais vítimas de infrações penais ou para avaliar os traços de personalidade e as características ou o comportamento criminal passado de pessoas singulares ou grupos; XII - estudo analítico de crimes relativos a pessoas naturais, permitindo às autoridades policiais pesquisar grandes conjuntos de dados complexos, relacionados ou não relacionados, disponíveis em diferentes fontes de dados ou em diferentes formatos de dados, no intuito de identificar padrões desconhecidos ou descobrir relações escondidas nos dados; XIII - investigação por autoridades administrativas para avaliar a credibilidade dos elementos de prova no decurso da investigação ou repressão de infrações, para prever a ocorrência ou a recorrência de uma infração real ou potencial com base na definição de perfis de pessoas singulares; XIV - gestão da migração e controle de fronteiras." Apesar de taxativo, o rol poderá ser atualizado pela Autoridade Competente, figura esta criada pelo anteprojeto e que deverá ser escolhida em momento posterior. Segundo o artigo 18: "[c]aberá à autoridade competente atualizar a lista dos sistemas de IA de risco excessivo ou de alto risco, identificando novas hipóteses, com base em pelo menos um dos seguintes critérios: a)  a implementação ser em larga escala, levando-se em consideração o número de pessoas afetadas e a extensão geográfica, bem como a sua duração e frequência; b) o sistema puder impactar negativamente o exercício de direitos e liberdades ou a utilização de um serviço; c) o sistema tiver alto potencial danoso de ordem material e moral, bem como discriminatório; d) o sistema afetar pessoas de um grupo específico vulnerável. e)  serem os possíveis resultados prejudiciais do sistema de IA irreversíveis ou de difícil reversão; f) um sistema de IA similar já ter causado danos materiais ou morais; ou g) baixo grau de transparência, explicabilidade e auditabilidade do sistema de IA, que dificulte o seu controle ou supervisão; h) alto nível de identificabilidade dos titulares dos dados, incluindo o tratamento de dados genéticos e biométricos para efeitos de identificação única de uma pessoa singular, especialmente quando o tratamento inclui combinação, correspondência ou comparação de dados de várias fontes; i) quando existirem expectativas razoáveis do afetado quanto ao uso de seus dados pessoais no sistema de IA, em especial a expectativa de confidencialidade, como no tratamento de dados sigilosos ou sensíveis. Parágrafo único. A atualização da lista pela autoridade competente deve ser precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e audiência públicas e de análise de impacto regulatório." Outra norma de grande relevância está contida no artigo 41 do anteprojeto, que se insere na disciplina do ambiente regulatório experimental para inovação (sandbox regulatório) em IA. Segundo o dispositivo: "Os participantes no ambiente de testagem da regulamentação da IA continuam a ser responsáveis, nos termos da legislação aplicável em matéria de responsabilidade, por quaisquer danos infligidos a terceiros em resultado da experimentação que ocorre no ambiente de testagem." A regra, de inspiração imediata em disposição semelhante na Proposta do AI Act europeu tem por finalidade evitar a irresponsabilização por danos no âmbito das sandboxes. Dito diversamente: o fato de haver eventuais atenuações no rigor de normas regulatórias não implicaria a ausência de responsabilidade por danos eventualmente causados. Em linhas finais, cumpre pontuar que o regime de Responsabilidade Civil proposto pelo anteprojeto tem âmbito de aplicação bastante limitado e manifesta clara tendência pela objetivação da responsabilidade, considerados os inegáveis riscos de danos causados pelos sistemas de Inteligência Artificial. Caberá ao Congresso Nacional, em aprofundamento dos trabalhos da Comissão, refletir de modo mais detido em relação a temas como securitização obrigatória e fundos compensatórios, que têm se revelado como tendência global na matéria. E, à doutrina, caberá aprofundar as discussões em relação à gestão de riscos - incluindo precaução e prevenção -, governança, boas práticas e medidas de accountability, à luz dos diversos dispositivos sugeridos pelo anteprojeto. O texto traz, inequivocamente, importantes avanços não apenas em matéria de Responsabilidade Civil, como em outros temas centrais para o desenvolvimento da IA, com a inclusão da pessoa humana em seu epicentro. No entanto, não se trata de um trabalho pronto e acabado, mas de um pontapé inicial para o jogo que recomeça agora no campo do Congresso. E, aproveitando o clima de Copa e a inspiração "galvanesca": segue o jogo, amigo! __________ 1 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed.
Introdução Com mais de 500 mil médicos no Brasil1, a maioria dos acadêmicos e profissionais optam por fazer Residência Médica - com duração de 2 a 5 anos - e tornarem-se especialistas em determinada área do corpo humano. Atualmente o CFM2 reconhece 55 especialidades médicas e 59 áreas de atuação. Dentre as 55 especialidades oficiais existem algumas que ainda podem ser pouco conhecidas pelo público em geral, como a acupuntura, a medicina de emergência ou a medicina preventiva e social. Interessante expor que o CFM não reconhece "medicina estética" e "medicina integrativa" como especialidades médicas. Aos médicos que não cursaram uma residência ou não possuem um título de especialista, a nomenclatura correta é "médico generalista" e não "clínico geral" como comumente são chamados, haja vista que "clínico geral" é o título do médico especialista em Clínica Médica. Pediatria Aqueles que optam por fazer a especialidade mais fofa de todas cursam um programa de residência médica com duração de 3 anos. A pediatria é a opção de 10,1% dos médicos brasileiros e 74,4% deles são mulheres3. Dentre as atribuições de um pediatra está o dever de cuidado, principalmente em casos de suspeita de abusos sexuais e maus-tratos com contra seus pequenos pacientes. Nestes casos cabe ao especialista a notificação obrigatória ao Conselho Tutelar e em alguns casos ao Ministério Público, como dispõe o artigo 13 do ECA4. Mesmo que o público-alvo desses especialistas sejam menores de idade, o Código de Ética Médica enfatiza a importância de manter o sigilo profissional entre o médico e o paciente. Dispõe o artigo 745 que é vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente criança ou adolescente, desde que estes tenham capacidade de discernimento, inclusive a seus pais ou representantes legais, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. Sendo assim, se o pediatra quebrar o sigilo fora das hipóteses que lhe são permitidas, poderá haver responsabilidade civil. Considerando a natureza da atividade do médico pediatra, os erros mais comuns dentro desta especialidade são a negligência e o erro de diagnóstico. A negligência, nas palavras de França6, se caracteriza pelo não fazer, pela inércia, pela indolência e como exemplo podemos citar: não requerer exames pré-operatórios, não requisitar exames complementares, não considerar o relato dos pais/responsáveis ou não fazer perguntas aos pais/responsáveis. Compreendendo que a maioria dos pacientes possuem dificuldade em verbalizar por conta da própria idade, aos pediatras cabe colher informações suficientes dos pacientes e dos pais/responsáveis para fechar um diagnóstico correto. E é então que surge o erro de diagnóstico. Kfouri7 leciona: Sobretudo na Pediatria, quando o paciente, de tenra idade, não pode dizer o que sente - e o médico, muitas vezes, guia-se por observações transmitidas pela mão da criança - o diagnóstico fica ainda mais difícil. O exame do pequeno paciente deve ser minucioso, detalhado, sem descurar o mau mínimo indício que sirva à identificação da patologia. O erro de diagnóstico escusável não gerará dever de indenizar porque não constitui culpa médica. Porém, se o erro for resultado de negligência ou ignorância, haverá responsabilidade civil médica. Ortopedia A ortopedia e traumatologia é a segunda especialidade médica mais masculina de todas, com 93,5% dos médicos homens8, perde apenas para urologia. Outro importante segundo lugar que esta especialidade ocupa é no ranking do STJ das especialidades médicas mais processadas no Brasil, fica atrás apenas da G.O. A ortopedia tem um importante traço: a subespecialização extrema. Só em relação aos membros superiores, podem existir as seguintes subespecialidades: cabeça, pescoço, ombro, cotovelo e mãos. O ortopedista, via de regra, contrai obrigação de meio com seu paciente, mas possui uma importante exceção. Kfouri9 aduz: Isso significa não existir a imposição de curar sempre, de obter êxito em todas as intervenções, mas sim de aplicar os conhecimentos da ciência médica contemporânea, dispensar cuidados atentos e de boa qualidade ao paciente, enfim, de envidar os melhores esforços no sentido de atingir o resultado esperado, mas sem garantia plena de sucesso. Cirurgias como artroplastias, fixação interna de fratura óssea e colocação de próteses são exemplos de procedimentos cirúrgicos comuns para os ortopedistas e consideradas como obrigação de meio. Uma perguntinha rápida: Já quebrou o braço? Já assinou o gesso de um colega que quebrou o braço? Pois bem, a doutrina compreende que a colocação de aparelho gessado é obrigação de resultado, haja vista a simplicidade da tarefa. A ortopedia é uma especialidade majoritariamente cirúrgica e como todas as intervenções no organismo humano apresenta riscos considerados habituais, entre eles: lesão do nervo radial, reoperação e infecções. Kfouri10 sintetiza "na ortopedia cada caso deve ser examinado segundo um modelo abstrato, encontradiço na literatura médica, mas que varia segundo os ditames da ciência, a prática comum ou o que seja desejável, naquele tipo de atividade". Nesta especialidade o erro mais comum consiste no erro de diagnóstico na leitura de exames de imagem e eventual falha na identificação de fraturas. A lógica da indenização segue a mesma: se for escusável não haverá dever de indenizar, contudo, se decorrer de ignorância ou negligência, haverá responsabilidade civil médica. Oftalmologia A visão está entre os sentidos mais importantes do ser humano e ao oftalmologista cabe atuar no cuidado clínico e cirúrgico dos olhos. No país, 3,6% dos médicos optaram por esta especialidade que possui mais de 16 subespecialidades, como por exemplo: retina, catarata, glaucoma, lente de contato, córnea, oncologia ocular entre outras. Dentre os especialistas, 60% dão homens. A obrigação contraída pelo oftalmologista é de meios, não de resultado e vale expor que não se pode comparar a cirurgia destinada a corrigir disfunção visual, ainda que leve, à cirurgia embelezadora. Nesse sentido, alerta Kfouri11: Toda cirurgia realizada no olho, seja na parte externa, câmara média ou posterior, envolve risco ao paciente, que deve ser alertado sobre tal circunstância, e a finalidade da intervenção é o ganho funcional, a melhora da acuidade visual. A catarata é a maior causa de cegueira no Brasil, por isso está entre as cirurgias oftalmológicas mais comuns no país. Este procedimento cirúrgico consiste em substituir o cristalino opaco pelo implante de uma lente intraocular com o uso de laser. Mesmos nesses casos não há que se falar em obrigação de resultados, continua sendo uma obrigação de meio. Uma questão de ordem prática consiste em responder duas perguntas curiosas: 1. O oftalmologista pode ser dono de uma ótica? 2. O oftalmologista pode indicar uma ótica específica? A resposta é não para ambos os questionamentos e estão, respectivamente, respaldadas nos artigos 12 e 16 da lei 24.492/34. Considerações finais Nota-se que a maioria dos médicos brasileiros optam por tornar-se especialista e que cada especialidade médica exige do especialista cuidados próprios que variam conforme o perfil do seu paciente. A escuta atenciosa e a anamnese completa continuam sendo meios importantes para chegar a um diagnóstico correto. A obrigação nas três especialidades médicas aqui citadas são de meio, como aduz a regra geral dentro da responsabilidade civil médica, a exceção do procedimento de colocação tala gessada dentro da ortopedia. Yasmin Folha Machado é Professora universitária. Advogada. Doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas dirigido pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Referências bibliográficas KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. __________ 1 SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 2 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 3 SCHEFFER, M. et al., p. 69 4 Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. 5 RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 6 P. 259 7 KFOURI, 2019, p. 252 8 SCHEFFER, M. et al., p. 72 9 KFOURI, 2021, p. 363 10 2021, p. 364. 11 2021, p. 369
Resenha: Este artigo apresenta críticas ao PL 2856/2022, do Senado Federal, que propõe incluir no CDC a regulamentação do "desvio produtivo do consumidor". O texto dialoga criticamente com a obra de Marcos Dessaune, autor da "teoria do desvio produtivo do consumidor", e aponta uma série de falhas do projeto, esperando assim contribuir para seu aperfeiçoamento. Tive minha atenção recentemente chamada para um projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, "para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor". Li o projeto e o considerei muito ruim. Daí esse breve trabalho, destinado a apresentar minhas críticas ao texto projetado.1 Inicio descrevendo o projeto, que é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto ("Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor") e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção ("Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor"), formada pelos arts. 25-A até 25-F). Pois já tenho, aqui, uma crítica, de ordem terminológica: fala o texto do projeto em "desvio produtivo do consumidor". E essa expressão é equivocada. Vale registrar, porém - e antes de tudo - que a expressão só aparece na epígrafe da Seção que se pretende acrescentar ao texto do Código de Defesa do Consumidor, não sendo empregada em nenhum dos artigos projetados. A expressão "desvio produtivo" tem sido empregada para fazer alusão à lesão sofrida por alguém que tem de gastar parte de seu tempo para resolver (ou tentar resolver) um problema causado por outro sujeito de uma relação jurídica, especialmente em relações de consumo. O autor da expressão assim se refere ao fenômeno: "evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa".2 E sobre a expressão, diz Dessaune: "Inicialmente, denominei o fenômeno socioeconômico em análise "desvio dos recursos produtivos do consumidor", por ser um nome mais completo e autoexplicativo. Porém, a necessidade de dispor de um nome menor e mais simples, tanto para o título do livro quanto para as inúmeras citações ao longo da obra, levou-me a simplificá-lo e a reduzi-lo para "desvio produtivo do consumidor". Note-se, contudo, que nessa nova expressão cunhada não empreguei o adjetivo "produtivo" para qualificar o desvio do consumidor como sendo um ato "producente" ou "improducente". Diversamente, utilizei tal adjetivo em sua acepção de "relativo à produção", indicando tão somente que, em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos "que produzem" (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".3 O fato de o criador da expressão ter de explicar que ao falar em "desvio produtivo" não emprega o adjetivo produtivo para qualificar o substantivo desvio já é suficiente para mostrar como a expressão é falha. E ainda afirma que o fez em razão de uma suposta "necessidade de dispor de um nome menor e mais simples". Com todas as vênias, mas ciência não se faz por simplificações, ainda que terminológicas. Vale, aqui, a mesma afirmação que - sobre a expressão "exceção de pré-executividade" - fez José Carlos Barbosa Moreira: "Está claro que o ponto não interessará a quem não dê importância à terminologia - a quem suponha, digamos, que em geometria tanto faz chamar triângulo ou pentágono ao polígono de três lados, e que em anatomia dá na mesma atribuir ao fígado a denominação própria ou a de cérebro. Mas - digamos com franqueza - tampouco interessará muito o que esses pensem ou deixem de pensar".4 Mesmo depois da explicação dada pelo autor da expressão, porém, as coisas não melhoram. Diz Dessaune que usou o adjetivo produtivo no sentido de "relativo à produção", para indicar que, "em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos 'que produzem' (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".5 O que se percebe, então, é que o adjetivo produtivo estaria a qualificar o substantivo (omitido na expressão) recursos. Haveria, portanto, um desvio de recursos produtivos do consumidor, especialmente de seu tempo. É preciso considerar, porém, que não só o tempo "produtivo" pode ser perdido quando se tenta resolver um problema como esses descritos pelo autor da expressão. Aliás, para a imensa maioria da população brasileira, o tempo a ser empregado na tentativa de resolução de problemas causados por fornecedores é, exatamente, um tempo que não seria dedicado a atividades produtivas, já que as pessoas em geral não podem simplesmente dedicar parte do tempo que dedicam a suas atividades profissionais para isso. É no tempo de folga, que poderia ser dedicado a atividades nada produtivas, que em geral se pode tentar resolver esses problemas. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Esse texto pretende ser um diálogo com as ideias sobre o tema de Marcos Dessaune, autor da assim chamada "teoria do desvio produtivo do consumidor" e integrante da comissão responsável pela redação do anteprojeto que resultou no projeto de lei aqui criticado. Ao aludido autor, de cujas ideias divirjo, fica aqui a manifestação de meu respeito, convencido de que é pelo confronto de ideias, especialmente das divergentes, que a Ciência Jurídica pode evoluir. 2 DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 15-16. 3 Idem, pág. 23, nota de rodapé n. 19. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Exceção de Pré-Executividade: uma denominação infeliz. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 121. 5 DESSAUNE, op. cit., pág. 23, nota de rodapé n. 19.
O reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo (CDC, art. 4º, I) e fator diferenciador da legislação brasileira no âmbito do direito comparado. Trata-se de fundamento dogmático das relações de consumo, premissa que tanto justifica quanto orienta e conforma a proteção dos consumidores a partir da sua base constitucional1 de valorização da pessoa2 e suas normas de ordem pública e interesse social estabelecidas em favor do consumidor. A primeira inovação nesse tema é que com a atualização trazida pela Lei 14.181/2021, uma gradação da vulnerabilidade do consumidor, já reconhecida pela doutrina3, foi incorporada à legislação (a exemplo do disposto no CDC, art. 54-C, IV), preferindo-se a expressão proposta por Bruno Miragem, vulnerabilidade agravada. No contexto do Mercosul, incorporou-se a noção de hipervulnerabidade de algumas categorias de consumidores. O bloco consagrou um importante passo na defesa do consumidor com a aprovação da Resolução 11/2021, sobre a proteção ao consumidor hipervulnerável, que resolve: "Art. 1° - Considerar como consumidores em situação de hipervulnerabilidade as pessoas físicas com vulnerabilidade agravada, desfavorecidos ou em desvantagem por razão de sua idade, estado físico ou mental, ou circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais que provoquem especiais dificuldades para exercer com plenitude seus direitos como consumidores no ato concreto de consumo que realizarem. A presunção de hipervulnerabilidade não é absoluta e deve ser atendida no caso concreto, em função das circunstâncias da pessoa, tempo e local."4-5 Cada Estado deverá adotar internamente de maneira gradual medidas tendentes a, por exemplo, implementar políticas de orientação, assessoramento, assistência e acompanhamento aos consumidores hipervulneráveis quanto às reclamações no âmbito das relações de consumo, proteger contra publicidade e ofertas enganosas ou abusivas e promover a proteção de dados e intimidade desses consumidores, dentre outras. Instrumentos e mecanismos que reassegurem o equilíbrio nas relações de consumo são imperiosos e consistem, por exemplo, no acesso a meios adequados de resolução de litígios e de facilitação da instrução probatória em favor do consumidor.6 A efetividade da tutela de direitos perpassa a identificação de fatores socioeconômicos que interferem nas relações humanas. A vulnerabilidade7 não é uma característica reservada aos consumidores, mas um fenômeno social, presente em diversas esferas. Um de seus efeitos é o regime de dependência e a erosão da autonomia. Esses temas são estudados por Martha Fineman, para quem  a vulnerabilidade deve resultar em medidas responsivas do Estado.8 A igualdade que é assegurada pela lei9 ainda não é suficiente para alcançar a efetividade dos seus efeitos nos mercados. Vive-se um cenário de vulnerabilidade estrutural, de dependência recíproca entre agentes e instituições sociais e a sua mitigação perpassa a compreensão de que a noção de homem médio - geralmente imaginado em uma versão "Brooks brothers" do sujeito de direitos - está muito distante da realidade. Um estudo de Siciliani, Cristine Riefa e Gamper apresenta quatro theories of harm (scam, lemon, schock, subsidy), ou teorias sobre os danos causados aos consumidores, que acentuam a sua vulnerabilidade e demandam providências no âmbito do Direito10. É interessante perceber a gradação feita pelos autores, que bem destacam que parte das pessoas não é suscetível a alguns dos riscos identificados, diferenciando as pessoas mais ingênuas ou com diversas camadas de vulnerabilidade. Essa percepção é especialmente importante para o julgador e para o intérprete da legislação. A primeira delas é a teoria do golpe, que descreve situações em que consumidores ingênuos são deixados à mercê de fornecedores injustos. Eles não percebem o risco de que o produto ou serviço oferecido possa ser inútil. No esquema, a demanda é totalmente injustificada e os falsários competem para enganar. Os exemplos tradicionais incluem esquemas em pirâmide, falsas loterias ou sorteios de prêmios, ou falsas reivindicações médicas. Nessas situações, o máximo prejuízo financeiro é experimentado por uma categoria de consumidores mais vulneráveis. Nem os consumidores sofisticados nem as empresas justas querem negociar nesses falsos "mercados". Como eles podem evitá-los, não há incentivos suficientes para que empresas injustas melhorem a maneira como operam. A segunda teoria, do limão (que nos remete aos market for "lemons"11), os consumidores não podem realmente julgar a qualidade do que é oferecido. Isto diz respeito principalmente à falta de experiência ou aos bens de crédito. Consumidores sofisticados e empresas em conformidade com a legislação querem ser ativos no mercado, mas a presença de consumidores ingênuos e empresas injustas pode implicar em riscos à concorrência, por vezes fazendo com que ambos se retirem do mercado. Exemplos tradicionais incluem carros, relógios, serviços de reparos. A assimetria informacional é o fator preponderante nesse contexto, que acentua a vulnerabilidade dos consumidores. A terceira teoria, do "choque", retrata as diferenças de resultados (e prejuízos) quando consumidores ingênuos e sofisticados são confrontados com o mesmo uso generalizado de práticas enganosas, mas os consumidores sofisticados são capazes de detectar as tentativas dos comerciantes de enganar. Esta teoria do dano se aplica principalmente aos atributos de busca (como preço ou termos e condições). O choque é sentido apenas por consumidores ingênuos que não detectaram a prática desleal e exemplos típicos incluem preços diferenciados e cláusulas contratuais abusivas, inclusive as restritivas de responsabilidade. É nesse contexto que as dark patterns ou práticas deceptivas são alocadas. Não há uma definição unânime sobre o que são os padrões comerciais deceptivos ou dark patters, que "são usados por algumas empresas online para coagir, dirigir ou enganar os consumidores a tomarem decisões não intencionais e potencialmente prejudiciais."12 Também conhecidas como práticas de design enganosas, as dark patters podem ser descritas como "truques usados em sites e aplicativos que fazem você fazer coisas que você não queria fazer, como comprar ou se inscrever para algo"13. Vários exemplos destas práticas que atraem os consumidores (e não se confundem com de nudges ou técnicas de neuromarketing) são listados por organizações preocupadas com a segurança de ambientes online.14 Estudos mais recentes de dark patters confirmam os efeitos que essa arquitetura de escolhas causa aos consumidores. O crescente uso de dados pessoais tem acentuado a vulnerabilidade dos consumidores e incrementando os riscos de danos. Os preços personalizados (que utilizam as informações coletadas sobre um consumidor ou um subconjunto de consumidores para oferecer um preço diferente daquele ao qual o consumidor estaria sujeito se tivesse pegado o produto em uma prateleira física) podem colocar uma barreira extra aos consumidores. Se todos os preços são personalizados, há um obstáculo a mais para o consumidor saber quais preços são propostos a outros consumidores e identificar se lhe está sendo cobrado um valor justo ou adequado. Mas as práticas de preços discriminatórios são prejudiciais não apenas aos consumidores, mas também aos fornecedores comprometidos com um tratamento justo no mercado de consumo. A mera proibição da prática comercial não se revela como medida suficiente para conter os danos aos consumidores de maneira eficaz.15 Da mesma forma, o mero alerta acerca do uso de decisões automatizadas não alcança todos os consumidores.16 A aplicação das sanções administrativas conhecidas no microssistema de defesa dos consumidores em conjunto com as dispostas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018) pode ser um incentivo à conformidade, mas depende da identificação e comprovação da prática comercial abusiva, o que é bastante difícil nos mercados. No relatório da OCDE, sugerem-se como medidas alternativas: exigir que a empresa obtenha a permissão dos consumidores para usar seus dados pessoais para personalizar os preços, informando-os que os preços ou descontos oferecidos são personalizados e como foi calculado (incluindo as informações pessoais que foram usadas para definir o preço). Além disso, sugere-se que a empresa publique um preço uniforme listado para todos os consumidores que desejem optar por não personalizar os preços.17 Por fim, na teoria do "subsídio", há um desequilíbrio do mercado e surge o risco de os consumidores ingênuos serem discriminados pela generalidade dos comerciantes, com consumidores sofisticados se beneficiando dessa exploração. A falta de previsão ou disciplina por parte dos consumidores ingênuos significa que os comerciantes desleais são capazes de cobrar taxas elevadas - muitas das quais os consumidores sofisticados podem evitar -, sendo assim subsidiados por consumidores vulneráveis. Isto inclui, por exemplo, taxas adicionais ou multas. No Brasil observava-se um subsídio cruzado entre consumidores de maior e menor renda no que concerne as formas de pagamento. A proibição de cobranças de preços diferentes em razão da modalidade de pagamento persistiu até 2017, quando uma medida provisória, posteriormente convertida na Lei n. 13.455/2017, autorizou a diferenciação. Consumidores mais pobres, que não tinham acesso a crédito, pagavam mais por produtos ou serviços em razão dos custos acrescidos pelo amplo uso cartão de crédito por outra parcela da população. Até hoje, no setor bancário, os exemplos são abundantes, a começar pela isenção de inúmeras taxas, tarifas e anuidades com que investidores maiores são beneficiados, o que revela o custo acrescido da pobreza. Para a mitigação dos efeitos da assimetria informacional aos consumidores, buscam-se ferramentas jurídicas e tecnológicas, que promovam um ambiente de negócios fair by design. A percepção das múltiplas camadas e graus de vulnerabilidade que cometem os consumidores é um convite a todos os leitores desta reconhecida e importante coluna do IBERC para uma reflexão conjunta sobre as nossas pesquisas e políticas. Referências ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020. BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. MARQUES, Claudia Lima Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. SICILIANI P, RIEFA C, GAMPER H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível em: https://darkpatterns.uxp2.com/. Ambos acessados em 20 de março de 2022. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. 2 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. 3 A concepção de hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade exacerbada é explicada nos escritos de Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Cristiano Heineck Schimitt (Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 65.), Marcelo Schenk Duque (O dever fundamental do estado de proteger a pessoa da redução da função cognitiva provocada pelo superendividamento. Revista de Direito do Consumidor, v. 94,  Jul.-Ago., 2014. p. 157-179.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores. 4 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. 5 A Resolução elenca como hipervulneráveis: "a) ser criança ou adolescente; b) ser idoso, conforme a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos; c) ser pessoa com deficiência; d) ter a condição de pessoa migrante; e) ter a condição de pessoa turista; f) pertencer a comunidades indígenas, povos originários ou minorias étnicas; g) encontrar-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica; h) pertencer a uma família monoparental a cargo de filhas/os menores de idade ou com deficiência; i) ter problemas graves de saúde." (MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível aqui. Acesso em: 25 abr. 2022.) 6 BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. 7 Conceito multifacetado complexo que comporta diferentes interpretações - conf. KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. 8 FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. 9 FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). 10 Siciliani P, Riefa C and Gamper H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. 11 Veja: ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020.  12 OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. 13 Deceptive Design: formerly darkpattersns.org. Design enganoso: antigamente darkpattersns.org. Disponível aqui.  Acesso em 20 de março de 2022. 14 Veja: The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível aqui. Ambos acessados em 20 de março de 2022. 15 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. 16 Sobre o tema, veja a tese de doutoramento de Guilherme Mucelin, defendida perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, orientada pela Profª Drª Sandra Regina Martini e intitulada "Direito de validação das decisões individuais automatizadas baseadas em perfis de consumidores". 17 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. In the United Kingdom, under the application of the Consumer Contracts (Information, Cancellation and Additional Charges) Regulations 2013 implementing the Consumer Rights Directive, the sanction for non-disclosure of this information would be breach of statutory duty (Reg 18) and /or breach of contract.)
A resposta à pergunta que intitula este artigo define os rumos da política criminal de um país e impacta diretamente no comportamento social de sua nação. As normas jurídicas e seus operadores devem buscar que a resposta a tal questionamento seja sempre negativa, de modo a garantir a obediência das leis pelos cidadãos. Nesse contexto, surge a lei 14.470/22, com menos de 1 semana de vigência, mas com mais de 5 anos de trajetória legislativa. Fruto do PL 11.275/18, originário do PLS 283/16, a nova lei altera a Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) para recrudescer a política de combate às violações à ordem econômica. Importante ressaltar que as infrações à ordem econômica impactam fortemente a população, pois seus efeitos tendem a atingir de milhares a milhões de vítimas, tanto que a proteção à concorrência e ao consumidor está prevista na Constituição Federal e muitas de tais infrações são também consideradas crimes, conforme texto da lei 8.137/90. E como a nova lei poderá mudar o equilíbrio entre incentivos e desincentivos à prática de infrações concorrenciais? Novamente, devemos retornar à pergunta inicial: o crime compensa? Tratando-se de crimes econômicos no Brasil, a resposta até o momento é: SIM. Isso porque os infratores não devolvem às vítimas os ganhos obtidos ilicitamente. Apesar de existirem inúmeras demandas individuais e coletivas, além de ações civis públicas, que visam a reparação dos prejudicados por cartéis (pior das infrações à concorrência) e outras condutas de abuso de poder econômico, não há no Brasil ainda uma condenação final em favor das vítimas de qualquer um dos grandes cartéis condenados pelo CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. São muitas as dificuldades enfrentadas pelas vítimas na busca pela indenização de seu prejuízo e a lei recém-promulgada auxiliará no enfrentamento de algumas dessas questões. Destacam-se 3 temas principais do texto da lei 14.470/22: a criação do dano em dobro; a harmonização do prazo prescricional e a data inicial de sua contagem; e a vedação expressa à presunção de repasse do dano. A nova lei determina que todos os prejudicados por infrações à ordem econômica terão direito ao ressarcimento em dobro por seu prejuízo. É o chamado double damage, que tem como paralelo internacional o treble damage, previsto pela legislação americana para as infrações de cartel, entre outras. No ordenamento pátrio também não é novidade, visto que a pena civil ocorre em outras situações, como nos casos do segurador de má-fé, do cobrador de dívida já paga e do construtor invasor de má-fé1. A importância dessa previsão legal não reside apenas no fato (óbvio) de ressarcir em dobro a vítima das infrações concorrenciais, mas principalmente em gerar grande desincentivo à prática do ilícito. A persecução privada dos danos concorrenciais é essencial para complementar a iniciativa pública de punição dos infratores, pois torna o ilícito financeiramente inviável. Na medida em que o violador devolve todo o lucro que obteve com sua prática infratora e ainda paga uma multa ao Estado, ele passa a ter prejuízo com o ilícito. Mas ainda há potenciais ganhos derivados do fato de que a taxa de detecção das violações pelo Estado é inferior a 100% e que também são poucas as vítimas que buscam o ressarcimento por seus danos, por diversos motivos. Assim, a implementação do dano em dobro equilibra a situação. De outro lado, a nova lei também não descuida dos incentivos à própria descoberta dos ilícitos, ao usar o dano em dobro também como medida de aumento do incentivo à confissão das infrações por seus agentes. Tal efeito é obtivo pelo fato de o recente diploma excluir a imposição do dano em dobro para os signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação de prática com a autoridade de defesa da concorrência, bem como gerar uma excludente da responsabilização solidárias em benefício dos mesmos. O segundo ponto de importância da lei é a definição expressa do prazo e termo inicial da prescrição. Antes da promulgação da lei em comento, o prazo prescricional era dúplice, sendo de 5 anos para as vítimas enquadradas no conceito de consumidor do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e de 3 anos para as demais vítimas, conforme previsão do artigo 206, §3º, V do Código Civil. A partir de agora, todas as vítimas estão sujeitas ao prazo quinquenal. A nova lei também elimina em definitivo eventual dúvida que ainda houvesse sobre a interpretação legal do prazo inicial para a contagem da prescrição. O Tribunal de Justiça de São Paulo (perante o qual tramita a grande maioria das demandas de indenização por dano concorrencial do país) já havia consolidado o entendimento de que a data da publicação da decisão final do CADE demarca o termo de início da contagem da prescrição2, seguindo o entendimento das normas e decisões internacionais3. A nova lei, portanto, não inova, mas confirma a interpretação já adotada para a legislação vigente, na medida em que determina que a contagem do prazo prescricional só pode ser iniciada quando ocorre a ciência inequívoca do ilícito pela vítima (em respeito à já consagrada teoria da actio nata) e indica de modo expresso que tal ciência ocorre somente no momento da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE. Ainda, a nova lei determina expressamente que o repasse do sobrepreço não pode ser presumido e estipula que o ônus da prova de tal alegação é do réu, ou seja, do agente que infringiu a norma concorrencial. Novamente, o tema era objeto de muita discussão nos tribunais brasileiros e a solução podia ser obtida a partir da intepretação das normas já vigentes nos Códigos Civil e de Processo Civil. Contudo, a inclusão do §4º no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência é de grande importância para eliminar qualquer dúvida e definir cabalmente a regra processual aplicável. O uso da teoria do repasse dos danos pelos infratores é fonte de grande protelação processual e criava grandes dificuldades às vítimas, que não podiam ter acesso aos dados econômicos de formação de preço de toda a cadeia produtiva. Novamente, a solução trazida pela nova lei se alinha com as legislações americana e europeia, mantendo o Brasil na vanguarda da regulação sobre o tema. Por fim, vale dizer que o PL 11.275/18 previa em seu texto final a obrigatoriedade da inserção de cláusula arbitral nos acordos celebrados pelo CADE (seja leniência ou termo de cessação de conduta), de modo a delegar à vítima a escolha de qual procedimento utilizar para conduzir sua demanda (judicial ou arbitral), mas foi vetado pela Presidência da República. Certamente, a arbitragem traria impulso ainda maior às iniciativas de indenização dos danos concorrenciais, em razão da maior celeridade e tecnicidade de tal procedimento em comparação ao processo judicial. Mas tal veto não retira o brilho da lei 14.470, que nasceu vocacionada para mostrar que a partir de agora, no Brasil, o crime econômico certamente não compensa. ___________ 1 Vide artigos 773, 940 e 1.259 do Código Civil. 2 Vide decisões nesse sentido: TJ/SP - Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP - AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP - AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP - Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020.   3 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia (artigo 10º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho) e nos EUA (Clayton Act 15 U.S.C. § 16(i)) asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da concorrência. ___________ *Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Doutor, mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pela Análise Advocacia, pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior.
1 Introdução Nos últimos anos tem-se visto um aumento na busca por tratamentos faciais e corporais. Ao mesmo tempo, observa-se que os profissionais da saúde, notadamente, para fins deste artigo, da medicina e da odontologia, têm se dedicado bastante a métodos e técnicas de harmonização facial e corporal, seja para fins estéticos ou por motivos de saúde ou funcionais. Em tempos de hiperexposição nas redes sociais, em que se fala em tom de brincadeira que "só vale se postar", médicos e dentistas demonstram anseios pelo direito de divulgar resultados de tratamentos nas mídias sociais como forma de publicizar os procedimentos e técnicas que colocam a disposição dos pacientes, deparando-se com conflitos éticos e legais no que concerne à violação de direitos da personalidade e suposta mercantilização da profissão. Ambos os conselhos se manifestaram a respeito. 2 O atual estado da arte sobre divulgação de fotos de pacientes no Conselho Federal de Medicina O Conselho Federal de Medicina (CFM) enfrentou a matéria na resolução 2.126/15, que altera a resolução 1.974/2011, e estabelece critérios para a propaganda em medicina. Esta última norma, inclusive, dispõe, acertadamente, em seu texto que a publicidade médica deve ter fins educativos, diferenciando-se de anúncios de produtos e práticas comerciais.  Com efeito, a vida e o corpo humanos não são mercadorias, assim como não devem ser mercantilizados os cuidados com a pessoa. Reside aí a diferença entre se falar em "preço" e "valor" quando se faz menção ao ser humano na concepção kantiana de dignidade1. A res. 2.126/15 estabelece, na exposição de motivos, preocupação com o que chamou de "mudança avassaladora" ocasionada pelos avanços tecnológicos das mídias sociais, que passaram a permitir postagens imediatas, muitas vezes feitas por impulso, sem a necessária reflexão sobre abordagens e consequências, e que vieram a ocasionar "uma avalanche de demandas" nos conselhos ético-profissionais da área médica. Desta feita, considerando, inclusive, a proteção constitucional à vida privada, honra, e imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88), alterou o art. 13 da res. 1.974/11 para inserir a proibição à publicação de imagens de "antes e depois" de procedimentos. Mais do que isso, para garantir que os fins estabelecidos nas normas de ética médica sejam cumpridos, estabelece que a publicação reiterada de imagens de "antes e depois" por pacientes e terceiros, bem como elogios repetidos com frequência devem ser investigados pelos Conselhos Regionais de Medicina. A regra é clara no sentido de trazer um tratamento voltado a impossibilitar que a norma seja burlada de maneira indireta. Em que pese as não raras publicações de resultados de antes e depois de procedimentos que se pode ver nas redes sociais, e eventuais decisões favoráveis à prática de publicidade por médicos em juízo de primeira instância, o CFM tem logrado êxito e reverter decisões desse tipo em segunda instância e segue firme na defesa das normas éticas. Todavia, o tema está longe de ser pacificado e, não obstante nossa opinião em sentido contrário, considerando o risco que pode representar a mercantilização da saúde e uma eventual corrida em busca de resultados prometidos por profissionais2, é possível que haja mudanças de entendimento, a exemplo do que aconteceu no Conselho Federal de Odontologia. 3 Análise da Resolução 196/2019 do Conselho Federal de Odontologia O Conselho Federal de Odontologia (CFO), historicamente, dispunha de tratamento similar ao aplicado pelo Conselho Federal de Medicina no que diz respeito à publicidade. Do mesmo modo que o CFM, o CFO também rechaça a mercantilização da profissão e traz disciplina ética contrária a ver o paciente como "fatia de mercado". O ser humano é muito mais do que isso. No entanto, recentemente, o CFO, por meio da Resolução 196/2019, adotou posicionamento mais moderado a respeito da divulgação de fotos e resultados de tratamentos odontológicos nas redes sociais por profissionais da odontologia. Com efeito, a norma de 2019 considera o destaque que as mídias sociais têm conquistado como canais de divulgação dos temas mais diversos, dentre os quais se incluem temas e trabalhos odontológicos. Diante disso, considera imperiosa a "necessidade de se regulamentar os critérios de uso de expressões, imagens e outras formas que impliquem na divulgação da odontologia, dos cirurgiões-dentistas e dos tratamentos odontológicos". Observa-se, portanto, que diante da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de evitar a utilização das redes sociais para divulgar imagens de diagnósticos e resultados, o CFO preferiu atender aos apelos da classe e disciplinar a matéria. Apesar das críticas, pertinentes, à época, no sentido de que a Resolução 196/2019 seria incompatível com o Código de Ética Odontológica, que só permite a publicação de imagens de "antes e depois" para fins acadêmicos, não se pretende analisar esta abordagem no presente artigo. Pretende-se, aqui, analisar especificamente a tutela de direitos da personalidade na norma em comento. A esse respeito, mister ressaltar que a redação da Res. 196/2019 do CFO, ainda na parte dos "considerandos", reconhece que o direito à imagem é tutelado no ordenamento jurídico brasileiro com o status de direito fundamental pela Constituição Federal, e também pelo art. 20 do Código Civil, que disciplina a necessidade de autorização para divulgação da imagem de terceiros. Percebe-se, pois, que apesar do risco de mercantilização da profissão, o CFO permite a divulgação de autorretratos e de imagens de "antes e depois", mas desde que haja prévia e expressa autorização do paciente no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme dispõe os arts. 1º e 2º: Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. [...] Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. (Grifos nossos) Cumpre ressaltar que, conforme disciplina o artigo 3º da mesma resolução, a exceção de publicações científicas com a devida autorização, é vedada a publicação de fotos e vídeos do transcurso ou realização dos procedimentos odontológicos.  Ocorre que, apesar da Resolução do CFO ser muito clara sobre a necessidade de autorização prévia e expressa do paciente no TCLE, aparentemente muitos profissionais estão desconsiderando a segunda parte dos dispositivos supracitados (arts. 1º e 2º), além de desconsiderar completamente o artigo 3º da Resolução, posto que não são raras as ocasiões em que se observa divulgação de fotos e vídeos produzidos durante a realização de procedimentos. 4 A proteção do direito à imagem no ordenamento jurídico brasileiro É compreensível que o profissional se sinta envaidecido ou orgulhoso ao final de um trabalho bem sucedido, mister quando se traz satisfação pessoal ou maior e melhor qualidade de vida ao paciente, quando o procedimento, para além de resultados estéticos, tinha por objetivo corrigir distúrbios funcionais, como dificuldade de mastigação ou alterações na fala corrigidos após tratamentos ortodônticos e cirurgias ortognáticas. Todavia, por mais que o profissional se sinta "autor" daquele corpo ou, no caso dos cirurgiões dentistas, daquela face, não é de uma pintura ou escultura que se está a falar. O médico ou dentista não é autor de uma obra de arte sobre a qual detém os direitos autorais e, consequentemente, possibilidade de divulgar os resultados conforme sua vontade. Trata-se, o paciente, de uma pessoa, de um ser humano com valores ontológicos e cuja existência, em sua completude, é digna de respeito. Os direitos da personalidade que estão postos em tela, portanto, são outros, dizem respeito aos direitos de imagem daquele(a) que está se submetendo ao tratamento médico ou odontológico. Na lição do professor Paulo Lôbo, o direito à imagem se trata da reprodução da figura humana no todo ou em parte, cuja exposição não autorizada é repelida3. De fato, a Constituição Federal de 1988 tutela o direito à imagem na qualidade de direito fundamental, no art. 5º, X, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] (Grifos Nossos) Cumpre salientar, ainda, que o Código Civil atual cuidou dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21, tratando especificamente do direito à imagem no art. 20, onde resta claro que a divulgação ou reprodução da imagem de terceiros só é permitida se autorizada. Fala-se aqui da imagem externa da pessoa (retrato ou efígie), uma vez que a imagem atributo é tutelada pela garantia constitucional de proteção à honra. A partir da análise dos dispositivos da CF/88 e do Código Civil de 2002, compreende-se que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a divulgação não autorizada de fotos do paciente é passível de indenização por dano moral. Concorda-se com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald quando eles afirmam que decorre o dano moral da "simples e objetiva violação a direito da personalidade"4. Com efeito, a Constituição brasileira de 1988 tratou de ambos os institutos em conjunto no art. 5º, inciso X. Deve-se concluir, com Paulo Lôbo, que a "interação não é ocasional, mas necessária" (LÔBO, 2001, pág. 79). Observa-se que os "direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, possuem a mesma natureza do dano moral, também não patrimonial"5. Corroborando com este entendimento, a súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça disciplina que: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais". 5 Conclusões Em suma, eventuais permissões de divulgação de imagens de pacientes por normas éticas de conselhos profissionais só podem acontecer em consonância com o que disciplina a lei (Código Civil) e a Constituição Federal. Eventual permissão de divulgação de imagens de diagnóstico e resultado pelo CFM, notadamente fotos de "antes e depois", devem se adequar à proteção legal e constitucional, respeitando o direito de escolha do paciente, que deve autorizar expressamente em TCLE. A resolução 196/19 do CFO está adequada ao que diz o texto Constitucional e o CC/2002, uma vez que a divulgação de "antes e depois" só é permitida mediante autorização prévia do paciente em TCLE. Os profissionais, portanto, devem se adequar à resolução caso queiram utilizar fotos de pacientes para divulgar seus métodos e técnicas nas redes sociais, sendo a divulgação não autorizada passível de indenização por dano moral decorrente de violação de direito à imagem. _________________ *Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa é doutora e mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, com realização de estágio doutoral no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal da Paraíba. Associada do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Presidente do Instituto Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil Constitucional (IDCC). Advogada. Conselheira Estadual da OAB-PB. Secretária-Geral da Rede de Advogadas em Sororidade da OAB-PB. _________________ 1 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. 2 O perigo existe, sobretudo, em relação ao fato de que produto ou serviço prestado é realizado em um ser humano. O resultado é incerto, posto que o corpo humano não é uma ciência exata e nem sempre os resultados de uma pessoa se replicarão ipsis literis em outra. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. 4 Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241 5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80. _________________ Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80.
Na sessão do dia 9 de agosto de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal e Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial (REsp.) 2.009.210/RS, sedimentou o entendimento pelo qual Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica aos casos de responsabilidade pelo fato decorrentes de impactos ambientais das etapas do processo produtivo anteriores à colocação do produto no mercado. Tais situações, portanto, para além de seus óbvios efeitos no campo do direito ambiental, também repercutem no âmbito consumerista, caracterizando hipóteses de responsabilidade pelo fato do produto (CDC, art. 12). No julgamento daquele recurso, acompanharam unanimemente o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Na origem, a indenizatória teve como causa de pedir remota a produção de ruído intenso, emissão de fuligem, gases poluentes, materiais particulados, odores fétidos e vazamento de amônia decorrentes da atividade econômica desempenhada por sociedade empresária voltada ao beneficiamento, industrialização e comercialização de carnes de aves, que por diversas vezes já houvera sido alvo de processos administrativos e inquéritos civis por violação de normas de direito ambiental. Tal situação, que perdurara por vários anos, alegadamente acarretou à autora daquela demanda judicial, dentre outros sintomas, hipoxemia, fortes cefaleias, fadiga, ardência nos olhos, náusea, diarreia, vômito e mal-estar. Importante observar que estes fatos se reportam às etapas do processo de produção de proteína animal anteriores à introdução do produto no mercado, ou seja, àquelas fases que antecedem a aquisição ou utilização do bem propriamente ditas pelo destinatário final. No caso concreto, a vítima sequer chegou a consumir os produtos fabricados pelo frigorífico, mas residia próximo ao seu parque industrial, de modo que os danos lhe advieram pela exposição duradoura aos impactos ambientais da atividade econômica do fornecedor. Ao poluir o ambiente, o frigorífico ofendeu os direitos da personalidade e o direito à saúde da demandante, que foi equiparada a consumidor ao ser considerada vítima de acidente de consumo (CDC, art. 17), fazendo jus a indenização pelo fato do produto (CDC, arts. 12 e 17). Em suas razões de recurso especial, a autora do ilícito ambiental alegou, em síntese: a) não incidência do CDC às ações de indenização por danos morais fundadas em dano ambiental; b) não caracterização de acidente de consumo; c) não enquadramento da demandante/recorrida como consumidora por equiparação (bystander), e; d) impossibilidade de inversão do ônus da prova. Como se percebe, o debate girou em torno da natureza consumerista da relação jurídica entre a empresa poluidora e o particular vitimado por danos ambientais anteriores à inserção do produto no mercado de consumo. Num primeiro momento, considerando que o conceito jurídico de consumidor constante do art. 2º do CDC pressupõe a aquisição ou utilização de produto pelo destinatário final, poder-se-ia imaginar que prejuízos decorrentes de poluição industrial ficassem adstritos à legislação ambiental, não podendo ser açambarcados pela legislação consumerista. Todavia, como já tivemos oportunidade de defender alhures1, é plenamente possível equiparar a consumidor toda e qualquer pessoa que tenha sofrido danos oriundos dos impactos ambientais da produção, ainda que cronologicamente anteriores à disponibilização do produto ao público consumidor em geral, estendendo-lhe o regime jurídico protetivo do CDC. Isso ocorre, pois, a figura do bystander, descrita no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, rompe a lógica meramente contratual da relação de consumo, impondo-lhe uma perspectiva ampliada, de maneira a contemplar também todos os atingidos pelos efeitos ambientais prévios da produção, inclusive as futuras gerações. No Tribunal da Cidadania, o tema já vem sendo maturado há quase uma década. Em agosto de 2014, no julgamento do REsp 1.354.348/RS2, a Quarta Turma daquela corte, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, aplicou o prazo prescricional quinquenal do art. 27 do CDC à pretensão indenizatória decorrente da contaminação do solo e das águas subterrâneas na localidade onde o bystander residia. Ratificando o enquadramento da vítima do dano ambiental como consumidor por equiparação, a Segunda Seção do STJ, em abril de 2016, analisando o Conflito de Competência 143.204/RJ3, entendeu ser competente o foro do domicílio das vítimas do evento (CDC, art. 17 c/c 101, I) para conhecer e julgar indenizatória proposta por pescadores artesanais que tiveram suas atividades pesqueiras prejudicadas por derramamento de óleo em área marinha. Também aqui se buscava reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental, tendo sido os autores considerados vítimas de acidente de consumo. Mais recentemente, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.833.216/RO4, a Quarta Turma daquele colegiado expressamente afirmou que "a jurisprudência desta Corte Superior admite, nos termos do art. 17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais". Aliados a entendimentos sobre responsabilidade pelo fato do produto já consolidados no âmbito do STJ, os precedentes acima referidos nos permitem constatar que sua jurisprudência evoluiu no sentido de: a)       Equiparar a consumidor aquele que, mesmo não participando diretamente da relação de consumo, "venha a sofrer consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica"5; b)      Admitir a equiparação da vítima de danos ambientais a consumidor, por força do art. 17 do CDC6; c)       Reconhecer que o acidente de consumo caracterizador da responsabilidade pelo fato do produto pode ocorrer durante o processo de produção, antes da aquisição ou utilização do produto pelo destinatário final, ainda nas etapas de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, etc. O reconhecimento da responsabilidade do fornecedor pelo fato ambiental do produto, com a aplicação do CDC aos danos ecológicos oriundos das etapas industriais precedentes à colocação do produto no mercado, reafirma a interface indissociável entre os microssistemas protetivos do meio-ambiente e do consumidor, de modo a convergir a proteção consumerista à tutela ambiental, paradigma do direito do consumo sustentável. _____________ 1 RIBEIRO, Alfredo Rangel. Direito do Consumo Sustentável. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Pág. 262/263. 2 STJ, REsp n. 1.354.348/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe de 16/9/2014. 3 STJ, CC n. 143.204/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 13/4/2016, DJe de 18/4/2016. 4 AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021. 5 STJ, AgRg no REsp n. 1.000.329/SC, Quarta Turma, julgado em 10/8/2010, DJe de 19/8/2010; REsp n. 1.574.784/RJ, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 25/6/2018; REsp n. 1.787.318/RJ, Terceira Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 18/6/2020; REsp n. 1.327.778/SP, Quarta Turma, julgado em 2/8/2016, DJe de 23/8/2016. 6 STJ, CC 143.204/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 18/04/2016; REsp 1354348/RS, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 16/09/2014; AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021; AgInt nos EDcl no CC 132.505/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/11/2016, DJe 28/11/2016. _____________ *Alfredo Rangel Ribeiro é Advogado, sócio fundador do escritório de advocacia Santiago & Rangel Advogados. Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da UFPB. Professor titular do Departamento de Direito do Centro Universitário de João Pessoa. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa.  
Caio Júlio César é reconhecido, ainda hoje, como um general brilhante. Embora tenha promovido uma guerra ilegal e cometido inúmeras atrocidades (reconhecidas como tais até em sua época), muito do que se acredita saber sobre suas batalhas na Gália foram forjadas em seus famosos comentários, produzidos e divulgados ao longo do combate, com o propósito de informar e entreter a população romana. César tratou de reduzir os seus próprios riscos antes de atravessar o Rubicão. Já no final do Século XIX, nos Estados Unidos da América, Nikola Tesla e Thomas Edison disputavam o estabelecimento da forma de distribuição de energia elétrica que passaria a ser o padrão nacional. A arena daquele combate foi, justamente, a publicitária: Edison teria recorrido ao suposto risco do sistema concorrente propondo que o sacrifício da elefanta Topsy se desse com a utilização da tecnologia rival. A ampla divulgação do uso letal da invenção de Tesla ajudou a garantir o monopólio de patentes de Edison. Esses exemplos só reforçam aquilo que já sabemos: informação e publicidade entrelaçam-se desde sempre e com propósitos variados: seja para construir uma reputação, seja para fomentar o consumo. No Brasil as técnicas publicitárias sempre estiveram fortemente associadas ao 'comércio' razão pela qual a Constituição da República, ao estabelecer a competência legislativa sobre o tema, se refere à "propaganda comercial" (art. 22, XXIX) e é o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que lhe dá tratamento geral. Não é, contudo, apenas a atividade empresarial1 que se vale de estratégias de comunicação com a finalidade de viabilizar seus objetivos e desempenho. Também outras atividades econômicas o fazem, ainda que não 'mercantis'. Esta classificação, aliás, é, como se sabe, um resquício da antiga distinção entre atividades de conteúdo civil (profissões liberais e sociedades simples, por exemplo) daquelas de conteúdo outrora comercial (sociedades e atividades empresariais). Explicava-se, então, que atividades econômicas de cunho intelectual (como aquelas associadas às artes e às ciências) seriam distintas daquelas que buscariam o lucro por meio da organização dos fatores de produção (capital, mão de obra e insumos) e com isso, também seria o tratamento dispensado a cada atividade: dos tipos de registros até a estratégia de comunicação disponível. Entendia-se, então, que a publicidade não se destinava aos profissionais liberais, que construiriam sua clientela em conjunto com sua reputação. Contudo, como em outros pontos do Direito Privado brasileiro, a nitidez dos contornos desta distinção fica cada vez menos definida. Assim, por exemplo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça que exige que o produtor rural comprove o exercício de atividade empresarial para pretender a recuperação judicial2, também aceitou o processamento de pedido de associação civil educacional3. Contribuem em especial para essa 'sensação' de fluidez, talvez, a incidência da cláusula geral de boa-fé objetiva (impondo os deveres de transparência, informação e lealdade) e a ampliação da proteção do consumidor àqueles legalmente equiparados e aos vulneráveis expostos às práticas de mercado. Aliado a isso, o amplo acesso à Internet modificou não só a forma de expressão individual e a comunicação, como ampliou o espaço e o público para a autopromoção individual. O culto da celebridade e o apego a influenciadores gerou um novo padrão de mercantilização da comunicação em que todos podem estar sujeito ao merchandising e tudo pode ser objeto de publicidade. É neste espaço em transformação, então, que se encontram os limites da publicidade para algumas atividades econômicas não empresariais, tais como a Advocacia e os serviços de profissionais liberais da Saúde. Para destacar este ponto e entendermos o denominador comum para a publicidade profissional é que escolhemos analisar a utilização do paciente/cliente como porta voz da publicidade/marketing e como a Medicina, a Odontologia e a Advocacia lidam com esta forma de expressão publicitária. Como sabemos, proliferam nas redes sociais exemplos de publicações e fotos de celebridades (ou não) pacientes/clientes (ou não) indicando/visitando profissionais em seus consultórios/escritórios. No caso da Medicina e da Odontologia, seguem-se, ainda, as publicações explicativas de exames, procedimentos e/ou resultados com a imagem ou depoimento do paciente/cliente. O engajamento e a promoção destes posts são forma evidente de comunicação publicitária. Como não poderia deixar de ser, a regulamentação profissional dos profissionais da Saúde acaba se preocupando profundamente com a questão da imagem do paciente ao ponto de o Código de Ética médica (art. 75)4 e a regulamentação da publicidade médica (art. 3º, "g")5 proibirem totalmente sua exposição, mesmo como seu consentimento, como forma de divulgação de técnica, método e/ou resultado do procedimento. A regulamentação da publicidade odontológica, por sua vez, adota posição intermediária6, permitindo a foto de selfies com pacientes (art. 1º)7 e imagens do diagnóstico e conclusão do tratamento ("antes e depois" - art. 2º)8, desde que haja - em ambos os casos - o seu consentimento expresso, proibindo-se, contudo, imagens de materiais biológicos (§1º) e da realização do procedimento em si (art. 3º)9. Assim, enquanto os médicos não poderiam se valer de posts com pacientes (em situações gerais de visita, selfies, exames, comparações, procedimentos, etc.) como forma de publicidade (direta ou indireta), os odontólogos poderiam, desde que tomassem o cuidado de obter a autorização prévia e não divulgassem o procedimento em si. Na outra ponta do tratamento regulamentar, encontra-se marketing jurídico. Simplesmente não há detalhamento do tratamento da imagem do cliente para fins de publicidade para além de uma menção exemplificativa10. Selfies, depoimentos gravados e visitas ao escritório estariam liberadas? Pode-se dizer, então, que as diferentes regulamentações guardam um denominador comum? Acreditamos que sim. Isso porque todas as três profissões analisadas pautam-se pelo sigilo profissional11 e pela não 'mercantilização' de sua atividade12. Desta forma, o dever de sigilo deixa de estar apenas na esfera ético-profissional para também instruir a relação contratual mantida com o paciente/cliente. Como se sabe, o descumprimento deste dever é considerado violação positiva do contrato e, como tal, faz incidir as consequências da responsabilidade obrigacional (dentre elas, as indenizatórias). Além disso, deve-se sempre destacar que o serviço quando colocado no mercado (por qualquer agente, empresarial ou não) deve obedecer às normas regulamentares competentes, dentre elas, aquelas relacionadas ao exercício profissional. Assim, o prestador de serviço que utiliza a imagem de seu cliente/paciente para fins publicitários pode estar colocando no mercado um serviço viciado (Art. 20, §2º13 do CDC) e, portanto, realizando uma prática comercial abusiva (art. 39, VIII14 do CDC), dando ensejo, também, às consequências administrativas cabíveis (art. 56 do CDC) para além das indenizatórias. Deve-se, ainda, lembrar que estão equiparados a consumidores todos aqueles sujeitos a este tipo de prática (art. 29 do CDC). Além disso, a imagem - por si só - é um dado do paciente/cliente e, nos termos da lei 13.709/18, se o seu tratamento se der sem sua autorização e/ou causar dano, haverá responsabilização civil solidária do controlador e do operador de dados (art. 42 e seguintes), além, é claro, das consequências administrativas correspondentes. Por fim, lembre-se que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça considera que a utilização desta imagem pode, eventualmente, motivar uma pretensão indenizatória que prescinda da demonstração de dano15. Assim, resta claro que os prestadores de serviços profissionais devem avaliar a exposição de seus clientes/pacientes com finalidade publicitária como um potencial risco. A avaliação desta relação de custo x benefício que pode ser encarada, hoje, como o denominador comum buscado. ______________  Frederico Glitz é advogado, mestre e Doutor em Direito Privado e com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias. ______________  1 Entendida como "atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços" (art. 966 do Código Civil). 2 Tema Repetitivo 1145 - "Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro." 3 "(...) No âmbito de tutela provisória e, portanto, ainda em juízo precário, reconhece-se que há plausibilidade do direito alegado: legitimidade ativa para apresentar pedido de recuperação judicial das associações civis sem fins lucrativos que tenham finalidade e exerçam atividade econômica." (STJ, AgInt no TP nº 3654 / RS, julgado em 08/04/2022). 4 "Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente." (Resolução CFM nº 1.931/2009). 5 "Art. 3º É vedado ao médico: (...) g) Expor a figura de seu paciente como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, ainda que com autorização expressa do mesmo, ressalvado o disposto no art. 10 desta resolução [trabalhos e eventos científicos]; (Resolução CFM nº 1.974/2011). 6 "Art. 44. Constitui infração ética: (...) VI - divulgar nome, endereço ou qualquer outro elemento que identifique o paciente, a não ser com seu consentimento livre e esclarecido, ou de seu responsável legal, desde que não sejam para fins de autopromoção ou benefício do profissional, ou da entidade prestadora de serviços odontológicos, observadas as demais previsões deste Código;" (Resolução CFO nº 118/2012). 7 "Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 8 "Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 9 "Art. 3º. Fica expressamente proibida a divulgação de vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo ao transcurso e/ou à realização dos procedimentos, exceto em publicações científicas." (Resolução CFO nº 196/2019) 10 Quando aborda a criação de conteúdo, o Anexo do Provimento OAB 205/2021 menciona que ela "deve ser orientada pelo caráter técnico informativo, sem divulgação de (...) clientes (...)." 11 Arts 73 e seguintes da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 5º, II da Resolução CFO nº 118/2012 e Art. 35 e seguintes da Resolução OAB nº 02/2015. 12 Art. 58 da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 4º, parte final, da Resolução CFO nº 118/2012; Art. 4º do Provimento OAB nº 205/2021 13 "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...) § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." (grifo nosso). 14 "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);" (grifo nosso). 15 Por exemplo, Súmula STJ nº 403: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais."
Introdução  Um dos temas relevantes e polêmicos no âmbito da responsabilidade civil guarda relação com o arbitramento judicial dos danos imateriais. Como quantificar, por exemplo, a lesão, a ofensa, ao corpo? à honra, ao nome? Daniel Silva Fampa e João Vitor Penna formulam a seguinte pergunta: "Quanto vale uma indenização por dano extrapatrimonial?1 As indagações acima trazidas, em que pese tenha a parte quantificado na petição inicial, a título de pedido, ficarão a cargo do juiz no sentido da resposta em sede de arbitramento da quantia a ser devida. Discussão, então, que pode ocorrer, é de as partes não se contentarem com o valor: uma, dizendo ser irrisório; a outra, muito elevado, podendo, inclusive, o debate ir para a seara de um julgamento realizado fora dos limites do pedido. Portanto, nossa proposta, nestas breves linhas, é a de analisar o processo civil válido à luz do arbitramento judicial contextualizado ao pedido feito pela parte.  1. Arbitramento do dano imaterial  Em relação ao arbitramento, percebemos que a doutrina destaca a atuação do magistrado no caso concreto, pois:  O juiz, investindo-se na condição de árbitro, deverá fixar a quantia que considera razoável para compensar o dano sofrido. Por isso pode o magistrado valer-se de quaisquer parâmetros sugeridos pelas partes, ou mesmo adotados de acordo com sua consciência e noção de equidade, esta, na visão aristotélica de "justiça no caso concreto"2.  1.1 O CPC e a exigência do valor pretendido pela parte  O Código de Processo Civil é muito claro quanto à exigência de que a parte indique o valor da causa, também em relação ao dano imaterial: "Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido". Pedido, a seu turno, significa o "[...] que o autor veio buscar em juízo com a sua propositura".3 Mesmo que parte traga ou até sugira determinada quantia, o certo é que a reparação do dano imaterial deverá ocorrer através da função compensatória, como leciona Bruno Miragem, justamente pela natureza da ofensa, que torna impossível o retorno ao estado anterior ao da lesão.4 2. O arbitramento à luz do art. 492, do CPC  A norma do caput do art. 492, do Código de Processo Civil, apresenta a seguinte redação: "Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado". A doutrina, ensinando sobre o dispositivo processual civil acima transcrito, aduz que: "A regra do processo civil é que a sentença seja conforme ao pedido do demandante".5 De sorte que, caso não observada tal regra pelo juiz, a sentença se caracterizará como infra petita, ou seja, aquela que deixa de analisar um pedido ou um dos pedidos cumulados. Pode ocorrer de ser extra petita (justamente a discussão mais abaixo trazida ao STJ), com julgamento fora do pedido feito pelo autor da ação. Pode, ainda, revelar-se a sentença ultra petita, quando o órgão jurisdicional vai além dos limites do pedido. Independentemente desses casos, haverá desconformidade com o pedido, podendo a sentença vir a ser invalidada.6 Neste sentido ilustramos com a posição do Superior Tribunal de Justiça: Ao analisar a peça exordial, constata-se que houve requerimento pela condenação a título de dano moral em valor a "ser fixado por V. Exa. em não menos que 40 salários mínimos": [...] Tem-se, portanto, que não foi estabelecido valor indenizatório máximo referente aos danos morais, tendo a autora feito mera estimativa e deixado a quantificação ao arbítrio judicial.7 3. Conclusão  Em que pese às dificuldades de arbitramento do valor a título de danos imateriais, haja vista as inúmeras variáveis ou critérios a ser adotado pelo julgador, uma conclusão nos parece certa: em havendo a prova da ofensa a direitos da personalidade, o magistrado, ao arbitrar e, antes, apresentar a fundamentação clara no sentido de como julgou procedente o pedido e chegou à quantia, não terá violado a norma do art. 492, do CPC, independentemente do valor indicado pelo autor, se a título de sugestão trazida na inicial. Por outro lado, se o demandante define um valor (e não o sugere), parece-nos certo afirmar que o arbitramento não pode superar o valor do pedido, sob pena, aí sim de ocorrer o julgamento justamente fora dos limites do pedido. Por outro lado, isso não significa dizer que o juiz, convencido da prova da ofensa a direitos da personalidade fique refém do valor atribuído à causa, mas, sim, arbitre quantia a observar o limite máximo, mas não mínimo, justamente pela compensação que a quantia oferece dada a natureza do dano. Portanto, julgado procedente o pedido, mas em relação ao quantum, o ordenamento não o vincula de forma automática ao pedido. Tanto sentença como acórdão, ao chegarem ao arbitramento que, no caso concreto, observe as lições da doutrina em relação às funções da responsabilidade civil, com toda a certeza, terão mirado a lisura do processo civil no ponto:   (1)    Função reparatória: a clássica função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado, como forma de requilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil ao ofensor como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: possuir o objetivo de inibir atividades potencialmente danosas.8  De sorte que a validade do processo não poderá, neste aspecto, ser questionada ao ponto de nulidade da sentença ou do acórdão, como muito bem elucidado pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve o julgador fazer a diferença entre um pedido a título de valor sugerido ou meramente estimativo, daquele pedido com valor certo, previamente definido pela parte.  ____________ *Felipe Cunha de Almeida é Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor, advogado, parecerista. ____________ 1 FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 426. 3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 440. 4 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 211. 5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 6 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 7 Ementa: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. VIOLAÇÃO AO ART. 492 DO CPC/2015. PEDIDO EXORDIAL MERAMENTE ESTIMATIVO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O magistrado, ao arbitrar a indenização por danos morais, não fica vinculado ao valor meramente estimativo indicado na petição inicial, podendo fixá-lo ao seu prudente arbítrio sem que se configure, em princípio, julgamento extra petita. Precedentes. 2. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no REsp n. 1.837.473/PR Rel. Min: Raul Araújo. Julgado em: 26/11/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201902709828&dt_publicacao=19/12/2019. Acesso em: 26 ago. 2022). 8 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 40. ____________ BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.  BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 de março de 2015. Disponível em: .  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.  FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022.  FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015.  GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.  MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.  MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 
No começo de 2022, foi lançado o documentário "Pai Nosso?" no Netflix1, que trata da história do médico Donald Cline. Cline foi um especialista em reprodução humana assistida muito famoso nos anos de 1970. Ele realizou diversos procedimentos de RHA, sempre alegando que estava utilizando material genético de um doador ou do próprio casal, como de praxe nesta modalidade de prestação de serviços. Entretanto, anos depois, por meio de teste de ancestralidade e utilização de um site, diversas pessoas começaram a encontrar meio-irmãos desconhecidos. Ao longo do documentário, descobre-se que espantosamente o médico utilizava o próprio material genético na inseminação das mulheres, sem qualquer consentimento ou informação prévia, tendo gerado uma "legião" de "meio-irmãos", muitos deles convivendo, estabelecendo laços de amizade ou vínculos de trabalho sem ter ideia da origem genética comum.  O documentário relata de forma sensível as reações emocionais dos envolvidos, bem como a "saga" em busca de sua punição. Devido às leis norte-americanas da época, o ato cometido pelo médico não se caracterizou como crime. Ele respondeu por obstrução de justiça, tendo permanecido um ano em liberdade condicional, além do pagamento da multa. Um ano após a multa, o médico entregou sua licença para o Conselho Médico e foi decidido que ele jamais poderia se inscrever novamente nem poderia ter sua licença restituída. Em 2019, em Indiana, foi aprovada a lei que tornava crime a "fraude na fertilização". Assim, caso outro médico viesse a realizar a mesma conduta que Cline, responderia por ato ilícito no âmbito penal. Apesar da grande discussão criminal da conduta do médico, outra esfera do direito também foi violada - o campo do Direito Civil - mais especificamente o direito contratual e a responsabilidade civil. Pensando no ordenamento jurídico brasileiro, a reprodução humana assistida é exteriorizada na forma de um contrato, que consiste em um negócio biojurídico2, porquanto reveste-se dos pressupostos de um acordo de vontades juridicamente tutelado. Tal documento contém os termos estipulados pelas partes, segundo as diretrizes da recentíssima resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina. Dessa forma, há uma responsabilidade consubstanciada na imprescindibilidade de cumprimento integral das cláusulas ali pactuadas, caso contrário é possível a discussão tal violação. Segundo Flaviana Rampazzo Soares3, a responsabilidade negocial exige um vínculo obrigacional prévio entre as partes e a ocorrência de um dano, devido ao descumprimento, total ou parcial, do negócio. Tal situação se amolda quando há um contrato de prestação de serviços relacionados  à reprodução humana assistida entre a clínica e o paciente, e este acordo não é cumprido. No Brasil, um caso de grande repercussão  - amplamente divulgado pela mídia, à época - envolvendo um médico especialista em reprodução humana assistida, foi o de Roger Abdelmassih. Ele foi acusado de ter cometido diversos crimes de estupro e de manipulação genética irregular contra 74 pacientes, entre 1990 a 2008. No âmbito da responsabilidade civil, o mencionado profissional da área da saúde foi condenado a pagar indenização no montante de R$500 mil reais a título de danos morais a um casal de irmãos gêmeos porque ele trocou o material genético durante o procedimento. Assim, foi concluído que o médico utilizou o material genético de um desconhecido sem o consentimento nem a autorização dos pais4. O termo de consentimento consiste em um documento importantíssimo para garantir que a informação foi efetivamente prestada ao paciente e que este aceitou se submeter ao procedimento ou ao tratamento. Em 2018, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão em que condenou um hospital ao pagamento de R$200 mil a um paciente e seus pais, pela falta de informação sobre um procedimento cirúrgico. No caso por último mencionado, o paciente tinha sofrido um traumatismo crânio-encefálico após um acidente e tinha tremores no braço direito. O médico sugeriu um procedimento cirúrgico para que o paciente retornasse com os seus movimentos. Entretanto, após a cirurgia, o paciente teve uma piora do seu quadro clínico, não conseguindo mais andar e tendo se tornado dependente de cuidados específicos. Segundo  a perícia, embora não houvesse ocorrido erro médico,  o  resultado da cirurgia era um risco do paciente que não foi informado . No caso em tela, não havia Termo de Consentimento. Dessa forma, fica evidente a importância da presença desse documento. Segundo a Resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina, o termo de consentimento deve seguir a seguinte formalidade e conteúdo: 4.O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas  de  reprodução  assistida.  Os  aspectos  médicos  envolvendo  a  totalidade  das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como  os  resultados  obtidos  naquela  unidade  de  tratamento  com  a  técnica  proposta.  As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo  com  a  concordância,  por  escrito,  obtida  a  partir  de  discussão  entre  as  partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida. Flaviana Rampazzo Soares, com muita propriedade, aponta no mesmo sentido: O consentimento esclarecido tem, em seu núcleo, uma permissão que também é decisão proveniente de processo informativo e deliberativo delineado, percorrido e experimentado pelo paciente e, em regra, acompanhado pelo médico, em maior ou menor extensão, de acordo com as circunstâncias concretas.5 Retornando à análise sobre a  troca de material genético, nos Estados Unidos, foi noticiado em 2019, que uma clínica foi processada por esse motivo. No caso em tela,  um casal asiático teve dois filhos sem nenhum traço dos pais. Por meio de exame, foi comprovado que o material genético utilizado, tanto masculino como feminino, não era do casal, mas sim de outros pacientes . Apesar da manifestação de vontade do casal no sentido de permanecer com as crianças, tiveram que entregá-las aos pais biológicos. Na ação movida pelo casal contra a clínica, a alegação central foi imperícia médica, negligência, agressão, inflição intencional de sofrimento emocional e quebra de contrato6. Ademais, é importante destacar que, no caso de procedimento de reprodução humana assistida, deve-se ressaltar dois momentos: a) Antes da realização do procedimento, a clínica é responsável por manusear e armazenar todo o material, devendo mantê-lo em condições adequadas; b ) No momento da realização do procedimento, o médico tem a responsabilidade de realizar o procedimento na forma acordada7, lembrando que não é possível acordar de forma contrária à lei nem à Resolução do Conselho Federal de Medicina. Em caso de descumprimento de qualquer dessas etapas, é possível requerer a responsabilização civil dos envolvidos, como aconteceu no caso do médico Roger Abdelmassih. O procedimento de reprodução humana assistida no Brasil tem sido cada vez mais popular, culminando até na  "técnica" (não "assistida"- diga-se de passagem) de inseminação caseira, que não é recomendada pelas autoridades sanitárias, por razões evidentes e preocupantes.  Já em relação aos procedimentos realizados em clínica, o SISEmbrio emitiu seu 13º Relatório do Sistema Nacional de produção de embriões, que constatou que 100380 embriões  foram criopreservados em 2019, correspondendo a um aumento significativo do número de criopreservações. Em decorrência desse grande número de embriões criopreservados (excedentes), é muito importante que haja a devida e efetiva fiscalização para que situações de troca ou substituição sem autorização não se concretizem. Mesmo havendo a possibilidade de resolver os casos na esfera da responsabilidade civil, além da esfera penal, a valoração pecuniária se torna a única sanção possível, apesar de incapaz de sanar os prejuízos  no âmbito existencial dos envolvidos. Assim, impedir ou dificultar  a ocorrência de tais casos, parece ser a melhor alternativa. De fato, a relação de confiança8 que se estabelece nos bionegócios reprodutivos reveste-se de caráter peculiar, porquanto embora se trate de uma tentativa (com o auxílio das novas tecnologias) de geração de filhos, por meio de serviço altamente especializado, o "pano de fundo" existente transcende questões patrimoniais. Ora, lida-se com sonhos compartilhados pelos contratantes e terceiros voltados à concretização de projeto parental e - para muitos - ao atingimento da felicidade e plenitude existencial. Neste sentido, Carla Froener e Marcos Catalan: É inconteste que o avanço da biotecnologia despertou o seu interesse, em especial, por conta dos sonhos que involucra, sonhos que vão da aplicação de fármacos tonificantes ou de realização de cirurgias plásticas rejuvenescedoras at e a gestação de filhos que talvez - e apenas talvez - tragam alguma esperança a vidas que parecem despidas de sentido.9 Entretanto, para além dos motivos ensejadores da avença entre a clínica e o paciente, inconteste que o material genético criopreservado, bem como os embriões efetivamente gerados, merecem cuidado, zelo e comprometimento em relação ao seu armazenamento e utilização correta, tempestiva e responsável ética e juridicamente, a fim de que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em pesadelo inábil a ser "apagado", ainda que com o auxílio da tutela ético-jurídica. Referências FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reproducao humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015. SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006. SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021. SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021. __________ 1 Netflix. Acesso em 18.10.22. 2 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. 3 SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021.  4 Disponível aqui. Acesso em 15.10.22. 5 RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 246 6 Clínica dos EUA é processada por trocar embriões fertilizados in vitro. Acesso em 10.10.22 7 PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015.  8 Neste sentido, ao  mencionar os contratos de telemedicina, Fernanda Schaefer: "Destarte, o princípio da confiança e um dever necessário  ser observado pelas partes contratantes, em especial por médicos e pesquisadores, face a grande vulnerabilidade técnica, cultural, física e emocional de seus pacientes ou pesquisados, pois e um dos parâmetros para a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana em todas as suas vertentes, inclusive bioética."  SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006.p. 144. 9 FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020, p.84.
terça-feira, 1 de novembro de 2022

Sigilo médico e violação positiva do contrato

No âmbito da coercibilidade juspositiva do dever de boa-fé objetiva nos contratos médicos, é essencial o instituto da responsabilidade civil, em especial, a aplicação da teoria da violação dos deveres anexos, derivados do mister de lealdade, em todas as fases contratuais, também denominada de violação positiva do contrato. Trata-se da teoria que originalmente surgiu no Direito alemão, tendo como principal expoente Karl Larenz, mas que chegou a ter desdobramentos de forma autônoma no Brasil e em Portugal. Pode ser atualmente apontada como mais um subsídio de grande valia para perseguir a observância do sigilo médico na prática clínico-hospitalar, baseando-se no dever de boa-fé objetiva, sob pena de responsabilidade civil fundamentada na violação desse princípio geral. A responsabilidade civil contratual difere da responsabilidade extracontratual delitual. Nesta, o objeto do instituto é a reparação de um dano ilegalmente causado por uma pessoa, fora de uma relação contratual, em um cenário no qual, na maioria dos casos, a vítima e o autor são desconhecidos entre si até a ocasião do ato danoso, ao passo que a responsabilidade contratual advém das obrigações decorrentes dessa espécie de negócio jurídico, quando se configura, em tese, um inadimplemento. Na evolução da responsabilidade contratual, merece destaque a teoria da violação dos deveres anexos ou da violação positiva do contrato, a qual defende que, mesmo ocorrendo o adimplemento de uma obrigação principal contratual, seja configure um inadimplemento, relativo ou absoluto, por terem sido transgredidos outros deveres pautados na lealdade. Na violação positiva do contrato, tal como preceitua Menezes Cordeiro1: A boa-fé é chamada a depor em dois níveis: no campo da determinação das prestações secundárias e da delimitação da própria prestação principal, ela age sobre as fontes, como instrumento de intepretação e de integração; no dos deveres acessórios, ela tem papel dominante na sua gênese [..]. Os deveres acessórios, reportados à boa-fé, traduzem, deste modo, uma síntese histórica, típica nos quadros da terceira sistemática e da evolução juscientífica subsequente, entre a consideração central do problema, ditada pelos estudos teoréticos da complexidade inter-obrigacional e o influxo periférico adveniente de problemas reais e concretos, veiculada pela prática da violação positiva do contrato, na parte relevante desta, para o efeito em causa. Os deveres resultantes do princípio da boa-fé são chamados de deveres secundários, anexos, instrumentais2, ou, ainda, de deveres acessórios de lealdade. Fazem com que as partes sejam obrigadas a, na pendência contratual, não se comportar de modo que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações. Da aplicação da boa-fé objetiva, surgem também deveres de atuação positiva, como o dever de sigilo em relação aos elementos obtidos por via de pendência contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte; impondo atuação com vista a preservar o objetivo e a economia contratuais.3 Pontes de Miranda4 explica que esses deveres são como deveres-meio, deveres de atitude ou conduta, que impõem a necessidade de haver diligência e compreensão recíproca, com o objetivo de que a prestação se cumpra, atinja o seu fim do melhor modo possível. Martins-Costa5 classifica os deveres obrigacionais decorrentes da boa-fé da seguinte forma: a) deveres anexos ou instrumentais - servem para otimizar o adimplemento satisfatório, fim da relação obrigacional, não dizem respeito ao que prestar, mas como a prestação ocorre; b) deveres de proteção ou laterais -  destinados a implementar uma ordem de proteção entre as partes, não se ocupam do prestar, mas do interesse de proteção; têm o fito de evitar a ocorrência de danos injustos para a contraparte da relação obrigacional. Sabendo que a pauta da boa-fé faz referência ao resgate da confiança manifestada e posta em causa, bem como a consideração da reciprocidade entre as partes,6 apesar de serem nomeados como deveres acessórios, é possível afirmar que "os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio conteúdo dos deveres principais".7 A obediência à boa-fé deixa de configurar como mero dever reflexo, secundário, incidental, como se tivesse menos relevância que a obediência a um outro dever tido como 'principal'. A relevância desse raciocínio não se circunscreve na área teórica, volta-se para que na prática da relação obrigacional, as partes contratantes vislumbrem o dever de comportamento probo com a relevância que o princípio geral em questão demanda. Apesar da importância da boa-fé, deve-se alertar que esse princípio não é a resposta de todos os problemas da responsabilidade civil,8 e nem se tem a pretensão de que ele seja suscitado como a dignidade da pessoa muitas vezes tem sido apontada, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, como se fosse uma salvação para todos os dilemas jurídicos. O que se defende é o aproveitamento das funções principiológicas da forma mais completa e ponderada possível, utilizando a capacidade integradora, construtiva e interpretativa da boa-fé objetiva. É verdade que o princípio geral em enfoque apresenta sim a subjetividade das suas raízes morais, como já se apontou, mas deve-se atentar que, ao ser concretizado no âmbito de aplicação das relações clínicas, os parâmetros da sua observância vão se mostrando cada vez mais explícitos, palpáveis e objetivos. Sob essa perspectiva, pode-se, com tranquilidade, asseverar que na relação clínica é possível que um médico utilize da melhor forma a técnica científica para a qual teve formação e domina, chegando a curar, diminuir os sintomas ou dar conforto paliativo ao paciente e, ainda assim, em relação à sua prestação obrigacional, seja configurado um inadimplemento, por violação positiva do contrato - em outros termos, por ter violado a boa-fé objetiva - na hipótese, por exemplo, de ter contrariado o segredo médico no curso do tratamento. Na adoção da perspectiva de prestação obrigacional ampliada, conforme a teoria social dos contratos e a teoria da violação dos deveres anexos, pode-se frisar, pois, que o dever do médico não se limita à prática da obrigação tradicionalmente tida como principal. Sendo assim, tão ou mais importante, mostra-se a persecução da honestidade e de seus valores correlatos na prática científica da medicina. O adimplemento do contrato médico somente estará completamente concluído quando em todas as fases contratuais for observada a obediência à boa-fé objetiva. Esclarece-se, pois, que ao lado da mora e da impossibilidade de cumprimento, a violação positiva do contrato corresponde a uma terceira espécie de descumprimento das obrigações, e abrange as hipóteses de mau cumprimento da prestação principal e da inobservância dos deveres acessórios, dentre estes, o dever de proteção, de informação e de lealdade.9 Como no âmbito da relação médico-paciente, a violação mais latente da proteção, do resguardo informacional e da lealdade se materializa no desrespeito ao sigilo médico; conclui-se que a boa-fé objetiva figura como mais um argumento de suma importância para se proteger juridicamente este que é um dos mais antigos preceitos da Ética Médica. Como contraponto, no rol de possíveis justificativas para o afastamento do sigilo médico, pode-se apontar a teoria do incumprimento eficiente para, em sede de análise econômica do Direito, verificar a plausibilidade da sua aplicação às questões que dizem respeito à proteção dos dados clínicos. O incumprimento eficiente, tal como explicita o Professor Fernando Araújo,10 resulta da junção de duas ideias: o contrato é mero instrumento de afetação de recursos econômicos, por meio da interdependência e das trocas. Para que se alcance a eficiência social, faz-se necessário que os ganhos de uns não impliquem em perdas dos demais, levando em conta a eficiência dos atos cujos benefícios ultrapassem, ainda que apenas marginalmente, a indenização e que evite o averbamento de perdas por qualquer das partes. O incumprimento é tido como eficiente nas hipóteses em que o inadimplemento gera mais ganhos que os prejuízos do credor frustrado. Há o aumento de bem-estar para uma das partes, sem que enseje perda de bem-estar para outrem. Em muitos casos, o incumprimento eficiente, na verdade, deveria ser designado como ajustamento eficiente, pois consiste no reconhecimento de alternativas mais vantajosas à continuação do contrato.11 Salienta-se que eficiente "é aquilo que maximiza a finalidade das partes, é aquilo que faz justiça à intenção delas".12 Com isso, é possível vislumbrar alguns casos excepcionalíssimos, em que seria viável suscitar a teoria do incumprimento eficiente para justificar uma violação do sigilo médico, por exemplo: os casos em que há indícios relevantes de que a recusa aos tratamentos evidencia um quadro depressivo. Sendo assim, a participação da família seria de grande importância, para contribuir com a deliberação sobre qual é a melhor conduta clínica a ser utilizada. Em razão das dificuldades existentes na prática clínica, o paciente pode esquivar do paternalismo médico, há tanto tempo sedimentado no senso comum; bem como devido aos riscos que essa teoria apresenta à construção da confiança e a sedimentação da boa-fé objetiva podendo, inclusive, fragilizar a teoria da violação positiva do contrato. Acredita-se que a adoção da teoria do incumprimento suficiente à relação médico-paciente apresenta mais probabilidade de agravar a vulnerabilidade do enfermo, que potenciais benefícios. Julga-se, pois, ser preferível adotar construções teóricas que exaltem e consubstanciem o respeito à confiança, como princípio ético e jurídico. No exemplo suscitado acima, o problema poderia ser resolvido com base na aferição da capacidade de consentir, para legitimar ou não a vontade do enfermo, sem necessitar recorrer à teoria do incumprimento suficiente.  Nessa acepção, a coercibilidade do Direito serve para suscitar, em âmbito de responsabilidade civil, um dever de reparação, pautado na violação positiva dos contratos, embasado no entendimento de que o desrespeito ao sigilo médico caracteriza a violação da confiança e, por consequência, resulta na desobediência do princípio geral que preconiza a lealdade no âmbito contratual, a boa-fé objetiva. Por fim, no que tange a extensão temporal do dever de sigilo médico, com base na pós-eficácia de alguns direitos da personalidade, especialmente dos que se ligam à privacidade,13 é plenamente possível afirmar que após a morte do paciente remanesce a incidência da boa-fé objetiva a ponto de haver a sobrevida do dever de sigilo profissional no âmbito clínico e hospitalar, sob pena de configurar a violação positiva do contrato. __________ 1 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 602. 2 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 37. 3 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 606. 4 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo 26. Rio de Janeiro: Editor Borsói, 1959, p. 282. 5 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Ebook, p. 155-158. 6 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 410-411. 7 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 34. 8 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 160. 9 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol II., Coimbra: Almedina, 1984, p. 1291. 10 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735. 11 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735-737. 12 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 241, grifos do autor. 13 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Direito ao sigilo médico após a morte do paciente. Curitiba: Juruá, 2022.
Muito embora a revolução tecnológica tenha provocado impactos sociais outrora apenas imagináveis em obras de ficção científica, talvez a maior ruptura tecnológica da trajetória humana esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,1 no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, seja pelas vias da biotecnologia, da nanotecnologia e/ou da neurotecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo, portanto, empregar toda a tecnologia possível para permitir que seres humanos transcendam suas capacidades naturais, o que, em princípio, propiciará o surgimento de uma nova categoria de entes artificialmente aprimorados em relação às limitações que naturalmente demarcam a condição humana. O transhumanismo propõe mais do que simplesmente usar a tecnologia para sanar deficiências humanas, mas para aperfeiçoar as capacidades das pessoas, inclusive as que sejam perfeitamente saudáveis. Há, com efeito, sensível distinção entre o uso de aparatos que visem a reparar enfermidades ou debilidades - que variam entre o uso de simples lentes de contato até a inserção de instrumentos como marcapassos ou próteses no corpo humano - e o emprego de meios tecnológicos para facultar a seres humanos a superação de suas naturais limitações. Enquanto aqueles permitem a uma pessoa corrigir imperfeições e viver em paridade de condições com os demais, estes objetivam dotar indivíduos de condições sobre-humanas, naturalmente inatingíveis por qualquer pessoa. Aí reside o núcleo da ideologia transhumanista: promover, por meio da tecnologia, melhoramentos capazes de dotar os indivíduos de benefícios físicos, como a força e a resistência, e também psíquicos e intelectuais, como uma memória prodigiosa e uma inteligência capaz de processar informações tal qual uma máquina faria. Por se tratar de intervenções realizadas sobre o organismo humano, tais aprimoramentos são também denominados biomelhoramentos. Das diversas consequências decorrentes das intervenções transhumanistas, emergem potenciais problemas como o crescimento exponencial e o envelhecimento sem precedentes da população, as alterações drásticas sobre o corpo humano e a sua definitiva fusão com mecanismos tecnológicos. O propósito destas linhas, todavia, é o de analisar um problema em particular: o que dizer da incidência de regras concernentes à responsabilidade civil, inclusive de sua responsabilização pelos eventuais danos que causarem a terceiros, particularmente aos demais seres humanos que não se sujeitarem às intervenções biotecnológicas de caráter melhorador? Nos domínios da responsabilidade civil, os problemas que a revolução transhumanista coloca são de fato perturbadores; afinal, calcado na perspectiva do princípio do neminem laedere, que traduz a ideia de "a ninguém ofender", a verificação danos decorrentes da conduta de um indivíduo implica, como corolário, o dever de compensar o que fora perdido2. Não é difícil imaginar que novos avanços tecnológicos impliquem a inserção de novos riscos sociais, potencializando-se a ocorrência de um sem número de danos. Com efeito, a responsabilidade civil tende a ser um dos ramos do Direito mais afetados perante os desenvolvimentos tecnológicos que globalizam os ideais e práticas transhumanistas; afinal, a dotação de especiais capacidades aprimoradas a seres humanos pode vir a constituir mais uma via para a consumação de novos e extremamente gravosos danos, porventura de difícil reparação.  A fim de delimitar o propósito das linhas a seguir, serão apresentadas perspectivas de soluções jurídicas para os seguintes problemas: i) a eventual ocorrência de danos ocasionados em indivíduos que sofram intervenções para o implante de tecnologias que visem ao seu aprimoramento; ii) o regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem; iii) a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas; iv) a releitura acerca das funções desempenhadas pelo instituto da responsabilidade civil, nomeadamente a preventiva; v) o emprego de tecnologias para aprimorar as capacidades de seres humanos de gerações vindouras. Cada um destes pontos merecerá específico tratamento. À partida, cumpre pensar nos danos que um indivíduo que se apresente como beneficiário de técnicas transhumanistas eventualmente venha a sofrer. Imagine-se, por hipótese, que uma pessoa se apresente como voluntária para ter determinados aparatos tecnológicos incorporados ao seu organismo, com o propósito de tornar-se intelectual ou fisicamente mais evoluída. O que dizer dos danos que podem sobrevir a partir destas intervenções, que, a depender de sua gravidade, podem eventualmente levar uma pessoa à morte? No Brasil, ainda que inexista regramento legal específico para reger atos desta natureza - eis que se cuida, enfim, de circunstância ainda incipiente -, quer parecer que o regime geral da responsabilidade civil, assente em especial no texto do Código Civil, exigirá a aplicação do seu art. 927, parágrafo único, a imputar o modelo da responsabilidade civil objetiva (isto é, independentemente de culpa) a todo agente que normalmente desenvolva atividade que implique, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Neste domínio, adota o legislador brasileiro a denominada teoria do risco criado: o simples fato de se instituir novos riscos em sociedade, para além dos inúmeros outros já existentes, induz a responsabilização objetiva do agente causador do dano. No âmbito das intervenções transhumanistas, manipular equipamentos de alta tecnologia com o propósito de aperfeiçoar as condições humanas há de ser inequivocamente reconhecido como um fator de elevado risco, em especial para o voluntário, eis que qualquer desvio poderá ocasionar severos danos à saúde do lesado, que podem inclusive ser fatais. i) Pouco importará, inclusive, que o ato tenha sido praticado em caráter gratuito ou oneroso: a responsabilização deriva do simples fato de um indivíduo ser lesado em intervenções de cunho transhumanista, ainda que não tenha contribuído financeiramente para que fosse submetido ao ato. Em havendo dano imputável ao comportamento do interventor, o dever de repará-lo surge como corolário imediato da verificação do nexo de causalidade. Também não parece correto supor que o fato de o voluntário ter prestado seu consentimento seja suficiente para afastar a potencial responsabilidade civil dos agentes que operam tecnologias transhumanistas. Ainda que requerida pelo próprio indivíduo a intervenção transhumanista, se ela vier a gerar danos ao interessado em se tornar um ser transhumano, caberá analisar as circunstâncias do caso concreto e verificar, afinal, se houve algum desvio no ato da intervenção, ou mesmo se ocorreu algum vício no processo de informar ao voluntário sobre os riscos da medida. No primeiro caso, a responsabilidade civil se manifestará pelo erro no procedimento; no segundo caso, mesmo que não tenha ocorrido falha no processo de intervenção corporal, ainda assim caberá cogitar da responsabilidade civil do agente, por ter sido imprecisa a prestação de informações claras acerca dos riscos da intervenção, que devem ser adequadamente mensurados antes mesmo que se coloquem em prática as medidas de caráter transhumanista. Com efeito, por se tratar de atuação sobre a integridade psicofísica de seres humanos, é necessário proceder a uma criteriosa e antecipada ponderação sobre a incidência dos princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência, somente sendo admitidas as experiências transhumanistas com seres humanos - se é que serão de fato aceitáveis - se a assunção dos riscos a elas inerentes se justificar pela magnitude das vantagens esperadas. É de se esperar, portanto, que os atos praticados com técnicas de alta tecnologia ofereçam uma razoável garantia de segurança, sob pena de se sujeitar o agente que os conduz à responsabilização pelos danos deles derivados. ii) Quanto ao regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem, cumprirá reconhecer que, por mais que o indivíduo se transforme em um ser dotado de capacidades extraordinárias - sejam cognitivas ou motoras -, não deixará de ser uma pessoa, ainda que ostente a condição de ser um híbrido entre máquina e ser humano. Assim, o indivíduo submetido a intervenções de cunho transhumanista responderá pessoalmente pelos danos causados a terceiros, mesmo que eventualmente se deva cogitar da edição de novas regras na seara da responsabilidade civil, mormente porque, na mais extrema das hipóteses, a sociedade passará a ser dividida entre seres humanos e transhumanos, cumprindo reconhecer a vulnerabilidade daqueles e a superioridade física e intelectual destes. iii) O postulado acabado de referir coloca em causa um problema consequente: a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre as pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas.   À primeira questão, caberá insistir na premissa assente: os indivíduos aprimorados, à partida, serão pessoas para o Direito, cidadãos integrados à sociedade como os demais (meros) humanos. Em princípio, portanto, ao se comportarem no meio social, responderão subjetivamente pelos danos causados a terceiros, a não ser que estejam a desempenhar atividades de risco ou que haja alguma regra legal específica a imputar-lhes responsabilidade sem culpa. Daí decorre que os indivíduos aprimorados por técnicas transhumanistas somente devem reparar danos, em tese, se adotarem comportamentos intencionais (dolosos) ou descuidados (culposos). Tal assertiva, todavia, desafia novos dilemas. Os indivíduos aprimorados ostentariam uma condição de superioridade física e/ou intelectual em relação aos demais. Caberia conceber, então, que os atos, fatos e relações jurídicas que os envolvam mereçam idêntico tratamento legal? Uma pessoa que detém condições físicas ou mentais aperfeiçoadas em função do emprego de tecnologias de ponta não deveria, por isso mesmo, atuar com diligência mais acurada que os demais? Caberia aferir o comportamento culposo do agente transhumano a partir da análise da conduta que se deveria esperar do "homem médio", sabendo-se de antemão que tal indivíduo ostenta uma condição que o segrega do termo mediano da sociedade? A averiguação da culpa pressupõe que uma pessoa, por negligência, imprudência ou imperícia, deixe de cumprir com um dever geral de cautela que a todos se impõe. Em relação a indivíduos dotados de excepcionais habilidades físicas ou de aptidões intelectuais invulgares, não seria de se esperar que tenham melhores condições de agir cautelosamente e, consequentemente, de evitar lesões a terceiros? Em um primeiro momento, a resposta se afigura positiva; caberá, portanto, averiguar conforme as circunstâncias do caso concreto qual a verdadeira condição do indivíduo transhumano causador do dano e apurar, enfim, de que modo se pode caracterizar a adoção de comportamento que, dada a sua particular situação de vantagem, deveria ter sido evitado.   iv) Cumprirá, ainda, fazer valer a função preventiva da responsabilidade civil e evitar que o emprego da tecnologia para fins transhumanistas se dê de modo indiscriminado, potencializando não apenas o suposto aprimoramento das capacidades humanas, como também a ocorrência de danos enormes em sociedade. Neste domínio, à medida em que as técnicas transhumanistas forem implementadas, cumprirá estabelecer normas de cautela, com o propósito de impor limites éticos, jurídicos e biológicos ao plano de superação das condições humanas. Parece salutar, quando menos, que sejam criados comitês de ética que tenham a atribuição de fiscalizar e autorizar ou rechaçar práticas transhumanistas que, de algum modo, venham a colocar em risco não apenas a integridade psicofísica dos seus voluntários como também direitos e interesses sociais dignos de tutela. v) Finalmente, e ainda como decorrência das ideias desenvolvidas no item antecedente, cabe refletir cuidadosamente sobre o emprego de tecnologias transhumanistas para aprimorar as condições físicas e intelectuais de gerações vindouras. Por meio de modificações genéticas, seria viável alçar crianças por nascer a patamares biológicos e psíquicos superiores aos de seus antepassados. O que dizer, entretanto, dos possíveis danos que podem ser sofridos por estes bebês geneticamente manipulados? A respeito das edições gênicas da linhagem germinativa, Graziella Clemente3 cuida de apontar seus possíveis benefícios, seja em curto prazo, como importante instrumento para o tratamento de doenças monogenéticas, seja a longo prazo, como ferramenta apta a combater doenças poligênicas, multifatoriais e infecciosas. As intervenções genéticas que tenham a finalidade de evitar enfermidades não podem, todavia, ser confundidas com a manipulação genética que vise não a impedir doenças - isto é, preservando-se as condições naturais do indivíduo ainda por nascer -, mas a aprimorar as capacidades de um nascituro, com vistas à geração pré-natal de um indivíduo transhumano. Neste derradeiro caso, os riscos de danos assumidos são intensos, não apenas porque pode haver erro na manipulação provocada, mas também em razão de potenciais danos futuros, cuja verificação é desconhecida no momento da intervenção. De todo modo, nos casos em que houver intervenções genéticas de caráter transhumanista, caberá recorrer, uma vez mais, à cláusula geral de responsabilidade objetiva contemplada no aludido art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, cumprindo ao agente interventor a assunção do dever de reparar todo e qualquer dano oriundo de seu comportamento. Afinal, tratar-se-á de conduta que, em sua essência, implica a assunção de elevados riscos de danos, que podem colocar em xeque o futuro de toda uma geração de seres transhumanos. __________ 1 VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362. 2 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe; FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 886. 3 CLEMENTE, Graziella Trindade. Responsabilidade civil: edição gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, Nelson et al (Coord.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 303.
terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fake news: O Brasil necessita de um marco legal

Será que o Brasil deveria ter leis específicas que promovam a prevenção e o combate à proliferação intensa de fake news? Depois dos cenários descortinados pela pandemia em 2020 e das eleições gerais em 2022, é mais que necessário que se evoluam as discussões já iniciadas, para que se possa construir marcos legais adequados para a temática.  Inicialmente, vale destacar que o Brasil ainda não possui uma legislação específica para as divulgações de notícias falsas. De 2017 a 2022 foram apresentados ao menos 17 projetos de lei1 no Congresso Nacional, que procuram combater este tipo de conteúdo que desinforma, confunde a população, traz riscos à saúde, manipula massas, destrói reputações, corroendo o sistema representativo e a própria democracia. Outras iniciativas parlamentares foram apensadas a esses projetos. Entre tais propostas, destaca-se a tentativa de se criminalizar a divulgação de fake news, com penas máximas de prisão de dois anos, criando-se assim mais um crime de menor potencial ofensivo. Mas, para além do uso do Direito Penal como instrumento de coerção, prevenindo e reprimindo-se condutas daqueles que deliberadamente usam deste expediente para propagação de ideias, interesses ou mesmo com a finalidade espúria de confundir um contingente de pessoas, há também outras medidas interessantes sendo discutidas no parlamento. No sensível campo das eleições, surgem três projetos direcionados à temática. O mais recente, o PLP 120/2022 prevê mais uma causa de inelegibilidade, exatamente para aquele indivíduo que divulgar notícia falsa sobre urna eletrônica e o processo eleitoral. Além deste, o PLS 218/2018 determina que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) crie campanhas educacionais de combate às fake news em anos eleitorais. De igual maneira, o PLS 471/2018 busca definir os crimes de criação ou divulgação de notícia falsa, com a finalidade de afetar indevidamente o processo eleitoral. O PL 632/2020 buscando impor maior rigor às falas e atos de autoridades públicas, considera a divulgação de fake news promovidas por tais autoridades, como uma nova hipótese de crime de responsabilidade e, também, de improbidade administrativa. Assim, uma informação manifestamente falsa veiculada e promovida, por exemplo, por um chefe do Poder Executivo, em qualquer esfera (federal, estadual ou municipal), poderia ser enquadrada com crime de responsabilidade, gerando inclusive a possibilidade de impedimento à continuidade do mandato (impeachment). Entendendo que a transmissão de notícias falsas afeta o direito difuso à correta informação, direito fundamental de quarta dimensão, o PLS 246/2018 prevê a inserção de um novo artigo no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), permitindo que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação judicial questionando a divulgação de conteúdos falsos ou ofensivos em aplicações de internet. Buscando cortar o fluxo financeiro em sites que veiculam propositalmente fake news, o PLS 2922/2020 deseja impedir o anúncio em páginas com desinformação e discurso de ódio. A finalidade é cortar o financiamento, por meio de publicidades, a sites que notoriamente se utilizam de notícias falsas para gerar tráfego e vender espaços a anunciantes. Tal conduta é extremamente comum num mercado online que luta pela atenção do navegante, configurando aquilo que comumente se denomina de click bait (caça-cliques). Este PLS 2922/2020 está pronto para deliberação do plenário na Câmara dos Deputados e também promove inserções de novos dispositivos no Marco Civil da Internet. Buscando definições no Código de Conduta da União Europeia sobre Desinformação, o projeto conceitua fake news como sendo a informação comprovadamente falsa ou enganadora que, cumulativamente: i) é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público; ii) é suscetível de causar um prejuízo público, entendido como ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a proteção da saúde dos cidadãos, o ambiente ou a segurança. No rastro da pandemia da covid-19, alguns desses projetos visam a tutela da saúde como direito coletivo. O PLS 5.555/2020 direciona a criminalização tanto da recusa imotivada à vacinação obrigatória em casos de emergência de saúde, quanto da propagação de notícias falsas sobre as vacinas. Já o PL 1.015/2021 prevê pena de 1 a 4 anos de prisão e multa para o crime de criar, divulgar, propagar, compartilhar ou transmitir, por qualquer meio, informação sabidamente inverídica sobre prevenção e combate à epidemia. Nesta mesma esteira, o PL 2.745/2021 tipifica a conduta de divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, informações falsas sobre as vacinas. Importante registrar que o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.197/2021, que previu o novo título "Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito" no Código Penal, inserindo os vários tipos penais nos arts. 359-I a 359-T e, ainda, revogando a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83). O art. 359-O trazia o novo delito de "comunicação enganosa em massa", com a seguinte disposição: "Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". A pena prevista era de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. Todavia, o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, optou por vetar, valendo-se da seguinte justificativa2: "A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um 'tribunal da verdade' para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica. Outrossim, o ambiente digital é favorável à propagação de informações verdadeiras ou falsas, cujo verbo 'promover' tende a dar discricionariedade ao intérprete na avaliação da natureza dolosa da conduta criminosa em razão da amplitude do termo. A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar". Diante deste cenário, o Projeto de Lei 2.630/2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a mais bem construída proposta para o enfrentamento da temática, até o presente momento. Já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto prevê a proibição da criação de contas falsas, de contas robotizadas (comandadas por robôs), devendo as plataformas digitais desenvolverem mecanismos que limitem o número de contas geridas pelo mesmo usuário. Além disso, a proposta legislativa impões também que estes provedores de serviços online, tais como redes sociais e aplicativos de mensagens, limitem o número de envios de um mesmo conteúdo a usuários e grupos. Há uma clara tentativa de se controlar os envios de mensagens em massa. Por isso, as empresas terão o dever de guarda, pelo prazo de três meses, dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa3. Todavia, o acesso aos registros somente poderá ocorrer mediante ordem judicial, permitindo-se assim que haja espaço para   responsabilização cível e/ou criminal. Este projeto traz também regulações sobre remoção de conteúdos falsos, identificação de postagens que foram impulsionadas com pagamentos, considera de interesse público os perfis de agentes políticos (como chefes do Poder Executivo, por exemplo), cria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, determina que as empresas estrangeiras devam ter representantes no Brasil, sendo que caso venham a descumprir as medidas impostas ficarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício. Para além da atuação do Estado, as próprias companhias de tecnologia estão, mundo afora, alterando seus termos de uso, trazendo mais rigor na análise de conteúdos falsos, fato este que se acentuou nos anos 2020 e 2021. Dois fatos foram as molas propulsoras deste papel mais ativo das empresas: a pandemia e a eleição presidencial norte-americana. As redes sociais, por exemplo, passaram a gerar advertências sobre a suposta falsidade da informação veiculada em determinado perfil, suprimiram publicações e, em caso de reiterações, chegaram até mesmo a excluir o usuário da rede. No Brasil, entretanto, a atuação das plataformas tem sido mais tímida que em solo estadunidense. A grande problemática, num mundo premido por vieses de confirmação e na denominada era da pós-verdade, onde o fato real encontra o muro das narrativas convenientes, é a suposta violação ao direito à liberdade de expressão. Há posicionamento corrente de que a liberdade de expressão merece ser reconhecida como um direito mais amplo, com primazia, devendo ser tolhida apenas em situações absolutamente excepcionais. Contudo, há que se recordar que como direito fundamental que é, a liberdade de expressão está necessariamente subordinada a limites, devendo o abuso de direito ser objeto de adequada repressão, por se tratar de um ato ilícito e ilegítimo. Assim, mesmo sem que haja um diploma específico, o Poder Judiciário tem se esforçado entre erros e acertos, para fornecer respostas à divulgação de notícias inverídicas em variados cenários, valendo-se dos regramentos presentes no Código de Processo Civil, no Código Civil, nas leis eleitorais, no Marco Civil da Internet, entre outros diplomas. A título de exemplo, a utilização de tutelas de inibição, a fixação de astreintes, a determinação de remoção de conteúdos, a desmonetização de sites e canais, o estabelecimento de indenizações, entre outras medidas, vem sendo utilizadas para conter os enormes danos que as fake news causam à sociedade em rede. Por todo o exposto, o combate estatal às notícias falsas merece ser melhor aprimorado no Brasil, buscando-se não apenas a criminalização da divulgação, mas sobremaneira medidas mais efetivas de tutela da informação, como direito difuso que é. A criação de uma causa de inelegibilidade de quem se utiliza dolosamente deste meio abusivo, a previsão de nova hipótese de crime de responsabilidade, a especificação de deveres às sociedades empresárias que atuam no universo online, a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, parecem ser alternativas mais inteligentes e efetivas que a simples criação de novos tipos penais. O ordenamento como um todo merece ser acionado e revisitado, para que o Estado contemporâneo consiga enfrentar uma de suas mais desafiadoras ameaças: a verdadeira "pandemia" de fake news. __________ 1 Fonte: pesquisa no site da Agência Senado apresenta os projetos em andamento. Disponível aqui. Acesso em 17.10.2022. 2 Tal veto (nº 46/2021) está para ser analisado no Congresso Nacional, que poderá mantê-lo ou derrubá-lo. 3 Considera-se encaminhamento em massa, os envios de uma mesma mensagem para grupos de conversas e listas de transmissão por mais de cinco usuários em um período de 15 dias, tendo sido recebidas por mais de mil usuários.
  "Os caminhos não estão feitos. É andando que cada um de nós faz o seu próprio caminho. A estrada não está preparada para nos receber. É preciso que sejam nossos pés a marcar o destino; destino ou objetivo, ou que quer que seja" José Saramago Como anuncia o subtítulo do presente, o brevíssimo ensaio que ora vem a público é fruto de reflexões que tive oportunidade de realizar no IV Congresso Nacional de Responsabilidade Civil do IBERC, em Belém/PA, ocorrido no mês setembro de 2022. De início, registro especial agradecimento à organização do evento, o que faço nas pessoas dos Professores Pastora Leal, Alexandre Pereira Bonna, Nelson Rosenvald e Carlos Edison Monteiro do Rêgo Filho. Do mesmo modo, consigno meus cumprimentos aos ilustres colegas de Mesa, Professores Thais Pascolalotto, Marco Fábio Morsello e Bruno Brasil. A indagação primeira que suscita a reflexão que se compartilha pode ser assim sintetizada: em tema de responsabilidade civil contratual, havendo inadimplemento ilícito, o que se deve indenizar? Mostra-se hoje ainda suficiente a solução apresentada pelo art. 389 do Código Civil para atender às exigências do Princípio da reparação integral, insculpido, dentre outras passagens, no art. 944, caput, do Código Civil do Brasil? A meu ver, a resposta for negativa: é realmente preciso ir além... Se o art. 389 do Código Civil estabelece que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais litros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado", o que se deve, então, indenizar? Qual é o conteúdo da categoria jurídica perdas e danos nas hipóteses de resolução do contrato por inadimplemento culposo (ilícito)? Indeniza-se "apenas o interesse negativo? Ou também o interesse positivo, isto é, aquele que teria se o contrato tivesse sido cumprido?"1 São questões que brotam inexoráveis da própria provocação inicial. Em certa medida, o legislador civil oferece uma solução para o problema da recomposição contratual ao disciplinar a cláusula penal compensatória, o que faz, entre outras passagens, no art. 408 do Código Civil, segundo o qual "incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora". Ocorre que, o próprio legislador, logo a seguir, em duas passagens, excepciona a inevitabilidade desse regime de perdas e danos contratuais. Em síntese, afirma o que é de clareza meridiana: os danos indenizáveis decorrentes do descumprimento do contrato podem ser superior ao montante da cláusula penal compensatória. podem ser superiores aos fixados a esse título. Primeiro, no art. 410 do Código Civil, estabelece que "quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor. Caso o valor do dano seja superior ao valor da cláusula penal, o inocente pode pedir indenização suplementar". Segundo, no art. 416 do mesmo diploma, afirma, no seu parágrafo único, que "ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente". Note, portanto, que deflui do próprio regime legislativo a possibilidade de admitir-se que, diante do ilícito inadimplemento do programa contratual, outros interesses são passíveis de atenção, para realizar-se o Princípio da reparação integral.2 Nesse cenário, surge, então, a discussão da indenizabilidade dos interesses contratual positivo e negativo.3 A eles. O interesse contratual negativo (também referido como interesse da confiança), conquanto tenha gênese na investigação dos danos na fase pré-contratual, diz respeito ao dever de repor-se o contratante inocente à situação em que se encontraria caso não tivesse celebrado o contrato, isto é, como se o inocente jamais tivesse "entrado em negociações que se viram injustamente frustradas."4 De outro lado, o interesse contratual positivo (também denominado interesse de cumprimento) diz respeito àquela situação que resultaria para o credor inocente se tivesse havido o perfeito cumprimento do contrato: presta-se, portanto, resumidamente, a colocar o contratante na exata situação econômica em que estaria caso o contrato fosse sido fielmente cumprido, em perfeita atenção ao que impõe o Princípio pacta sunt servanda. Dito de outra forma, a indenização do interesse contratual negativo (interesse de confiança ou dano negativo) assenta suas raízes na doutrina da responsabilidade civil pré-contratual e visa levar o inocente à situação em que ele estaria se jamais tivesse celebrado o contrato (ou se não tivesse iniciado negociações que se frustraram injustamente, seja pelo recesso injustificado; seja pela revelação de segredos/informações; seja pela omissão de informações relevantes para formar o contrato etc.), como exemplifica Gisela Sampaio da Cruz Guedes5, com respaldo nas lições de Judith Martins Costa.6 De outro lado, de acordo com a doutrina do interesse contratual positivo (também referido como interesse no cumprimento ou por dano positivo), deve se indenizar tendo em perspectiva a necessidade de colocar-se o inocente na mesma situação patrimonial em que ele estaria se o contrato tivesse sido cumprido corretamente. Disso decorre que se devem indenizar todos os prejuízos que brotam do não-cumprimento definitivo (ou do cumprimento tardio/defeituoso). A indenização do interesse contratual positivo, portanto, abrange o equivalente à prestação (dano emergente e lucros cessantes) somado à reparação de todos os demais prejuízos que diretamente derivam da própria inexecução do contrato: coloca-se o inocente, como referi, na mesma situação em que ele estaria se a obrigação tivesse sido perfeitamente cumprida, o que se mostra de todo razoável. Pela tutela do interesse contratual positivo, é fácil ao leitor perceber a insuficiência de uma visão extremamente restritiva do art. 403 do Código Civil, segundo o qual "ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato (...)". A partir da visão ampliativa da indenizabilidade de danos contratuais, por exemplo, seria possível perquirir o cabimento da teoria da responsabilidade civil (contratual) pela perda de chance no cenário celebração de um contrato com determinada pessoa, que, frustrado, fez impossível a celebração de outro contrato com o inocente, configurando-se para o inocente uma situação jurídica que lhe traria a reais chance de obter-se maiores vantagens...7 No Brasil, há salutar tendência de alargamento dos danos contratuais indenizáveis. Expandir o âmbito de danos indenizáveis por rompimento da relação contratual para melhor atender às exigências do Princípio da reparação integral é uma perspectiva que se afina às tendências contemporâneas do Direito Contratual, da Responsabilidade Civil e da correta interpretação das exigências do Princípio da reparação integral. Enfim, o modelo dogmático que se assenta sobre as bases tradicionais do art. 389 do Código Civil não mais atende à complexidade das relações jurídicas contemporâneas, sequer quanto à função compensatória da responsabilidade civil contratual. Seguindo a mesma trilha, por exemplo, não seria demais indagar a possibilidade de reconhecer-se um plus ao valor indenitário decorrente também da ilícita violação às expectativas contratuais legítimas despertadas e da grave frustração da confiança depositada pelo inocente, em interpretação sistêmica do parágrafo único do art. 944 do Código Civil, a contrário sensu. Os conceitos, portanto, estão em construção... O Superior Tribunal de Justiça acolhe a possibilidade de abarcar-se com maior envergadura a indenização de interesses contratuais negativos e positivos, como se colhe da Leitura dos voto-vista lançado pela Min. Nancy Andrighi nos autos de Recurso Especial 1.641.868/SP.8 Novos tempos. Novas realidades. Novos danos indenizáveis... A insuficiência dos modelos tradicionais para atender às exigências da Responsabilidade Civil por inadimplemento ilícito do contrato exige um olhar rente à vida e ao Direito no século XXI. As novas luzes que incidem sobre os danos contratuais permitem indagar: devem ser indenizados os lucros ilícitos (ilegítimos) que decorrem da violação de um contrato?9 A resposta é positiva. Nesse sentido é o recente entendimento do Tribunal de Contas da União: na responsabilidade civil contratual, é possível indenizar os danos decorrentes de comportamentos ilícitos parasitários fruto da conduta ilícita da parte (disgorgment).10 Em 10 de agosto de 2022, a Corte de Contas acolheu com acerto a tese de que "a restituição de lucros ilegítimos está fundamentada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, assim como no princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza e ainda nos efeitos retroativos da declaração de nulidade, no sentido de que se deve buscar a restauração do status quo ante ." Enfim, o ensaio que ora se encerra traz um convite à comunidade jurídica, que deve investigar quais são os critérios e os limites a serem respeitados para atender-se ao Princípio da reparação integral nas hipóteses de ilícito descumprimento do contrato. Não se pode descartar a indenizabilidade de interesses contratuais positivos. Não se pode afastar do inocente o direito à indenização dos lucros decorrentes do ilícito perpetrado. Se o caminho não está ainda feito e pronto para nos receber, como nos encoraja Saramago, que sejamos nós a andar, e que assim façamos o próprio caminho. "Conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade": são as ferramentas, com as quais nos encoraja Norberto Bobbio11, para que possamos chegar a bom porto. ---------- 1 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009 , p. 489, comentários ao art. 402 do Código Civil 2 Sobre o Princípio da reparação integral, ver: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. GUERRA, Alexandre. Reparação integral vs. indenização tarifada: o que a lei 14.128/21 espera de nós? Disponível aqui. 3 Sobre o tema, ver: PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora. vols. 1 e 11. 2008. STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Responsabilidade civil e interesse contratual positivo e negativo (em caso de descumprimento contratual). In. GUERRA, Alexandre D. de Mello; BENACCHIO, Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura. Disponível aqui;   GUERRA, Alexandre D. de Mello. Interesse contratual positivo e negativo: reflexões sobre o inadimplemento do contrato e indenização do interesse contratual positivo. Revista IBERC, Minas Gerais, v.2, n.2,mar.jun./2019,p. 1-23. Disponível aqui. SILVA, Rodrigo da Guia. Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo: influxos da distinção no âmbito da resolução do contrato por inadimplemento. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 3, n. I ,p. I -37 ,jan./abr. 2020. Disponível aqui. 4 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 482. 5 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 125 ss 6 Nas palavras de Judith Martins-Costa, para delimitar as perdas e danos na resolução, encara-se o prejuízo que o lesado deixaria de ter se não tivesse confiado que o contrato teria regular eficácia. O que deixou de ganhar também é indenizado, pois o que se indeniza é o dano que resultou de se ter tornado sem efeito o que se cria que teria efeito. Logo, o que se indeniza é interesse negativo, interesse da confiança. Porém, não nos esqueçamos que o art. 402 introduz o postulado normativo da razoabilidade que contém uma das facetas da equidade. Ao aludir ao que o lesado "razoavelmente deixou de lucrar" seria équo considerar - tal qual ocorre no dano pré-contratual - as expectativas ilegitimamente frustradas, tais quais os decorrentes da perda de uma chance, pois essa poderá consistir em uma vantagem que o lesado teria obtido se não tivesse confiado que o contrato projetasse regularmente a sua eficácia" (MARTINS-COSTA, Judith. Ob. cit., p. 491). 7 Vale acentuar que o Sistema Commom Law norte-americano encontra aberturas à indenização dos danos suportados pelo inocente, como se pode verificar em FARNSWORTH, E. Allan. Legal Remedies for Breach of Contract. Columbia Law Review, vol. 70, no. 7, 1970, pp. 1145-216. JSTOR. Disponível aqui. Accessed 25 Aug. 2022; PIZZOL, Ricardo Dal. Exceção de contrato não cumprido. Indaiatuba: Foco, 2022. 8 Disponível aqui. 9 Cfr. ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bemard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil - RFDC, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. Disponível aqui. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgment e a indenização restituitória. JusPodium, 2019. 10 CAVALLARI, Odilon. TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement. 11 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 232.
Não fosse issoe era menosNão fosse tantoe era quase1 Introdução Débora solicitou um tratamento cuja negativa pelo plano de saúde fundou-se na ausência de previsão no Rol da ANS. Em sede judicial, julgou-se razoável a negativa, e ainda assim, determinou-se a cobertura. Sarah ingressou com demanda judicial e obteve tutela antecipada a qual assegurou que cirurgia eletiva (sem urgência) fosse realizada. As situações acima expostas, embora hipotéticas, servem como singela ilustração da complexidade da saúde suplementar e das nuances das controvérsias que se desdobram em reparação por danos. Enfoca-se neste artigo as negativas de tratamentos não previstos no rol da ANS, e as hipóteses em que são afastados os danos à pessoa, frequentemente, designados de "danos morais". Não se examina os danos associados a reajustes, extinção contratual ou atos de prestadores como clínicas e hospitais2. Rol da ANS: afinal, quais as coberturas obrigatórias? A lei 9.656/1998, "Lei dos planos de saúde", estabelece de forma ampla as coberturas obrigatórias. Por exemplo, o art. 12, inc. II, alínea 'a' impõe o custeio de internações para os contratos com cobertura hospitalar. A respeito cabe indagar, isso significa o dever de custeio de todas as cirurgias imagináveis realizadas em hospitais? Para regular o tema, a Agência Nacional de Saúde Suplementar estabeleceu por meio de resolução uma listagem de procedimentos obrigatórios, popularmente chamada de "Rol da ANS". "A jurisprudência do STJ, até o ano de 2020, havia consagrado a compreensão de que o rol da ANS possuía caráter ilustrativo. Ao mesmo tempo, contudo, não havia um critério claro para o fornecimento"3. A cobertura fora rol frequentemente exigia apenas a prescrição do médico que acompanha o paciente, em que pese os acórdãos apontassem também como parâmetro o caráter indispensável tratamento4. Assim, julgava-se que "A recusa indevida à cobertura de cirurgia é causa de danos morais"5. A construção jurisprudencial ensejou a divergência no sentido de que "a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo".6 Na apreciação do tema, ao adotar a expressão "taxatividade mitigada", ao invés de um "caráter exemplificativo condicionado", o STJ buscou, possivelmente, reforçar dois aspectos centrais: i-) o rol é a regra; ii-) as exceções dependem da verificação de hipóteses cujo ônus probatório recai sobre o solicitante. Vale dizer, nem se consagrou o rol da ANS como exaustivo, nem se pode, simplificadamente, afirmar um caráter ilustrativo. A edição da lei 14.454/2022, equivocadamente tem sido associada à consagração de um rol ilustrativo, o que não encontra respaldo no texto normativo. De acordo com o art. 10, § 4º, da Lei dos Planos de Saúde, na redação definida pela nova lei: "A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação". Para tratamentos não previstos no rol, exige-se, de forma muito próximo ao que estabeleceu o STJ, a comprovação de requisitos específicos, senão vejamos: O quadro acima revela considerável identidade entre a compreensão jurisprudencial e a nova redação da Lei dos Planos de Saúde, com exceção ao critério (i-) da decisão judicial. Danos à pessoa e planos de saúde: afastamento do chamado "dano moral" Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é possível identificar precedentes que consideram que a negativa de tratamento pelo plano de saúde caracteriza dano moral in re ipsa7. Em sentido contrário, consagra-se a compreensão de que a recusa, mesmo ilegítima, "não configura dano moral indenizável, que pressupõe ofensa anormal à personalidade"8. Dessa maneira, a negativa de cobertura somente enseja reparação "quando trouxer agravamento da condição de dor, abalo psicológico e prejuízos à saúde já debilitada do paciente"9. A partir do exame dos precedentes do STJ, identifica-se um segundo filtro a ser observado que consiste em apurar se a negativa fundamenta-se em dúvida razoável de interpretação, tal como na hipótese procedimentos não contemplados no Rol da ANS. Dessa maneira, julga-se que "não há se falar na ocorrência de dano moral indenizável quando a operadora se nega a custear tratamento médico com base em previsão contratual que excluía a cobertura da referida terapêutica, ou seja, com base em dúvida razoável"10, o que na compreensão do STJ afasta a antijuridicidade da conduta. "Há situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a pretensão de compensação por danos morais"11. Para maior clareza, sem caráter exaustivo, apresentam-se os seguintes quadros: Considerações finais A jurisprudência do STJ, ao longo do tempo, tornou mais rígida a possibilidade de concessão de tratamentos não contemplados pelo Rol da ANS. Não obstante seja impreciso afirmar que adotou-se a compreensão de taxatividade, no plano do direito de danos, a ausência de previsão no rol é tomada como "dúvida razoável", o que, na compreensão do Superior Tribunal de Justiça afasta o dever de reparar. Nesse sentido, é possível identificar uma análise bifásica da reparabilidade do dano extrapatrimonial em sede de negativa de cobertura. Em um primeiro momento, examina-se o contrato e a legislação para verificar se há dever de cobertura; em uma segunda fase, avalia-se se há dúvida razoável na interpretação contratual, e os impactos que a recusa representou, no caso concreto ao paciente. Ao retomar os casos apresentados ao início sob a perceptiva da compreensão do STJ, observa-se que a negativa do tratamento para Débora pode não ensejar danos extrapatrimoniais se fundada em cláusula contratual que enseje dúvida razoável, mesmo se o tratamento for assegurado por interpretação extensiva do Rol da ANS12. Sarah, igualmente, poderá ter rejeitada a pretensão reparatória visto que seu procedimento é eletivo e o atraso no acesso não tenha representado impacto a sua saúde. Em apertada síntese, é possível afirmar que na compreensão do Superior Tribunal de Justiça: 1. A negativa de cobertura de um tratamento pela operadora de plano de saúde não é suficiente para caracterização do dano à pessoa (dano moral); 2. Para examinar a reparabilidade do dano faz-se necessário uma dupla análise. Além de verificar o dever de cobertura, no plano objetivo examina-se a presença de dúvida razoável na interpretação contratual; no plano subjetivo, a reparação do dano à pessoa depende da comprovação de impacto à saúde ou abalo relevante; 3. Na jurisprudência do STJ, a recusa indevida de cobertura pode ensejar a reparação por danos; a contrario sensu, a negativa baseada em dúvida razoável é legítima e afasta o dever de reparar. 4. Um tratamento, mesmo se previsto no Rol da ANS, pode ser negado de modo legítimo, por exemplo em vista de carência, extinção do contrato, por não haver compatibilidade com a condição de saúde do paciente. __________ 1 LEMINSKI, Paulo. Não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase. Curitiba: ZAP, 3 ed. 1980. 2 Enfrentamos o tema recentemente, permita-se referir: SCHULMAN, Gabriel. Responsabilidade civil dos planos de saúde e suas nuances: erro médico, ações regressivas e responsabilidade solidária na saúde suplementar. Revista IBERC, v. 5, n. 2, p. 220-246, 8 jun. 2022.  3 SCHULMAN, Gabriel. Duas novidades surpreendentes na jurisprudência do STJ sobre a cobertura de tratamentos por planos de saúde: necessidade de registro de medicamentos na Anvisa (2018) e caráter taxativo do rol da ANS (2020). Revista do Advogado, São Paulo, v. 40, n. 146, p. 53-67, jun. 2020. 4 Idem. Sobre o tema, confira-se recente levantamento, em que temos a alegria de figurar: BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Amplitude da cobertura dos planos de saúde e rol de procedimentos da ANS: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022. 5 STJ. AgRg no AREsp 158625. Rel.: Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma. DJe 27/08/2013. 6 STJ. REsp 1733013/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª, Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020. No mesmo sentido, STJ. AgInt no REsp 1848717/MT, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª. Turma, DJe 18/06/2020. STJ. Agravo em Recurso Especial n. 1.562.169. Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO. DJe: 14/04/2020. O presente artigo não aprofundará esta discussão, seus acertos ou limites. 7 Com igual teor: STJ. EREsp: 1889704 SP, Rel: Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe: 29/6/2021. 8 STJ. AgInt no AREsp n. 1.978.927/PB, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe: 30/06/2022. STJ. AgInt no AREsp n. 1.782.051/PR, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª. Turma, DJe: 15/6/2021. 9 STJ. AgInt no REsp n. 1.988.367/SE, Rel.a Minª. Maria Isabel Gallotti, 4ª. Turma, DJe de 30/9/2022. Distingue-se assim o inadimplemento do dano: ROSENVALD,  Nelson. As  funções  da  responsabilidade  civil:  a  reparação  e  a  pena  civil.  São Paulo: Atlas, 2013, p. 187. 10 STJ. REsp n. 1.904.603/RS, Rel.a Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe de 24/2/2022. 11 STJ. AgInt no REsp 1927347/RS, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, 3ª. Turma. DJe 28/05/2021. 12 STJ. REsp 1.645.762/BA, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe 18/12/2017. 13 Nessa linha STJ. REsp: 1876630, Rel. Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe 11/03/2021.
Respeite mais, julgue menos!Perdoe mais, condene menos!Abrace mais, empurre menos!Faça mais, fale menos! [...] Seja menos preconceito!Seja mais amor no peito!Seja amor, seja muito amor!E se mesmo assim for difícil sernão precisa ser perfeito.Se não der pra ser amorseja pelo menos RESPEITO! Bráulio Bessa O mundo digital exerce atualmente caráter prioritário na vida em sociedade, tendo assumido novos contornos com o período eleitoral. Se o advento das redes sociais, há cerca de 10 anos, trouxe um novo olhar a respeito do marketing pessoal, da democratização da economia digital e do exercício da liberdade de expressão, fez emergir também, em tempos de extremismos políticos, um grande palco para a produção de danos. As corriqueiras dancinhas, "reels", vídeos divertidos e a novel publicidade orgânica deram lugar a um palco de xingamentos, agressões, repúdios, discursos odiosos com requintes de racismo e, sobretudo, de xenofobia, deixando ainda mais evidente o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, pois não houve uma educação digital para a convivência social nesse ambiente. Quando isso se alia ao extremismo do debate político, evidencia-se ainda mais o desrespeito dos usuários às lições básicas de educação, empatia, cordialidade e de convivência com a divergência de opiniões. Por consequência, potencializa-se a ocorrência de danos. Longe de esgotar o tema, esse artigo traz, em um primeiro momento, um breve relato sobre os danos sofridos pelos nordestinos no ambiente digital, decorrentes de declarações xenofóbicas e, em um segundo momento, busca-se avaliar a viabilidade de cumulação entre a reparação pecuniária e a natural, com o objetivo de atender ao princípio da reparação integral. O caso de xenofobia Recentemente, com o resultado do 1º turno das eleições presidenciais, o exercício - legítimo - da liberdade de expressão foi confundido com liberdade de agressão, resultando em abuso de direito. Vários vídeos com críticas xenofóbicas pelo resultado das eleições presidenciais do primeiro turno circularam nas redes, sendo o de maior repercussão o da advogada de Uberlândia/MG, então vice-presidente da comissão da mulher advogada.   No vídeo, a advogada critica o Nordeste e diz que não vai mais "alimentar quem vive de migalhas", por ter o candidato da oposição ao governo tido expressiva votação naquela região. Na ocasião, a advogada: "A todos aqueles brasileiros que a partir de hoje têm que ser muito inteligente. Nós geramos empregos, nós pagamos impostos e sabe o que que a gente faz? A gente gasta o nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos fazer isso mais. Vamos gastar dinheiro com quem realmente precisa, com quem realmente merece. A gente não vai mais alimentar quem vive de migalhas. Vamos gastar o nosso dinheiro aqui no Sudeste, ou no Sul ou fora do país, inclusive porque fica muito mais barato. Um brinde a gente que deixa de ser palhaço a partir de hoje". A declaração viralizou no mesmo dia e causou perplexidade na comunidade jurídica, resultando em notas de repúdio assinadas por parte de todas as seccionais da OAB do Nordeste, além da exoneração da advogada do cargo de vice-presidente a comissão da mulher advogada. O presidente da OAB/MG, Sérgio Leonardo, respondeu rapidamente às declarações da colega, alertando ao fato que essa é uma opinião pessoal que materializam preconceito e discriminação ao povo nordestino, não refletindo a opinião da instituição e assegurando que as providências disciplinares cabíveis ao caso seriam tomadas. A advogada emitiu nota procurando se desculpar com a população nordestina ao tempo em que quis se desviar da conduta criminal e se vitimizar por ataques sofridos no ambiente virtual após as suas declarações: "Em razão de manifestação pessoal publicada em minhas redes sociais, venho a público me desculpar por compreender a infelicidade do que foi falado, uma vez que é totalmente incompatível com meus valores. Minha conduta, embora reprovável, não se encontra tipificada como crime em qualquer dispositivo legal vigente. A exposição da minha fala foi feita por terceiros, sem o meu consentimento, e fez com que eu siga atacada com as mais diversas formas de violência contra a mulher, tendo que blindar a mim e minha família. A infelicidade da minha fala não pode autorizar ou justificar a prática de crimes graves contra a minha pessoa, que vão desde injúria e difamação, até mesmo a apologia ao estupro. Em um Estado Democrático de Direito os fins não justificam os meios. Lamento pela repercussão desta infeliz colocação e me arrependo profundamente pelo ocorrido, desculpando-me com todas as pessoas de origem nordestina que tenham se sentido ofendidas, retratando-me completamente." Na sequência, a Defensoria Pública de Minas Gerais ingressou contra a advogada com ação civil pública com pedido de danos morais coletivos em favor do povo nordestino. A peça, assinada por sete defensores públicos, tinha dentre os pedidos: i) a imediata retratação da advogada pelas ofensas provocadas, por todos os meios de comunicação disponíveis, notadamente, em sua rede social e no jornal local; ii) a condenação da advogada por dano moral coletivo no valor de R$ 100.000,00, devendo o valor ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos; iii) o envio de ofício ao ministério público estadual para eventual apuração de crime e iv) o envio de ofício à OAB/MG para eventual instauração de procedimento administrativo por desvio ético, além dos pedidos de praxe.  A reparação integral dos danos coletivos de natureza existencial Apesar de não haver, na legislação brasileira, dispositivo específico regrando a reparação natural, traduzida, na hipótese em questão, no dever de pedir desculpas por parte da causadora do dano, a sua aplicabilidade se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, Carlos Edison Monteiro Filho: Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.1 Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente. Nesse contexto, o pedido de desculpas pode figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo. Em algumas situações, a reparação natural pode se demonstrar bem mais eficiente do que a compensação financeira, cabendo à vítima indicar a via adequada para atender à reparação integral de forma eficaz. Isso porque a solução apontada como adequada para um, pode não ser a mais benéfica para outro, pois não há como conceder uma mesma providência jurisdicional a todas as violações sofridas pela sociedade. Assim, danos de somenos importância como uma inscrição indevida em cadastro restritivo de crédito podem, a depender da situação, ser resolvidos rapidamente com uma reparação pecuniária. Em outras hipóteses isso não acontece, sendo necessário analisar a viabilidade da cumulação dos pedidos reparatórios, visto como um meio de minorar o dano sofrido pela vítima, e compensatório, isto é, a imposição de condenação pecuniária. Apesar da cumulação de pedidos da referida peça ajuizada pela defensoria mineira, para parte da doutrina é difícil aceitar a cumulação de pedidos quando se enxerga a reparação natural como primeira e única via adequada a reparar o dano, no sentido de levar a vítima ao status quo ante. Assim, para Leonardo Fajngold, esse retorno ao estado anterior de coisas seria suficiente para reparar integralmente à vítima. Em outras palavras: havendo reparação natural, a compensação não teria lugar e, por consequência, a cumulação dos pedidos não seria permitida, pois o dinheiro não repara, compensa2. No entanto, quem, senão a vítima, seria capaz de indicar como a reparação integral será atendida? Nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação semelhante a este estado. Nas ações coletivas relativas a danos ambientais, por exemplo, o dever de reflorestamento como via de retorno ao que mais se aproxima do status quo ante não afasta o dever de indenizar. Isso se torna ainda mais evidente quando o dano sofrido é coletivo como na hipótese dos danos provocados por declarações xenofóbicas a uma determinada população. A cumulatividade entre as funções reparatória (pedido de desculpas) e compensatória, deve, portanto, ser de escolha do autor da ação. No caso do dano coletivo por xenofobia, o pedido de desculpas não afasta a reparação pecuniária, pois a indenização serve como meio de viabilizar o fomento de instituições que trabalham em prol da coletividade lesada. Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera: O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso3.  Em tempos de redes sociais, exposições e agressões por meio da Internet tomam uma proporção infinitamente superior e, por vezes, fora do controle das pessoas. Algumas pessoas parecem esquecer que o dever de se abster de causar um dano a outrem (nemimem laedere) é cláusula geral de conduta, irradiada em todo ordenamento jurídico. Se a natureza dos direitos da personalidade não permite uma significação patrimonial exata hábil a aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem viabiliza a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas eficazes para a recomposição dos danos, utilizando-se para tanto todos os meios admitidos em direito. Isso porque as necessidades existenciais de cada um não se apresentam de modo uniforme. Os modelos abstratos da codificação anterior não se demonstravam adequados para as demandas contemporâneas, tendo o Código Civil de 2002 dado um grande passo em favor da defesa dos direitos da personalidade. Cabe à doutrina continuar exercendo o seu papel instrutivo, fomentando o debate e trazendo entendimento ao tema da reparação integral, mediante o reconhecimento das variadas formas de recomposição natural, sem que, com isso, haja exclusão da reparação pecuniária. A admissão da cumulação de pedidos não tem por objetivo esvaziar o instituto da reparação natural, mas dar efetividade ao princípio da reparação integral do sistema brasileiro. Sob esse ponto de vista, não se deve retirar da vítima o poder de, no pleno exercício do acesso à justiça, indicar o que melhor atende à reparação integral e pleitear uma indenização aliada a uma das formas de reparação natural. Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da xenofobia, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar as vítimas à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos nos moldes realizados pela defensoria pública mineira. __________ 1 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 2 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. O autor entende que a cumulação da reparação natural com a reparação pecuniária implicaria em esvaziar o instituto da reparação natural, vista como meio hábil de levar a vítima ao status quo ante. Para o autor, a admissão de uma reparação natural cumulada com uma compensação financeira implicaria em aceitar que o instituto da reparação natural não tem o condão de reparar. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.
terça-feira, 11 de outubro de 2022

As questões legislativas do dano moral

O atual momento do dano moral, no Brasil, está enfrentando um grande desafio, pois devido a falácia que se criou de que estaríamos diante de uma indústria do dano moral, foram criados mecanismos legislativos que acabaram inibindo o ingresso de ações judiciais com pleito indenizatório por danos morais, o que gerou preocupação de várias instituições que defendem o livre acesso à Justiça e o direito dos cidadãos. Na verdade são duas questões no âmbito legislativo que se verificam a necessidade de alteração, ao menos no meu entendimento, e de vários doutrinadores. A primeira mudança legislativa necessária encontra-se na esfera trabalhista, que contém uma inconstitucionalidade absurda! A lei 13.467/17,1 chamada de "Reforma Trabalhista," alterou vários pontos contidos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, de maneira substancial, dentre outras situações estranhas, o art. 223 A e G,2 tabelou o valor a ser pago a título de indenização por dano extrapatrimonial, fazendo clara distinção no valor de cada vida perdida, por exemplo, num acidente de trabalho. Ora, de acordo com esta infeliz alteração, os familiares de um funcionário que foi vítima fatal de acidente de trabalho farão jus a uma indenização maior do que os familiares do funcionário que recebia um salário mais modesto, o que é desumano e difícil até de explicar para quem perde um ente querido em acidente de trabalho. O referido artigo, que parece ser uma reedição do tabelamento do dano moral, quando da antiga Lei de Imprensa, o qual foi considerado inconstitucional, ao definir que os valores da condenação deverão ter como referência o último salário contratual do empregado - até três vezes, quando a ofensa é de natureza leve, alcançando o máximo de 50 vezes para casos gravíssimos. E dessa forma, flagrante, esses nefastos artigos da Reforma Trabalhista, violam o princípio da reparação integral do dano, conforme acentua o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, pois não permitem que os danos causados sejam livremente medidos pelo julgador, haja vista, a limitação da norma cuja declaração de inconstitucionalidade se faz necessária. Esses arts. 223 A e G da Reforma Trabalhista, também violam o princípio da isonomia, consoante art. 5º, caput da CF, e os arts. 7º, XXVIII, 225, caput, VI da Constituição Federal.3 Em breve síntese, é evidente o afrontamento ao princípio constitucional da igualdade, pois na Justiça do Trabalho existe o limitador do famigerado artigo, mas na Justiça Cível o julgador é livre para condenar o agente causador, por dano moral, arbitrando o valor que bem entender. Ou seja, as vítimas que sofrem e fazem jus a indenização por danos morais  teriam seu direito limitado na Justiça do Trabalho, ao passo que na Justiça Cível não haveria qualquer limite de indenização !! Por conta disso, atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal, três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), que postulam a declaração da inconstitucionalidade dos artigos da reforma trabalhista.  Pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) ADIS 6050, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, ADI 6082, e a movida pelo Conselho Federal da OAB, ADI 6069. Neste momento, após o Ministro Gilmar Mendes4 se pronunciar em seu voto, de forma muito sábia pelo livre arbitramento do dano extrapatrimonial pelos magistrados, embora não tenha considerado que os artigos são inconstitucionais, o Ministro Cassio Nunes, pediu vista ( outubro/2021), e assim se encontra o processo até a presente data a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6069. A segunda questão do dano moral, está contida no Código de Processo Civil,5 no art. 292, inciso V,6 que obriga o advogado a inserir o valor do dano moral na petição inicial. É sabido, que na jurisprudência não existe consenso nos valores arbitrados a título de dano moral. Basta examinar os casos concretos para se constatar que diante da mesma situação de fato incidem valores de condenação diferentes, pois cada magistrado valora os danos morais de forma subjetiva de acordo com seu entendimento pessoal frente a demanda que se apresenta. Ainda, é possível que diante de um mesmo episódio, um magistrado entenda que houve violação do direito à personalidade, condenando o agente causador ao pagamento de indenização por danos morais, enquanto seu colega julga a ação improcedente por entender que os fatos narrados não passaram de mero dissabor da vida comum. Ou seja, é impossível valorar no início da ação o valor dos danos morais, pois os mesmos podem inclusive ser agravados ou minimizados no decorrer do processo judicial. O que não considero equivocado, pois o arbitramento do dano moral, depende da instrução, da oitiva de testemunhas, de laudos e perícias (caso ocorram) para ao final, o julgador, ter as informações suficientes, e arbitrar o valor como era antes do advento Código de Processo Civil atual. É impossível o advogado quantificar este valor na inicial, no momento da distribuição da ação, pois as dificuldades em atribuir o valor do dano são imensas, e necessita da instrução para isso. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça,7 um processo judicial cível tem tempo de tramitação médio de quatro anos e cinco meses. Assim, ao longo desse período muitas situações podem ocorrer e impactar nos danos sofridos pelo demandante, sendo evidente que a mudança legislativa que impõe a obrigatoriedade de estipulação do dano no ato da distribuição do processo, além de deixar de refletir o direito da vítima é um retrocesso. Por exemplo, no caso de um acidente aéreo, que tenha vitimado o filho único de um casal. Que valor o advogado colocaria na petição inicial, a título de condenação por danos morais, para cada um dos genitores ?!?! Na jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho, tanto na esfera trabalhista como cível, e mesmo no Superior Tribunal de Justiça, uma pesquisa com uma certa profundidade encontrará valores de dano moral para cada um dos genitores de 200 salários-mínimos, 300 salários-mínimos, podendo alcançar até 500 salários-mínimos, este último mais raro de ocorrer. Mas, e que valor o advogado coloca no pedido?! Se não existe consenso jurisprudencial!! E mais, o advogado tem que se preocupar com a questão das custas judiciais. Se o cliente não possuir o direito à assistência judiciária gratuita, o acesso à Justiça fica prejudicado, pois a pretensão a indenização do dano moral será bem defasada em relação a sua real pretensão. E os honorários sucumbenciais, como ficariam, se a pretensão do pedido na inicial, ocorresse um decaimento!? Na forma do exemplo do acidente aéreo, se a inicial contivesse o pedido indenizatório de dano moral de 300 salários-mínimos para cada genitor e a decisão final arbitrasse em 200 salários-mínimos para cada um, como ficaria a fixação da sucumbência? Fica o questionamento, os honorários sucumbenciais incidiriam sobre o valor que o demandante decaiu, ou seja, 100 salários-mínimos? Esta questão também gerou polêmica, pois a súmula 3268 do Superior Tribunal de Justiça não permite a sucumbência em relação a danos morais.  E nesse sentido, em julgamento recentíssimo da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do eminente Ministro Antônio Carlos Ferreira,9 este decidiu que em indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Dessa forma, vivenciamos esse momento em que é necessário a luta pela garantia dos direito ao livre acesso à Justiça e à dignidade da pessoa humana, possibilitando que os magistrados possam fixar danos morais de forma justa, sem tabelamento e que os advogados possam ajuizar uma ação de danos morais de forma tranquila sem necessidade de fixar inicialmente o valor dos danos morais. ---------- 1 BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022. 2 'Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.' [...] 'Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: [...] § 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; (BRASIL, 2017). 3 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 4 Após o voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator), que conhecia das ADI 6.050, 6.069 e 6.082 e julgava parcialmente procedentes os pedidos formulados, para conferir interpretação conforme a Constituição, de modo a estabelecer que: 1) As redações conferidas aos art. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou danos em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por danos extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em: 30 ago. 2022.). 5 BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 6 Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;(BRASIL, 2015). 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2020. Brasília: CNJ, 2020. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022, p. 47. 8 "Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca" (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 326. Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2006]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022.) 9 "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. REVISÃO. REEXAME DE PROCAS E FATOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N 7/STJ.VALOR DA INDENIZAÇÃO.PEDIDO.CONDENAÇÃO.QUANTUM DEBEATUR. INFERIOR AO PEDIDO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA326/STJ. SUBSISTÊNCIA NO CPC/2015.RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial nº 1.837.386-SP. Civil e Processual Civil. Recurso Especial. [...].Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira, 16 de agosto de 2022.).
O presente ensaio é uma conversão da palestra apresentada no IV Congresso Nacional do IBERC, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil - IBERC em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/Pará.  O tema abordado são os danos sociais, razão pela qual se faz necessária a sua delimitação conceitual e a sua diferenciação quanto aos danos correlatos. Centralidade do dano Partimos do pressuposto de que o dano é o elemento desencadeador dos deveres de responsabilidade civil: prevenção/precaução e reparação. Isso quer dizer que não se pode cogitar de responsabilidade civil sem ao menos uma probabilidade de dano. Isso se deve ao fato de que o dano é fenomênico, pois acontece no mundo dos fatos, na relação tempo/espaço. Entre os pressupostos da responsabilidade civil, o que atinge os nossos sentidos e afeta diretamente a vida das pessoas é o fenômeno danoso. A doutrina especializada traz diversos conceitos1, mas o certo mesmo é que o dano algo de ruim que acontece na vida da vítima. O dano é algo ruim e injusto porque a vítima não tem obrigação de tolerar. É claro que muitas coisas ruins acontecem na vida, mas não são danos. Por exemplo, pagar imposto é um sério prejuízo para o contribuinte, mas se trata de uma obrigação legal que ele tem o dever de suportar. Além disso, o dano tem que ser causado por outra pessoa porque se for causado pela própria vítima pode ser um prejuízo, mas não é dano2. Então, o dano pode ser entendido como prejuízo injusto e heterônomo porque é causado por outra pessoa e porque a vítima não está obrigada a suportá-lo, nem por lei nem por contrato. Principais classificações: Dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso O dano comporta várias classificações: dano patrimonial e extrapatrimonial, dano ao patrimônio e dano à pessoa, dano ordinário e extraordinário, dano individual e coletivo/difuso. Além disso, dependendo da abordagem, o dano moral comporta uma série de especificações: dano psíquico, dano físico, dano estético, dano existencial. Entre essas classificações, há duas que interessam diretamente à delimitação do nosso estudo: dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso3. A classificação dano ordinário e extraordinário nos faz pensar que existem danos comuns, que acontecem ordinariamente, o que é normal na vida em sociedade; e danos que extrapolam este senso de normalidade, aqueles que não deveriam acontecer nem em nossos piores pesadelos. Além disso, se pensarmos nas consequências do evento danoso, percebemos que alguns danos são individuais porque atingem determinada pessoa ou grupo de pessoas, ao passo que outros são coletivos porque refletem sobre a coletividade. A combinação entre esses fatores - natureza extraordinária e consequências sobre a coletividade - é um problema que tem nos ocupado nos últimos tempos, diante das grandes tragédias que ocorreram em nosso país. Longe de se apontar para este ou aquele culpado, para esta ou aquela empresa, o que nos ocupa é a busca de soluções jurídicas para enfrentar esse tipo de situação. A observação desses fenômenos revela a existência de algumas características que são próprias do dano extraordinário ou dano enorme. Um desses aspectos é a multiplicidade ou indeterminação de suas causas. Outro aspecto é a magnitude de suas consequências. O terceiro é que provocam intensa comoção social4. Os danos extraordinários são danos impregnados de socialidade, tanto em suas causas, como em suas consequências e em sua reflexividade, pois são relacionados com atividades necessárias ao nosso modo de vida em sociedade e suas consequências alcançam, não somente as vítimas diretas, mas também a coletividade como um todo, provocando intensa comoção social. Aqui sobressai em importância a distinção entre danos individuais e danos coletivos. Os primeiros atingem uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, enquanto os segundos atingem uma coletividade ou uma categoria de pessoas indeterminadas ou indetermináveis, por exemplo, os moradores da cidade de Mariana ou os consumidores de determinado produto. Danos sociais: características Acontece que os danos sociais vão um pouco além desta dicotomia entre danos individuais e coletivos. Embora sejam modalidade de dano coletivo em sentido amplo, não se confundem com o denominado "dano moral coletivo", que se caracteriza pela "Ofensa a interesses extrapatrimoniais compartilhados por determinada coletividade, que pode ser uma comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas titular de interesses protegidos pela ordem jurídica"5. Neste passo, é de grande utilidade a conceituação fornecida por Antônio Junqueira de Azevedo acerca dos danos sociais: além dos efeitos produzidos sobre as vítimas diretas e individuais, tais danos produzem um rebaixamento na qualidade de vida da sociedade como um todo, envolvendo aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais de maneira indistinguível6. Por esta razão, podemos dizer que o dano social desafia a dicotomia entre dano moral e patrimonial, porque se trata de um rebaixamento da qualidade de vida de maneira global e não especificável. Pois bem, o dano enorme ou extraordinário se identifica de imediato pela amplitude de suas consequências, podendo-se citar como exemplos o incêndio na Boate Kiss e o rompimento das barragens de minério em Mariana e Brumadinho. Percebe-se também que esses episódios estão relacionados com atividades inerentes ao modo de vida nas sociedades contemporâneas, de sorte que ninguém em sã consciência postularia o fechamento das mineradoras no Brasil ou das casas noturnas. Os danos sociais também são dotados de socialidade em suas consequências, as quais atingem a coletividade como um todo, produzindo um rebaixamento na qualidade de vida da população. É como se fosse um dano existencial de natureza coletiva. Por exemplo, uma companhia de saneamento fornece água de péssima qualidade para a população, obrigando-a a uma vida de sofrimento e sacrifícios. Trata-se de uma situação em que as pessoas poderiam ter uma qualidade de vida melhor, se não fosse a atividade danosa desenvolvida por determinada empresa. Então, para identificar a natureza social do dano devemos entender que: a) não é normal existir aquele tipo de situação; b) há um rebaixamento da qualidade de vida para todas as pessoas, de maneira indistinguível. Estes aspectos estão presentes no rompimento das barragens de minério de Mariana e Brumadinho. Trata-se de situações danosas anormais, que poderiam ser evitadas e cujas consequências ultrapassam o campo das vítimas individuais, alcançando a sociedade como um todo e diminuindo a qualidade de vida das pessoas. Especificamente nestes casos, são danos impregnados de socialidade em suas causas, uma vez relacionados a atividades necessárias ao nosso modo de vida; e socialidade em suas consequências porque produzem rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Autonomia dos danos sociais Devemos ter clareza de que os danos sociais são indenizáveis por si mesmos e não como acréscimo ou extensão aos danos individuais. Ademais, esses danos não se confundem com os danos morais coletivos, cujas consequências atingem uma coletividade de maneira difusa, mas delimitada, ao passo que os danos sociais atingem a sociedade como um todo. Diante de danos catastróficos, como são os casos de Mariana e Brumadinho, há danos para as pessoas diretamente e indiretamente atingidas e há danos para a sociedade como um todo, mediante rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Então, cabe indenização em favor das pessoas direta e indiretamente atingidas e cabe indenização em favor da coletividade, que é vítima desse dano social, pelo rebaixamento da qualidade de vida das pessoas em geral. Em tema de direito do consumidor, os danos sociais têm aplicação aos casos de disponibilização de serviços de má qualidade ao público, de maneira contumaz e de forma generalizada. Por exemplo, nos casos de serviços bancários que sujeitam as pessoas em geral a golpes, mesmo que aplicados por terceiros; nos casos de serviços de internet e de telefonia com falhas e intermitências. Nesses casos, os prejuízos individuais são pequenos, muitas vezes relegados à categoria do mero dissabor. Porém, considerados em seu conjunto, trata-se de prática danosa que atinge não somente os usuários diretos dos serviços, mas a qualidade de vida da sociedade como um todo. Nesses casos, é perfeitamente cabível a propositura de ação de indenização por dano social. O problema da legitimidade ativa Como a vítima do dano social é a coletividade, cabe ao Ministério Público promover a ação indenizatória com vista à reparação (LACP, art. 5º, I). Todavia, há pelos menos dois aspectos a serem explorados. O primeiro é que a Lei da Ação Civil Pública limita as hipóteses de cabimento da ação civil pública à tutela dos bens elencados no art. 1º7. Uma interpretação superficial levaria à conclusão de que somente caberia ação civil pública nas hipóteses elencadas na lei. No entanto, essa disposição contrasta com o direito fundamental de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV). Logo, a melhor interpretação é aquela que admite a legitimidade do Ministério Público para promover ação civil pública com vista à reparação dos danos causados à coletividade: danos sociais. A outra questão é saber se as associações podem promover a mesma ação indenizatória em prol da coletividade, visto que devem estar vinculadas aos seus objetivos sociais, ou seja, à defesa dos direitos e interesses de determinadas categorias de pessoas (consumidores, funcionários públicos, advogados, médicos etc.) ou de bens jurídicos (meio ambiente, o consumo, o patrimônio histórico, artístico e cultural etc.). Neste ponto, faz-se importante a distinção entre dano moral coletivo e dano social, uma vez que as associações são legitimadas a promover a defesa de interesses coletivos delimitados a determinadas categorias de pessoas ou de bens jurídicos relacionados ao seu objeto social, mas não existe associação destinada à defesa dos interesses da sociedade genericamente8. Por isso, é correto dizer que a legitimidade das associações é mais restrita que a do Ministério Público, devendo se ater à abrangência de seu objeto social. De qualquer modo, é possível instituir uma associação com a finalidade específica de promover a reparação de danos ocorridos em determinada localidade, desde que relacionados a alguma das hipóteses descritas na lei: meio ambiente, consumidor, ordem econômica etc. (LACP, art. 5º, V, b). Neste caso, o Ministério Público atuará como litisconsorte ativo ou como custos legis, bem como poderá assumir a autoria em caso de abandono da ação (LACP, art. 5º, §§ 1º e 3º). Ainda no tocante à legitimidade ativa, cabe lembrar que o direito brasileiro não admite a conversão da ação indenizatória individual em ação coletiva, como ocorre com as class actions do direito norte-americano, uma vez que o art. 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa essa possibilidade, sofreu veto presidencial. Desse modo, prevalece o entendimento doutrinário fixado no Enunciado 456 da VI Jornada de Direito Civil do CJF9. Em sede jurisprudencial, merece menção o julgado do Superior Tribunal de Justiça, em regime de controvérsia repetitiva, que, embora reconhecendo a existência de dano social, afastou a possibilidade de fixação da reparação pelo juiz, ex-offício, em ação movida pela vítima individual da ação lesiva10. Assim, diante de fato que caracterize dano social, além dos danos individuais causados às pessoas, cabe ao Ministério Público promover ação civil pública indenizatória. É importante destacar que: [1] não cabe à vítima individual promover ação de reparação de dano social; [2] não é possível ao juiz transformar ação individual em ação coletiva; [3] nem pode o juiz, diante de uma ação individual, determinar de ofício o pagamento de indenização por dano social. Síntese conclusiva Em síntese, os danos sociais são modalidade de dano coletivo, que não se confundem com os danos individuais nem com os danos morais coletivos. Sua principal característica é o rebaixamento da qualidade de vida da sociedade como um todo, de maneira indistinguível, ultrapassando a dicotomia dano patrimonial e extrapatrimonial. Esses danos são indenizáveis por si mesmos, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para promover ação indenizatória em prol da sociedade. __________ 1 GOMES, Orlando. Obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. II. p. 328; ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 187-188; CALVO COSTA, Carlos Alberto. Daño resarcible. Buenos Aires: Hamurabi, 2005. p. 89. p. 61-97. 2 No sentido de que o dano decorre da conduta ou atividade alheia, confiram-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1950. v. II, p. 313; BUERES, Alberto J. Derecho de daños. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 2001. p. 483; ZANNONI, ZANNONI, Eduardo A. El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1982, p. 1; VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, v. I, p. 597; TUHR, Andreas von. Tratado de las obligaciones. Tradução do alemão de W. Roces. Direção de José Luis Monereo Pérez. Granada, Espanha: Editorial Comares, 2007, p. 47. 3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 555-586. 4 SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá; Porto: Juruá, 2018. p. 201-214. 5 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo, LTr, 2004, p. 138. Ver também: TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Curitiba: Juruá, 2014, p. 178-179; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6183. Acesso em: 18 fev. 2021. 6 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381-382. 7 Art. 1º: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III - à ordem urbanística; IV - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - por infração da ordem econômica e da economia popular; VI - à ordem urbanística. 8 A redação original do art. 5º, II, da LACP, era mais aberta, incluindo "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" entre as finalidades das associações. Esta expressão foi retirada do texto pela lei 8.078/1990 (CDC). 9 Enunciado 456: A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas. 10 EMENTA. RECLAMAÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO POR TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS. RESOLUÇÃO STJ N. 12/2009. QUALIDADE DE REPRESENTATIVA DE CONTROVÉRSIA, POR ANALOGIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO INDIVIDUAL DE INDENIZAÇÃO. DANOS SOCIAIS. AUSÊNCIA DE PEDIDO. CONDENAÇÃO EX OFFICIO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. CONDENAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO ALHEIO À LIDE. LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA DEMANDA (CPC ARTS. 128 E 460). PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. NULIDADE. PROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC. 2. A eg. Segunda Seção, em questão de ordem, deliberou por atribuir à presente reclamação a qualidade de representativa de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, por analogia. 3. Para fins de aplicação do art. 543-C do CPC, adota-se a seguinte tese: "É nula, por configurar julgamento extra petita, a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide". 4. No caso concreto, reclamação julgada procedente. (STJ - 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v. u.).
No último dia 28 de setembro foi apresentada pela Comissão Europeia uma Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu que busca adaptar as regras de Responsabilidade Civil extracontratual a casos de danos envolvendo Inteligência Artificial. O presente artigo se propõe, em seu reduzido escopo, a lançar breves e sumaríssimas impressões sobre o documento, sem qualquer pretensão de esgotá-lo, já que sequer houve tempo hábil para destrinchar com maior aprofundamento seus complexos e multifacetados meandros, o que se reserva para um momento posterior. A proposta, que foi apelidada de Diretiva sobre a Responsabilidade Civil da IA (AI Liability Directive), parte do dado concreto de que vários países da União Europeia estão gestando legislações específicas para a temática. Diante desse cenário, e buscando evitar a fragmentariedade das soluções legislativas dentro do bloco, a Comissão sugere a criação de um ferramental que poderá servir de base para os aplicadores do Direito e para as vítimas diante de casos de danos envolvendo IA. A Diretiva, caso aprovada, se integrará ao complexo quebra-cabeças regulatório da Inteligência Artificial proposto pela União Europeia e que já conta, por exemplo, com a Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial [2020/2014(INL)]. Em seu relatório, a Comissão aponta que se corre atualmente o risco de insegurança jurídica, já que a ausência de um corpo comum de regras poderia fazer com que magistrados aplicassem regras internas de forma ad hoc para garantir a justa reparação das vítimas, o que acabaria gerando uma realidade custosa para os atores do mercado, em especial para as pequenas e médias empresas (medium-sized enterprises - SMEs). Regras claras também criariam um reforço na confiança na utilização da IA, bem como incentivos econômicos para que operadores agissem em conformidade com regras de segurança, sendo este um contributo para se prevenir a ocorrência de danos, a ressaltar a função precaucional da Responsabilidade Civil. Além disso, o relatório aponta para a necessidade de se garantir que as vítimas obtenham o mesmo grau de proteção que já obtêm para danos causados por produtos em geral que não se valham de IA. E isso passaria pela criação de um ferramental a ser empregado pelas vítimas e pelos aplicadores do Direito para contornar eventuais problemas de assimetria informacional e técnica, especialmente na produção de provas. Essa necessidade surge diante da constatação do chamado "efeito black box", que dificulta a investigação a apuração de atos praticados por IA, e, por consequência, acaba tornando a prova da culpa e da causalidade verdadeiramente problemáticas para as vítimas. Afinal, se nem mesmo programadores por vezes conseguem descobrir como determinada IA agiu, não há como se pretender que as vítimas alcancem tal desiderato. É importante compreender que a proposta de Diretiva tem escopo de aplicação bastante limitado: serviria apenas para aqueles casos em que as vítimas (ou quem se sub-rogue no seu direito), ingresse com ações judiciais baseadas em Responsabilidade Civil não contratual e de natureza subjetiva, reservando à Product Liability Directive, isto é, a Diretiva de Produtos Defeituosos (para a qual também se apresentou proposta de reforma contemplando a Inteligência Artificial) a disciplina destes casos, que em muito se assemelham às normas do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, embora guardem diferenças substanciais. A Diretiva também não afetaria as regras em vigor que regulam as condições da responsabilidade no setor dos transportes nem as estabelecidas pelo Regulamento de Serviços Digitais, ou Digital Services Act (DSA). Dentro deste âmbito restrito de aplicação, seriam assegurados às vítimas alguns direitos como solicitar em juízo que determinada pessoa (como, por exemplo, fornecedores e utilizadores) forneça elementos de prova sobre um sistema de IA de alto risco suspeito de ter causado dano, quando, por exemplo, tal pedido tenha sido anteriormente negado. Esse procedimento, a que se denomina disclosure of evidence, obedeceria a regras específicas de proporcionalidade e seria utilizado para facilitar a instrução de ações judiciais de indenização. O não atendimento a semelhante requisição judicial poderia acarretar o ônus da presunção de que o agente não agiu em conformidade a um dever de diligência pertinente. Inverte-se, assim, o ônus da prova aos agentes, que precisam reforçar a documentação relativa ao funcionamento dos sistemas de IA. Além disso, inclui-se em dito ferramental (art. 4º, 1) a possibilidade de se afirmar presunção relativa de nexo de causalidade, caso estejam presentes três requisitos cumulativos, a saber: "(a) O demandante demonstrou ou o tribunal presumiu, nos termos do artigo 3.º, n.º 5, a existência de culpa do demandado, ou de uma pessoa por cujo comportamento o demandado é responsável, consistindo tal no incumprimento de um dever de diligência previsto no direito da União ou no direito nacional diretamente destinado a proteger contra o dano ocorrido; (b) Pode-se considerar que é razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que o facto culposo influenciou o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado; (c) O demandante demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado deu origem ao dano." Importante registrar, no entanto, que, em princípio, a menos que tenha havido presunção da culpa, os demandantes precisarão demonstrá-la para terem direito a eventual presunção do nexo de causalidade. Como se afirma em um dos considerandos da Proposta: "Essa culpa pode ser demonstrada, por exemplo, por incumprimento de um dever de diligência nos termos do Regulamento Inteligência Artificial ou de outras regras estabelecidas a nível da União, como as que regulam o uso da monitorização e da tomada de decisões automatizadas para o trabalho em plataformas digitais ou as que regulam o funcionamento de aeronaves não tripuladas. O tribunal também a pode presumir com base no incumprimento de uma decisão judicial de divulgação ou conservação de elementos de prova ordenada nos termos do artigo 3.º, n.º 5."1 O já referido artigo 4º também esmiuça essas regras gerais previstas no item "1", notadamente para modular o disposto na alínea "a", assegurando, por exemplo, em seu item "7", que: "[n]o caso de uma ação de indemnização contra um demandado que tenha utilizado o sistema de IA no âmbito de uma atividade pessoal e não profissional, a presunção estabelecida no n.º 1 só é aplicável se o demandado tiver interferido substancialmente nas condições de funcionamento do sistema de IA ou se o demandado tivesse a obrigação e a capacidade de determinar as condições de funcionamento do sistema de IA, mas não o tenha feito." Tal norma tem importante aplicabilidade prática, pois se destina às situações envolvendo pessoas que utilizem IA de modo não profissional. Ao longo de toda a Proposta, alude-se a normas da Proposta de Regulamento da Inteligência Artificial na União Europeia, o chamado AI Act. Nessa direção, a nova Proposta se utiliza, por exemplo, dos conceitos de IA de alto e baixo risco, determinando, por exemplo, que nos casos de IAs que representem risco elevado, poderia haver uma exceção à presunção de causalidade, caso o demandado venha a demonstrar que "estão razoavelmente acessíveis ao demandante elementos de prova e conhecimentos especializados suficientes para provar o nexo de causalidade."2 A ideia é de que esta possibilidade poderia vir a "incentivar os demandados a cumprirem as suas obrigações de divulgação, as medidas estabelecidas pelo Regulamento Inteligência Artificial para assegurar um elevado nível de transparência da IA ou os requisitos de documentação e registo."3 Por outro lado, nas hipóteses de sistemas de IA que não sejam de risco elevado, o artigo 4º, nº. 5 da Proposta busca estabelecer uma condição para que tal presunção de causalidade seja aplicada, de modo que esta dependeria "de uma determinação do tribunal em como é excessivamente difícil para o demandante provar o nexo de causalidade. Tal dificuldade deve ser apreciada à luz das características de determinados sistemas de IA, como a autonomia e a opacidade, que, na prática, tornam muito difícil explicar o funcionamento interno do sistema de IA, afetando negativamente a capacidade do demandante em provar o nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado da IA."4 Outrossim, é importante consignar, desde já, que a norma não ordena os sistemas internos de Responsabilidade Civil, nem cria hipóteses de imputação. No fundo, o escopo da Proposta está em fornecer um ferramental para as vítimas e para os aplicadores do Direito quando as legislações internas dos países integrantes da União Europeia previrem hipóteses específicas de responsabilidade civil baseada na culpa, diante do chamado "efeito black box" da IA, ao mesmo tempo em que estabelece regras de conformidade claras para os agentes, minimizando os efeitos da insegurança jurídica. Finalmente, não se pode perder de vista que a Diretiva se destina a harmonizar as distintas realidades jurídicas dos países-membros da União Europeia, muitos dos quais contam com normas rígidas que dificultam a prova do dano e, por vezes, sequer apresentam cláusulas gerais de Responsabilidade Civil, ao contrário da realidade brasileira. Daí a importância de não se cair na tentação de sugerir a importação descuidada de inovações legislativas reservadas a cenários distintos, como já se advertiu em outra sede.5 Não há dúvidas de que a Proposta, fruto de intensos, longos e aprofundados debates, é instrumento verdadeiramente útil, especialmente porque tem como escopo claro a garantia de direitos fundamentais das vítimas, ao mesmo tempo em que compreende que é preciso assegurar regras claras, estimulando-se e premiando-se comportamentos diligentes e cooperativos em busca daquela que é, de fato, a mais importante das diretrizes da Responsabilidade Civil na atualidade: a prevenção dos danos. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 2 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 4 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 5 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2. ed. Terceira edição a ser publicada no início de 2023.
Muito já se questionou acerca da importância de novas tecnologias para a consolidação dos impactos da Quarta Revolução Industrial na transição para a Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT) e um dos assuntos de maior destaque é o desenvolvimento de carros autônomos, analisado a partir de várias soluções inovadoras. Exemplo curioso é o da tecnologia LiDAR (acrônimo de Light Radar), baseada no rastreamento da luz refletida por objetos do entorno de um veículo autônomo. Sem dúvidas, trata-se de empolgante tecnologia que vem sendo adotada para o desenvolvimento de carros e navios autônomos - e até mesmo de drones - que independem de um condutor ou piloto1. Para bem contextualizar o assunto, é importante lembrar que foi com as amplamente divulgadas testagens de um Toyota Prius autoguiado, em iniciativa levada a efeito pela Google, Inc. (projeto "Waymo"2), bem como do veículo autônomo Chevrolet Bolt, desenvolvido pela Cruise, LLC3, e do projeto-piloto da fabricante norte-americana Tesla, Inc., que tais discussões passaram a ser concebidas como projetos comerciais. O que se almeja, de fato, é atingir a categoria "nível 5" de autonomia veicular, que é considerada ideal para a oferta de veículos autônomos ao mercado de consumo4. De todo modo, a inconcretude da autonomia faz surgir grande preocupação quanto aos riscos (e falhas) que podem apresentar as máquinas enquadráveis nos níveis mais baixos (que variam de "0" a "4"). É certo que a possibilidade de criar máquinas sofisticadas e capazes de potencializar o desenvolvimento das sociedades levanta uma série de questionamentos éticos, relacionados tanto à necessidade de que se garanta que tais máquinas não causem danos a humanos e outros seres moralmente relevantes, quanto aos aspectos concernentes aos variados estágios de projeto e de desenvolvimento em que se encontram5, e, para o que mais interessa a esse breve ensaio, à responsabilidade civil aplicável em razão de falhas desses sistemas algorítmicos. As propostas dos projetos "Waymo" e "Cruise" são baseadas na citada tecnologia LiDAR para a realização de cálculos matemáticos que projetam a distância do veículo em relação aos objetos que o circundam6. Em milissegundos, dados são coletados e processados para que se crie uma estrutura tridimensional do ambiente7. A partir dela, o algoritmo autoriza ou não a aceleração ou frenagem do automóvel, controlando, ainda, sua velocidade média e eventuais manobras (bruscas ou sutis). Naturalmente, há que se considerar uma série de parametrizações que variam de um fabricante para outro, e entre modelos de automóveis com diferentes dimensões, massa, estrutura aerodinâmica etc. Além disso, o fato de ser uma tecnologia baseada em luminância, ou seja, que mede a densidade da luz com base em feixes que são projetados pelo veículo, refletidos pelo ambiente, que retornam e são recapturados pelo sensor que os projetou, o qual afere, por fórmulas, a distância entre a projeção original e o reflexo capturado, sua principal utilização sempre foi a medição de eixos perpendiculares (abscissas e ordenadas) para mapeamento morfológico, indicando a estrutura de relevo do solo a partir de feixes emitidos por satélites artificiais geoestacionários dedicados ao mapeamento topográfico. Somente agora é que essa tecnologia vem sendo testada para projetos envolvendo veículos autônomos. É nesse contexto que se suscita a dúvida sobre a segurança desses sistemas. Imagens e dados coletados a partir de estruturas de luminância e de radares compõem o conjunto inicial que alimenta o sistema e aciona o algoritmo respectivo. A partir de então, um modelo 3D é gerado e dá início à etapa de navegação veicular propriamente dita. É a partir desse modelo de três dimensões (largura, altura e profundidade) - e de novos dados que serão continuamente coletados e utilizados para identificar os elementos do entorno (a própria estrada, eventuais objetos, suas cores, contornos etc.) - que se dá início à segunda etapa, "interação", pela qual o veículo passará ao processamento de dados e iniciará seu deslocamento. Nesse momento, as sinalizações horizontais e verticais serão consideradas, bem como eventuais objetos e obstáculos, como transeuntes e outros automóveis. É a etapa mais crítica do processo, pois é nela que eventuais colisões e atropelamentos podem ocorrer. Na terceira etapa, descrita como "raciocínio"8, tem-se a estruturação de rotinas cíclicas de tomada de decisão. Os dados que chegam a esse estágio já foram tratados e filtrados anteriormente para que, então, seja viável a aferição contextual das consequências de eventual decisão (acelerar, frear, mudar a trajetória, gerar um alerta etc.). E o ciclo se repete continuamente, com novos dados, novos contextos e novas decisões. O veículo e sua composição material são mero objeto, controlado por um algoritmo (software) complexo, que considerará espaço, tempo, velocidade, contexto, natureza dos outros objetos dos arredores, riscos de colisão, potenciais danos9 e que, enfim, "decidirá" como "reagir" a tudo isso. É nessa etapa do processo que decisões algorítmicas, baseadas em predições estatísticas, são implementadas10. Também é nesses ciclos decisionais que eventuais erros podem gerar danos! E, entre o previsível e o imprevisível, o ponderável e o imponderável, há decisões que ultrapassam a mera heurísticas... São decisões morais. Iniciativas como a Moral Machine ("Máquina Moral"), do Massachusetts Institute of Technology - MIT, propõem a testagem das decisões tomadas por humanos em cenários extremos (de "dano ou dano")11. Um carro autônomo ilustrativo é apresentado em situações nas quais, por exemplo, um pedestre atravessa a pista e é preciso escolher entre a manutenção do percurso, que causará o atropelamento e a morte do pedestre, ou, alternativamente, o desvio de percurso, implementado para salvar o pedestre, mas causando a colisão ou perda de controle do veículo e a morte certa do passageiro que está em seu interior12. Por óbvio, havendo erro, seja pela má coleta, seja pelo mau processamento, seja ainda pela inviabilidade de solução algorítmica para o problema, corre-se o risco de que a decisão tomada seja contaminada por vieses. Em simples termos, o enviesamento algorítmico (algorithmic bias)13 indica a falha 'no consequente', que pode gerar dano. Entretanto, é preciso que se considere o 'antecedente', ou seja, que se investigue o percurso causal do processo heurístico para que seja possível aferir se a decisão eivada de vício foi tomada em função de uma falha ocorrida em etapa prévia, que tenha acabado por macular os estágios de processamento subsequentes. Em 2019, a grande mídia noticiou haver maior propensão de carros autônomos baseados na tecnologia LiDAR ao atropelamento de pessoas negras, denotando possível natureza discriminatória do algoritmo14. De fato, é usual que debates envolvendo o assunto "inteligência artificial" gerem sonoras polêmicas, inclusive do ponto de vista terminológico, pois ainda não se atingiu o especulativo e distópico momento da "singularidade tecnológica"15 descrita por Vernor Vinge e Ray Kurzweil. Além disso, o tema é permeado por inconsistências e incertezas, que tornam qualquer pretensão regulatória um desafio ainda maior. Nos Estados Unidos da América, foi apresentado, em 12 de dezembro de 2017, o "Fundamentally Understanding the Usability and Realistic Evolution of Artificial Intelligence Act", ou apenas "Future of AI Act"16, que é bastante apegado à correlação entre o conceito de IA e o funcionamento do cérebro humano, denotando proximidade conceitual com a ideia de "singularidade tecnológica". Tal documento indica, ainda, diretrizes éticas para o fomento ao desenvolvimento algorítmico, mas não aborda a responsabilidade civil de forma direta. Alguns documentos mais recentes, como o Artificial Intelligence Act europeu de 202117 (2021 EU AIA) e o recentíssimo Algorithmic Accountability Act norte-americano de 202218 (2022 US AAA), que atualizou a versão anterior, de 201919, evitam a discussão terminológica sobre o alcance semântico do termo "inteligência", preferindo se reportar a "sistemas decisionais automatizados"20 (Automated Decision Systems, ou ADS's) para explicitar a necessidade de que seja definido um regime de responsabilidade civil aplicável em decorrência de eventos danosos propiciados por tais sistemas, e, até mesmo, para reafirmar a importância da estruturação de parâmetros éticos para o desenvolvimento de algoritmos. Segundo abalizada doutrina21, os documentos citados possuem qualidades que podem servir para mútua inspiração, denotando a importância da adequada assimilação semântica (além de outros temas) para a evolução das discussões até mesmo a nível global. No Brasil, os projetos de lei 5.051/19, 21/20 e 872/21 visam regulamentar o tema em linhas gerais (e não apenas para o contexto dos carros autônomos), priorizando a delimitação de um sistema de responsabilização baseado na anacrônica teoria da culpa, que simplesmente não faz sentido para tutelar matéria tão complexa. Todavia, em fevereiro de 2022, foi instituída, pelo Senado Federal, a elogiável "Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA" (CJSUBIA). Já foram realizadas diversas reuniões e audiências públicas e os trabalhos de elaboração do substitutivo, com término originalmente previsto para 9/8/22, tiveram seu prazo prorrogado para 7/12/2222. Sem dúvidas, as atividades da comissão merecem efusivos encômios e seus membros são extremamente competentes. Por isso, espera-se que seja apresentado um projeto substitutivo que mais se aproxime da solução adotada na União Europeia, que há anos discute a matéria em caráter prospectivo, primando por estratificar as soluções possíveis para cada contexto, a depender do grau de risco que a atividade implique. O exemplo da tecnologia LiDAR simboliza bem isso, pois, sendo baseada em feixes de luz e na aferição da luminância para o mapeamento de obstáculos, suas falibilidades e sua previsibilidade (foreseeability) permitem, com absoluta segurança, identificar o liame causal para viabilizar a responsabilização civil do fabricante que coloca no mercado um automóvel baseado em tal tecnologia, com supedâneo na teoria do risco. Eis algumas das razões: (i) são sensores costumeiramente utilizados para o mapeamento topográfico, tendo sido apenas recentemente aplicados a veículos autônomos; (ii) a dependência dos sensores de verificação da luminância acarreta riscos de enviesamento de dados nos processos ulteriores à coleta; (iii) a dependência do algoritmo quanto à qualidade dos dados reduz a possibilidade de redundância do sistema, acarretando a deturpação dos resultados nos estágios de processamento de decisões e inviabilizando o monitoramento de erros e a auditoria de dados; (iv) não há clareza quanto à inclusão de backdoors nos carros autônomos baseados em LiDAR (como "freios de emergência", by design), recursos de desligamento automático ("shut down") ou recursos que permitam aos operadores ou usuários "desligar a IA" por comandos manuais, ou torná-la "ininteligente" ao pressionar um botão de pânico. Logo, ao invés de simplesmente acolher um regime geral de responsabilidade civil subjetiva para eventos envolvendo falhas de sistemas de IA, mais prudente seria que o Brasil reconhecesse a plêiade de situações com maior ou menor propensão à causação de danos a partir de tais sistemas, viabilizando soluções condizentes com as particularidades de cada situação, tal como definido no recente documento europeu (2021 EU AIA), no qual se optou pela regulação por abordagem baseada em riscos (risk-based approach). No caso do LiDAR, sendo evidentes os riscos, objetiva seria a responsabilização. E também assim poderia ser no Brasil. Nesse ponto, filiamo-nos ao pensamento de Nelson Rosenvald23, que destaca, com argumentos sólidos, a necessidade de que o substitutivo ao projeto de lei brasileiro supere o singelo modelo subjetivista e avance nesse debate, ampliando a compreensão que se tem sobre a teoria do risco para abarcar múltiplas camadas que a catalisem, a exemplo da accountability e da answerability. ---------- 1 Algumas reflexões iniciais em torno do tema e que serviram de inspiração para esta coluna foram extraídas de artigo que escrevi em 2020, a saber: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Discriminação por algoritmos de Inteligência Artificial: a responsabilidade civil, os vieses e o exemplo das tecnologias baseadas em luminância. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 1007-1043, 2020. 2 FINGAS, Jon. Waymo launches its first commercial self-driving car service. Engadget, 5 dez. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 3 OHNSMAN, Alan. GM's Cruise Poised To Add 1,100 Silicon Valley Self-Driving Car Tech Jobs. Forbes, 04 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 4 GOH, Brenda; SUN, Yilei. Tesla 'very close' to level 5 autonomous driving technology, Musk says. Reuters, 09 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 5 BOSTROM, Nick; YUDKOWSKY, Eliezer. The ethics of Artificial Intelligence. In: FRANKISH, Keith; RAMSEY, William (ed.). The Cambridge Handbook of Artificial Intelligence. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 316. 6 Cf. NEFF, Todd. The laser that's changing the world: the amazing stories behind LiDAR for 3D mapping to self-driving cars. Nova York: Prometheus, 2018. E-book. 7 ÖZGÜNER, Ümit; ACARMAN, Tankut; REDMILL, Keith. Autonomous ground vehicles. Boston: Artech House, 2011, p. 86-87. Explicam: "A scanning laser range finder system, or LIDAR, is a popular system for obstacle detection. A pulsed beam of light, usually from an infrared laser diode, is reflected from a rotating mirror. Any nonabsorbing object or surface will reflect part of that light back to the LIDAR, which can then measure the time of flight to produce range distance measurements at multiple azimuth angles". 8 CHENG, Hong. Autonomous intelligent vehicles: theory, algorithms, and implementation. Londres: Springer, 2011, p. 13. 9 SIEGWART, Roland; NOURBAKHSH, Illah. Introduction to autonomous mobile robots. Cambridge: The MIT Press, 2004, p. 90. 10 FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 15-22. 11 BELAY, Nick. Robot ethics and self-driving cars: how ethical determinations in software will require a new legal framework. The Journal of the Legal Profession, Tuscaloosa, v. 40, n. 1, p. 119-130, 2015, p. 119-120. Anota: "Perhaps most notably, machines will have to make decisions regarding whom to save or protect in the event of a collision or unforeseen obstacle". 12 MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY. Moral Machine. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 13 DANKS, David; LONDON, Alex John. Algorithmic bias in autonomous systems. Proceedings of the Twenty-Sixth International Joint Conference on Artificial Intelligence (IJCAI-17), Viena, p. 4691-4697, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 14 KIM, Theodore. Op-Ed: AI flaws could make your next car racist. Los Angeles Times, 7 out. 2021. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; HERN, Alex. The racism of technology - and why driverless cars could be the most dangerous example yet. The Guardian, 13 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022; VIEIRA, Laís. Carros autônomos podem atropelar mais pessoas negras do que brancas. R7, 11 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 15 A "singularidade tecnológica" seria o momento teorético e futuro no qual o avanço e a sofisticação de sistemas algorítmicos propiciaria verdadeira simbiose - e possível indistinção - entre o 'biológico' e o 'tecnológico'. Conferir, sobre o tema, VINGE, Vernor. The coming technological singularity: How to survive in the post-human era. In: Interdisciplinary Science and Engineering in the Era of Cyberspace. NASA John H. Glenn Research Center at Lewis Field, Cleveland, 1993, p. 11-22. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; KURZWEIL, Ray. The age of spiritual machines: when computers exceed human intelligence. Nova York: Viking, 1999. p. 213; BARBOSA, Mafalda Miranda. Inteligência artificial, e-persons e direito: desafios e perspectivas. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 3, n. 6, p. 1475-1503, 2017, p. 1501-1502. 16 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 4625, Dec. 12, 2017. FUTURE of Artificial Intelligence Act. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 17 EUROPA. European Commission. Artificial Intelligence Act. 2021/0106(COD), abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 18 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 6580, Feb. 3, 2022. Algorithmic Accountability Act of 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 19 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 2231, Apr. 10, 2019. Algorithmic Accountability Act of 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 20 Cf. SELBST, Andrew. An institutional view of algorithmic impact assessments. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 35, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 21 The US Algorithmic Accountability Act of 2022 vs. The EU Artificial Intelligence Act: what can they learn from each other? Minds and Machines, Cham: Springer, v. 22, p. 1-9, jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 22 BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA). Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 23 ROSENVALD, Nelson. A falácia da responsabilidade subjetiva na regulação da IA. Migalhas, 13 maio 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022.
O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, no dia 18 de maio de 2022, decidiu de forma monocrática pelo não provimento do AREsp 2.087.249-RS1, mantendo incólume a decisão do TJRS que não considerou como defeituosa a prestação do serviço do laboratório que forneceu resultado equivocado para Hepatite C, em razão da existência de advertência para complementação do exame. Constou na fundamentação da decisão que a inserção de informação clara e precisa no exame quanto à necessidade de confirmação do resultado obtido por intermédio de outros exames, especialmente pelo diagnóstico médico, impede a configuração do defeito, uma vez que os resultados obtidos não são "conclusivos". Com o não provimento do AREsp foi interposto AgInt no Agravo em Recurso Especial 2.087.249-RS, que foi distribuído à Relatoria do Ministro Antônio Carlos de Ferreira que, igualmente, manteve a decisão monocrática recorrida, a qual foi acompanhada em unanimidade pelos demais Ministros da Quarta Turma, no dia 29 de agosto de 2022. A nova decisão do STJ demonstra o acolhimento ao entendimento antigo do TJRS, no sentido de não admitir a existência de defeito em exame laboratorial equivocado, quando constar advertência expressa para a confirmação do resultado por intermédio de outros exames. Esse novo entendimento da Quarta Turma é contraposto ao entendimento que prevalece há mais de vinte anos no STJ, capitaneado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar2, quanto à configuração do defeito nos resultados laboratoriais equivocados, ou seja, o mero equívoco no resultado configura defeito na prestação de serviços do laboratório de análises clínicas, mas isso não significa o dever de indenizar, pois exige a presença dos pressupostos. A divergência de entendimentos quanto à configuração do defeito e consequente falha na prestação dos serviços é justamente o que se pretende discutir no presente artigo. É pacífico o entendimento do STJ sobre a relação contratual de resultado e de consumo entre o laboratório e o consumidor; a incidência da responsabilidade subjetiva quanto a apuração de possível responsabilidade do médico Patologista que laudar o exame clínico; incidência da responsabilidade objetiva do laboratório por danos causados aos consumidores em qualquer fase da prestação dos serviços, com a aplicação do artigo 14 do CDC3; bem como a possibilidade de indenização por dano moral, desde que efetivamente comprovado o dano pelo consumidor4. O parâmetro legal é o CDC e a segurança do serviço é determinante na configuração do defeito, como estabelece o artigo art. 14, § 1°5: "o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido" (grifos nossos). Contudo, salvo comprovação por parte do prestador de serviços quanto à inexistência de defeito, responsabilidade exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 14, § 3°), o laboratório será responsabilizado objetivamente quando configurar um defeito, haja vista tratar-se de inversão ope legis, como bem destacou o Ministro Marco Buzzi, na decisão monocrática proferida em abril de 2022, no Recurso Especial 1.979.899 - SP6. Por outro lado, a falha pela ausência ou deficiência da informação transmitida ao consumidor em qualquer uma das fases contratuais, também viola a segurança do serviço prestado e configura um defeito nos termos do que dispõe o CDC, no art. 14: "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos" (grifos nossos). Dessa forma, quando o laboratório não adverte o consumidor no exame quanto à necessidade de complementação de outros exames e análise médica para confirmação do resultado, ou mesmo não especifica qual a metodologia utilizada para obtenção do resultado apresentado no laudo, teremos uma hipótese de insegurança ao consumidor, pela ausência ou deficiência das informações, configurando igualmente o defeito na prestação dos serviços do laboratório. Obviamente que a informação correta e precisa é imprescindível para garantir a segurança do consumidor quanto ao serviço laboratorial prestado. No entanto, não se trata de uma excludente da responsabilidade, mas mera atenuante, como explicava o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao asseverar no seu julgado: "[...] ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada". Como consta no CDC, a informação é uma das formas de configuração do defeito e não uma excludente da responsabilidade objetiva do laboratório. Portanto, caso esse entendimento permaneça, os prestadores de serviço laboratorial poderão inserir uma cláusula padrão nos laudos, como subterfúgio para violar uma obrigação prevista em lei (art. 14, CDC) e unânime no STJ, até então. No mais, os erros em exames laboratoriais serão ainda mais tolerados após a fundamentação constante do novo julgado, que consignou: "a toda evide^ncia, a ressalva constante do laudo, sugerindo a realizac¸a~o de exame confirmato'rio, permite que se conclua que resultados falso positivos podem ocorrer com certa freque^ncia em exames dessa natureza" (grifos nossos). A ressalva de eventual necessidade de exame complementar não pode ser justificativa para escusa de "erro grosseiro" (REsp 1.979.899 SP)7. Não podemos confundir complementação de exames e análise diagnóstica pelo médico com erro de resultado. O resultado de exames laboratoriais ou de imagem equivocado é antigo na sociedade e, mesmo com todo o avanço da tecnologia, ainda nos deparamos com constantes resultados errados ou divergentes, que são atribuídos pelos prestadores dos serviços aos equipamentos, à metodologia, à falta de conclusividade dos exames, entre outros. Nesse sentido, o Presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial no biênio 2018/2019, analisou os exames laboratoriais e erros de diagnóstico em 2017, demonstrando o importante papel dos exames laboratoriais no diagnóstico dos pacientes, por corresponderem a 70% dos dados utilizados pelos médicos. Entretanto, mesmo com esse grau de importância, destacou que muitos estudos norte-americanos revelaram que 13,6% dos casos de erros nos exames decorreram da falha na interpretação e 14,7% estão relacionados a falha nos processos de diagnóstico. Ao mesmo tempo, concluiu, com base no relatório do Institute of Medicine (IOM): "[...] o sistema de trabalho e a cultura existentes na assistência à saúde não favorecem o processo de diagnóstico, que é tido como resultante de um esforço colaborativo e envolve cooperação entre membros de uma mesma equipe e entre diferentes profissionais, podendo ocorrer em consequência de erro humano ou de erro sistêmico"8, portanto, entendeu que é necessária uma cultura organizacional de cooperação entre Radiologistas e Patologistas, que valorize a discussão, visando reduzir o índice de erro nos exames laboratoriais.   Entretanto, independentemente da causa do resultado de um exame laboratorial ou de imagem equivocado, quando isso ocorre, claramente temos uma falha na prestação desse serviço, pouco importando para o consumidor o que foi determinante para a ocorrência desse fato. Por outro lado, mesmo que se tenha uma falha na prestação dos serviços, isso por si só não tem o condão de configurar um defeito, nos termos do decidido pelo STJ e, muito menos de desencadear o dever de indenizar, como erroneamente nos deparamos em demandas, sem o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, especialmente o dano, como bem analisou o Ministro Raul Araújo, no Recurso Especial 1.556.253-RJ9. Como regra, para existir o dever de indenizar dos laboratórios por resultados equivocados, será necessário o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil objetiva, ou seja, conduta defeituosa, dano e nexo de causalidade. Diante de todo o contextualizado, resta a análise do dano efetivo e real capaz de desencadear o dever de indenizar. Nesse contexto, temos que a lesão poderá ser patrimonial ou extrapatrimonial, que se apresentará através de um tratamento, uma hospitalização, um prolongamento da hospitalização ou mesmo o sofrimento brutal ocasionado pelo resultado equivocado ou pela forma como a informação foi transmitida, especialmente na hipótese de doenças graves, entre outros. No caso em comento, relativo ao AREsp 2.087.249-RS, constou na fundamentação: "é imperioso enfatizar, ainda, que a demandante na~o comprovou ter sofrido qualquer prejui´zo advindo do resultado laboratorial, o^nus que lhe cabia, nos termos do artigo 373, I, do CPC, e do qual na~o se desincumbiu a contento. Nesse cena´rio, na~o havendo provas do suposto dano moral sofrido, tampouco de ato ili´cito cometido pela parte demandada, consubstanciado na falha na prestac¸a~o do servic¸o laboratorial, na~o ha´ como acolher o pleito autoral de indenizac¸a~o por danos morais". Efetivamente, no caso analisado, a parte consumidora não sofreu qualquer dano moral. Isso porque, imediatamente após o recebimento do resultado falso positivo de Hepatite C, procurou a sua médica, que solicitou a realização de novo exame, tendo em vista a inexistência de sintomas compatíveis com a doença diagnosticada no exame laboratorial. Com isso, pouco tempo após o exame falso positivo, obteve o resultado correto, que indicou a inexistência de doença. Em razão de todo o exposto, se conclui que a consumidora não realizou nenhum tratamento e não teve qualquer prejuízo decorrente do laudo laboratorial errado. Contudo, restou configurado o defeito no serviço, em que pese a inexistência de dano, reforçando o entendimento consolidado do STJ.   __________ 1 STJ, AREsp. 2.087.249-RS, Min. Humberto Martins. J. 18.05.22. DJe.18.05.22. Disponível aqui. 2 STJ, REsp. 401.592- DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar. J. 16.05.2002. DJe.02.09.2002. RESPONSABILIDADE CIVIL. Laborato´rio de ana´lises cli´nicas. HIV. Responsabilidade do laborato´rio que fornece laudo positivo de HIV, repetido e confirmado, ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada. Ale´m disso, o laborato´rio assumiu a obrigac¸a~o de realizar exame com resultado veraz, o que na~o aconteceu, pois os realizados depois em outros laborato´rios foram todos negativos. Recurso conhecido e provido. Disponível aqui.  3 STJ, REsp 1.653.134/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3 T, J. 17.10.2017, DJe 23.10.2017; REsp 1.700.827/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 05.11.2019, DJe 08.11.2019; REsp 1.426.349/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 11.12.2018, DJe 02.02.2019; REsp 1.386.129/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 03.10.2017, DJe 13.10.2017; REsp 1.071.969/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 02.02.2010, DJe 01.03.2010;  4 STJ, AREsp 1.185.944/GO, Decisão monocrática da Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, J. 04.12.2017, DJe 04.12.2017  5 BRASIL. Lei 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. 6 STJ, REsp. 1.979.899-SP, Rel. Min. Marco Buzzi. J.04.04.22. DJe.04.04.2022. Disponível aqui. 7 SHCOLNIK, Wilson. Exames laboratoriais e erros diagnósticos. Publicado em 21.11.2017, Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial. Disponível aqui.  Acesso em: 18.09.22.     8 STJ, REsp. 1.556.253-RJ, Min. Raul Araújo. J.24.09.19. DJe.24.09.19. Disponível aqui. 9 CVS - SP. Portaria n. 13, de 04 de novembro de 2005, do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo,  que aprova NORMA TE´CNICA que trata das condic¸o~es de funcionamento dos Laborato´rios de Ana´lises e Pesquisas Cli´nicas, Patologia Cli´nica e Conge^neres, dos Postos de Coleta Descentralizados aos mesmos vinculados, regulamenta os procedimentos de coleta de material humano realizados nos domici´lios dos cidada~os, disciplina o transporte de material humano e da´ outras provide^ncias. Disponível aqui.
Nos quatro rincões desse país, não há um causídico, julgador ou membro do Ministério Público que no seu mister não se depare com a seguinte expressão nas sentenças/acórdãos que versam sobre dano moral: "atendendo a dupla função da responsabilidade civil (compensatória/punitiva) fixo o valor da indenização em R$...". O dito jargão mostra seus tentáculos nas mais diversas matérias: consumidor, que teve a bagagem extraviada; trabalhador, vítima de assédio moral; administrativo, no caso de morte de detento; família, quando o/a cônjuge é traído(a) com exposição pública; direito de vizinhança, quando altas músicas incomodam o confinante; contratos, quando a obra atrasa frustrando os projetos do casal; direitos da personalidade, quando a honra é vilipendiada; lei maria da penha, quando a mulher é violentada; etc. Contudo, por trás da ingênua e bem-intencionada expressão, escamoteiam-se violações - das graves - de diversas normas fundamentais do processo civil, notadamente da inércia, do contraditório, da fundamentação da decisão judicial e da dignidade da pessoa humana. Para demonstrar essa hipótese, serão explicados brevemente os conceitos relativos as aludidas funções da responsabilidade civil e as nomas fundamentais mencionadas, para ao final mostrar um diuturno convívio da prática jurídica da responsabilidade civil com a corrosão de pilares para um processo justo, com o objetivo de provocar uma reflexão acerca de quais caminhos a comunidade jurídica deve perquirir em matéria de direito de danos nessa zona em particular. Um parêntese, porém, para deixar claro que a responsabilidade civil desempenha multifacetadas funções, como a restitutória de lucros ilícitos, a preventiva, a reparatória, a promocional, dentre outras1. Mas, fiel ao recorte metodológico alhures destacado, o presente texto irá se ater apenas a função compensatória e punitiva. Adiciona-se também que existem dezenas de outras normas fundamentais no processo civil - para além das sublinhadas no introito), como a igualdade, a boa-fé, a efetividade, a primazia de mérito, a eficiência, a publicidade, o respeito a ordem cronológica de conclusão etc. Contudo, de modo a tornar possível a ideia que será aqui exposada, haverá uma concentração apenas no contraditório, dignidade da pessoa humana, fundamentação da decisão judicial e inércia. A função denominada de compensatória, com arrimo no art. 944 do CC/2002, visa a encontrar um valor indenizatório que se aproxime em maior medida possível da real magnitude do dano e do descalabro sofrido pela vítima. É a famosa busca por anular perdas imerecidas e injustas, com o diferencial que em se tratando de danos de ordem extrapatrimonial, como não é possível pôr exatamente a vítima em uma situação tal qual não tivesse ocorrido o dano, diz-se que tal função perquire amenizar as consequências danosas, sem perder de vista que apesar de impossível o retorno ao "status quo ante" o julgador deve estar comprometido com uma séria e profunda análise do valor que faça frente de forma proporcional ao mal causado. Nessa linha, diante da pergunta se haveria dinheiro que apagasse a morte de um filho ou a amputação de uma perna, Mazeaud e Tunc (1977, p. 438) ponderam: Es ésa una razón para negarle a la víctima el abono de daños y perjuicios?  En manera alguna; porque se trata precisamente de  ponerse  de  acuerdo acerca del exacto sentido de la palabra reparar. Repararun daño no es siempre  rehacer  lo  que  se  ha  destruido;  casi  siempre  suele ser darle a la víctima la posibilidad de procurarse satisfacciones equivalentes a  lo  que  ha  perdido.  El verdadero  carácter  del  resarcimiento  de  los  daños  y perjuicios es un papel satisfactorio. Hay que reconocer que el dinero no sólo facilita un  enriquecimiento  intelectual  o  artístico,  sino  que  le  da  a  quien  lo  recibe la posibilidad de aliviar por sí mismo muchos sufrimientos. Por lo tanto, no es  chocante  permitirle  a  un  padre  o  a  una  atenuación  a  su  pena  en  el  consuelo  que  llevarán  a  niños  desventurados.  Concederles esa  posibilidad  es desde  luego  reparar  el  daño,  a  menos  en  cierta  medida. Portanto, os critérios para a quantificação do dano moral nada mais são do que formas de identificar que a suposta vítima sofreu desequilíbrio injusto, o qual se manifesta em diversas dimensões da vida humana, sendo possível de forma exemplificativa avaliar alguns parâmetros, como o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc. A reforma trabalhista, no art. 223-G da CLT, é o dispositivo legal que mais traz bússolas para o julgador, caminhando bem em alguns pontos e pecando em outros.2 De outra ponta, a função punitiva é uma verba que tem por objetivo fixar um valor além do suficiente para compensar o dano, com o escopo de desestimular o ofensor a praticar novamente um ato marcado por alto grau de censurabilidade, que será aferida conforme a maior ou menor presença dos seguintes elementos: a) condutas ilegais reiteradas; b) aproveitamento de pessoas vulneráveis; c) indiferença com a vítima; d) práticas arquitetadas maliciosamente; e) danos físicos; f) risco de não se responsabilizar por todos os danos de ordem difusa ou coletiva etc. Como o direito brasileiro não possui previsão legal expressa de tal função, os contornos acima têm por base a experiência norte-americana (punitive damages), com parâmetros de casos julgados pela Suprema Corte, como o BMW of North America, Inc. v. Gore (1996), State Farm Insurance v. Campbell (2003) e Philip Morris v. Williams (2007), assim como a depuração conceitual do § 908 do Restatement of Torts, elaborado pelo American Law Institute: "indenização que não a compensatória, concedida contra uma pessoa para puni-la por sua conduta ultrajante e dissuadi-la, e outras como ela, de praticarem condutas semelhantes no futuro". Pois bem. Antes de fazer o entrelace propugnado na parte inicial do texto, resta conceituar brevemente as normas fundamentais descritas. A inércia (art. 2ª do CPC) exige que o Judiciário seja provocado para a tutela jurisdicional seja realizada e, como desdobramento disso, o juiz só pode julgar o conflito nos exatos limites do pedido (art. 492 do CPC). O contraditório (art. 9º/10º do CPC) é o direito de a parte participar ativamente do processo dentro da tríade informação-reação-influência. A fundamentação da decisão judicial (art. 11) determina que o magistrado demonstre as razões de cunho fático e jurídico que dão sustentáculo a conclusão, sem perder de vista que ao empregar conceitos indeterminados e invocar dispositivos legais sem demonstrar a sua pertinência com o caso eiva a decisão de nulidade (art. 489, § 1º, I e II). Por fim, a dignidade da pessoa humana no processo civil (art. 8º do CPC) representa a ideia de que o juiz deve estar comprometido em resguardar e promover aspectos básicos para o florescimento humano na dimensão existencial. Agora compreendamos como essas normas fundamentais são corriqueiramente vulneradas.             Inércia Juízes não mudam o mundo e não devem se arvorar em resolver problemas crônicos de injustiça na sociedade sem o correspondente permissivo legal, sob pena de exercício impróprio da jurisdição. Basta lembrar do embate entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Este foi criticado por aquele por ter declarado inconstitucional o crime de aborto numa turma, descumprindo a reserva de plenário, gerando como resposta a famosa frase "você é uma mistura do mal com atraso, com pitadas de psicopatia". De todo modo, se na petição inicial o advogado fundamenta apenas na finalidade compensatória, não pode o juiz, que não é a palmatória da maldade no mundo, atribuir na sentença quantificação de cunho punitivo com a nobre tarefa de "desestimular condutas nefastas", embora já tenha sido propugnado por Hans Kelsen (1979, p. 164) que a sanção civil de indenização já desempenha naturalmente o papel de prevenir danos. Se a indenização punitiva, mesmo que requerida na exordial, por si só já é extremamente criticada enquanto mecanismo de prevenção de danos sem previsão legal, imagine a sua utilização como jargão de toda e qualquer demanda envolvendo dano moral. Ah, mas e os "repeat players", que calculam meticulosamente a prática do ilícito lucrativo, praticando em escala massificada danos a grupos de pessoas? Para isso, não esqueçamos que os direitos da personalidade possuem a tutela inibitória (art. 12 do CC/02), a Lei da Ação Civil Pública permite esse tipo de proteção para proteger grupos de pessoas. E, de forma mais aprofundada, aconselho o estudo do dano moral coletivo e da função de restituição de ganhos ilícitos, quem sabe uma saída legítima para esse imbróglio, como vem ensinando o professor Nelson Rosenvald. Contraditório Merece reflexão também a indevida aglutinação que os juízes e tribunais brasileiros realizam com a indenização punitiva, inserindo-a dentro da compensatória sem destacar qual o valor é punitivo qual é compensatório. Nesse caminho, não se possibilita que o jurisdicionado e a sociedade identifiquem o que é compensatório e o que é punitivo, não garantindo o direito de recorrer, por exemplo, apenas da parte punitiva, debatendo seus fundamentos. Ademais, como se não bastasse a junção das verbas, muitas vezes se tem decisão surpresa, imprimindo viés punitivo na decisão sem que tenha oportunizado a manifestação sobre este ponto. Fulmina-se, portanto, duplamente, o direito de participar ativamente do processo, pilar do contraditório. Fundamentação da decisão judicial A norma fundamental da fundamentação da decisão judicial possui uma dupla afetação: na indenização compensatória e na punitiva. Na compensatória, ao invocar o conceito jurídico indeterminado do art. 944 do CPC (o valor da indenização mede-se pela extensão do dano), muitos juízes deixam de ser valor de parâmetros para justificar como alcançaram o quantum, utilizando expressões como proporcionalidade, mas sem fazer o cotejo nos autos com os inúmeros parâmetros que a doutrina desenvolveu para uma justa fixação:  o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc. É claro que juiz é e sempre será o senhor da fixação do valor indenizatório, porém, pelo próprio dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88) e pelo fato de que o juiz deve justificar racionalmente a interferência do Estado na esfera jurídica das pessoas, é salutar que no corpo da decisão judicial haja a busca por justificativas adequadas sobre a real magnitude das consequências danosas. No tocante a indenização punitiva, também se convive com falhas de fundamentação. Apesar de o instituto não estar previsto expressamente, ao menos caberia aos juízes trazer elementos nos autos pertinentes aos requisitos teóricos do instituto, como o alto grau de censurabilidade da conduta e o risco de o réu não pagar por todo o mal que fez, prejudicando o dever de fundamentação da decisão judicial. Dignidade pessoa humana A tarefa de arbitrar a indenização por dano moral deve ser um trabalho individualizado para a vida da vítima, jamais limitado a uma prova dos autos ou a um caso já julgado, pelo que se rechaça a pré-fabricação de valores indenizatórios presentes em gabinetes de alguns juízes e desembargadores. A norma processual que cabe ao juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico "promover a dignidade da pessoa humana", no campo da responsabilidade civil, indica que o julgador deve instruir o processo para compreender de forma fidedigna o que a vítima teve obstaculizado em sua vida após o dano, inclusive pela possibilidade de produção de provas de ofício (art. 370 do CPC). O valor da indenização sempre será uma forma de atenuar o mal causado, sem ter o condão de restaurar integralmente o equilíbrio anteriormente existente. Contudo, mesmo a função compensatória tendo uma tarefa mais árdua no campo do dano moral, ainda assim é preciso levar à sério a dimensão normativa da vítima, no sentido de investigar tudo aquilo de interesse juridicamente protegido que lhe foi afetado. A indenização é um remédio que visa a impor uma obrigação destinada a recompor os direitos da vítima, e, tanto quanto possível, lhe dar o equivalente aos seus direitos e interesses violados. Isso implica em mergulhar a fundo na identificação de todos os interesses jurídicos violados, e, ao mesmo tempo, na compreensão da magnitude dos danos, de modo a possibilitar não somente a caracterização de um dano como indenizável, mas também de proporcionar um valor monetário equivalente ou proporcional à total extensão normativa dos danos, da forma mais aproximativa possível. Em verdade, se atravessa um estágio de litigação de massa na qual os magistrados tentam gerir uma quantidade de processos descomunal, mas isso não pode impedir que estude a fundo a magnitude do dano em todas as suas nuances. Aliás, em tempos de crise no bojo de uma sociedade massificada e individualista só se reforça a busca pela máxima proteção da pessoa humana e de uma responsabilidade civil levada à sério, primando por uma leitura humanista, como assevera Pietro Perlingieri, ensinando que é preciso ler o direito civil não mais sob a ótica produtivista, mas sim "'relê-lo' à luz da opção ideológico-jurídica constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. As épocas de decadência moral e civil são aquelas nas quais a justiça civil é a grande derrotada" (1997, p. 4/6). ---------- 1 Para maior aprofundamento: ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3ª ed. Saraiva: São Paulo, 2017. 2 Para mais subsídios ler: BONNA, Alexandre Pereira; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. A quantificação do dano moral compensatório: em busca de critérios para os incisos V e X do art. 5o da CF/88. Revista Jurídica da Presidência   Brasília   v. 21 n. 123 Fev./Maio 2019 p. 124-146.
terça-feira, 20 de setembro de 2022

Dano climático e ambiental: o amanhã é hoje.

"Grande parte do CO2 liberado quando nossas bisavós acendiam seus fogões à carvão, nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, continua a aquecer nosso planeta hoje em dia. Contudo a maior parte dos danos começou a ser provocada a partir da década de 1950" (Tim Flannery. Senhores do clima. p. 200) Primeiramente, é preciso partir de uma premissa metodológica acerca da extensão e abrangência do significado de meio ambiente, tomando como base o conceito legal, de que ele é o "conjunto de condições, leis, influências e interação de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" (Art. 3º, I, da L. 6.938/81). Na doutrina, conforme Celso Fiorillo1, há o ambiente natural (art. 225, da CF/88), o artificial como espaço urbano (art. 182, da CF/88), o cultural (art. 216, da CF/88) e o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, da CF/88). Só que o meio ambiente natural se submete aos impactos antropogênicos2 e os quais afetam o clima. O problema climático, ao tornar-se preocupação global, em 1979, ocorre a Primeira Conferência Mundial sobre Clima (Genebra/Suíça), reconhecendo que a mudança climática representaria uma ameaça para o Planeta. A partir daí, é criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC), visando estudar causas e efeitos da mudança climática, e cujos resultados desses estudos culminaram no surgimento da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática. Em suma, acerca da mudança climática, ela (...) é reconhecida como uma questão ambiental de extrema complexidade, que gera um grande desafio para institucionalização de modelos de governança que promovam uma adequada política de enfrentamento de seus efeitos adversos. Tal dificuldade é causada, principalmente, pela existência de múltiplos fatores antropogênicos que contribuem para o aquecimento do planeta. Por exemplo, cada Estado, assim como as entidades dentro dos Estados, incluindo companhias, fazendas, lares e indivíduos, emitem um determinado nível de gases de efeito estufa (GEE) e, assim, contribuem para o problema. Ademais, a combinação de GEE na atmosfera conduzem a concentrações que são praticamente equivalentes em todo planeta3. E conforme se acentua o aquecimento do Planeta, compromete o "equilíbrio ecossistêmico"4, o "equilíbrio ecológico"5. Ou seja, à medida que o "homem humaniza a terra, imprime-lhe a sua marca (...) e transforma desmedidamente o mundo natural"6. E essa transformação atinge os recursos naturais e, também o "sistema climático" e a partir daí, em resposta, ocorre uma série de fenômenos negativos ambientais afetando as mais variadas situações existenciais das pessoas. Na verdade, despertam-se preocupações para se tutelar o sistema climático, desaguando em litígios climáticos - ainda muito pouco debatido no Brasil7. Esses litígios climáticos são o "conjunto de ações judiciais e administrativas envolvendo questões relacionadas à redução das emissões de gases de efeito estufa (mitigação), a redução da vulnerabilidade aos efeitos às mudanças climáticas (adaptação), à reparação de danos sofridos em razão das mudanças climáticas (perdas e danos) e à gestão de riscos climáticos (riscos)"8. Ainda, acerca do sentido de 'litigância climática, o Global Climate Litigation Report 2020 (status review)9, destaca as espécies de litígios associados aos desafios climáticos, quais sejam: i. empresas que omitem ou alteram10 informações sobre sua participação no agravamento de risco climático; ii. ausência de medidas (políticas públicas, por exemplo) voltadas para o planejamento e gerenciamento de catástrofes relacionados aos eventos naturais extremos associados ao clima; iii. controvérsias e litígios os quais acabam sendo arquivados; iv. Tribunais instados a se manifestarem sobre o direito e a ciência da atribuição do clima, para avaliar o quanto cada ator privado contribui para as alterações climáticas, bem como a ocorrência de litígios que exijam ações governamentais voltadas para políticas públicas relacionadas à mitigação da mudança do clima; v. litígios manejados em organismos internacionais e a possibilidade de eles contribuírem para serem incluídos no discurso jurídico das decisões do direito interno dos países. Focando a litigância climática sob a perspectiva da responsabilidade civil no âmbito do dano climático, conforme Annelise Steigleder11, há a ocorrência dos danos em detrimento do próprio clima em virtude da emissão de gases de efeito estufa; bem como, prossegue, há "danos decorrentes da mudança do clima"12. Portanto, a proposta é fazer uma abordagem contextualizada, afinal, há profunda conexão de sentidos entre eles, em que pese suas distintas considerações. Impõe-se à responsabilidade civil13 que ela seja, cada vez mais, analisada sob a perspectiva da sua função bem como sobre seus pressupostos. Em que pese haja a responsabilidade civil integral quando envolve dano ambiental, o foco é o dano climático. No dano climático, o intérprete deve reconhecer que ele tem sua gênese associada a uma multiplicidade de fatores e de fenômenos, haja vista que concorrem várias atividades e poluidores diretos e indiretos, enquanto fontes emissoras causadoras de impactos climáticos, sem que se possa avaliar, com precisão - até agora - quanto cada um deles impactam, por meio de suas condutas e atividades, para a produção do dano climático. O que vale realçar é que a Lei do Clima (L. 12.187/09 - LPNMC) reconhece que há uma responsabilidade dos poluidores, a qual ela é comum - ou seja abrange todos - e, embora comum, a própria lei reconhece que ela deve ser analisada de forma diferenciada - não de forma solidária -; e é comum a responsabilidade dos agentes porque "todos tem o dever de atuar em benefício das presentes e futuras gerações para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático" (art. 3º, I, da L. 12.187/09 - PNMC). E nesse contexto a responsabilidade civil torna mais complexa quando analisa nexo causal e o dano climático. Há uma complexa teia de situações geradoras de impactos socioambientais as quais podem contribuir em maior ou menor extensão enquanto fontes emissoras de emissões causadoras de impactos climáticos. É só pensarmos, por exemplo, numa cadeia de fornecedores baseada no hiperconsumo14, sem a preocupação com a etapa pós-consumo, de maneira a gerar resíduos e estes, sem destinação adequada, contribuírem em alguma medida com a emissão de gases de efeito estufa, como CO215 e outros, os quais afetam o sistema climático. Assim, é possível reconhecer danos climáticos, conforme se associa ao direito do consumidor e ao consumo sustentável16. Qual a participação e quanto cada um dos poluidores concorre para a emissão de gases? E se um dos fornecedores é um pequeno fabricante, mas, segue rigorosamente, normas ambientais? Como a responsabilidade é comum, todos concorrem e maneira comum para o dano climático, logo, o desafio é quanto cada um participa para referido dano. Um outro exemplo, por sua vez, diz respeito às novas tecnologias as quais podem gerar incertezas em relação aos riscos ambientais futuros17 e serem capazes, em maior ou menor extensão, causarem danos climáticos. Uma outra situação é o espaço urbano, cujos danos climáticos podem ocorrer à medida que se desenvolve o habitat urbano, em virtude do desarranjo frente a forte expansão do mercado imobiliário e é esquecida18 a proteção das florestas urbanas, dos rios, dos sumidouros de gases de efeito estufa; então potencializa o dano climático se acaso não há políticas públicas "integradas de mitigação e adaptação à mudança do clima no âmbito local (...)" (art. 5º, IV, da L.12.187/09 - LPNMC). E se não há adoção dessas políticas públicas, podem ocorrer desastres, o que significa afirmar que a questão climática se torna um dos fatores de agravamento de riscos19, por exemplo quando há chuvas extremas que afetam comunidades vulneráveis. Assim, a responsabilidade civil associada ao dano climático envolve um necessário conjunto de "relações": fatores antropogênicos à danos ou não aos recursos naturais e à natureza à perturbação em maior ou menor extensão do equilíbrio ecológico e dos serviços ambientais (por exemplo, as florestas neutralizam a emissão de carbono) à danos climáticos. Ao reconhecer essas relações capta-se a proposição de François Ost ao afirmar sobre a necessidade de "um saber ecológico realmente interdisciplinar: não só uma ciência da natureza, nem uma ciência do homem, mas uma ciência das suas relações"20. Registre-se que o estudo do dano climático e sua responsabilização vão demandar novos contornos mais sensíveis do intérprete. Na verdade, é preciso uma metamorfose no estudo da responsabilidade civil. Parafraseando Ulrick Beck, metamorfose está associado aos novos sentidos da compreensão de mundo; significa, explica o autor, em apartada síntese, que é necessário avaliar, não o presente em sua totalidade, mas o que é novo na realidade presente21; significa, também, ir além da teoria da sociedade de riscos22. Tal proposição dá pistas para o estudo do dano climático, à medida que ele deixa de ser uma abordagem oblíqua e periférica nos litígios ambientais; ou seja, ele se torna a causa fundamental e presente e não mais, apenas, considerações de que possa ocorrer no futuro. Nesse contexto, estudar o dano climático sob a perspectiva da responsabilidade civil demanda do intérprete: i. incorporar a valoração da razão prática no âmbito jurídico, o que significa superar de que tudo deve ser demonstrado e comprovado de forma experimental23 e, assim, flexibilizar a interpretação do nexo causal; ii. adotar uma postura proativa no sentido de serem incorporados no discurso jurídico da tutela climática, a dimensão ecológica da dignidade humana e a promoção do mínimo existencial ecológico24 e dos direitos humanos25, além da necessidade de reconhecer uma vulnerabilidade climática26 à medida que os mais afetados são os mais pobres e excluídos de serviços e de equipamentos públicos, ou seja, todos estão expostos aos impactos relacionados ao dano climático, porém há diferença dos efeitos e escala27; iii. tomar como premissa que o dano climático já é presente e para não se agravar, é necessária adoção de medidas preventivas pelos poderes públicos (art. 2º, IV, da L.12.187/09); iv. desenvolver novos parâmetros para avaliar o nexo de causalidade. O nexo de causalidade, portanto, para sua verificação pode, por exemplo assimilar a ciência de atribuição, considerando que ela, conforme Akaoki e Weddy, permite "ligar eventos climáticos extremos ao aumento das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera" 28; ainda, por meio da referida ciência "será possível de se demonstrar no Judiciário o nexo de causalidade entre desastres, as catástrofes ambientais e as emissões históricas de uma empresa ou de uma atividade específica"29, associando análises estatísticas; v.  funcionalizar a responsabilidade civil30 sob a perspectiva preventiva, inclusive, imprimindo deveres de conduta para proteção do sistema climático: v.1. dever de os atores privados, poluidores diretos e indiretos, de manterem investimento em pesquisas de forma continuada visando a substituição de tecnologias por outras, cada vez mais descarbonizadas; v.2. dever de colaboração e cooperação dos atores privados no sentido de fiscalizarem e de exigirem dos seus parceiros comerciais planos de gestão climática; v.3. estimular uma cultura de consumo mais sustentável e de preocupações climáticas. v. incorporar nos discursos jurídicos relacionados aos litígios que se debatem a responsabilização civil por danos climáticos, estudos e conclusões de Relatórios científicos e decisões de organismos internacionais. Frise que o nexo de causalidade quando envolve o dano climático, associado à fonte causadora, deve levar em conta que se reconheça "qualquer processo ou atividade que libere na atmosfera gás de efeito estufa, aerossol ou precursor de gás de efeito estufa" (art. 2º, V, da L. 12.187/09), considerando que dito gás se apresenta como "constituintes gasosos, naturais ou antrópicos, que, na atmosfera, absorvem e reemitem radiação infravermelha" (art. 2º, V, da L. 12.187/09), capazes de produzirem impactos causadores de "efeitos da mudança do clima nos sistemas humanos e naturais" (art. 2º, VI, da L. 12.187/09); ademais, não se pode deixar de considerar também, quanto à emissão de gases, as estimativas de emissão por meio de metodologias a serem, cada vez mais, implementadas e adotadas, mas, não apenas, de forma coercitiva, mas, também, de forma cooperativa31. Portanto, articular a responsabilidade civil no âmbito do dano climático, perpassa na necessidade de se reconhecer que sua caracterização e o nexo de causalidade não é apenas para reconhecer dano futuro, mas, sim, pluralidade simultânea de situações e poluidores diretos e indiretos, no contexto presente, afinal, qualquer atividade, no presente, em maior ou menor extensão, repercute, ainda que minimamente, na produção do dano climático. E conclui-se também a relevância preventiva da responsabilidade civil no intuito dela ser uma ferramenta a mais na tutela do clima. ---------- 1 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2019, p. 69. 2 IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Summary for Policymakers, 2022, p.12. Disponível aqui Acesso: 5 agosto 2022. 3 CONTIPELLI, Ernani de Paula. Política Internacional climática: do consenso científico à governança global. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 9, n. 2 (Ago.- Dez./2018), p. 82-94, em especial, p. 85. 4 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011, p. 108. 5 MILARÉ, Édis. Tutela Jurídico-civil do ambiente. Revista de Direito Ambiental, v.0 (Jan.-Dez./1996): p. 26-72, em especial, p. 3. 6 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito [Tradução: Joana Chaves]. Lisboa, Instituto Piaget, 1995, p. 21. 7 Sobre fonte de pesquisa em litígios climáticos no Brasil, sugere-se navegar na plataforma. 8 STEZER, Joana [et al]. Panorama da litigância climática no Brasil e no mundo. STEZER, Joana [et al] (Coordenadores). Litigância climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil. São Paulo, Thompson Reuters, 2019, p. 59-86. 9 United Nations Environment Programme (2020). Global Climate Litigation Report: 2020 Status Review. Nairobi (Kenya), 2020, p. 4. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/global-climate-litigation-report-2020-status-review#:~:text=It%20finds%20that%20a%20rapid,cases%20filed%20in%2038%20countries. 10 Há alguns anos, um escândalo tomou conta do mercado de veículos, quando, em Setembro de 2015, o governo dos Estados Unidos acusou uma fabricante de veículos de que ela estaria adulterando resultados em testes de poluentes em 500 mil veículos vendidos naquele país, situação que passou a ser denominada de Dieselgate (disponível aqui. Acesso 14 ago 2022] 11 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. Revista de Direito Ambiental, v. 58 (Abr.-Jun./2010), p. 223 - 257. 12 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade. Ob cit. 13 Steigleder, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental e sua adaptação climática ás mudanças climáticas. GAIO, Alexandre (Organizador).  A Política nacional de mudanças climáticas em ação: a atuação do ministério público organização. Belo Horizonte: Abrampa, 2021, p. 91-110. 14 LIPVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo [Trad. Maria Lucia Machado]. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 21. 15 ABRELPE - Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e resíduos Especiais. Panorama dos Resíduos Sólidos Brasil 2020, p. 46. Disponível aqui. 16 One of the greatest human interferences with the atmosphere is the scientifically proven release of GHGs, which are the primary cause of climate change. (.). This connection can be seen more clearly when one observes that one of the factors of greatest impact on GHG emissions is unsustainable consumption. (CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda D. L. The Roles of Sustainable Consumption and Disaster Law in Climate Risk Management. Alberto do Amaral Junior; Lucila de Almeida; Luciane Klein Vieira. (Org.). Sustainable Consumption: The Right to a Healthy Environment. 1ed.Cham, Switzerland: Springer, 2020 79-103, em especial, p. 86. 17 CARVALHO, Delton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização pelo risco ambiental. 2ª ed. [Revista, atualizada e ampliada]. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 18. 18 Nesse sentido sugere-se: NALINI, José Roberto. Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 175. 19 CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013, p. 51. Sob a perspectiva do agravamento do risco de desastres associado ao clima em virtude da omissão do dever do Estado de proteção do meio ambiente também há o estudo do Tiago Fenterseifer A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas Pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas: Uma Análise à Luz dos Deveres de Proteção Ambiental do Estado e da Proibição de Insuficiência na Tutela do Direito Fundamental ao Ambiente. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza (Jan.-Dez./20110), ano 9, n. 13, p.322-354. 20 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito [Tradução: Joana Chaves]. Lisboa, Instituto Piaget, 1995, p.16. 21 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade [Tradução: Maria Luíza X. de A. Borges. Revisão técnica: Maria Cláudia Coelho] Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 16 (grifos nossos) 22 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Ob cit. 34. 23 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucinalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Revista brasileira de estudos constitucionais, Belo Horizonte, a. 3, n. 9 (Jan.-Mar./2009): 95-133, em especial p. 101. 24 SARLET Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Thiago. Curso de direito ambiental. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 285. 25 VEDOVATO, Luis Renato; FRANZOLIN; Cláudio José; ROQUE, Luana Reis Roque. Deslocados ambientais: uma análise com base na dignidade da pessoa humana Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.03, 2020, p. 1654-1680. [ DOI: 10.1590/2179-8966/2019/40183] 26 "(.) changes in weather and climate extremes on regional and global scales, including observed changes and their attribution, as well as projected changes. The extremes considered include temperature extremes, heavy precipitation and pluvial floods, river floods, droughts, storms (including tropical cyclones), as well as compound events (multivariate and concurrent extremes) (.)" (Weather and Climate Extreme Events in a Changing Climate. In Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, 2021, Chapter 11, p. 5) 27 IWAMA, Yu; BATISTELLA, Mateus [et al]. Risco, vulnerabilidade e adaptação às mudanças climáticas: uma abordagem interdisciplinar. Revista Ambiente & Sociedade (São Paulo), v. XIX, n. 2 (Abr.-Jun./2016), p. 95-118, em especial, p. 98. 28 Akaoui, Fernando Reverendo Vidal; WEDDY, Gabriel. Direito climático: litígios e ciência da atribuição. Revista de direito ambiental, v. 106 (Abr.-Jun./2022), p. 283 - 304. 29 Akaoui, Fernando Reverendo Vidal; WEDDY, Gabriel. Direito climático. 30 "o viés preventivo da responsabilidade civil (...) para impor aos entes federativos a obrigação de adotar políticas públicas de mitigação e adaptação climática adequadas, seja para fazer com que o licenciamento ambiental (...)" (Steigleder, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental e sua adaptação às mudanças climáticas. GAIO, Alexandre (Organização). Política nacional de mudanças climáticas em ação: a atuação do ministério público [livro eletrônico]. Belo Horizonte, Abrampa, 2021.91-110, em especial, p. 105) 31 Assim, por exemplo, destaca na CETESB - Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - o Acordo Ambiental São Paulo (Câmara Ambiental de Mudanças Climáticas-Grupo de Trabalho Ferramentas, Metodologias e Compartilhamento de Informações para Cumprimento do Acordo Ambiental São Paulo) o "compromisso voluntário de reduzir a emissão dos GEE e, além disso, a possibilidade de implementar melhorias ambientais. Para integrar o Acordo, a entidade ou empresa é informada que enviará voluntariamente suas emissões de GEE, a metodologia utilizada para mensurá-las e o cronograma de metas para diminuir suas emissões até 2030, assim que possível. As informações que serão enviadas para a CETESB, bem como os compromissos voluntários assumidos, poderão incluir ações de adaptação às mudanças climáticas. O cronograma de apresentação das metas do aderente será definido pelo próprio e atualizado anualmente (...). Nesse sentido, sugere-se a leitura sobre o tema: CETESB. Nota técnica 01.1. Quantificação e Relato de Emissões de Gases de Efeito Estufa [autores: Cristiane Lima Cortes et al.; colaboradores: Artur Ngai et al. São Paulo, Cetesb, 2021, p. 31. [Disponível aqui Acesso 12 ago 2022].
Em respeito aos princípios que norteiam os fundamentos da hermenêutica, não se pode prescindir dos alicerces históricos para se compreender o presente e prenunciar o futuro. Nesse intuito, as reminiscências da Medicina Legal surpreendem pela habitualidade com que se tratava a questão da reparação do dano corporal, já nos primórdios da história da humanidade. O objetivo desse trabalho é fazer uma reflexão sobre a relevância das regras de unificação de parâmetros de avaliação do dano à pessoa. Mas, por enquanto, são iniciativas puramente doutrinais, sem qualquer escopo restritivo. As doenças e as dores nasceram juntamente com o homem. Por isso, desde seu primeiro momento de racionalidade os tratou de predispor os meios necessários para combater ambos os males1. Desde os primórdios preveem-se sanções para os casos de culpa relativa ao dano à pessoa. As primeiras constatações que temos de sua origem histórica procede da Tábua de Nippur, chamada também de Lei de Ur Namur, primeiro barema também chamado de tabela de reparação de dano corporal que tem uma data de aproximadamente 2.500 a 3.000 anos a.C. Durante o período Babilônico, o Código de Hammurabi2 passou a reger todos os aspectos da vida civil. Atualmente, os profissionais médicos em geral, quando se referem a lesões ou danos pessoais, do ponto de vista médico/odontológico, consideram isso como qualquer alteração anatômica ou funcional do corpo, que devem diagnosticar, tratar, reabilitar e prevenir. No entanto, a lesão não deve ser tratada somente do ponto de vista estritamente da área da saúde, mas do ponto de vista médico-legal, assim, pertencendo ao direito. O mosaico dos sistemas legais é desconcertante e nossa sociedade cada vez mais se valendo dos seguros, ainda não conseguiu montar os fragmentos dispersos para construir um direito unificado e global de danos pessoais. Ou pelo menos um estudo mais abrangente para tentar solucionar as incoerências e as lacunas para tentar melhor remediá-las3. A responsabilidade civil sempre foi entendida como um mecanismo de transferência de danos de um agente para uma vítima em decorrência de um comportamento ilícito culposo. O princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que muitas vezes se converte em utopia, restando ao direito trabalhar com possibilidades aproximativas ou conjecturais4. E pensando igual ao ilustre Professor Nelson Rosenvald, ao invés de uma ideia de uma reparação integral vamos pensar em uma melhor reparação da vítima. Mas para que isso aconteça, precisamos de remédios compensatórios para aquele caso em concreto5. Estes danos à pessoa podem se definir como destruição, inutilização ou deterioração que sofre a pessoa em relação a seu estado anterior, tanto em seus bens extrapatrimoniais como patrimoniais, ou também como o conjunto de consequências que tem sobre a pessoa a lesão ou afecção de sua integridade psicofísica, que pode ser de caráter econômico, moral, familiar, penal, laboral, dentre outros6. A perícia médico-legal comporta enfoques próprios a cada interesse de ressarcir. Assim, ensejará visões diferentes, numa mesma lesão, na dependência do procedimento judicial cível, trabalhista ou penal. Procurará fornecer aos operadores do Direito os elementos técnicos referentes ao ramo jurídico perquirido. Oliveira Sá (1992) ao referir-se ao posicionamento do Instituto de Medicina Legal de Coimbra comenta sobre a experiência portuguesa:7. O teor dos quesitos, mesmo quando adequados e responsáveis, que as preocupações dos quesitantes nem sempre abrangem todos os parâmetros possíveis de expressão e valorização médico-legal do dano. Mas independentemente dessa limitação de base a metodologia é a perfeita negação duma verdadeira e correcta peritagem médico-legal - é a peritagem espartilhada, por chavetas, do sim ou não, aberta à resposta seca, em jeito de atestado. Com a agravante de serem possíveis quesitos perfeitamente desajustados ingénua ou intencionalmente, impondo forçosamente uma dada resposta que desinserida do contexto doutrinário que a legitima pode ser explorada para lhe atribuir um significado que não é correcto. Com a agravante suplementar de poderem aparentar dissonância e inconsequência pericial as respostas a quesitos diferentes (ou semelhantes) na "guerra" de quesitos entre o réu e a vítima. Bem ao contrário a verdadeira e necessária peritagem médico-legal supõe integração e globalidade quer no exame quer no relatório. Este tem que ser mesmo um relatório médico-legal, isto é, completo e com justificação de todas as posições e opções assumidas conclusivamente. (p. 69-70). Não esquecendo que a reparação do dano corporal implica uma dupla abordagem médica e jurídica, e que é necessária à colaboração do perito e do juiz, deve-se vislumbrar as informações que o primeiro pode dar ao segundo para esclarecer sobre a importância e extensão do prejuízo reparável, para esse autor os parâmetros de valorização médico-legal do direito civil são os danos temporários e os danos permanentes8, compatível com nosso ordenamento jurídico, nos termos dos arts. 944, 949, 450 e 951 do CC/2015. As perícias, por razões de equidade e justiça, deverão obedecer a parâmetros uniformes de apreciação e valoração, independentemente do perito em causa e do local onde ocorre a avaliação, por isso é necessária uma harmonização dos critérios de avaliação do dano corporal para atender esse objetivo de uniformização. Por essa razão, tem-se vindo a observar crescente interesse no estabelecimento de parâmetros técnico-científicos e incessante procura de métodos suficientemente objetivos para assegurar a unificação possível das avaliações e, consequentemente, das compensações. Béjui-Hugues e Bessières-Roques informam que na França no final da década de 1950 os peritos faziam menção a diversos baremas previstos na legislação de acidentes de trabalho. Esse panorama se modificou em 1959 com uma coletânea de decisões que enfatizou o caráter definitivo da avalição no direito civil. A avaliação da sequela no direito civil leva em consideração os resultados e a afetação funcional da lesão, independente da condição social. Já no direito do trabalho, são levados em consideração a afetação da capacidade profissional e a diminuição do desempenho do trabalhador. A partir desse estudo a avaliação dos danos no direito do trabalho distancia-se dos parâmetros de avaliação do direito civil. Em 1959, O "Concour Médical" publica um "Barème indicatif des invalidités en droit commum", uma espécie de coleções de decisões escrita pelo Dr. Pierre Arrivot9. Na busca de uma evolução convergente, foi adotado pelo Comitê de ministros do Conselho da Europa em 14 de março de 1975 a Resolução 75-7 (relativa à reparação dos danos em casos de lesões corporais e morte). A evolução comum dessa mentalidade se manifestou nos inúmeros simpósios sobre a reparação dos danos pessoais, que buscavam a convergência de uma metodologia de avaliação de danos aplicáveis a todos. Essa Resolução Conjunta tenta remediar as disparidades nos sistemas nacionais de reparação de danos pessoais. Essa Resolução é marcada pela distinção do que chamamos hoje de danos patrimoniais e extrapatrimoniais10.   O "Guide barème européen d'évaluation des atteintes à l'intégrité physique et psychique", foi desenhado por um grupo de trabalho formado por peritos médicos de seis países da União Europeia com maior tradição no uso dos baremas para a indenização dos danos corporais; foram os seguintes: da Alemanha, Walter Streck; da Bélgica, Pierre Lucas; da Espanha, César Borobia; da França, Hélène Béjui-Hugues; da Itália, Marino Bargagna e de Portugal Duarte Nuno Vieira. A apresentação da Recomendação se realizou em Trèves - Alemanha em junho de 200011. A definição Déficit Funcional Permanente, ou Alteração da Integridade Psicofísica que resultou do consenso europeu no Congresso de Trèves e atualizado em junho de 2020 é o seguinte: Redução definitiva do potencial físico, psico-sensorial ou intelectual resultante de uma alteração da integridade anátomo-fisiológica: medicamente constatável e como tal apreciável por um exame clínico apropriado, completado pelo estudo dos exames complementares realizados; à qual se juntam os fenômenos dolorosos e as repercussões psicológicas normalmente associadas à alteração sequelar descrita, assim como as consequências na vida diária habitualmente e objetivamente associadas a essa alteração. (tradução nossa)12. O objetivo da publicação desse barema é tratar de harmonizar dentro de um sistema de indenização de danos corporais ocasionados por acidentes de circulação, as sequelas derivadas desses e também para os casos de enfermidades. Um objetivo secundário é que pode ser utilizado na responsabilidade civil pelos profissionais sanitários. A finalidade desta estimativa numérica é a reparação dos prejuízos não econômicos utilizando uma convenção que tem por base princípios organizados e lapidados pelas decisões judiciais e pela doutrina, considerando ainda a cultura e os costumes regionais distintos para que ocorra uma adequada harmonização, fazendo com que as noções sejam aceitas por todos13. Os baremas visam mostrar uma descrição minuciosa das múltiplas situações, frequentemente complexas, que as lesões podem parecer. Esta característica é comum entre os baremas, porque sua utilização visa confrontar os déficits funcionais e as sequelas, com as porcentagens recomendadas, para em seguida se optar por um valor que se acredite ser justo, de acordo com a situação individual do caso. Em 2010 a Commission de Réflexion sur l'Évaluation et l'Indemnisation du Dommage Corporel (COREIDOC) publicou orientações sobre "La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe, bilan 2010" esse modelo, redigido em 2010 e atualizado em 2019, inclui várias proposições, entre as quais uma nomenclatura dos parâmetros de danos indenizáveis, e representa a conceitualização das decisões atuais. Confirma, ainda, a distinção entre danos patrimoniais e extrapatrimoniais, temporários e permanentes14. A meta do mencionado relatório é a unificação da nomenclatura e a reparação do dano corporal, favorecendo um tratamento igualitário das vítimas e instaurando a segurança jurídica. Pierre Lucas disse em uma conferência que os juristas definiam os conceitos e os peritos imputavam, objetivavam e quantificavam, sem ultrapassar os limites de suas competências. Ao perito cabe quantificar os danos da pessoa humana que são constatáveis ou explicáveis pela medicina. O perito explica e quantifica aquilo que ele constata e mede, permanecendo técnico, abstendo-se de sua íntima convicção. Ele não quantifica o que não mede, apenas diz o que é ou não admissível pela medicina. E nem sempre há sempre uma perfeita adequação entre o quadro jurídico e a complexidade do ser humano. A função do perito é a quantificação dos danos da pessoa humana constatáveis ou explicáveis pela medicina15. É fundamental que os peritos e/ou assistentes técnicos detenham informações suficientes para manter a uniformidade de condutas na prática pericial, adotando uma metodologia que garanta que cada uma das lesões que afetam corpo humano seja valorada e quantificada de forma equivalente. Portanto, o barema espanhol, francês, português, italiano, dentre outros estudados pela comunidade europeia e em consonância com nossa legislação, no que tange a quantificação do dano corporal, é a maneira mais justa de uma melhor reparação da vítima, permanecendo o mais fiel possível aos elementos verificáveis e que personalizam o dano, sem fazer adição de subjetividades do ferido, do perito e do julgador. Seu uso deve acompanhar, obrigatoriamente, uma explicação à parte. Mas, um barema é somente uma ferramenta de medida, permitindo ao perito de se referenciar, mas ele não deverá ser, em nenhum caso, um manual de patologia sequelar, nem um compêndio de metodologia de avaliação. Ele não pode esconder a insuficiência de competência do perito, qualquer que seja a situação e a origem de sua missão. Os parâmetros de avaliação pericial não necessitam estar baseados em legislação positivada, mas sim, basear-se onde estas matérias já levam mais um século de intensa reflexão doutrinária, de concretização prática e de contínua evolução científica e metodológica. A prova pericial ao quantificar o dano deve estar sustentada por conceitos científicos ex legis que são atualizados conforme a evolução da sociedade. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. rev. e atual. à luz do novo Código Civil, com acréscimo doutrinário e jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2003. cap.2, p. 45-53. 2 BOUZON, E. O código de Hamurabi. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. cap.1, p. 7-17. 3 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012. p. 43. 4 RESENDE, Roberta. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. Migalhas, [S. l.], n. 5.434, 15 set. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022. 5 CONCEITOS fundamentais de Direito Civil: responsabilidade civil. Por: Nelson Rosenvald. Belo Horizonte: Nelson Rosenvald, 23 set. 2020. 1 vídeo (54 min.). Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022. 6 HERNANDEZ CUETO, Claudio. Valoración médica del daño corporal. Barcelona: Ed Masson, 2001. 7 OLIVEIRA SÁ, Fernando Manuel de. Clínica médico-legal da reparação do dano corporal em Direito Civil. Coimbra: APADAC, 1992. 8 ROUSSEAU, Claude; FOURNIER, Claude. Précis d'évaluation du dommage corporel en droit commun. Paris: Association pour l'Etude de la Réparation du Dommage Corporel, 1989. 9 BÉJUI-HUGUES, Hélène; BESSIÉRES-ROQUES, Isabelle. Précis d'évaluation du dommage corporel. 4. ed. Paris: L'argus de L'assurance, 2009.  10 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012; p. 41.  11 BOROBIA, César. Valoración del daño corporal: legislación, metodología y prueba pericial médica. Barcelona: Masson, 2006. 520 p.  12 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. De I'atteint à I'intégrité physique et psychque (AIPP) au déficit fontionnel permanente (DFP). Paris: AREDOC, jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 2022 ago. 2022. 13 BOUCHARDET, Fernanda Capurucho Horta. A valoração do dano corporal nas reclamações de responsabilidade extrapatrimonial. 59f. Monografia (Graduação em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2022. 14 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe Bilan 2010. Paris: AREDOC, Dec. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22 ago. 2022. 15 LUCAS, Pierre. Problèmes connexes à l'harmonisation européenne de l'évaluation des attentes à la personne humaine. Avellino: Istituto di Cultura Germânica, 2004.
terça-feira, 13 de setembro de 2022

Direito da Concorrência e varas especializadas

Uma crescente judicialização de decisões administrativas em temas envolvendo o direito concorrencial tem se observado ao longo dos últimos anos. Não bastasse tal constatação, um aumento ainda maior da prestação jurisdicional envolvendo a matéria é esperado em razão da esperada sanção presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, que visou ajustar características da Lei da Concorrência brasileira (Lei 12.529/11) para criar incentivos adicionais para ações de indenização decorrentes de infrações concorrenciais. Apesar do movimento identificado, ainda se percebem grandes dificuldade por parte do Poder Judiciário para proferir decisões que envolvam o direito concorrencial. E natural que o seja, visto tratar o direito concorrencial de ramo do direito dotado de elevado grau de abertura em sua tipicidade, em muito o assemelhando a um sistema de common law, em que os precedentes emanados da autoridade possuem elemento relevante na construção de uma maior segurança jurídica. Assim, decisões da Superintendencia Geral e do Tribunal do CADE modelam a aplicação da lei, criando relevantes dificuldades para outros órgãos, como o Poder Judiciário, de aplicar ou revisar as normas, ainda mais diante do também relevante papel que desempenha a microeconomia para avaliação da ilegalidade de condutas de agentes com poder de mercado.   Neste contexto, é possível destacar algumas dificuldades enfrentadas pelos jurisdicionados em casos envolvendo questões concorrenciais em trâmite nas varas comuns. A principal delas, problemas mais qualitativos das decisões proferidas, decorrentes de ausência de subsídio de matéria concorrencial administrativa para avaliar potenciais infrações à ordem econômica, o que acaba por priorizar um controle de legalidade mais afeto aos seus elementos processuais do que propriamente ao mérito das discussões. O dever de deferimento às decisões dos órgãos administrativos de fato existe, mas não pode se converter em barreira oportuna a furtar revisões de decisões que tenham mal avaliado o mérito das questões. É certo que a revisão judicial deve respeitar a discricionariedade administrativa. Contudo - e nas palavras do subprocurador Geral da República e ex-Conselheiro do CADE Antonio Fonseca - esta deferência não exclui o poder-dever do Judiciário de, escrutinando o mérito da discrição administrativa, examinar eventual lesão de direito e, se for o caso, repará-la1. Como exemplo podemos citar um equilibrado balanço das evidências postas à decisão por parte das autoridades, que por vezes se encontram bastante aquém de padrões de prova utilizadas pelos tribunais em matéria comercial, criminal ou cível. Da mesma forma, em razão de maior distanciamento do Judiciário com o tema concorrencial, uma segunda dificuldade verificada decorre da adoção de diferentes critérios para avaliação das condutas, ou seja, diferentes testes aplicados, normalmente mais superficiais e tendenciosamente mais privatistas, desconsiderando por vezes o carácter institucional da norma de defesa da concorrência, para avaliação de ilegalidade de condutas avaliadas. É dizer que o Judiciário tem tendido, em especial nas questões que lhe são levadas sem quaisquer pré-discussões com o órgão de defesa da concorrência, a um viés de análise mais focado em efeitos entre partes do que propriamente no mercado e nas empresas nele atuantes de forma geral. Tais elementos acabam por criar visões bastante antagônicas entre os efeitos e consequente ilegalidades de condutas dos agentes dominantes, resultando em decisões diametralmente opostas entre a seara administrativa e judicial.   Por fim, verifica-se ainda maior morosidade do Poder Judiciário em decidir disputas com fundo concorrencial, comprometendo por vezes a efetividade das decisões proferidas pelos órgãos administrativos. O caso Nestle-Garoto bem ilustra tal dicotomia. E tudo isso somente sopesa a maior insegurança jurídica no trato do tema. Neste contexto, diversos estudos já demonstraram que decisões proferidas por varas especializadas tendem a propiciar ambientes juridicamente mais estáveis, e que juízes de varas comuns sem especialização na matéria tendem a decidir de forma distinta a respeito de questões semelhantes. A experiência com as varas especializadas em direito empresarial também indica que decisões proferidas por tribunais especializados têm mais probabilidade de ser mantidas por tribunais superiores.2 O que nos leva à reflexão se, ao menos, a insegurança jurídica decorrente da falta de previsibilidade de casos envolvendo matérias específicas - como o direito da concorrência - levadas ao Poder Judiciário poderia ser, ao menos em parte, mitigada pela especialização de varas judiciais. Como mencionado, tal falta de especialização na matéria resulta ainda em inefetividade de decisões proferidas, havendo aqui clara correlação entre especialização e efetividade. Além disso, a especialização de varas envolve também a especialização de seus servidores, que tende a agilizar não somente as decisões em si, mas também procedimentos mais burocráticos relacionados ao processo. Argumentos corriqueiros contrários à especialização de varas comentam que tal modelo institucional acabaria por limitar as chances de reversão no Poder Judiciário, ainda conhecido como o risco de captura. Outro argumento comumente citado é o de engessamento da jurisprudência, que estaria a cargo de poucos juízes. Contudo, tais argumentos parecem ser recorrentes e insuficientes para sobrepujar os benefícios da especialização de varas. De fato, a especialização garantiria, a partir de cursos de aperfeiçoamento e especialização dos servidores destinados a tratar da matéria, maior segurança jurídica aos litígios trazidos ao Judiciário e maior coerência com legislação específica sobre o tema. Traria ainda maior agilidade na condução dos processos, que deixariam de compor o fundo da pilha processual dos gabinetes, aquele destino dado a matérias que requerem maior e mais custosa curva de aprendizado para que uma decisão seja proferida. A comunidade jurídica, de forma geral, defende a especialização de varas e câmaras como uma possibilidade de o Judiciário fornecer melhores respostas a questões de maior complexidade. A especialização das varas em matéria concorrencial trará melhorias à prestação jurisdicional, beneficiando seus jurisdicionados, o próprio Poder Judiciário e a sociedade em geral, ao garantir maior qualidade, segurança jurídica, celeridade e eficiência às decisões judiciais envolvendo casos complexos. Faz-se assim necessário incorporar a cultura do direito da concorrência ao Poder Judiciário, de modo que as empresas e indivíduos se sintam incentivados a discutir a matéria, não com o intento de postergar o cumprimento da decisão administrativa, mas para levar suas questões a um foro preparado para resolver, em tempo econômico e com qualidade técnica, as lides a ele submetidas. O debate ainda passa, além da materialidade da discussão, pela sua instrumentalização de forma eficiente. E para tanto se discute se varas especializadas devem ser criadas (novas varas) ou se varas comuns devem ser especializadas para tratar da matéria, com claro viés orçamentário; se tais varas devem ser exclusivas ou não exclusiva; se devem abarcar tão somente matéria concorrencial ou ainda outros temas, como defesa comercial, direito aduaneiro ou propriedade intelectual, e seu consequente risco de asfixia; a quantidade de varas e magistrados sujeitos a especialização, de forma a se mitigarem argumentos de captura; eventual especialização da segunda instância e questões mais procedimentais e corriqueiras como a implementação de códigos de distribuição, sem os quais pode se tornar sem efeito a especialização com riscos de nulidade de decisões proferidas pelo poder judiciário em desrespeito a competências absolutas estabelecidas. A Resolução CJF-RES-2017/00445 de 2017 já dispôs sobre a especialização, com competência concorrente, de varas federais em Direito da Concorrência e do Comércio Internacional. Subsequentemente a ela, alguns passos foram trilhados, com a criação de vara especializada no TRF-2, com a criação de um grupo de trabalho para estudo de viabilidade de sua implantação na 3ª Região - discussão que aparentemente não tem evoluído, contudo -, criação de varas federais especializadas (16ª e 29ª) na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, com competência para processar e julgar feitos que envolvam matéria de concorrência, comércio internacional, direito aduaneiro, marítimo e portuário; e finalmente com a criação de grupo de trabalho instituído pela Portaria Presidencial nº 350/2021 do TRF-1, para estudar a especialização de vara federal de processos que versem sobre direito da concorrência e comércio internacional. É preciso que tais discussões avancem, que se especializem mais varas, para que se possa confiar, com maior grau de expectativa de segurança jurídica, discussões envolvendo matéria concorrencial ao Poder Judiciário. Ainda, com a expectativa de sansão presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, tais discussões devem ainda se ampliar para as varas estaduais, que detêm competência para discussões de indenizações envolvendo matéria concorrencial. Essa é a expectativa da comunidade jurídica e empresarial brasileira, que busca sempre um ambiente de maior competitividade e de maior segurança jurídica para atuarem. __________ 1 FONSECA, Antonio. Papel dos Tribunais Administrativos e Sistema Judicial. Revista IBRAC Volume 6 número 3 (1999). 2 RIBEIRO, Ivan César. CVM e Judiciário: o efeito da incerteza jurídica nos investimentos em ações e a justiça especializada. Revista Direito GV. V. 3, N.1, p. 035-056, Jan/jun 2007. Pag. 49-50.
Introdução A flexibilização de barreiras, trazida pela modernidade, proporcionou uma sociedade mais sexualizada. Neste novo ambiente de grandes transformações pelas quais passou a sociedade, houve alteração da legislação, criminalizando-se não os padrões sociais, mas as condutas que viessem de encontro aos preceitos fundamentais, garantidos constitucionalmente.1 Novos atos perpetrados contra a dignidade e liberdade sexuais passaram a ser previstos pela lei penal, justamente por isso, como será visto, estamos diante da necessidade da criação doutrinária de mecanismos que viabilizem uma proteção à liberdade e autonomia de atos de disposição sobre a imagem do próprio corpo da mulher, de modo que a vítima de um crime contra a dignidade sexual possa voltar a decidir o que deseja fazer com o fato do agressor/ autor do dano, ter disponibilizado sem o seu consentimento, suas imagens, quer a motivação tenha sido a de auferir lucro (sextorsion), ou de promover uma espécie de vingança (revenge porn).2 O termo "violência contra a mulher" foi alcunhado pelo movimento social feminista há mais de vinte anos, podendo se referir a diversas situações, atos e comportamentos que prejudicam a mulher: A violência contra a mulher inclui, por referência ao âmbito da vida familiar, além das agressões e abusos, impedimentos ao trabalho ou estudo, recusa de apoio financeiro doméstico, controle dos bens do casal e/ou dos bens da mulher exclusivamente pelos homens da casa, ameaças de expulsão da casa e perda de bens, como forma de "educar" ou punir por comportamentos que a mulher tenha adotado.3 A Organização Pan Americana de Saúde, traz os seguintes dados/estatísticas sobre a violência contra a mulher. Alertando para o fato de que tal violência pode ter consequências mortais, como o homicídio ou o suicídio, os dados são alarmantes:4 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida; 42% das mulheres vítimas de violência por parte do parceiro relatam lesões como consequência da violência (...) depressão, estresse pós-traumático e outros transtornos de ansiedade, dificuldades de sono, transtornos alimentares e tentativas de suicídio. A taxa foi ainda maior para as mulheres que sofreram violência sexual de não-parceiros; 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento relata ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual na vida por parte de seu parceiro; 20% das mulheres relatam terem sido vítimas de violência sexual na infância; Globalmente, 38% dos assassinatos de mulheres são cometidos por um parceiro masculino; Entre os fatores associados ao aumento do risco de perpetração da violência e ao aumento do risco de ser vítima de parceiros e de violência sexual estão a baixa escolaridade, maltrato infantil ou exposição à violência na família (ou entre os pais) uso nocivo do álcool, abuso durante a infância, atitudes violentas e que permitem desigualdade de gênero; Os custos sociais e econômicos da violência por parte do parceiro e da violência sexual são enormes e repercutem em toda a sociedade. Bloqueios e inseguranças são comumente criados na mente das mulheres, fazendo-as temerem de participar da vida social, em igualdade de condições com os homens. A violência de gênero ocorre nos meios educacionais, corporativos ou familiares. Em todas essas formas de violência contra a dignidade da pessoa da mulher, o propósito maior do autor das violências é de as manter em situação de controle, desmotivando-as, reforçando a lógica colonialista de sua culpabilização, como forma de manter seus controles psicológico, material e existencial. Essa violência termina por contaminar toda a sociedade, de forma que as mulheres ao contestar essa forma de manipulação psicológica e ao tentar contrapô-la são transformadas em figuras desnecessariamente agressivas, ameaçadoras, descontroladas e histéricas.5 Nas palavras de Kruger6 "como uma prática sexista sutil e extremamente naturalizada, o fenômeno contribui para a recorrente desqualificação intelectual e infantilização de mulheres", por isso as práticas consideradas como violência contra a mulher foram ampliadas para se adequar aos novos danos que elas vêm sofrendo. Sendo considerada como violência psicológica, toda forma de ação ou omissão que implique em agressão, humilhação, exposições vexatórias, a qual o opressor expõe à vítima, podendo-lhe causar sérios danos emocionais a sua autoestima e a sua identidade. A violência verbal ocorre juntamente com à violência psicológica, de conotação específica, posto visar causar dano à sanidade mental da mulher. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 JAKOBS, Gumther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000.p. 45 2 Neste artigo serão analisados atos praticados em razão da violência de gênero, a vítima será analisada sob o único prisma: o fato de ser mulher. 3 SACRAMENTO, Lívia de Tartari e; REZENDE, Manuel Morgado. Violências: lembrando alguns conceitos. Aletheia, Canoas, n. 24, p. 95-104, dez. 2006. Disponível aqui. acessos em 13 maio 2022. 4 Disponível aqui. 5 KRUGER, Patrícia de Almeida. Penetrando o Éden: Anticristo, de Lars Von Trier, à luz de Brecht, Strindberg e outros elementos inquietantes. Tese. Universidade de São Paulo. São Paulo: 2016. 6 Idem p. 184.
Proposto inicialmente no Senado em 2016, onde tramitava sob o no 293, o PL 11.275/2018 que hoje tramita na Câmara dos Deputados foi recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e espera-se que logo receba a sanção presidencial. Esse projeto modifica a lei 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência - "LDC") especificamente para alterar o teor de seus artigos 47 e 85, além de inserir os novos artigos 46-A e 47-A, visando dar maior robustez ao sistema brasileiro de persecução privada concorrencial. As modificações previstas tratam de temas cruciais ao desenvolvimento da indenização das vítimas de ilícitos à ordem econômica: o prazo prescricional aplicável e o termo inicial que deve ser utilizado na sua contagem; a distribuição do ônus probatório, especialmente no que se refere ao repasse dos danos ao longo da cadeia produtiva; a possibilidade de escolha do procedimento arbitral pelas vítimas contra os violadores que confessaram a conduta ilícita às autoridades (via Acordo de Leniência ou Termo de Cessação de Prática); e a indenização em dobro das perdas e danos sofridas pelas vítimas. O Brasil vive uma fase de crescimento das ações indenizatórias por danos concorrenciais, que se desenvolveram muito a partir de 2015, caminho natural quando se observa as experiências americana e europeia. Neste sentido, espera-se que a nova lei que surgirá com a sanção do PL 11.275/2018 trará incentivo ainda maior a tal prática, na medida que proporcionará segurança jurídica a temas que antes dependiam da interpretação de normas não específicas e ainda pendiam de harmonização pelo Poder Judiciário. Assim, pode-se dizer que a importância dessa aguardada mudança legislativa é, ao final, aumentar o enforcement privado concorrencial no Brasil. Ou seja, se hoje as ações judiciais existentes encontram dificuldades para pedir o mínimo do prejuízo experimentado pelas vítimas (com dificuldade de comprovação até mesmo do sobrepreço, que é o dano emergente mais evidente) e para avançar na marcha processual, no futuro o ressarcimento poderá ser mais abrangente e incluir também tanto o lucro cessante, quanto os demais prejuízos gerados pela deformação do ambiente comercial em razão das práticas anticoncorrenciais, além de promover mais rapidez e assertividade nas decisões judiciais. Ora, não custa lembrar que a importância do enforcement privado é preservar o ambiente concorrencial como um todo, visto que a persecução pública dos infratores não é suficiente para coibir e prevenir novas infrações, por melhor que ela seja realizada. A punição nas esferas administrativa e criminal, por suas próprias naturezas, são sempre previsíveis ao infrator, fator que possibilita a este antever o resultado final e incluir tais eventuais perdas econômicas na conduta ilegal, aumentando ainda mais o prejuízo das vítimas. Portanto, a indenização privada não é apenas a única forma de ressarcir as vítimas por seus prejuízos como tem papel fundamental no desincentivo à violação da lei, na medida em que elimina qualquer possibilidade de lucro ao infrator. Sabendo-se que parte relevante das vítimas são grandes corporações, prescinde de análise o impacto que a reforma legislativa promovida em relação ao sistema brasileiro de persecução de indenizações por dados concorrenciais possui sob a ótica corporativa. Indaga-se assim até onde iria a responsabilidade do administrador de uma empresa caso ela tenha sido vítima de uma infração concorrencial. Tal questionamento cresce em importância se esta empresa for uma companhia aberta e, em função disto, submetida não apenas aos regramentos trazidos pela Lei no 6.404/1976 (LSA), como também pelas normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O fato de existir a oportunidade de ingressar com uma ação indenizatória (seja ela no âmbito concorrencial ou outro) impõe uma decisão ao administrador da empresa, o que, considerando o arcabouço legal trazido pela LSA, implica em deveres e responsabilidades à figura deste agente fiduciário. Vejamos. Ao descrever o dever de diligência deste administrador no seu artigo 153, a LSA remete a um parâmetro de cuidado e diligência que deve ser empregado por todo homem ativo e probo no exercício da administração de seus próprios negócios. Este parâmetro direciona a análise do caso concreto ao modo de atuação deste administrador, isto é, procurando averiguar se ele cercou-se de todas as precauções necessárias à tomada de decisão1. Trazendo ao caso concreto, o dever de diligência estaria materializado no dever do administrador de analisar todos os aspectos, sejam eles positivos ou negativos, da decisão sobre a possibilidade de ingressar ou não com a demanda reparatória, seja ela judicial ou arbitral. Neste sentido, considerando os montantes a serem ressarcidos pela companhia e as peculiaridades inauguradas pela modificação legislativa (que facilitam antigos obstáculos processuais, como a contagem do prazo prescricional e a distribuição do ônus probatório), parece-nos que desconsiderar sequer a hipótese do ingresso da demanda ou não possuir motivos racionais para tanto pode ensejar a responsabilização deste administrador por não atuar de forma diligente para com a companhia, colocando a perder montantes expressivos, que certamente contribuiriam à consecução da sua atividade empresarial ou seriam revertidos em lucros aos acionistas. De fato, essa obrigação e reforçada pelo artigo 154 da mesma LSA, que prevê o dever de lealdade do administrador, por meio do qual ele deve sempre buscar o melhor interesse da companhia. Ainda, mesmo em nível assemblear essa preocupação com o bem comum da companhia, pois o artigo 166 da LSA estende ao acionista controlador os deveres de lealdade e diligência. Por consequência, uma decisão do controlador que freie a busca por valores de direito da companhia pode atentar aos direitos dos minoritários e configurar até mesmo abuso de poder. Como é possível depreender a partir da orientação consolidada pelo colegiado da CVM, foge à competência do órgão a análise quanto ao resultado da conduta dos administradores, restando, porém, sob seu escrutínio, o processo de tomada de decisão. Este processo, por sua vez, consiste em verificar se o administrador, ao ser confrontado com a situação em concreto, agiu de maneira informada, refletida e desinteressada2. Assim, para além da análise sobre o modo pelo qual atuou o administrador, sob as lentes do artigo 153 da LSA, também se faz necessário analisar se a decisão do administrador efetivamente buscou a consecução dos fins sociais da companhia. Em ambos os casos, a regra para avaliar a sua decisão negocial seguirá o padrão da Business Judgement Rule. Ao elaborar sobre o tema, Sampaio Campos observa que "não se exige do administrador, então, apenas uma conduta formalmente de acordo com os preceitos da LSA, mas, sim, materialmente em linha com os seus preceitos. Da mesma forma que os conceitos de discricionariedade próprios do direito administrativo têm aplicação aos administradores, permitindo a LSA larga margem de ação. Essa faixa de atuação é conferida apenas para que o administrador possa realizar o objeto social e atender ao interesse social, à medida que o poder e a liberdade dos administradores é eminentemente funcional como órgão da companhia. Se o administrador usar seu poder e mesmo sua discricionariedade para qualquer outra finalidade ou contrariamente ao interesse social incidirá em desvio de poder, conceito construído pelos administrativistas, mas que tem inteira cabida na atuação dos administradores das companhias"3 (grifo nosso) Precedentes também recentes da CVM seguem essa interpretação legal, na medida que consideram que avaliações posteriores das decisões dos administradores devem considerar se eles teriam condições de antever a iminência do implemento de determinado risco, com base nas informações que lhe estavam disponíveis, pouco importando se efetivamente tiveram consciência do alerta4. Ora, este "desvio de poder" e falha no cumprimento dos deveres de diligência e lealdade podem se configurar no caso das decisões sobre demandas para indenização por danos concorrenciais tanto nas hipóteses de desvio de finalidade em razão de algum tipo de conflito de interesses que possa macular a decisão de determinado administrador, quanto em situações que demonstrem sua contrariedade ao interesse social da companhia. Tal consequência surge tanto porque tal administrador age visando beneficiar outro agente econômico de interesse contrário como por ausência da devida diligência em analisar a oportunidade, porque em ambos os casos o resultado é o mesmo: colocar a perder montantes expressivos que serviriam aos interesses corporativos. Dessa forma, conclui-se que, para o caso das Sociedades Anônimas, é pujante que a reforma legislativa em comento, ao contribuir com a viabilidade das demandas indenizatórias em questão e dobrar o valor das indenizações devidas, igualmente elevará o rigor das justificativas que precisarão ser apresentadas para justificar a recusa de seu ingresso em juízo. __________ 1 O dever de diligência não é circunscrito aos administradores de sociedades anônimas. Ao contrário, os administradores de outras espécies de sociedades têm o mesmo dever em razão do preceito do artigo 1.011 do Código Civil, que tem o mesmo conteúdo do artigo 153 da LSA. 2 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/1443, de relatoria do Diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa, julgado em 21-03-2006 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/0097, de relatoria da Diretora Maria Helena de Santana, julgado em 15-03-2007. 3 SAMPAIO CAMPOS, Luiz Antonio. Orientação da Aplicação da LSA. In FILHO, Alfredo Lamy; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias, p. 1084. 4 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2008/8046, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 30-10-2018 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2014/8013, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 31-08-2018.
A produção de danos decorrentes da atividade médica não se estende apenas no plano material, podendo incidir na esfera psíquica do paciente, tendo em vista a dor-sensação produzida por intervenções que podem ser, de algum modo, dolorosas e traumáticas. O prejuízo corporal se compõe de elementos variáveis, indenizáveis separadamente, conforme a invalidez seja parcial ou total, permanente ou temporária. Também o próprio estado patológico do doente, que se pretendia aliviar ou curar, pode resultar agravado ou crônico. Nesse cenário, dentre os maiores desafios postos ao julgador, estará a quantificação dos danos morais e estéticos em virtude dos padecimentos experimentados pela vítima diante da ocorrência da culpa profissional. O dano estético, assim como o dano moral, representa uma ofensa a um direito de personalidade. Todavia, Teresa Ancona Lopes ensina que o dano moral constitui o "acervo da consciência", voltado para dentro do sujeito, incorpora-se ao psiquismo, afeta os seus sentimentos.  Já o dano estético está voltado para fora, correspondendo ao "patrimônio da aparência", isto é, ele é a lesão à beleza física, à harmonia das formas externas do sujeito.1 A fixação do quantum indenizatório dos danos extrapatrimoniais sempre foi objeto de acendrados debates doutrinários e jurisprudenciais. Em busca de uma solução, alguns países - como Reino Unido e Itália - adotam diferentes sistemas de tabelamento de danos.2 Na tentativa de objetivar a quantificação das indenizações por danos morais, no julgamento do REsp 959.780/ES (3ª Turma, j. 23.08.2011) e do REsp 1.473.393/SP (4ª Turma, j. 04.10.2016),3 o STJ passou a adotar o denominado "critério bifásico", consubstanciado na seguinte fórmula: na primeira fase, "arbitra-se o valor básico ou inicial da indenização, considerando-se o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos)." A justificativa é assegurar uma justiça comutativa, que é uma razoável igualdade de tratamento para casos semelhantes, assim como que situações distintas sejam tratadas desigualmente na medida em que se diferenciam. Já na segunda fase "procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustando-se o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias. Partindo-se, assim, da indenização básica, eleva-se ou reduz-se esse valor de acordo com as circunstâncias culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes) até se alcançar o montante definitivo." Nessa etapa, procede-se a um arbitramento efetivamente equitativo, que respeita as peculiaridades do caso. Pensando em experiências alienígenas e na orientação contida na primeira fase do método bifásico, há a ferramenta desenvolvida pela Comissão de Inovação do TJRS (Inovajus) e Escola Superior da Magistratura da AJURIS, em parceria com a PUCRS - chamada "Tabela de Parâmetros do Dano Moral" -, utilizada desde 2020 pelos Juízes e Desembargadores gaúchos que, ao digitarem os termos de busca desejados na tabela, chegam rapidamente a uma lista com casos semelhantes, indicando-se os valores máximo, mínimo, mediano e a média, com algumas referências às peculiaridades dos casos selecionados. Explica Eugênio Facchini Netto que, "assim, o julgador pode comparar as peculiaridades do caso que está analisando com as peculiaridades dos casos já julgados e constatar os valores já usados para casos semelhantes."4 Nas demandas judiciais sobre responsabilidade civil médica, é notória a relevância do método bifásico de quantificação dos danos morais para minimizar eventual arbitrariedade de critérios unicamente subjetivos do julgador, além de afastar a tarifação do dano, trazendo um ponto de equilíbrio entre a garantia de uniformidade das decisões judiciais e o respeito às peculiaridades de cada caso concreto. Essa metodologia, contudo, ainda encontra certa resistência e desafios na sua correta aplicação pelos tribunais estaduais. Ademais, é necessária a análise de viabilidade da extensão desse critério pretoriano para a quantificação do dano estético. Diante disso, estas breves reflexões têm o objetivo de demonstrar a maneira pela qual o Tribunal de Justiça do Paraná - mais especificamente, a 8ª, 9ª e 10ª Câmaras Cíveis, especializadas em responsabilidade civil - aplicam o método bifásico e estabelecem valores indenizatórios compensatórios, em casos envolvendo danos moral e estético decorrentes da atividade médica. A 8ª Câmara Cível do TJPR, no julgamento da Apelação Cível n º 0017082-44.2015.8.16.0019,5 manteve a condenação de médico por negligência diante do esquecimento de uma compressa cirúrgica no interior do estômago da paciente que se estendia até o duodeno, quando da realização de uma gastroplastia, o que lhe teria causado dores e desconforto até a retirada, ocorrida aproximadamente três anos depois. Contudo, reduziu-se a indenização por danos morais fixada em R$ 70.000,00 (setenta mil reais). Adotando-se o método bifásico, na primeira fase, identificou-se que os bens jurídicos violados são a saúde e a integridade física da paciente, diante do esquecimento da compressa cirúrgica em seu abdômen, causando-lhe dores por mais de um ano. Tendo isso em mente, nesta fase, extraiu-se um grupo de casos da jurisprudência do TJPR que, em situações análogas relacionadas à responsabilidade civil por erro médico, com o esquecimento de compressa ou gaze cirúrgica e sem sequelas permanentes, o patamar médio da indenização por danos morais varia entre R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e R$ 40.000,00 (quarenta mil reais).6 Estabelecida esta premissa, restou na segunda fase da quantificação avaliar se as circunstâncias peculiares do caso, cumprindo apreciar a extensão do dano (art. 944, CC), o grau de culpa dos envolvidos e as condições econômicas, sociais e pessoais das partes. O STJ apresenta algumas diretrizes (critérios) no arbitramento dessas verbas indenizatórias por dano moral na segunda fase, tendo como norte a fixação em quantum sintonizado com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade: 1) a gravidade do fato em si e suas consequências para a vítima (dimensão e tempo de duração do dano) - além da eventual participação culposa do ofendido (culpa concorrente); 2) a ponderação sobre as condições pessoais e econômicas das partes, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, ainda, de modo que sirva para desestimular a conduta do ofensor.7 3) deve-se levar em consideração o caráter pedagógico e sancionatório da indenização - e, nesse sentido, avaliar a intensidade do dolo ou o grau de culpa do agente.8 Esses critérios foram observados pelo TJPR na análise do caso acima relatado. Inicialmente, considerou-se que, da data da cirurgia até a retirada do corpo estranho passaram-se aproximadamente três anos, além de que a paciente se queixava de fortes dores abdominais por cerca de um ano. Ainda, levou-se em conta que a paciente foi diagnosticada com disfunção do esfíncter de oddi - que em nada se relacionava com o corpo estranho -, uma vez que naquele momento apresentou dores de característica biliar, sendo então marcada cirurgia para a desobstrução. Portanto, não foi necessária a realização de cirurgia exclusiva para a retirada do corpo estranho, cujo achado, inclusive, foi surpresa para os médicos que realizavam o procedimento. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 44. 2 Sobre o tema, remeta-se a FACCIO, Lucas Girardello. A quantificação do dano moral. O uso de tabelas no direito italiano e sua viabilidade no direito brasileiro. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. 3 É sabido que os precedentes das Turmas da Seção de Direito Privado do STJ, em razão da dificuldade de se sistematizar parâmetros objetivos, vêm determinando a aplicação do critério bifásico para "garantir o arbitramento equitativo da quantia indenizatória, valorados o interesse jurídico lesado e as circunstâncias do caso, minimizando eventual arbitrariedade ao se adotar critérios unicamente subjetivos do julgador, além de afastar eventual tarifação do dano". (STJ, AgInt no AREsp n. 1.799.380/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 26.04.2022) 4 FACCHINI NETO, Eugênio. O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha. Consultor Jurídico, 16/2/2020. Acesso em 30 de agosto de 2022. 5 TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 0017082-44.2015.8.16.0019, rel. Des. Clayton Maranhão, j. 28.03.2019. 6 TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1582929-3, rel. Des.  Luiz Cezar Nicolau, j. 18.05.2017; TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1364036-1, rel. Des. Marcos S. Galliano Daros, j. 05.11.2015; TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1527935-3, rel. Des. Gilberto Ferreira, j. 01.09.2016. 7 Nesse sentido, cf.: STJ, AgInt no AREsp n. 1.931.192/MS, rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j. 14.03.2022. 8 Nesse sentido, cf.: STJ, REsp 1677957/PR, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 24.04.2018.
Nos dias atuais, tornou-se corriqueiro o Poder Judiciário ser acionado para resolver questões relacionadas à publicação de conteúdo ofensivo em redes sociais. A solução desses casos demanda, com certa frequência, a participação das plataformas digitais a fim de viabilizar a identificação do usuário criador do conteúdo ilícito. Tendo em mente a indagação feita no título deste ensaio, pensemos na seguinte hipótese: uma vítima de conteúdo ofensivo publicado em rede social ajuíza a ação prevista no art. 22 da lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet - MCI), no prazo previsto no art. 15 do MCI, porém, a plataforma não fornece os registros de acesso à aplicação do autor do conteúdo, sob a alegação de que o usuário desativou o perfil, pelo que a rede social invoca o art. 248 do Código Civil (art. 248 - Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos) para sustentar a resolução da obrigação. Nesse cenário, indaga-se: a omissão da plataforma ao não fornecer os dados pode ensejar a sua responsabilidade civil? O art. 248 do Código Civil afasta a responsabilidade da rede social nesse caso? Na hipótese em exame, o provedor ignorou o que prevê o MCI, notadamente as regras legais acerca do dever do provedor de aplicação de manter os dados de registro dos usuários pelo tempo previsto na norma, como forma de viabilizar a eventual responsabilização daqueles que se utilizam da rede mundial de computadores para violar direitos assegurados na Constituição da República. O MCI, editado com o propósito de estabelecer os princípios, garantias direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, determina que os provedores de conexão mantenham a guarda dos registros de conexão pelo prazo de 01 (um) ano (art. 13), bem como impõe aos provedores de aplicação - como a rede social -  a conservação dos registros de acesso à aplicação de internet pelo prazo de 06 (seis) meses (art. 15). Os dispositivos não definem o termo inicial dos referidos prazos de guarda obrigatória de dados. A Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1738651/MS, fixou o entendimento de que o termo inicial para a contagem retroativa do prazo de 01 (um) ano ou de 06 (seis) meses de guarda é a data em que a parte requerida toma conhecimento do ajuizamento da ação de requisição judicial dos registros. No caso hipotético, o autor ingressou com a ação judicial no prazo do art. 15 do MCI, portanto, quando a rede social ainda estava obrigada a conservar os registros de acesso dos seus usuários. Logo, quer parecer ser indiscutível a conduta omissiva do provedor, que não observou um comando legal expresso, agindo, desse modo, de forma negligente no desempenho de sua atividade que, em certa medida, já se está regulada pelo Estado brasileiro. Assim sendo, a conduta omissiva do provedor, ao passo que configura um dos elementos da responsabilidade civil (conduta), sugere, a um só tempo, a presença de outro, a saber, a culpa, na vertente da negligência empregada no comportamento omissivo. A jurisprudência do STJ (REsp 1642560/SP) vem entendendo que, uma vez apresentado pela vítima o URL da página virtual com o conteúdo ofensivo, é dever do provedor de aplicação - no caso, a rede social - manter um sistema ou adotar as providências, tecnicamente a seu alcance, de modo a possibilitar a identificação do usuário responsável pelo conteúdo apontado como ofensivo, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão em que incide, tratando-se, desse modo, de responsabilidade subjetiva. Uma vez reconhecida a culpa do provedor de aplicação, não há falar em incidência do art. 248 do Código Civil para afastar a responsabilidade civil da plataforma, pois, para isso, a norma exige a ausência desse elemento subjetivo. A alegada impossibilidade de fornecer os registros de acesso do usuário infrator decorreu de culpa da rede social, na medida em que não manteve a guarda dos dados do perfil excluído pelo internauta agressor. O argumento de que o usuário infrator excluiu da rede o seu perfil e o conteúdo ofensivo publicado na plataforma não isenta o provedor da obrigação legal de conservar os registros de acesso à aplicação da internet. Por outro lado, o descumprimento desse dever, por si só, não legitima acionar o regime da responsabilidade civil, para o que se mostra imprescindível a ocorrência de algum dano ao interessado na identificação do autor do conteúdo. Entender diferente importaria no reconhecimento da responsabilidade civil sem danos, o que não se mostra compatível com a razão de ser do sistema de responsabilização civil, enquanto mecanismo voltado à indenização ou compensação de um prejuízo. Afinal, antijuridicidade da conduta não se confunde com o dano, assertiva à qual se pode acrescentar, ainda, que o dano não é um consectário lógico e inarredável da ilicitude do comportamento. Identificada a conduta omissiva, bem como a culpa da rede social, que agiu negligentemente ao não manter a guarda dos dados do usuário, cumpre indagar qual o dano e, se constatado algum, qual a sua relação com a postura da plataforma (nexo causal). Obviamente, aqui abre-se margem para uma enorme gama de possibilidades empíricas de pedidos de danos pelo ofendido, porém, para fins do caso hipotético em estudo, adota-se a premissa de que a vítima sofreu danos morais e materiais decorrentes da publicação. Os danos materiais, assim como os danos morais - traduzidos pela doutrina nacional majoritária como violação dos direitos da personalidade1 -, são disciplinados pela teoria do interesse, idealizada pelo jurista italiano Francesco Carnelutti2. Na lição de Carnelutti, a tutela jurídica é conferida não ao bem jurídico em si, mas à relação jurídica entre ele e o sujeito, o que denota o caráter normativo da ideia de dano, em contraponto à visão naturalista da teoria da diferença, circunstância que permitiu a acomodação dos danos extrapatrimoniais pela teoria do interesse. Assim, dano passou a ser concebido como a lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, independentemente de sua natureza, se bem patrimonial ou bem integrante da personalidade do ofendido3. Admitida a existência dos danos causados pela publicação, indaga-se, doravante, acerca da relação de relação de causalidade entre eles e a conduta omissiva da rede social ao não fornecer os registros de acesso à plataforma digital, em descumprimento à determinação judicial. Na perspectiva naturalística, inexiste tal relação de causalidade, ao menos diretamente. A conduta do provedor de aplicação não se confunde com a daquele que criou o conteúdo violador de direitos. Daí que não se pode atribuir ao primeiro, desde logo, o dever de indenizar pela mera divulgação do conteúdo ilícito e danoso à vítima, sob pena de caracterização de responsabilidade objetiva ao arrepio da lei e do atual entendimento do STJ. Nada obstante, não se deve olvidar a circunstância de que a relação jurídica entre o criador do conteúdo ofensivo e a rede social é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo juridicamente viável enquadrar a vítima da publicação, mesmo não sendo usuária da plataforma, na qualidade de consumidor equiparado (art. 17, CDC). Nessa perspectiva, considerando que a rede social, inobstante não tenha criado diretamente o conteúdo ofensivo, propiciou meios técnicos para que ele fosse concebido e, mais do que isso, divulgado para uma infinidade de pessoas, é possível sustentar que ela integra a cadeia de fornecimento para fins do art. 7º, parágrafo único, do CDC, segundo o qual "Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo". Em outros termos, há a participação instrumental do provedor de aplicação nessa cadeia, ao fornecer o ambiente virtual onde o conteúdo é criado e disseminado em uma velocidade diretamente proporcional ao interesse e à curiosidade que esse material pode despertar em usuários e não usuários da plataforma, de modo que um eventual dano, notadamente a direito da personalidade, pode assumir proporções de difícil dimensionamento. Na seara processual, é importante destacar que o raciocínio desenvolvido neste ensaio para admitir a possibilidade da incidência de responsabilidade civil da rede social no caso de descumprimento de determinada decisão judicial não desconsidera a existência das medidas executivas de coerção indireta, das quais se destacam as astreintes, também chamada de multa diária, cujo escopo é compelir o devedor a realizar a obrigação de fazer ou não fazer. O regime de responsabilidade civil do provedor de aplicação, notadamente, das redes sociais, na hipótese em discussão, pressupõe o insucesso da aplicação dos mecanismos de coerção indireta, inclusive a multa cominatória. Portanto, na hipótese proposta neste ensaio, a recusa da rede social em fornecer ao Poder Judiciário os registros de acesso à aplicação de internet pode ensejar a sua responsabilização civil pelos danos experimentados pela vítima do conteúdo ofensivo publicado na plataforma digital.