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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Responsabilidade pré-contratual e prescrição

O tema do enquadramento jurídico da culpa in contrahendo constitui uma questão debatida na doutrina1. Em síntese apertada, a matéria envolve a situação em que as partes rompem as tratativas para contratar, verificando-se assim a necessidade de examinar se essa conduta constitui uma violação do princípio da boa-fé, a fim de apurar se houve prejuízos à parte afetada pela interrupção da negociação. Desse modo, inexistindo ainda o contrato, tender-se-ia a configurar a matéria no âmbito da responsabilidade extracontratual.  A riqueza do tema não se limita, pura e simplesmente, à identificação da natureza jurídica da culpa in contrahendo. Ela se vincula à questão histórica da dicotomia das fontes do vínculo obrigacional, a partir do delineamento estabelecido por Gaio, nas Institutas, a denominada summa divisio, entre contrato e delito2. Mesmo que se pretenda ver na sua lição uma finalidade meramente didática, ao referir que toda obrigação nasce ou do contrato ou do delito3, Gaio não parece deixar espaços para esfumaturas. É certo que essa perspectiva redutiva sofre uma crítica, que pode ser percebida na concepção de contato social4, que na doutrina brasileira teve em Clóvis do Couto e Silva uma visão precursora, ao indicar já na década de sessenta do século XX a existência de uma crise da teoria das fontes5. Essa problemática não se restringe, é certo, à teoria geral, na medida em que também a responsabilidade civil e suas figuras e institutos são afetadas pela divisão clássica decorrente de Gaio. Muito embora se preconize a visão unitária da responsabilidade civil, há que se reconhecer a presença da diferenciação em muitos dos pontos de sua disciplina. No que concerne à prescrição, o Código civil de 2002 havia estabelecido uma regra unitária para o prazo da ação de indenização, que abrangia, portanto, os dois campos da responsabilidade civil. Ao decidir os Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP, julgados em 15 de maio de 2019, o Superior Tribunal de Justiça considerou, por maioria, que "a bipartição existente entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e funcional entre ambas, obsta o tratamento isonômico entre as duas esferas". Pode-se identificar, portanto, que para a corrente majoritária sobrevive, em essência, a percepção gaiana: haveria uma diferenciação ontológica, isto é, na própria estrutura entre os dois planos da responsabilidade civil, que ultrapassaria a previsão legislativa originária contida na codificação civil. Concluiu-se, assim, pela diferenciação entre os prazos prescricionais: a previsão de três anos contida no artigo 206, § 3º, V, restringe-se à responsabilidade extracontratual, enquanto nos casos de responsabilidade contratual aplica-se o prazo decenal, previsto no artigo 2056. É certo que a questão submetida a análise do Superior Tribunal de Justiça nos aludidos Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP versava sobre o inadimplemento de um contrato de compra e venda, que se enquadra como um contrato típico, dotado de prestações específicas a serem cumpridas pelas partes. Cabe a pergunta se o prazo decenal se aplica a todos os casos de responsabilidade contratual. No âmbito dos contratos de seguro, por exemplo, a partir da previsão específica contida no artigo 206, a resposta do Superior Tribunal de Justiça foi negativa, tendo decidido que se aplica o prazo ânuo para toda a gama de pretensões decorrentes desse tipo de contrato7. Como ficamos então, relativamente ao prazo prescricional, no caso da responsabilidade pré-contratual, situação em que não se perfectibilizou o contrato? A partir da distinção clássica, poder-se-ia adotar aqui a orientação no sentido de que o prazo será o de três anos: não tendo se aperfeiçoado o contrato, adota-se a diretriz preconizada para a responsabilidade extracontratual. O tema foi objeto de discussão no direito comparado, como serve de exemplo o ordenamento italiano, que no artigo 2.947 do seu Código Civil contempla o prazo prescricional de 5 anos para a responsabilidade aquiliana, sendo que o prazo geral é de dez anos nos termos do artigo 2.946. Diante dessa diferenciação, a orientação recente da Corte de Cassação tem sido de considerar que se aplica à responsabilidade pré-contratual o prazo de dez anos, a partir de uma concepção que a qualifica como uma hipótese de responsabilidade contratual decorrente de um "contatto sociale qualificato"8. Em síntese, reconhece-se a visão de que muito embora inexista propriamente na culpa in contrahendo a violação de uma prestação9, a circunstância de configurar-se a violação pela parte de deveres decorrentes da boa-fé implica no reconhecimento da natureza contratual da responsabilidade pré-contratual. A essa discussão não está alheio o Superior Tribunal de Justiça, que já enfrentou o tema da natureza jurídica da responsabilidade pré-contratual, em especial para decidir qual a disciplina a ser adotada em relação a alguns tópicos, como é o caso dos juros de mora. Foi o caso do REsp n. 1.367.955-SP10, em que apesar de reconhecer o debate doutrinário a respeito, considerou na decisão que se deveria reputar a responsabilidade pré-contratual como hipótese de responsabilidade contratual, a partir do fundamento de que o princípio da boa-fé está disciplinado no artigo 422, no âmbito da tutela contratual. É claro que em uma visão tópica, percepções como o da tutela da confiança também aparecem na fundamentação do Superior Tribunal de Justiça, para embasar o seu reconhecimento da responsabilidade pré-contratual11. Pontue-se, ainda, que na decisão anteriormente indicada, do Superior Tribunal de Justiça, relativa ao estabelecimento da prescrição ânua para todas as pretensões decorrentes de contrato de seguro, fez-se expressa menção ao reconhecimento da clássica orientação de obrigação como processo, para afirmar que o "conteúdo da obrigação contratual (direitos e obrigações das partes) transcende as prestações nucleares expressamente pactuadas". Vê-se, portanto, que a base jurídica para a decisão se aproxima da concepção hoje presente no direito italiano, que considera a violação dos deveres de boa-fé como sendo de natureza contratual. Cuida-se em essência da concepção também indicada por Clóvis do Couto e Silva no sentido da 'obrigação como totalidade' e que se atualiza, em uma aproximação singela, na orientação de 'obrigação complexa'12. Por fim, é certo que se pode favorecer uma solução legislativa, que no âmbito de uma atualização da matéria da prescrição, explicite a regra cabível para a hipótese do prazo prescricional relacionado à culpa in contrahendo. No presente cenário, porém, a partir da nova orientação traçada jurisprudencialmente pelo STJ, excetuando-se situações em que exista disposição legislativa expressa em contrário, a orientação no sentido de que o prazo decenal se aplica à reponsabilidade pré-contratual se harmoniza com a visão presente no cenário nacional, constituindo-se, além de tudo, como fator dissuasório de condutas contrárias ao princípio da boa-fé no âmbito das tratativas negociais.  __________ 1 Ver, por exemplo, ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontrattuale. Scritti in onore di Carlo Castronovo, Napolis: Jovene Editore, 2018, p. 1695; BLANC, Valérie. La Responsabilité précontractuelle, perspectives quebecoise et internationalle. Université de Montreal, 2008, p. 1 ss. Na doutrina nacional atual ver, por exemplo, FRITZ, Karina Nunes. A Culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 161 ss. 2 Ver, por exemplo, Zimmermann, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Oxford University Press, 1996, p. 10 e ss. 3 Gaio, Institutas, III, 88, Belles Lettres, Paris, 1989. 4 Ver, por exemplo, GAROFALO, Andrea Maria. Il Problema del contato sociale. Teoria e Storia del Diritto Privato, 2018, n. XI, p. 1 ss. 5 COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1976, p. 76ss. 6 A questão permanece, porém, em debate na doutrina. Ver, por exemplo, BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa; Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. A Prescrição das pretensões de reparação por responsabilidade contratual e extracontratual: em busca de coerência. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/371238/as-pretensoes-de-reparacao-por-responsabilidade-contratual 7 Ver REsp 1.303.374-ES, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, segunda seção, por maioria, j. 30.11.2021. 8 IULIANNI, Antonello. La Cassazione riafferma la natura contrattuale della responsabilità precontrattuale. Nuova Giurisprudenza Civile, 2016, v. 11, p. 1451 ss. 9 Sobre o tema ver ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontratualle, cit., p. 1703, que a par de traçar amplo panorama da evolução italiana sobre o tema, reconhece a aproximação entre esse desenvolvimento e a origem alemão da questão a partir da concepção de 'relação contratual sem deveres primários de prestação' (Schuldverhältnis ohne primäre Leistungspflicht). 10 Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18.03.2014, 3ª Turma. 11 Ver, por exemplo, REsp n. 1.051.065-AM, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 21.02.2013, 3ª Turma. 12 MIRABELLI DI LAURO, Antonino Proscida. L'Obligazione come rapporto complesso. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 7, 2016, p. 132 ss.
Traz-se com frequência a juízo questão relativa à restituição da integralidade do valor pago na aquisição de passagem aérea por força da desistência do consumidor em dar seguimento ao contrato de transporte aéreo. Neste contexto impõe-se investigar se é abusiva a cláusula contratual que impõe a perda de percentual, por vezes significativo, do valor da passagem aérea ou até mesmo da integralidade do preço, em caso de desistência do consumidor, quando o bilhete de passagem aérea é comprado na modalidade promocional. A questão será analisada à luz do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que de um lado da relação jurídica tem-se a figura do consumidor, como destinatário final do serviço, e um agente econômico na condição de fornecedor deste mesmo serviço (CDC, arts. 2º e 3º). Contudo, haverá diálogo de fontes posto que também incide na questão o Código Civil (CC, arts. 389 e seguintes e arts. 731 e 740), uma vez que se trata de inadimplemento contratual. Também haverá diálogos de fontes com a Resolução ANAC 400/16, que dispõe sobre as condições gerais de transporte aéreo e que também regula a "alteração e resilição do contrato de transporte aéreo por parte do passageiro". O art. 731 do Código Civil prescreve que a regulamentação de serviço de transporte autorizado, permitido ou concedido deve ser regido por norma específica: "O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código". Neste sentido, a norma a ser aplicada a presente questão é a Res. 400/16 da ANAC. Portanto, embora seja esta uma relação de consumo, isto, por si só, não veda apreciação do caso também à luz da regulamentação específica aplicável, seja porque o próprio Código Civil em seu artigo remeteu o intérprete à norma de regência (Res. ANAC 400/16), seja porque há, de fato, diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade1 entre o CDC e a apontada Resolução na medida em que o CDC, na condição de norma especial, tem a sua aplicação complementada pela citada Resolução quanto aos instituto da resilição do contrato de transporte aéreo.   Em princípio, o consumidor pode se desistir do contrato de transporte aéreo no prazo de 7 dias sem qualquer ônus, quando a compra é realizada pela internet, posto que nesta hipótese se aplica o art. 49 do CDC (direito de arrependimento), aplicável a qualquer tipo de compra que ocorra fora do estabelecimento comercial. Afora esta hipótese, a Resolução 400/16, em seu art. 3º, impõe ao consumidor multa de 5% para hipótese de reembolso do valor do bilhete em caso de desistência, desde que observado o disposto nos seus art. 11 e art. 29, vale dizer, quando a compra da passagem se dê no prazo igual ou superior a sete dias da data de embarque. Confira-se: Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante. Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque. Art. 29. O prazo para o reembolso será de 7 (sete) dias, a contar da data da solicitação feita pelo passageiro, devendo ser observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea. Parágrafo único. Nos casos de reembolso, os valores previstos no art. 4º, § 1º, incisos II e III, desta Resolução, deverão ser integralmente restituídos. Excluídas estas duas hipóteses de restituição integral do valor pago em caso de desistência do contrato de transporte aéreo, não se configura abusiva a cláusula contratual de transporte aéreo que prevê a aplicação de multa escalonada e progressiva, que pode resultar até mesmo na perda do valor integral do preço pago. Isto porque se a passagem foi comprada na tarifa promocional o consumidor, que a ela adere já recebe de antemão benefício que a compra passagem na tarifa convencional não possui. Ao comprar tarifa promocional o consumidor realizou escolha racional, mediante análise de custo-benefício. Ao assim proceder, o consumidor enfrentou tradeoff2 (escolha) entre a compra de uma passagem de menor custo, contudo, com menores benefícios, ao invés de passagem com maior custo, porém com maiores benefícios. Dentre os benefícios que renunciou está o de sofrer imposição de multa na hipótese de desistência de voar. O benefício do consumidor que compra na tarifa promocional consiste em pagar menos, todavia, submete-se ao risco de até mesmo perder a integralidade do preço pago, ao passo que o consumidor que compra pela tarifa convencional tem garantido o reembolso de valor mais substancial em caso de resilição do contrato. Por imposição da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro - LINDB (decreto-lei 4.657/42), o juiz não deve decidir sem levar em consideração o impacto econômico da decisão tomada isoladamente em cada processo: "Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Quando o transportador aéreo disponibiliza tarifa promocional fez análise de custo para adotá-la. Se o judiciário intervém neste cálculo desequilibrará indevidamente o custo de transação3 da operação de compra e venda do serviço. Para o consumidor o custo de transação importou em renunciar a benefícios como possibilidade de, por exemplo, alterar o dia e hora do voo, sem assunção de novos ônus ou imposição de multa. Para o transportador aéreo o custo de transação importou em renunciar à obtenção de lucro maior em cada um dos bilhetes disponibilizados. Não se trata de discriminação entre consumidores, posto que o custo de oportunidade resultou da escolha racional de cada consumidor que foi amparada pelo acordo entabulado. Se o judiciário der o mesmo tratamento a ambos os consumidores estará, aí sim, promovendo desigualdade porque contemplará o consumidor que comprou tarifa promocional com o mesmo desconto que será aplicado ao consumidor que comprou passagem na tarifa convencional, que é mais onerosa. Mankiw4 aponta que "as pessoas reagem a incentivos". Isto significa que, acaso o Judiciário decida pela restituição do valor integral do bilhete aéreo comprado com tarifa promocional, mais consumidores optarão pela compra com tarifa promocional porque obterão o melhor proveito possível, sabendo que poderão se socorrer do Poder Judiciário para, na hipótese de desistência, requerer a restituição integral do valor da tarifa. Por outro lado, companhias aéreas tenderão a aumentar o preço da tarifa promocional (ou até mesmo extinguir) de modo à, efetivamente, prejudicar o consumidor que optou pela compra na tarifa promocional, para quem a compra da tarifa com menor preço era interessante, uma vez que as empresas aéreas reagirão de forma negativa ao incentivo adotado pelo Judiciário quando concedeu a restituição da integralidade do preço da passagem ao consumidor que comprou na tarifa promocional. A análise econômica do direito aplicada a esta questão demonstra que dar tratamento igual a situações diversas cria estímulo para que o consumidor da tarifa promocional obtenha vantagem que não tem o consumidor da tarifa convencional que pagou mais caro para viajar e obterá o mesmo percentual de multa aplicado ao consumidor de tarifa promocional. Em resumo, a adoção de tratamento igual entre consumidores que optaram por pagar preços diferenciados em face do risco assumido criará estímulo para que o consumidor opte por comprar tarifa promocional e depois se socorrer do judiciário para obter a aplicação da multa aplicada à tarifa convencional, acaso desista de viajar e solicite a restituição do valor pago. Portanto, sob a lógica econômica o não reembolso da passagem vendida com tarifa promocional não infringe o disposto no art. 51, IV, do CDC, que trata da nulidade de cláusula abusiva porque não há iniquidade que coloque o consumidor em desvantagem exagerada ou incompatível com a boa-fé ou equidade. A título de argumentação, ainda que se aplique isoladamente o Código Civil para abordar a questão, não há vedação a que a multa chegue à integralidade do preço pago porque a sua aplicação não tem relação com o valor da tarifa, a teor do que disposto o art. 412 do CC que apenas limita o valor da multa ao da obrigação principal. Confira-se o teor do art. 412: "O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal." O teor desta regra do CC (art. 412) foi reproduzida na Res. ANAC 400 em seu art. 9º: "As multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo. (...)". Neste sentido, não há retorque a ser feito quanto à possibilidade de perda, até mesmo na integralidade, do valor da tarifa promocional, desde que expressamente evidenciado no bilhete aéreo, por força da obrigação do fornecedor de prover o consumidor com "informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem (...)" (CDC, art. 6º, III). Acresça-se, ainda, que segundo o art. 416 do CC não há necessidade de que o credor (fornecedor) alegue prejuízo para aplicação da pena convencional: "Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo. (...).". Portanto, é irrelevante saber se o fornecedor revendeu a terceiro a passagem que o consumidor desistiu de utilizar. Deste modo, conclui-se não ser abusiva a cláusula de contrato de compra de passagem aérea na tarifa promocional que disponha acerca da perda da integralidade do preço pago. ---------- 1 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 8 ed. São Paulo: RT, 2016. p. 784.  2 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017. 3 SZTAJN, Raquel. A incompletude do contrato de sociedade. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 99, Jan-Dez. 2004, p. 283. 4 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017.
quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Incoterms & demurrage no direito brasileiro

Introdução Dadas as características do comércio internacional, boa parte das operações econômicas de exportação ou importação não chegam a ser instrumentalizadas em contratos com redação detalhada. Não só os instrumentos, como as cláusulas contratuais padronizadas acabam sendo preferidas em razão da necessidade de agilidade na conclusão dos negócios. Isto é especialmente verdade para duas significativas partes destas operações: a compra e venda (normalmente instrumentalizada por meio de uma fatura ou invoice) e o transporte (normalmente um documento padrão fornecido pelo armador - BL ou bill of lading). Destes contratos extraem-se duas importantes disposições contratuais, padronizadas com o tempo, que buscam gerenciar aspectos jurídicos centrais das relações: os riscos (perda/deterioração e atraso). São elas os INCOTERMS e a demurrage. Enquanto está prevê a responsabilidade e o montante indenizatório em caso de atraso na liberação do contêiner, aquela, estabelece as condições de transferência do risco e, consequentemente, acaba influindo no estabelecimento dos custos da transação. Ambas as cláusulas acabaram se consolidando em instrumentos negociais de extrema importância para o comércio internacional e, embora pensados para os aspectos internacionais das operações, acabaram alcançando espaço de debate também na jurisprudência nacional brasileira. O presente texto, então, se propõe, a partir de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, a entender qual a natureza obrigacional de cada uma destas clausulas a partir da ótica do Direito brasileiro. Eis o que se passa a fazer. Incoterms A sigla INCOTERMS significa International commercial terms, ou seja, condições comerciais internacionais. Ela se refere, principalmente, aos contratos internacionais de compra e venda em que é indispensável, na ausência de regulação específica, a identificação do momento de transferências dos riscos sobre a mercadoria. Dada a forma de sua redação (11 combinações de três letras), acaba se revelando extremamente prática e evitaria falhas de compreensão1. Sua natureza é debatida, alguns entendem-na como contrato especial de compra e venda2 ou contratos-tipo3. Parece, contudo, mais adequado tratá-la como cláusula da compra e venda4, cuja compilação - mais famosa e utilizada - é realizada pela Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI) desde 1936 (a versão mais atual entrou em vigor em janeiro de 2020). Pode-se até mesmo afirmar que tal iniciativa obedece a certa tendência internacional de uniformização das regras contratuais5 e teria por intuito a facilitação da interpretação das condições negociais a partir da adoção de padrões oriundos das práticas contratuais internacionais6. Dada sua natureza de cláusula contratual, sua obrigatoriedade advém do exercício da autonomia privada, embora sua "autoridade" seja extremamente reconhecida no comércio internacional, motivo pelo qual apesar de inúmeras ocasiões inexistir referência específica ao seu regulamento, poderiam servir de regras de interpretação. Embora normalmente sejam expressas em conjunto com a definição do preço, não se resumiriam a isso já que regulam não só o custo da mercadoria, mas a responsabilidade pelos riscos (perda e deterioração da mercadoria), pelas contratações (transporte e seguro, por exemplo), pelo fornecimento de licenças e pelo desembaraço aduaneiro. Chega-se a afirmar que a função principal dos INCOTERMS reside na definição do momento em que os riscos são transferidos7, servindo de definição uniforme8 das condições negociais mais usais nesse comércio internacional, evitando dúvidas9 e repetições10. Convém, contudo, destacar que os INCOTERMS não são as únicas condições contratuais consolidadas do comércio internacional. Ao lado deles são amplamente usadas as "Definições americanas revisadas do comércio exterior" (Revised American Foreign Trade Definitions). Embora muito similares, possuem diferenças substanciais11. Como exemplos de instrumento de lex mercatoria12, acabaram encontrando reconhecimento até mesmo pelo Direito nacional brasileiro, uma vez que compuseram legislação aduaneira brasileira13. Neste sentido, a própria ideia dos INCOTERMS pode parecer paradoxal: ao mesmo tempo que privilegia a dinamicidade do comércio, busca a consolidação de condições padrões. Eis o motivo pelo qual é cada vez mais comum a contratação de adaptações (que só passaram admitidas, embora não recomendadas, pela versão 2010). Um exemplo desta lógica é, justamente, a internacionalidade14 que define a própria sigla. Interessante notar, contudo, que a própria CCI reconhece o fenômeno da utilização nacional dos INCOTERMS. Fato é, no entanto, que tais adaptações têm ocorrido15 e que precisam de definição por parte da doutrina e jurisprudência. Neste sentido deve-se destacar iniciativa de adaptação (linguística-operacional) dos INCOTERMS ao comércio eletrônico16. De uma forma geral, com base em pesquisa jurisprudencial17, pode-se afirmar que os tribunais brasileiros, quando instados a resolver situações envolvendo tais condições negociais, ainda que de forma intuitiva, acabam dando a interpretação usual a cada uma delas. Assim, casos mais simples que envolvem mera discussão sobre a composição do preço (dever ou não de ressarcimento, por exemplo), protesto (in)devido em razão da responsabilidade pelo pagamento do frete e discussão sobre o momento a partir do qual passa-se o risco de perda da mercadoria acabam sendo adequadamente tratados. A complexidade maior está, no entanto, em fundamentar uma dada interpretação dispensada a negócios que fogem do usual. Como se sabe, nem todas as soluções negociais, podem ser apontadas pelos INCOTERMS, pois ainda que sejam guia amplamente testado pela prática, sua abrangência é limitada. É neste ponto que a criatividade negocial precisa do respaldo teórico. Demurrage A segunda cláusula que merece nossa atenção é a demurrage. Para seu adequado entendimento, contudo, convém antes realizar sumária explicação sobre o contrato de transporte marítimo. De acordo com o Direito positivo brasileiro, o contrato de transporte marítimo é contrato oneroso por meio do qual "alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.", nos termos do art. 730 do Código Civil. Esta retribuição é denominada frete, que pode ser calculada com base no peso, volume ou valor da mercadoria. O contrato, por sua vez, é instrumentalizado pelo chamado conhecimento de transporte, nos termos do art. 744 do Código Civil, que lhe serve de prova e no qual constarão os detalhes que especificam a carga e limitam a responsabilidade do transportador (art. 750 do Código Civil). No comércio internacional, este documento recebe o nome de bill of lading (BL). Neste mercado, é comum que atuem os agenciadores de carga que contratam o transporte internacional de mercadorias com empresas transportadoras e/ou amadores, disponibilizando este transporte àqueles que dependem da logística internacional de produtos. Neste caso específico, o agenciador contrata com o armador a disponibilização de espaço para transporte de mercadorias e a utilização dos contêineres de sua (dele) titularidade. O armador e o agenciador estabelecem o valor do frete e as consequências da eventual mora na devolução de seus contêineres, portanto. Sendo agora titular do "espaço de transporte", o agenciador contrata com seus clientes seu uso, mediante pagamento (frete) e a responsabilidade em caso de atraso na liberação do contêiner (demurrage). Esta última, normalmente, é feita por meio da celebração de instrumento específico, de longa duração, que cria verdadeira "tabela" de valores devidos em razão do atraso. Assim, o agenciador assume a obrigação perante o armador, mas mantém com seus clientes cláusula de "reembolso", em caso de atraso na devolução do contêiner. A Convenção Internacional para a Unificação das regras aplicáveis aos conhecimentos de transporte (Regras da Haia) prevê que se não for consignada a obrigação de pagar demurrage no conhecimento de transporte, ele não é devido pelo consignatário da carga a quem o frete é transferido. Embora não só as "Hague Rules" não tenham sido ratificadas pelo Brasil, como não se trate de demurrage no embarque/desembarque no navio, este tipo de disposição ajuda a compreender que a cláusula de demurrage (sobre estadia) é praticamente obrigatória para o armador. Neste caso, então, deveriam existir duas cláusulas de demurrage: uma estabelecida para o atraso no embarque/desembarque e, outra, para o atraso na liberação dos contêineres. O Glossary of Shipping Terms do Departamento de Transportes dos Estados Unidos deixa ainda mais clara a natureza contratual da demurrage: "A penalty charge against shippers or consignees for delaying the carrier's equipment or vessel beyond the allowed free time. The free time and demurrage charges are set forth in the charter party or freight tariff."18  Percebe-se, então, a natureza contratual da demurrage e sua utilização como "multa". Disso se pode tirar duas conclusões iniciais: a demurrage só existe porque (e se) contratada e possui natureza acessória dentro do contrato de transporte (quando prevista para caso de atraso no embarque e desembarque) ou de disponibilização dos contêineres (quando prevista para mora em sua devolução). Outro importante fator é a remuneração: a disponibilização de contêineres, usualmente, é remunerada dentro do quadro geral do frete. Isto é natural quando o armador é ao mesmo tempo aquele que disponibiliza o transporte e a embalagem. Em termos sucintos: não há remuneração isolada do frete pela "locação" de contêineres. Além disso, o tratamento da disponibilização do contêiner como acessório ao contrato de transporte (que é o contrato principal) é facilmente percebido na jurisprudência brasileira19. Aliás, a conclusão parece independer do atraso do navio."20. Nem poderia ser diferente: neste caso o armador não cede apenas os contêineres que, isoladamente, pouco sentido faz. A cessão do uso dos contêineres só faz sentido, na medida em que o transporte de longo curso será feito por meio deste acondicionamento. Como na operação econômica em questão o armador é, ao mesmo tempo, aquele que disponibiliza o transporte e a embalagem em que será feito o transporte, a natureza contratual daquele se sobrepõe a deste. Isto é reforçado pelo fato de que não só não há contratação autônoma de locação de contêineres, como sua remuneração está embutida no frete. Portanto, a conclusão a que se pode chegar é que, neste caso, a disponibilização dos contêineres para transporte de mercadorias (e eventual cláusula de demurrage) estariam inseridos em um quadro negocial mais amplo, dominado pelo contrato de transporte marítimo. Considerando que a disponibilização dos contêineres também só ocorre e é remunerada dentro do próprio contrato de transporte marítimo (frete), este adquire, neste caso, o papel de contrato principal. Desta forma, não só a disponibilização dos contêineres é acessória ao contrato de transporte marítimo, como as obrigações que dela (disponibilização) decorrem devem ser tratadas como subordinadas ao contrato de transporte marítimo. Considerando, por fim, que o frete é a principal obrigação assumida pelo tomador para remuneração do agenciador de carga (e via indireta o armador), ele condiciona a demurrage que é cláusula acessória no contrato acessório de disponibilização de contêineres. Neste caso, portanto, há dupla acessoriedade: demurrage como "multa" e o contrato de disponibilização de contêineres como acessório ao "frete". Segundo a doutrina brasileira, a cláusula penal tem natureza acessória21 e serviria para que os contratantes fixassem, antecipadamente, o valor das perdas e dá-nos em caso de inadimplemento22. A mesma doutrina menciona, ainda, uma natureza inibitória do inadimplemento, ou seja, intimidação contratual para que o inadimplemento não ocorra. Segundo este raciocínio, a cláusula penal representaria a tentativa de se evitar o descumprimento da obrigação, reforçando a obrigação assumida por meio da definição de consequências para aquele descumprimento. Alguns autores destacam este objetivo23, embora contemporaneamente, a doutrina negue a importância a esta tentativa de preponderância24 e unanimemente afirme que ambas as funções (inibitória e previsão de indenização em caso de inadimplemento) compõem a cláusula penal. Como se pode perceber, então, a natureza da cláusula penal é indenizatória e não penal25, destinada a "pré-liquidar danos"26 e não punir (ou sancionar) o descumprimento da obrigação. A ideia de punição pressuporia a noção de "castigo" e de avaliação subjetiva da intenção do devedor. Esta análise, como se sabe, não é própria do Direito Privado, nem caberia, dentro da lógica contratual da Civil Law. A avaliação do comportamento e punibilidade da conduta também ignoraria o fato de que o inadimplemento se refere à consequência "dano" (reparação) e não à punição daquele que causa danos, que poderia vir a ser tratada em outro âmbito (penal, administrativo, moral). Esta ordem de coisas também se refere à natureza atribuída à obrigação no Direito brasileiro: como seu conteúdo é patrimonial, a ofensa à obrigação seria, igualmente, patrimonial (dano). E o dano, neste sentido, poderia ser indenizado ou compensado de forma objetiva, sem a necessidade de julgamento do devedor, assim como compelir ao cumprimento da obrigação, quando possível, seria o suficiente para tutelar a obrigação. Diferentemente, a lógica contratual da Common Law parte da premissa de que a obrigação é antes uma promessa e sua violação é algo que deve ser moralmente repudiado. Abre-se, assim, a possibilidade (ou necessidade) de avaliação da conduta do ofensor: ele deve então vir a ser punido, se o descumprimento é, de fato, esta quebra de promessa. Daí porque explica DAVID que: "O que é sancionado pela common law não é propriamente a obrigação contratual que foi assumida e a cujo respeito a boa-fé obriga: a common law não mandará executar essa obrigação. O que ela leva em consideração é o prejuízo causado injustamente ao autor pela conduta do réu, que assumiu uma obrigação e cumpriu-a de forma inadequada, ou não a cumpriu: o réu será condenado por perdas e danos."27 É também em razão disso que a Common Law consagra a distinção entre penalty clauses e liquidated damages clauses. Enquanto estas seriam cláusulas com previsão indenizatória, aquelas serviriam para uma finalidade "punitiva". BEATSON explica que as liquidated damages clauses correspondem à previsão dos contratantes como estimativa do dano provável em caso de inadimplemento. As Cortes, segundo o autor, tendem a aceitá-las como genuína previsão indenizatória ou como limitação à indenização que possa vir a ser cobrada. Por outro lado, adverte o autor, se a cláusula estabelecer uma hipótese "ad terrorem", a soma é considerada uma penalty e, portanto, não será exequível28. O autor salienta, por fim, que não importa o nome dado à cláusula, o papel da Corte é entender sua natureza29. Esta é a mesma advertência que MCKENDRICK faz: "If the term in the contract making provi-sion for the payment of damages is held to be a penalty clause, it will not be enforced and the innocent party will be confined to a claim for damages (...) On the other hand, if the term is held to be a liquidated damages clauses then the clause will be valid and it fix the liability of the party in breach, in the sense that the sum stipulated in the clause will be the sum that must be paid, irrespective of the loss that is actually suffered on the facts of the case."30   Por fim, CALAMARI e PERILLO informam que de acordo com o Direito norte-americano: "Liquidated damages clauses are valid.  Penalty clauses are void"31, sua diferença seria, claro, o propósito: enquanto a primeira se refere a estimativa econômica da perda (baseada em razoabilidade e boa-fé) a outra tentaria evitar o descumprimento do contrato32. Informam, ainda, que não são admitidas as "Punitive damages" em demandas contratuais, salvo se decorrem de outra hipótese independente de responsabilidade civil33. O que se percebe, então, é que mesmo no Direito Contratual da Common Law não é amplamente permitida a "punição" via cláusula contratual, preferindo-se, também entre os anglo-saxões, a previsão indenizatória. Pode-se ir além: a fórmula permitida como "remédio" para o inadimplemento contratual é uma cláusula de estipulação indenizatória, de valor limitado (não ad terrorem, por exemplo), cuja finalidade seja, justamente, a liquidação antecipada dos danos que possam vir a ser sofridos. O que se pode concluir, então, é que a figura existente no Direito brasileiro (cláusula penal) se assemelha a figura dos Liquidated damages clauses do Direito anglo-saxão34. Em ambos os casos o propósito é a previsão indenizatória. Outra conclusão que se pode extrair: a forma de prever a liquidação dos danos em sede contratual, na Civil Law e na Common Law, é por meio de cláusula que, aqui no Brasil, ganha o nome de cláusula penal. Pode-se concluir, então, que a demurrage é definida como cláusula de liquidated damages para os casos de atraso na restituição do navio/contêiner, cujo montante não precisa ser demonstrado. No Direito obrigacional brasileiro estas mesmas características são definidoras da cláusula penal, razão pela qual, quando aplicável o Direito brasileiro, a demurrage possui natureza de cláusula penal. Dito isso, a demurrage se aplicam todos os limites previstos pela legislação brasileira à cláusula penal35. Conclusões O crescimento da participação brasileira no comércio internacional exigirá maior compreensão acerca de instrumentos logísticos e complexidades específicas. Algumas tentativas de uniformização ou harmonização de ferramentas normativas próprias existem, mas nem sempre foram apropriadas pelo Ordenamento jurídico brasileiro. Aliada à complexidade normal de um ambiente normativo plural, a relativa desatualização internacional brasileira torna o desafio de solucionar, as poucas controvérsias que batem as portas do Judiciário, ainda mais desafiador. Apesar disso, nos exemplos específicos dos INCOTERMS e da mora na devolução do contêiner, percebe-se que os tribunais brasileiros buscam instrumentais conhecidos e relativamente consagrados para, ainda que de forma analógica, justificarem as soluções encontradas. ---------- 1 OBERMAN, Neil Gary. Transfer of risk from seller to buyer in international commercial contracts: a comparative analysis of risk allocation under the CISG, UCC and Incoterms. www.cisg.law.pace.edu/cisg/thesis/Oberman.html. 2 MARTINS, Fran. O contrato de compra e venda internacional. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n° 33, 1979, p. 33. 3 KASSIS, Antoine. Théorie générale des usages du commerce: droit compare, contrats et arbitrage internationaux, lex mercatoria. Paris, 1984, p. 274. 4 FONSECA, Patrícia Bezerra de M. Galindo da. Anotações pertinentes à regulamentação sobre transmissão de risco: Convenção da ONU de 1980, Incoterms e Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa, n°139, 1998, p.47. 5 MARTINS COSTA, Os princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na convenção de Viena de 1980. In CASELLA, Paulo Borba (Coord.). Contratos internacionais e Direito econômico no MERCOSUL: após o término do período de transição. São Paulo, 1996, p. 167. 6 GLITZ, Frederico E. Z. Contrato, globalização e lex mercatoria, São Paulo, 2014, passim.  7 DERAINS, Yves; GHESTIN, Jacques (Direc.). La convention de Vienne sur la vente internationale et les incoterms: actes du colloque des 1er et 2 décembre 1989. Paris : LGDJ, 1990, p. 39. 8 STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio, 4. Ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 282. 9 CAMARA, Bernardo Prado da. O contrato de compra e venda internacional de bens. In Revista de Direito Privado, n° 27. São Paulo: RT, Jul/Set 2006, p. 19; BARBI FILHO, Celso. Contrato de compra e venda internacional: abordagem simplificada de seus principais aspectos jurídicos. In Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 25. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, dez. 1996, p. 30; GUIMARÃES, Antônio Márcio da Cunha; SILVA, Geraldo José Guimarães da. Manual de Direito do Comércio Internacional: contrato de câmbio. São Paulo: RT, 1996, p. 251; GOULART, Monica. Eghrari. A Convenção de Viena e os Incoterms. In Revista dos Tribunais, vol. 856. São Paulo: RT, fevereiro de 2007, p. 73; STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio, 4. Ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 284-285. 10 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie, 5. Ed. São Paulo, 2005. Vol. III, p. 74-75. 11 MARTINS, Op. Cit., 34. 12 BOITEUX, Fernando Netto. Contratos mercantis. São Paulo: Dialética, 2001, p. 34;  CALIENDO, Paulo. Incoterms, cláusulas padronizadas de comércio internacional. In Revista da Faculdade de Direito Ritter dos Reis, vol. 1, Porto Alegre, 1998, p.123; BAPTISTA, Luiz Olavo. A boa-fé nos contratos internacionais. In Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 20. São Paulo: RT, abril/junho 2003, p. 24-46; GOULART, Op. Cit., p. 69; ARAUJO, Nadia. A cláusula de hardship nos contratos internacionais e sua regulamentação nos Princípios para os contratos comerciais internacionais do UNIDROIT. In POSENATO, Naiara (Org.). Contratos internacionais: tendências e perspectivas. Ijuí: Editora Unijuí, 2006. p. 322. Como codificação dos costumes e, portanto, fonte  formal da Lex mercatoria: OSMAN, Filali. Les príncipes généraux de la lex mercatoria: contribution à l'étude d'un ordre juridique anational. Paris: LGDJ, 1992, p. 280-281. 13 Podem-se ser citadas ainda as Circulares n°3.325/2006, 3291/2005, 3264/2004 (já revogadas), 3249/2004 (já revogadas), etc. todas do Banco Central e a Portaria n°35/2006 da Secretaria de Comércio Exterior (já revogada) e a Resolução GECEX n° 21/2011 da Secretaria Executiva da Câ-mara de Comércio Exterior (revogada em 2020). Atualmente em vigor a Resolução CAMEX n° 16/2020 disponível em: http://www.camex.gov.br/resolucoes-camex-e-outros-normativos/58-resolucoes-da-camex/2669-resolucao-n-16-de-2-de-marco-de-2020. 14 CALIENDO, Op. Cit., p. 122; GOULART, Op. Cit., p. 73. 15 JOLIVET, Emmanuel. Les incoterms: étude d'une norme du commerce international. Paris : Litec/FNDE, 2003, p. 375. 16 FOEKENS, Arjan; MITRAKAS, Andreas; TAN, Yao-Hua. Facilitating International Electronic Commerce by formalizing the Incoterms. Disponível em:  http://www2.computer.org/portal/web/csdl/abs/proceedings/hicss/1997/7734/04/7734040459abs.htm.  17 GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin . TRANSFERÊNCIA DO RISCO CONTRATUAL E INCO-TERMS: breve análise de sua aplicação pela jurisprudência brasileira. Revista do Instituto do Direi-to Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 5, p. 3885-3944, 2013. 18 US DEPARTMENT OF TRANSPORTATION. Maritime Administration, Glossary of Shipping terms, 2008, p. 37. 19 Cite-se, como exemplo, o voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: "Na verdade, o que se verifica é que o contêiner é um instrumento de guarda da mercadoria transportada, uma unidade de carga, que permite utilização por vários meios de transporte de modo que a mercadoria sai do vendedor até o destino, com uma combinação possível de transporte rodoviário, ferroviário, marí-timo, aeronáutico etc. Ele adere, portanto, ao veículo transportador." (BRASIL. Recurso Especial n° 176.903. DIREITO COMERCIAL.  PRESCRIÇÃO.  SOBREESTADIA DE "CONTAINERS". CÓDIGO COMERCIAL, ART. 449, INCISO 3º. LEI Nº 6.288, DE 1975, ART. 3º. Na sobreestadia do navio, a carga ou a descarga excedem o prazo  contratado;  na  sobreestadia  do  "container",  a  devolução  deste  se  dá após  o  prazo  usual  no  porto  de  destino.  Num caso  e  noutro,  as  ações  que perseguem a indenização pelos respectivos prejuízos estão sujeitas à regra do artigo 449, inciso 3º, do Código Comercial. Recurso especial não conhecido. AS Ivarans Rederi versus Trombini Papel e Embalagens S/A, Relator Min. Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 20 de fevereiro de 2001). 20 Mesmo diante de uma situação de transporte intermodal, a sobreestadia refere-se necessariamente à permanência do navio no porto porque não chegaram os contêineres, que, segundo a própria inicial alega, passaram meses após o desembarque para serem retirados das dependências portuárias. E, ademais, o questionamento posto está sob o ângulo das cartas de correção a determinado número de "Bills of Lading", para que os contêineres pudessem ser liberados." (Voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Recurso Especial n° 176903/PR). 21 GOMES, Orlando. Obrigações, 12. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 159; SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil: obrigações em geral, 6. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 156; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: teoria geral das obrigações, 20. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, Vol. II, p. 145; VIANA, Marco Aurélio S. Curso de Direito Civil: Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2007,  p.441; FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 421; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: obrigações. São Paulo: Atlas, 2008, p.392; RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações, 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 537; 22 GOMES, Op. Cit., p. 159; SERPA LOPES, Op. Cit., p. 152; FARIAS, Op. Cit., p. 422; VIANA, Op. Cit.,  p. 444; GAMA, Op. Cit., p.390 e 395; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: obrigações, 5. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, Vol. II, p.476, 479; RIZZARDO, Op. Cit., p. 539; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004, Vol. V, T. II, p. 421-422. 23 PEREIRA, Op. Cit., p. 146; RIZZARDO, Op. Cit., p. 538; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p.243-244. 24 VIANA, Op. Cit.,  p. 444; GAMA, Op. Cit., p.390 e 395; NADER, Op. Cit., p.476; MARTINS-COSTA, Op. Cit., p. 423-430; CASSETTARI, Christiano. Multa contratual: teoria e prática. São Paulo: RT, 2009, p. 61; FLORENCE, Tatiana Magalhães. Aspectos pontuais da cláusula penal. In TEPEDINO, Gustavo (org.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 516-518. 25 SERPA LOPES, Op. Cit, p. 152; NADER, Op. Cit., p.479. 26 GOMES, Op. Cit., p. 159. 27 DAVID, René. O direito inglês. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 112. 28 BEATSON, J. Anson's Law of Contract, 28. Ed., Oxford: Oxford press, 2002, p.625. 29 BEATSON, Op. Cit., p.625. 30 MCKENDRICK, Ewan. Contract Law: text, cases and materials, 3. Ed., Oxford: Oxford press, 2008, p. 927. 31 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Contracts. St. Paul: West, 2004, p.365. 32 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Op.Cit., p.365-366. 33 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Op.Cit., p.369. 34 GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Mora na devolução do conteiner: análise da visão jurisprudencial brasileira acerca do comércio internacional. In Revista do Instituto de Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, n. 11, 2013, p. p.12423-12463. 35 GLITZ, Frederico E. Z.; GONDIM, Glenda Gonçalves. O Direito obrigacional brasileiro e a natureza jurídica da demurrage em contratos de agenciamento de carga. In CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Teoria e prática da demurrage de contêiner. São Paulo: Aduaneiras, 2018, p. 93-122.
Introdução Desde os estudos seminais de Daniel Kahneman e Amos Tversky, a behavioral economics (economia comportamental) tem conquistado um relevante campo de pesquisa, sobretudo ao propor questionamentos ao modelo tradicional de racionalidade abstratamente formulado nas diversas vertentes teóricas da economia neoclássica, como por exemplo, na teoria da utilidade esperada. Dentre as diversas pesquisas conduzidas pelos supracitados autores, destacam-se dois artigos: no primeiro, "Judgment under uncertainty: heuristics and biases", experimentos empíricos demonstraram que os seres humanos, muitas vezes, adotam heurísticas ou atalhos mentais para realizar julgamentos de probabilidade que visam simplificar e acelerar o processo de tomada de decisão. Tal comportamento, que em muitas ocasiões é bastante útil, também pode acarretar em falhas cognitivas (vieses), gerando erros sistemáticos e previsíveis1. No segundo artigo, "Prospect theory: an analysis of decision under risk", Kahneman e Tversky, psicólogos de formação, passaram a influenciar decisivamente o pensamento econômico, estabelecendo uma vertente teórica descritiva do comportamento humano observado em situações de incerteza. Tomando por base a concepção tradicional de racionalidade, os autores não refutam a ideia de que o ser humano visa maximizar o seu bem-estar. No entanto, a partir de consistentes estudos empíricos, restou por diversas vezes demonstrado que essa maximização da utilidade pode não ocorrer conforme o esperado. Cite-se, por exemplo, os experimentos conduzidos pelos autores que comprovaram a aversão à perda e propensão ao risco2. O motivo? Como seres humanos, alcançamos conquistas extraordinárias. Contudo, nossa racionalidade nunca deixou de ser humanamente limitada. Desde então, os estudiosos da economia comportamental têm expandido o seu campo de estudos para além da ciência econômica, tornando-se um manancial para a pesquisa interdisciplinar e formulação de políticas públicas. No campo do direito, diversos estudos contemplando insights da psicologia, da economia e da neurociência tem contribuído para a formação de uma compreensão mais realista do fenômeno jurídico3. Sem qualquer intenção de esgotar o assunto, este texto procurará apresentar o potencial dessa análise interdisciplinar no campo da responsabilidade civil, especialmente para analisar como o conhecimento da heurística do reconhecimento poderá contribuir para uma melhor proteção do consumidor na sociedade de consumo contemporânea. A heurística do reconhecimento e sua influência no contexto da tomada de decisão do consumidor A heurística do reconhecimento, estudada há décadas por Gerd Gigerenzer e Daniel G. Goldstein, tem sido utilizada tanto pelos seres humanos quanto pelos animais em situações relacionadas à falta de informações ou conhecimento. Exemplificando como o princípio do reconhecimento pode ser aplicado, os autores mencionam um estudo realizado com camundongos em que os animais optaram por se alimentar com alimentos anteriormente conhecidos, seja por já tê-los farejado ou ingerido, em detrimento de alimentos desconhecidos. Em outro estudo, os autores observaram o quão importantes são as técnicas de publicidade que visam favorecer o reconhecimento das marcas pelos consumidores, muitas vezes superando até mesmo os esforços para divulgação das qualidades dos próprios produtos disponibilizados4. Nesse sentido, a heurística do reconhecimento é adotada quando uma pessoa precisa fazer um juízo de valor diante de mais de uma possibilidade de escolha. No caso, os estudos indicam que a pessoa tende a conferir maior valor à opção mais facilmente reconhecida por ela, mesmo quando não necessariamente tenha vivenciado uma experiência direta. A partir desse raciocínio, a heurística do reconhecimento pode ser estudada como um modelo de preferências no âmbito da tomada de decisão dos consumidores. Exemplificando, cite-se um experimento clássico conduzido por Wayne Hoyner e Steven Brown que testou a importância do reconhecimento para a escolha de alimentos5. No caso, foram disponibilizados três potes de pasta de amendoim, sendo um deles de alta qualidade e os outros dois de pior qualidade. Em um primeiro momento e realizando o teste às cegas, a maioria dos participantes optou pelo alimento de melhor qualidade. Contudo, quando se fixou aleatoriamente em um dos potes um rótulo de uma marca amplamente reconhecida e nos outros dois potes rótulos de marcas desconhecidas, percebeu-se uma mudança no comportamento dos participantes. Quando a pasta de amendoim de alta qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo de uma marca desconhecida, apenas em 20% das vezes essa foi a opção escolhida. Por outro lado, quando a pasta de pior qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo da marca mais conhecida, os participantes fizeram essa opção 73% das vezes. Quando a mesma pasta de amendoim apresentando a mesma qualidade foi colocada em três potes diferentes, sendo que um deles continha o rótulo de marca mais conhecida e os outros dois potes o rótulo de marcas não conhecidas, o pote com o rótulo da marca mais familiar para os participantes foi escolhido 75% das vezes.6 Onvara Oeusoonthornwattana e David R. Shanks, a partir de experimentos relatados pela literatura especializada, elencam três motivos que justificam a utilidade do estudo da heurística do reconhecimento em relação à tomada de decisão do consumidor: a) em primeiro lugar, ao escolher um produto, o consumidor lida com objetos reais, muitas vezes por ele já conhecidos em virtude de compras anteriores; b) em segundo lugar, há pesquisas que já comprovaram a importância do reconhecimento da marca para o aumento de vendas, como no caso de uma famosa campanha publicitária realizada pela Benetton, estudada e relatada por Gerd Gigerenzer. No caso, a empresa realizou uma impactante propaganda - utilizando imagens fortes e chocantes - para alavancar as suas vendas, estratégia que acabou sendo bem-sucedida; c) o terceiro motivo está no fato de que os consumidores normalmente apresentam dificuldade para distinguir os produtos atinentes a marcas não especificadas por rótulos, apresentando uma predisposição bastante acentuada para avaliar positivamente marcas que lhes são familiares quando estas são identificadas7. A heurística do reconhecimento, portanto, influencia decisivamente o processo de escolha realizado pelo consumidor8, sendo um instrumento precioso para o posicionamento de uma marca no mercado, para o estabelecimento de estratégias de vendas, bem como a realização de campanhas publicitárias. Por outro lado, um conhecimento mais aprofundado a respeito dessa heurística também poderá ser um importante insight para o estabelecimento de medidas protetivas ao consumidor, sujeito vulnerável na relação de consumo, especialmente quando os fornecedores a utilizarem de forma não transparente e abusiva, aproveitando-se das limitações cognitivas do ser humano9. Nesse sentido, cite-se a possibilidade bastante plausível de utilização da heurística do reconhecimento por meio de campanhas publicitárias visando explorar demasiadamente o processo de familiarização do nome de determinada marca em detrimento da real qualidade dos produtos oferecidos, induzindo, por um lado, os consumidores ao cometimento de erros de julgamento e, por outro, gerando lucros ilícitos para aqueles que exploram a vulnerabilidade alheia10. Behavioral economics e responsabilidade civil: um diálogo possível O problema da manipulação da tomada de decisão e os potenciais danos que ela pode causar aos consumidores é uma temática que demanda constante atualização, especialmente em virtude da evolução da internet e da tecnologia. Obviamente, o mercado de consumo acompanha essa evolução: atualmente, não estamos mais diante apenas dos grandes magazines e das campanhas publicitárias na televisão. Vivenciamos a era da revolução digital, das redes sociais, dos influenciadores digitais, enfim, novos ambientes e personagens que complexificam ainda mais a relação de consumo. Precisas são as considerações realizadas por Jon D. Hanson e Douglas A. Kysar, destacando que, em virtude da racionalidade limitada do ser humano, há uma forte probabilidade de que aqueles que possuem o controle sobre a informação passem a utilizá-la de maneira a influenciar a tomada de decisão de terceiros, visando explorar as limitações cognitivas decorrentes das heurísticas e dos vieses com o intuito de obter vantagens econômicas11. Pensando no consumidor e sua inserção no atual mercado de consumo, tal forma de manipulação corresponderia à exploração da sua vulnerabilidade cognitiva12, violando preceitos importantes do Código de Defesa do Consumidor. Nesse contexto, os estudiosos da responsabilidade civil extracontratual podem se perguntar se o modelo tradicional do instituto, calcado na compensação pelos prejuízos, ainda é capaz de lidar com determinados comportamentos antijurídicos, especialmente aqueles que surgem no bojo deste novo mercado de consumo, fortemente influenciado pela internet, pelas redes sociais e pela disseminação muitas vezes sem controle da informação. No presente texto, a abordagem restringiu-se à heurística do reconhecimento e seu potencial causador de danos. Contudo, diversas outras heurísticas e vieses poderiam ter sido abordados13, o que demonstra a necessidade de reflexão a respeito da proteção do consumidor nesta quadra da história. A título de exemplo, pensemos na possibilidade de um influenciador digital se valer da heurística do reconhecimento para, com o seu prestígio, manipular os seus seguidores, orientando-os a optar por escolhas que não maximizarão o seu bem-estar, visando apenas a obtenção de vantagens ilícitas ou lucros indevidos, seja para o seu próprio proveito ou em conjunto com fornecedores. A mera compensação de eventuais prejuízos resolveria, efetivamente, o problema? No texto "A natureza dos preventive damages", Nelson Rosenvald destaca a importância de repensarmos os estudos da responsabilidade civil extracontratual, ampliando os seus horizontes para além da compensação pelos prejuízos causados, sobretudo se a intenção for "prevenir comportamentos antijurídicos, remover lucros ilícitos ou restituir despesas decorrentes de um fato contrário ao direito". Para tanto, o autor propõe uma "ressignificação do princípio da reparação integral", tratando a indenização preventiva como "remédio autônomo da responsabilidade civil"14. Em conclusão, para lidar com os dilemas da sociedade de consumo contemporânea, como é o caso da possível utilização abusiva da heurística do reconhecimento nas redes sociais, propomos um diálogo com o texto do professor Rosenvald. Para restituir o consumidor à situação anterior ao dano ou remover lucros indevidos daqueles que utilizam heurísticas e vieses de forma abusiva e não transparente, não basta pensarmos apenas na compensação pelos prejuízos causados. Enfrentar o problema também pressupõe encarar o comportamento ilícito visando combater ao máximo a sua ocorrência futura. __________ 1 TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases: Biases in judgments reveal some heuristics of thinking under uncertainty. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974, p. 1124. 2 KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Prospect theory: an analysis of decision under risk. Econometrica, v. 47, n. 2, p. 263-292, mar. 1979. 3 JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard. A behavioral approach to law and economics. Stanford Law Review, v. 50, p. 1471-1550, jul. 1998. 4 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. Reasoning the fast and frugal way: models of bounded rationality. Psychological review, v. 103, n. 4, p. 650-669, 1996, p. 663. 5 HOYER, Wayne D.; BROWN, Steven P. Effects of brand awareness on choice for a common, repeat-purchase product. Journal of consumer research, v. 17, n. 2, p. 141-148, 1990. 6 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. The recognition heuristic: A decade of research. Judgment and Decision Making, v. 6, n. 1, p. 100-121, 2011, p. 114. 7 OEUSOONTHORNWATTANA, Onvara; SHANKS, David R. I like what I know: Is recognition a non-compensatory determiner of consumer choice? Judgment and Decision Making, v. 5, n. 4, p. 310-325, 2010, p. 312-313. 8 Há um importante debate mais aprofundado a respeito do tema, que questiona se a heurística do reconhecimento é utilizada de maneira não compensatória ou compensatória no processo de tomada de decisão de consumo. Tal discussão, que demanda análise empírica, foge aos objetivos do presente texto. Em relação ao mencionado debate, veja-se: THOMA, Volker; WILLIAMS, Alwyn. The devil you know: the effect of brand recognition and product ratings on consumer choice. Judgment and Decision Making, v. 8, n. 1, p. 34-44, 2013. 9 BORTOLOTTI, Lisa; SULLIVAN-BISSETT, Ema. Costs and benefits of imperfect cognitions. Consciousness and Cognition, v. 33, p, 487-489, 2015, p. 488. 10 BOUDRY, Maarten; VLERICK, Michael; MCKAY, Ryan. Can evolution get us off the hook? Evaluating the ecological defence of human rationality. Consciousness and cognition, v. 33, p. 524-535, 2015, p. 530. 11 HANSON, Jon D.; KYSAR, Douglas A. Taking behavioralism seriously: the problem of market manipulation. New York University Law Review, v. 74, n. 3, p. 630-749, jun. 1999, p. 635. 12 OLIVEIRA, Amanda Flávio de; FERREIRA, Felipe Moreira dos Santos. Análise econômica do direito do consumidor em períodos de recessão: uma abordagem a partir da economia comportamental. Revista de Direito do Consumidor, v. 81, p. 13-38, jan./mar. 2012. 13 Cite-se o fenômeno do superendividamento e os estudos que abordam como agravantes do problema a utilização abusiva dos vieses do superotimismo e da ilusão do controle. Cf. KILBORN, Jason J. Behavioral economics, overindebtedness and comparative consumer bankruptcy: searching for causes and evaluating solutions. Emory Bankruptcy Developments Journal, v. 22, p. 13-46, abr. 2005. 14 ROSENVALD, Nelson. A natureza dos preventive damages. Migalhas, 18 abr. 2022. Disponível aqui.
Responsabilidade civil No texto permanente da Constituição Federal de 1988, há o emprego da palavra responsabilidade em quarenta e uma oportunidades, observando-se, por exemplo, a) a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e aos direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII), b) os crimes de responsabilidade (arts. 29, § 3º, 50, § 2º, 52, I e II, 85), c) a responsabilidade criminal dos infratores (art. 58, § 3º) e d) o grau de responsabilidade dos cargos componentes de uma carreira (art. 39, §1º, I). Por sua vez, o termo responsabilidade civil é utilizado literalmente nas seguintes situações: a) competência da União para explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer natureza, observando a responsabilidade civil por danos nucleares independentemente da existência culpa (art. 21, XXIII, 'd'), b) encaminhamento da apuração e das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos casos cabíveis, ao Ministério Público para que, além da responsabilidade criminal, promova a responsabilidade civil dos infratores (art. 58, § 3º), c) caráter alimentar do precatório originário de indenização por morte ou invalidez, fundada na responsabilidade civil (art. 100, § 1º), e d) responsabilidade civil dos delegatários extrajudiciais dos serviços notariais e registrais, a qual é regulamentada nos termos da lei (art. 236, § 1º). Também existe o comando constitucional de que as "pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa", segundo o artigo 37, § 6º, CF/88. Essas cinco previsões constitucionais, que relacionam a responsabilidade civil com competências estatais e temas de direito público, confirmam a importância desse instituto no Estado Constitucional brasileiro. A adequada interpretação e a correta incidência desses dispositivos produzem importantes discussões jurídicas. Vejamos. O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a COVID-19, no Senado Federal, apresentou vinte e seis indiciamentos, versando o último acerca da responsabilidade civil. Neste item, a CPI cientifica o Ministério Público Federal de "atos de todos aqueles que, por qualquer meio, promoveram de forma sistemática a difusão do tratamento precoce e da imunidade de rebanho por contaminação natural", apontando agentes "para possível condenação a reparação de dano moral coletivo à sociedade brasileira"1. De outro lado, membros da CPI da COVID-19, no Senado Federal, atualmente criticam a atuação da Procuradoria Geral da República sobre as conclusões do relatório. Em relação à responsabilidade civil dos notários e dos registradores, o Supremo Tribunal Federal fixou o tema 777 de repercussão geral em Recurso Extraordinário, determinando que "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. Como as atividades notariais e registrais são serviços públicos delegados que devem "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos", de acordo com o artigo 1º, lei Federal 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), a indenização por eventuais danos causados aos usuários e aos terceiros ganha destaque. Apesar dos sólidos argumentos do voto do Ministro Relator no Recurso Extraordinário nº. 842.846, parece-nos que os fundamentos do voto vencido do Ministro Luís Roberto Barroso deveriam ter prevalecido, visto que a responsabilidade civil dos notários e registradores titulares não é tratada pelo artigo 37, § 6º, e sim pelo artigo 236, § 1º, CF/88. Dessa forma, o artigo 22 da lei Federal 8.935/1994 estabeleceu a responsabilidade subjetiva, não significando, "necessariamente, transferir um ônus insuportável para o demandante, porque considero que o juiz pode perfeitamente aplicar o art. 373, § 1º, do novo Código de Processo Civil - nosso Código Fux"3.  Eleições, responsabilidade gerencial e Constituição A responsabilização dos governos, dos servidores públicos e das pessoas físicas e jurídicas que interagem com o Estado é da essência do Estado Democrático de Direito, o qual é fixado no art. 1º, caput, Constituição Federal de 1988 (CF/88). As eleições livres, periódicas e competitivas, nos termos do artigo 60, § 4º, II, CF/88, que ocorrerão em 2022, possuem diversas funções sociais e jurídicas, porém a responsabilização política é elemento central. A literatura especializada descreve esse fenômeno como accountability eleitoral, sendo um instrumento necessário para a concretização da democracia constitucional e dos direitos fundamentais4. Nesse sentido, partidos e candidatos são escrutinados à luz das atividades realizadas, dos resultados obtidos no exercício de funções e cargos públicos e das propostas apresentadas, podendo ser premiados com os votos dos eleitores ou sancionados (responsabilizados) com a ausência de votação. Interessante registrar que uma tradução comum da palavra accountability é responsabilização ou responsividade. As responsabilidades civil, criminal e administrativa disciplinar dos agentes públicos, assim como as eleições, são relevantes no Estado Constitucional, porém são insuficientes para a efetivação do direito fundamental à boa administração pública. Nesse contexto, o direito administrativo europeu continental travou debate, pelo menos desde a década de sessenta do século passado, sobre a necessidade de a administração pública obter resultados. Assim, três questões principais surgem: a) os objetivos constitucionais permanentes informam a estruturação da administração pública e a própria atuação de governos eleitos, b) a construção da correta relação entre administração pública e governos eleitos e c) a responsabilidade gerencial. O constitucionalismo social prevê objetivos a serem implementados, consistindo em finalidades da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, de acordo com o artigo 3º, CF/88. Os governos eleitos possuem liberdade parcial de conformar a atuação da administração pública, buscando concretizar os compromissos eleitorais. Por sua vez, as finalidades e as metas constitucionais do Estado inexoravelmente necessitam ser efetivadas por todos os governos. Dessa maneira, a competência constitucional do Presidente da República de exercer a direção da administração federal (art. 84, II, CF/88) não permite que o Chefe do Executivo estabeleça diretrizes, ainda que sufragadas eleitoralmente, contrárias aos objetivos e aos valores constitucionais. De outra banda, as relações entre governos eleitos e administração pública precisa ser calibrada. De um lado, a administração pública permanece e os governos passam, não sendo eficiente e produtiva uma completa alteração dos procedimentos da administração pública com a mudança dos governantes. Também, a administração pública deve ser permeada e informada pelos programas políticos sufragados democraticamente. Considerando a) o equilíbrio entre interesses e funções dos governos e dos membros da administração pública e b) o compromisso por resultados, cria-se a responsabilidade gerencial. Na Constituição Federal brasileira, essa modalidade específica de responsabilidade possui os contornos traçados no artigo 37, § 8º, caput: "A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade". Trata-se de nítido mecanismo de contratualização da administração pública. A lei Federal 13.934/2019 regulamentou o artigo 37, § 8º, fixando, no artigo 2º, que o contrato de desempenho tem por objeto "o estabelecimento de metas de desempenho do supervisionado, com os respectivos prazos de execução e indicadores de qualidade, tendo como contrapartida a concessão de flexibilidades ou autonomias especiais". Conforme escrevemos outrora e dialogando com o ordenamento jurídico italiano: Para além da possível aplicação de mais de uma forma de responsabilização por um mesmo fato, existem, no entanto, semelhanças da responsabilidade gerencial especialmente com a responsabilidade civil por descumprimento contratual e com a responsabilidade disciplinar. No  que  respeita  aos  pontos  de  contato  com  a  responsabilidade  contratual, observa-se  que  também  a  responsabilidade  gerencial  possui  uma  base  ou  uma estrutura contratual, pois pressupõe a existência de uma relação obrigacional entre órgão de orientação política e órgão de gestão administrativa. Apesar de os princípios que regem  e  disciplinam  a  responsabilidade  gerencial,  assim  como  os  objetivos prosseguidos, serem de caráter público, há o descumprimento (intencional ou por culpa) de obrigações de interesse público que decorrem dos deveres do cargo de gestão (gerencial)5. A doutrina italiana demonstra que o desenvolvimento dogmático da responsabilidade gerencial, a qual é focada na obtenção de metas pela administração pública, em muito se beneficia das reflexões acerca da responsabilidade civil6. __________ 1 SENADO FEDERAL. Relatório Final da CPI da COVID-19. Aprovado pela Comissão em 26 de outubro de 2021. 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº. 842.846 - Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 27.02.2019. 3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário nº. 842.846 - Santa Catarina, julgado em 27.02.2019, páginas 80 e 81. 4 Sobre o tema, ROBL FILHO, Ilton Norberto. Conselho Nacional de Justiça: Estado Democrático de Direito e Accountability. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 108-116. 5 CELONE, Cristiano; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A Garantia Constitucional da -Responsabilidade Gerencial-: Responsabilidade por Resultados dos Dirigentes Públicos nos Sistemas Brasileiro e Italiano e as Relações entre Órgãos Políticos e Administrativos. REVISTA JURÍDICA DA PRESIDÊNCIA, v. 21, p. 471, 2020. 6 CELONE, Cristiano. La Responsabilità Dirigenziale tra Stato ed Enti Locali. Torino: Napoli, 2018, p. 93-140.
Acerca da prescrição, Atalá Correia adverte que "é necessário saber em que medida o legislador pode estipular os prazos para as situações jurídicas e, além disso, é preciso definir se o julgador pode corrigir e em que extensão as soluções injustas que daí considere advindas"1. O Código Civil fixou que (i) "a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor" (CC, art. 205) e (ii) a pretensão de reparação civil prescreve em três anos (CC, art. 206, §3º, inc. V). Tais regras representaram acentuada redução dos prazos prescricionais: o art. 177 do revogado CC/16 previa um prazo de 20 anos para essas hipóteses! Este artigo revisitará os argumentos utilizados pelo STJ a respeito do sentido e alcance da expressão "reparação civil", contida no inc. V do §3º do art. 206 do CC. O STJ entendeu por restringir essa expressão à responsabilidade civil extracontratual. Assim, a prescrição no caso de responsabilidade civil contratual ficou em 10 anos (EREsp 1.280.825/RJ, j. 27/6/18). Antes dessa definição, as turmas do STJ haviam oscilado no tema. Por um lado, havia precedentes indicando que "o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual" (CORRENTE UM)2. Por exemplo, no REsp 1.281.594/SP, 3ª Turma, j. 22/11/16, o relator Min. Bellizze mostrou-se preocupado com a segurança, a previsibilidade e a uniformidade de tratamento dos prazos prescricionais, nos seguintes termos: "foi abordada a relevância da unificação dos prazos prescricionais, sobretudo em torno da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa, visando a garantir, nas relações jurídicas contemporâneas, maior segurança, previsibilidade e uniformidade de tratamento, se levadas em consideração pretensões que trazem em si similaridade de conteúdo e objeto, mas que dão causa a ações com as mais variadas nomenclaturas." Ademais, o ministro chama atenção para a importância da coerência lógica do sistema jurídico, asseverando que é "importante perceber que a sistemática adotada pelo Código Civil de 2002 (...) foi a de redução dos prazos prescricionais, visando sobretudo a garantir a segurança e a estabilização das relações jurídicas em lapso temporal mais condizente com a dinâmica natural das situações contemporâneas. Seguindo essa linha de raciocínio, não parece coerente com a lógica estabelecida pelo Código Civil de 2002 deixar prevalecer, como se regra fosse, o prazo prescricional decenal (art. 205), de caráter tão alongado, para as reparações civis decorrentes de contrato, e somente entender aplicável o lapso temporal trienal para a parte veicular judicialmente as pretensões de reparação civil no âmbito extracontratual ou de enriquecimento sem causa (art. 206, § 3º, IV e V)." Para evitar incongruências na sistemática que envolve relações privadas, é feita interessante comparação com o prazo prescricional quinquenal estabelecido pelo CDC que regula relações em que uma das partes é vulnerável, in verbis: "É de se notar, ademais, que nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor, editado no idos de 1990 - o qual tem como objetivo maior a tutela dos direitos de vulneráveis postos no mercado de consumo, primando, assim, pela assimetria inerente às relações jurídicas estabelecidas entre o consumidor e o fornecedor -, concede tanta elasticidade ao prazo prescricional para que o interessado busque sua pretensão de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, que, ao final, também é derivada de relação contratual. O art. 27 estabelece o lapso de cinco anos para o ajuizamento de demanda fundada em acidente de consumo, o qual é exatamente a metade do prazo previsto no art. 205 do Código Civil de 2002. Então, por que razão o Código Civil de 2002 - editado mais de uma década após o CDC - que trouxe a tônica de prazos prescricionais reduzidos e que, em regra, regula relações jurídicas em que há paridade entre os sujeitos, admitiria interpretação no sentido de fazer preponderar o prazo prescricional de dez anos para reparação de danos atinentes a contratos que nem sequer envolvem parte vulnerável?" Por outro lado, havia precedentes no sentido de que o prazo prescricional de 3 anos só se aplica a pretensões que veiculem reparações decorrentes da prática de ato ilícito absoluto (responsabilidade extracontratual); ao passo que as pretensões decorrentes de violações contratuais (caso não haja regra especial) se submetem ao prazo decenal (CORRENTE DOIS). Ex.: REsp 1.280.825/RJ, 4ª Turma, j. 21/6/16 (sob a relatoria da Minª Maria Isabel Gallotti). Sob essa ótica, a pretensão para o cumprimento específico de uma obrigação prevista em uma relação contratual está sujeita ao prazo prescricional de 10 anos previsto no art. 205 do CC/02 (salvo regra especial no art. 206 do CC para o referido contrato). Seria incongruente que, caso o credor optasse por resolver o contrato e haver perdas e danos, tivesse o prazo de sua pretensão reparatória reduzido para três anos. Ora, se as perdas e danos podem ser exigidas pela frustração no implemento da obrigação contratual específica, é sintomática a constatação de que o prazo para reparação civil contratual não pode ser inferior ao prazo para o cumprimento específico da obrigação contratual. Assim, a expressão "reparação civil" estaria mais ligada à responsabilidade extracontratual3 e, por isso, o inc. V do §3º do art. 206 do CC/02 não alcançaria as pretensões fundadas em responsabilidade civil contratual. Contra esse argumento, o Min. Belizze, no REsp 1.281.594/SP, ao tratar das obrigações de fazer inadimplidas (nas quais o credor pode optar por exigir o cumprimento da obrigação ou a resolução do contrato, cabendo, em ambos os casos, indenização por perdas e danos, conforme dicção do art. 475 do CC/20024), ponderou que: "Nessas hipóteses, optando o credor pela resolução do contrato, com pleito de indenização por perdas e danos, a pretensão estará sujeita à regra prescricional trienal da reparação civil (art. 206, § 3º, V). Entretanto, ainda que escoado esse prazo, poderá exigir o credor o cumprimento da obrigação de fazer pelo devedor no prazo decenal do art. 205, o qual, mesmo assim, poderá ser convertido em reparação por perdas e danos, desde que verificada a impossibilidade de cumprimento da obrigação (nesse caso não estará prescrita a pretensão indenizatória porque ela só tem lugar em função da impossibilidade de cumprimento da obrigação, não mais se constituindo em faculdade do credor)." Em reforço, no EREsp 1.280.825/RJ, o Min. Cueva asseverou que: "Não há falar também em incongruência resultante do fato de serem distintos os prazos prescricionais da pretensão de adimplemento (art. 206, §º 5º, inciso I, do CC/2002 - de cinco anos) e de reparação civil decorrente do inadimplemento da obrigação contratual (art. 206, §3º, inciso I, do CC/2002 - de três anos). Tal distinção se justifica em virtude da própria complexidade negocial que tratativas com vistas ao adimplemento tardio costuma apresentar e que não se apresentam quando o credor opta por demandar em juízo, de imediato, a própria reparação dos prejuízos que eventualmente tenha suportado em virtude do inadimplemento contratual." De todo modo, no que tange à adequada sistematicidade que se espera do ordenamento jurídico, a Minª Gallotti, no REsp 1.280.825/RJ, afirmou: Reconheço, por fim, de lege ferenda, que seria imensamente conveniente a unificação dos prazos para a pretensão de reparação civil e ressarcimento de enriquecimento sem causa. Da mesma forma, associo-me à compreensão de que o atual prazo geral previsto pelo Código Civil no art. 205 não mais se revela compatível com a realidade social contemporânea, com a dinâmica das relações jurídicas e com a realidade de mercado hoje vigente, em que se urge pela rapidez e celeridade, sem se renunciar à segurança jurídica. Bem se percebe pelas correntes contrapostas acima indicadas que o esforço dos julgadores, de uma e outra divisão, foi tentar manter coerência ao sistema jurídico. Por repetidas vezes, os julgadores apelaram para a "coerência sistemática". Diante de tal cenário: indaga-se: a que corrente pertence a força do melhor argumento? Por maioria de votos, a Segunda Seção (EREsp 1.280.825/RJ) e a Corte Especial (EREsp 1.281.594/SP) firmaram-se a favor da segunda corrente: a que defende a distinção entre prazos prescricionais a depender do fundamento (contratual ou extracontratual) do dever de ressarcir. Nos EREsp 1.280.825/RJ, a Minª Nancy Andrighi, a qual anteriormente havia votado a favor da CORRENTE UM5, admitiu que "a distinção dos prazos comporta crítica, mas diz respeito somente a uma possível alteração legislativa". Todavia, mudou seu entendimento e conduziu a maioria no sentido de prestigiar a CORRENTE DOIS. Para ela, "do ponto de vista pragmático, também se mostra adequada a distinção dos prazos. Em contratos mais duradouros, sempre é viável e mais provável que as partes se componham de alguma maneira, de forma a evitar longas e dispendiosas disputas judiciais, o que é improvável de ocorrer na responsabilidade extracontratual."6 Segundo Chaïm Perelman7, o direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência: (i) uma de ordem sistemática - a elaboração de uma ordem jurídica coerente; (ii) a outra, de ordem pragmática - a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque em conformidade ao que lhe parece justo e razoável. O enfrentamento do tema referente aos prazos prescricionais nas ações que envolvem responsabilidade civil (contratual e extracontratual) bem mostra o quão delicado e complexo é o esforço de se criar uma ordem jurídica coerente. Respondendo à pergunta deste artigo quanto a que corrente pertence a força do melhor argumento, entendemos que melhor teria sido que os votos majoritários tivessem levado em consideração comparações entre o prazo prescricional trienal do art. 27 do CDC e prazo decenal do art. 205 do CC e concluído pela aplicação do prazo prescricional de três anos para ambos os casos de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual). Cabe ao legislador ou à jurisprudência futuramente revisitar o tema. ---------- 1 CORREIA, Atalá. Prescrição e Decadência: entre passado e futuro. São Paulo: Universidade de São Paulo [Tese de Doutorado], 2020, p. 91. 2 A propósito, em termos doutrinários, nesse mesmo sentido, quando da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 9, 10 e 11 de novembro de 2011, foi aprovado o Enunciado nº 419. 3 É interessante notar que a expressão "reparação civil" aparece em três oportunidades no CC/2002 (art. 206, §3º, inc. V; art. 932 e art. 1.510-E, parágrafo único). No parágrafo único do art. 1.510-E do CC/2002, pode-se perceber que o legislador, quando trata do direito de laje, incluiu, na previsão de "reparação civil" contra o culpado ruína da construção-base, tanto hipóteses de responsabilidade contratual quanto extracontratual. 4 CC/2002, art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 5 REsp 1.281.594/SP. 6 Com relação a esse argumento, entendemos, em alinhamento com a doutrina de Atalá CORREIA (2020, p. 221), que: "O ideal é que haja um prazo uniforme para pretensões contratuais, sejam elas reparatórias ou não. Entretanto, não parece que esta situação seja mais incongruente do que atribuir à pretensão contratual de reparação prazo bastante superior àquele visto para as pretensões aquilianas. Dentre esses dois casos, se há um deles que merece prazo mais largo, trata-se da pretensão de responsabilidade extracontratual, pois o lesado, muitas vezes, deve diligenciar para descobrir o causador do dano. Na responsabilidade contratual, como é evidente, já se sabem, de antemão, os dados da contraparte e não é justo que essa situação seja premiada com prazo tão amplo quanto o decenal." 7 PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: nova retórica; tradução Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 238.
O crescente número de casos de estelionato no Brasil e no mundo chama a atenção. Mais de 5 milhões de brasileiros foram vítimas de algum de tipo de golpe só no ano passado e, especificamente sobre o estelionato afetivo, houve um aumento de quase 70% de casos, segundo dados da Polícia Civil1. Os dados são ainda incipientes, haja vista que grande parte das vítimas deste tipo de golpe se sentem constrangidas de denunciar, seja pela exposição de sua intimidade, seja pelo abalo psicológico ocasionado pela humilhação de ter sido vítima em virtude do amor. Tal aspecto demonstra que há muitas vítimas que preferem suportar o prejuízo financeiro e emocional a reviver o trauma. A referida situação não é uma exclusividade brasileira2, a fraude ocorre em todo mundo e ficou evidenciada pelo famoso documentário "O Golpista do Tinder", lançado em fevereiro deste ano e que já conquistou a marca de documentário mais assistido na Netflix em todos os tempos. Diante desse cenário, no qual o afeto vem sendo utilizado em larga escala para vitimizar pessoas, surge questionar se a responsabilidade civil pode ser aplicada aos casos de Estelionato Sentimental e, em caso afirmativo, quais seriam seus pressupostos. Antes, no entanto, é preciso esclarecer que a terminologia estelionato advém do tipo previsto no art. 171 do Código Penal, no qual, "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento" é crime. Não há nenhuma referência no tipo penal ao aspecto afetivo para configuração do crime, mas a jurisprudência entende que o meio fraudulento empregado pode ser o afeto. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que o estelionato é um crime de forma livre, que pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente e, na hipótese de estelionato sentimental, o ardil utilizado é o próprio relacionamento afetivo construído com a vítima, concluindo que "merece maior reprovação a conduta do paciente de se valer do relacionamento íntimo que possuía com a vítima para a prática do delito."3 A definição do estelionato prevista no Código Penal vem sendo utilizada para fundamentar pedidos de responsabilidade civil por estelionato afetivo, pois facilita a compreensão da configuração do comportamento ardiloso praticado pelo agente e que deve ser suficiente e proporcional para a consecução dos fins almejados de obter vantagem financeira, através de um estímulo irresistível provocado na vítima, que acaba por transmitir o próprio patrimônio para o agente. Cumpre distinguir, nesse momento, que o ato de disposição patrimonial em um contexto afetivo não pode, por si só, ser considerado como estelionato sentimental, razão pela qual é preciso delimitar seu conceito e alcance. Outrossim, o estelionato sentimental é diferente de empréstimos ou doações que podem ocorrer em uma relação afetiva como forma de apoio ou incentivo, visto que no estelionato afetivo a transmissão patrimonial não se dá por mera liberalidade, mas ocorre mediante um vício de consentimento. Dessa forma, o entendimento aqui defendido perpassa pela necessidade de enquadrar a conduta da vítima como erro, induzido pela manipulação e consequente imprecisão da realidade, decorrente dos meios ardilosos aplicados pelo agente, que seduz a vítima a agir sob falso pressuposto, transferindo seus bens de forma errônea, baseada em uma confiança construída mediante fraude. O erro da vítima, nesse aspecto, não se confunde com culpa, pois a exteriorização de sua vontade não se deu de forma livre. Assim, a vítima, ao celebrar negócios jurídicos com o agente, doando seu patrimônio ou emprestando dinheiro, o faz mediante vício que macula a validade dos contratos firmados. Ou seja, a pessoa manifesta sua vontade em negócios jurídicos que lhe são desfavoráveis, em razão de uma falsa percepção da realidade. Falsa percepção esta desencadeada pela pessoa com quem está se relacionando intimamente. A manifestação de vontade decorre, portanto, de dolo.  Se a constatação de que os negócios jurídicos praticados neste contexto decorreram de um vício de consentimento, tendo o dolo como sua causa, estes negócios são anuláveis, nos termos do art. 145 do Código Civil.   No entanto, assim como a responsabilidade penal, a anulação do negócio jurídico, por si só, também não é suficiente para compensar a vítima pelo estrago advindo do estelionato sentimental. Dessa forma, entende-se que a Responsabilidade Civil se apresenta como a melhor opção para a vítima, o que não significa dizer que ela não possa se utilizar dos outros institutos ou cumulá-los. Resta, portanto, investigar o problema central do tema que é a incidência da Responsabilidade Civil e seus pressupostos. A doutrina4 que se debruça sobre a temática geralmente enquadra o estelionato sentimental como ilícito subjetivo. Embora esteja correto o fundamento jurídico para responsabilização civil na modalidade do art. 186 do Código Civil, parece mais adequado pensar na imputação objetiva de responsabilidade por um abuso de confiança, estabelecido a partir do relacionamento afetivo e, nesse ponto, seria possível desvincular a vítima da necessidade de demonstrar culpa (ainda que ela exista). Assim, pela teoria do abuso do direito, com fulcro no art. 187 do Código Civil, tem-se como fundamento para a imputação de responsabilidade a violação da boa-fé objetiva, em virtude da ardilosa quebra da confiança e da transparência praticada pelo agente. Os relacionamentos afetivos têm como atributos a confiança estabelecida entre o casal, as expectativas comuns e os compromissos assumidos, atributos estes que são criados de forma ilegítima na vítima, com o intuito de obter vantagem econômica, em flagrante violação à boa-fé.  Segue-se, do exposto, que o estelionato sentimental se reveste de ilicitude subjetiva e objetiva, motivo pelo qual, para a vítima, a utilização da imputação objetiva por abuso de direito pode ser utilizada, ainda que se vislumbre a intenção do agente de causar o dano. A própria noção de dolo, enquanto vício de consentimento, está diretamente relacionada à violação da boa-fé, em virtude da manipulação ardilosa5, o que reforça o abuso de direito defendido. O enquadramento como abuso de direito, portanto, parece muito mais fácil e natural, desincumbindo a vítima da difícil tarefa de perquirir culpa. A discussão de culpa é sempre tormentosa, a doutrina há muito alerta sobre os percalços de se atribuir culpa nos relacionamentos familiares, por revolver situações que acabam por aumentar a extensão dos danos. Exatamente por isso, desde 2010, com o advento da Emenda Constitucional 66, foi extirpada a discussão de culpa nos processos de dissolução conjugal. Fato é que o estelionato sentimental quase sempre aparece em relações afetivas que ainda não se transformaram em união estável ou casamento, embora a possibilidade exista6. Ainda assim, nas relações de namoro ou envolvimento afetivo, revolver a culpa traz os mesmos malefícios apontados para os casos de união estável e casamento, motivo pelo qual opta-se por defender a responsabilização pela violação da boa-fé objetiva. Também tratando sobre a questão da culpa, chama a atenção a quantidade de comentários sobre a história real retratada no documentário O Golpista do Tinder, em que os expectadores passaram a questionar a conduta das vítimas, atribuindo a elas a responsabilidade por terem sido ludibriadas, em razão de ingenuidade ou interesse na condição financeira do golpista. A expressiva quantidade de comentários repudiando as mulheres que foram enganadas pelo golpista demonstra a perversa cultura ainda existente de culpar a vítima, especialmente mulheres sexualmente ou afetivamente vitimizadas, que acabam revitimizadas. O que se deve ter em mente é que a culpa não está no afeto que se sente, mas no engodo de quem finge amar para auferir vantagem econômica. Nesse contexto, resta ainda mais evidente a necessidade de afastar a culpa como critério de imputação de responsabilidade nesses casos, posto que não há fundamento para se questionar culpa ou fato exclusivo da vítima, pois, como foi delimitado, o estelionato sentimental decorre da manipulação praticada pelo agente em claro abuso da confiança da vítima. Portanto, é necessário compreender que qualquer um está sujeito a ser vítima de estelionato, seja ele sentimental ou não, pois, por mais esperto e prudente que possa se julgar, o fato de gostar de alguém romanticamente é inerente à condição humana. E, segundo a psicologia, amar é se tornar vulnerável. O problema surge quando a construção da confiança e credibilidade ocorre através de perfis falsos, histórias bem contadas que nunca existiram e promessas de amor que nunca serão cumpridas. Tais fatores são determinantes para que o golpe ocorra. Por mais cauteloso que se possa ser, amar alguém é entregar-se à vulnerabilidade. O que não pode ocorrer é a confusão entre vulnerabilidade e culpa. Seja de forma on-line ou em um tradicional relacionamento presencial, cuidados devem ser tomados, mas sob pena de se esvaziar o caráter afetivo de um relacionamento, a confiança deve estar presente7, em maior ou menor medida. Considerando tudo isso, reforça-se a noção de que criar expectativas, ajudar financeiramente ou receber presentes não são ações que, por si só, configuram um ato ilícito. Mas não é isso que ocorre no estelionato sentimental, já que este é um tipo de relacionamento abusivo e, como tal, configura-se o nexo de causalidade não pelo prejuízo financeiro decorrente do suporte mútuo e natural que surge de um relacionamento afetivo. O critério de imputação será um descumprimento ético, uma violação à boa-fé e às expectativas criadas em razão de uma falsa realidade. A produção de provas no processo de responsabilidade civil por estelionato afetivo deve ser construída, portanto, de forma a demonstrar os danos materiais, relacionando os prejuízos financeiros a uma manifestação de vontade viciada, que decorre da violação da boa-fé pela manipulação e quebra da confiança, sendo o induzimento ao erro a causa do prejuízo econômico. Quanto aos danos morais, entende-se que a constatação do estelionato sentimental, por sua natureza, invoca a noção de dano in re ipsa, seja porque há uma clara ofensa à dignidade humana, seja porque a violência patrimonial ou psicológica praticada se enquadra na Lei Maria da Penha, quando a vítima é mulher e, segundo o Superior Tribunal de Justiça, configura-se dano moral presumido nestas hipóteses8. Embora a referida lei não se aplique ao homem, entende-se que os fundamentos utilizados pelo STJ para a presunção do dano, também podem ser aproveitados para o homem vítima de estelionato sentimental. Assim, enfrentadas as problematizações sobre a incidência de responsabilidade civil, seus critérios de imputação e produção de provas, resta enfrentar a última problematização importante quanto ao estelionato sentimental, referente à possibilidade de responsabilização dos aplicativos de relacionamento em que a vítima e o agente iniciaram o relacionamento. É certo que não cabe às plataformas de relacionamento o dever de conferir a veracidade de todas as informações alimentadas pelos usuários, tampouco fiscalizar ou se responsabilizar pela conduta destes usuários fora da plataforma. Contudo, como é de consumo a relação que se estabelece entre os usuários e os aplicativos de relacionamento, a incidência do Código de Defesa do Consumidor atrai a teoria objetiva e, portanto, poderia se questionar o cabimento da reponsabilidade independentemente de culpa. Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro não adota a teoria objetiva pura, ou seja, admite-se excludentes de responsabilidade. Sendo assim, a reponsabilidade das plataformas de relacionamento pode ser excluída por fato exclusivo de terceiro, no caso, quem praticou o estelionato sentimental. Por outro lado, quando há notificação pelo usuário ou por terceiro sobre violação aos termos de uso, ou direitos de imagem, intimidade, ou ainda fraude, é dever da plataforma averiguar tais informações e proceder à remoção do perfil ou conteúdo falso, sob pena de responsabilidade. Caminhando para o fim, reforça-se a importância de pensar a reparação/compensação civil para as vítimas de estelionato sentimental de forma a evitar a revitimização, utilizando a teoria do abuso de direito. Se, para a vítima, o amor foi uma ficção transformada em pesadelo e para o estelionatário um negócio lucrativo, que a responsabilidade civil seja o despertar para uma nova realidade possível, mais ética, responsável e equilibrada. ---------- 1 MARQUES, David; LAGRECA, Amanda. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Os crimes patrimoniais no Brasil:  entre novas e velhas dinâmicas. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf.  2 Dados apresentados este ano pela Federal Trade Commission revelam perda de 547 milhões de dólares em estelionato afetivo no ano de 2021. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2022/02/ftc-data-show-romance-scams-hit-record-high-547-million-reported-lost-2021 3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no HC n. 577.861/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 17/6/2020. 4 DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; RABELO, Sofia Miranda. Responsabilidade Civil nas Relações de Afeto: Análise Crítica sobre o Estelionato Afetivo.  IN: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela (coord). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2021. 5 FERNÁNDEZ, Guillermo Ospina; ACOSTA, Eduardo Ospina. Teoría general del contrato y del negocio jurídico. 7ª ed., Bogotá, Editorial Temis, 2014. 6 Caso o estelionato afetivo ocorra no contexto de relações familiares, como o namoro ou união estável, além da aplicação das normas apresentadas nestes trabalho, incidirá a tutela estatal específica, como por exemplo, direito aos alimentos e regime de bens. 7 HONNETH, Axel. Direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015. 8 REsp n. 1.675.874/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018.
O procedimento do incidente de desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil constitui um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais. Traz maior segurança jurídica para sócios e empresários ao impor a estrita observância ao contraditório. E evita surpresa à parte, tumulto processual. Tumulto que, não raro, é observado em alguns processos. Se aplicada com razoabilidade, garantindo o devido processo legal e a ampla defesa, a técnica pode evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, ao trazer mecanismos para tornar ineficazes práticas ilícitas do devedor. A teoria, porém, só pode ser invocada se não estiver prescrito o crédito fraudado ou simulado. Como evidenciado por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pretende destruir o histórico princípio da separação patrimonial da sociedade e seus sócios, mas, contrariamente, servir como mola propulsora da funcionalização da pessoa jurídica, garantindo as suas atividades e coibindo a prática de fraudes e abusos através dela".1 Há um acórdão do STJ, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, que elucida o instituto de que aqui se trata com clareza solar: "A desconsideração da personalidade jurídica tem como finalidade a superação episódica da personalidade da pessoa jurídica, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelos débitos contraídos pela empresa" (AgInt na Pet n. 12.712/SP, Terceira Turma, julgado em 23/9/2019). A lei processual contém outra importante regra relativa à matéria, lastreada na possibilidade de que a desconsideração da pessoa jurídica se processe na forma "inversa", adentrando ao patrimônio da sociedade para pagamento de dívida pessoal do sócio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, aliás, já se manifestou nesse sentido: "À semelhança do que ocorre na hipótese de sucessão de empresas, em que a sucessora é incluída no processo para atuar como se fosse a própria parte sucedida, a pessoa jurídica atingida pela desconsideração inversa da personalidade jurídica passa a integrar a relação processual na condição de parte" (REsp n. 1.978.261/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022). Para Rolf Madaleno, a desconsideração inversa da personalidade jurídica só se afigura legítima quando se verifica que a sociedade "se tornou mera extensão da pessoa física do sócio". Trata-se, no entender do autor, de hipótese em que se verifica haver "abuso da personalidade física através do mau uso da pessoa jurídica".2 A observância do contraditório e da ampla defesa evitam decisões injustas e descabidas, como por exemplo, quando a pessoa jurídica não paga porque simplesmente não tem patrimônio. Ou então quando promoveu uma dissolução irregular perante a Junta Comercial, sem incorrer em fraude ou simulação. O STJ tem entendido que: "A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica" (AgInt no AREsp n. 1.797.130/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/6/2021). Segundo Fábio Ulhoa Coelho, casos como o acima enunciado demonstram a aplicação incorreta da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para o autor, "essa aplicação incorreta reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. Nela, adota-se o pressuposto de que o simples desatendimento de crédito titularizado perante uma sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta, seria suficiente para a imputação de responsabilidade aos sócios ou acionistas".3 Neste sentido, o STJ já afirmou que jurisprudência é pacífica no sentido de que "a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial" (AgInt no AREsp 2.021.508/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/4/2022). O STJ também entende que, se o sócio tiver apenas um único bem imóvel que sirva de morada, não tendo outros bens penhoráveis, a penhora não pode recair sobre esse bem de família: "a mera desconsideração da personalidade jurídica não tem o condão de afastar a impenhorabilidade do bem de família regularmente constituído, ressalvado o enquadramento nas hipóteses excepcionadas em lei" (AgInt no AREsp n. 935.235/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 1/6/2020). Decisão recente do tribunal diz também ser impossível que a desconsideração atinja o patrimônio do acionista minoritário: "A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica" (REsp n. 1.861.306/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/2/2021). Da mesma forma entende o Tribunal de Justiça de São Paulo: "Sócio minoritário com 1% (um por cento) do capital social e sem poderes de administração que não deve responder pessoalmente pela dívida da pessoa executada e, por isso, deve ser excluído do polo passivo da relação jurídica processual" (TJSP, Agravo de Instrumento 2024937-74.2022.8.26.0000, Relatora Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, julgado em 03/06/2022). A premissa é de que o sócio-administrador age com dolo ou culpa no ato abusivo, sendo que o sócio minoritário responde apenas excepcionalmente, ou seja, quando sua conduta omissiva ou comissiva contribuiu para a ocorrência do evento que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido vai o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Descabe a inclusão de sócio minoritário no polo passivo da execução, em razão da desconsideração da personalidade jurídica, quando não possui cargo de gestão, nem tampouco comprovado que tenha concorrido para a dissolução irregular da empresa executada" (Apelação Cível nº 70082719196, Décima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 05/03/2020). É importante destacar, porém, que a decisão judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente resolve uma questão processual, determinando que o sócio se torne parte executada, mas não implica sua condenação. Como destaquei em outro espaço, na companhia de Luiz Rodrigues Wambier e Regiane França Liblik,4 a desconsideração da personalidade jurídica, quando aplicada à luz das garantias fundamentais processuais, assume o valoroso papel de evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, tornando ineficazes as tentativas do devedor de fazer uso da empresa como escudo patrimonial. É preciso, contudo, como lá afirmamos, que haja prudência na aplicação da medida, que deve ser empregada em situações excepcionais e no contexto da ordem constitucional. __________ 1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 486. 2 MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 81-82. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 4. ed. em e-book baseada na 23. ed. impressa. V. 2, p. RB-2.7. 4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; LOBO, Arthur Mendes; LIBLIK, Regiane França. Tipologia das sociedades e a desconsideração da personalidade jurídica. Revista eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, a. 12, v. 19, n. 3, p. 523-542, set./dez. 2018.
A responsabilidade civil do Estado é disciplinada pelo art. 37, § 6º, da Constituição, nos seguintes termos: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Diante disso, a doutrina e a jurisprudência firmaram entendimento no sentido de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada na teoria do risco administrativo (Meirelles, 1982, p. 622-623; Cahali, 2007, p. 40; Di Pietro, 2006, p. 600). No entanto, o elemento subjetivo se faz presente na configuração do dever de indenizar, pois seu primeiro pressuposto é que o dano seja causado por algum agente estatal. Por via de consequência, embora a responsabilidade objetiva dispense prova da culpa, na maior parte dos casos é necessário analisar a conduta do agente para estabelecer o nexo de causalidade (Câmara, 2010, p. 87-90). Por fim, a demonstração da culpa do agente é requisito para a promoção da ação de regresso prevista no texto constitucional. O aspecto subjetivo da responsabilidade civil do Estado comparece de maneira incisiva nos casos de agressões e ofensas pessoais praticadas por agentes públicos, nos quais a vítima se sente pessoalmente ofendida e deseja, não apenas receber uma indenização paga pelo poder público, mas acima de tudo responsabilizar o funcionário que praticou a ofensa. Ocorre que a propositura da ação indenizatória diretamente contra o funcionário público traz alguns inconvenientes para a vítima, a começar porque fica obrigada a demonstrar a culpa do agente causador direto do dano. Fora isso, tratando-se de dano moral, o valor da indenização provavelmente será menor, uma vez que a condição econômica do agressor é um dos fatores considerados pelo juiz para fixação do montante indenizatório. Não bastasse, a vítima pode esbarrar na insolvência do agressor que, em muitos casos e até mesmo em consequência administrativa do fato lesivo, já se encontra desligado do serviço público. De outro lado, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria um dilema para a defesa do ente público, que precisa alegar e provar que o agente público agiu regularmente a fim de afastar sua responsabilidade. Porém, posteriormente, caso a ação seja julgada procedente, terá que valer-se de argumento contrário para obter o ressarcimento em uma futura e eventual ação de regresso. Por fim, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria embaraços para o Poder Judiciário no que tange à colheita da prova e definição das responsabilidades dentro de um mesmo processo em que se discute responsabilidade objetiva e subjetiva simultaneamente. Em razão disso, foi se construindo paulatinamente o entendimento de que o autor deve mover sua ação contra o poder público e este, posteriormente, caso seja vencido na ação, deve mover ação de regresso contra o agente causador do dano, mediante comprovação da culpa. Tema 940 de Repercussão Geral: disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente público Olhando para o processo evolutivo da responsabilidade civil em geral, observa-se uma tendência à objetivação, de modo que a teoria subjetiva tem aplicação restrita aos danos causados nos relacionamentos interindividuais, entre um causador e uma vítima, ao passo que a responsabilidade civil objetiva amplia seu alcance cada vez mais sobre os riscos das atividades desenvolvidas na vida em sociedade. Essa tendência também se faz presente na seara da responsabilidade civil do Estado, que parte do reconhecimento da responsabilidade pessoal dos empregados públicos por atos contrários à lei, passando pela fase da culpa administrativa no início do século XX até alcançar a teoria do risco de administrativo nos dias atuais (Cavalcanti, 1956, p. 272-286, Cahali, 2007, p. 20-22, Meirelles, 1982, 620; Di Pietro, 2006, p. 597). Neste percurso, também se observa uma mudança significativa do papel do agente público que, ao tempo do absolutismo, era considerado longa manus "del Rey" e, portanto, um representante do poder estatal, cujas ações se confundiam com as ações do Estado (Cavalcanti, 1956, p. 272-286). Nos dias atuais, procuramos nos distanciar da noção de agente público detentor de poder estatal, que age em nome do Estado e cuja vontade se confunde com a vontade soberana do Estado. Tendo em vista os princípios que regem a Administração Pública, particularmente o da legalidade e o da impessoalidade (CF, art. 37, caput), bem como o processo de modernização e de profissionalização dos serviços públicos, é mais correto a afirmar que os agentes públicos desempenham tarefas no âmbito das atividades públicas pelas quais o Estado responde objetivamente. Diante dessa tendência à objetivação, torna-se a cada dia mais claro que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são desempenhadas por meio de atos e condutas de seus agentes. Logo, mostra-se inadequado demandar contra os agentes públicos que não são responsáveis pelas atividades estatais, mas apenas executam tarefas no âmbito dessas atividades. Desse modo, o agente público só pode responder ao ente público ao qual se encontra vinculado, desde que fique demonstrado que cumpriu suas tarefas de modo inadequado, irregular ou ilegal. O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extraordinário 1.027.633/SP, no caso em que um funcionário público demandou a prefeita municipal por prática de assédio político. O juiz rejeitou a demanda por entender que a vítima deveria acionar o Município e não a prefeita, mas o Tribunal de Justiça reformou a sentença por entender que a vítima poderia optar entre processar o ente público por responsabilidade objetiva ou o agente que causou o dano por responsabilidade subjetiva. No julgamento do recurso, que teve reconhecida a repercussão geral, o Min. Marco Aurélio Mello, relator do processo, lembrou que a responsabilidade objetiva do Estado tem como base o art. 37, § 6º, da Constituição, ao passo que o agente público responde por dolo ou culpa, com base no art. 122 da Lei 8.112/1990, o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais. Desse modo, concluiu o Ministro que "Consoante o dispositivo, a responsabilidade do Estado ocorre perante a vítima, fundamentando-se nos riscos atrelados às atividades que desempenha e na exigência de legalidade do ato administrativo. A responsabilidade subjetiva do servidor é em relação à Administração Pública, de forma regressiva"1. Na esteira deste entendimento, o Min. Alexandre de Moraes assinalou que a responsabilidade civil objetiva prevista na Constituição se dirige exclusivamente às pessoas jurídicas de direito público e às empresas prestadoras de serviços públicos, sem possibilidade de aplicação aos agentes públicos, os quais respondem subjetiva e regressivamente perante o Estado. Como resultado do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal fixou a seguinte tese: A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Com o julgamento do Tema 940, está claro que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada no risco da atividade administrativa. A vítima fica isenta de comprovar a culpa do agente causador do dano, mas está proibida de acionar diretamente o agente, que só pode ser demandado pelo ente público em ação de regresso. Conforme preconizado por Hely Lopes Meirelles, há uma clara disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente. O Estado indeniza a vítima e depois busca o ressarcimento contra o agente, em ação de regresso (Meirelles, 2007, p. 659-660). O julgamento do caso Lula vs Dellagnol pelo STJ O caso Lula vs Dellagnol é emblemático da disjunção estabelecida pelo Tema 940 entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva dos agentes públicos. O procurador da República Delton Dellagnol, coordenador da denominada Operação Lava-jato, convocou a imprensa no dia 14/09/2016 para expor a acusação formulada contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, utilizando, para tanto, um arquivo de PowerPoint. Diante disso, o ex-presidente moveu ação indenizatória de danos morais contra o procurador da República, alegando que aquela exposição ofendeu sua imagem, seu nome e sua reputação frente à opinião pública. O juiz de primeiro grau afastou a preliminar de ilegitimidade passiva e julgou improcedente a ação ao entendimento de que os fatos da causa não constituem violação aos direitos da personalidade do autor. O Tribunal de Justiça de São Paulo por entender que a divulgação da denúncia por meio de PowerPoint não viola os direitos da personalidade do acusado. Ao conhecer do Recurso Especial 1.842.613, interposto pelo autor, o Superior Tribunal de Justiça decidiu reformar as decisões de primeiro e segundo graus, por maioria de votos, julgando procedente a ação e condenando o réu a pagar R$ 75.000,00 ao autor. No que diz respeito à legitimidade passiva, a Corte Superior argumentou que: Nas hipóteses em que a conduta da qual deriva o dano consistir no exercício das funções públicas regulares, do agir funcional, (...) a demanda, necessariamente, será ajuizada em face do Estado, que, em ação regressiva, poderá acionar o agente público. Por outro lado, (...) nas situações em que o dano (...) é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se como "irregular" conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, (...) a ação com desígnio indenizatório, (...) pode ser ajuizada em face do agente. Isso porque, não pertencendo o atuar abusivo ao rol dos atos funcionais, não se reconhece no ordenamento jurídico fundamento capaz de legitimar a inclusão do ente estatal na demanda. Como visto, o Superior Tribunal de Justiça adotou a regularidade ou irregularidade da conduta do agente como critério para estabelecer a legitimidade passiva na ação indenizatória: se a conduta do agente público for legítima e regular, o ente público deve reparar o dano causado; se a conduta for irregular e abusiva, o próprio agente deve ser responsabilizado. Antes de tudo, é preciso adotar como premissa que, no caso analisado, o procurador da República agiu no desempenho de suas atribuições funcionais, inclusive atendendo às orientações regulamentares emanadas de seus superiores hierárquicos. Por outro lado, o art. 37, § 6º, da Constituição diz que o poder público é responsável pelos danos causados por seus agentes, sem fazer distinção sobre a regularidade ou irregularidade da conduta. Desse modo, a regularidade ou irregularidade da conduta só tem relevância, posteriormente, para efeito de ressarcimento do erário em ação regressiva. Por essa razão, a Min. Isabel Gallotti deixou registrado em seu voto vencido que a ilicitude não é pressuposto da responsabilidade civil do Estado, podendo haver ato administrativo regular que acarreta dano e, por conseguinte, o dever de indenizar, em razão dos riscos inerentes à atividade estatal. É preciso ter presente que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são executadas por seus agentes. O agente público só pode ser demandado diretamente se a conduta lesiva for praticada fora do âmbito das atribuições funcionais e, portanto, fora do âmbito das atividades estatais, em que sequer se pode cogitar a responsabilidade estatal. É o caso, por exemplo, do agente policial que disparou e feriu outra pessoa, mas a investigação apurou que se tratou de crime passional que se deu por questões familiares2. De todo modo, a decisão adotada pelo STJ, no caso Lula vs Dellagnol está em desacordo com o Tema 940 de Repercussão Geral, julgado pelo STF no RE 1.027.633/SP. Tratando-se de fato supostamente lesivo praticado por agente público na execução das atividades estatais, a vítima deve mover a ação de indenização contra a pessoa jurídica de direito ente público à qual o agente se encontra vinculado, devendo demonstrar apenas o dano e o nexo de causalidade com a atividade estatal. Posteriormente, em caso de condenação, o ente público pode mover ação de regresso contra o agente para se ressarcir do prejuízo, mediante demonstração de que o agente procedeu com culpa. Palavras finais Em síntese conclusiva, à luz do art. 37, § 6º, da Constituição, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, com base no risco da atividade, cabendo ação de regresso contra o agente que causou dano a terceiro, no desempenho de suas atribuições, mediante demonstração da culpa. A discussão sobre a possibilidade de mover ação indenizatória diretamente contra o agente público, isoladamente ou em conjunto com o ente público a que pertence, foi pacificada com o julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Contrariando essa diretriz, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a legitimidade passiva do agente público quando do julgamento do caso Lula vs Dellagnol, ao argumento de que os atos lesivos foram irregulares, no sentido de que não se enquadram no rol das atribuições institucionais do servidor público. Caso o tema seja levado à Suprema Corte, é bem provável que o julgamento do STJ seja modificado a fim de que prevaleça a tese fixada quando do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral. Referências Cahali, Y. S. (2007). Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. Câmara, J. A. (2010). A relevância da culpa na responsabilidade extracontratual do Estado. In: Guerra, A. D. M., Pires, L. M. F., Benacchio, M. (coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos (p. 79-91). São Paulo: Quartier Latin. Cavalcanti, A. (1956). Responsabilidade civil do Estado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi. Di Pietro, M. S. Z. (2006). Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas. Meireles, H. L. (1982). Direito administrativo brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. __________ 1 Trecho do acórdão. 2 TJSP - 12ª Câm. Dir. Público. Apelação Cível 0236728-47.2009.8.26.0000 (994.09.236728-9). Rel. Desemb. EDSON FERREIRA. J. 10/10/2010, v.u.
De tempos em tempos, debates jurídicos versam com maior ênfase sobre a teoria da perda de uma chance em razão de julgados proferidos pelo STJ. Isso revela a especial relação desta teoria com decisões judiciais, pois a sua criação ocorreu na jurisprudência, é nela que teve o seu maior desenvolvimento e é por ela que não é esquecida. Perante a corte especial do STJ, encontram-se os casos julgados de grande repercussão no país, como a responsabilidade de uma emissora pela equivocada elaboração de uma pergunta em um jogo de acertos, o que impossibilitou o jogador de ganhar o prêmio, uma vez que não haveria resposta correta1. Também, a aplicação da teoria na responsabilidade médica, especificamente, ao considerar que a impossibilidade de sobrevida do paciente é considerada uma chance merecedora de reparação (dano chance)2. Ainda, a decisão proferida pela 3ª turma do STJ, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial 1.877.375/RS3, sobre a responsabilidade do advogado e a conduta culposa diante da não defesa dos interesses do cliente. E é a partir deste julgamento que se passa a analisar a aplicação da teoria da perda de uma chance na responsabilidade advocatícia neste breve estudo. Para tanto, avalia-se a responsabilização na atuação advocatícia por si só. Isto porque, trata-se de uma responsabilidade negocial, decorrente de uma contratação entre as partes, por meio da qual, o advogado obriga-se a utilizar os meios disponíveis e acessíveis para alcançar o resultado. Portanto, além da avaliação da culpa, tem-se a aplicação da divisão obrigacional consagrada por René Demogue, entre obrigação de resultado e de meio, para o que se aplica a última4. A partir destas premissas, mesmo quando caracterizada uma conduta culposa, pela ação ou omissão, nem sempre é possível responsabilizar um advogado por não obter êxito em uma demanda judicial ou defesa dos interesses dos seus clientes, uma vez que não está no seu escopo obrigacional o resultado. A sua obrigação tem como foco a utilização de todos os meios possíveis para que ele fosse alcançado. Por isso, a responsabilização ocorrerá após a avaliação da conduta do profissional, a fim de avaliar a eventual culpa e, também, se os meios disponíveis, existentes e acessíveis à época foram utilizados. Portanto, não há uma obrigação em relação ao resultado a ser obtido ou pretendido pelo cliente, mas sim se o advogado atuou de forma diligente, prudente e a partir de todos as possíveis formas disponíveis, à época, de defesa dos interesses do cliente. Ademais, um fator que não pode ser ignorado é que, assim como a atuação médica, há concausas que poderão afetar o resultado. Portanto, mesmo que tenham sido adotadas todas as condutas possíveis para melhor alcançar o resultado, fatores externos, como posicionamento jurisprudencial ou informações e documentos da outra parte, poderão alterar o pretenso sucesso. Essas concausas não podem ser ignoradas. Porque, mesmo o mais diligente advogado poderá não alcançar o resultado desejado pelo seu cliente e, por essa razão, não é necessariamente a perda de um prazo ou a não utilização adequada da melhor técnica que culminará no prejuízo ou frustração. Isso acarreta a exclusão do nexo causal entre a conduta e o resultado (dano final). Mas, não significa, por si só, que não haverá responsabilização. É preciso avaliar se até o momento da conduta culposa havia probabilidades de ter um resultado favorável ou não. É nestas situações que se aplica a teoria da perda de uma chance, quando há um desencadeamento de eventos que ao final resultariam em uma vantagem esperada, mas que não ocorreu em virtude de uma interrupção indevida, resultante de um ato antijurídico. Não há nexo causal entre a antijuridicidade e o resultado obtido ao final (dano final), mas há causalidade com a probabilidade perdida (dano chance)5. Por isso, a sua nomenclatura "perda de uma chance", uma vez que se entende que há uma chance que foi perdida em virtude da conduta de outrem. Nas decisões judiciais, os casos mais comuns para aplicação desta teoria são atuação de profissionais liberais, que se obrigam com os meios adotados e não com os resultados a serem obtidos. Também, porque nas atuações de médicos ou advogados, há concausas que poderão alterar a ocorrência do resultado e, portanto, ainda que todas as possíveis e disponíveis condutas fossem adotadas, a vantagem esperada pode não ocorrer. Por isso, ausente o nexo causal entre o dano final, mas presente para com o dano chance, uma vez que demonstrada "a probabilidade de que tais eventos viriam a ocorrer, como também que se evidencie que eles ainda são conseqüência[s] adequada[s] do fato antijurídico"6. Esta é a base da teoria da perda de uma chance, cuja aplicação já é consagrada na jurisprudência brasileira, "desde que efetivamente comprovadas a probabilidade de ser alcançada a vantagem esperada, acaso o desencadeamento natural dos fatos não tivesse sido interrompido"7. A interrupção indevida do desencadeamento de fatos decorrente da inadequada conduta do advogado configura o pressuposto culpa, por sua vez, a probabilidade esperada quando desta indevida interrupção importará no dano a ser reparado (dano chance). Há momentos da atuação advocatícia que a probabilidade será mais difícil de ser comprovada, por exemplo, quando analisadas as probabilidades de êxito antes da propositura da demanda, porque ainda não foi formado o contraditório, pois não houve sequer a citação da outra parte para apresentação de contestação. A rigor, a decisão judicial depende de fatores que acontecem no curso do processo para ser favorável ou não a um argumento apresentado8, o que impediria a certeza na probabilidade9. Contudo, não é possível apenas afastar toda e qualquer probabilidade de êxito quando ainda não formado o contraditório. Também, não se pode presumir a total aleatoriedade nas decisões judiciais. Há temas que permitem analisar a probabilidade ou não de serem acolhidos de acordo com provas existentes à época e posicionamentos já consagrados pelos Tribunais. Não se pode olvidar que há um objetivo atual de uniformização da jurisprudência para maior segurança jurídica10, desta maneira, em demandas que não sejam inéditas não é possível dizer que haveria uma aleatoriedade tamanha que impossibilitaria a análise de probabilidades do resultado. Pelo contrário, nestes casos, há a possibilidade de se avaliar probabilidades diante dos fatos e provas existentes e as probabilidades que decorreriam da sua apresentação em juízo. O mesmo raciocínio pode ser aplicado quando da não interposição de um recurso, que a rigor estaria dentro do escopo de uma conduta culposa pela falta de cuidado pela omissão (negligência) e não utilização dos meios disponíveis (a possibilidade de interposição de um recurso). Contudo, se não há certeza de que a decisão seria revertida não há que se falar em reparação pelo prejuízo final. Deverá ser analisada qual a probabilidade de o recurso ter êxito e essa probabilidade que deverá ser reparada. Se não há certeza do provimento, também não há certeza do improvimento11. Interpretação que também se aplica quando da não apresentação de uma defesa ou se apresentada, quando inadequada. Neste caso, além da preclusão de análise dos argumentos futuramente, haverá a possibilidade de verificação das probabilidades de êxito em afastar o pedido formulado, acaso tivessem sido apresentados os argumentos adequados ou a própria defesa. Exatamente neste sentido é o julgado proferido pelo STJ, no acórdão de lavra da relatora Ministra Nancy Andrighi. Verificou-se a antijuridicidade, ante a omissão dos advogados que apesar de devidamente contratados não realizaram qualquer atuação em defesa do seu cliente. A partir desta ausência de defesa ou manifestações em nome do cliente, apurou-se qual seria a probabilidade de sucesso se a atuação tivesse ocorrido diligentemente12. Constatada a existência dessa probabilidade, configurada a teoria da perda de uma chance. De um lado há a indevida conduta do advogado, que apesar de devidamente contratado, quedou-se inerte sem apresentação sequer da peça de contestação para defesa dos interesses do cliente. Por outro lado, é sabido que sem uma defesa as probabilidades de alcançar êxito para proteção de seus interesses, quando existentes, são reduzidas drasticamente. No caso julgado, concluiu-se pela probabilidade de situação mais vantajosa que não foi possível de ser alcançada pela desídia dos advogados, o que configurou a chance perdida. Além dos citados casos de omissão, como perda do prazo para defesa ou da propositura da ação, podem ser exemplos de aplicação da teoria da perda de uma chance, atuações em que a ação é indevida e hábil a ensejar a responsabilização do advogado, como por exemplo, quando atua de forma contrária aos interesses do cliente13. A atuação advocatícia deve primar pelo melhor interesse do cliente e não pode se pautar por interesses pessoais do advogado ou até mesmo em benefício de terceiros, mesmo que sejam outros clientes. Verificada a conduta culposa, seja pela omissão, seja pela ação, que tenha interrompido o desencadeamento dos fatos, com o impedimento de se alcançar um resultado favorável, aplica-se a teoria. Como consequência, deve o julgado avaliar o dano a partir das probabilidades avaliadas e verificadas no caso concreto. Isto porque, será reparado o dano chance e não o dano final suportado. No julgamento em análise neste estudo, corretamente a condenação dos advogados resultou no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), não obstante o prejuízo do cliente em decorrência da não atuação dos advogados tenha sido de R$ 947.904,20 (novecentos e quarenta e sete mil, novecentos e quatro reais e vinte centavos). É que será reparada a chance perdida (dano chance), com aplicação do art. 403, do Código Civil, que dispõe que "(...) as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual."14 Por isso repara-se a chance perdida (dano chance) e não a vantagem esperada e não alcançada (dano final). A aplicação da teoria da perda de uma chance, a partir do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, além dos exemplos acima apresentados, não exclui a possibilidade de responsabilização na atuação advocatícia pelo resultado (dano final). Mas, essa responsabilidade existirá apenas quando for possível verificar que a conduta culposa resultou no prejuízo total suportado pelo cliente. Caso contrário, se restar ausente o nexo causal com o resultado (dano final), averiguado o liame para com probabilidades perdidas, aplicar-se-á a teoria da perda de uma chance. É clara portanto a possibilidade da aplicação da teoria da perda de uma chance em atuação advocatícia, quando comprovada a conduta culposa, bem como a probabilidade perdida, uma vez que a chance séria, real e efetiva é dano reparável. _____________ 1 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459. Quarta Turma. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento: 08 de novembro de 2005. 2 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1335622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento: 18 de dezembro de 1012. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 173.148/RJ. Segunda Turma. Relatora Ministra Assusete Magalhães. Julgamento: 03 de dezembro de 2015. 3 Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022.  4 GIOSTRI, Hildegard Taggesel. Algumas reflexões sobre as obrigações de meio e de resultado na avaliação da responsabilidade médica. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro: Padma, 2001. v.5. p. 102. 5 SILVA, Rafael Peteffi. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2007, p. 13. 6 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil, 2.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1, p. 674. 7 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 97. Disponível aqui. 8 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: L.G.D.J., 1939. t.1., p. 12. 9 STOCO, Rui. Responsabilidade civil do advogado à luz das recentes alterações legislativas. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v.6, p. 549. 10 O Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015) prevê expressamente tal objetivo para maior segurança jurídica, como é possível verificar no art. 926, caput, "Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente." (BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível aqui. 11 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11.ed. ver., atual. de acordo com o Código Civil de 2002. Aument. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 426. 12 No acórdão constou expressamente: "Uma vez estabelecida, de maneira incontroversa, a desídia dos réus, importa consignar que havia real possibilidade de êxito dos autores no âmbito da ação de prestação de contas ou de, ao menos, obterem uma situação mais vantajosa, se as graves falhas na prestação dos serviços advocatícios não houvessem ocorrido." (Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022). 13 ANDRADE, Fabio Siebeneicheler. Responsabilidade Civil do Advogado. Revista dos tribunais, São Paulo: RT, v. 697, 1993, p. 24-26. 14 BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível aqui.
Alguns casos, sobretudo aqueles que envolvem celebridades ou fatos de grande repercussão social, são dotados de excepcional potencialidade para o estudo das matérias a eles correlatas, seja por atraírem a atenção do público em geral, seja por permitirem a fácil visualização daquilo que se convencionou chamar de direito vivido, o direito efetivamente aplicado pelos tribunais. No dia 01 de junho deste ano sete jurados do condado de Fairfax, no estado norte americano da Virgínia, nos brindaram com um destes casos: o veredicto da contenda entre os atores Johnny Depp e sua ex-esposa e também atriz Amber Heard. O objetivo desta coluna é aproveitar a publicidade do caso para apresentar, na extensão própria esperada para este espaço, algumas reflexões dele extraídas sobre a interlocução entre responsabilidade civil e o direito de família e a função punitiva da responsabilidade civil, aplicada por meio das indenizações punitivas (punitive damages). O caso pode ser assim sintetizado: a ação foi ajuizada por Johnny Depp em 2019, alegando que a ex-esposa o havia difamado em artigo por ela publicado no jornal Washington Post1 em dezembro de 2018, sob o título "Amber Heard: Eu falei contra a violência sexual - e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso precisa mudar". No texto, embora não cite expressamente o nome de Depp, a atriz afirma ter vivenciado violência no passado recente (últimos dois anos), justamente o período em que esteve casada com Johnny Depp. Afirmando que tal publicação prejudicou sua reputação profissional e até mesmo o boicote em alguns papéis, o ator pleiteou a condenação de sua ex-esposa ao pagamento de cinquenta milhões de dólares em indenizações. Em sua defesa, a atriz alegou que não mencionou o ex-marido no texto, e apresentou ainda pedido contraposto, pleiteando a condenação de Depp por difamação, especificamente em razão de uma declaração dada por seu então advogado de que as alegações de violência doméstica por ela narradas eram uma farsa. O júri, composto por cinco homens e duas mulheres, reconheceu que houve difamação recíproca, mas decidiu de forma substancialmente favorável ao ator: de um lado, condenou Amber Heard ao pagamento de dez milhões de dólares a título compensatório e mais cinco milhões a título de danos punitivos, sendo estes reduzidos pela juíza Penney Azcarate a trezentos e cinquenta mil dólares. De outro lado, condenou Johnny Depp ao pagamento de dois milhões de dólares a título compensatório. Para afastar a confusão realizada por alguns veículos de imprensa e postagens em redes sociais, é preciso destacar que a ação versou apenas sobre o pedido de indenização por difamação, de forma autônoma, e não teve por objeto o divórcio das partes ou qualquer medida protetiva, ações que já haviam sido julgadas anteriormente. Conforme amplamente noticiado pela imprensa, os atores se casaram em fevereiro de 2015, e poucos meses depois, em maio de 2016, Amber Heard ajuizou ação de divórcio, solicitando também uma ordem de restrição (medida protetiva) contra o marido, baseada em violência doméstica. Em agosto do mesmo ano, o casal fez uma declaração pública de que chegaram a um acordo quanto ao divórcio, e que nunca tiveram o objetivo de ferir um ao outro, seja de forma física ou emocional. Em razão do acordo, Amber desistiu da medida protetiva anteriormente ajuizada, e em janeiro de 2017 o casamento foi oficialmente dissolvido, restando estabelecido apenas que Depp pagaria a sua então esposa o valor de sete milhões de dólares. A primeira reflexão serve a evidenciar como as relações familiares não são imunes a responsabilidade civil. Não obstante, a interlocução destas disciplinas demanda cuidadosa análise do intérprete, afinal, o direito de família se encontra estribado no afeto e em relações de caráter extrapatrimonial, ao passo que a responsabilidade civil representa, historicamente, o mecanismo de reparação à danos patrimoniais. Por vezes, o encontro destas espacialidades pode resultar em efeitos desastrosos. Basta pensar na outrora comum responsabilização civil pelo mero rompimento do noivado, que bem analisada, representa desarrazoada coação estatal dirigida à formação do casamento, mesmo quando o desfazimento do noivado representa o mais franco ato de liberdade existencial: a liberdade de constituir (ou não constituir) família (CF, art. 226, §7). Claramente, a responsabilidade civil não se presta a tal fim, e a função punitiva adotada no caso em análise pode acabar por legitimar o julgamento moral de condutas familiares diversas daquelas próprias do modelo majoritário. Ainda quanto a intersecção entre responsabilidade civil e direito de família, o caso Depp vs. Heard revela uma tendência da atual jurisprudência brasileira, notadamente de que as frustrações e abalos decorrentes da dissolução da sociedade conjugal, por si, não autorizam a reparação civil2. Tal fato não decorre de qualquer falsa imunidade que o casamento possa atribuir aos atos danosos praticados pelos cônjuges, mas sim de que o fim da conjugalidade, por si só, não gera danos indenizáveis. De outro lado, declarações difamatórias ou quaisquer outras condutas que ilicitamente violem diretos patrimoniais ou de personalidade de qualquer dos cônjuges encontra aptidão para deflagrar a responsabilização civil, mesmo que realizadas na seara familiar. Foi exatamente o que ocorreu com o casal Depp-Heard, personagens de um divórcio midiático e conturbado que não teve a interferência da responsabilidade civil, buscada apenas dois anos depois e em razão de outros atos, notadamente declarações difamatórias proferidas por ambas as partes. Por fim, não se pode deixar de considerar as externalidades derivadas deste julgamento, sobretudo sua influência sobre as denúncias contra a violência doméstica, tema que não passou despercebido a Anderson Schreiber ao apontar que "a pergunta que talvez mais interesse em tudo isso é a seguinte: pode a decisão do júri desestimular a denúncia de casos de violência doméstica? Se a resposta for afirmativa, pode-se acabar produzindo o efeito oposto àquele declaradamente pretendido pela atriz em seu artigo"3. O tema é sensível e merece cuidadosa atenção dos juristas. A segunda oportunidade oferecida pelo caso é a análise dos controversos punitive damages. Se tradicionalmente a responsabilidade civil teve por atribuição a compensação de danos, contemporaneamente avoca também as funções de prevenção do dano e punição de seu causador. O tema é controverso, tanto no Brasil4 quanto nos Estados Unidos, ao ponto de Mitchell Polinsky e Steven Shavell afirmarem que "uma das mais controversas características do sistema legal americano é a imputação de indenizações punitivas"5. No direito norte americano, este instituto concentra tanto uma função punitiva, voltada especificamente para punir uma pessoa por uma conduta ultrajante (sendo mais frequentemente aplicado a condutas intencionais ou maliciosas), como também uma função preventiva (deterrance), voltada a evitar que esta pessoa ou mesmo outras pessoas realizem condutas similares6. Em que pese a pretendida importação da função punitiva para o direito brasileiro se dê, no mais das vezes, de forma generalizada, estatisticamente estas indenizações são raras no Estados Unidos: o número de casos com pedidos de indenização punitiva admitidos para julgamento representa entre três a cinco por cento das causas cíveis levadas aos tribunais estaduais, e neste reduzido número de causas admitidas, menos de cinco por cento tem o pedido julgado procedente7. Ou seja, o percentual de causas em que estas indenizações são admitidas varia entre 0,15% e 0,25% das causas cíveis - menos de uma em cada quatrocentas ações.   Ponto sensível da temática é a fixação do valor desta indenização - sua quantificação. Ordinariamente, esta atribuição compete ao corpo de jurados, portanto, a leigos, e o valor atribuído é dotado de grande variação (mesmo entre casos idênticos) e imprevisibilidade. Conforme apurado por Cass Sunstein, Reid Hastie, John Payne, David Schkade e W. Kip Viscusi, os jurados são instruídos de que o valor da indenização deve ser aquele que efetivamente expresse a desaprovação social contra a conduta punida, bem assim que seja o necessário para induzir o réu ou outros indivíduos a não repetir aquela conduta, sem receber quaisquer critérios objetivos para a fixação do valor de eventual indenização, tampouco informações quanto ao valor aplicado em casos análogos. Quando os autores pediram aos jurados para justificar o valor por eles atribuído a título de punitive damages, as respostas revelaram que os valores partiram dos mais variados valores-base, dentre os quais (a) o valor do orçamento anual destinado pelo réu para publicidade, (b) um milhão de dólares por réu; (c) vinte e cinco mil dólares por vítima; (d) a metade do lucro anual do réu; dentre tantos outros. Quase nenhum jurado fez referência às instruções dadas pelo magistrado e a maior parte das justificativas se referiam ao objetivo de "mandar uma mensagem" ou "ferir" o causador do dano. Os autores cogitam que tal resultado pode decorrer da dificuldade de compreensão pelos jurados das instruções sobre a indenização punitiva, o que os leva a atuar com base em sua intuição, reações emocionais ou mesmo por simpatia com a parte, ao invés de observar os critérios judiciais8. Esta constatação parece ter sido corroborada pelo caso em análise, em que tanto a mídia quanto a população em geral apresentaram forte sentimento de simpatia em relação a Johnny Depp durante o julgamento.  Em que pese a admissão de sua constitucionalidade pela Suprema Corte dos EUA, a matéria é de competência estadual, e dos cinquenta estados americanos, apenas cinco expressamente proíbem a aplicação de punitive damages. Dentre os estados que admitem a aplicação de indenizações punitivas, dezoito limitam o valor da indenização a ser atribuída pelo júri, como é o caso do estado da Virginia9. É por esta razão que embora o júri tenha condenado Amber Heard ao pagamento de cinco milhões de dólares a título de punitive damages, o valor foi reduzido pela juíza togada ao limite estadual de trezentos e cinquenta mil dólares. No âmbito jurisdicional, em State Farm vs. Campbell a Suprema Corte Americana chegou a formular a 'single digit rule", ou regra de um dígito, pela qual o valor da indenização fixada a título de dano punitivo deveria ser proporcional ao valor indenização compensatória, na extensão máxima de um dígito deste valor (portanto, entre uma e nove vezes o valor da indenização compensatória). Aponta a doutrina, porém, que em casos subsequentes (Philip Morris vs. Williams) a própria Suprema Corte deixou de aplicar tal regra, deixando de responder se o critério se trata efetivamente de uma regra de julgamento ou apenas uma diretriz10. Ao fim e ao cabo, a figura das punitive damages parecem despertar tantas controvérsias quanto o próprio caso Depp vs. Heard, cabendo a doutrina arrostar a responsabilidade de realizar as mediações necessárias à importação da figura ao direito brasileiro, sob pena da tradução acabar por revelar uma traição ao próprio instituto11. _______________ 1 Disponível aqui. 2 BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A ilicitude como requisito da responsabilidade civil no direito de família: o cotejo entre a doutrina e a jurisprudência. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (et. al.). Responsabilidade Civil e Direito de Família. O direito de danos na parentalidade e na conjugalidade. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021. 3 SCHREIBER, Anderson. Depp x Heard e as novas funções da responsabilidade civil. Portal Jota. Publicado em 07/06/2022. 4 Entre nós, a função punitiva é acolhida por substancial parcela da doutrina, dentre os quais Nelson Rosenvald e Ricardo Dal Pizzol, ao passo que ainda é rejeitada por outra relevante parcela, capitaneada por Maria Celina Bodin Moraes e Anderson Schreiber. 5 POLINSKY, Mitchell; SHAVELL, Steven. Punitive damages: an economic analysis. Harvard Law Review. Vol. 111, n. 4, 1998. 6 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009. 7 SHARKEY, Catherine M. Economic Analysis of punitive damages: theory, empirics, and doctrine. New York University Law and Economics Working Papers. Paper 289. 8 SUNSTEIN, Cass (et. al.). Punitive Damages : how juries decide. Chicago: The University of Chicago Press. 2002. 9 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009. 10 Idem. 11 FONSECA, Ricardo Marcelo. Tradições, traduções, traições: diálogos entre culturas jurídicas. História do Direito: RHD. Curitiba, v.1., n.1., 2020.
Em sentido figurado, a "caixa-preta" se refere a qualquer sistema cujo mecanismo de funcionamento interno não é claro ao observador externo. O legislador brasileiro, no art. 402 do código civil, não realiza nenhuma distinção dentro da categoria por ele denominada de "danos emergentes". Os tipos de danos emergentes sofridos pelo credor na hipótese de inadimplemento do contrato, as fórmulas utilizadas para o seu cálculo, bem como a interação desses danos entre si constituem uma verdadeira "caixa-preta", no sentido acima aludido, para a doutrina e a jurisprudência brasileiras. O objetivo deste pequeno ensaio é jogar uma luz sobre o assunto, que será explorado de forma mais profunda em outro trabalho de nossa autoria, desvendando o conteúdo da "caixa-preta". Para entender o assunto, é necessário distinguir entre os danos tipicamente, mas não exclusivamente, sofridos pelo credor alienante e pelo credor adquirente.1 "Alienante" e "adquirente" aqui entendidos em sentido amplo, como aqueles que oferecem e adquirem, respectivamente, quaisquer tipos de bens ou serviços no mercado. Esquematicamente, o dano emergente tipicamente sofrido pelo credor alienante é a perda resultante da realização de uma transação substituta ou, alternativamente, a perda do lucro que ele (credor) esperava obter no contrato inadimplido. Tal lucro não se confunde com o denominado lucro cessante, que é um dano tipicamente - embora não exclusivamente - sofrido pelo credor adquirente.2 As duas fórmulas para a mensuração do dano sofrido pelo credor alienante (perda com a transação substituta e perda do lucro esperado) competem entre si. Em princípio, o credor alienante deve mensurar o seu dano com base no critério da perda resultante da realização de uma transação substituta; sendo-lhe facultado o emprego do critério da perda do lucro nos casos em que a realização de tal transação for inviável, extremamente onerosa ou improvável. Para ilustrar a aplicação dessas normas, vejamos os fatos do caso Lazenby Garages Ltd. v. Wright.3 Wright comprou um BMW usado de Lazenby, um vendedor de automóveis, pela quantia de £ 1.640. No entanto, o comprador mudou de ideia no dia seguinte. Lazenby manteve o carro no seu estande de vendas e, dois meses depois, vendeu o referido carro para outro comprador pelo preço de £ 1.700. Em seguida, Lazenby entrou com um processo na justiça contra Wright para cobrar o lucro que ele havia perdido no contrato inadimplido (£ 315), calculado com base na diferença entre o preço combinado de £ 1.640 e o valor pelo qual Lazenby havia adquirido o carro, £ 1.325. O tribunal britânico julgou improcedente o pedido. O principal motivo da improcedência do pedido é o fato de que o credor não sofreu prejuízos com o inadimplemento do devedor, por ter feito uma transação substituta, vendendo o bem para um terceiro por um preço mais elevado. Assim, o credor obteve não apenas o lucro inicialmente visado (£ 315), mas também um benefício superior ao que ele teria recebido no contrato inadimplido. Portanto, não houve qualquer perda com a realização da transação substituta. E a questão da indenização dos demais danos sofridos pelo credor (vendedor) no caso apresentado (Lazenby Garages Ltd. v. Wright) como o dano resultante da privação da prestação alheia (dinheiro) por dois meses, bem como o dano decorrente da cobrança judicial ou extrajudicial da dívida? Presumivelmente, o benefício adicional obtido pelo credor alienante com a transação substituta (£ 60), quando comparamos tal transação com o benefício que o credor alienante iria receber com base no contrato inadimplido, foi suficiente para compensar os prejuízos sofridos por Lazenby com o atraso de dois meses no recebimento da quantia de dinheiro que lhe era devida pelo comprador inadimplente, bem como os prejuízos decorrentes da cobrança da dívida (compensatio lucri cum damno). Por outro lado, se o credor - Lazenby - tivesse revendido o BMW usado por um preço mais baixo do que aquele combinado com o devedor inadimplente (ou seja, inferior a £ 1.640), ele teria o direito de cobrar indenização pela diferença entre o preço da transação substituta e o preço combinado no contrato inadimplido. Ele poderia cumular a cobrança da indenização desse prejuízo (perda com a realização da transação substituta) com a cobrança da indenização de outros prejuízos (como a perda com o atraso no recebimento do preço e a perda com eventuais cobranças judiciais ou extrajudiciais do preço devido pelo devedor inadimplente). Finalmente, é importante ressaltar que o dano resultante da realização de uma transação substituta é mensurado com base numa transação hipotética (diferença entre o preço combinado no contrato inadimplido e o preço médio pelo qual o credor poderia revender a sua prestação no mercado), sendo admitida a mensuração com base numa transação substituta efetivamente realizada apenas na hipótese: (a) de tal transação gerar um menor dano ao credor do que a transação hipotética; ou (b) na hipótese de tal transação ser considerada razoável nas circunstâncias do caso, ainda que gere um maior dano ao credor, a ser indenizado pelo devedor. O caso Snelling v. Dine4 fornece uma boa ilustração a respeito do emprego da fórmula da perda do lucro esperado. Um comerciante (comprador) encomendou 50 refrigeradores customizados, a serem fabricados por uma empresa (vendedora) especializada na construção desse tipo de equipamento. Ficou combinado entre as partes que o pagamento do preço de cada um daqueles refrigeradores, no valor de $100 por unidade, seria feito na data da entrega de cada unidade. Após a construção de 10 refrigeradores, a vendedora notificou o comprador para informá-lo sobre a disponibilidade de entrega daquelas unidades. O comprador concordou em receber apenas 7 unidades, pagando o seu preço. O comprador se recusou a receber e a pagar pelas outras 3 unidades já fabricadas, bem como anunciou a sua intenção de não receber e pagar pelas outras 40 unidades que ainda precisavam ser construídas. A vendedora então revendeu os 3 refrigeradores já fabricados para terceiros por um preço mais barato do que o preço que havia sido combinado no contrato inadimplido, sofrendo uma perda com a realização dessa transação substituta. Além da indenização desse dano, a vendedora também exigiu a indenização da perda do lucro que ela iria obter no contrato inadimplido com a venda dos 40 refrigeradores restantes. Tal lucro era representado pela diferença entre o preço de venda daquelas 40 unidades e o seu custo variável de construção.5 Por sua vez, nas circunstâncias do caso concreto, foram considerados como elementos desse custo o valor das peças e acessórios necessários para a fabricação dos 40 refrigeradores restantes; acrescido das despesas relacionadas ao trabalho de montagem. Em suma, o custo de fabricação consistia no material e na mão de obra necessários para a montagem dos refrigeradores. Por questões de limitação de espaço, não iremos detalhar alguns pontos do caso acima apresentado. Pelo mesmo motivo, não iremos mostrar como as fórmulas cabíveis ao credor alienante (perda com a transação substituta ou perda do lucro esperado) são afetadas pelos seguintes problemas: (i) casos em que o custo variável de cumprimento para o credor no contrato inadimplido difere do seu custo variável de cumprimento na transação substituta; (ii) inadimplemento antecipado; (iii) perda do volume de vendas que não causa transtornos ao planejamento do credor; (iv) incertezas quanto à duração do contrato. Finalmente, a título de conclusão, é importante destacar algumas questões que sequer foram abordadas nesta coluna, como a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos pelo credor adquirente e a interação entre eles (perda com a transação substituta, custo de complementação e reparo, perda com a diminuição do valor da prestação); a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos por qualquer credor (perda decorrente da privação da prestação alheia, despesas com o recebimento da prestação alheia, perda da prestação conferida pelo credor ao devedor e perda com a cobrança da prestação devida); e a menção aos danos atípicos e seus problemas. Tais questões, e outras não aludidas, serão detalhadas em outro trabalho. ________________ 1 Tal distinção é sugerida, entre outros, por EISENBERG, Melvin Aron. Foundational principles of contract law. New York: Oxford University Press, 2018, p. 189-194, 201-215. 2 O lucro cessante não é considerado, em nossa tradição jurídica, um dano emergente. A respeito dos vários esquemas classificatórios elaborados pelos juristas europeus, após a redescoberta do direito romano, para a categorização dos diversos tipos de danos que o credor poderia sofrer, cf. COING, Helmut. Derecho privado europeo. Madrid: Fundación Cultural del Notariado, 1996, tomo I, p. 553-559 (período do direito comum mais antigo), tomo II, p. 574-577 (século XIX e período das grandes codificações). O lucro cessante é o dano, normalmente sofrido pelo credor adquirente, resultante da incapacidade de tal credor de fazer um uso produtivo da prestação que ele teria direito de receber da outra parte como um bem de capital no sentido da teoria econômica. 3 [1976] 1 W.L.R. 459 (Ct. App.) (U.K.). 4 270 Mass. 501, 170 N.E. 403 (Mass. 1930). 5 O conceito de lucro empregado aqui é utilizado exclusivamente para a mensuração da indenização cabível, não possuindo qualquer relação com o conceito de lucro eventualmente empregado nas normas tributárias. O custo variável, a ser deduzido do preço, é o custo que o credor teria de incorrer para produzir cada unidade adicional do bem ou serviço a ser entregue ao devedor. O custo fixo (e.g., aluguel da loja, salários de empregados permanentes, etc.) não é deduzido do preço; de maneira que o lucro do credor alienante é representado pela diferença entre o preço combinado e o custo variável de tal credor para a realização da sua própria prestação.
A novela Pantanal, enorme sucesso na televisão brasileira, está no ar em uma nova produção da TV Globo trinta e dois anos após sua exibição original na extinta TV Manchete. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, a história tem como centro a personagem Juma, uma mulher que vira onça em uma transfiguração de fazer inveja a Minerva McGonagall. Antes da versão atual, a novela original foi reprisada em 2008 pelo SBT, oportunidade na qual este que vos escreve teve contato com a obra. E esta exibição, realizada pelo canal de Silvio Santos foi editada com cortes e supressões sem a prévia autorização do autor, Benedito Ruy Barbosa, o que nos leva ao objeto desta reflexão. No último dia 31 de maio foi publicado no site do STJ o acórdão de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, da Terceira Turma do tribunal, que decidiu o recurso especial interposto por Benedito Ruy Barbosa na fase de cumprimento de sentença da ação movida por este contra o SBT em razão da violação de direitos do autor pela reprodução da novela com as adaptações não consentidas pelo autor. Anteriormente, no curso da ação de conhecimento, a Terceira Turma do STJ também decidiu a questão em recurso especial interposto por Ruy Barbosa, dando parcial provimento ao REsp 1.558.683 / SP para condenar o SBT apenas ao pagamento de danos extrapatrimoniais a serem arbitrados na instância de origem, expressamente mantendo a improcedência do pedido inicial quanto aos danos materiais. Contudo, em sede de embargos de declaração esclareceu que: "Feitas essas considerações, é de se ressaltar que os critérios para o arbitramento dos danos morais serão apreciados nas instâncias inferiores de acordo com a legislação de regência, observados os elementos orientadores para a reparação integral do dano, abrangendo a efetiva penalização dos infratores, com o objetivo de desestimular a prática ilícita, bem como a adequação do montante indenizatório de acordo com o volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida". Ou seja, o STJ definiu que a reparação integral do dano (função reparatória) abrangeria uma efetiva penalização dos infratores (função punitiva) e deveria levar em consideração o volume econômico da atividade gerado pelo ilícito (função restitutória), tudo isso sob a rubrica de danos extrapatrimoniais que seriam arbitrados pelo Juízo originário no primeiro grau. Daí se extrai um primeiro aspecto importante. O aresto indica uma inclinação da Corte Especial em reconhecer uma polifuncionalidade da responsabilidade civil, contudo, sem a correta distinção dos remédios aplicados ao caso concreto. Sob o manto do princípio da reparação integral concentra todas as soluções funcionais em um só remédio, o reparatório (indenização dos danos extrapatrimoniais). Fica claro a dificuldade do STJ em romper com o paradigma reparatório e acatar as outras funções da responsabilidade civil de modo isoladoi. O segundo aspecto surge no cumprimento de sentença em primeiro grau, em que foi determinado a nomeação de perito para aferir o dano extrapatrimonial que o STJ havia mandado arbitrar. Dessa decisão o SBT recorreu ao TJSP que, através de sua 4ª Câmara de Direito Privado, acolheu o agravo interposto pelo canal e afastou a necessidade de perícia, ressaltando a subjetividade do magistrado na fixação dos danos morais, dado que o STJ havia expressamente rejeitado o pleito de condenação do SBT em danos patrimoniais. Do acórdão do TJSP Ruy Barbosa recorreu ao STJ, afirmando que o título executivo judicial incluiu como critério de quantificação do dano extrapatrimonial elementos econômicos (leia-se materiais), o que fora desconsiderado pelo TJSP. Então, na decisão publicada no REsp 1.983.290/SP, assim como Juma se transforma em onça na novela, também uma figura que tem ganhado destaque nos debates acadêmicos da responsabilidade civil foi transfigurada em dano extrapatrimonial: os ganhos ilícitos ou lucro da intervenção. Na decisão o Ministro Moura Ribeiro, também relator para o acórdão na fase de conhecimento, deu provimento ao recurso de Ruy Barbosa para determinar a realização de perícia para "apurar o quantum indenizatório levando em consideração o volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida", seguindo o que havia já sido apontado nos embargos de declaração no REsp 1.558.683/SP. Continuando, deixou claro que a apuração por perícia do "volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida" tratava-se nada mais, nada menos, que a restituição de ganhos ilícitos (restitutionary damages), típico remédio restitutório que não se confunde com a reparação de danos extrapatrimoniais: "Assim, considerando que escapa das regras normais da experiência um conhecimento adequado acerca dos lucros obtidos pelo SBT com a divulgação (indevida) da "Novela Pantanal", tem-se, de fato, como imprescindível a realização da perícia determinada em primeiro grau de jurisdição para que, levando em conta a observação relativa aos lucros percebidos, seja fixado percentual sobre tal verba que sirva de efetiva recomposição dos danos morais do autor". Votaram com o relator os ministros Ricardo Villas Boas Cueva, Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy Andrighi. Divergiu e foi vencido o Ministro Marco Aurélio Bellizzeii. O que o voto do relator, acolhido no acórdão proferido na fase de execução fixou, portanto, não foram apenas danos morais, mesmo que na decisão exequenda a corte houvesse deferido apenas a indenização de danos extrapatrimoniais. Por uma via transversa, revelou a aplicação de um dos remédios restitutóriosiii (restitutory damagesiv), a indenização restitutória (restitutionary damages), remédio restitutório aplicável em face de ilícitos de origem na Common Law e que "compreende a restituição de uma transferência indevida de valor a partir da fixação de um valor razoável pelo direito violado, em uma única verba ou em forma de royalties"v. Fica isso evidente quando o voto vencedor indica que a perícia deverá apurar os lucros realizados pelo SBT com a exibição indevida da novela para que seja fixado um percentual de participação de Ruy Barbosa nesses lucros (espécie de royalties). Claramente, é a fixação de uma indenização restitutória e não critério de avaliação do dano extrapatrimonial. Se se tratasse apenas de dano extrapatrimonial, o lucro do ofensor seria irrelevante para o seu arbitramento, dado os limites fixados pelo próprio art. 944 do Código Civil ao remédio reparatório. Nesse ponto, com razão, o Ministro Marco Aurélio Bellizze em seu voto vencido destacou que "ao fim e ao cabo, o Magistrado a quo se valerá da análise subjetiva das particularidades do caso para fixar o respectivo valor do dano moral, independentemente do lucro ou prejuízo da emissora obtido com a disponibilização da novela 'Pantanal'". Concordamos com o Ministro Bellizze. A compensação por danos extrapatrimoniais independe da verificação de lucro ou prejuízo por parte do ofensor, devendo, tão somente, ser medida pela extensão do dano na esfera da personalidade do ofendido. A própria utilização de critérios patrimoniais/econômicos é incoerente com a função reparatória quando aplicada a danos extrapatrimoniais. Por sua vez, para boa parte da doutrinavi, sequer se trataria de caso de responsabilidade civil, já que o instituto deveria ser trabalhado através do denominado lucro da intervençãovii, fundamentado no enriquecimento sem causa, uma adaptação do enriquecimento por intromissão do direito alemão para o direito brasileiroviii. Assim, a inclusão dos lucros no dano extrapatrimonial estaria inserindo uma tutela de enriquecimento sem causa na responsabilidade civil. A solução encontrada pelo STJ no caso aqui analisado, ainda que anime aqueles que advogam pela aplicação de remédios contra os lucros ilícitos, traz perturbação quanto à forma de sua realização. Em última análise, significa um elastecimento do conceito de dano extrapatrimonial que é indesejável, pois funcionaliza um interesse existencial para a realização de interesses patrimoniais do ofendido, mesmo que tendo como premissa uma lesão a direitos da personalidade. Trata-se de uma subversão indesejada e que deve ser desencorajada, pois traz o risco de tornar ainda mais complexa a definição dos contornos dessa figura de já difícil definição que são os danos extrapatrimoniais. É preciso separar a onça do ser humano, estabelecer os corretos limites entre os remédios jurídicos que a responsabilidade civil oferece para tutelar a pessoa em sua integralidade. O que o STJ fixou com o acórdão, portanto, corresponde a um remédio restitutório, voltado a tratar da questão dos ganhos ilícitos, incongruentemente escondido sob as vestes do dano extrapatrimonial. Nesse ponto, com o máximo respeito ao voto vencedor e ao entendimento dos Ministros que o acompanharam (posto que civilistas de primeira ordem e merecedores da mais distinta admiração), o voto do Ministro Bellizze, conquanto trate os lucros ilícitos como danos materiais, acerta ao afastá-los da quantificação do dano extrapatrimonial. É preciso tratar da questão dos ganhos ilícitos, isso, contudo, não será alcançado alargando a noção de dano extrapatrimonial e incluindo critérios ontologicamente inadequados para sua quantificação. _____________ i O que no caso se compreende tanto em razão dos limites da lide, já que não houve pedido de condenação em restituição de ganhos ilícitos, quanto da carência de previsão legislativa expressa para realização das funções punitiva e restitutória, o que dificulta sua compreensão e aplicação pelos operadores do direito. ii Do voto divergente do Ministro Bellizze destacamos os seguintes fundamentos: "Ocorre que, data maxima venia, a realização de perícia não serve para o arbitramento de indenização por dano moral , mas apenas para se estabelecer o quantum a ser fixado a título de dano material, o qual, todavia, foi expressamente afastado pela Terceira Turma no REsp 1.558.683/SP". [...] De fato, embora esta egrégia Terceira Turma tenha determinado, no julgamento do aludido recurso especial, que a indenização pelos danos extrapatrimoniais fosse apurada por arbitramento, tal conclusão não implica necessariamente na realização de perícia, a qual só servirá para atrasar o encerramento do processo, pois, ao fim e ao cabo, o Magistrado a quo se valerá da análise subjetiva das particularidades do caso para fixar o respectivo valor do dano moral, independentemente do lucro ou prejuízo da emissora obtido com a disponibilização da novela "Pantanal". [...] Dessa forma, não há razões para que se determine a realização de perícia, visto que não existem critérios objetivos a serem apurados, cabendo ao Juiz a análise das peculiaridades do caso, a fim de encontrar o valor mais adequado para compensar o recorrente pelo abalo moral sofrido. iii Se a decisão do STJ houvesse determinado a remoção de todo o lucro obtido pelo SBT com a exibição da novela estaríamos falando de outro remédio restitutório, a remoção de ganhos ilícitos (disgorgement of profits). Enquanto os restitutionary damages se caracterizam por um give back, revertendo uma transferência indevida de valor conexo ao direito ofendido, o disgorgement of profits tem como função um give up, ou seja, a remoção dos ganhos realizados pelo autor da ofensa. iv No Brasil a figura dos restitutory damages a partir da responsabilidade civil foi pioneiramente abordado por Nelson Rosenvald. Cf. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. v PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2020. p. 283. vi Sendo pioneira a tese de Sérgio Savi no que tange ao lucro da intervenção como espécie de enriquecimento sem causa in SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012. vii Já houve interessante reflexão nesta coluna sobre a possibilidade de se buscar no lucro da intervenção um remédio contra violações de direitos autorais na Fashion Law , em analogia ao caso de Pantanal. Cf. SOARES, Renata Domingues B. M. Responsabilidade Civil e Fashion Law. Migalhas de Responsabilidade Civil, 10 mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 3 jun. 2022. viii CUNHA, Leandro Reinaldo da. Para além dos sonegados, o lucro da intervenção em caso de não colação. Migalhas de Responsabilidade Civil, 29 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em 4. 4 jun. 2022.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais trouxe dispositivos próprios acerca da responsabilidade civil e muito se tem pesquisado sobre o tema, notadamente quanto ao regime ou regimes adotado(s) na LGPD. Entre as previsões de responsabilidade civil na Lei Geral está a do parágrafo único do artigo 44 que estabelece a responsabilidade por violação de segurança que cause danos, "ao deixar de adotar as medidas de segurança" contidas no artigo 46 da mesma lei. Por sua vez, a previsão do artigo 46, que está na seção seguinte à da responsabilidade civil e trata de segurança e sigilo de dados, inaugura o capítulo da Lei sobre segurança e boas práticas com o comando aos agentes de tratamento de dados para agirem adotando medidas capazes de evitar "qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito". Portanto, um assunto que ainda merece ser enfrentado é a figura da responsabilidade civil por tratamento inadequado. Seria uma espécie de responsabilidade civil por ato lícito? No caso de vislumbrada a figura por abuso de direito, há possibilidade de já se inserir no tratamento ilícito, dada previsão do artigo 187 do Código Civil. Importante se rememorar que a seção da Responsabilidade Civil engloba os artigos 42 a 45, sendo que o parágrafo único do artigo 44 assim estabelece: "Responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta lei, der causa ao dano". Nota-se a responsabilização por danos decorrentes da violação de segurança por não adoção de medidas estipuladas no artigo 46 impõe que devem ser realizadas medidas aptas a evitar qualquer forma de "tratamento inadequado ou ilícito", sendo que a não adoção dessa medidas pode acarretar responsabilização. Há, na lei, a determinação para evitar qualquer forma de tratamento ilícito. O que está claro! Todavia, também há - ligada por conjunção alternativa ou - a mesma previsão tocante a tratamentos que, mesmo não sendo ilícitos, sejam inadequados. Ao separar inadequado de ilícito pela conjunção alternativa, a LGPD teria estabelecido que responde por danos decorrentes da violação de segurança dos dados o agente de tratamento de dados que deixar de adotar medidas de segurança aptas a evitarem tratamento inadequado. Isto é, do tratamento inadequado que advierem danos, o agente será responsabilizado ao ressarcimento. Oportuno destacar desde já que a referida normativa não diz o que seria tratamento adequado tampouco inadequado. A bem da verdade, tratamento inadequado é somente mencionado na lei em uma única ocasião: exatamente, a aqui tratada. Para melhor compreensão, é prudente o exame da responsabilidade civil na LGPD como um todo para se particularizar a aqui examinada. A LGPD constitui um diploma legal inspirado (além do Regulamento Geral de Proteção de Dados) no Código de Defesa do Consumidor. E, tal qual o CDC, a Lei Geral cria uma teia interconectada de dispositivos, ligando um princípio a um direito do titular, um fundamento a um conceito e, assim sucessivamente. Nada obstante essa intraconexão normativa, referidos diplomas legais expressamente abrem-se para outros ao estabelecerem que suas previsões não excluem diferentes disposições legais (artigos 7º do CDC e 64 da LGPD), com consequências também na seara da responsabilidade civil. Nesse sentido, o próprio artigo 45 da LGPD faz remissão para o CDC quando estatui a aplicabilidade de normas atinentes à defesa do consumidor em caso de violações de direitos de titulares de dados ocorrem em relações de consumo. Merece anotação que não apenas em relações de consumo poderá haver incidência conjunta da LGPD e do CDC, mas também nas situações jurídicas de consumo, como pode ser o caso de eventual vazamento de dados representando, ao mesmo tempo, um acidente de consumo. O que atrai a incidência do CDC, por força do artigo 17 do Código do Consumidor. Já nos artigos 42 a 44, a LGPD trata especificamente da responsabilidade civil, sem esquecer de outros dispositivos da própria Lei Geral que envolvem a responsabilidade civil, como o princípio da responsabilização e prestação de contas (artigo 6º, X), associando a não observância de adoção e realização de deveres de cuidado e transparência com as consequências danosas e os deveres de ressarcimento. E é destes dispositivos que nascem as teorias sobre os regimes estabelecidos, como é o caso da denominada responsabilidade civil proativa1, da responsabilidade civil objetiva pelo risco2, objetiva por falha nos deveres de segurança3 e, ainda, da responsabilidade subjetiva4, bem como de posicionamentos que compreendem pela coexistência dos regimes subjetivo e objetivo na LGPD5. Ou, ainda, uma responsabilidade civil objetiva por violação dos deveres de segurança agregada6 a um dever de proatividade e, pois de prevenção de danos. No tocante à responsabilidade civil por tratamento inadequado, não há7 exames pela doutrina ou jurisprudência. De toda forma, nota-se a previsão de responsabilidade civil por não adoção de medidas capazes de prevenir tratamento inadequado8. Acrescente-se que a LGPD igualmente impõe responsabilização para tratamento irregular que cause danos (caput do artigo 44). Assim, haveria as figuras de tratamento ilícito, tratamento irregular e tratamento inadequado. O primeiro acontece quando há tratamento em violação à legislação de proteção de dados, já o irregular "quando deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar", nos termos do mencionado artigo 44. Examina-se, então, o tratamento inadequado, sendo que não há previsão expressa sobre tratamento adequado9 (tampouco inadequado). Estaria a LGPD, ao distinguir tratamento inadequado de ilícito, dispondo sobre responsabilidade civil por ato lícito? Ou, ainda, seria, tal qual o CDC, um diverso regime de responsabilidade civil para além dos especificamente estabelecidos? Isso porque o CDC disciplina a responsabilidade civil pelo fato do produto ou do serviço, como também pelo vício. Além destes, há o direito básico do consumidor de prevenção e reparação de danos, sendo considerado como um terceiro regime de responsabilidade civil, qual seja, uma cláusula geral de responsabilidade civil no CDC10. Seria, assim, uma cláusula geral de responsabilidade civil na LGPD a responsabilidade civil por tratamento inadequado? O que poderia estar em consonância com os princípios expressos no referido diploma legal, notadamente com os princípios da prevenção e da responsabilização e prestação de contas. Nesse caso, na presença de danos injustos e ressarcíveis decorrentes de situações que envolvam tratamento de dados pessoais, sem que ocorra específica incidência de um dos artigos da LGPD, se poderia estar diante do dever de ressarcimento por tratamento inadequado de dados pessoais, ainda que não haja ilicitude. Com efeito, a Lei Geral traz campo fértil aos estudos sobre responsabilidade civil. De forma que o presente texto compartilha dúvidas para, quem sabe, lançar novas sementes para investigações ainda necessárias. ____________ 1 BODIN DE MORAES, Maria Celina; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGPD. Cadernos Adenauer xx (2019), nº 3. Proteção de dados pessoais: privacidade versus avanço tecnológico. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, outubro 2019. 2 MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Compliance digital e responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 263-297. 3 CRAVO, Daniela Copetti; KESSLER, Daniela Seadi; DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Responsabilidade Civil na portabilidade de dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 185-201. Nesse sentido: "Logo, sejam os "vazamentos" considerados espécie do gênero "incidente de segurança" - como sugere a ANPD - ou uma categoria sui generis de ilícito relativo a dados pessoais, fato é que sua ocorrência será determinada pela concretude danosa de natureza patrimonial, moral, individual ou coletiva (art. 42), catalisada pela irregularidade da atividade de tratamento, cuja aferição não deverá se pautar por qualquer espécie de culpa, mas pela identificação casuística das situações acidentais ou ilícitas (art. 46) que permitam concluir, a partir de circunstâncias objetivas (art. 44, I a III), que o tratamento realizado, em qualquer de suas etapas, até mesmo após o término (art. 47), não oferece a segurança esperada pelo titular (arts. 44, caput, e 49), e desde que o nexo causal não seja excepcionalmente afastado (art. 43)." FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados/351388/o-que-e-afinal-um-vazamento-de-dados 4 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Término do Tratamento de Dados. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato coord. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro [livro eletrônico] / 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 5 SCHREIBER, Anderson. Responsabilidade Civil na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In: DONEDA, Danilo et al. Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 330-349. 6 MAIMONE, Flávio Henrique Caetano de Paula. Responsabilidade civil na LGPD: Efetividade na proteção de dados pessoais. 1ª ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. 7 Ao menos, não foi encontrada fonte em sentido diverso. 8 Ou de tratamento ilícito, fazendo uma distinção entre esses dois tratamentos que podem ensejar responsabilização: inadequado ou ilícito. 9 A Lei Geral refere-se ao termo (in)adequado noutros dispositivos, cujas menções não parecem guardar relação com o "tratamento inadequado". Destacamos, ainda, que a LGPD impõe o cumprimento do princípio da adequação (artigo 6º, II), pelo qual deve haver, simultaneamente, compatibilidade entre as atividades de tratamento de dados e o princípio da finalidade e, ainda, conformidade destas atividades com o contexto do tratamento. Se pensarmos que tratamento inadequado seria um tratamento que viole referido princípio, ao que parece, estaremos declarando que uma violação a esse princípio seria diferente de tratamentos que violem os demais princípios da Lei, sendo que violação a princípio em si (que causar danos) enseja responsabilidade por tratamento ilícito. Reforçamos, assim, não enxergar uma específica responsabilidade civil por violação a um específico princípio, como seria uma violação ao princípio da adequação. Apenas destacamos referido princípio pela nomenclatura utilizada no diploma legal, todavia não entendemos que seja essa a resposta para o exame aqui iniciado. 10 BESSA, Leonardo Roscoe. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
É atribuida à tradição jurídica anglo-americana (common law) a criação do instituto do  punitive damages, definidos como "danos, diferentes daqueles do tipo compensatórios ou nominais, impostos contra uma pessoa para puni-la em razão de sua conduta ultrajante e impedir a ela e a terceiros de incorrerem na mesma conduta no futuro" (tradução nossa)1 (BRUGGGEMAN, 2010). No instituto dos punitive damages há a previsão de sujeição do ofensor a um dever de indenizar em quantia superior ao dano,  resposta retaliatória a conduta ilícita, não se tratando de uma indenização compensatória. Nos punitive damages, o valor estabelecido é disposto distintamente do qunatum reparatório e/ou compensatório,  respondendo como forma de sanção contra o comportamento lesivo caracterizado por grave negligência, malícia ou opressão, ou seja, ato ilícito. Por sinal, valor é substancialmente maior do que seria necessário para compensar o dano sofrido (punição e prevenção punição / MARTINS-COSTA, 2005). Os punitive damages, portanto,  têm como objetivo: educação; retribuição; reforço da lei; prevenção pela exemplaridade e compensação (OWEN, 1994). Na jurisidição brasileira a denominado como Teoria do valor do desestímulo, pois visa inibir certas práticas de forma difusa e reiterada (Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimento no agravo de instrumento 850.273-BA. Quarta Turma. Relator: Desembargador Honildo Amaral de Mello Castro (convocado do Tribunal de Justiça do Amapá). Data de julgamento: 03 ago. 2010. Data de publicação: 24 ago. 2010). Logo, mesmo se considerando a exigência da tradição jurídica liberal do Direito do "tripé" da ilicitude, ou seja, causa (culpa), dano e nexo causal para a caracterização da responsabilidade, deve-se atentar também contra a violação do direito em si, o dano ao Direito, ao sistema de tutelas e, consequentemente as perdas patrimoniais e extrapatrimoniais (morais/existenciais) da vítima, conforme a prática jurídica da "common law", por sinal de inspiração jus romana clássica (ROSENVALD, 2017). Citando Jhering (2001), "também as leis do Estado, a ordem jurídica e a lei moral. Será que o devedor, que discorda do preço estabelecido com o vendedor, o locador, que não cumpre o contrato, o mandatário, que trai minha confiança, enganando-me, não fazem o mesmo?" Pois bem, o equívoco é afirmar que instituto jurírdco dos punitive damages ou da responsabilidade "sem dano", seria alienígena ao sistema romano-germânico. Constrariamente, o punibilidade em resposta ao ilicito civil estave presente seja na Lex Duodecimum Tabularum, na Lex Aquilia de damno e com nuancas no Direito Justinianeu. A ênfase no delito dano inicia-se na Baixa Idade Média, no Direito Canônico e influenciou o Direito Moderno Liberal, atendendo a reivindicações emancipatórias, da mínima intervenção do Estado na vida privada e da proteção dos direitos à propriedade e de propriedade (relacionadas à liberdade material e segurança jurídica). A tradição jurídica romana e a função punitiva da responsabilidade civil O termo resposanbilidade civil, advém da termo latino spondeo/spondere, que na tradição jurídica latina, não era associada à sanção ou à coercitividade retaliatória/reparatória, mas a uma medida solene (fas), associada a contratos verbais (direito quiritário), sujeitando o devedor ao credor, após a resposta de uma pergunta: Spondesne (garatntes)? Spondo (garanto)! A responsabilidade no direito romano estava, a partir do século II DC,  associada ao termo Obligatio, aquilo que se esta ligado, a consequência coercitiva do descumprimento de um Debitum (nexum era entendido como sujeição, o iussum - dever), ou seja, a obrigação quando descumprida gerava respostas coercitivas exigindo o cumprimento e alcançando seu patrimônio. No ius civile romanae, inicialmente, se reconhecia em sentido amplo a Iniuria, ou ofensa, não apenas na dimensão reparatória, mas na perspectiva punitivo-pedagógica. Por sinal, o intuito primeiro era responder ao ilícito. Entende-se, portanto, que a sanção aos delitos privados, possuía natureza de pena privada. No direito privado romano, reconhecia-se três tipos de danos: a) furtum et rapina, danos resultantes de apropriação indevida da propriedade; b) iniuriae, danos causados contra a pessoa; c) o damnum iniuria datum, prejuízos contra propriedade corpórea; e d) dolus et metus, danos resultantes de atos maliciosos (dolosos). É importante salientar que o termo iniuria era tratado de forma ampla, ou seja, qualquer forma de ofensa, patrimonial ou pessoal, ou de forma específica, restringindo-se apenas as questões de ordem moral. Sobre a iniuria stricta, reconhecida como uma delictum maleficium, era a modalidade de ofensa instramissível e intransferível, tendo dimensões não somente morais, mas patrimoniais, cuja a punição tinha uma dimensão incialmente retaliatória, mas visando uma compensação financeira ao agredido. Já a iniuria lata perseguia qualquer forma de dano, buscando pela aestimatio, não só a punição do agente, mas a valoração pecuniária da ofensa, o que já era previsto na Lex Duodecimum Tabularum, cumulativamente as penas de membrum ruptum e fractum ( já existia uma previsão primordial do in damnoe). Inclusive já era previsto na Lei das Doze Tábuas a actio pauperie, a actio de pastus pecoris e a actio de arboribus succissis, que será recepcionado pela Lei Aquilia sobre o dano. É importante ratificar que o resposta jurídica ao dano reporta-se a faz, a um direito religioso, sendo a sanção um sacrifício, um ato sacro de purgação ou expiação, ritualizado. Com a Lex Aqulia ad damnum (287 AC), a punição assume especificamente uma proteção ao patrimônio e a obrigatoriedade da compensação (simultaneamente /cumulativamente). Reconheceu-se o damnum iniuria datum, que fundamentava a responsabilização (aquiliana), na produção culposa de dano em coisa alheia.  O cálculo da pena era pecuniário e voltado para reparação ou compensação dos danos sofridos por proprietários (corpore corporis) e não proprietários (jurisprudencialmente non corpore sed corporis), porém o fim da sanção era atingir o comportamento antijurídico. Em casos de danos causados por coisas caidas, a actio de effusis et dejectis, previa a reparação e conjugada punição. Considerando a cláusula penal, ou stipulatio poenoe, o intuito era reforçar o cumprimento com uma advertencia de punibilidade patrimonial pela mensuração prévia da indenização. A stipulatio, portanto, por um pactum, estabelecia uma obligatio, sendo o credor protegido pela actio certae creditae pecuniae e o devedor sujeito ao actio bonae fidei. Logo, na responsabilidade era uma medida de condenação pecuniária determinada pelo juiz ou pelo credor. O cálculo era objetivo, considerando o valor da res (quanti e a res est), na perspectiva das perdas, o valor considerado pelo credor (id quod interest) e a apreciação do juizo (iudicia bonae fidei), resguardando a equidade. Considerando novamente a Lex Aquilia, mesmo sendo o marco da patrimonialização do direito romano, o intuito não era ressarcir, mas punir, não se considerando propriamente o valor de mercado, mas uma estimativa  de maior preço no ano anterior ou nos trinta dias anteriores ao acometimento do dano. Logo, a condenação poderia ser superior ao prejuizo em si. Com o colapso do Império Romano Ocidental, observa-se um profundo retrocesso no direito privado, sujeintando-se a um primordial direito consuetudinário e retaliatório. Na baixa Idade Média, com a restauração das rotas comerciais entre Europa e Oriente, por via do Mediterrrãneo, o Direito Romano e as noções de ilicitude civil e responsabilização ressurgem, por via dos glosadores, mas sob influência do Direito Justinianeu, que associava o delito aquiliano (ou privado) ao delito de dano (a reparação, e não mais  punição, é o teleos da responsabilidade). A fórmula id quod interest é aprimorada por meio do reconhecimento de duas referências de cálculo: o dano emergente (damnus emergens) e o lucro cessante (lucrum cessans). O modelo reparatório de responsabilidade, desenvolvido no direito canônico, será a base para o direitos liberal, atendendo sua bandeira emancipatória e securitária. Isso já se observa no século XVII, com a construção do conceito abstrato e uniforme de Dano, que substituiu o modelo fragmentário.  A reposnsabilidade assume uma função prioritariamente reparatória em uma acepção amplissima de de Dano. O Código Civil Francês  de 1804, a responsabilidade se reduz na consequência do fato humano culposo causador do dano, tendo como fim a reparação (art.1382). Há o reconhecimento da cláusula geral do Dano (categoria única e abstrata) no intuito de combater, em princípio, qualquer deminutio patrimonial. Logo, o dano ílcito e o dano culposo e indenizável. Observa-se, portanto, que as medidas punitivas tornaram-se exclusivas do direito penal, objeto de tutela da ordem pública. Responsabilidade civil e a modernidade liberal: emancipação, segurança jurídica e patrimonialidade. A se abordar o termo Modernidade, o que se expõe é um projeto filosófico e fenômeno sociocultural com dimensões civilizacionais.  A Modernidade como expressão do mundo da vida (Lebenswelt, mundo sociocultural), repositório de sentidos e símbolos compartilhados ("consciência coletiva"). A Modernidade é, portanto, um conjunto de valores substanciais e símbolos vinculados a uma forma de vida específica e formados no processo histórico-social ocidental, desenvolvendo-se como projeto intelectual de ruptura, de contestação de uma ordem político-econômico-moral preexistente, tendo como bandeira a emancipação, a autenticidade do indivíduo pelo livre-arbítrio, pela da autodeterminação do homem (soberania decisória pessoal), como forma de alcance da autossatisfação (patrimonial e extrapatrimonial). Neste sentido, o homem é protagonista no processo de ruptura e modificação de valores. A emancipação pressupõe pluralidade, a sujeição da coletividade à autonomia, a transição da organização coletiva comunitária em societária, desierarquizada e comutativa. A sociedade política como sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. O "tripé" principiológico da modernidade liberal (emancipação, pluralidade e secularidade) pressupõe a formação de um Estado de Direito e um sistema de tutelas fundamentais. No caso do direito privado que visa garantir autenticidade/dignidade da pessoa pelas vias dos direitos de personalidade; no exercício negocial e familiar, a mínima intervenção dos Estado; e a liberalidade na constituição patrimonial, com segurança na conservação. Nos espaços privados, a liberdade é um atributo natural ao homem, justificado por leis morais racionais universais. O exercício da facultas agendi  sujeita-se a requisitos racionais-procedimentais decisórios, viabilizando o exercício da autonomia. Enfatizando, a autonomia da vontade manifesta-se em três momentos: pelo livre arbítrio o homem individualiza suas escolhas, juízos e projetos de vida; pela autodeterminação a vontade se faz em ação; pela autorrealização, o homem busca pela sua própria ação o seu sustento, a sua autonomia material, ou seja, a ação como trabalho. Porém, a autenticidade decisória (autonomia), pressupõe sociabilidade/alteridade. Logo, há o imperativo moral de sujeição da liberdade à responsabilidade. A autonomia da vontade, comporta o sentido de dever. Porém, nos espaços privados, o preceito moral racional da autorresponsabilidade é exclusivamente moral, não tendo uma repercussão cogente de natureza punitiva. A heteronomia jurídica, que tem como fim a uniformização de condutas, acaba, no direito privado, por afiançar a supremacia decisória nos espaços particulares e a segurança jurídica resultante da liberdade material (obtenção de bens). A ponte entre a vontade e a ação se encontra na patrimonialidade/ propriedade. A propriedade privada é tratada como a extensão do direito à liberdade. A liberdade no exercício do trabalho/empreendimento, que se objetiva no produto ou no recurso (a moeda como unidade de valor), saciando as necessidades essenciais, segurança pessoal e acúmulo de riquezas. Sem patrimônio não há o que falar de um futuro garantido (JHERING, 2002). Ao se falar, assim, do direito à propriedade, é necessária a divisão em duas espécies: o Direito à propriedade (direito dinâmico e imediato/ obtenção) e o Direito de propriedade (direito estático e mediato / conservação). O direito de propriedade consiste na manutenção daquilo que foi adquirido. As responsabilidades só são aventadas no direito privado liberal-continental- europeu, quando há o atentado intencional contra bens e direitos do outro-eu, no intuito da reparação/compensação, não como sanção/cerceamento deliberativo. Daí a percepção que ilícito civil só existe com a existência de culpa, dano e nexo causal. A responsabilidade se legitima como garantidora da Segurança Jurídica, na certeza, clareza, objetividade e estabilidade (amparado pela força coercitiva de natureza indenizatória), sem se tornar meio de colonização e opressão da autonomia pessoa e da intersubjetividade.  ALMEIDA, José Luiz Gavião de (Org.) Temas atuais de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2007. ANDRADE, André Gustavo Correa de. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. 18ª ed. rev. - Rio de Janeiro: Forense, 2018 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. Revista dos Tribunais, no 32, 1993 BRAGA NETTO, Felipe et al. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. BRUGGGEMAN, Véronique. Compensating catastrophe victims: A comparative law and economics approach. Holanda: Kluwer Law International, 2010. CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade civil sem dano: uma análise crítica. São Paulo: Atlas, 2014. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A punição na responsabilidade civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: WMF, Martins Fontes, 2012, vol. 2. IHERING, Rudolph. A luta pelo direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001 JUSTO. A. Santos. Breviário de direito privado romano.  Coimbra: Editora Coimbra, 2010 OWEN, David G. A punitive damages overview: Functions, problems and reform. Disponível em . Acesso em: 12 jan. 2018. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz et al (Coords.). Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem à Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. ROSENVALD, Nelson. Uma reviravolta na responsabilidade civil. Disponível aqui, consulta em 11/05/2022. TAYLOR, Charles. A secular age. Harvard: Belknap Press, 2007 Walzer, Michael. Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes _______________ 1 No original, em inglês: "[...] damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a person to punish him for his outrageous conduct and deter him and others like him from similar conduct in the future".
A noção do dano indireto ou reflexo ainda é objeto de discussão pela doutrina brasileira e seu sentido poderá variar conforme o ordenamento jurídico analisado. Durante a evolução do regime jurídico do common law, no século XVIII, a reparação do ilícito (Torts), na perspectiva do dano direto, era tratada como trespass e o exemplo clássico era dado pelo ato de alguém atirar uma pedra atingindo outrem; o dano indireto, por sua vez, denominado trespass on the casei, cuidava da ausência de uma ação, a exemplo de alguém que tropeçava em um bastão deixado no chão e vinha a se ferir. Em síntese, os exemplos tratavam de danos provocados por ação, na modalidade direta, e danos decorrentes da negligência do ofensor, na modalidade indireta.ii     Nos sistemas romano-germânicos, o dano indireto tem seguido outras linhas e sentidos e houve certa resistência quanto à sua aplicação. Na França, por exemplo, Geneviève Viney ressalta a evolução e o reconhecimento de determinada categoria de danos que ultrapassam os danos sobre a vítima, atingindo outras pessoas a ela relacionadas, por isso conhecidos como danos por ricochete (dommage par ricochet). O dano por ricochete é identificado especialmente em decisões do final do século XIX e reiteradas no século XX, em que há o reconhecimento aos parentes da vítima de uma indenização de  ordem moral (préjudice d'affection), atrelada especialmente às situações em que há homicídio ou lesão grave.iii Portanto, o dano indireto aqui verificado, diferentemente da situação indicada para os casos do common law,  não trata de situações de negligência, mas de danos provocados à esfera própria e pessoal de um terceiro vinculado à vítima do dano por afeição e parentesco. No Brasil, a divisão e a noção do dano direto e indireto não apresentam propriamente um consenso, contudo pode-se considerar que, ao menos no estágio inicial do desenvolvimento da matéria, há semelhança parcial entre o conceito brasileiro e aquele presente no regime civil francês. Tradicionalmente, são indicados como danos indenizáveis, em conformidade com o art. 403 do CC, aqueles relacionados direta e imediatamente com o fato gerador do prejuízo.  Trata-se da imediatidade do nexo causal. Logo, como justificar o dano indireto como indenizável nesse contexto?iv Rafael Peteffi da Silva oferece uma noção do dano indireto ou reflexo ressaltando-o como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.v Ocorre que um mesmo fato, provocado por ato ou omissão do agente infrator, poderá repercutir em danos de natureza diversa (danos emergentes, lucros cessantes, dano existencial, dano moral, entre outros) na esfera própria de pessoa distinta da vítima inicial, mas sempre preservado o liame jurídico com o dano suportado pela primeira vítima. Logo, o lesado indireto apresenta dano próprio que é consequência do ilícito provocado pelo ofensor à vítima (lesado direto). É dano reflexo, pois atinge imediatamente um primeiro sujeito e indiretamente alcança os interesses dignos de proteção de um segundo sujeito lesado, sendo este vinculado àquele,vi mas não há vínculo prévio em relação ao ofensor e ao lesado indireto. A materialização do vínculo, consistente no dever de reparar, surge somente a partir do momento em que há a constatação do dano suportado pelo lesado inicial, com reflexos (de ordem extrapatrimonial e patrimonial) sobre o lesado indireto. O liame jurídico dessa triangulação, portanto, justifica-se pelas teorias sobre o nexo de causalidade e, entre elas, ressaltamos o fundamento da subteoria da causalidade necessária, como um desdobramento da teoria da causalidade direta e imediata que se encontra expressa no art. 403 do CCB. A subteoria em questão foi atribuída a Charles Dumoulin na obra de Agostinho Alvim, e, pela referida subteoria, admite-se que a causa próxima e a remota possam ser justificativas do dever de indenizar pelo agente ofensor, desde que, no segundo caso, haja a permanência de sua relação direta com o dano.vii Logo, se o dano indireto é essencialmente decorrente da primeira relação jurídica geradora do dever de reparar - constituída pelos danos que a vítima sofre em virtude da ação ou omissão do ofensor -, a causa é única e direta, o que justifica o dever de reparar na segunda relação jurídica, não raras vezes, de consequência subsequente à primeira, constituída pelos danos que recaem sobre a pessoa distinta da vítima inicial, mas que com ela se encontra conectada. Atualmente, o dano indireto ou reflexo (ricochete) é tradicionalmente apontado na hipótese tratada pelo art. 948 (incisos I e II) do Código Reale, de modo semelhante à previsão contida no art. 1.537 (incisos I e II) do Código Beviláqua, voltada para os casos em que ofensor, responsável pelo homicídio da vítima, ficava obrigado à prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, sem prejuízo do pagamento das despesas com o tratamento da vítima, funeral e luto da família. Todavia, essa compreensão se encontra atualmente ampliada com contemporizações dadas pela doutrinária e decisões judiciais dos tribunais. É o que justifica o Enunciado n.º 560 da VI Jornada de Direito Civil do CJF ao afirmar que, "no plano patrimonial, a manifestação do dano reflexo ou por ricochete não se restringe às hipóteses previstas no art. 948 do Código Civil". Quanto ao tema, podem-se cogitar como dano patrimonial reflexo as despesas que uma família necessita realizar para adaptação do lar, ou mesmo mudança de residência, a fim de melhorar a vivência do parente ou amigo vitimado em acidente de trânsito com sequela grave e irreversível. Mesmo assim, trata-se de uma matéria que necessita de cautelosa construção no Brasil, sobretudo para compreender a noção do dano indireto indenizável no contexto que extrapola as situações de morte e lesão corporal grave com reflexos de danos patrimonial e extrapatrimonial na esfera dos lesados indiretos que se vinculam à vítima (pessoa natural) por elos assistenciais ou afetivos. Daí a relevância dos estudos e das pesquisas sobre as hipóteses de ressarcimento de dano indireto ou reflexo. Nessa perspectiva, não é simples encontrar decisões nesse sentido no Brasil. Isso porque a noção de dano indireto patrimonial não guarda um sentido comum e único nas decisões judiciais (acompanhando a ausência de uniformidade da doutrina). Na recente decisão da 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 50000521920198210022, com a relatoria do Desembargador Carlos Eduardo Richinitti, julgado em 27 de abril de 2022, notamos situação fática que, inicialmente, poderia auxiliar na compreensão da modalidade de dano reflexo patrimonial indenizável, não vinculado à vítima, como pessoa natural. Na situação fática, o dano ambiental consistiu no derramamento acidental de ácido sulfúrico pelo Navio Bahamas, atracado no Porto de Rio Grande, sendo atingido o estuário da Laguna dos Patos. O dano imediato foi ao meio ambiente, compreendido como direito difuso ao meio ambiente equilibrado, reconhecidos em ação civil pública precedente, com a condenação da empresa adquirente do produto químico, entre outras, na cadeia de transporte, à indenização aplicável. Além disso, dada a impossibilidade de pesca no local, com prejuízos às empresas do lugar e aos pescadores, bem como à população da região, reconheceu-se, em ação de indenização individual, o ressarcimento dos danos materiais indiretos aos pescadores que tiveram seus rendimentos afetados pelo acidente ambiental.viii A decisão indica a teoria do risco integral a mitigar exigências relacionadas ao nexo de causalidade e aponta a responsabilidade da tripulação e do comandante do navio no caso, o que poderia levar à revisão do nexo de causalidade até aqui exposto, com a consideração do dano direto na perspectiva da cadeia de prejuízo subsequente (ou seja o dano imediato inclui os danos ao meio ambiente e aos pescadores). De todo modo, duas decisões são apresentadas como justificativas do Enunciado supracitado. A primeira, da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconheceu-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos.ix A segunda decisão, da 7.ª câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0159983-31.2006.8.26.0000, com relatoria da Desembargadora Constança Gonzaga, julgado em 26 de maio de 2011, condenou instituição de ensino particular ao ressarcimento de dano patrimonial indireto ao Estado, pelo furto do fardamento de um soldado (integrante do corpo de bombeiros do Estado), que se encontrava no interior de veículo parado em estacionamento ofertado pela instituição.x Esteja, portanto, o leitor prevenido de que a identificação do dano como indireto, para além do exemplo simples e tradicional (art. 948 do CC), como favorece o enunciado em comento, é frequentemente uma questão em debate, demandando aprofundamento técnico na designação de certo dano como direto e outro, indireto. De todo modo, ainda que a importância do tema mereça desenvolvimento detido, o que não será possível nestas breves linhas, observa-se cada vez mais a indicação da expressão "dano indireto" em cláusulas que visam estabelecer limites indenizatórios em relações civis e empresariais (habitualmente precedidas de negociação), o que tem sido reconhecido como válido por decisões judiciaisxi e que, atualmente, encontra reforço nos incisos I a III, além do caput do art. 421-A do CCB, incluído pela lei 13.874/19. Tais cláusulas, que versam sobre direitos disponíveis, não incluem os casos de responsabilidade por culpa grave e dolo, sendo sua aplicação restrita aos contratantes em situação de paridade no âmbito da responsabilidade contratual, permanecendo resguardado o terceiro lesado que está amparado na responsabilidade extracontratual.   __________________ i GRAMSTRUP, Erik. O 'Tort' anglo-saxão e norte-americano, in da Estrutura à função na responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) a professor Renan Lotufo. Coord. Alexandre Guerra. [et. al.], Indaiatuba: Foco, 2021, p.532. ii TESAURO, Paolo; RECCHIA, Giorgio. Origini ed evoluzione del modelo del "torts". In: MACIOCE Francesco (a cura di). La responsabilitità civile nei sistemi di common law. Padova: Cedam, 1989. v. I, p. 143 e 147. iii VINEY, Geneviève. Traité de droit civil: introduction à la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 1989. p. 150-151. iv ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 341. v SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e  de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul./dez. 2012. vi ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil cit., p. 402. vii ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jurídica e universitária, 1965, p. 338-339. viii TJRS, 9.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 50000521920198210022, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 27.04.2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2022. ix STJ, 4.ª Turma, REsp n.º 753.512/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, relator para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 16.03.2010, DJe 10.08.2010. Disponível aqui. Acesso 30.05.2022. x TJSP,  7.ª Câmara de Direito Público, Foro de Marília - 5.ª Vara Cível, Apelação Cível n.º 0159983-31.2006.8.26.0000, Rel. Constança Gonzaga, j. 26.05.2011, registro 1.º.06.2011. xi Nessa linha: TJMG, 14.ª Câmara Cível, Apelação Cível  n.º 1.0024.13.304475-0/001, Rel. Des. Cláudia Maia, j. 27.04.2017, publicação da súmula em 05.05.2017.
Diante do surgimento e da ascensão da internet, destacou-se uma nova categoria de profissionais - a dos influenciadores digitais -, que são os maiores difusores de produtos ou serviços de diversas marcas, visto que são acompanhados diariamente por milhares de seguidores. Em apenas um "clique" milhares de potenciais consumidores são alcançados, público que dificilmente seria atingido por outro meio ou canal de comunicação. Os influenciadores digitais se utilizam do seu forte poder de persuasão junto ao público para a venda de produtos e serviços, e sua influência independe do número de seguidores que possuem, pois ela é medida através do engajamento dos seus seguidores com o conteúdo postado. Por essa razão, têm sido cada vez mais responsabilizados por prejuízos experimentados por consumidores insatisfeitos com os produtos e serviços adquiridos e que não atenderam às suas expectativas. Um exemplo disso foi a informação veiculada pelo portal do UOL notícias, de que conhecidos influenciadores como Rafa Kalimann, Jojo Toddynho, Luisa Sonza, Carla Diaz e outros, em um total de 21, foram processados, em razão da suposta propaganda enganosa de um iPhone. Os referidos influenciadores acabaram sendo citados no processo movido pelo consumidor, que alega não ter recebido os dois celulares que teria comprado. O consumidor afirma que somente se sentiu confiante para comprar com a empresa em razão da credibilidade dos influenciadores que estavam fazendo a propaganda, razão pela qual entendeu que eles também seriam responsáveis pelos prejuízos e danos sofridos, pois foram as propagandas informando sobre a solidez e confiabilidade da empresa nas redes sociais que o fizeram crer que a fornecedora do produto era confiável e a entrega do produto seria realizada.1   O caso aconteceu em 2018 e a ação tramita na 4ª Vara Cível de Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Tal fato nos leva a questionar: Qual é o limite da responsabilidade desses influenciadores digitais pelas ações publicitárias veiculadas em suas redes sociais? Pode-se dizer que os influenciadores digitais são indivíduos que utilizam seu carisma e grande poder de persuasão para incentivar novos hábitos de consumo por meio de produção de conteúdo próprio e fomentar o consumo de produtos e serviços. Segundo a plataforma estadunidense, Insights for Professionals, os microinfluenciadores não são celebridades, mas podem atuar de maneira mais eficaz que muitos perfis famosos. Para Gabriel Weimann, presidente do Departamento de Comunicação e professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Haifa, o influenciador pode ser definido como: "usuário que tem a capacidade de persuadir uma rede de contatos por meio da propagação de informações, exercendo uma espécie de autoridade, permitindo que suas mensagens sejam transmitidas de forma mais rápida e com maior credibilidade"2 Portanto, influenciadores digitais são indivíduos que exercem demasiada influência sobre um determinado público e, através de diálogos informais com seus seguidores, tem o poder de influenciar a mudança de opiniões e padrões comportamentais, pois eles possuem a ideia, a impressão de que os influenciadores são indivíduos mais acessíveis, próximos a eles, já que são alcançados por um meio informal e, até há pouco tempo, pouco tradicional, o que muitas vezes faz com que percam a percepção do que é publicidade e o que é natural. Assim, a contratação dos influencers tornou-se uma alternativa para empresas que apostam que o público-alvo de divulgação está justamente nos perfis desses criadores de conteúdo, e não estão errados. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Qualibest, os influenciadores digitais são a segunda fonte de informações para a tomada de decisão na compra de um produto, perdendo apenas para amigos e parentes.3 . Analisando isso, percebe-se que os influenciadores digitais estabelecem com seus seguidores uma relação de consumo conexa à relação principal, atuando assim como "ajudantes" para que esta última aconteça, pois é certo que sem a divulgação dos influenciadores digitais, as marcas teriam mais dificuldade para alcançar um grande público, motivo pelo qual a utilização dessas personalidades como seus porta-vozes têm se tornado cada vez mais comum. Sendo assim, na relação de consumo entre a empresa fornecedora do produto e/ou serviço divulgado e o consumidor atraído pela credibilidade da celebridade que divulga a propaganda nas redes sociais, os influencers digitais podem ser enquadrados no conceito de fornecedor por equiparação, devido à criação de conteúdo, facilitação da comercialização e ampla divulgação dos produtos e serviços de consumo realizados por eles, atividades que lhes geram lucro. No fornecimento por equiparação, a relação de consumo conexa contamina a relação principal, que pode ser de consumo, e atrai a incidência do arcabouço normativo consumerista. Claudia Lima Marques resumiu a teoria do fornecedor equiparado, definindo-o como: "aquele terceiro na relação de consumo, um terceiro apenas intermediário ou ajudante da relação de consumo principal, mas que atua frente a um consumidor ou a um grupo de consumidores como se fornecedor fosse"4 Basicamente, o fornecedor por equiparação seria um terceiro, que serve como ajudante na aproximação entre as marcas e os consumidores para que a relação principal entre consumidor e fornecedor se realize, atuando perante aquele - no caso dos influencers, atuando perante os seguidores - como se fornecedor fosse. O intermediário seria o responsável pela relação conexa à principal, por possuir uma espécie de poder de influência na relação com o consumidor, como é o caso dos influenciadores digitais. Ao enquadrar o influencer como fornecedor por equiparação, ele se torna parte integrante da cadeia produtiva de consumo e, ao ter uma atuação desregrada, causando prejuízos ao consumidor, ofendendo os princípios da boa-fé objetiva, da confiança e da função social dos contratos, deve ser responsabilizado de forma objetiva. Dessa forma, à luz do artigo 7º, parágrafo único, do CDC, havendo mais de um agente envolvido na cadeia de consumo, todos responderão solidariamente pela reparação do dano, sendo que a responsabilidade dos agentes envolvidos na atividade de colocação de produto ou serviço no mercado de consumo é de natureza objetiva, não se fazendo necessária a presença da culpa para que se configure o dever de reparar o dano. Portanto, todos os responsáveis solidários respondem pelo descumprimento de seus deveres, não havendo necessidade de comprovação de culpa, visto que a natureza da responsabilização é objetiva. Nessa mesma linha, estabelece o artigo 422 do CC5 que os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé6. Relacionado a esse artigo, o Conselho de Justiça Federal emitiu o Enunciado 36356, o qual estabelece que são de ordem pública os princípios da probidade e da confiança, motivo pelo qual cabe à parte lesada demonstrar apenas a existência da violação desses princípios, não havendo necessidade da demonstração de culpa. Portanto, tomando como base no enunciado, havendo violação do princípio da confiança e da probidade pelo influenciador digital, não há necessidade de que o ofendido comprove a culpa do criador de conteúdo, devendo apenas demonstrar a violação desses princípios. Logo, entende-se que o influenciador passa a responder de forma objetiva, levando em consideração a relação de confiança entre os influenciadores e potenciais consumidores, fazendo com que, ao se depararem com um anúncio veiculado por um influenciador, os consumidores criem legítimas expectativas, as quais devem ser protegidas e, caso contrariadas, causando prejuízos, geram dever de reparação. Ressalta-se, portanto, a importância de o influenciador atentar-se à veracidade das informações repassadas, além de agir com cautela ao realizar a publicidade, de forma que não cause prejuízos à saúde física e/ou mental do consumidor. Preceitua Nelson Rosenvald7 que a melhor solução para proteger os três polos dessa relação de consumo (influenciadores, marcas, seguidores) demanda o seguinte: "(...) Um ônus de informar qualificado a quem contrata a celebridade; um "dever de se informar" por parte de quem empresta a sua fama a uma publicidade respeitante às qualidades e riscos daquilo que comercializará e, uma percepção mínima por parte do público do que objetivamente consiste em uma "expectativa" e o que de fato aquele produto possa lhe proporcionar e, além disso, se efetivamente vale a pena se vincular com aquele fornecedor." Nessa mesma linha, afirma Gustavo Tepedino que "em matéria de informação, tão importante quanto a cooperação do devedor é a cooperação do credor", pois também é dever do credor esforçar-se para obter as informações necessárias, relevantes e acessíveis sobre o produto/serviço que pretende anunciar e, caso contrário, deixaria de agir conforme a boa-fé objetiva, assim como os representantes das marcas que falham com seu dever de informação. Porém, ressalta o autor que deve ser ponderada a assimetria informacional entre as partes e o grau de vulnerabilidade do credor da informação, visto que, "quanto maior a assimetria, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar"8 O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária9, em suas normas10, define os princípios éticos que devem nortear a publicidade e, entre eles, está o cuidado com o depoimento de pessoas famosas, estabelecendo que esses indivíduos devem ter uma atenção especial às recomendações do Código. Também prevê o Código que o anúncio testemunhal da pessoa famosa não deverá ser estruturado de maneira que iniba o senso crítico do consumidor em relação ao produto, além de estabelecer que o anunciante que recorrer ao testemunho de pessoa famosa deve ter presente a sua responsabilidade para com o público. Observa-se, portanto, que o dever de informação alcança os contratantes e os influenciadores. Os criadores de conteúdo não suportam sozinhos o ônus de atentar-se às especificidades dos produtos divulgados, visto que as marcas também devem lhe prestar as devidas informações, mas tal fato não os exonera do dever de verificar os riscos de anunciar determinado produto ou serviço e a qualidade deles, pois os influencers também têm o dever de ser informar sobre o que está sendo veiculado, sob pena de responderem solidariamente. Segundo o STJ, o anúncio da oferta integra o contrato e, assim, o fornecedor (direto ou indireto) se responsabiliza pelas expectativas que a publicidade desperta no consumidor, o que exige do anunciante, nesse caso, do influenciador digital, os deveres de lealdade, confiança, cooperação e informação, sob pena de responsabilidade11. Portanto, considerando que os influenciadores digitais obtêm vantagem econômica com os anúncios e demais atividades produzidas em suas plataformas digitais, é necessário que assumam o ônus de sua atividade caso não se comportem de maneira proba. O ex-Ministro do STJ, Castro Filho, ao proferir seu voto no Recurso Especial 578.777/RJ, afirmou que a propaganda, em alguns casos, vincula um produto à imagem de determinada pessoa. Essa estratégia é utilizada para "fazer crer que a coisa anunciada tenha as vantagens apregoadas pela pessoa que as afirma. E o efeito positivo do anúncio dependerá do prestígio público de quem faz a propaganda"12 Portanto, o marketing de influência é muito utilizado atualmente, em razão da possibilidade de agregar as características da celebridade anunciante que, graças ao seu prestígio, contribui com a valorização do produto e estimula o consumo do bem ou serviço divulgado. Nesse sentido, Bruno Miragem13, também defensor da responsabilização objetiva dos influenciadores, comunga que devemos nos atentar para o fato de que a credibilidade das celebridades é transferida para o produto e/ou serviço divulgado, criando assim uma ponte entre fornecedor e consumidor, motivo pelo qual os influencers devem arcar com o ônus de sua atividade. Assim, considerando todos os argumentos expostos e enquadrando os influenciadores digitais como fornecedores por equiparação, conclui-se que, em razão dos influencers serem integrantes da cadeia de consumo, são responsáveis de forma solidária e objetiva por qualquer possível dano causado ao consumidor acerca dos produtos/serviços divulgados, pois os criadores de conteúdo, além do fornecedor principal, são incentivadores do consumo do bem/serviço anunciado. _____________ 1 Disponível aqui. 2 WEIMANN, Gabriel. The influentials: people who influence people. Albany: State University of New York Press, 1994. 3 PACETE, Luiz Gustavo. Meio e mensagem. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/06/2020. 4 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 104 5 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022 6 Art. 422. Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação. 7 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. P. 212. 8 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. 09 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022 9 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA - CONAR. Disponível aqui. 10. "2.1. O anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código. 2.2. O anúncio apoiado em testemunhal de pessoa famosa não deverá ser estruturado de forma a inibir o senso crítico do consumidor em relação ao produto. 2.3. Não será aceito o anúncio que atribuir o sucesso ou fama da testemunha ao uso do produto, a menos que isso possa ser comprovado. 2.4. O Anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa deverá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua responsabilidade para com o público." 11 STJ, REsp 1.365.609-SP (2011/0105689-3), rel. Min.Luis Felipe Salomão, 4ªT., j.28.04.2015 12 STJ, REsp 578.777/RJ (2003/0162647-7), rel. Min. Castro Filho, 3ª T., j. 24.08.2004 13 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 281.
Inúmeros indicadores apontaram a intensificação das mudanças climáticas diante de ações antrópicas nos últimos anos. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), divulgado no início deste ano, porém, concluiu que as mudanças climáticas já estão causando danos ao planeta e aos seres humanos1.  O planeta Terra está enfrentando as consequências negativas causadas por diversas condutas humanas que, ao promoverem o aumento da emissão de gases de efeito estufa (GEE), estão elevando anormalmente a temperatura média do planeta. Em termos dogmáticos, essas consequências negativas na composição da atmosfera mundial se traduzem no próprio dano ao clima ou danos climáticos, mas as ações antrópicas não se limitam a esses, cada vez mais o meio ambiente e a população vêm sentindo seus efeitos. As mudanças climáticas estão aumentando a frequência de eventos climáticos extremos, como o derretimento de geleiras, o aumento do nível do mar, as enchentes, as ilhas de calor e as subsequentes secas e queimadas, e, consequentemente, estão causando danos ambientais e danos às pessoas em escala mundial. No Brasil, os ecossistemas e a população já estão enfrentando danos decorrentes das mudanças climáticas nos últimos anos. Diversos relatórios e reportagens nacionais evidenciam os danos causados, por exemplo, pelo aumento anormal das chuvas no Sudeste e no Sul e pelo aumento da estiagem no Norte e no Nordeste2. Para além dos debates científicos e socioeconômicos, de escala mundial, a respeito do fenômeno do aquecimento global e da necessidade premente de limitação da variação da temperatura do planeta Terra, a atribuição do ônus específico de reparar os danos decorrentes das mudanças climáticas antrópicas ganha importância ímpar na sistemática nacional.    A imputação do dever de indenizar não foge à regra geral da responsabilidade civil ambiental, devendo-se comprovar os pressupostos clássicos da responsabilidade civil objetiva: dano, conduta antijurídica e nexo de causalidade. À luz do artigo 14, § 1º, da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída pela lei 6.938/1981, sabe-se que Art 14. [.] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. Todavia, apurar se a conduta humana deu causa ao dano climático e/ou aos danos daí decorrentes torna-se o grande desafio contemporâneo no âmbito das mudanças climáticas. Evidentemente nem todos os danos decorrentes das mudanças climáticas serão corrigidos pelo instituto da responsabilidade civil, mormente diante da indeterminação das fontes emissoras de GEE e da extensão mundial das consequências negativas. Uma fonte emissora de GEE localizada na América do Norte, por exemplo, pode desencadear mudanças climáticas que causarão danos ambientais em países da América do Sul. Como corolário lógico, a adoção de políticas públicas regulatórias de prevenção e reparação de danos urge no contexto mundial3. Sob outra perspectiva, a questão da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática nacional pode ser resolvida normativamente. Da leitura das diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela lei n. 12.187/2009, depreende-se que a norma estabeleceu a responsabilidade civil por danos climáticos diante da contribuição e do efeito da geração de fonte emissora de GEE para a subsequente mudança climática. Sendo importante citar que os incisos I e III do artigo 3º da PNMC dispõem sobre a correlação entre a participação da fonte emissora e a responsabilidade pelo lançamento e o impacto negativo no clima terrestre:  Art. 3º A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional, e, quanto às medidas a serem adotadas na sua execução, será considerado o seguinte: I - todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático; [...] III - as medidas tomadas devem levar em consideração os diferentes contextos socioeconômicos de sua aplicação, distribuir os ônus e encargos decorrentes entre os setores econômicos e as populações e comunidades interessadas de modo equitativo e equilibrado e sopesar as responsabilidades individuais quanto à origem das fontes emissoras e dos efeitos ocasionados sobre o clima; [...]. Em complementação ao PNMC, a alínea e) do inciso III do artigo 3º da PNMA definiu poluição como "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos". O legislador nacional estabeleceu o dever de indenizar os danos climáticos a partir do grau de tolerabilidade de emissão de GEE de acordo a atividade normalmente desenvolvida. Na precisa síntese de Annelise Steigleder, "o cumprimento ou não dos limites máximos de emissão de GEE consiste em um critério muito importante para a imputação da responsabilidade civil"4. Sempre bom pontuar, nesse contexto, que a antijuridicidade da conduta também está presente na responsabilidade civil objetiva, posto que, conforme elucida Rafael Peteffi da Silva, "o ordenamento jurídico cobre com o manto da antijuridicidade os fatos causadores de danos que estiverem dentro da área de atuação de determinado agente, ainda que a conduta normalmente desenvolvida, apesar de perigosa, não seja considerada, per se, ilícita"5. A partir dessas perspectivas, portanto, depreende-se que o pressuposto do nexo de causalidade deve ser analisado considerando a contribuição da emissão de GEE, implicando na relação direta entre a fonte poluidora e a alteração do clima. Uma empresa que ultrapassa o limite do tolerado pela norma jurídica, ainda que licenciada, está poluindo (conduta evidentemente antijurídica) e causando danos climáticos, porque está elevando objetivamente a temperatura do planeta e, ao menos tempo, violando o escopo de proteção da norma ambiental. Dessa forma, ao que tudo indica, as teorias clássicas do nexo de causalidade serviriam para resolver o problema da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática do ordenamento jurídico nacional. Mais precisamente, tanto a teoria da causalidade adequada quanto a teoria do escopo de proteção da norma violada serviriam de importante mecanismo para aferição do nexo de causalidade ao tratar de danos climáticos6. Longe de esgotar esta riquíssima temática, este pequeno ensaio buscou evidenciar um dos maiores desafios mundiais na contemporaneidade: as mudanças climáticas. É importante destacar que o clima terrestre sempre passou por ciclos naturais de aquecimento e resfriamento, mas as mais diversas condutas humanas estão alterando de forma anormal estes ciclos climáticos: a queima de combustíveis fósseis, as atividades industriais, o transporte, a agropecuária, o descarte de resíduos sólidos, o desmatamento etc. Urge, portanto, a necessidade de se avançar no combate às mudanças climáticas, especialmente na limitação da emissão de GEE para prevenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado7, numa perspectiva homem-natureza8. Da mesma forma que é premente o reconhecimento do dever de indenizar do agente-poluidor frente aos danos climáticos na realidade nacional, considerando como lente de análise a emissão de GEE acima dos índices normalmente permitidos para a atividade normalmente desenvolvida9. ________________ 1 Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Climate Change 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022. 2 Para conhecimento, ler: MUDANÇAS climáticas: como o aquecimento global afeta a vida no Brasil. National Geographic, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022. 3 Esse é, inclusive, o entendimento da Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu. 4 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (orgs.). Direito e mudanças climáticas: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010. 5 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Antijuridicidade como requisito da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, 2019. 6 Para maiores considerações, cf. JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. p. 671-687, 2020. 7 No Brasil possuímos o projeto de lei 1308/2021, atualmente em análise na Câmera dos Deputados, que visa instituir a Política de Promoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, definida em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU). 8 Expressão cunhada por BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano e ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, a. 3, n. 9, p. 10-52, jan./mar. 1998. 9 Os litígios climáticos estão crescendo no âmbito nacional e internacional. Para maiores considerações sobre o assunto, ler: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Desafios da responsabilidade civil frente às mudanças climáticas. Migalhas, 23 mar. 2021. Disponível aqui; e STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Os estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos. Migalhas, 13 abr. 2021. Disponível aqui.
Consoante já tivemos oportunidade de expor[1], a multiplicidade de fatores que concorrem, direta ou indiretamente, para o aquecimento global colocam em cheque as teorias da causalidade[2] para fins de imputação de responsabilidade civil por danos causados ou intensificados pelas alterações do clima. O aquecimento global é um fenômeno que, sob a perspectiva jurídica, pode ser interpretado como um dano cumulativo ao sistema climático, resultado de padrões civilizatórios baseados no uso de combustíveis fósseis pelo menos desde 1850. Somam-se às emissões de gases de efeito estufa - GEE por parte de atividades industriais ligadas ao carvão e aos combustíveis, as emissões veiculares, o desmatamento e de conversão do uso do solo, que eliminam os sumidouros naturais desses gases. Além das informações produzidas pelo IPCC[3] a respeito das origens do aquecimento global, a base de dados Carbon Majors aponta para as 100 empresas que mais emitiram GEE, concluindo que a indústria de combustíveis respondeu por 91% dos GEE industriais em 2015 e cerca de 70% de todas as emissões antropogênicas desses gases[4]. No entanto, isoladamente, estas fontes emissoras podem ser pouco significativas, de tal sorte que não se caracterizam como "a causa adequada", ou a "conditio sine qua non" do desequilíbrio do sistema climático. Ou seja, as teorias explicativas do nexo de causalidade, que foram concebidas com amparo em uma lógica linear de construção de causa e efeito,  mostram-se insuficientes para permitir a imputação de responsabilidade nos casos de danos cumulativos tão complexos. Diante desse impasse, no qual, de um lado ainda remanesce um certo apego à lógica da certeza e da segurança jurídica; e de outro a importância de dar uma solução para problemas tipicamente civilizatórios, que se apresentam com um produto da sociedade tecnológica, defenderemos nesse breve estudo que se possa avançar para a adoção da causalidade estatística, quando os danos forem o resultado de uma combinação de variações naturais e antrópicas, produzidas ao logo do tempo, sem que se tenha certeza a respeito de condições diretas ou adequadas que determinaram a produção do dano. Facchini Neto vislumbra que o recurso à causalidade estatística é uma forma de flexibilização da lógica da certeza no âmbito do nexo de causalidade, para fins de responsabilização civil. Argumenta que A abertura do juiz para as contribuições de outras ciências faz com que o julgador perceba que a convicção necessária para um julgamento favorável a uma pretensão não necessariamente beire à certeza. No mundo em que vivemos, em que a acumulação incessante de conhecimento faz com que dogmas e certezas sejam rapidamente superados ou revistos, o julgador deve aceitar o fato que o mundo de certezas e de segurança, que o Direito procurou sempre assegurar, já não mais subsiste em sua integridade[5]. Em seu estudo, Facchini Neto apresenta diversas abordagens teóricas e jurisprudenciais, retiradas do Direito Comparado, em se adotam formulações probabilísticas do nexo de causalidade com amparo em bases estatísticas, tudo com vistas à priorização do direito das vítimas. Ainda que não se consiga propiciar-lhes a reparação integral, ao menos compensações proporcionais à contribuição para a causação do dano são asseguradas. Nos parece que esse mesmo caminho deverá ser trilhado pela litigância climática, nos casos em que se pretender a reparação/compensação de danos ou mesmo a adoção de medidas de mitigação/adaptação. Os estudos de atribuição podem ajudar a construir o nexo de causalidade entre determinados eventos extremos e o aquecimento global[6].   Veja-se que o nexo causal é necessário tanto para a imputação da obrigação de reparar o dano, como para impor obrigações voltadas à mitigação e à adaptação climática. Ou seja, também nas ações judiciais direcionadas contra governos, para que estes elaborem e implementem específicas políticas públicas, é necessário que se percorra o nexo de causalidade, de tal forma a se demonstrar a urgência e a relevância do fenômeno do aquecimento global cujas consequências se busca mitigar ou impedir por meio da implementação de políticas e programas. Inserem-se nessa categoria, como exemplos, a ação da Fundação Urgenda contra o Governo da Holanda, a ação do agricultor Leghari contra o Governo do Paquistão[7] e a ação ajuizada pelo Instituto de Estudos Amazônicos contra a União Federal para "que cumpra com sua obrigação jurídica de fazer constante no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm, vinculado à Política Nacional sobre a Mudança do Clima - PNMC, no sentido de que, no ano de 2020, o índice máximo de desmatamento ilegal na Amazônia Legal não ultrapasse a taxa de 3.925,00 Km2"[8]. Estes casos judiciais têm em comum a ampla exploração de dados científicos a respeito da intensificação do aquecimento do planeta e das condições que incrementam esse aquecimento, observando-se o esforço dos juristas em extrair consequências obrigacionais a partir dessas informações técnicas; e é nesse contexto que os estudos de atribuição emergem como um instrumento muito promissor para a imputação de responsabilidades. Os estudos de atribuição proporcionam informações baseadas em probabilidade estatística e têm sido utilizados tanto para a formulação de políticas públicas de mitigação e adaptação climática, como no âmbito da responsabilidade civil por danos[9], consoante  demonstra o célebre caso do fazendeiro peruano Saul Lluya contra a gigante alemã RWE, que lhe atribui a responsabilidade por haver concorrido com 0,47% das emissões mundiais de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial[10]. Swain, Singh, Touma e Diffesnbaugh asseveram que os estudos de atribuição procuram elucidar a questão a respeito de se as mudanças climáticas influenciaram a frequência, a probabilidade e/ou a severidade de determinado evento extremo, o que é calculado estatisticamente[11]. Por sua vez, Burger, Wentz e Horton esclarecem que tais estudos de atribuição examinam o efeito das atividades humanas no sistema climático global, que é amplamente definido para incluir a atmosfera, a hidrosfera, a criosfera, a litosfera, a biosfera e as interações entre esses componentes, com o foco de apurar como as mudanças induzidas pelas atividades humanas na composição química da atmosfera afetam outras variáveis climáticas essenciais, como a temperatura, a precipitação, o nível do mar e as geleiras. Muito embora ainda existam dificuldades quanto à obtenção de dados históricos nas escalas adequadas para observação da variabilidade do clima, já existem juízos de alta probabilidade a respeito da conexão causal entre as atividades antrópicas responsáveis pelo aquecimento global e a maior intensidade de precipitações, de formação de ondas de calor ou de frio extremo[12]. Dentre os eventos extremos que foram atribuídos ao aquecimento global por pesquisas científicas, tem-se o intenso calor que ocorreu no verão europeu de 2003[13], as inundações que assolaram Jacarta em 2014 e as tempestades que atingiram Chenai, na Índia, em 2015[14]. Também o National Oceanic and Atmospheric Administration- NOOA identificou que diversas inundações provocadas por chuvas torrenciais nos Estados Unidos no ano de 2010 tiveram conexão com o aquecimento global[15]. Vale, ainda, colacionar os 18 casos citados pela American Metereological Society em um relatório intitulado Explaning Extreme Events in 2020 from a Climate Perspective[16]. Nesses casos, a conexão causal não é linear, porque não existe uma única causa singular rastreável que conecte o aquecimento global ao evento extremo singular. No entanto, a não configuração da lineraridade não significa que não exista a conexão e que não devam ser reconhecidas consequências jurídicas em virtude desse liame, ainda que tais consequências sejam projetadas para o futuro, de modo a orientar a responsabilização pela elaboração de  políticas públicas. A respeito,  Swain, Singh, Touma e Diffesnbaugh destacam que o evento extremo singular é produto de numerosos processos complexos e inter-relacionados que atuam em uma ampla gama de escalas espaço temporais. No entanto, mesmo diante de tamanha variabilidade, a partir do reconhecimento de que tempo e clima existem em um continuum, é possível, com amparo em modelagens probabilísticas, observações e outros estudos científicos, compreender se determinado evento extremo foi intensificado pelo aquecimento global, que, por sua vez, é o resultado cumulativo de atividades emissoras de gases de efeito estufa[17]. Transpondo a racionalidade dos estudos de atribuição para o Direito, em um diálogo interdisciplinar, observa-se que a questão crucial é proporcionar critérios e elementos cognitivos que permitam conectar determinada atividade antrópica, como da empresa RWE no caso de Lluya, e o evento extremo cujas consequências se pretende evitar ou mitigar, formulando-se, a partir de dados estatísticos, um conceito normativo de causalidade. Vislumbra-se que tais estudos serão especialmente úteis para a tomada de decisões em ações judiciais estruturais que busquem a implementação de políticas públicas e a responsabilização preventiva pela adoção de providências voltadas à adaptação e à mitigação climática, porque, nestas, a exigência do liame causal tende a ser menos rígida do que ocorre em uma ação de responsabilidade pela reparação de danos. E é nesse contexto que os estudos já existentes, elaborados para a compreensão de desastres ocorridos em outros continentes, podem ser tomados emprestados para a interpretação de eventos extremos ocorridos no nosso país. A causalidade estatística é uma abordagem que vem sendo adotada nos Estados Unidos, em julgamentos relacionados à exposição de pessoas a produtos e resíduos perigosos do que decorrem doenças ocupacionais[18].  Tais precedentes surgem em contextos de alta complexidade, nos quais os danos não são consequências lineares de eventos estáticos: são, ao contrário, danos que surgem após um período de latência e da combinação de fatores naturais e genéticos com circunstâncias produzidas externamente, de tal sorte que remanesce alguma margem de incerteza a ser enfrentada. Também merece referência os casos de litigância relacionados à morte de abelhas em virtude da deriva de produtos agrotóxicos. Nessas situações, nem sempre há certeza do que resultou na morte dos insetos, senão que se configura a probabilidade diante de eventos semelhantes e de determinadas circunstâncias climáticas. Nessa direção, vale colacionar um precedente francês, citado por Bailo. Em abril de 2000, durante o período de floração da canola, alguns apicultores franceses perceberam um aumento significativo da mortandade de abelhas e a diminuição associada de sua atividade nas colméias. Presumindo que este fato possuía correlação com o uso de agrotóxicos, os apicultores processaram a cooperativa que explorava economicamente os campos. Em dezembro de 2008, a Corte de Apelações de Angers condenou a cooperativa a reparar os danos causados aos apicultores (Affaire n° 07/01836), sob o argumento de que, em questões ambientais, o nexo de causalidade entre a ação e o dano deveria ser avaliado tendo em conta o maior risco de causar o dano, inerente aos produtos agrotóxicos[19]. Ou seja, em virtude de sua periculosidade intrínseca haveria maior probabilidade de que a morte das abelhas tenha ocorrido em virtude da deriva dos agrotóxicos. Em conclusão, considera-se que a responsabilidade civil por danos associados às mudanças climáticas precisa ser formulada, no sentido de que o nexo de causalidade seja  construído a partir de bases normativas, que não demandem a aferição da causa adequada e que colham dados dos estudos de atribuição, capazes de estimar a probabilidade estatística de correlação entre o aquecimento global e os impactos socioeconômicos, ambientais e culturais. E que a partir desses estudos, possam ser imputadas obrigações voltadas à reparação de danos e, sobretudo, obrigações voltadas à implementação de políticas públicas que mirem na necessidade urgente de mitigação e de adaptação climática, em um viés preventivo da responsabilidade civil. _________________ 1 Disponível aqui, acesso em 30 de mai. 2022. 2 Sobre as teorias para definição do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental, ver: STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3ª. Edição, 2017. 3 O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, IPCC, foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) em 1988 com o objetivo de fornecer aos formuladores de políticas avaliações científicas regulares sobre a mudança do clima, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como para propor opções de adaptação e mitigação. Atualmente, o IPCC possui 195 países membros, entre eles o Brasil. 4 The Carbon Majors Database CDP Carbon Majors Report 2017. Disponível em: https://cdn.cdp.net/cdp-production/cms/reports/documents/000/002/327/original/carbon-majors-report-2017.pdf?1501833772, acesso em 30 mai.2021. 5 FACCHINI NETO, Eugênio. A ciência estatística e sua repercussão no nexo causal da responsabilidade civil: levando a sério a probabilidade.  In VEIGA, Fábio da Silva e FINCATO, Denise Pires (diretores). Estudos de Direito, Desenvolvimento e Novas Tecnologias. Porto: Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos, 2020. 6 WEDY, Gabriel e AKAOUI, Fernado Vida. Direito climático e a ciência da atribuição. In https://www.conjur.com.br/2022-mai-07/ambiente-juridico-direito-climatico-ciencia-atribuicao, acesso em 31 mai. 2022. 7 Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente, mayo 2017 El estado del litigio en materia de cambio climático - una revisión global. Disponível em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/20767/the%20status%20of%20climate%20change%20litigation%20-%20a%20global%20review%20-%20un%20environment%20-%20may%202017%20-%20es.pdf?sequence=7&isallowed=y, acesso em 30 mai. 2022. 8 A ação está disponível em http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2020/20201008_12742_complaint.pdf, acesso em 31 de mai. 2022. 9 BURGER, Michael; WENTZ, Jessica; HORTON, Radley. The Law and Science of Climate Change Attribution. 2020. In  https://journals.library.columbia.edu/index.php/cjel/article/view/4730/2118, acesso em 30 mai. 2022. 10 O caso é analisado em STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos. In https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/343464/estudos-de-atribuicao-e-a-responsabilidade-civil-ambiental, acesso em 30 de mai. 2022. 11 SWAIN, Daniel; SINGH, Deepti; TOUMA, Danielle; DIFFENBAUGH, Noah. Attributing extreme events to climate change: A new frontier in a warming world. Disponível em:  https://doi.org/10.1016/j.oneear.2020.05.011, acesso em 30 mai. 2022. 12 Top 10 things to know about extreme event attribution. In  https://www.climatecentre.org/wp-content/uploads/top-10-things-to-know-about-extreme-event-attribution.pdf, acesso em 30 mai. 2022. 13 Este estudo, publicado em 2004 por Scott, foi o primeiro estudo de atribuição. World Weather Attribution. Pathways and pitfalls in extreme event attribution.  13 mai. 2021. Disponível em https://www.worldweatherattribution.org/pathways-and-pitfalls-in-extreme-event-attribution/, acesso em 30 mai. 2022. 14 World Weather Attribution. Pathways and pitfalls in extreme event attribution.  13 mai. 2021. Disponível em https://www.worldweatherattribution.org/pathways-and-pitfalls-in-extreme-event-attribution/, acesso em 30 mai. 2022. 15 Ver a respeito: National Oceanic and Atmospheric Administration.  Sea Level Rise and Nuisance Flood Frequency Changes around the United States (2014) https://tidesandcurrents.noaa.gov/publications/noaa_technical_report_nos_coops_073.pdf, acesso em 30 mai. 2022. 16 Disponível em  https://www.ametsoc.org/ams/index.cfm/publications/bulletin-of-the-american-meteorological-society-bams/explaining-extreme-events-from-a-climate-perspective/#, acesso em 30 ma. 2022. 17 O Relatório Carbon Majors (2017) aponta para cem empresas como as responsáveis por 71% dos gases de efeito estufa desde 1988, o ano em que as mudanças climáticas de origem antrópica foram oficialmente reconhecidas através da instituição do IPCC. Disponível em: https://www.cdp.net/en/articles/media/new-report-shows-just-100-companies-are-source-of-over-70-of-emissions, acesso em 30 mai. 2022. 18 SULYOK, Katalin. Managing uncertain causation in toxic exposure cases: lessons for the European Court of Human Rights from U.S. Toxic Tort Litigation. 2017. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2989876, acesso em 30 mai. 2022. 19 BAILO, G.L. Litigación sobre polinizadores (el derecho según las abejas)Derecho y Ciencias Sociales. Mayo-Octubre 2019. Nº 21. Pgs 263-283. ISNN 1852-2971. Instituto de Cultura Jurídica y Maestría en Sociología Jurídica. FCJ y S. UNLP. Disponivel em https://revistas.unlp.edu.ar/dcs/article/view/8821, acesso em 31 mai. 2022.
Sêneca, em "A Brevidade da Vida", estabeleceu um diálogo com Aristóteles sobre o tempo de vida do homem na terra, entendendo o segundo ser este tempo um período muito curto para o ser humano dar cabo aos projetos essenciais da vida; todavia, o filósofo estoico, ao revés, avaliou esse espaço de tempo suficiente desde que o homem canalizasse suas energias aos projetos que verdadeiramente importassem. Seja como for, a vida pode ser breve ou não, mas sempre de acordo com a perspectiva de cada ser vivente. E a morte, é breve? Ou, existindo um período mais ou menos longo de padecimentos ou sofrimentos que precede o desfecho final humano, impediria de adjetiva-la como "instantânea", sob a ótica do Direito? A morte é um fenômeno natural e deve ser analisado sempre de acordo com a perspectiva cultural de cada povo, apresentando-se ora como um trauma ante o desligamento da pessoa falecida dos seus entes queridos, ora como algo que se deve comemorar por ter o sujeito cumprido os propósitos que lhe foram conferidos e, portanto, como o momento de desfrutar a realidade eterna e, em outras ocasiões, como algo a ser apreciado, porquanto o morto passaria a ser visto enquanto objeto de culto por seus familiares e herdeiros, a exemplo do que ocorria nas primeiras cidades antigas até a formação das polis gregas e cidades romanas tais quais foram conhecidas mais de perto, conforme relatou Fustel de Coulanges em "A Cidade Antiga". A importância da morte se estabelece não somente na seara religiosa, mas também na econômica, sociológica, filosófica e jurídica. Sob esse último aspecto, a morte é fato jurídico desencadeador de diversos efeitos no direito obrigacional, societário, de danos, familiar e sucessório. No que pertine ao direito de danos (no plano puramente "reparatório") urge perscrutar sobre os danos que ensejam o direito de compensação, isto é, se do fato antijurídico da morte decorre apenas direito reparatório aos familiares da vítima - na ordem conferida por lei - pelos danos morais reflexos ou, lado outro, se o próprio morto adquire o direito à reparação civil pelo atingimento de sua própria vida, enquanto titular do direito personalíssimo, ainda que a morte se apresente aparentemente "instantânea". Não restam dúvidas de que a vida é o bem integrante do patrimônio existencial da pessoa mais elevado e que merece tutela efetiva e concreta por parte do ordenamento de um Estado. Por isso, tal direito restar-se regulado desde a perspectiva do direito constitucional até a do direito penal, o qual, de sua vez, prevê tipos penais que tangenciam a proteção conferida constitucionalmente ao homem desde a vida intrauterina até a última fase do percurso existencial humano. Inobstante isso, indaga-se: uma pessoa que sofreu ilicitamente atentado à sua vida tem direito a uma reparação, ainda que a título compensatório, pela perda da própria vida? A doutrina espanhola e a portuguesa, e com elas a jurisprudência desses países, ocuparam-se com apimentados debates acerca do tema, chegando uns a negar peremptoriamente esse direito à vítima, impondo-se óbice à reparação enquanto direito que não pode ser adquirido por quem já morreu, isto é, o direito não poderia ser adquirido ante o fato de sua própria extinção, qual seja, a morte. Outros, porém, advogavam a tese segundo a qual o direito de reparação pode ser incorporado ao patrimônio da pessoa desde que exista um lapso temporal entre a lesão e a morte propriamente dita. Contudo, existem aqueles que admitem a reparação mesmo nas situações de morte "instantânea", sob o argumento da contradição de se aceitar a reparação por lesões não provocadoras de morte e não se aceitar nas situações de lesões fatais, evidenciando tratamento satisfatório para aquele exímio matador que produziu a lesão fatal e prejudicando, em contrapartida, o matador amador. A morte pode ser, em algum momento, considerada um fato passageiro? Existe morte instantânea? É consabido que a medicina, ao avaliar o processo de morte de alguém, regra geral, confere o estado de morto àquele que não apresenta sinais neurológicos vitais (cessação das funções do cerebelo), porém, tal argumento vem cedendo espaço no campo da filosofia médica e da bioética. Afirma a Professora de filosofia da USP, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, que pela diferente resistência vital das células, tecidos, órgãos e sistemas, forçoso é admitir que a morte se trata de um processo e "processo incoativo". De sua parte, o Professor de bioética Antônio Puca adverte que a morte como a cessação irreversível das funções do cérebro, parece ser incompatível com a dimensão do ser no plano filosófico, assim, a morte como um processo de cessação permanente do funcionamento do organismo humano como um todo parece mais adequado. Nessas considerações arrima-se a fundamentação da tese ora a se construir, ou seja, não sendo a morte algo instantâneo - apenas "aparentemente instantâneo" - ela por si só não terá o condão de impedir o ingresso no patrimônio material do morto da reparação em dinheiro pelo dano da perda da própria vida e, por consequência, a transmissão aos herdeiros na ordem de vocação hereditária. Aliás, tal constatação impactará não somente a configuração do direito reparatório para o ofendido, mas também a forma de aquisição por seus familiares, se por meio de transmissão hereditária ou por direito próprio e, ainda, a função da responsabilidade civil que respaldaria a condenação do ofensor. A legislação civil espanhola, como qualquer outra da mesma estirpe, é provida de cláusulas gerais de reparação do dano por fato próprio, de terceiros e das coisas do responsável dependentes, inexistindo um sistema de tipificação de ilícitos e de danos indenizáveis como acontece, por exemplo, na Alemanha e na Itália. O artigo 1.092 do Código Civil espanhol dispõe: "El que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado". Santos Briz1, em 1970, escreveu que na Espanha os danos morais encontravam fundamento no Código Penal espanhol2 e em Leis esparsas, contudo, a jurisprudência, a partir da sentença de 28 de fevereiro de 1964 do Tribunal Supremo, fundada em orientação doutrinária existente na época, passou a admitir a reparação dos danos morais "puros" e os imateriais decorrentes de diversos sofrimentos e de dores causadas aos cidadãos, com fundamento no artigo 1902 do Código Civil desse país De forma bastante genérica, dispõe o dispositivo em análise apenas os pressupostos de reparação civil e da necessidade da prova do fator de imputação culpa do dever de reparar, tratando-se de responsabilidade subjetiva, portanto. A se considerar a legislação em análise, parte-se do raciocínio de que, em tese, nada obsta o reconhecimento da indenização do dano-morte ante a amplitude da cláusula de responsabilidade civil extracontratual em estudo, o que poderia se fazer supor que inexistem muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto. Entretanto, não é bem isso que se estabelece no Direito espanhol. Até 1969, escreve Santos Briz, a jurisprudência do Superior Tribunal (Sentenças de 20 de dezembro de 1930, 8 de abril de 1936, 8 de janeiro de 1946, 17 de fevereiro de 1956 e de 25 de fevereiro de 1906) trataram do tema, tendo, especificamente, a decisão de 17 de fevereiro de 1956 reconhecido o direito à indenização aos herdeiros pela morte instantânea da genitora, porém, não a título de sucessão por herança, por não ser possível - de acordo com essa visão - o valor da reparação ingressar no patrimônio do autor da herança. Existiria, em razão do argumento, direito a tais herdeiros a título direto de ação. Entretanto, as sentenças de 8 de fevereiro de 1936 e de 3 de fevereiro de 1940 excluíram os herdeiros do direito à reparação pelo dano da morte, tratando-se da reparação de danos derivada de culpa extracontratual. De seu turno, a sentença de 17 de fevereiro de 1956 fez a distinção entre os prejuízos morais e os patrimoniais, sendo estes relativos aos gastos com velório, tratamento médico e hospitalar. Assim, se a morte não tivesse ocorrido de forma "instantânea", o direito reparatório seria transmitido aos herdeiros em razão do falecimento do de cujos, ao passo que, inclusive a reparação moral, não poderia transmitir-se aos filhos, por não ter havido a incorporação ao patrimônio do falecido, mas estes poderiam reclamar por direito próprio, em caso de "morte instantânea". O autor em referência advoga a tese segundo a qual os herdeiros sucedem ao defunto em todos os seus direitos e obrigações pelo só fato de sua morte, com espeque no artigo 651 do Código Civil, contudo, nasceria uma nova ação por direito próprio em favor dos primeiros e não ex jure hereditatis, nas hipóteses de morte instantânea, ocorrendo a sucessão quando esta não se evidenciasse a este título. Regra geral, tal qual no Brasil, os manuais e cursos de Direito Civil e de Responsabilidade Civil na Espanha, hodiernamente, raramente tratam da indenização pelo dano da morte, sempre se referindo aos danos morais, enquanto categorias de danos imateriais, omitindo, todavia, o dano decorrente da perda da própria vida na particular catalogação. Em Portugal, a tese da reparação do dano derivado da morte para o próprio ofendido prevaleceu tanto em doutrina quanto em jurisprudência, exsurgindo posteriormente a norma extraída da interpretação do art. 496, nº 2 do CCP no sentido de os familiares indicados em lei adquirirem, por direito próprio, a indenização. Destarte, pacificou-se a orientação acerca do tema por meio de sua doutrina e jurisprudência, tendo se estabelecido que o dano da morte tem previsão legislativa no artigo 496, nº 2 do Código Civil, vencida a posição da irressarcibilidade defendida pelo Professor José Oliveira Ascenção3. A previsão legal do artigo 496 dispõe de quatro dispositivos, tendo o primeiro deles previsto uma cláusula geral de ressarcimento em dinheiro do dano não patrimonial, previsão esta inexistente sob a égide do Código Civil de 1967. Estabelece o artigo 496: 1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem. 3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior. Diante da previsão legal, três correntes doutrinárias se estabeleceram em torno do assunto. A primeira defende que o direito à indenização do dano da morte é devido ao de cujos e se transmite iuri hereditatis para os seus herdeiros na ordem de vocação hereditária legal; a segunda, defende a aquisição do direito pelo próprio falecido e posteriormente transmitido aos seus parentes, contudo, apenas aos familiares previstos no art. 496, nº 2 do CCP; e, por último, a terceira corrente advoga o entendimento de que a indenização pelo dano-morte é devida, mas os familiares da vítima elencados no artigo citado adquirem tal direito de forma direta, sem qualquer transmissibilidade, sendo esta última corrente a que prevaleceu entre os autores portugueses4. No direito Brasileiro não se vem tratando o tema com a amplitude que ele merece, havendo omissão dos doutrinadores sobre o assunto ou a defesa da irreparabilidade do dano-morte, atentando poucos autores que o estudam na particular perspectiva da reparação. De fato, inexiste no Brasil regra igual àquela do direito português, entretanto, a partir da leitura constitucional do direito civil brasileiro, evidencia-se que os artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, ambos da CF, além dos artigos 186, 927 e 948 do CCB, conferem plausibilidade à tese da reparação civil do dano da morte por aqui, e por ela se constituir um procedimento - ainda que aparentemente "instantâneo", por mais breve que possa parecer - não tão breve se apresenta para o direito de danos a fim de ingressar a respectiva indenização (rectius: compensação) no patrimônio da vítima, e, ao desfecho final do processo incoativo, transmitir-se aos herdeiros do morto, na forma dos artigos que regulam o direito sucessório respectivo. Em resumo, da brevidade da vida enquanto objeto de foco do observador resulta a não brevidade da morte sob o ponto de vista do Direito. A vida até pode ser considerada breve, no entanto, a morte continuará a se produzir em círculos incoativos, sepultando-se as controvérsias em torno da reparação do dano derivado da morte, da sua incorporação ao patrimônio da vítima e posterior transmissão aos familiares e da função compensatória da Responsabilidade civil nessa seara. __________ 1 BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil. Derecho Sustantivo y derecho procesal. Madrid: Editorial Montecorvo, 1970, p. 165-167 e 268-270.  2 ASCENÇÃO, José de Oliveira. DIREITO CIVIL. Sucessões. Coimbra: Cimbra editora, 1989, p. 47-51. 3 sobre o assunto: FERREIRA, Bruno Bom. Dano da morte: compensação dos danos não patrimoniais à luz da evolução da concepção de família. Coimbra: Almedina, 2019. 4 ROSENVALD, Nelson. O dano morte: experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. In. BARBOSA, Mafalda, ROSENVALD, Nelson. MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil e comunicação. IV jornada luso-brasileiras de responsabilidade civil. Indaiatuba - SP: Foco, 2021, p. 319-339.
O protagonismo da covid-19 nos dois últimos anos exigiu uma celeridade por parte das indústrias farmacêuticas, visando a obtenção de um medicamento capaz de prevenir, tratar ou tentar erradicar essa terrível doença, que infelizmente matou milhares de pessoas ao redor do mundo. As vacinas foram o caminho mais efetivo para minimizar as consequências devastadoras dessa doença, especialmente entre os idosos. Contudo, a segurança, requisito indissociável, só poderá ser alcançada de forma indiscutível daqui a alguns anos. Isso porque, com a não conclusão dos estudos clínicos de muitas vacinas destinadas à Covid-19, só obteremos a confirmação da real segurança alguns anos após a vacinação, haja vista a possibilidade de reações adversas serem identificadas a longo prazo, como ocorreu com o medicamento Talidomida.  Não existe dúvida que o risco da doença poderá ser muito mais letal à algumas pessoas do que a própria vacina. No entanto, já estão sendo identificados relatos e confirmações de reações adversas desconhecidas ao tempo da introdução dos produtos e utilização pela população na Europa1, EUA2, Brasil, entre outros. Nesse contexto, surge a indagação de quem será o responsável pelas sequelas, ou mesmo mortes, decorrentes da pós-vacinação da covid-19 no Brasil, especialmente considerando a cláusula de isenção de responsabilidade das indústrias farmacêuticas. Entretanto, antes de analisar a responsabilidade civil aplicável, necessária a distinção entre efeitos adversos e reações adversas ao uso de medicamentos. Isso porque, muitas vezes os termos são tratados como sinônimos, mas a Farmacovigilância3 brasileira, nos apresenta conceitos diversos. Os denominados efeitos adversos4(EA), correspondem a qualquer ocorrência médica durante o tratamento com um medicamento. Podendo citar: reação adversa, interação medicamentosa (associação de dois ou mais medicamentos; ou ainda medicamento e alimento), uso excessivo de medicamento (intencional ou não), utilização off-label e etc. Por outro lado, as reações adversas5(RAM), correspondem a uma resposta prejudicial, indesejável e não intencional ao uso normal de um medicamento, dentro da dosagem recomendada para a faixa etária prevista na bula e para a terapêutica pesquisada. Em outras palavras, os efeitos adversos correspondem ao gênero, do qual é espécie a reação, haja vista a especificidade. Dentre as reações adversas pós-vacina (RAPV), devemos analisar se o caso em estudo corresponde a um efeito colateral conhecido e previsível ou desconhecido e imprevisível. Isso porque os efeitos desconhecidos e/ou imprevisíveis no momento em que o produto foi colocado à disposição do paciente, poderão configurar um defeito no produto, segundo entendimento do STJ6. Entretanto, as reações conhecidas e previsíveis, como regra, não configurarão defeito no produto, salvo se estivermos diante de uma violação do dever de informação, que deve ser observado pelo fabricante, nos termos do que estabelece expressamente o artigo 127 do CDC. Todo medicamento traz um risco inerente, mas visando controlá-lo, há obrigatoriedade de cumprimento das normas e procedimentos impostos para o estudo clínico, regulamentado pela Farmacovigilância brasileira, que integra a ANVISA, através RDC no 9, de fevereiro de 2015. Os medicamentos só poderão ingressar no mercado brasileiro para comercialização ou disponibilização gratuita à população a partir da fase IV dos estudos clínicos, mediante autorização provisória e constante fiscalização da Anvisa, pelo período mínimo de um ano. Diante dos procedimentos legais, impostos para a entrada e disponibilização de um medicamento para a população brasileira, necessária a autorização da agência reguladora (ANVISA) e cumprimento dos requisitos exigidos, incluindo-se a conclusão dos estudos clínicos, na hipótese de medicamento novo. Cumpridas as exigências legais, pressupõe-se que o medicamento possui segurança mínima para utilização e circulação, mesmo com os riscos naturais.      Contudo, a situação excepcionalíssima e inesperada vivida pela humanidade desde 2020, justificou a entrada emergencial de medicamento (vacina), sem o cumprimento das exigências impostas pela RDC no 9, de fevereiro de 2015, em relação a medicamentos novos. Cumpre salientar que as vacinas para a covid-19, não correspondem a medicamentos experimentais, uma vez que que não estão sendo utilizados durante um estudo clínico, requisito para essa qualificação, nos termos do que estabelece expressamente a RDC no 98 de fevereiro de 2015, da Anvisa. A vacinação compulsória para a covid-19, passou a ocorrer no Brasil a partir da vigência da lei 13.979/20.9 Entretanto, em virtude da exclusividade do Estado quanto à importação e fornecimento das vacinas para a população, inaplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor, diante da inexistência de relação de consumo, bem como por se tratar de objeto relacionado a prestação do serviço de saúde atribuída constitucionalmente ao Estado.10 Em que pese a importância da vacinação e a imposição como medida de saúde pública, a ser implementada pelo Estado em cumprimento aos deveres constitucionais que lhes são atribuídos, inexoravelmente o cidadão faz jus à reparação de todos os danos patrimoniais e extrapatrimoniais que sofrer em decorrência de efeitos adversos ou reações adversas da vacinação, inclusive quando realizada pelos demais entes da federação. Nesse sentido, o sistema aplicável ao Estado, por condutas lícitas ou ilícitas, que causem dano ao cidadão, inclusive decorrente de vacinação é o da responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco administrativo, nos termos da previsão do art.37, § 6º da CF.11 Nesse sentido, o STJ12 já se posicionou em relação a caso semelhante: "quando o Ministério da Saúde planeja a vacinação em massa assume, com absoluta previsibilidade, que lesará alguns vacinados. Ao estabelecer programa de obrigatoriedade de vacinação chama a si a responsabilidade pelos danos emergentes das previsíveis reações adversas, ainda que em ínfima parcela dos vacinados". (grifos nossos). Na referida decisão, o Ministro Herman Benjamin, reafirmou a responsabilidade objetiva da União pelas reações adversas experimentadas por um idoso, após a vacinação em massa, contra o vírus Influenza - Gripe, por desenvolver a Síndrome de Guillain-Barré. Não obstante a indicação específica quanto ao dever do Estado em indenizar reações previsíveis, ou seja, aquelas conhecidas pela indústria farmacêutica e indicadas na bula, como efeitos colaterais possíveis, segundo constatação nos estudos clínicos, subsiste o dever de reparar e/ou indenizar do Estado pelos danos decorrentes de reações imprevisíveis ou não conhecidas, incluindo-se as que decorram do risco do desenvolvimento. O fundamento para a responsabilidade integral do Estado, seja por reações previsíveis ou imprevisíveis está dentro da esfera de obviedade quanto a ocorrência de algum fato danoso, quando se tratar de vacinação em massa, independente de qual vacina estejamos analisando. Por outro lado, consta expressamente que o importador (Brasil) é responsável pela segurança, eficácia e qualidade das vacinas, conforme art. 4o, da Resolução 476/202113, motivo pelo qual tem-se mais um fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado. No entanto, será possível falarmos em reações adversas não conhecidas e imprevisíveis pelo uso das vacinas para a covid-19 e qualificarmos como risco do desenvolvimento? A primeira dúvida, é se poderemos denominar como risco do desenvolvimento a identificação futura de reações, considerando a não conclusão dos estudos clínicos das vacinas para a covid-19, quando foram introduzidas para uso da população.    Para responder é necessário lembrar que ao tratarmos do risco do desenvolvimento deve se considerar "...como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno."14 Nesse contexto, caso comprovado que o defeito decorre de um problema na concepção, ou seja, relacionado a fórmula do medicamento ou mesmo ocasionado com a elaboração do produto e, poderia ter sido identificado, caso concluídos os estudos no momento da inserção do produto no mercado, não estaremos diante de um risco do desenvolvimento. A única alternativa para configurar risco do desenvolvimento é a impossibilidade técnica ou científica de identificação do defeito no momento da colocação do produto, mesmo que estivéssemos diante do exaurimento de todas as fases dos estudos clínicos.  Em outras palavras, defeitos não cognoscíveis através do mais avançado estado da ciência e da técnica, independente da conclusão ou não dos estudos. Por fim, a última questão, diz respeito à possibilidade ou não, de um cidadão brasileiro postular indenização em face da indústria farmacêutica, diante da possível existência de cláusula contratual prevendo a isenção da responsabilidade do fabricante do medicamento (vacina para a Covid-19). Para possibilitar a resposta, fundamental observar que o instrumento foi firmado entre o Brasil e uma indústria estrangeira privada, para permitir o fornecimento de medicamento para a população brasileira.   Portanto, nos termos do art. 9o § 1o 15da LINDB, será aplicada a Lei brasileira, mesmo que a eleição do foro para arbitragem seja em Nova Iorque, haja vista a execução no território brasileiro. A lei 8.666/93, observando as alterações trazidas pela lei 14.133/21, que regulamenta os contratos públicas, será o parâmetro principal, frente a participação do Estado brasileiro. Nada obstante, "Os contratos de que trata esta lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado," (art. 89 da lei 14.133/21). Desse modo, passível a utilização subsidiária das normas de Direito privado. O contrato firmado pelo Estado brasileiro, através do Ministro da Saúde, que representa um órgão da administração direta, vincula e obriga todos os brasileiros, haja vista tratar-se de matéria de Direito Público e não de Direito Privado, em que pese a possibilidade de utilização subsidiária, como exposto. O caso é de representação válida e, como tal, vinculante aos representados, pois não se trata de mera presentação, diante do exercício do múnus público. Motivo pelo qual todas as cláusulas integrantes do contrato assinado diretamente pelo Ministro da Saúde são erga omnes, não permitindo o afastamento sob a alegação de ter efeito relativo, pelo regramento dos contratos privados, firmados entre particulares. Se admitirmos a não vinculação da população aos contratos firmados pelos governantes, sejam eles governadores, prefeitos ou presidente da república, bem como pelos órgãos da administração direta ou indireta, diante da previsão na lei 14.124/21, teremos uma violação direta ao princípio da segurança jurídica, expressamente previsto no art.5º da lei 14.133/21. Entretanto, o maior ônus será atribuído à própria população, pois sofrerá diretamente se admitirmos a violação da segurança jurídica. Isso porque poderemos estar diante da recusa das indústrias farmacêuticas quanto ao fornecimento de medicamentos ao Brasil, especialmente no que se refere à vacina da covid-19. Além disso, é imprescindível considerar que, mesmo tratando-se de matéria regida pelo Direito Público, as empresas farmacêuticas não omitiram sobre a inexistência de encerramento das pesquisas clínicas, pelo contrário, é fato notório e, a nível mundial. Mesmo com a isenção da responsabilidade das indústrias farmacêuticas, o Estado brasileiro vislumbrava a possibilidade de risco real e efetivo a uma parcela de vacinados, sem que possa alegar desconhecimento, diante da plena ciência quanto a não conclusão dos estudos clínicos, fundamento mundial para segurança de um medicamento ser utilizado pela população. Diante desse cenário e acompanhando o raciocínio do Ministro Herman Benjamin no citado julgado, o Estado brasileiro atraiu para si a integral responsabilidade por reações adversas conhecidas ou desconhecidas, previsíveis e imprevisíveis, inclusive as que possam ser denominadas como decorrentes do risco do desenvolvimento. Portanto, competirá ao Estado, com absoluta exclusividade, a responsabilidade integral daqueles que porventura tenham a infelicidade de sofrer reação adversa pós-vacina da covid-19. ______________ 1 European Medicines Agency - Disponível aqui. (acesso em: 19.05.22) 2 Centers for Disease Control and Prevention - Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 3 BRASIL. Anvisa. "Farmacovigilância é definida como a ciência e atividades relativas à identificação, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos adversos ou quaisquer problemas relacionados ao uso de medicamentos". Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 4 BRASIL. Anvisa. "O evento adverso é conceituado como qualquer ocorrência médica desfavorável que pode ocorrer durante o tratamento com um medicamento, mas que não possui, necessariamente, relação causal com esse tratamento. Tal conceito abrange uma série de problemas relacionados ao uso dos medicamentos, incluindo a reação adversa ao medicamento e a inefetividade terapêutica". Boletim de Farmacovigilância -ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em:19.05.22) 5 BRASIL. Anvisa. "A reação adversa ao medicamento é definida como "qualquer resposta prejudicial ou indesejável, não intencional, a um medicamento, que ocorre nas doses usualmente empregadas para profilaxia, diagnóstico ou terapia de doenças ou para a modificação de funções fisiológicas humanas". Boletim de Farmacovigilância - ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 6 STJ, REsp. 1.599405-SP, Min. Marco Aurélio Bellize. Terceira Turma. J. 04.04.2017. DJe.17.04.2017. Disponível aqui (acesso em: 19.05.2022) 7 BRASIL. Lei no 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos (grifos nossos) 8 BRASIL. Anvisa. RDC no 9 de fevereiro de 2015. Medicamento experimental - produto farmacêutico em teste, objeto do DDCM, a ser utilizado no ensaio clínico, com a finalidade de se obter informações para o seu registro ou pós-registro. Disponível aqui (acesso em:19.05.22) 9 BRASIL. Lei no 13.979/20. Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:...d) vacinação e outras medidas profiláticas. 10 BRASIL. Constituição Federal. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 11 BRASIL. Constituição Federal. Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 12 STJ, REsp. 1.388.197-PR, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 18.06.15, DJe. 19.04.17. 13 BRASIL. Anvisa. Resolução 476/2021. Art.4º Caberá ao importador: III - responsabilizar-se pela qualidade, eficácia e segurança do medicamento ou vacina a ser importado; Disponível aqui (acesso em 20.05.22). 14  STJ, REsp. 1.774.372-RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 05.05.20, DJe. 18.05.20. 15 BRASIL. LINDB. Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
A Era Digital alterou profundamente o modelo de comunicação me'dico-paciente e os padrões da publicidade dos profissionais da Medicina. Em um mercado cada vez mais conectado e disputado, os médicos foram lançados no meio digital e levados a promover a publicidade médica como meio de divulgação do seu trabalho. Em especial, as mídias sociais trouxeram dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidade dos profissionais se conectarem com seus potenciais pacientes, mantendo-os informados sobre os seus serviços. Todavia, o grande desafio para os médicos é fazer publicidade e, ao mesmo tempo, adequar suas técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais. O Conselho Federal de Medicina (CFM), erroneamente, diz que o médico pode fazer publicidade, porém, por vezes, confunde os conceitos de "publicidade" com "propaganda". Enquanto a propaganda não tem conteúdo comercial, na medida em que visa propagar uma ideia, ideal e valores, como ocorre com a propaganda eleitoral, a publicidade está relacionada ao despertar de desejo de compra e aquisição, de valorização de determinado produto ou serviço com o intuito promocional. O Código de Ética Médica (CEM/2019) apresenta a visão de que a Medicina é exercida sem finalidade comercial, conforme o inciso IX dos princípios fundamentais: a Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. Contudo, ao regulamentar a forma de comunicação dos médicos com o público, o CFM oscila nas denominações "propaganda" e "publicidade". O Código de Ética Médica nomina a comunicação médica como "publicidade médica", dedicando um capítulo exclusivo para tratar da matéria. Já a Resolução CFM 1974/2011, responsável por detalhar e regulamentar a comunicação médica com o público, apresenta na sua ementa que a normativa é responsável por "estabelecer os critérios norteadores da propaganda em Medicina, conceituando os anúncios, a divulgação de assuntos médicos, o sensacionalismo, a autopromoção e as proibições referentes à matéria". Paradoxalmente, o Código de Ética Médica estabelece que a comunicação médica em meios de comunicação em massa deve ter finalidade exclusivamente educativa e de caráter esclarecedor, conforme o art. 111, mas a Resolução CFM 1974/11 permite que os médicos façam publicidade em revistas, jornais, busdoors, outdoors, internet e TV. Ou seja, na prática, o CFM permite tanto a publicidade como a propaganda. Frise-se que a veiculação de informação de caráter pedagógico é propaganda, mas a veiculação da marca, endereço, imagens e serviços médicos é encarada como publicidade. Partindo-se da premissa que é possível realizar as duas formas de comunicação para a população, é necessário observar que, em um mar de quase 550 mil médicos no Brasil, conforme dados da Demografia Médica em 20201, a publicidade, especialmente em ambiente digital, torna-se ferramenta essencial para obter destaque no mercado. O problema repousa nos limites e potenciais consequências ético-jurídicas decorrentes do exercício da publicidade médica. Considerando a obrigação de meio dos profissionais médicos, é vedada a promessa de resultado, bem como a exibição de imagens de pacientes. De acordo com o art. 75 do CEM, é vedado ao médico "fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou imagens que os tornem reconhecíveis em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente". Complementando o referido dispositivo, a Resolução 1974/11 do CFM proíbe o uso de antes/depois. Em um mundo hiperconectado, a partir de rápida pesquisa nas redes sociais, observa-se que a norma é pouco seguida pelos profissionais, visto que, diuturnamente, enquanto Sociedade da Informação, somos bombardeados com resultados de terceiros e a exibição de resultados de pacientes. Nesse contexto, propõem-se dois questionamentos: 1.     Os resultados postados pelos profissionais, além de antiéticos, podem ser enquadrados como ilícitos cíveis? 2.     A veiculação de resultados pode ser interpretada como promessa de resultado? Em relação à primeira indagação, é incontroverso que a publicação de resultados de pacientes em rede social é uma possível infração ética expressamente vedada pelo CEM em seu art. 75 e pela Resolução CFM 1974/11 em seu art. 3º, "g", porém o possível ilícito cível, apto a reverberar na esfera da responsabilidade civil, exige a falta de consentimento e o uso indevido da imagem do paciente. Em linhas gerais, a publicidade médica deve abranger os princípios da licitude, veracidade, transparência e completude, de modo que ocorra a divulgação do profissional e, em paralelo, informe-se corretamente a população sobre cuidados/tratamentos médicos. A publicidade do profissional da Medicina submete-se à disciplina deontológica estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina, contudo, eventual abuso publicitário será eventualmente analisado na esfera civil, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista as relações contratuais do médico com o seu paciente são consideradas, pela jurisprudência atual majoritária, como relação de consumo e, quando presentes as figuras do consumidor e fornecedor (artigos 2º, 3º, 17, 29, todos do CDC), aplicar-se-ão as normas consumeristas de ordem pública, as quais vedam a prática de publicidade enganosa e abusiva (artigos 6º, IV, 30, 31, 35, 36, 38, todos do CDC), cuja inobservância pode dar ensejo à sanção (artigos 56, 60, 67, 68, 69, todos do CDC). Especificamente em relação à publicidade médica no contexto da prática do "antes e depois", comumente utilizada nas redes sociais para demonstrar os resultados da intervenção médica no paciente, quando há consentimento do paciente para uso da sua imagem, não se pode falar em responsabilidade civil do médico, apenas em potencial responsabilidade ética. Diante do exercício da autonomia do paciente em autorizar, de forma expressa ou tácita, a veiculação do resultado, não se torna possível que o paciente vise a responsabilização civil do profissional. Frise-se que o direito à imagem é disponível, nos termos do artigo 20, do Código Civil. Por outro lado, há limitação na esfera deontológica, segundo ditames do art. 75, do CEM, de modo que mesmo diante de eventual autorização, o profissional ainda pode ser responsabilizado eticamente. Já na hipótese de não ter ocorrido autorização do paciente, o médico poderá responder civilmente pelo uso indevido da imagem e por violação aos direitos da personalidade. Ressalte-se que, ante o sigilo aos dados do paciente, o médico não deve veicular tais informações. Desta forma, há possivelmente dois ilícitos cíveis: violação do sigilo e uso indevido da imagem do paciente. Em relação ao segundo questionamento proposto, destaque-se que a veiculação de resultados de pacientes em redes sociais apenas representa os tempos modernos de um oceano de superficialidade formado por ilhas de sucesso, beleza e bons resultados, enquanto os bastidores e maus resultados são submersos. Ao veicular bons resultados dos pacientes, notadamente na área estética, o profissional acaba por difundir um ideal de beleza e de possibilidade terapêutica que é extremamente subjetivo. Como bem reforça William Osler, a Medicina é a arte da incerteza e a arte da probabilidade. Ou seja, a publicidade médica pode transparecer uma garantia de certeza e alcance daquilo que é incerto e, por vezes, inalcançável. Essa veiculação de resultados pode representar violações ao processo de consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido), uma vez que as imagens veiculadas podem comprometer a percepção e compreensão do ato médico. Uma vez violado o consentimento do paciente, o médico poderá ser responsabilizado pela distorção causada no dever de informar. Paralelamente, as imagens poderão gerar uma possível responsabilidade decorrente da violação à legítima expectativa do paciente, isto é, da promessa de resultado, ainda que de forma implícita. Ao publicizar os resultados pretéritos, o profissional pode atrair uma obrigação de resultado, pois incute no paciente que aquele resultado individual e subjetivo pode ser replicado em terceiros. Não se nega que as regras de publicidade médica precisam ser mais bem discutidas e atualizadas, porém há uma necessidade premente de que a utilização das imagens de pacientes ocorra mediante o consentimento dos retratados, ainda que se utilize devidamente as imagens no contexto da prática do "antes e depois" para publicidade, a fim de que haja a preservação e integridade na informação, processamento e exercício da autonomia por parte do potencial paciente. Paralelamente, o profissional deve ter a exata dimensão das possíveis consequências do uso (autorizada e não autorizada) da imagem dos seus pacientes. Em um mundo de aparências, a veiculação da realidade é a maior beleza que se pode exigir. ____________________ SCHEFFER, Mário et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. p. 37
O debate em relação a possibilidade de aplicação, dos chamados danos punitivos, (punitive damages, exemplar damages) com função punitivo-pedagógica, na responsabilidade civil por danos ambientais, é constante. Danos punitivos sempre existiram, desde o Código de Hamurabi, mas vinculados à esfera civil-ambiental é recente. Conforme Lourenço, "a pena privada constitui uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil".1 (*) Atualmente, menciona Gomes, há consenso à admissão da finalidade preventiva e punitiva da responsabilidade civil, ainda que que subordinada, pois "mesmo atribuindo-lhe um papel secundário, isto é, subordinado, aceita-se hoje, em princípio, a importância da finalidade preventivo-punitiva da responsabilidade civil". Menciona preventivo-punitiva, justamente "porque, no fundo, prevenção e punição são duas faces de uma mesma medalha, expressões de um único princípio",2 pois para a doutrina portuguesa, a função primordial da responsabilidade civil é a função reparatória, embora hoje a função preventiva, antes secundária, tenha ganhado importância. Por isso a doutrina portuguesa, acentua Antunes, embora afeiçoada ao entendimento "tradicional da primazia da natureza ressarcitória do instituto, concede no acolhimento de funções de índole preventiva e punitiva em sede do regime actual e, mesmo, perspectivando a sua extensão".3 Há também quem entenda de forma contrária, conforme Leitão, embora faça a advertência da impossibilidade da aplicação dos punitive damages no direito português, deixa em aberto uma saída possível, ou seja, a elaboração de critérios para avaliação do dano ambiental. Menciona que "o dano ambiental, por se verificarem lesões de situações jurídicas individuais, coloca exclusivamente o problema da determinação do quantum indemnizatório". E complementa que mesmo "não sendo admissível no nosso direito uma ideia de punitive damages, a solução será a da elaboração de critérios para avaliação do dano ambiental".4 Há que se registrar que a Europa possui a Directiva 2004/35CE - (Regime Próprio de Responsabilidade Ambiental), internalizada por Portugal pelo decreto-lei 147/08 (Regime de Prevenção de Reparação do Dano Ecológico). Já o Brasil não possui um "Regime jurídico de responsabilidade por danos ambientais". Então três são os fundamentos: 1) Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, 6.938/1981 Artigos 3º, inciso IV e 14, §1º; 2) Constituição Federal Brasileira de 1988 - Art. 225 § 3º e 3) Código Civil de 2002 - Artigo 927 - Parágrafo único. Voltando à função punitiva, no Brasil, um projeto de lei 6.960/025 mencionava a função punitiva, mas tal projeto nunca virou lei para entrar em vigor, sendo arquivado.6 Merecem referência ainda outros projetos para alterar o Código Civil, PL 669/117 e PL 3880/12.8. Destaque-se: No Brasil, a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva, independe de culpa, baseada na teoria do risco integral, cuja comprovação do nexo causal entre o dano e a conduta-atividade-risco é fundamental. Por isso, reafirme-se que a responsabilidade civil pode ser adotada tanto preventivamente como, na maioria das vezes, de forma reparatória e indenizatória,9 visto que o instituto desempenha não só uma função sancionatória, mas também preventiva.10 Há que se mencionar que as medidas de prevenção e precaução também devem integrar a reparação de danos.11 Então, as medidas que devem ser adotadas para uma efetiva reparação civil do dano ambiental são: a reparação propriamente dita, a supressão do fato danoso, com a cessação da atividade causadora do dano, a restauração natural, quando possível, a compensação de danos extrapatrimoniais e, também, as indenizações, pois, no campo da responsabilidade civil, esta se concretiza com a obrigação de fazer, não-fazer e dar, no pagamento de soma em dinheiro, revertida para o Fundo de Direitos Difusos e Coletivos. Relembre-se que, de forma inovadora, ainda no ano de 2013, no Recurso Especial 1.414.547-MG, publicado em 10 de dezembro de 2014, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, abordou-se o caráter punitivo do dano moral coletivo, cujo valor da condenação em dinheiro é revertido para os fundos nacional e estadual.12 Nem toda doutrina e jurisprudência, porém, converge, pois também há votos contrários a aplicação dos danos punitivos, como no Recurso Especial 1.354.536-SE, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que afasta, portanto, o caráter punitivo da responsabilidade civil quando presente dano ambiental, e esta deve ser usada somente no Direito Penal e no Direito Administrativo, sendo considerada inadequada a aplicação na reparação civil.13.14. Outros julgados ainda mereceriam destaque aqui... Por tudo, toma-se como pressuposto, no exame da responsabilidade civil por dano ambiental, o regime jurídico traçado no Brasil, consagra a responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco integral, e com reparação integral, ao poluidor/degradador, tanto a pessoa física como jurídica, ao poluidor direto e indireto, em perspectiva pública e privada, com a possibilidade de cumulação da recomposição do meio ambiente e de parcelas relativas à indenização dos danos morais coletivos, extrapatrimoniais, as quais revertem para os fundos dos direitos difusos que viabilizam importantes projetos, principalmente de educação ambiental, para as presentes e para as próximas gerações. Por fim, doutrina e jurisprudência estendem o debate... ______________ *Tema integrante da Tese de Pós-doutoramento pela FDUL - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal, agora em livro: BÜHRING, Marcia Andrea. Responsabilidade civil ambiental/ecológica: Pontos e contrapontos no "transitar verde" entre contextos distintos de estudo comparado entre Portugal e Brasil. Londrina, PR: Thoth, 2022. 1 LOURENÇO, Paula Meira. Os danos punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol XLIII, nº 2, pp 1.024-1.025. Traz importante evolução: "A atribuição de uma indemnização que excede o dano sofrido pelo lesado, com um escopo sancionatório e preventivo, era já prevista no Código de Hammurabi (2000 A.C.), nas Leis Hititas (1400 a.C.) e no Direito Romano, segundo o qual, em sede de relações privadas (delicta privata), a pessoa que houvesse ofendido os direitos de outrem ficava obrigado a pagar-lhe uma pena pecuniária com finalidade repressiva (obrigatio ex delicto).[...]" 2 GOMES, Júlio. Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade penal? Revista de Direito e Economia. Coimbra, ano 15, 1989, p. 106. 3 ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do lucro ilícito e de Efeitos Punitivos entre as Consequências da Responsabilidade Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 553-554. 4 LEITÃO, Luis Menezes. A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente. Actas do Colóquio: A responsabilidade civil por dano ambiental. Faculdade de Direito de Lisboa Dias 18, 19 e 20 de Novembro de 2009. Organização de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes. Edição: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. www.icjp.pt Maio de 2010. p. 23-24. 5 BRASIL. PL 6.960/2002. Disponível aqui.  Acesso em 20 dez. 2018. 6 GIANCOLI, Brunno Pandori; WALD, Arnoldo. Direito Civil: Responsabilidade Civil: v. 7. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 53. 7 SÁ, Arnaldo Faria de. PL 669/2011. Altera o Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui.  Acesso em: 01 jun. 2021. 8 NETO, Domingos. PL 3880/2012. Altera a redação dos arts. 186 e 944 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. 2012. Disponível aqui . Acesso em: 10 abr. 2021. 9 BÜHRING, Marcia Andrea; TONINELO, Alexandre Cesar. Responsabilidade Civil Ambiental do Estado, em face dos desastres naturais: na visão das teorias mitigadas e da responsabilidade integral. Revista de Direito ambiental e socioambientalismo, v. 1, p. 57-77, 2018. 10 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2.ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 118. 11 "A reparação do dano ambiental deve incluir medidas de prevenção e precaução, tendentes a transformar a gestão de riscos ambientais no processo produtivo da fonte poluidora, para que os danos ambientais não ocorram ou não se repitam. Trata-se aqui de mudar o modus operandi que determinou a ocorrência do dano, procurando-se atuar sobre as externalidades ambientais negativas, que deverão ser incorporadas no processo industrial, de sorte a evitar-se a apropriação quantitativa e qualitativa dos elementos naturais". STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade Civil Ambiental: As dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 265. 12 Veja-se: "A condenação judicial por dano moral coletivo é sanção pecuniária, com caráter eminentemente punitivo, em face de ofensa a direitos coletivos ou difusos nas mais diversas áreas (consumidor, meio ambiente, ordem urbanística etc.). A indefinição doutrinária e jurisprudencial concernente à matéria decorre da absoluta impropriedade da denominação dano moral coletivo, a qual traz consigo - indevidamente - discussões relativas à própria concepção do dano moral no seu aspecto individual. [...] O objetivo da lei, ao permitir expressamente a imposição de sanção pecuniária pelo Judiciário, a ser revertida a fundos nacional e estadual (art. 13 da Lei 7.347/85), foi basicamente de reprimir a conduta daquele que ofende direitos coletivos e difusos. Como resultado necessário dessa atividade repressiva jurisdicional surgem os efeitos - a função do instituto - almejados pela lei: prevenir a ofensa a direitos transindividuais, considerando seu caráter extrapatrimonial e inerente relevância social". Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2019. 13 "Ação Indenizatória por Dano Ambiental proposta por Maria Gomes de Oliveira em desfavor de Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras). A autora alegou que, no dia 5 de outubro de 2008, a Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN), uma das várias unidades de operações da Petrobrás, deixou que cerca de 43.000 litros de amônia vazassem para o leito do rio Sergipe, causando a mortandade dos animais que dele dependem e o desequilíbrio da cadeia alimentar" 14 Veja-se: "[...] b) a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar a sua obrigação de indenizar; c) é inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo; d) em vista das circunstâncias específicas e homogeneidade dos efeitos do dano ambiental verificado no ecossistema do rio Sergipe - afetando significativamente, por cerca de seis meses, o volume pescado e a renda dos pescadores na região afetada -, sem que tenha sido dado amparo pela poluidora para mitigação dos danos morais experimentados e demonstrados por aqueles que extraem o sustento da pesca profissional, não se justifica, em sede de recurso especial, a revisão do quantum arbitrado, a título de compensação por danos morais, em R$ 3.000,00 (três mil reais) [...]". BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1245550/MG. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 17 mar. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 22 dez. 2018.  
Panorama fático O agronegócio (agro) representa um pilar econômico nacional e sua pujança se comprova pela participação em 27,4% do PIB e geração de receitas com exportação no patamar de US$ 120,59 bilhões, em 2021. Borges e Parré (2022, p. 20) interligam diretamente o sucesso produtivo à disponibilidade de crédito, público e privado. Apenas no ano passado, foram liberados R$ 251,22 bilhões para fomento da atividade no Plano Safra. Indissociáveis, portanto, o agro e o crédito compõem o sistema financeiro e econômico constitucional que objetiva o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades e o progresso do Estado brasileiro. Apesar do indubitável sucesso, o agro, por se tratar de atividade com atuação agrária direta, sempre representou algum tipo de risco ao meio ambiente, notadamente porque também responsável por desflorestamentos e poluições. Consoante registro do MAPBIOMAS, houve a perda de aproximadamente 10% das matas entre 1985 e 2020, representando 13.853 km2 de área apenas nesse último ano analisado. Desse total, 98,9% foram desmatamentos ilegais, 12,4% em unidades de conservação (UC's) federais ou estaduais e 7,3% em área indígena, com finalidade predominante de abertura de novas fronteiras agrícolas e pecuária, ou seja, relacionados intimamente à cadeia do agronegócio. Do ponto de vista creditício, a exemplo de qualquer atividade capitalista produtiva, a exposição aos riscos, inclusive ambientais, integra o cerne e a essência negocial pela busca do lucro, os quais são sopesados nas condições legais, negociais e remuneratórias.  Com efeito, apesar do compromisso pela sustentabilidade exigido de todos os ramos econômicos, não é possível afastar integralmente o perigo de lesão ambiental em empreendimentos financiados. Como não há na jurisprudência do E. STJ enfrentamento específico sobre a modalidade jurídica de responsabilização aplicável aos agentes financiadores, encaminham-se aos distintos leitores algumas das nossas reflexões acerca da temática. Responsabilidade ambiental do financiador A responsabilidade civil, subdividida em objetiva e subjetiva, é a figura do Ordenamento Jurídico reservada para imposição, ao agente gerador do ato ilícito, da obrigação de reparação e indenização. Para sua caracterização, Destefenni (2005, p. 82/93) elenca três requisitos: o primeiro, a conduta, ato ativo do agente, comportamento, procedimento; o segundo, o dano, a lesão gerada pela conduta comissiva ou omissiva; e, o terceiro, nexo de causalidade, a relação, conexão entre o ato e a lesão. Conforme Ayala (2012, p. 125), a culpa reflete uma ofensa, maculação, um desrespeito a uma obrigação prévia, caracterizado pela negligência, imperícia ou imprudência. Para a modalidade objetiva inexiste vínculo imperativo entre a conduta e a culpa do agente, senão somente nexo de causalidade entre a lesão e a conduta, vez que não perquirida a culpa, como cediço.. Lado outro, para a modalidade subjetiva (regra no Direito Civil), necessário o dano, o nexo de causalidade e a conduta típica, assim entendida como ato do agente culposo ou doloso. Nesse panorama fático-jurídico, a análise sobre a (im)possibilidade de responsabilização dos agentes financiadores considera duas alternativas com consequências distintas. Responsabilidade Objetiva A corrente doutrinária predominante defende a responsabilização objetiva dos agentes financiadores por qualquer dano ambiental. Para Fiorillo (2011, p. 98), inexiste a necessidade de culpa, bastando apenas que o dano seja oriundo do ato, já que o exercício de uma atividade apresenta seus riscos inerentes. Para essa corrente, eventual lesão ao meio ambiente gerado por obra ou atividade financiada decorre por força de lei, independentemente de qualquer requisito ou circunstância. De forma enfática, Raslan (2012, p. 274/275) afirma que a intermediação financeira visa ao lucro e afasta a possibilidade de análise de culpabilidade, conquanto a relação de causalidade surge desde a formalização da operação creditícia. O nexo causal se concebe no exato momento de liberação dos recursos destinados ao empreendimento financiado, porquanto sem referida intermediação não existiria a possibilidade do dano. Dessa forma, não há distinção entre o poluidor direito e o indireto, representando o segundo mero coobrigado solidário do primeiro. Em diversas decisões recentes (REsp 1778729/PA, exempli gratia), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) corroborou com sua adoção, conceituando a obrigação ambiental como de natureza objetiva, ilimitada, solidária, propter rem e imprescritível. Todavia, não se vislumbrou na pesquisa nenhum julgado específico no tocante aos agentes financeiros. A doutrina denomina essa teoria de Risco Integral. Segundo Sampaio (2013, p. 39), o risco integral impossibilita, inclusive, qualquer causa excludente de responsabilidade prevista no Código Civil, ou seja, o dever de reparar perdura tão somente pelo dano, mesmo atribuindo-se a culpa exclusiva ao financiado, em caso fortuito ou força maior. Em contrapartida, o mesmo autor defende que a adoção dessa teoria alcançaria restritamente o poluidor direto, não sendo cabível interpretação extensiva. A adoção da responsabilização objetiva e do risco integral representa a solução com maior perspectiva de defesa do meio ambiente, seja na espécie preventiva ou reparatória, dada a capacidade administrativa e financeira dos bancos. Responsabilidade Subjetiva A corrente antagônica defende que a responsabilização objetiva dos agentes financiadores, na prática, possui traços de subjetividade, pois pressupõe uma das características da culpa (imprudência, imperícia ou negligência), notadamente, porque o ato de financiar de per si não representa risco ambiental. Desconsiderar integralmente o aparato legal na análise da responsabilização ambiental, basicamente iguala o fornecedor creditício que respeitou amplamente os princípios constitucionais (prevenção, precaução e desenvolvimento sustentável), leis infraconstitucionais, resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central, exigiu a averbação da reserva legal, não financiou produtores em listas de trabalho escravo, realizou fiscalizações contratuais, enfim, adotou toda diligência esperada, com outro fornecedor que garantiu o crédito sem nenhuma exigência. A solidariedade ilimitada implicaria, de fato, em ilegítimo incentivo à não observância do regramento existente para a concessão de crédito, notadamente, porque a adoção das cautelas retrocitadas apenas elevaria o custo administrativo e empresarial, sem efeito material na responsabilização. O risco extremo, além da possibilidade de restrição creditícia, levaria os financiadores a laborarem com excesso de diligência e interferência no agronegócio, invadindo a esfera privada na sua dimensão econômica, em grave ofensa aos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de atividade. Não se pode olvidar também que o Estado sempre se posicionaria como poluidor intermediário indireto, seja na qualidade de licenciador ou na condição de fiscalizador. Outrossim, representa também a responsabilização de todos os outros intervenientes da cadeia, tais como, fabricante, revendedor de agrotóxicos, implementos agrícolas, profissionais da área ou qualquer pessoa física ou jurídica integrante da relação danosa, dada que a seletividade ofenderia o tratamento isonômico. Por tais motivos, a mitigação do risco integral e a adoção do risco criado se mostra viável. Para essa teoria aquele que gera uma situação de risco em virtude de atividade ou profissão atrai para si a responsabilidade pela reparação de dano causado, desde que não consiga comprovar que agiu da forma esperada para evitá-lo ou que tomou todas as precauções regulamentares no exercício da atividade. (Raslan, 2012, p. 201). Machado (2020, p. 410) é enfático no sentido de abalizar a transferência do risco para o financiador, apontando o compartilhamento como a melhor solução jurídica, permitindo dessa forma a apreciação da culpabilidade. A propósito, foi essa a solução aplicada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região, ao julgar o Agravo de Instrumento 0060759-67.1997.4.01.0000.  Conclusão In casu, o caminho mais sensato é se posicionar de maneira restritiva no ponto da responsabilidade objetiva. Não havendo, por ora, jurisprudência consolidada no tema, cabe ao Mercado dialogar com os Tribunais, mormente com o STJ, dada a sua qualidade de responsável pela uniformização de entendimento. Certo é que a condenação indiscriminada dos bancos poderá acarretar efeito econômico negativo (restrição de crédito e juros mais altos, v.g.), sem, efetivamente, gerar maior grau de proteção ambiental. A solução é harmonizar estas duas dimensões à luz do estado da arte da Responsabilidade Civil. Bibliografia AYALA, Patryck de Araújo. Direito Fundamental ao Ambiente e a Proibição de Regresso nos Níveis de Proteção Ambiental na Constituição Brasileira. In: LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental na Sociedade de Risco. São Paulo: Saraiva. 2012. Borges, M. J., Parre', J. L. (2022). O impacto do crédito rural no produto agropecuério brasileiro. Revista de Economia e Sociologia Rural, 60(2), e230521. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Exportações do agronegócio batem recorde em dezembro e no ano de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 02 jan. 2022. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano Safra 2021-2022. Disponível aqui. Acesso em 02 abr. 2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1778729/PA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/09/2019, DJe 11/09/2020. Disponível aqui. Acesso em 12 mar. 2022. BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento 0060759-67.1997.4.01.0000, Rel. JUIZ ANTÔNIO SÁVIO O. CHAVES (CONV.). SEGUNDA TURMA, julgado em 07/11/2000, DJe 11/12/2000. Disponível aqui. Acesso em 22 abr. 2022. CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA) E CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA E PECUÁRIA (CNA). PIB do agronegócio brasileiro. Disponível aqui. Acesso em 02.abr.2022. DESTEFENNI, Marcos. A responsabilidade civil ambiental e as formas de reparação do dano ambiental: aspectos teóricos e práticos. Campinas: Bookseller, 2005. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2020. RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade Civil Ambiental do Financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2020 - São Paulo, Brasil - MapBiomas, 2021 - 93 páginas. Disponível aqui. Acesso em 02 jan. 2022. SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Reponsabilidade civil ambiental das instituições financeiras. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 201
Alberich, senhor dos Nibelungos, segundo a mitologia nórdica, forjou um anel que trazia consigo uma benção ou poder e, ao mesmo tempo, uma maldição. E, estes rápidos escritos, que têm pretensão de apenas plantar uma reflexão, irão tratar de um poder que traz consigo, muitas das vezes, uma dura maldição. Quando se fala em demanda ressarcitória, ação de indenização, ação de compensação etc., somos levados a pensar, quase que mecanicamente, em danos materiais que geram indenizações ou danos morais (como a conhecida negativação indevida) que promovem a possibilidade do pleito compensatório. É um reflexo natural. Pensamos em danos do dia a dia e da importância do sistema de ressarcimento estabelecido para eles. Contudo, nos esquecemos de situações mais profundas, mais delicadas, principalmente ligadas a grandes tragédias e/ou danos existenciais em que um ingrediente duro, áspero, doloroso, se faz presente a todo momento: a lembrança. O tempo é capaz de amansar e adelgaçar as feridas. Mas ele possui uma adversária cruel, a recordação. Ela, senhora do ontem, faz uso de todo momento e oportunidade possível para trazer à tona o que jazia no fundo, de tornar revolto o que já havia decantado. E é o tempo que tenta apagar o motor que mantém cada vez mais forte o poder da lembrança. É a lembrança, a recordação, a responsável por gerar a revitimização pelo viés que interessa este escrito. O rememorar, o reviver a dor. E todo episódio é uma infeliz oportunidade para o sofrer. A revitimização é tema de estudo na Ciência do Crime, em delitos contra a dignidade sexual, violência doméstica. Na esfera civil, o abandono afetivo é pari passu com esta questão. Mas a esfera da Responsa Civil, quando fincada em danos existenciais, é repleta de questões que, despertas, nos levam a refletir sobre o dano intrínseco à própria demanda. Nos livros mais antigos, o conceito de strepitus judicii (literalmente, o barulho do julgamento) buscava abarcar o dano contido no manejo da ação criminal e, justificava, restrições ao direito de agir nos, ao tempo, crimes contra os costumes. Hoje, evoluindo esta visão, inicia-se uma jornada para se evitar que a vítima seja submetida à uma desnecessária exposição. Das diversas facetas que a revitimização pode se apresentar, duas interessam diretamente a este rápido escrito. A primeira, através da conduta opressora do próprio Estado-Juiz ou Estado-Administração, quando do conduzir do processo e, outra, decorrente da duração excessiva do feito. A primeira vertente já foi objeto de análise pelo Direito Penal. A segunda, contudo, resta esquecida na compreensão indevida de que o processo dura o tempo que se faz necessário. De lege lata, é possível ver que o sistema Processual Penal, tanto o comum quanto o regime dos Juizado Especiais Penais, há tempos, já demonstra preocupação com a revitimização. Desde 2017, com a lei 11.340, o tema da revitimização ganhou tutela no art. 10-A da referida lei. Antes, já se reconhecia a violência institucional como um mecanismo que poderia gerar a revitimização, na lei 13.431/17 (em seu art. 4º, IV). O Conselho Nacional de Justiça se manifestou, em 2018, sobre o tema, através da resolução 254. E, mais recentemente, as leis 14.425/21 e 14.321/22, trouxeram em seu bojo a penalização da conduta da violência institucional1. A segunda situação, que se apresenta para análise de lege ferenda, é a possibilidade de se estabelecer, a símile do que ocorre no processo penal, um sistema especial de prazos, sem que se decote ou suprima o contraditório e ampla defesa, mas garanta um transcorrer célere entre a propositura da ação ressarcitória existencial e a sentença final. Fundamental que se tenha, também, reflexos sobre o sistema recursal, como já, timidamente, agiu o Legislador no art. 1.015 do Código de Processo Civil acrescido da visão do Superior Tribunal de Justiça em relação à norma. É conhecida a frase que afirma ser a justiça tardia, na realidade, injustiça qualificada e manifesta, imortalizada por Rui Barbosa. Contudo, os prazos processuais destinados ao Magistrado e às Serventias e Auxiliares, enfim, ao Judiciário como um todo, são, no mais das vezes, impróprios. Tentado reunir os conceitos, não se pode confundir tal questão com a possibilidade de uma citação levar um ou dois anos para se efetivar, ou um processo, em ponto de decisão final, levar meses para ser sentenciado. Ou, também, em demanda de erro médico, o conhecimento ou não de denunciação da lide tenha sua apreciação, em grau de recurso por Tribunal, após quase três anos. Os Juizados Especiais, por sua lei, tiveram por objetivo trazer celeridade para demandas de menor complexidade e, desta forma, desatende de plano a proposta que aqui se apresenta. Pior, é fato que, na prática forense, as demandas por tal via acabam, por vezes, consumindo mais tempo até a final decisão do que se se optasse pela via comum de conhecimento. Advirta-se não ser razoável colocar num mesmo quadro de preferência demandas indenizatórias unicamente materiais, derivadas de danos materiais ou mesmo morais, mas que não atinjam o âmago da existência. É preciso realizar, sobre as hipóteses de cabimento, um recorte temático. Erros médicos graves, abandono afetivo, grandes acidentes, enfim, questões que geram o desgaste a cada retomada. É fato, também, que em se determinando que tocaria a definição de aplicabilidade (ou não) do rito célere ao Magistrado ocorreria o patente risco de construção de mais meios recursais, o que, ao invés de acelerar, tornaria ainda mais lento o feito. Do mesmo modo, a previsão de um rol fechado, estreito, de hipóteses em que deveria ser reconhecido o rito especial, colocar de fora da previsão novas compreensões de danos existenciais, seria também um fato perigoso. Neste espaço, o meio termo pode se apresentar como uma solução. Um rol, de natureza exemplificativa, estabeleceria a aplicação automática do rito, somente sendo recorrível se o Magistrado compreender não se adequar a previsão legal à situação, cabendo ao interessado, o recurso de Agravo para a obtenção do rito especial. Este limite pode servir como um inibidor do mal uso do procedimento. Dito isto, como se conceber um tal rito especial para as demandas existenciais? Um primeiro passo, importante para que se ressalte a especial natureza do feito, passa por definir os sujeitos destinatários de uma esperada previsão legal de celeridade. Para isto, o conceito de hipervulnerável (no momento deste texto contempla os indígenas - REsp 135.867 -, crianças e adolescentes - REsp 1.517.973 -, idosos - EREsp 1.192.577 -, pessoas com deficiência - REsp 931.513 - e mulheres em situação de violência doméstica - RHC 100.446), o qual vem sendo cunhado pelo STJ serviria de um porto seguro para a partida. À razão subjetiva, o esteio objetivo baseado nas demandas existenciais, estabeleceria o conjunto elementar para o lastro da norma esperada. Tudo isso desaguaria no processo. Proposta a demanda ocorria a fixação de urgência na conclusão e, após o despacho, a realização da citação ocorria em regime de urgência. Feito isso, prazos específicos para os atos como os já conhecidos "decidirá em 10 dias", como exemplo. Por fim, o estabelecimento de um prazo final para a sentença, respeitando a necessidade, ou não, de perícia, de forma a limitar no tempo medidas que unicamente buscam atrasar o feito. Pois, aqui, o tempo machuca e faz doer. Tudo isso faz da função educacional da responsabilidade (prevenção geral) letra morta e acaba por antepor uma questão complexa: se o brocardo popular afirma que o crime não compensa, será que ainda persistiremos em aceitar que os delitos civis compensarão? E, ao mesmo tempo, insistir em desconhecer a importância de se proteger a vítima nas demandas ressarcitórias existenciais? A proposta pode abarcar variações, por exemplo, um rito próprio para demandas com perícia pessoal e outro para demandas em que a perícia recaia sobre documentos; a efetiva justificativa acerca da necessidade do depoimento do autor solicitado pelo requerido, são exemplos de recortes processuais que não empobreceriam o feito e não amputariam a garantia Constitucional da ampla defesa. Sobre este último tema, o decote de provas ou diligências desnecessárias, contemplado no Código de Processo Civil em seu art. 370, parágrafo único, pode, antes de qualquer modificação legal, trazer maior humanidade para as demandas existenciais. Mas, hoje, sob o argumento de não se impedir a defesa processual, há feitos em que se deferem as medidas mais estapafúrdias e desencontradas ou mesmo passa-se pela fase do saneador com uma simples listagem das provas requeridas, sem que se faça necessário justificar o que pedido. Por tudo isso, perdeu o Legislador, quando tratou da violência institucional, grande oportunidade para cuidar das demandas civis. É necessário entender que aquele que sofre o dano civil deve ser devidamente tratado como vítima e o mesmo sistema que reconhece a proteção para o defendente, deve conhecer da importância de se tutelar quem, a cada momento do encadernado processual, é lembrado da dor, do sofrimento, da ruptura. Não se tem, assim, um ponto feito, mas espera-se que como todo crochê seja este um movimento que, junto aos que lhe antecederam e aos que ainda virão, possibilitarão, um dia, a compreensão de que a vítima já sofreu e sofre, não havendo sentido em se reforçar, ainda mais, tal lembrança. E, nesta jornada, se não se apagar por completo da forja do Rei dos Nibelungos, que, ao menos, o anel possa ser rompido, livrando a maldição uma parte dos cidadãos brasileiros. _____________ 1 Recomenda-se, para um perfeito recorrido histórico, a leitura do texto de Renee do Ó Souza, publicado aqui.
A caracterização dos danos extrapatrimoniais no âmbito dos contratos de transporte aéreo há muito gera intenso debate em âmbito doutrinário, não havendo ainda consenso no campo jurisprudencial. Ante a histórica dificuldade da comprovação de lesão a um interesse existencial, defende-se, de um lado, que se deve presumir a ocorrência do dano (dano in re ipsa), quando perpetrado um ilícito no desenvolvimento da atividade de transporte, como, por exemplo, em casos de cancelamento ou atrasos de voo. De outra parte, no entanto, sustenta-se caber ao consumidor a prova de que houve a efetiva violação a direito da personalidade1, não se podendo concluir pela ocorrência de dano unicamente em razão de um ato ilegal efetivado pela companhia aérea. O desenvolvimento da ideia de dano moral in re ipsa deve ser entendida no contexto da excessiva judicialização de diversos aspectos da vida social. De fato, não se pode ignorar a circunstância de que a ampliação desmesurada da litigiosidade tem como uma de suas causas a crença infundada de que o Poder Judiciário teria como um de seus escopos a transformação social, substituindo, deste modo, a atuação, muitas vezes deficitária, dos Poderes Executivo e Legislativo. O processo judicial tem-se transformado em instrumento de solução das mais variegadas mazelas sociais que afetam o país. Debate-se, neste sentido, o custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Segundo a ANAC, no ano de 2017, as condenações judiciais decorrentes de demandas ajuizadas por passageiros representaram cerca de 1% dos custos e despesas operacionais das empresas aéreas brasileiras. De acordo com a Junta de Representantes das Companhias Aéreas Internacionais do Brasil (JURCAIB), este gasto, de aproximadamente R$ 311 milhões, é resultado de mais de 60.000 processos intentados contra as empresas de aviação nacionais. Relata-se ainda que o número de processos propostos por passageiros contra as aéreas saltou de 64 mil em 2018 para 109 mil, apenas entre os meses de janeiro e julho de 2019, de acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER). Segundo o diretor da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), em 2018 havia, em média, 174 ações por dia, elevando-se este número para 520, no primeiro semestre de 2019, de forma que a judicialização do setor no Brasil alcançou o custo de R$ 1 bilhão por ano. Poder-se-ia argumentar, como modo de justificar os números apresentados, que as empresas de aviação aérea nacionais prestariam um serviço de péssima qualidade, ostentando números mais elevados de cancelamento e atrasos de voos, em comparação com a média internacional, e deixando de assistir os passageiros quando da ocorrência de alguma falha no exercício da atividade. Esta hipótese, no entanto, não parece coincidir com a realidade. Com efeito, segundo se noticiou, uma empresa americana operou, em 2017, 5.000 voos diários nos EUA, recebendo, ao longo do ano, cerca de 130 processos ajuizados por consumidores naquele país. Esta mesma empresa, que também tem funcionamento no Brasil, operou aproximadamente 5 voos diários no mesmo período, figurando como ré em 1.200 processos, embora siga protocolos similares em ambos os países2. Ainda segundo dados fornecidos por Dany Oliveira, diretor da IATA, uma companhia aérea, com oferta global em 67 países, cuja participação no Brasil era de apenas 3%, possuía mais de 85% das causas judiciais alocadas em território brasileiro. Deve-se notar ainda que, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (ABEAR), cerca de 85% dos voos das empresas aéreas associadas partiram e chegaram nos horários previstos em 2018, enquanto nos EUA essa taxa alcançou o patamar de 82%, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e do Departamento de Transportes dos Estados Unidos. Outrossim, a taxa de falhas no manuseio de bagagens pelas aéreas nacionais, também em 2018, teria sido de 2,45 para cada mil volumes despachados, menos da metade da média mundial (5,68), segundo a Sociedade Internacional de Telecomunicações Aeronáuticas (SITA)[3]. Corroborando tais dados, o relatório "OAG Punctuality League 2019 - On time performance results for airlines and airports", produzido pela consultoria britânica Official Airline Guide (OAG), especializada em inteligência de mercado de aviação, demonstra que a aviação brasileira ocupa posição de destaque mundial no quesito pontualidade4. Em pesquisa no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, constata-se que a expressão "dano moral in re ipsa" é utilizada pela primeira vez5 em julgado do ano de 1997, em processo sob a relatoria do Min. Cesar Asfor Rocha6. Trata-se de caso em que autora era uma das passageiras do ônibus da empresa ré, causadora de um acidente de trânsito por imprudência e imperícia de seu motorista, que trafegava sem segurança, com lonas dos pneus soltas e descoladas, tendo a vítima sofrido lesões corporais que a incapacitaram temporariamente para o trabalho. O impacto do acidente causou ainda sequelas na coluna vertebral, reduzindo sua capacidade laborativa. Amparado na doutrina de Carlos Alberto Bittar, entendeu o relator pela desnecessidade da prova do prejuízo e fixou a compensação por dano moral no montante de 100 salários mínimos. Em relação a casos de atraso de voo, o primeiro acórdão do STJ a aplicar a tese do dano moral presumido, e a mencionar expressamente o "dano moral in re ipsa", data de novembro de 2009. Segundo se registrou na ementa, "o dano moral decorrente de atraso de voo, prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador se opera, in re ipsa, por força do simples fato da sua violação em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro". Analisando-se o relatório e o voto do relator, constata-se que sequer se menciona a duração do atraso, entendendo-se pela existência de dano extrapatrimonial unicamente em razão do retardo da partida do voo. Ante a dificuldade, portanto, da realização da prova das consequências ou prejuízos morais causados à vítima, tem-se declarado que o dano moral é in re ipsa, decorrendo inevitavelmente da ilicitude praticada. Esta construção teórica, no entanto, parte de premissas equivocadas e parece não se sustentar ante as incongruências que apresenta. Com efeito, não se mostra correta a identificação do dano extrapatrimonial com seus efeitos, não constituindo o pressuposto anímico elemento ontológico da lesão existencial. A existência de sentimentos deletérios não serve à caracterização do dano moral, eis que impossível a sua aferição por meio de critérios objetivos. A dor e o sofrimento, embora muitas vezes se materializem nos casos de lesão não patrimonial, consistem em mera manifestação consequencial do dano, com este não se confundindo. Neste sentido, os nascituros, as crianças de tenra idade e os portadores de doenças mentais podem vir a sofrer danos extrapatrimoniais. Tal não se dá em razão da presunção (in re ipsa) da ocorrência de consequências morais negativas, que podem nem mesmo se fazer presentes no caso concreto, mas sim em razão da violação a direito da personalidade da vítima.   A tendência de utilização de presunções de dano, entretanto, nos casos envolvendo o transporte aéreo, tem sido revertida no STJ. De fato, já em 2018, no REsp 1484465/MG, decidiu-se que, embora comumente se considere presumido (in re ipsa) o dano moral decorrente de atraso de voo, o tema carecia de maior reflexão, exigindo aprimoramento das ponderações até então empreendidas7. Segundo a Corte, o reconhecimento da lesão extrapatrimonial in re ipsa, independentemente da duração do atraso e demais circunstâncias do caso, induz à conclusão de que "uma situação corriqueira na maioria - se não por dizer na totalidade - dos aeroportos brasileiros ensejaria, de plano, dano moral a ser compensado, independentemente da comprovação de qualquer abalo psicológico eventualmente suportado." Entendeu então o STJ que se faz premente a análise das circunstâncias que envolvem o caso concreto, para fins de comprovação da ocorrência de dano extrapatrimonial. A título exemplificativo, foram citadas certas particularidades que podem ser examinadas: i) a investigação da duração de tempo que foi gasto para solucionar o problema, ou seja, a real duração do atraso; ii)  a verificação da oferta, pela companhia aérea de alternativas para melhor atender os interesses dos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da empresa aérea, com o escopo de mitigar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros. A fixação de critérios objetivos, como os acima apontados, propicia maior segurança jurídica, oportunizando ainda que os fundamentos da decisão judicial sejam efetivamente conhecidos. A mera alusão à ocorrência do "dano moral in re ipsa" consiste em solução simplificada para os diversos e distintos problemas que emergem do fornecimento do serviço de transporte aéreo. Deste modo, se não se pode, de um lado, exigir que o consumidor comprove o prejuízo moral sofrido, como a dor e o sofrimento ocasionados pelo ato ilícito praticado, tampouco se deve exonerá-lo da atividade probatória ínsita à configuração do dano extrapatrimonial.    ____________ 1 Dispõe o art. 251-A do Código Brasileiro de Aviação, com redação dada pela Lei 14.034/2020: "A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga."   2 ALENCAR, Lais Facó; CATANANT, Ricardo; FENELON JUNIOR, Ricardo. O custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Jota. Disponível aqui. Acesso em 29 de ago. 2020. 3 ABEAR e associadas discutem judicialização no setor aéreo em evento em São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 30 de ago. 2020. 4 No ranking de aeroportos de pequeno porte, Curitiba (4º lugar), Fortaleza (8º lugar) e Salvador (13º lugar) se destacam no cenário internacional. Considerando-se apenas os aeroportos de médio porte, o de Viracopos ocupa a 3ª posição no quesito pontualidade. Outros aeroportos, como o de Recife (4º lugar), o Santos Dumont (5º lugar), o de Belo Horizonte (6º lugar), o do Rio de Janeiro (8º lugar) e o de Porto Alegre (9º lugar), figuram entre os 20 aeroportos com maior média de pontualidade. Assim, dos 20 aeroportos de médio porte mais bem pontuados, 5 se situam no Brasil. Por fim, relativamente aos aeroportos de grande porte, destacam-se os de Brasília (3º lugar) e o de Congonhas (6º lugar). Os dados podem estão disponíveis aqui. Acesso em 30 de ago. 2020.  5 Foram encontrados 785 julgados em que a locução "dano moral in re ipsa" foi utilizada no STJ. 6 O mesmo entendimento foi adotado pelo STJ no REsp 23575/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 09/06/1997. 7 STJ, REsp 1.584.465/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018.
A popularização dos computadores pessoais inundou nossa rotina de novos hábitos que, em geral, encurtaram distâncias entre ausentes, e, como tudo tem um preço, criaram "ausências" entre presentes. O avanço alterou conceitos que pareciam imutáveis. À guisa de exemplo, o termo "companhia", transcrito no inciso I, do art. 932, do CC/2002, hoje ganha novo significado. Se aos pais sempre foi imputado os deveres de vigilância, guarda e educação dos filhos,1 impedindo que algo de mau os aconteça e, através desse complexo processo que chamamos educação, que sejam eles, os filhos, os promotores de más condutas, não há como negar que atualmente essa "guarda" precisa ser exercida fora do alcance dos seus olhos. A rua da geração passada, na qual brincávamos sob olhares atentos, ganhou a dimensão do mundo inteiro, trazendo a reboque a majoração dos riscos aos quais nossos filhos estão expostos e podem expor os outros. Diante de tudo isso, velhos atos nocivos que ficavam restritos aos presentes, como a prática de bullying, agora podem ser eternizados pela rede - através do cyberbullying - transformando um anônimo em celebridade mundial, no pior sentido que a essa posição de destaque possa carregar. Como é sabido, em matéria de responsabilidade dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, migramos do modelo da responsabilidade civil subjetiva, para o da objetiva. Dessa maneira, os pais respondem independentemente de culpa pelos danos causados por seus filhos, seja em ambiente físico ou virtual, mas o mesmo pode ser garantido quando estes filhos já estejam emancipados? Estes breves escritos têm o intuito de enfrentar a matéria, cotejando os atuais limites da autoridade parental, o exercício das liberdades individuais pelas crianças e adolescentes e a responsabilidade civil objetiva imposta aos genitores. Com o receio de que seus filhos se envolvam em ilícitos virtuais, genitores têm se utilizado de ferramentas para sua constante vigilância, e.g o aplicativo Life 360, que garante acesso em tempo real à localização dos usuários, ou, com acesso ainda mais amplo, o Teen Safe, que funciona como espião, garantindo aos pais acesso às conversas, postagens e até mesmo fotos e vídeos gerados pela câmera do celular do "protegido" ou recebidos de outros usuários, comprometendo, desta forma, não apenas a privacidade e a intimidade dos filhos mas, de igual modo, de terceiros que participaram dos diálogos. Embora o controle parental na internet tenha permissão legal expressa no art. 29 do Marco Civil da Internet, como forma de garantir o dever de vigilância pelos pais, tal diploma disciplina que esse comando deve se dar em consonância com o ECA, que reafirma os direitos de personalidade de crianças e adolescentes destacando o exercício da autonomia, donde se extrai a autorrealização/autodeterminação informativa como princípio a ser respeitado.2 O desafio dos genitores reside, portanto, no alcance da fórmula de ouro que assegure uma "fiscalização" saudável do trânsito dos filhos pela internet sem comprometer as garantias fundamentais destes e de terceiros com os quais mantenham contato. Não se quer aqui rechaçar, em absoluto, a utilização dos aplicativos mencionados (Teen Safe, Life 360 ou outros), mas, como dito, chamar a atenção para a importância da compreensão de que tal conduta deve se dar na exata proporção da necessidade, isto é, da imaturidade dos filhos para lidar com o ambiente cibernético, de tal modo que quanto mais evoluídos estes se mostrarem, menor deve ser a interferência dos genitores.3 Como referimos, o art. 932, I, disciplina: "são também responsáveis pela reparação civil os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia". Num país de "famílias mosaico", é forçoso perguntar. I) a "autoridade" mencionada se confunde com a guarda? II) Se o menor houver causado o dano na companhia do genitor guardião, aquele que não detém a guarda será igualmente responsável, ou somente responderá subsidiariamente, ou mesmo, não responderá? III) Considerando o termo "e em sua companhia", se o menor houver praticado o ato na ausência de ambos os genitores, não seriam estes responsabilizados? Afinal, é ou não é independente de perquirição de culpa a responsabilização civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, inclusive no âmbito virtual? Antes de qualquer outra consideração referente ao "Direito dos Danos", é mister aclararmos, em sede de Famílias, que os institutos da "guarda" e da "autoridade parental" não se confundem. É isso que se extrai da leitura conjunta dos artigos 1.632 e 1.634 do CC/2002. Portanto, mesmo o genitor que não detiver a guarda de seus filhos continua em pleno exercício de sua autoridade parental, não havendo que se falar em causa de exclusão de responsabilidade por essa razão. É necessário ainda mais cuidado com a expressão "sob sua companhia" também constante do mencionado 932, I. Como mencionado, ela pode nos conduzir à falsa impressão de que o dispositivo exige a presença física dos pais no momento da conduta geradora do dano para que se fale em responsabilidade civil objetiva. Ora, se assim fosse, o que teríamos seria persecução da culpa in vigilando e não uma responsabilização independente de sua comprovação.4 O enunciado 450, da V Jornada de Direito Civil, sugere a solidariedade passiva de ambos os genitores na responsabilidade, mas, preserva a possibilidade de regresso caso haja culpa exclusiva de um dos genitores em não exercer o dever de cuidado a contento. Ou seja, a culpa seria irrelevante para o ressarcimento do lesado, podendo este exigir a totalidade da indenização a qualquer dos genitores, mas, essa culpa continuaria a ter relevância na relação interna da solidariedade passiva, instituída por lei, permitindo ao não culpado se ressarcir daquilo que despendeu. Soa-nos destoante da realidade, entretanto, imaginar a culpa exclusiva de um dos pais pela prática da maioria dos atos potencialmente lesivos praticados por seus filhos. Mal comparando, esse pensamento segue a mesma ratio daquele que acredita ser possível identificar numa relação matrimonial que perdurou por décadas um único cônjuge responsável pelo desenlace. Não nos parece que a culpa dos pais pelo dano causado por seu filho possa ser extraída exclusivamente de sua desatenção no momento da conduta danosa (dever de cuidado), mas, que a má ética do menor tenha derivado de desatenção ao dever de educação que a ambos os pais é imposto e, dessa maneira, concorreriam em igualdade na responsabilidade, devendo o ressarcimento alcançar, no máximo, a sua quota como codevedor na relação interna da solidariedade passiva, nos moldes da primeira parte do artigo 283 do CC/02. Impende reconhecermos, contudo, não haver uma equação garantidora de que uma boa educação formará jovens probos, mas, não é isso que está em causa, já que a responsabilidade pelas condutas será, como tantas vezes já dito, objetiva, e os pais suportarão as margens de álea resultante da criação do filho que trouxeram ao mundo. Marcamos posição, portanto, pela responsabilização solidária de ambos os pais, independentemente de ser o guardião ou ter presenciado a conduta geradora do dano, de forma exclusiva. Entendemos que a norma possibilita, quando muito, o direito de regresso daquele que suportou todo o prejuízo para se ressarcir em 50% do que pagou, enquanto codevedor, havendo solvência do outro genitor. No parágrafo único do artigo 5º, o CC/2002 traz as hipóteses pelas quais cessará a incapacidade civil dos menores. Os referidos incisos prenunciam três formas de emancipação, a emancipação legal, incisos II a V; a emancipação voluntária, primeira parte do inciso I; e a emancipação judicial, segunda parte do inciso I. Como o nome sugere, na emancipação legal a incapacidade cessará em virtude de lei, observadas as situações previstas nos incisos citados acima. Na emancipação judicial, o mesmo fenômeno ocorre, desde que o menor conte com ao menos 16 anos e, por sentença, o juiz, o emancipe, após a oitiva do tutor. Na emancipação voluntária, contudo, é a própria ação volitiva dos pais5, autônoma de homologação judicial, a impulsionadora da cessação da incapacidade. Diante disso, não é difícil imaginar que esses mesmos pais pudessem enxergar como solução para as constantes condenações de reparação civil resultante dos danos causados por seu rebento, a sua emancipação. Dessa maneira, poderiam pensar que blindariam seu patrimônio, ao tornar o filho infrator plenamente capaz para os atos da vida civil, e que, a partir dali ele, o filho, responderia com seus próprios bens pelos danos eventualmente praticados. O próximo passo seria óbvio: não conferir patrimônio a esse filho que ainda é economicamente dependente. Afinal, quem não tem patrimônio, via de regra não indeniza, dessa maneira os lesados não seriam ressarcidos. Hipótese que num olhar apressado parece ter sido contemplada pelo artigo 928 do Código Civil. Seria o plano perfeito, mas o Direito não é dado a esse tipo de chicana. Aclare-se que a responsabilização do menor através de patrimônio próprio prevista no artigo 928, é subsidiária, e somente terá lugar nas hipóteses nas quais os pais não disponham de bens suficientes para a integral reparação do dano suportado pelo lesado6 ou, quando estes genitores não estiverem obrigados a fazê-lo. Entretanto, já é entendimento pacífico de nossa Suprema Corte (RTJ 62/108, RT 494/92) que a emancipação somente desobrigará os pais pelos danos praticados pelos filhos quando ocorrida na forma de emancipação legal7, não servindo esse instituto como remédio para afastar precocemente a responsabilidade dos genitores que voluntariamente o buscaram.8 A parentalidade, ainda que exercida na sociedade de informação, continua a ser fascinante, mas, como toda grande recompensa, traz grande encargos. A objetivação da responsabilidade civil visando garantir a reparabilidade dos danos causados pelo menor pôs sobre as cabeças dos progenitores uma espécie de espada de Dâmocles, quem se atreve a desfrutar dos prazeres desse banquete dionisíaco deve estar ciente dos riscos derivados de sua posição. __________ 1 Vd., arts. 1.630 c/c 1.634 do Código Civil. 2 Vd. art. 17 do E.C.A 3 Para melhor compreensão do paradoxo apresentado, recomenda-se o episódio "Arkangel", da série Black Mirror disponível na plataforma NETFLIX. 4 Enunciado 590 da VII Jornada de Direito Civil - "A responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhosmenores, prevista no art. 932, inc. I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria hábil para a sua responsabilização." Essa "companhia", portanto, não se traduz pela exigência da presença física dos pais no momento da prática do ato lesivo, senda mero encadeamento dedutivo de uma asserção precedente, a "autoridade parental" e os deveres que dela derivam. 5 Que devem levar em conta o melhor interesse da criança e do adolescente para decidirem sobre o ato. 6 Nesse sentido, REsp 1.436.401/MG. Rel: Min. Luis Felipe Salomão, Publicado no DJE em 16/03/2017. 7 Já havendo quem defenda, em privilégio da reparação integral, até mesmo a responsabilidade dos pais pelos atos lesivos praticados pelos filhos maiores. Vd. FARIAS. Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil.São Paulo: Saraiva, 2019, p. 136. 8 Nessa mesma linha o Enunciado 41 da I Jornada de Direito Civil, assim redigido: "A única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código Civil."
terça-feira, 3 de maio de 2022

Novas regras do SAC: Apontamentos críticos

Um dos atuais mantras das empresas que se pretendem socialmente responsáveis é a certificação de excelência no atendimento do consumidor. Para demonstrarem esta preocupação, muitas delas anunciam a adoção de instrumentos de governança socioambiental (ESG), ajustando sua comunicação para expressar termos como 'inclusão', 'acolhimento', 'proteção' e 'atenção'. É muito difícil e, injusto, generalizar conclusões a partir de experiências pessoais, mas, confesso que não é fácil se sentir acolhido por diversos destes mesmos sistemas empresariais de atendimento ao cliente. É neste contexto que se torna relevante um olhar crítico sobre a mais recente regulamentação do famoso Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), recentemente publicada (decreto 11.034/221) e que entrará em vigor em, aproximadamente, seis meses. Antes de mais nada, deve-se lembrar que o tema (SAC) não é novo, uma vez que era regulamentado no Brasil desde 2008. Tornava-se necessária, entretanto, alguma atualização, especialmente, por exemplo, pelos meios de comunicação: dos telefones de 2008 para os "canais" mais abrangentes de 2022 (art. 2º). Embora o âmbito de aplicação do Decreto continue o mesmo (serviços regulados como planos de saúde, telefonia e bancos - art. 1º), ampliou-se o escopo do SAC para incluir não apenas o acesso à informação, mas também o tratamento de demandas (art. 1º, II). Além disso, o atendimento telefônico será obrigatório, ainda que sem a mesma disponibilidade de acesso ininterrupto dos demais canais (apenas oito horas diárias - art. 4º, § 2° e art. 5º, I). Aqui, por exemplo, já se encontram limitações regulamentares à propalada 'inclusão': o acesso fora de horário comercial, provavelmente, estará disponível apenas por meio de recursos eletrônicos, dificultando o acesso daqueles com restrições tecnológicas (acesso ou manuseio). Isso para não se mencionar o enigmático parágrafo terceiro2 do mesmo art. 4º que abre brecha para a interrupção do atendimento. Além disso, embora se assegure a acessibilidade (art. 6º), as condições em que esta se dará dependem de futura regulamentação pelo Ministério da Justiça; algo muito distante da forma preferencial prevista no Decreto anterior. O novo decreto aliás, inova negativamente em relação aos requisitos mínimos de garantia de atendimento. Se o antigo Decreto previa que a transferência para o atendimento presencial e definitivo deveria ocorrer em até sessenta segundos, não se admitindo transferência em caso de reclamação ou cancelamento; isto tudo agora dependerá de futura e incerta regulamentação do órgão competente. Aparentemente haverá incentivo para adoção de tecnologias de atendimento, como os "robôs" ou chatbots. Já quanto à lógica da 'atenção', o novo Decreto também exige o consentimento do consumidor para veiculação de mensagens publicitárias (art. 4º, §5º), mas, paradoxalmente, não define as condições mínimas de como este consentimento será dado e autoriza - independentemente de consentimento do consumidor - a veiculação de mensagens de caráter informativo (§6º). Quem já teve a oportunidade de aguardar atendimento telefônico em um SAC sabe que consentimentos são obtidos por meio opções cansativas em menus pouco explicativos e que mensagens informativas são fáceis disfarces para publicidade institucional. Além disso, a antiga proibição de que a 'ligação' não fosse finalizada antes da conclusão do atendimento - sempre ignorada - passou a ser uma possibilidade (art. 11), especialmente ao se permitir ao fornecedor sua conclusão (art. 11, III)! Ou seja, o consumidor passaria a ter o eventual ônus da falha do próprio sistema de atendimento. Quem já tentou cancelar um serviço por meio do SAC, sabe que são comuns longas esperas e sucessivas 'quedas' do sistema ou das ligações. Este ponto, aliás, é de interessante do ponto de vista da responsabilidade civil incidente nas relações de consumo. No passado, por exemplo, já se entendeu que a perda do tempo do consumidor deveria ser indenizada uma vez que redundaria de "defeito" na prestação do próprio serviço (art. 14 do CDC). Este raciocínio, aliás, está na base da atual compreensão do desvio produtivo encampada pelo Superior Tribunal de Justiça3. Neste sentido, perde-se uma oportunidade de fixação de parâmetros mais objetivos de análise (ou de imputação de responsabilidade), tais como aqueles constantes das diversas leis municipais e estaduais para o tempo de espera em filas bancária Também a presencialidade e a humanização do atendimento não parecem ser prioridades, uma vez que não se repete a preferência pelo atendimento pessoal. Isto impacta, é claro, na acessibilidade, 'inclusão' e 'acolhimento' já que ferramentas como chatbots nem sempre 'entendem' a solicitação do consumidor, são muitas vezes limitadas e, em muitos casos, parecem ser destinadas a criar uma antepara à reclamação ou cancelamento do serviço. Fora que sua utilização indiscriminada desumaniza o atendimento, especialmente daqueles não afeitos à tecnologia (vulneráveis, por exemplo). A pessoalidade do atendimento, aliás, não é necessariamente sinônimo de atraso tecnológico, mas de valorização do consumidor (vide a ênfase dada nesta característica de serviço, em várias peças publicitárias bancárias). Do ponto de vista da responsabilidade civil, aliás, a clara definição de "nexos de imputação"4 de responsabilidade civil para o caso de danos causados pela adoção de tecnologias assistivas de atendimento deve ser encarada como prioridade. Isto porque, para além das 'quedas', inúmeras situações danosas ao consumidor podem surgir deste atendimento, tais como o desvio produtivo, a utilização de vieses discriminatórios de atendimento, a utilização de algoritmos que selecionem as prioridades e recusem atendimentos com base em programação prévia, a captura de dados por terceiros, etc. Há, claro, aspectos positivos na nova regulamentação: amplia-se o acesso do consumidor ao histórico de suas demandas, criando-se procedimento e prazo de envio do documento (art. 12). Além disso, prevê-se, expressamente, a suspensão imediata de cobranças questionadas (art. 13, §3°). Também se manteve o dever de manutenção da gravação das ligações por 90 dias e do registro do atendimento por dois anos, assim como o recebimento imediato dos pedidos de cancelamento. Por outro lado, aumentou-se o prazo para retorno sobre a demanda do consumidor (de 5 dias úteis para solução para 7 dias corridos para resposta). Além disso, o Decreto anterior, ao contrário do novo, diferenciava a prestação de informações (que deveria ser imediata) da solução da demanda (5 dias úteis). Estaria, então, o acesso à informação condicionado ao novo e maior prazo? Quanto à 'proteção', pelo menos dos dados, o Decreto mantém a lógica anterior de proibir o condicionamento ao fornecimento de dados do consumidor e menciona a existência e incidência da LGPD. Mais uma vez a nova regulamentação parece, contudo, ter perdido uma oportunidade de ampliar a proteção do consumidor: qualquer um que já acessou um SAC teve que fornecer, no mínimo, o número de CPF para ser atendido (sim, trata-se de um dado). Além disso, partindo-se da premissa das diferentes funções contemporâneas da Responsabilidade Civil, seria de se esperar que a regulamentação do SAC se utilizasse de ferramentas de accountability promovendo a inserção regulatória de "regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos"5 e enfatizasse seu cumprimento, claramente, pela imposição de consequências da não compliance. É aqui que as verdadeiras iniciativas de ESG se embasam. Enquanto slogans, servem apenas como mensagens publicitárias muitas vezes enganosas ou veladas iniciativas de greenwashing e socialwashing. Infelizmente a atual legislação consumerista não é suficiente para cobrir os desafios sociais e tecnológicos que são postos com maior complexidade e velocidade. É neste sentido que se deve lamentar as perdas de oportunidades nesta iniciativa regulatória. A sensação final que se tem da leitura comparada de ambas as regulamentações é de que o novo texto avançou pouco, repetiu muito e perdeu algumas oportunidades essenciais, especialmente em razão dos recentes desdobramentos legislativos, como a Lei do Superendividamento e a LGPD (apenas mencionada), e as discussões recentes sobre bens digitais, tecnologias assistivas, obsolescência programada6 e sobre o marco legal da inteligência artificial. Aparentemente será papel da iniciativa privada, por meio de reais instrumentos de ESG, impor um padrão mais protetivo, acolhedor e inclusivo de atendimento ao consumidor. _________________ 1 Disponível aqui 2 § 3º  Na hipótese de o serviço ofertado não estar disponível para fruição ou contratação nos termos do disposto no caput, o acesso ao SAC poderá ser interrompido, observada a regulamentação dos órgãos ou das entidades reguladoras competentes. 3 Vide, neste sentido, o famoso precedente do Superior Tribunal de Justiça: REsp. nº 1.737.412-SE que reconheceu que o "O descumprimento de normas municipais e federais que estabelecem parâmetros para a adequada prestação do serviço de atendimento presencial em agências bancárias, gerando a perda do tempo útil do consumidor, é capaz de configurar dano moral de natureza coletiva." 4 Neste sentido, vide o excelente estudo de Roberto Altheim que os define como "Já o fator de atribuição (ou nexo de imputação) significa o fundamento (ou a razão de justiça) pela qual se imputa o dever de indenizar um determinado dano injusto a uma certa pessoa." Disponível aqui. 5 Na explicação de Clemente e Rosenvald, disponível aqui. 6 Sobre o tema, vide aqui.
Não foi a primeira vez que Will e Jada Smith foram alvo de piadas de gosto duvidoso do Chris Rock em cerimônias de premiação do Oscar. Na cerimônia de 2016, o casal de atores não compareceu à cerimônia do Oscar para protestar pela falta de atores negros na premiação. Na ocasião, Chris Rock afirmou: "Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha da Rihanna. Eu não fui convidado!". Ainda na mesma cerimônia, o humorista fez uma brincadeira a respeito da ausência de indicação do nome Will Smith para a premiação pelo papel em "Um homem entre gigantes". Na ocasião, Chris Rock: "Não é justo que Will seja tão bom e não tenha sido indicado. Você está certo. Também não é justo que Will tenha recebido US$ 20 milhões por 'As Loucas Aventuras de James West'", filme de 1999 considerado um dos maiores fracassos da carreira de Smith. Além disso, em 2018, depois de Will Smith fazer um post parabenizando Sheree Zampino, mãe de seu primeiro filho, pelo seu aniversário. Chris Rock comentou: "Uau! Você tem uma esposa muito compreensiva", em referência à Jada. Em 2022, a cerimônia de premiação do Oscar não foi marcada pela tradicional qualidade dos filmes, atores, diretores que compõem a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas pelo tapa na cara dado pelo ator Will Smith no colega Chris Rock logo após o comediante ter feito uma piada sobre a calvície da esposa de Will, Jada Smith, que sofre de alopecia.  No dia seguinte após o episódio, Will Smith pediu desculpas em longo texto publicado em sua conta pessoal do Instagram cujos trechos merecem destaque: "Estou envergonhado e minhas ações não foram indicativas do homem que quero ser. Não há lugar para violência em um mundo de amor e bondade". Adiante continuou: "Eu gostaria também de pedir desculpas à Academia, aos produtores do show, aos convidados e a todos que assistiram ao redor do mundo. Eu gostaria de pedir desculpas à família Williams e à minha família King Richard. Eu me arrependo profundamente que meu comportamento tenha manchado o que está sendo uma incrível jornada para todos nós. Eu sou um trabalho em andamento." Depois, Will Smith achou por bem aplicar a si uma sanção, ao renunciar à vaga de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de onde era parte desde 2001. Além disso, a instituição baniu Smith pelo prazo de 10 anos de todas as cerimônias eventos por ela promovidos. Nesse contexto, o que fazer depois de causar um dano a alguém? Desde cedo recebemos a lição ética de reconhecer os erros e pedir desculpas como regra basilar da educação infantil. Mas qual a consequência de tal comportamento no direito? Em algumas situações, o pedidos de desculpas pode ser utilizado como confissão do dano e, em razão disto, representar apenas a desnecessidade de instrução probatória apta a permitir o provimento antecipado de uma ação de cunho indenizatório. Sob este ponto de vista, não há qualquer repercussão positiva para o réu que se desculpou de sua conduta. No julgamento da Apelação Cível 70054214358 do TJRS, duas pessoas compraram bilhetes de viagem de ônibus, contendo a mesma numeração da poltrona. O equívoco na averiguação do bilhete resultou na discussão entre a vítima e o motorista do coletivo que pediu a retirada dela do veículo para solucionar o problema no guichê da empresa, dando lugar à outra passageira. Ao final, reconheceu o equívoco e pediu desculpas à autora, pois a outra passageira havia comprado a passagem para o dia seguinte. A empresa condenada recorreu argumentando ter havido atritos verbais de ambas as partes, sem qualquer desmoralização. Disse terem sido superadas as palavras rudes do motorista pelo pedido público de desculpas por parte dele. No julgamento do apelo, o Tribunal não levou em consideração a retratação da empresa de ônibus que havia, inclusive, demitido motorista e ressaltou: Ora, a retratação do motorista é um forte indício de que houve excesso de sua parte no trato com a autora. O equívoco na verificação das passagens é incontroverso. Não obstante a solução do impasse, pois a autora teria viajado na poltrona 15, conforme adquirido, e a escusa do motorista, é induvidosa a falha na prestação do serviço pela ré, a qual, como dito, responde pelos atos de seus prepostos/empregados (Apelação Cível 70054214358 do TJ/RS). Percebe-se que as desculpas foram utilizadas para referendar a prática do dano pelo ofensor, ao invés de minorá-lo. Situação discrepante foi o julgamento da Apelação Cível 996/99, da turma Recursal dos Juizados Especiais do TJ/DF. Na hipótese, a vítima sofreu escoriações em razão de uma queda sofrida quando descia do coletivo da empresa ofensora, por não ter motorista esperado a passageira descer do veículo. O pedido da vítima era a condenação da empresa de ônibus a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado do motorista, além do pagamento de verba indenizatória a título de danos materiais ("danos sofridos e despesas realizadas", segundo declarou a vítima). Após a sua condenação, a empresa recorreu sob o argumento de não ser objeto do pedido da vítima a indenização por danos morais. A fundamentação da Turma Recursal foi na contramão do que prega a norma processual, realizando um julgamento totalmente fora do pedido: A bem da verdade, há que se reconhecer que não houve um pedido expresso de condenação por danos morais. Entretanto, em face das peculiaridades que cercam os procedimentos nos Juizados Especiais, sobretudo a possibilidade de a parte ajuizar a ação sem estar assistida por advogado, hão que ser mitigados o rigorismo das formas e excesso de tecnicismo inerentes ao Código de Processo Civil. Em sua petição, a autora formulou pedido no sentido  de que fosse a ré condenada a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado de seu funcionário, e ao pagamento da importância de R$ 2.600,00 (dois mil e seiscentos reais), referentes aos danos sofridos e despesas realizadas. Ora, se é certo que, neste tipo de procedimento, não pode o juiz compelir a ré a pedir as desculpas da forma proposta, não menos certo é que, com tal manifestação, inequivocamente, a autora demonstrou sentimentos de vergonha, desrespeito e descaso experimentados publicamente, pela atitude reprovável do motorista da ré que, como disse, "arrancou" bruscamente o veículo, sem esperar que a mesma descesse com segurança, num total desrespeito, o que caracteriza o dano moral. Salta aos olhos a nulidade da decisão: a consumidora requereu expressamente a retratação formal da empresa e, apesar de não ter sido atendida neste pondo, obteve uma indenização pecuniária da qual não foi objeto do seu pedido. A informalidade do procedimento obedecido pelos juizados especiais não justifica a decisão, pois a norma procedimental não permite, sob nenhuma hipótese, a concessão de provimento jurisdicional diverso do objeto do pedido. Por outro lado, essa forma de reparação não pecuniária pode ser utilizada como atenuante do dano causado no momento da valoração da indenização patrimonial.  No julgamento do processo n. 0013092-32.2011.8.17.0480, da 5º Vara Cível de Caruaru - PE, a Magistrada reconheceu a atenuação da ofensa diante da presença do pedido de desculpas por parte de uma empresa de cinemas. Na hipótese, a transmissão do término filme atrasou em 40 minutos e o os funcionários se recusaram a devolver o valor dos ingressos aos consumidores. A empresa de cinemas, reconhecendo a prática lesiva, realizou um pedido formal e público de desculpas aos consumidores lesados. Diante disto, a Magistrada utilizou o pedido de desculpas na valoração do dano e esclareceu: Ao que tange o pedido formal e público de desculpas, esse merece ponderações. Vislumbrando o direito a reparação do dano, em um ponto de vista constitucional, me parece possível o cumulo de pedidos, prestação pecuniária, mais a retratação formal e em pública da conduta reconhecida como ilícita judicialmente. As lesões que atingem uma pessoa são de naturezas distintas: uma de natureza física, que é aquela que viola a incolumidade corpórea e a saúde mental do indivíduo, tipificada nos Capítulos I a VI, do Título I da Parte Especial do Código Penal; e outra de natureza moral, que atinge (ou pode atingir) os sentimentos mais íntimos do ser humano, como honra, bem-estar, podendo ocasionar sensações ruins, como sofrimento, dor, angústia, humilhação etc. Essa ultima se diferencia da primeira, na forma de se perceber esses danos, enquanto os físico são visíveis a qualquer pessoa, os morais, são visíveis apenas a vitima, já que lhe atingiu o que há de mais intimo. A retratação em público por parte da empresa requerida se mostra de forma eficaz para a amortização dos danos do requerente, além do que por outro lado, evita que grandes grupos empresariais resolvam incluir possíveis condenações a título de dano moral como custo operacional, pagando o preço para lesionar direitos. Na hipótese, o pedido de desculpas foi utilizado de forma a atender tanto os consumidores ofendidos como também à empresa de cinemas que espontaneamente retratou-se pelos danos por ela gerados. Tudo isso referenda a falta de uniformidade das decisões do Judiciário sobre o tema. Sob um outro ponto de vista, a ausência desta retratação pública pode ser tomada como causa para ajuizamento de ação indenizatória. Esta foi a conhecida demanda judicial travada entre o comediante Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo. A cantora buscou a reparação patrimonial do dano sofrido por não ter conseguido obter do comediante a sua retratação que, além de resistir à retratação, seguiu debochando das vítimas por entender que a liberdade de humor pode se sobrepor aos eventuais danos à personalidade dos satirizadosi. Não parece adequado restringir as possibilidades dos sujeitos que sofrem violações de cunho extrapatrimonial às mesmas alternativas postas à disposição daqueles que experimentam danos emergentes e lucros cessantes. Se a natureza dos direitos que não possuem significação patrimonial exata não permite aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem admite a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas à recomposição pecuniária do prejuízo, utilizando para tanto todos os meios admitidos em direito. Se para essas situações o dano é in re ipsa, isto é,  presume-se a responsabilidade pela violação ao direito da personalidade, sem perquirir se - de fato - houve lesão ao patrimônio imaterial da pessoa, o mesmo deve valer para a retratação. Deve-se posicionar o pedido de desculpas no lugar correto: ele interfere na extensão do prejuízo, podendo-se compará-lo a o arrependimento posterior como forma de redução do montante da indenização. O episódio do Oscar dividiu opiniões tanto acerca da punição sofrida por Smith por parte da Academia como pelas provocações sequenciadas de Chris Rock, havendo quem defendesse ter este último merecido o tapa e muito mais. Afinal, as piadas ácidas por ele contadas provocam não só ódio de alguns, mas referendam o clássico jargão "Todo mundo odeia o Chris", título do seriado narrado pelo humorista. De fato, Chris precisava de um limite, porém a reação da vítima foi desproporcional ao dano provocado por ele. Afinal, não se justifica uma agressão. Apesar disso, caso o episódio tivesse sido levado ao Judiciário brasileiro, as desculpas pedidas no dia seguinte ao ocorrido por parte de Smith deveriam ser levadas em consideração na valoração do dano. __________ i Sobre esse tema vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego e MOUTINHO, Maria Carla. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade do humor. In EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.) Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 219-235.
As questões atinentes ao dever de indenizar têm sido objeto de uma série de estudos nos últimos tempos, com uma plêiade de grandes juristas dedicando seus esforços para entender e desenvolver um tema tão relevante no nosso Direito, cabendo-nos o mister de contribuir para essa árdua tarefa. Nessa empreitada temos tecido algumas considerações vinculando as questões indenizatórias com o árido mundo do Direito das Sucessões e, mais especificamente, com a figura da colação e sonegados, objeto de uma ampla pesquisa que culminou na elaboração da obra "Sucessões. Colação e Sonegados", lançada no presente ano. Um dos aspectos que nos toca nesse trabalho alicerça-se em algumas das consequências do não colacionar (ou mais especificamente, do não retorno para a sucessão do que se adiantou) para as relações jurídicas, passando por uma compreensão do instituto que culmina num giro importante para a discussão do Direito das Sucessões. Para tanto partimos da necessidade de superar entendimentos jurídicos construídos ainda sob a vigência do Código Civil de 1916 e que seguem sendo repetidos mesmo com uma alteração no núcleo da questão no atual texto legal. Atesto, de plano, que o entendimento aqui exposto quanto aos efeitos da colação e compreensão do art. 544 do CC/02 não é o adotado atualmente pela doutrina ou jurisprudência, contudo sustentamos a necessidade de que a discussão seja posta e considerada ante a sua relevância e impactos práticos. De início é preponderante salientar que, diferentemente do que estava consignado no art. 1.171 do Código Civil de 1916, a legislação vigente ao discorrer sobre a doação realizada em favor de descendentes não mais a trata como um adiantamento da legítima, mas sim como "adiantamento do que lhes cabe por herança" nos temos do CC/02 (art. 544). Ao nosso ver é manifesta a distinção existente entre se afirmar que a doação nessa circunstância há de ser compreendida como uma antecipação de herança e não mais de legítima, fato esse que obrigatoriamente tem que estender seus reflexos por todo o nosso sistema sucessório, causando um profundo impacto na compreensão da colação como um todo. Ainda que o corriqueiro seja que o art. 544 do CC/02 apenas seja lembrado para se falar em colação e que não se questione que esta tenha por objetivo igualação das legítimas é indiscutível que tal questão há de ser precedida pela realidade que circunda a doação que tenha sido realizada a descendentes e cônjuges, nos termos do referido artigo, que, com sua redação, determina que o objeto da liberalidade praticada há de ser entendido como uma antecipação do que o herdeiro efetivamente viria a ter direito em decorrência do falecimento do doador, mas não mais sob o selo da legítima1. Assim é imprescindível que "antes de que se possa pensar em discutir a colação em si é necessário se verificar se o que se adiantou em razão da doação corresponde efetivamente ao que o herdeiro teria direito a esse título"2, isso porque se a liberalidade praticada, nos termos do art. 544 do CC/02, foi o recebimento prévio do que se teria direito por herança é imperioso se aferir se tal herança efetivamente existiria quando do falecimento do doador, bem como a forma que seria partilhada e o montante que cada herdeiro teria o direito de receber. Nesse contexto, podemos sustentar que caso os bens do falecido mostrem-se insuficientes para a satisfação de todos os seus débitos torna-se plausível que aquele credor que não viu a obrigação adimplida pelo de cujus possa suscitar o questionamento acerca da ocorrência de algum "adiantamento de herança", vez que não se pode "discutir antecipação se sua condicionante inerente não se efetiva da forma prevista, [assim] o que se recebeu de maneira prévia é indevido por não corresponder o que se adiantou"3. Reitere-se que desde o início da vigência do atual CC/02 não há mais que se falar em adiantamento de legítima mas sim de herança, e, como tal, só é admissível qualquer sorte de distribuição de ativos do falecido após a satisfação dos seus débitos, já que, como bem salienta o art. 1.997, "a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido". Ao se consignar que a doação para descendente não mais haverá de ser considerada uma antecipação de legítima não se pode continuar a afirmar que o retorno do objeto da doação para o pagamento de dívidas do falecido é irrelevante já que há de retornar para o relictum e não mais para a legítima.  Com a nova construção para o tema trazida no art. 544 do CC/02 entendemos não mais ser válida a concepção de Nelson Pinto Ferreira que se opunha à possibilidade de que o credor do falecido viesse a ter qualquer interesse nos bens a serem colacionados ainda que seus débitos superassem seu patrimônio ativo4. Consignamos aqui de forma clara que em nenhum momento ignoramos o disposto no art. 1.847 e no parágrafo único do art. 2.002 do CC/02 que asseveram que os bens colacionados haveriam de ser acrescidos à legítima e que os bens colacionados não ensejariam em qualquer aumento da parte disponível. Apenas sustentamos que tais dispositivos se mostram conflitantes com o preconizado no art. 544 do CC/02 e que, por ser a doação ato que precede a sucessão, haveria, por lógica, que prevalecer o entendimento ali indicado de que a doação é adiantamento de herança e não legitima, como consideram os arts. 1.847 e 2.0025. Assim, ainda que se possa afirmar que ao credor do falecido não importa a colação (já que a igualação do que os herdeiros necessários receberão em nada lhe toca) é indubitável que é detentor de legítimo interesse relativo à existência de um adiantamento da herança, pois se houve alguma doação realizada pelo falecido a algum herdeiro descrito no art. 544 do CC/02 é manifesto que a quitação de suas dívidas há de preceder a qualquer questionamento envolvendo a legítima6. Tal concepção traz desdobramentos importantes até mesmo para a figura da colação que, em que pese objetivar a igualação das legítimas, tem como sua consequência prática mais evidente a consideração do que foi antecipado da herança na sucessão. Dessa maneira é de se entender que a discricionariedade que caracteriza a possibilidade de que se exija que o coerdeiro colacione acaba sendo mitigada ao se constatar que o não retorno do que se antecipou não atinge exclusivamente os herdeiros necessários, mesmo que não esteja agindo em conluio com os demais herdeiros, já que pode ensejar que credores do falecido não tenham a satisfação de seus créditos7. Segundo o entendimento consolidado sob a égide do CC/02 anterior inexistiria ao credor qualquer sorte de prejuízo face a inércia do herdeiro que não exigisse a colação dos demais (já que a restituição do bem à discussão sucessória já se daria em sede de legítima), o que há de ser interpretado de forma diversa ante ao texto legal vigente, havendo o efetivo interesse quanto ao retorno do que se adiantou para a herança bruta, sendo de se compreender que o que se antecipou, ao menos sob uma perspectiva obrigacional, ainda há de ser visto como integrante do patrimônio do falecido e responsável pela satisfação de suas dívidas8. A fim de demonstrar a mesma perspectiva por um outro viés é de se considerar que em tendo ocorrido a colação seria possível se afirmar que os demais herdeiros experimentariam um acréscimo no que receberiam da sucessão do falecido à guisa de herança, fato que poderia influenciar na satisfação de créditos daquele credor que viesse a demandar o referido coerdeiro, considerando que teria ocorrido um acréscimo nas forças da herança por ele recebida e que seriam, portanto, responsáveis pelo pagamento das dívidas do falecido, nos termos do art. 1.792 do CC/029. Pontua-se, assim, que a não colação pode vir a caracterizar uma redução no montante que o herdeiro se responsabiliza quando aos débitos do falecido que foram sub-rogados com a sucessão. Nesse mesmo diapasão seria possível consignar a situação vivenciada pelo credor do herdeiro do falecido que ao não pleitear que se faça a colação não terá o acréscimo patrimonial que tal conferência iria propiciar, o que afetará a possibilidade de que venha a conseguir saldar suas próprias dívidas, em uma evidente situação de fraude contra credores, com a não exigência da colação podendo ser entendida como uma transmissão gratuita (art. 158 do CC/02). Ciente de que a previsão da colação prevista na lei destina-se à equiparação das legítimas é de se entender que o credor do falecido não tem legitimidade para exigir que a conferência seja realizada, contudo é evidente que permitir que o herdeiro mantenha consigo montante que deveria ser utilizado para a satisfação das dívidas do falecido enseja claramente uma hipótese de enriquecimento sem causa, expressamente vedado no art. 884 do CC/02. A fim de buscar minorar as críticas que possam ser dirigidas ao pensamento aqui apresentado, não entendemos que a solução explicitada coloca em risco a segurança jurídica acerca da doação realizada por considerarmos de direito a possibilidade de que o doador houvesse expressamente afastado a incidência do disposto no art. 544 do CC/02 quando da realização da liberalidade, por sustentarmos que o disposto no referido artigo "tem natureza supletiva, impondo-se apenas quando da omissão do doador"10. Somos do entendimento de que não se trata apenas da possibilidade de que o doador venha a determinar que a doação seja excluída da legítima11 ou que seja afastado o dever de colacionar, mas sim que o doador tem a possibilidade de, valendo-se de sua autonomia, determinar expressamente que a doação que está a realizar não encerra qualquer relação com uma futura questão sucessória. Ficando demonstrado que o herdeiro foi premiado por uma situação em que valores oriundos da herança lhe foram atribuídos, remanescendo em aberto dívidas do falecido, é de se considerar a possibilidade de que o credor venha a pleitear que tal benefício seja afastado, exigindo que o enriquecimento sem causa proporcionado ao herdeiro seja atacado, com a indenização em seu favor do montante equivalente à herança recebida que deveria ter sido usada para a satisfação das obrigações do falecido. Tal solução lastreada no art. 884 do CC/02 se mostra hoje extremamente relevante ao se ponderar que além do credor do falecido não poder manejar o mecanismo de exigir que os herdeiros colacionem tem se colocado de forma recorrente que ele não teria como pleitear, em sede sucessória, que os herdeiros beneficiados com o adiantamento da herança responsabilizem-se pelas dívidas do falecido com o montante objeto da liberalidade. Por sustentar que inegavelmente esse herdeiro/donatário está a se valer de forma indevida do que lhe foi adiantado da herança, desfrutando de uma importância que deveria ter sido considerada para a satisfação dos débitos do falecido, é que pugnamos pela possibilidade de que o credor venha a exigir a indenização equivalente ao benefício recebido que deveria ter sido destinado a quem tinha haveres para receber do de cujus. Se mostra diametralmente contrária às proposições elementares do nosso ordenamento jurídico permitir que os direitos creditórios de alguém não seja satisfeito segundo a alegação de que o falecido não deixou patrimônio para quitar suas dívidas enquanto seus herdeiros gozam de acréscimo patrimonial oriundo do recebimento da herança. Caracterizado o enriquecimento sem causa esse há de ser devidamente rechaçado. _____ 1 Toda a construção e aprofundamento da tese aqui descrita está no capítulo 2.1.1 de "Sucessões: Colação e Sonegados", ed. Foco, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 166. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 165. 4 FERREIRA, Nelson Pinto. Da colação no direito civil brasileiro e no direito civil comparado. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 138-139. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 19. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 162. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 166. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 167. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 167. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 79. 11 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, Tomo LX. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 137.