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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
Muito embora a revolução tecnológica tenha provocado impactos sociais outrora apenas imagináveis em obras de ficção científica, talvez a maior ruptura tecnológica da trajetória humana esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,1 no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, seja pelas vias da biotecnologia, da nanotecnologia e/ou da neurotecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo, portanto, empregar toda a tecnologia possível para permitir que seres humanos transcendam suas capacidades naturais, o que, em princípio, propiciará o surgimento de uma nova categoria de entes artificialmente aprimorados em relação às limitações que naturalmente demarcam a condição humana. O transhumanismo propõe mais do que simplesmente usar a tecnologia para sanar deficiências humanas, mas para aperfeiçoar as capacidades das pessoas, inclusive as que sejam perfeitamente saudáveis. Há, com efeito, sensível distinção entre o uso de aparatos que visem a reparar enfermidades ou debilidades - que variam entre o uso de simples lentes de contato até a inserção de instrumentos como marcapassos ou próteses no corpo humano - e o emprego de meios tecnológicos para facultar a seres humanos a superação de suas naturais limitações. Enquanto aqueles permitem a uma pessoa corrigir imperfeições e viver em paridade de condições com os demais, estes objetivam dotar indivíduos de condições sobre-humanas, naturalmente inatingíveis por qualquer pessoa. Aí reside o núcleo da ideologia transhumanista: promover, por meio da tecnologia, melhoramentos capazes de dotar os indivíduos de benefícios físicos, como a força e a resistência, e também psíquicos e intelectuais, como uma memória prodigiosa e uma inteligência capaz de processar informações tal qual uma máquina faria. Por se tratar de intervenções realizadas sobre o organismo humano, tais aprimoramentos são também denominados biomelhoramentos. Das diversas consequências decorrentes das intervenções transhumanistas, emergem potenciais problemas como o crescimento exponencial e o envelhecimento sem precedentes da população, as alterações drásticas sobre o corpo humano e a sua definitiva fusão com mecanismos tecnológicos. O propósito destas linhas, todavia, é o de analisar um problema em particular: o que dizer da incidência de regras concernentes à responsabilidade civil, inclusive de sua responsabilização pelos eventuais danos que causarem a terceiros, particularmente aos demais seres humanos que não se sujeitarem às intervenções biotecnológicas de caráter melhorador? Nos domínios da responsabilidade civil, os problemas que a revolução transhumanista coloca são de fato perturbadores; afinal, calcado na perspectiva do princípio do neminem laedere, que traduz a ideia de "a ninguém ofender", a verificação danos decorrentes da conduta de um indivíduo implica, como corolário, o dever de compensar o que fora perdido2. Não é difícil imaginar que novos avanços tecnológicos impliquem a inserção de novos riscos sociais, potencializando-se a ocorrência de um sem número de danos. Com efeito, a responsabilidade civil tende a ser um dos ramos do Direito mais afetados perante os desenvolvimentos tecnológicos que globalizam os ideais e práticas transhumanistas; afinal, a dotação de especiais capacidades aprimoradas a seres humanos pode vir a constituir mais uma via para a consumação de novos e extremamente gravosos danos, porventura de difícil reparação.  A fim de delimitar o propósito das linhas a seguir, serão apresentadas perspectivas de soluções jurídicas para os seguintes problemas: i) a eventual ocorrência de danos ocasionados em indivíduos que sofram intervenções para o implante de tecnologias que visem ao seu aprimoramento; ii) o regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem; iii) a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas; iv) a releitura acerca das funções desempenhadas pelo instituto da responsabilidade civil, nomeadamente a preventiva; v) o emprego de tecnologias para aprimorar as capacidades de seres humanos de gerações vindouras. Cada um destes pontos merecerá específico tratamento. À partida, cumpre pensar nos danos que um indivíduo que se apresente como beneficiário de técnicas transhumanistas eventualmente venha a sofrer. Imagine-se, por hipótese, que uma pessoa se apresente como voluntária para ter determinados aparatos tecnológicos incorporados ao seu organismo, com o propósito de tornar-se intelectual ou fisicamente mais evoluída. O que dizer dos danos que podem sobrevir a partir destas intervenções, que, a depender de sua gravidade, podem eventualmente levar uma pessoa à morte? No Brasil, ainda que inexista regramento legal específico para reger atos desta natureza - eis que se cuida, enfim, de circunstância ainda incipiente -, quer parecer que o regime geral da responsabilidade civil, assente em especial no texto do Código Civil, exigirá a aplicação do seu art. 927, parágrafo único, a imputar o modelo da responsabilidade civil objetiva (isto é, independentemente de culpa) a todo agente que normalmente desenvolva atividade que implique, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Neste domínio, adota o legislador brasileiro a denominada teoria do risco criado: o simples fato de se instituir novos riscos em sociedade, para além dos inúmeros outros já existentes, induz a responsabilização objetiva do agente causador do dano. No âmbito das intervenções transhumanistas, manipular equipamentos de alta tecnologia com o propósito de aperfeiçoar as condições humanas há de ser inequivocamente reconhecido como um fator de elevado risco, em especial para o voluntário, eis que qualquer desvio poderá ocasionar severos danos à saúde do lesado, que podem inclusive ser fatais. i) Pouco importará, inclusive, que o ato tenha sido praticado em caráter gratuito ou oneroso: a responsabilização deriva do simples fato de um indivíduo ser lesado em intervenções de cunho transhumanista, ainda que não tenha contribuído financeiramente para que fosse submetido ao ato. Em havendo dano imputável ao comportamento do interventor, o dever de repará-lo surge como corolário imediato da verificação do nexo de causalidade. Também não parece correto supor que o fato de o voluntário ter prestado seu consentimento seja suficiente para afastar a potencial responsabilidade civil dos agentes que operam tecnologias transhumanistas. Ainda que requerida pelo próprio indivíduo a intervenção transhumanista, se ela vier a gerar danos ao interessado em se tornar um ser transhumano, caberá analisar as circunstâncias do caso concreto e verificar, afinal, se houve algum desvio no ato da intervenção, ou mesmo se ocorreu algum vício no processo de informar ao voluntário sobre os riscos da medida. No primeiro caso, a responsabilidade civil se manifestará pelo erro no procedimento; no segundo caso, mesmo que não tenha ocorrido falha no processo de intervenção corporal, ainda assim caberá cogitar da responsabilidade civil do agente, por ter sido imprecisa a prestação de informações claras acerca dos riscos da intervenção, que devem ser adequadamente mensurados antes mesmo que se coloquem em prática as medidas de caráter transhumanista. Com efeito, por se tratar de atuação sobre a integridade psicofísica de seres humanos, é necessário proceder a uma criteriosa e antecipada ponderação sobre a incidência dos princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência, somente sendo admitidas as experiências transhumanistas com seres humanos - se é que serão de fato aceitáveis - se a assunção dos riscos a elas inerentes se justificar pela magnitude das vantagens esperadas. É de se esperar, portanto, que os atos praticados com técnicas de alta tecnologia ofereçam uma razoável garantia de segurança, sob pena de se sujeitar o agente que os conduz à responsabilização pelos danos deles derivados. ii) Quanto ao regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem, cumprirá reconhecer que, por mais que o indivíduo se transforme em um ser dotado de capacidades extraordinárias - sejam cognitivas ou motoras -, não deixará de ser uma pessoa, ainda que ostente a condição de ser um híbrido entre máquina e ser humano. Assim, o indivíduo submetido a intervenções de cunho transhumanista responderá pessoalmente pelos danos causados a terceiros, mesmo que eventualmente se deva cogitar da edição de novas regras na seara da responsabilidade civil, mormente porque, na mais extrema das hipóteses, a sociedade passará a ser dividida entre seres humanos e transhumanos, cumprindo reconhecer a vulnerabilidade daqueles e a superioridade física e intelectual destes. iii) O postulado acabado de referir coloca em causa um problema consequente: a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre as pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas.   À primeira questão, caberá insistir na premissa assente: os indivíduos aprimorados, à partida, serão pessoas para o Direito, cidadãos integrados à sociedade como os demais (meros) humanos. Em princípio, portanto, ao se comportarem no meio social, responderão subjetivamente pelos danos causados a terceiros, a não ser que estejam a desempenhar atividades de risco ou que haja alguma regra legal específica a imputar-lhes responsabilidade sem culpa. Daí decorre que os indivíduos aprimorados por técnicas transhumanistas somente devem reparar danos, em tese, se adotarem comportamentos intencionais (dolosos) ou descuidados (culposos). Tal assertiva, todavia, desafia novos dilemas. Os indivíduos aprimorados ostentariam uma condição de superioridade física e/ou intelectual em relação aos demais. Caberia conceber, então, que os atos, fatos e relações jurídicas que os envolvam mereçam idêntico tratamento legal? Uma pessoa que detém condições físicas ou mentais aperfeiçoadas em função do emprego de tecnologias de ponta não deveria, por isso mesmo, atuar com diligência mais acurada que os demais? Caberia aferir o comportamento culposo do agente transhumano a partir da análise da conduta que se deveria esperar do "homem médio", sabendo-se de antemão que tal indivíduo ostenta uma condição que o segrega do termo mediano da sociedade? A averiguação da culpa pressupõe que uma pessoa, por negligência, imprudência ou imperícia, deixe de cumprir com um dever geral de cautela que a todos se impõe. Em relação a indivíduos dotados de excepcionais habilidades físicas ou de aptidões intelectuais invulgares, não seria de se esperar que tenham melhores condições de agir cautelosamente e, consequentemente, de evitar lesões a terceiros? Em um primeiro momento, a resposta se afigura positiva; caberá, portanto, averiguar conforme as circunstâncias do caso concreto qual a verdadeira condição do indivíduo transhumano causador do dano e apurar, enfim, de que modo se pode caracterizar a adoção de comportamento que, dada a sua particular situação de vantagem, deveria ter sido evitado.   iv) Cumprirá, ainda, fazer valer a função preventiva da responsabilidade civil e evitar que o emprego da tecnologia para fins transhumanistas se dê de modo indiscriminado, potencializando não apenas o suposto aprimoramento das capacidades humanas, como também a ocorrência de danos enormes em sociedade. Neste domínio, à medida em que as técnicas transhumanistas forem implementadas, cumprirá estabelecer normas de cautela, com o propósito de impor limites éticos, jurídicos e biológicos ao plano de superação das condições humanas. Parece salutar, quando menos, que sejam criados comitês de ética que tenham a atribuição de fiscalizar e autorizar ou rechaçar práticas transhumanistas que, de algum modo, venham a colocar em risco não apenas a integridade psicofísica dos seus voluntários como também direitos e interesses sociais dignos de tutela. v) Finalmente, e ainda como decorrência das ideias desenvolvidas no item antecedente, cabe refletir cuidadosamente sobre o emprego de tecnologias transhumanistas para aprimorar as condições físicas e intelectuais de gerações vindouras. Por meio de modificações genéticas, seria viável alçar crianças por nascer a patamares biológicos e psíquicos superiores aos de seus antepassados. O que dizer, entretanto, dos possíveis danos que podem ser sofridos por estes bebês geneticamente manipulados? A respeito das edições gênicas da linhagem germinativa, Graziella Clemente3 cuida de apontar seus possíveis benefícios, seja em curto prazo, como importante instrumento para o tratamento de doenças monogenéticas, seja a longo prazo, como ferramenta apta a combater doenças poligênicas, multifatoriais e infecciosas. As intervenções genéticas que tenham a finalidade de evitar enfermidades não podem, todavia, ser confundidas com a manipulação genética que vise não a impedir doenças - isto é, preservando-se as condições naturais do indivíduo ainda por nascer -, mas a aprimorar as capacidades de um nascituro, com vistas à geração pré-natal de um indivíduo transhumano. Neste derradeiro caso, os riscos de danos assumidos são intensos, não apenas porque pode haver erro na manipulação provocada, mas também em razão de potenciais danos futuros, cuja verificação é desconhecida no momento da intervenção. De todo modo, nos casos em que houver intervenções genéticas de caráter transhumanista, caberá recorrer, uma vez mais, à cláusula geral de responsabilidade objetiva contemplada no aludido art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, cumprindo ao agente interventor a assunção do dever de reparar todo e qualquer dano oriundo de seu comportamento. Afinal, tratar-se-á de conduta que, em sua essência, implica a assunção de elevados riscos de danos, que podem colocar em xeque o futuro de toda uma geração de seres transhumanos. __________ 1 VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362. 2 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe; FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 886. 3 CLEMENTE, Graziella Trindade. Responsabilidade civil: edição gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, Nelson et al (Coord.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 303.
terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fake news: O Brasil necessita de um marco legal

Será que o Brasil deveria ter leis específicas que promovam a prevenção e o combate à proliferação intensa de fake news? Depois dos cenários descortinados pela pandemia em 2020 e das eleições gerais em 2022, é mais que necessário que se evoluam as discussões já iniciadas, para que se possa construir marcos legais adequados para a temática.  Inicialmente, vale destacar que o Brasil ainda não possui uma legislação específica para as divulgações de notícias falsas. De 2017 a 2022 foram apresentados ao menos 17 projetos de lei1 no Congresso Nacional, que procuram combater este tipo de conteúdo que desinforma, confunde a população, traz riscos à saúde, manipula massas, destrói reputações, corroendo o sistema representativo e a própria democracia. Outras iniciativas parlamentares foram apensadas a esses projetos. Entre tais propostas, destaca-se a tentativa de se criminalizar a divulgação de fake news, com penas máximas de prisão de dois anos, criando-se assim mais um crime de menor potencial ofensivo. Mas, para além do uso do Direito Penal como instrumento de coerção, prevenindo e reprimindo-se condutas daqueles que deliberadamente usam deste expediente para propagação de ideias, interesses ou mesmo com a finalidade espúria de confundir um contingente de pessoas, há também outras medidas interessantes sendo discutidas no parlamento. No sensível campo das eleições, surgem três projetos direcionados à temática. O mais recente, o PLP 120/2022 prevê mais uma causa de inelegibilidade, exatamente para aquele indivíduo que divulgar notícia falsa sobre urna eletrônica e o processo eleitoral. Além deste, o PLS 218/2018 determina que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) crie campanhas educacionais de combate às fake news em anos eleitorais. De igual maneira, o PLS 471/2018 busca definir os crimes de criação ou divulgação de notícia falsa, com a finalidade de afetar indevidamente o processo eleitoral. O PL 632/2020 buscando impor maior rigor às falas e atos de autoridades públicas, considera a divulgação de fake news promovidas por tais autoridades, como uma nova hipótese de crime de responsabilidade e, também, de improbidade administrativa. Assim, uma informação manifestamente falsa veiculada e promovida, por exemplo, por um chefe do Poder Executivo, em qualquer esfera (federal, estadual ou municipal), poderia ser enquadrada com crime de responsabilidade, gerando inclusive a possibilidade de impedimento à continuidade do mandato (impeachment). Entendendo que a transmissão de notícias falsas afeta o direito difuso à correta informação, direito fundamental de quarta dimensão, o PLS 246/2018 prevê a inserção de um novo artigo no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), permitindo que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação judicial questionando a divulgação de conteúdos falsos ou ofensivos em aplicações de internet. Buscando cortar o fluxo financeiro em sites que veiculam propositalmente fake news, o PLS 2922/2020 deseja impedir o anúncio em páginas com desinformação e discurso de ódio. A finalidade é cortar o financiamento, por meio de publicidades, a sites que notoriamente se utilizam de notícias falsas para gerar tráfego e vender espaços a anunciantes. Tal conduta é extremamente comum num mercado online que luta pela atenção do navegante, configurando aquilo que comumente se denomina de click bait (caça-cliques). Este PLS 2922/2020 está pronto para deliberação do plenário na Câmara dos Deputados e também promove inserções de novos dispositivos no Marco Civil da Internet. Buscando definições no Código de Conduta da União Europeia sobre Desinformação, o projeto conceitua fake news como sendo a informação comprovadamente falsa ou enganadora que, cumulativamente: i) é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público; ii) é suscetível de causar um prejuízo público, entendido como ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a proteção da saúde dos cidadãos, o ambiente ou a segurança. No rastro da pandemia da covid-19, alguns desses projetos visam a tutela da saúde como direito coletivo. O PLS 5.555/2020 direciona a criminalização tanto da recusa imotivada à vacinação obrigatória em casos de emergência de saúde, quanto da propagação de notícias falsas sobre as vacinas. Já o PL 1.015/2021 prevê pena de 1 a 4 anos de prisão e multa para o crime de criar, divulgar, propagar, compartilhar ou transmitir, por qualquer meio, informação sabidamente inverídica sobre prevenção e combate à epidemia. Nesta mesma esteira, o PL 2.745/2021 tipifica a conduta de divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, informações falsas sobre as vacinas. Importante registrar que o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.197/2021, que previu o novo título "Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito" no Código Penal, inserindo os vários tipos penais nos arts. 359-I a 359-T e, ainda, revogando a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83). O art. 359-O trazia o novo delito de "comunicação enganosa em massa", com a seguinte disposição: "Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". A pena prevista era de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. Todavia, o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, optou por vetar, valendo-se da seguinte justificativa2: "A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um 'tribunal da verdade' para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica. Outrossim, o ambiente digital é favorável à propagação de informações verdadeiras ou falsas, cujo verbo 'promover' tende a dar discricionariedade ao intérprete na avaliação da natureza dolosa da conduta criminosa em razão da amplitude do termo. A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar". Diante deste cenário, o Projeto de Lei 2.630/2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a mais bem construída proposta para o enfrentamento da temática, até o presente momento. Já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto prevê a proibição da criação de contas falsas, de contas robotizadas (comandadas por robôs), devendo as plataformas digitais desenvolverem mecanismos que limitem o número de contas geridas pelo mesmo usuário. Além disso, a proposta legislativa impões também que estes provedores de serviços online, tais como redes sociais e aplicativos de mensagens, limitem o número de envios de um mesmo conteúdo a usuários e grupos. Há uma clara tentativa de se controlar os envios de mensagens em massa. Por isso, as empresas terão o dever de guarda, pelo prazo de três meses, dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa3. Todavia, o acesso aos registros somente poderá ocorrer mediante ordem judicial, permitindo-se assim que haja espaço para   responsabilização cível e/ou criminal. Este projeto traz também regulações sobre remoção de conteúdos falsos, identificação de postagens que foram impulsionadas com pagamentos, considera de interesse público os perfis de agentes políticos (como chefes do Poder Executivo, por exemplo), cria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, determina que as empresas estrangeiras devam ter representantes no Brasil, sendo que caso venham a descumprir as medidas impostas ficarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício. Para além da atuação do Estado, as próprias companhias de tecnologia estão, mundo afora, alterando seus termos de uso, trazendo mais rigor na análise de conteúdos falsos, fato este que se acentuou nos anos 2020 e 2021. Dois fatos foram as molas propulsoras deste papel mais ativo das empresas: a pandemia e a eleição presidencial norte-americana. As redes sociais, por exemplo, passaram a gerar advertências sobre a suposta falsidade da informação veiculada em determinado perfil, suprimiram publicações e, em caso de reiterações, chegaram até mesmo a excluir o usuário da rede. No Brasil, entretanto, a atuação das plataformas tem sido mais tímida que em solo estadunidense. A grande problemática, num mundo premido por vieses de confirmação e na denominada era da pós-verdade, onde o fato real encontra o muro das narrativas convenientes, é a suposta violação ao direito à liberdade de expressão. Há posicionamento corrente de que a liberdade de expressão merece ser reconhecida como um direito mais amplo, com primazia, devendo ser tolhida apenas em situações absolutamente excepcionais. Contudo, há que se recordar que como direito fundamental que é, a liberdade de expressão está necessariamente subordinada a limites, devendo o abuso de direito ser objeto de adequada repressão, por se tratar de um ato ilícito e ilegítimo. Assim, mesmo sem que haja um diploma específico, o Poder Judiciário tem se esforçado entre erros e acertos, para fornecer respostas à divulgação de notícias inverídicas em variados cenários, valendo-se dos regramentos presentes no Código de Processo Civil, no Código Civil, nas leis eleitorais, no Marco Civil da Internet, entre outros diplomas. A título de exemplo, a utilização de tutelas de inibição, a fixação de astreintes, a determinação de remoção de conteúdos, a desmonetização de sites e canais, o estabelecimento de indenizações, entre outras medidas, vem sendo utilizadas para conter os enormes danos que as fake news causam à sociedade em rede. Por todo o exposto, o combate estatal às notícias falsas merece ser melhor aprimorado no Brasil, buscando-se não apenas a criminalização da divulgação, mas sobremaneira medidas mais efetivas de tutela da informação, como direito difuso que é. A criação de uma causa de inelegibilidade de quem se utiliza dolosamente deste meio abusivo, a previsão de nova hipótese de crime de responsabilidade, a especificação de deveres às sociedades empresárias que atuam no universo online, a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, parecem ser alternativas mais inteligentes e efetivas que a simples criação de novos tipos penais. O ordenamento como um todo merece ser acionado e revisitado, para que o Estado contemporâneo consiga enfrentar uma de suas mais desafiadoras ameaças: a verdadeira "pandemia" de fake news. __________ 1 Fonte: pesquisa no site da Agência Senado apresenta os projetos em andamento. Disponível aqui. Acesso em 17.10.2022. 2 Tal veto (nº 46/2021) está para ser analisado no Congresso Nacional, que poderá mantê-lo ou derrubá-lo. 3 Considera-se encaminhamento em massa, os envios de uma mesma mensagem para grupos de conversas e listas de transmissão por mais de cinco usuários em um período de 15 dias, tendo sido recebidas por mais de mil usuários.
  "Os caminhos não estão feitos. É andando que cada um de nós faz o seu próprio caminho. A estrada não está preparada para nos receber. É preciso que sejam nossos pés a marcar o destino; destino ou objetivo, ou que quer que seja" José Saramago Como anuncia o subtítulo do presente, o brevíssimo ensaio que ora vem a público é fruto de reflexões que tive oportunidade de realizar no IV Congresso Nacional de Responsabilidade Civil do IBERC, em Belém/PA, ocorrido no mês setembro de 2022. De início, registro especial agradecimento à organização do evento, o que faço nas pessoas dos Professores Pastora Leal, Alexandre Pereira Bonna, Nelson Rosenvald e Carlos Edison Monteiro do Rêgo Filho. Do mesmo modo, consigno meus cumprimentos aos ilustres colegas de Mesa, Professores Thais Pascolalotto, Marco Fábio Morsello e Bruno Brasil. A indagação primeira que suscita a reflexão que se compartilha pode ser assim sintetizada: em tema de responsabilidade civil contratual, havendo inadimplemento ilícito, o que se deve indenizar? Mostra-se hoje ainda suficiente a solução apresentada pelo art. 389 do Código Civil para atender às exigências do Princípio da reparação integral, insculpido, dentre outras passagens, no art. 944, caput, do Código Civil do Brasil? A meu ver, a resposta for negativa: é realmente preciso ir além... Se o art. 389 do Código Civil estabelece que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais litros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado", o que se deve, então, indenizar? Qual é o conteúdo da categoria jurídica perdas e danos nas hipóteses de resolução do contrato por inadimplemento culposo (ilícito)? Indeniza-se "apenas o interesse negativo? Ou também o interesse positivo, isto é, aquele que teria se o contrato tivesse sido cumprido?"1 São questões que brotam inexoráveis da própria provocação inicial. Em certa medida, o legislador civil oferece uma solução para o problema da recomposição contratual ao disciplinar a cláusula penal compensatória, o que faz, entre outras passagens, no art. 408 do Código Civil, segundo o qual "incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora". Ocorre que, o próprio legislador, logo a seguir, em duas passagens, excepciona a inevitabilidade desse regime de perdas e danos contratuais. Em síntese, afirma o que é de clareza meridiana: os danos indenizáveis decorrentes do descumprimento do contrato podem ser superior ao montante da cláusula penal compensatória. podem ser superiores aos fixados a esse título. Primeiro, no art. 410 do Código Civil, estabelece que "quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor. Caso o valor do dano seja superior ao valor da cláusula penal, o inocente pode pedir indenização suplementar". Segundo, no art. 416 do mesmo diploma, afirma, no seu parágrafo único, que "ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente". Note, portanto, que deflui do próprio regime legislativo a possibilidade de admitir-se que, diante do ilícito inadimplemento do programa contratual, outros interesses são passíveis de atenção, para realizar-se o Princípio da reparação integral.2 Nesse cenário, surge, então, a discussão da indenizabilidade dos interesses contratual positivo e negativo.3 A eles. O interesse contratual negativo (também referido como interesse da confiança), conquanto tenha gênese na investigação dos danos na fase pré-contratual, diz respeito ao dever de repor-se o contratante inocente à situação em que se encontraria caso não tivesse celebrado o contrato, isto é, como se o inocente jamais tivesse "entrado em negociações que se viram injustamente frustradas."4 De outro lado, o interesse contratual positivo (também denominado interesse de cumprimento) diz respeito àquela situação que resultaria para o credor inocente se tivesse havido o perfeito cumprimento do contrato: presta-se, portanto, resumidamente, a colocar o contratante na exata situação econômica em que estaria caso o contrato fosse sido fielmente cumprido, em perfeita atenção ao que impõe o Princípio pacta sunt servanda. Dito de outra forma, a indenização do interesse contratual negativo (interesse de confiança ou dano negativo) assenta suas raízes na doutrina da responsabilidade civil pré-contratual e visa levar o inocente à situação em que ele estaria se jamais tivesse celebrado o contrato (ou se não tivesse iniciado negociações que se frustraram injustamente, seja pelo recesso injustificado; seja pela revelação de segredos/informações; seja pela omissão de informações relevantes para formar o contrato etc.), como exemplifica Gisela Sampaio da Cruz Guedes5, com respaldo nas lições de Judith Martins Costa.6 De outro lado, de acordo com a doutrina do interesse contratual positivo (também referido como interesse no cumprimento ou por dano positivo), deve se indenizar tendo em perspectiva a necessidade de colocar-se o inocente na mesma situação patrimonial em que ele estaria se o contrato tivesse sido cumprido corretamente. Disso decorre que se devem indenizar todos os prejuízos que brotam do não-cumprimento definitivo (ou do cumprimento tardio/defeituoso). A indenização do interesse contratual positivo, portanto, abrange o equivalente à prestação (dano emergente e lucros cessantes) somado à reparação de todos os demais prejuízos que diretamente derivam da própria inexecução do contrato: coloca-se o inocente, como referi, na mesma situação em que ele estaria se a obrigação tivesse sido perfeitamente cumprida, o que se mostra de todo razoável. Pela tutela do interesse contratual positivo, é fácil ao leitor perceber a insuficiência de uma visão extremamente restritiva do art. 403 do Código Civil, segundo o qual "ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato (...)". A partir da visão ampliativa da indenizabilidade de danos contratuais, por exemplo, seria possível perquirir o cabimento da teoria da responsabilidade civil (contratual) pela perda de chance no cenário celebração de um contrato com determinada pessoa, que, frustrado, fez impossível a celebração de outro contrato com o inocente, configurando-se para o inocente uma situação jurídica que lhe traria a reais chance de obter-se maiores vantagens...7 No Brasil, há salutar tendência de alargamento dos danos contratuais indenizáveis. Expandir o âmbito de danos indenizáveis por rompimento da relação contratual para melhor atender às exigências do Princípio da reparação integral é uma perspectiva que se afina às tendências contemporâneas do Direito Contratual, da Responsabilidade Civil e da correta interpretação das exigências do Princípio da reparação integral. Enfim, o modelo dogmático que se assenta sobre as bases tradicionais do art. 389 do Código Civil não mais atende à complexidade das relações jurídicas contemporâneas, sequer quanto à função compensatória da responsabilidade civil contratual. Seguindo a mesma trilha, por exemplo, não seria demais indagar a possibilidade de reconhecer-se um plus ao valor indenitário decorrente também da ilícita violação às expectativas contratuais legítimas despertadas e da grave frustração da confiança depositada pelo inocente, em interpretação sistêmica do parágrafo único do art. 944 do Código Civil, a contrário sensu. Os conceitos, portanto, estão em construção... O Superior Tribunal de Justiça acolhe a possibilidade de abarcar-se com maior envergadura a indenização de interesses contratuais negativos e positivos, como se colhe da Leitura dos voto-vista lançado pela Min. Nancy Andrighi nos autos de Recurso Especial 1.641.868/SP.8 Novos tempos. Novas realidades. Novos danos indenizáveis... A insuficiência dos modelos tradicionais para atender às exigências da Responsabilidade Civil por inadimplemento ilícito do contrato exige um olhar rente à vida e ao Direito no século XXI. As novas luzes que incidem sobre os danos contratuais permitem indagar: devem ser indenizados os lucros ilícitos (ilegítimos) que decorrem da violação de um contrato?9 A resposta é positiva. Nesse sentido é o recente entendimento do Tribunal de Contas da União: na responsabilidade civil contratual, é possível indenizar os danos decorrentes de comportamentos ilícitos parasitários fruto da conduta ilícita da parte (disgorgment).10 Em 10 de agosto de 2022, a Corte de Contas acolheu com acerto a tese de que "a restituição de lucros ilegítimos está fundamentada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, assim como no princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza e ainda nos efeitos retroativos da declaração de nulidade, no sentido de que se deve buscar a restauração do status quo ante ." Enfim, o ensaio que ora se encerra traz um convite à comunidade jurídica, que deve investigar quais são os critérios e os limites a serem respeitados para atender-se ao Princípio da reparação integral nas hipóteses de ilícito descumprimento do contrato. Não se pode descartar a indenizabilidade de interesses contratuais positivos. Não se pode afastar do inocente o direito à indenização dos lucros decorrentes do ilícito perpetrado. Se o caminho não está ainda feito e pronto para nos receber, como nos encoraja Saramago, que sejamos nós a andar, e que assim façamos o próprio caminho. "Conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade": são as ferramentas, com as quais nos encoraja Norberto Bobbio11, para que possamos chegar a bom porto. ---------- 1 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009 , p. 489, comentários ao art. 402 do Código Civil 2 Sobre o Princípio da reparação integral, ver: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. GUERRA, Alexandre. Reparação integral vs. indenização tarifada: o que a lei 14.128/21 espera de nós? Disponível aqui. 3 Sobre o tema, ver: PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora. vols. 1 e 11. 2008. STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Responsabilidade civil e interesse contratual positivo e negativo (em caso de descumprimento contratual). In. GUERRA, Alexandre D. de Mello; BENACCHIO, Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura. Disponível aqui;   GUERRA, Alexandre D. de Mello. Interesse contratual positivo e negativo: reflexões sobre o inadimplemento do contrato e indenização do interesse contratual positivo. Revista IBERC, Minas Gerais, v.2, n.2,mar.jun./2019,p. 1-23. Disponível aqui. SILVA, Rodrigo da Guia. Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo: influxos da distinção no âmbito da resolução do contrato por inadimplemento. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 3, n. I ,p. I -37 ,jan./abr. 2020. Disponível aqui. 4 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 482. 5 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 125 ss 6 Nas palavras de Judith Martins-Costa, para delimitar as perdas e danos na resolução, encara-se o prejuízo que o lesado deixaria de ter se não tivesse confiado que o contrato teria regular eficácia. O que deixou de ganhar também é indenizado, pois o que se indeniza é o dano que resultou de se ter tornado sem efeito o que se cria que teria efeito. Logo, o que se indeniza é interesse negativo, interesse da confiança. Porém, não nos esqueçamos que o art. 402 introduz o postulado normativo da razoabilidade que contém uma das facetas da equidade. Ao aludir ao que o lesado "razoavelmente deixou de lucrar" seria équo considerar - tal qual ocorre no dano pré-contratual - as expectativas ilegitimamente frustradas, tais quais os decorrentes da perda de uma chance, pois essa poderá consistir em uma vantagem que o lesado teria obtido se não tivesse confiado que o contrato projetasse regularmente a sua eficácia" (MARTINS-COSTA, Judith. Ob. cit., p. 491). 7 Vale acentuar que o Sistema Commom Law norte-americano encontra aberturas à indenização dos danos suportados pelo inocente, como se pode verificar em FARNSWORTH, E. Allan. Legal Remedies for Breach of Contract. Columbia Law Review, vol. 70, no. 7, 1970, pp. 1145-216. JSTOR. Disponível aqui. Accessed 25 Aug. 2022; PIZZOL, Ricardo Dal. Exceção de contrato não cumprido. Indaiatuba: Foco, 2022. 8 Disponível aqui. 9 Cfr. ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bemard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil - RFDC, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. Disponível aqui. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgment e a indenização restituitória. JusPodium, 2019. 10 CAVALLARI, Odilon. TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement. 11 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 232.
Não fosse issoe era menosNão fosse tantoe era quase1 Introdução Débora solicitou um tratamento cuja negativa pelo plano de saúde fundou-se na ausência de previsão no Rol da ANS. Em sede judicial, julgou-se razoável a negativa, e ainda assim, determinou-se a cobertura. Sarah ingressou com demanda judicial e obteve tutela antecipada a qual assegurou que cirurgia eletiva (sem urgência) fosse realizada. As situações acima expostas, embora hipotéticas, servem como singela ilustração da complexidade da saúde suplementar e das nuances das controvérsias que se desdobram em reparação por danos. Enfoca-se neste artigo as negativas de tratamentos não previstos no rol da ANS, e as hipóteses em que são afastados os danos à pessoa, frequentemente, designados de "danos morais". Não se examina os danos associados a reajustes, extinção contratual ou atos de prestadores como clínicas e hospitais2. Rol da ANS: afinal, quais as coberturas obrigatórias? A lei 9.656/1998, "Lei dos planos de saúde", estabelece de forma ampla as coberturas obrigatórias. Por exemplo, o art. 12, inc. II, alínea 'a' impõe o custeio de internações para os contratos com cobertura hospitalar. A respeito cabe indagar, isso significa o dever de custeio de todas as cirurgias imagináveis realizadas em hospitais? Para regular o tema, a Agência Nacional de Saúde Suplementar estabeleceu por meio de resolução uma listagem de procedimentos obrigatórios, popularmente chamada de "Rol da ANS". "A jurisprudência do STJ, até o ano de 2020, havia consagrado a compreensão de que o rol da ANS possuía caráter ilustrativo. Ao mesmo tempo, contudo, não havia um critério claro para o fornecimento"3. A cobertura fora rol frequentemente exigia apenas a prescrição do médico que acompanha o paciente, em que pese os acórdãos apontassem também como parâmetro o caráter indispensável tratamento4. Assim, julgava-se que "A recusa indevida à cobertura de cirurgia é causa de danos morais"5. A construção jurisprudencial ensejou a divergência no sentido de que "a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo".6 Na apreciação do tema, ao adotar a expressão "taxatividade mitigada", ao invés de um "caráter exemplificativo condicionado", o STJ buscou, possivelmente, reforçar dois aspectos centrais: i-) o rol é a regra; ii-) as exceções dependem da verificação de hipóteses cujo ônus probatório recai sobre o solicitante. Vale dizer, nem se consagrou o rol da ANS como exaustivo, nem se pode, simplificadamente, afirmar um caráter ilustrativo. A edição da lei 14.454/2022, equivocadamente tem sido associada à consagração de um rol ilustrativo, o que não encontra respaldo no texto normativo. De acordo com o art. 10, § 4º, da Lei dos Planos de Saúde, na redação definida pela nova lei: "A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação". Para tratamentos não previstos no rol, exige-se, de forma muito próximo ao que estabeleceu o STJ, a comprovação de requisitos específicos, senão vejamos: O quadro acima revela considerável identidade entre a compreensão jurisprudencial e a nova redação da Lei dos Planos de Saúde, com exceção ao critério (i-) da decisão judicial. Danos à pessoa e planos de saúde: afastamento do chamado "dano moral" Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é possível identificar precedentes que consideram que a negativa de tratamento pelo plano de saúde caracteriza dano moral in re ipsa7. Em sentido contrário, consagra-se a compreensão de que a recusa, mesmo ilegítima, "não configura dano moral indenizável, que pressupõe ofensa anormal à personalidade"8. Dessa maneira, a negativa de cobertura somente enseja reparação "quando trouxer agravamento da condição de dor, abalo psicológico e prejuízos à saúde já debilitada do paciente"9. A partir do exame dos precedentes do STJ, identifica-se um segundo filtro a ser observado que consiste em apurar se a negativa fundamenta-se em dúvida razoável de interpretação, tal como na hipótese procedimentos não contemplados no Rol da ANS. Dessa maneira, julga-se que "não há se falar na ocorrência de dano moral indenizável quando a operadora se nega a custear tratamento médico com base em previsão contratual que excluía a cobertura da referida terapêutica, ou seja, com base em dúvida razoável"10, o que na compreensão do STJ afasta a antijuridicidade da conduta. "Há situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a pretensão de compensação por danos morais"11. Para maior clareza, sem caráter exaustivo, apresentam-se os seguintes quadros: Considerações finais A jurisprudência do STJ, ao longo do tempo, tornou mais rígida a possibilidade de concessão de tratamentos não contemplados pelo Rol da ANS. Não obstante seja impreciso afirmar que adotou-se a compreensão de taxatividade, no plano do direito de danos, a ausência de previsão no rol é tomada como "dúvida razoável", o que, na compreensão do Superior Tribunal de Justiça afasta o dever de reparar. Nesse sentido, é possível identificar uma análise bifásica da reparabilidade do dano extrapatrimonial em sede de negativa de cobertura. Em um primeiro momento, examina-se o contrato e a legislação para verificar se há dever de cobertura; em uma segunda fase, avalia-se se há dúvida razoável na interpretação contratual, e os impactos que a recusa representou, no caso concreto ao paciente. Ao retomar os casos apresentados ao início sob a perceptiva da compreensão do STJ, observa-se que a negativa do tratamento para Débora pode não ensejar danos extrapatrimoniais se fundada em cláusula contratual que enseje dúvida razoável, mesmo se o tratamento for assegurado por interpretação extensiva do Rol da ANS12. Sarah, igualmente, poderá ter rejeitada a pretensão reparatória visto que seu procedimento é eletivo e o atraso no acesso não tenha representado impacto a sua saúde. Em apertada síntese, é possível afirmar que na compreensão do Superior Tribunal de Justiça: 1. A negativa de cobertura de um tratamento pela operadora de plano de saúde não é suficiente para caracterização do dano à pessoa (dano moral); 2. Para examinar a reparabilidade do dano faz-se necessário uma dupla análise. Além de verificar o dever de cobertura, no plano objetivo examina-se a presença de dúvida razoável na interpretação contratual; no plano subjetivo, a reparação do dano à pessoa depende da comprovação de impacto à saúde ou abalo relevante; 3. Na jurisprudência do STJ, a recusa indevida de cobertura pode ensejar a reparação por danos; a contrario sensu, a negativa baseada em dúvida razoável é legítima e afasta o dever de reparar. 4. Um tratamento, mesmo se previsto no Rol da ANS, pode ser negado de modo legítimo, por exemplo em vista de carência, extinção do contrato, por não haver compatibilidade com a condição de saúde do paciente. __________ 1 LEMINSKI, Paulo. Não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase. Curitiba: ZAP, 3 ed. 1980. 2 Enfrentamos o tema recentemente, permita-se referir: SCHULMAN, Gabriel. Responsabilidade civil dos planos de saúde e suas nuances: erro médico, ações regressivas e responsabilidade solidária na saúde suplementar. Revista IBERC, v. 5, n. 2, p. 220-246, 8 jun. 2022.  3 SCHULMAN, Gabriel. Duas novidades surpreendentes na jurisprudência do STJ sobre a cobertura de tratamentos por planos de saúde: necessidade de registro de medicamentos na Anvisa (2018) e caráter taxativo do rol da ANS (2020). Revista do Advogado, São Paulo, v. 40, n. 146, p. 53-67, jun. 2020. 4 Idem. Sobre o tema, confira-se recente levantamento, em que temos a alegria de figurar: BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Amplitude da cobertura dos planos de saúde e rol de procedimentos da ANS: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022. 5 STJ. AgRg no AREsp 158625. Rel.: Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma. DJe 27/08/2013. 6 STJ. REsp 1733013/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª, Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020. No mesmo sentido, STJ. AgInt no REsp 1848717/MT, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª. Turma, DJe 18/06/2020. STJ. Agravo em Recurso Especial n. 1.562.169. Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO. DJe: 14/04/2020. O presente artigo não aprofundará esta discussão, seus acertos ou limites. 7 Com igual teor: STJ. EREsp: 1889704 SP, Rel: Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe: 29/6/2021. 8 STJ. AgInt no AREsp n. 1.978.927/PB, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe: 30/06/2022. STJ. AgInt no AREsp n. 1.782.051/PR, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª. Turma, DJe: 15/6/2021. 9 STJ. AgInt no REsp n. 1.988.367/SE, Rel.a Minª. Maria Isabel Gallotti, 4ª. Turma, DJe de 30/9/2022. Distingue-se assim o inadimplemento do dano: ROSENVALD,  Nelson. As  funções  da  responsabilidade  civil:  a  reparação  e  a  pena  civil.  São Paulo: Atlas, 2013, p. 187. 10 STJ. REsp n. 1.904.603/RS, Rel.a Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe de 24/2/2022. 11 STJ. AgInt no REsp 1927347/RS, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, 3ª. Turma. DJe 28/05/2021. 12 STJ. REsp 1.645.762/BA, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe 18/12/2017. 13 Nessa linha STJ. REsp: 1876630, Rel. Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe 11/03/2021.
Respeite mais, julgue menos!Perdoe mais, condene menos!Abrace mais, empurre menos!Faça mais, fale menos! [...] Seja menos preconceito!Seja mais amor no peito!Seja amor, seja muito amor!E se mesmo assim for difícil sernão precisa ser perfeito.Se não der pra ser amorseja pelo menos RESPEITO! Bráulio Bessa O mundo digital exerce atualmente caráter prioritário na vida em sociedade, tendo assumido novos contornos com o período eleitoral. Se o advento das redes sociais, há cerca de 10 anos, trouxe um novo olhar a respeito do marketing pessoal, da democratização da economia digital e do exercício da liberdade de expressão, fez emergir também, em tempos de extremismos políticos, um grande palco para a produção de danos. As corriqueiras dancinhas, "reels", vídeos divertidos e a novel publicidade orgânica deram lugar a um palco de xingamentos, agressões, repúdios, discursos odiosos com requintes de racismo e, sobretudo, de xenofobia, deixando ainda mais evidente o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, pois não houve uma educação digital para a convivência social nesse ambiente. Quando isso se alia ao extremismo do debate político, evidencia-se ainda mais o desrespeito dos usuários às lições básicas de educação, empatia, cordialidade e de convivência com a divergência de opiniões. Por consequência, potencializa-se a ocorrência de danos. Longe de esgotar o tema, esse artigo traz, em um primeiro momento, um breve relato sobre os danos sofridos pelos nordestinos no ambiente digital, decorrentes de declarações xenofóbicas e, em um segundo momento, busca-se avaliar a viabilidade de cumulação entre a reparação pecuniária e a natural, com o objetivo de atender ao princípio da reparação integral. O caso de xenofobia Recentemente, com o resultado do 1º turno das eleições presidenciais, o exercício - legítimo - da liberdade de expressão foi confundido com liberdade de agressão, resultando em abuso de direito. Vários vídeos com críticas xenofóbicas pelo resultado das eleições presidenciais do primeiro turno circularam nas redes, sendo o de maior repercussão o da advogada de Uberlândia/MG, então vice-presidente da comissão da mulher advogada.   No vídeo, a advogada critica o Nordeste e diz que não vai mais "alimentar quem vive de migalhas", por ter o candidato da oposição ao governo tido expressiva votação naquela região. Na ocasião, a advogada: "A todos aqueles brasileiros que a partir de hoje têm que ser muito inteligente. Nós geramos empregos, nós pagamos impostos e sabe o que que a gente faz? A gente gasta o nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos fazer isso mais. Vamos gastar dinheiro com quem realmente precisa, com quem realmente merece. A gente não vai mais alimentar quem vive de migalhas. Vamos gastar o nosso dinheiro aqui no Sudeste, ou no Sul ou fora do país, inclusive porque fica muito mais barato. Um brinde a gente que deixa de ser palhaço a partir de hoje". A declaração viralizou no mesmo dia e causou perplexidade na comunidade jurídica, resultando em notas de repúdio assinadas por parte de todas as seccionais da OAB do Nordeste, além da exoneração da advogada do cargo de vice-presidente a comissão da mulher advogada. O presidente da OAB/MG, Sérgio Leonardo, respondeu rapidamente às declarações da colega, alertando ao fato que essa é uma opinião pessoal que materializam preconceito e discriminação ao povo nordestino, não refletindo a opinião da instituição e assegurando que as providências disciplinares cabíveis ao caso seriam tomadas. A advogada emitiu nota procurando se desculpar com a população nordestina ao tempo em que quis se desviar da conduta criminal e se vitimizar por ataques sofridos no ambiente virtual após as suas declarações: "Em razão de manifestação pessoal publicada em minhas redes sociais, venho a público me desculpar por compreender a infelicidade do que foi falado, uma vez que é totalmente incompatível com meus valores. Minha conduta, embora reprovável, não se encontra tipificada como crime em qualquer dispositivo legal vigente. A exposição da minha fala foi feita por terceiros, sem o meu consentimento, e fez com que eu siga atacada com as mais diversas formas de violência contra a mulher, tendo que blindar a mim e minha família. A infelicidade da minha fala não pode autorizar ou justificar a prática de crimes graves contra a minha pessoa, que vão desde injúria e difamação, até mesmo a apologia ao estupro. Em um Estado Democrático de Direito os fins não justificam os meios. Lamento pela repercussão desta infeliz colocação e me arrependo profundamente pelo ocorrido, desculpando-me com todas as pessoas de origem nordestina que tenham se sentido ofendidas, retratando-me completamente." Na sequência, a Defensoria Pública de Minas Gerais ingressou contra a advogada com ação civil pública com pedido de danos morais coletivos em favor do povo nordestino. A peça, assinada por sete defensores públicos, tinha dentre os pedidos: i) a imediata retratação da advogada pelas ofensas provocadas, por todos os meios de comunicação disponíveis, notadamente, em sua rede social e no jornal local; ii) a condenação da advogada por dano moral coletivo no valor de R$ 100.000,00, devendo o valor ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos; iii) o envio de ofício ao ministério público estadual para eventual apuração de crime e iv) o envio de ofício à OAB/MG para eventual instauração de procedimento administrativo por desvio ético, além dos pedidos de praxe.  A reparação integral dos danos coletivos de natureza existencial Apesar de não haver, na legislação brasileira, dispositivo específico regrando a reparação natural, traduzida, na hipótese em questão, no dever de pedir desculpas por parte da causadora do dano, a sua aplicabilidade se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, Carlos Edison Monteiro Filho: Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.1 Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente. Nesse contexto, o pedido de desculpas pode figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo. Em algumas situações, a reparação natural pode se demonstrar bem mais eficiente do que a compensação financeira, cabendo à vítima indicar a via adequada para atender à reparação integral de forma eficaz. Isso porque a solução apontada como adequada para um, pode não ser a mais benéfica para outro, pois não há como conceder uma mesma providência jurisdicional a todas as violações sofridas pela sociedade. Assim, danos de somenos importância como uma inscrição indevida em cadastro restritivo de crédito podem, a depender da situação, ser resolvidos rapidamente com uma reparação pecuniária. Em outras hipóteses isso não acontece, sendo necessário analisar a viabilidade da cumulação dos pedidos reparatórios, visto como um meio de minorar o dano sofrido pela vítima, e compensatório, isto é, a imposição de condenação pecuniária. Apesar da cumulação de pedidos da referida peça ajuizada pela defensoria mineira, para parte da doutrina é difícil aceitar a cumulação de pedidos quando se enxerga a reparação natural como primeira e única via adequada a reparar o dano, no sentido de levar a vítima ao status quo ante. Assim, para Leonardo Fajngold, esse retorno ao estado anterior de coisas seria suficiente para reparar integralmente à vítima. Em outras palavras: havendo reparação natural, a compensação não teria lugar e, por consequência, a cumulação dos pedidos não seria permitida, pois o dinheiro não repara, compensa2. No entanto, quem, senão a vítima, seria capaz de indicar como a reparação integral será atendida? Nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação semelhante a este estado. Nas ações coletivas relativas a danos ambientais, por exemplo, o dever de reflorestamento como via de retorno ao que mais se aproxima do status quo ante não afasta o dever de indenizar. Isso se torna ainda mais evidente quando o dano sofrido é coletivo como na hipótese dos danos provocados por declarações xenofóbicas a uma determinada população. A cumulatividade entre as funções reparatória (pedido de desculpas) e compensatória, deve, portanto, ser de escolha do autor da ação. No caso do dano coletivo por xenofobia, o pedido de desculpas não afasta a reparação pecuniária, pois a indenização serve como meio de viabilizar o fomento de instituições que trabalham em prol da coletividade lesada. Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera: O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso3.  Em tempos de redes sociais, exposições e agressões por meio da Internet tomam uma proporção infinitamente superior e, por vezes, fora do controle das pessoas. Algumas pessoas parecem esquecer que o dever de se abster de causar um dano a outrem (nemimem laedere) é cláusula geral de conduta, irradiada em todo ordenamento jurídico. Se a natureza dos direitos da personalidade não permite uma significação patrimonial exata hábil a aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem viabiliza a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas eficazes para a recomposição dos danos, utilizando-se para tanto todos os meios admitidos em direito. Isso porque as necessidades existenciais de cada um não se apresentam de modo uniforme. Os modelos abstratos da codificação anterior não se demonstravam adequados para as demandas contemporâneas, tendo o Código Civil de 2002 dado um grande passo em favor da defesa dos direitos da personalidade. Cabe à doutrina continuar exercendo o seu papel instrutivo, fomentando o debate e trazendo entendimento ao tema da reparação integral, mediante o reconhecimento das variadas formas de recomposição natural, sem que, com isso, haja exclusão da reparação pecuniária. A admissão da cumulação de pedidos não tem por objetivo esvaziar o instituto da reparação natural, mas dar efetividade ao princípio da reparação integral do sistema brasileiro. Sob esse ponto de vista, não se deve retirar da vítima o poder de, no pleno exercício do acesso à justiça, indicar o que melhor atende à reparação integral e pleitear uma indenização aliada a uma das formas de reparação natural. Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da xenofobia, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar as vítimas à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos nos moldes realizados pela defensoria pública mineira. __________ 1 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 2 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. O autor entende que a cumulação da reparação natural com a reparação pecuniária implicaria em esvaziar o instituto da reparação natural, vista como meio hábil de levar a vítima ao status quo ante. Para o autor, a admissão de uma reparação natural cumulada com uma compensação financeira implicaria em aceitar que o instituto da reparação natural não tem o condão de reparar. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.
terça-feira, 11 de outubro de 2022

As questões legislativas do dano moral

O atual momento do dano moral, no Brasil, está enfrentando um grande desafio, pois devido a falácia que se criou de que estaríamos diante de uma indústria do dano moral, foram criados mecanismos legislativos que acabaram inibindo o ingresso de ações judiciais com pleito indenizatório por danos morais, o que gerou preocupação de várias instituições que defendem o livre acesso à Justiça e o direito dos cidadãos. Na verdade são duas questões no âmbito legislativo que se verificam a necessidade de alteração, ao menos no meu entendimento, e de vários doutrinadores. A primeira mudança legislativa necessária encontra-se na esfera trabalhista, que contém uma inconstitucionalidade absurda! A lei 13.467/17,1 chamada de "Reforma Trabalhista," alterou vários pontos contidos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, de maneira substancial, dentre outras situações estranhas, o art. 223 A e G,2 tabelou o valor a ser pago a título de indenização por dano extrapatrimonial, fazendo clara distinção no valor de cada vida perdida, por exemplo, num acidente de trabalho. Ora, de acordo com esta infeliz alteração, os familiares de um funcionário que foi vítima fatal de acidente de trabalho farão jus a uma indenização maior do que os familiares do funcionário que recebia um salário mais modesto, o que é desumano e difícil até de explicar para quem perde um ente querido em acidente de trabalho. O referido artigo, que parece ser uma reedição do tabelamento do dano moral, quando da antiga Lei de Imprensa, o qual foi considerado inconstitucional, ao definir que os valores da condenação deverão ter como referência o último salário contratual do empregado - até três vezes, quando a ofensa é de natureza leve, alcançando o máximo de 50 vezes para casos gravíssimos. E dessa forma, flagrante, esses nefastos artigos da Reforma Trabalhista, violam o princípio da reparação integral do dano, conforme acentua o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, pois não permitem que os danos causados sejam livremente medidos pelo julgador, haja vista, a limitação da norma cuja declaração de inconstitucionalidade se faz necessária. Esses arts. 223 A e G da Reforma Trabalhista, também violam o princípio da isonomia, consoante art. 5º, caput da CF, e os arts. 7º, XXVIII, 225, caput, VI da Constituição Federal.3 Em breve síntese, é evidente o afrontamento ao princípio constitucional da igualdade, pois na Justiça do Trabalho existe o limitador do famigerado artigo, mas na Justiça Cível o julgador é livre para condenar o agente causador, por dano moral, arbitrando o valor que bem entender. Ou seja, as vítimas que sofrem e fazem jus a indenização por danos morais  teriam seu direito limitado na Justiça do Trabalho, ao passo que na Justiça Cível não haveria qualquer limite de indenização !! Por conta disso, atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal, três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), que postulam a declaração da inconstitucionalidade dos artigos da reforma trabalhista.  Pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) ADIS 6050, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, ADI 6082, e a movida pelo Conselho Federal da OAB, ADI 6069. Neste momento, após o Ministro Gilmar Mendes4 se pronunciar em seu voto, de forma muito sábia pelo livre arbitramento do dano extrapatrimonial pelos magistrados, embora não tenha considerado que os artigos são inconstitucionais, o Ministro Cassio Nunes, pediu vista ( outubro/2021), e assim se encontra o processo até a presente data a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6069. A segunda questão do dano moral, está contida no Código de Processo Civil,5 no art. 292, inciso V,6 que obriga o advogado a inserir o valor do dano moral na petição inicial. É sabido, que na jurisprudência não existe consenso nos valores arbitrados a título de dano moral. Basta examinar os casos concretos para se constatar que diante da mesma situação de fato incidem valores de condenação diferentes, pois cada magistrado valora os danos morais de forma subjetiva de acordo com seu entendimento pessoal frente a demanda que se apresenta. Ainda, é possível que diante de um mesmo episódio, um magistrado entenda que houve violação do direito à personalidade, condenando o agente causador ao pagamento de indenização por danos morais, enquanto seu colega julga a ação improcedente por entender que os fatos narrados não passaram de mero dissabor da vida comum. Ou seja, é impossível valorar no início da ação o valor dos danos morais, pois os mesmos podem inclusive ser agravados ou minimizados no decorrer do processo judicial. O que não considero equivocado, pois o arbitramento do dano moral, depende da instrução, da oitiva de testemunhas, de laudos e perícias (caso ocorram) para ao final, o julgador, ter as informações suficientes, e arbitrar o valor como era antes do advento Código de Processo Civil atual. É impossível o advogado quantificar este valor na inicial, no momento da distribuição da ação, pois as dificuldades em atribuir o valor do dano são imensas, e necessita da instrução para isso. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça,7 um processo judicial cível tem tempo de tramitação médio de quatro anos e cinco meses. Assim, ao longo desse período muitas situações podem ocorrer e impactar nos danos sofridos pelo demandante, sendo evidente que a mudança legislativa que impõe a obrigatoriedade de estipulação do dano no ato da distribuição do processo, além de deixar de refletir o direito da vítima é um retrocesso. Por exemplo, no caso de um acidente aéreo, que tenha vitimado o filho único de um casal. Que valor o advogado colocaria na petição inicial, a título de condenação por danos morais, para cada um dos genitores ?!?! Na jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho, tanto na esfera trabalhista como cível, e mesmo no Superior Tribunal de Justiça, uma pesquisa com uma certa profundidade encontrará valores de dano moral para cada um dos genitores de 200 salários-mínimos, 300 salários-mínimos, podendo alcançar até 500 salários-mínimos, este último mais raro de ocorrer. Mas, e que valor o advogado coloca no pedido?! Se não existe consenso jurisprudencial!! E mais, o advogado tem que se preocupar com a questão das custas judiciais. Se o cliente não possuir o direito à assistência judiciária gratuita, o acesso à Justiça fica prejudicado, pois a pretensão a indenização do dano moral será bem defasada em relação a sua real pretensão. E os honorários sucumbenciais, como ficariam, se a pretensão do pedido na inicial, ocorresse um decaimento!? Na forma do exemplo do acidente aéreo, se a inicial contivesse o pedido indenizatório de dano moral de 300 salários-mínimos para cada genitor e a decisão final arbitrasse em 200 salários-mínimos para cada um, como ficaria a fixação da sucumbência? Fica o questionamento, os honorários sucumbenciais incidiriam sobre o valor que o demandante decaiu, ou seja, 100 salários-mínimos? Esta questão também gerou polêmica, pois a súmula 3268 do Superior Tribunal de Justiça não permite a sucumbência em relação a danos morais.  E nesse sentido, em julgamento recentíssimo da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do eminente Ministro Antônio Carlos Ferreira,9 este decidiu que em indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Dessa forma, vivenciamos esse momento em que é necessário a luta pela garantia dos direito ao livre acesso à Justiça e à dignidade da pessoa humana, possibilitando que os magistrados possam fixar danos morais de forma justa, sem tabelamento e que os advogados possam ajuizar uma ação de danos morais de forma tranquila sem necessidade de fixar inicialmente o valor dos danos morais. ---------- 1 BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022. 2 'Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.' [...] 'Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: [...] § 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; (BRASIL, 2017). 3 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 4 Após o voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator), que conhecia das ADI 6.050, 6.069 e 6.082 e julgava parcialmente procedentes os pedidos formulados, para conferir interpretação conforme a Constituição, de modo a estabelecer que: 1) As redações conferidas aos art. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou danos em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por danos extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em: 30 ago. 2022.). 5 BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 6 Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;(BRASIL, 2015). 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2020. Brasília: CNJ, 2020. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022, p. 47. 8 "Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca" (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 326. Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2006]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022.) 9 "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. REVISÃO. REEXAME DE PROCAS E FATOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N 7/STJ.VALOR DA INDENIZAÇÃO.PEDIDO.CONDENAÇÃO.QUANTUM DEBEATUR. INFERIOR AO PEDIDO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA326/STJ. SUBSISTÊNCIA NO CPC/2015.RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial nº 1.837.386-SP. Civil e Processual Civil. Recurso Especial. [...].Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira, 16 de agosto de 2022.).
O presente ensaio é uma conversão da palestra apresentada no IV Congresso Nacional do IBERC, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil - IBERC em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/Pará.  O tema abordado são os danos sociais, razão pela qual se faz necessária a sua delimitação conceitual e a sua diferenciação quanto aos danos correlatos. Centralidade do dano Partimos do pressuposto de que o dano é o elemento desencadeador dos deveres de responsabilidade civil: prevenção/precaução e reparação. Isso quer dizer que não se pode cogitar de responsabilidade civil sem ao menos uma probabilidade de dano. Isso se deve ao fato de que o dano é fenomênico, pois acontece no mundo dos fatos, na relação tempo/espaço. Entre os pressupostos da responsabilidade civil, o que atinge os nossos sentidos e afeta diretamente a vida das pessoas é o fenômeno danoso. A doutrina especializada traz diversos conceitos1, mas o certo mesmo é que o dano algo de ruim que acontece na vida da vítima. O dano é algo ruim e injusto porque a vítima não tem obrigação de tolerar. É claro que muitas coisas ruins acontecem na vida, mas não são danos. Por exemplo, pagar imposto é um sério prejuízo para o contribuinte, mas se trata de uma obrigação legal que ele tem o dever de suportar. Além disso, o dano tem que ser causado por outra pessoa porque se for causado pela própria vítima pode ser um prejuízo, mas não é dano2. Então, o dano pode ser entendido como prejuízo injusto e heterônomo porque é causado por outra pessoa e porque a vítima não está obrigada a suportá-lo, nem por lei nem por contrato. Principais classificações: Dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso O dano comporta várias classificações: dano patrimonial e extrapatrimonial, dano ao patrimônio e dano à pessoa, dano ordinário e extraordinário, dano individual e coletivo/difuso. Além disso, dependendo da abordagem, o dano moral comporta uma série de especificações: dano psíquico, dano físico, dano estético, dano existencial. Entre essas classificações, há duas que interessam diretamente à delimitação do nosso estudo: dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso3. A classificação dano ordinário e extraordinário nos faz pensar que existem danos comuns, que acontecem ordinariamente, o que é normal na vida em sociedade; e danos que extrapolam este senso de normalidade, aqueles que não deveriam acontecer nem em nossos piores pesadelos. Além disso, se pensarmos nas consequências do evento danoso, percebemos que alguns danos são individuais porque atingem determinada pessoa ou grupo de pessoas, ao passo que outros são coletivos porque refletem sobre a coletividade. A combinação entre esses fatores - natureza extraordinária e consequências sobre a coletividade - é um problema que tem nos ocupado nos últimos tempos, diante das grandes tragédias que ocorreram em nosso país. Longe de se apontar para este ou aquele culpado, para esta ou aquela empresa, o que nos ocupa é a busca de soluções jurídicas para enfrentar esse tipo de situação. A observação desses fenômenos revela a existência de algumas características que são próprias do dano extraordinário ou dano enorme. Um desses aspectos é a multiplicidade ou indeterminação de suas causas. Outro aspecto é a magnitude de suas consequências. O terceiro é que provocam intensa comoção social4. Os danos extraordinários são danos impregnados de socialidade, tanto em suas causas, como em suas consequências e em sua reflexividade, pois são relacionados com atividades necessárias ao nosso modo de vida em sociedade e suas consequências alcançam, não somente as vítimas diretas, mas também a coletividade como um todo, provocando intensa comoção social. Aqui sobressai em importância a distinção entre danos individuais e danos coletivos. Os primeiros atingem uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, enquanto os segundos atingem uma coletividade ou uma categoria de pessoas indeterminadas ou indetermináveis, por exemplo, os moradores da cidade de Mariana ou os consumidores de determinado produto. Danos sociais: características Acontece que os danos sociais vão um pouco além desta dicotomia entre danos individuais e coletivos. Embora sejam modalidade de dano coletivo em sentido amplo, não se confundem com o denominado "dano moral coletivo", que se caracteriza pela "Ofensa a interesses extrapatrimoniais compartilhados por determinada coletividade, que pode ser uma comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas titular de interesses protegidos pela ordem jurídica"5. Neste passo, é de grande utilidade a conceituação fornecida por Antônio Junqueira de Azevedo acerca dos danos sociais: além dos efeitos produzidos sobre as vítimas diretas e individuais, tais danos produzem um rebaixamento na qualidade de vida da sociedade como um todo, envolvendo aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais de maneira indistinguível6. Por esta razão, podemos dizer que o dano social desafia a dicotomia entre dano moral e patrimonial, porque se trata de um rebaixamento da qualidade de vida de maneira global e não especificável. Pois bem, o dano enorme ou extraordinário se identifica de imediato pela amplitude de suas consequências, podendo-se citar como exemplos o incêndio na Boate Kiss e o rompimento das barragens de minério em Mariana e Brumadinho. Percebe-se também que esses episódios estão relacionados com atividades inerentes ao modo de vida nas sociedades contemporâneas, de sorte que ninguém em sã consciência postularia o fechamento das mineradoras no Brasil ou das casas noturnas. Os danos sociais também são dotados de socialidade em suas consequências, as quais atingem a coletividade como um todo, produzindo um rebaixamento na qualidade de vida da população. É como se fosse um dano existencial de natureza coletiva. Por exemplo, uma companhia de saneamento fornece água de péssima qualidade para a população, obrigando-a a uma vida de sofrimento e sacrifícios. Trata-se de uma situação em que as pessoas poderiam ter uma qualidade de vida melhor, se não fosse a atividade danosa desenvolvida por determinada empresa. Então, para identificar a natureza social do dano devemos entender que: a) não é normal existir aquele tipo de situação; b) há um rebaixamento da qualidade de vida para todas as pessoas, de maneira indistinguível. Estes aspectos estão presentes no rompimento das barragens de minério de Mariana e Brumadinho. Trata-se de situações danosas anormais, que poderiam ser evitadas e cujas consequências ultrapassam o campo das vítimas individuais, alcançando a sociedade como um todo e diminuindo a qualidade de vida das pessoas. Especificamente nestes casos, são danos impregnados de socialidade em suas causas, uma vez relacionados a atividades necessárias ao nosso modo de vida; e socialidade em suas consequências porque produzem rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Autonomia dos danos sociais Devemos ter clareza de que os danos sociais são indenizáveis por si mesmos e não como acréscimo ou extensão aos danos individuais. Ademais, esses danos não se confundem com os danos morais coletivos, cujas consequências atingem uma coletividade de maneira difusa, mas delimitada, ao passo que os danos sociais atingem a sociedade como um todo. Diante de danos catastróficos, como são os casos de Mariana e Brumadinho, há danos para as pessoas diretamente e indiretamente atingidas e há danos para a sociedade como um todo, mediante rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Então, cabe indenização em favor das pessoas direta e indiretamente atingidas e cabe indenização em favor da coletividade, que é vítima desse dano social, pelo rebaixamento da qualidade de vida das pessoas em geral. Em tema de direito do consumidor, os danos sociais têm aplicação aos casos de disponibilização de serviços de má qualidade ao público, de maneira contumaz e de forma generalizada. Por exemplo, nos casos de serviços bancários que sujeitam as pessoas em geral a golpes, mesmo que aplicados por terceiros; nos casos de serviços de internet e de telefonia com falhas e intermitências. Nesses casos, os prejuízos individuais são pequenos, muitas vezes relegados à categoria do mero dissabor. Porém, considerados em seu conjunto, trata-se de prática danosa que atinge não somente os usuários diretos dos serviços, mas a qualidade de vida da sociedade como um todo. Nesses casos, é perfeitamente cabível a propositura de ação de indenização por dano social. O problema da legitimidade ativa Como a vítima do dano social é a coletividade, cabe ao Ministério Público promover a ação indenizatória com vista à reparação (LACP, art. 5º, I). Todavia, há pelos menos dois aspectos a serem explorados. O primeiro é que a Lei da Ação Civil Pública limita as hipóteses de cabimento da ação civil pública à tutela dos bens elencados no art. 1º7. Uma interpretação superficial levaria à conclusão de que somente caberia ação civil pública nas hipóteses elencadas na lei. No entanto, essa disposição contrasta com o direito fundamental de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV). Logo, a melhor interpretação é aquela que admite a legitimidade do Ministério Público para promover ação civil pública com vista à reparação dos danos causados à coletividade: danos sociais. A outra questão é saber se as associações podem promover a mesma ação indenizatória em prol da coletividade, visto que devem estar vinculadas aos seus objetivos sociais, ou seja, à defesa dos direitos e interesses de determinadas categorias de pessoas (consumidores, funcionários públicos, advogados, médicos etc.) ou de bens jurídicos (meio ambiente, o consumo, o patrimônio histórico, artístico e cultural etc.). Neste ponto, faz-se importante a distinção entre dano moral coletivo e dano social, uma vez que as associações são legitimadas a promover a defesa de interesses coletivos delimitados a determinadas categorias de pessoas ou de bens jurídicos relacionados ao seu objeto social, mas não existe associação destinada à defesa dos interesses da sociedade genericamente8. Por isso, é correto dizer que a legitimidade das associações é mais restrita que a do Ministério Público, devendo se ater à abrangência de seu objeto social. De qualquer modo, é possível instituir uma associação com a finalidade específica de promover a reparação de danos ocorridos em determinada localidade, desde que relacionados a alguma das hipóteses descritas na lei: meio ambiente, consumidor, ordem econômica etc. (LACP, art. 5º, V, b). Neste caso, o Ministério Público atuará como litisconsorte ativo ou como custos legis, bem como poderá assumir a autoria em caso de abandono da ação (LACP, art. 5º, §§ 1º e 3º). Ainda no tocante à legitimidade ativa, cabe lembrar que o direito brasileiro não admite a conversão da ação indenizatória individual em ação coletiva, como ocorre com as class actions do direito norte-americano, uma vez que o art. 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa essa possibilidade, sofreu veto presidencial. Desse modo, prevalece o entendimento doutrinário fixado no Enunciado 456 da VI Jornada de Direito Civil do CJF9. Em sede jurisprudencial, merece menção o julgado do Superior Tribunal de Justiça, em regime de controvérsia repetitiva, que, embora reconhecendo a existência de dano social, afastou a possibilidade de fixação da reparação pelo juiz, ex-offício, em ação movida pela vítima individual da ação lesiva10. Assim, diante de fato que caracterize dano social, além dos danos individuais causados às pessoas, cabe ao Ministério Público promover ação civil pública indenizatória. É importante destacar que: [1] não cabe à vítima individual promover ação de reparação de dano social; [2] não é possível ao juiz transformar ação individual em ação coletiva; [3] nem pode o juiz, diante de uma ação individual, determinar de ofício o pagamento de indenização por dano social. Síntese conclusiva Em síntese, os danos sociais são modalidade de dano coletivo, que não se confundem com os danos individuais nem com os danos morais coletivos. Sua principal característica é o rebaixamento da qualidade de vida da sociedade como um todo, de maneira indistinguível, ultrapassando a dicotomia dano patrimonial e extrapatrimonial. Esses danos são indenizáveis por si mesmos, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para promover ação indenizatória em prol da sociedade. __________ 1 GOMES, Orlando. Obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. II. p. 328; ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 187-188; CALVO COSTA, Carlos Alberto. Daño resarcible. Buenos Aires: Hamurabi, 2005. p. 89. p. 61-97. 2 No sentido de que o dano decorre da conduta ou atividade alheia, confiram-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1950. v. II, p. 313; BUERES, Alberto J. Derecho de daños. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 2001. p. 483; ZANNONI, ZANNONI, Eduardo A. El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1982, p. 1; VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, v. I, p. 597; TUHR, Andreas von. Tratado de las obligaciones. Tradução do alemão de W. Roces. Direção de José Luis Monereo Pérez. Granada, Espanha: Editorial Comares, 2007, p. 47. 3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 555-586. 4 SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá; Porto: Juruá, 2018. p. 201-214. 5 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo, LTr, 2004, p. 138. Ver também: TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Curitiba: Juruá, 2014, p. 178-179; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6183. Acesso em: 18 fev. 2021. 6 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381-382. 7 Art. 1º: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III - à ordem urbanística; IV - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - por infração da ordem econômica e da economia popular; VI - à ordem urbanística. 8 A redação original do art. 5º, II, da LACP, era mais aberta, incluindo "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" entre as finalidades das associações. Esta expressão foi retirada do texto pela lei 8.078/1990 (CDC). 9 Enunciado 456: A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas. 10 EMENTA. RECLAMAÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO POR TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS. RESOLUÇÃO STJ N. 12/2009. QUALIDADE DE REPRESENTATIVA DE CONTROVÉRSIA, POR ANALOGIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO INDIVIDUAL DE INDENIZAÇÃO. DANOS SOCIAIS. AUSÊNCIA DE PEDIDO. CONDENAÇÃO EX OFFICIO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. CONDENAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO ALHEIO À LIDE. LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA DEMANDA (CPC ARTS. 128 E 460). PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. NULIDADE. PROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC. 2. A eg. Segunda Seção, em questão de ordem, deliberou por atribuir à presente reclamação a qualidade de representativa de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, por analogia. 3. Para fins de aplicação do art. 543-C do CPC, adota-se a seguinte tese: "É nula, por configurar julgamento extra petita, a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide". 4. No caso concreto, reclamação julgada procedente. (STJ - 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v. u.).
No último dia 28 de setembro foi apresentada pela Comissão Europeia uma Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu que busca adaptar as regras de Responsabilidade Civil extracontratual a casos de danos envolvendo Inteligência Artificial. O presente artigo se propõe, em seu reduzido escopo, a lançar breves e sumaríssimas impressões sobre o documento, sem qualquer pretensão de esgotá-lo, já que sequer houve tempo hábil para destrinchar com maior aprofundamento seus complexos e multifacetados meandros, o que se reserva para um momento posterior. A proposta, que foi apelidada de Diretiva sobre a Responsabilidade Civil da IA (AI Liability Directive), parte do dado concreto de que vários países da União Europeia estão gestando legislações específicas para a temática. Diante desse cenário, e buscando evitar a fragmentariedade das soluções legislativas dentro do bloco, a Comissão sugere a criação de um ferramental que poderá servir de base para os aplicadores do Direito e para as vítimas diante de casos de danos envolvendo IA. A Diretiva, caso aprovada, se integrará ao complexo quebra-cabeças regulatório da Inteligência Artificial proposto pela União Europeia e que já conta, por exemplo, com a Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial [2020/2014(INL)]. Em seu relatório, a Comissão aponta que se corre atualmente o risco de insegurança jurídica, já que a ausência de um corpo comum de regras poderia fazer com que magistrados aplicassem regras internas de forma ad hoc para garantir a justa reparação das vítimas, o que acabaria gerando uma realidade custosa para os atores do mercado, em especial para as pequenas e médias empresas (medium-sized enterprises - SMEs). Regras claras também criariam um reforço na confiança na utilização da IA, bem como incentivos econômicos para que operadores agissem em conformidade com regras de segurança, sendo este um contributo para se prevenir a ocorrência de danos, a ressaltar a função precaucional da Responsabilidade Civil. Além disso, o relatório aponta para a necessidade de se garantir que as vítimas obtenham o mesmo grau de proteção que já obtêm para danos causados por produtos em geral que não se valham de IA. E isso passaria pela criação de um ferramental a ser empregado pelas vítimas e pelos aplicadores do Direito para contornar eventuais problemas de assimetria informacional e técnica, especialmente na produção de provas. Essa necessidade surge diante da constatação do chamado "efeito black box", que dificulta a investigação a apuração de atos praticados por IA, e, por consequência, acaba tornando a prova da culpa e da causalidade verdadeiramente problemáticas para as vítimas. Afinal, se nem mesmo programadores por vezes conseguem descobrir como determinada IA agiu, não há como se pretender que as vítimas alcancem tal desiderato. É importante compreender que a proposta de Diretiva tem escopo de aplicação bastante limitado: serviria apenas para aqueles casos em que as vítimas (ou quem se sub-rogue no seu direito), ingresse com ações judiciais baseadas em Responsabilidade Civil não contratual e de natureza subjetiva, reservando à Product Liability Directive, isto é, a Diretiva de Produtos Defeituosos (para a qual também se apresentou proposta de reforma contemplando a Inteligência Artificial) a disciplina destes casos, que em muito se assemelham às normas do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, embora guardem diferenças substanciais. A Diretiva também não afetaria as regras em vigor que regulam as condições da responsabilidade no setor dos transportes nem as estabelecidas pelo Regulamento de Serviços Digitais, ou Digital Services Act (DSA). Dentro deste âmbito restrito de aplicação, seriam assegurados às vítimas alguns direitos como solicitar em juízo que determinada pessoa (como, por exemplo, fornecedores e utilizadores) forneça elementos de prova sobre um sistema de IA de alto risco suspeito de ter causado dano, quando, por exemplo, tal pedido tenha sido anteriormente negado. Esse procedimento, a que se denomina disclosure of evidence, obedeceria a regras específicas de proporcionalidade e seria utilizado para facilitar a instrução de ações judiciais de indenização. O não atendimento a semelhante requisição judicial poderia acarretar o ônus da presunção de que o agente não agiu em conformidade a um dever de diligência pertinente. Inverte-se, assim, o ônus da prova aos agentes, que precisam reforçar a documentação relativa ao funcionamento dos sistemas de IA. Além disso, inclui-se em dito ferramental (art. 4º, 1) a possibilidade de se afirmar presunção relativa de nexo de causalidade, caso estejam presentes três requisitos cumulativos, a saber: "(a) O demandante demonstrou ou o tribunal presumiu, nos termos do artigo 3.º, n.º 5, a existência de culpa do demandado, ou de uma pessoa por cujo comportamento o demandado é responsável, consistindo tal no incumprimento de um dever de diligência previsto no direito da União ou no direito nacional diretamente destinado a proteger contra o dano ocorrido; (b) Pode-se considerar que é razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que o facto culposo influenciou o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado; (c) O demandante demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado deu origem ao dano." Importante registrar, no entanto, que, em princípio, a menos que tenha havido presunção da culpa, os demandantes precisarão demonstrá-la para terem direito a eventual presunção do nexo de causalidade. Como se afirma em um dos considerandos da Proposta: "Essa culpa pode ser demonstrada, por exemplo, por incumprimento de um dever de diligência nos termos do Regulamento Inteligência Artificial ou de outras regras estabelecidas a nível da União, como as que regulam o uso da monitorização e da tomada de decisões automatizadas para o trabalho em plataformas digitais ou as que regulam o funcionamento de aeronaves não tripuladas. O tribunal também a pode presumir com base no incumprimento de uma decisão judicial de divulgação ou conservação de elementos de prova ordenada nos termos do artigo 3.º, n.º 5."1 O já referido artigo 4º também esmiuça essas regras gerais previstas no item "1", notadamente para modular o disposto na alínea "a", assegurando, por exemplo, em seu item "7", que: "[n]o caso de uma ação de indemnização contra um demandado que tenha utilizado o sistema de IA no âmbito de uma atividade pessoal e não profissional, a presunção estabelecida no n.º 1 só é aplicável se o demandado tiver interferido substancialmente nas condições de funcionamento do sistema de IA ou se o demandado tivesse a obrigação e a capacidade de determinar as condições de funcionamento do sistema de IA, mas não o tenha feito." Tal norma tem importante aplicabilidade prática, pois se destina às situações envolvendo pessoas que utilizem IA de modo não profissional. Ao longo de toda a Proposta, alude-se a normas da Proposta de Regulamento da Inteligência Artificial na União Europeia, o chamado AI Act. Nessa direção, a nova Proposta se utiliza, por exemplo, dos conceitos de IA de alto e baixo risco, determinando, por exemplo, que nos casos de IAs que representem risco elevado, poderia haver uma exceção à presunção de causalidade, caso o demandado venha a demonstrar que "estão razoavelmente acessíveis ao demandante elementos de prova e conhecimentos especializados suficientes para provar o nexo de causalidade."2 A ideia é de que esta possibilidade poderia vir a "incentivar os demandados a cumprirem as suas obrigações de divulgação, as medidas estabelecidas pelo Regulamento Inteligência Artificial para assegurar um elevado nível de transparência da IA ou os requisitos de documentação e registo."3 Por outro lado, nas hipóteses de sistemas de IA que não sejam de risco elevado, o artigo 4º, nº. 5 da Proposta busca estabelecer uma condição para que tal presunção de causalidade seja aplicada, de modo que esta dependeria "de uma determinação do tribunal em como é excessivamente difícil para o demandante provar o nexo de causalidade. Tal dificuldade deve ser apreciada à luz das características de determinados sistemas de IA, como a autonomia e a opacidade, que, na prática, tornam muito difícil explicar o funcionamento interno do sistema de IA, afetando negativamente a capacidade do demandante em provar o nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado da IA."4 Outrossim, é importante consignar, desde já, que a norma não ordena os sistemas internos de Responsabilidade Civil, nem cria hipóteses de imputação. No fundo, o escopo da Proposta está em fornecer um ferramental para as vítimas e para os aplicadores do Direito quando as legislações internas dos países integrantes da União Europeia previrem hipóteses específicas de responsabilidade civil baseada na culpa, diante do chamado "efeito black box" da IA, ao mesmo tempo em que estabelece regras de conformidade claras para os agentes, minimizando os efeitos da insegurança jurídica. Finalmente, não se pode perder de vista que a Diretiva se destina a harmonizar as distintas realidades jurídicas dos países-membros da União Europeia, muitos dos quais contam com normas rígidas que dificultam a prova do dano e, por vezes, sequer apresentam cláusulas gerais de Responsabilidade Civil, ao contrário da realidade brasileira. Daí a importância de não se cair na tentação de sugerir a importação descuidada de inovações legislativas reservadas a cenários distintos, como já se advertiu em outra sede.5 Não há dúvidas de que a Proposta, fruto de intensos, longos e aprofundados debates, é instrumento verdadeiramente útil, especialmente porque tem como escopo claro a garantia de direitos fundamentais das vítimas, ao mesmo tempo em que compreende que é preciso assegurar regras claras, estimulando-se e premiando-se comportamentos diligentes e cooperativos em busca daquela que é, de fato, a mais importante das diretrizes da Responsabilidade Civil na atualidade: a prevenção dos danos. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 2 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 4 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 5 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2. ed. Terceira edição a ser publicada no início de 2023.
Muito já se questionou acerca da importância de novas tecnologias para a consolidação dos impactos da Quarta Revolução Industrial na transição para a Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT) e um dos assuntos de maior destaque é o desenvolvimento de carros autônomos, analisado a partir de várias soluções inovadoras. Exemplo curioso é o da tecnologia LiDAR (acrônimo de Light Radar), baseada no rastreamento da luz refletida por objetos do entorno de um veículo autônomo. Sem dúvidas, trata-se de empolgante tecnologia que vem sendo adotada para o desenvolvimento de carros e navios autônomos - e até mesmo de drones - que independem de um condutor ou piloto1. Para bem contextualizar o assunto, é importante lembrar que foi com as amplamente divulgadas testagens de um Toyota Prius autoguiado, em iniciativa levada a efeito pela Google, Inc. (projeto "Waymo"2), bem como do veículo autônomo Chevrolet Bolt, desenvolvido pela Cruise, LLC3, e do projeto-piloto da fabricante norte-americana Tesla, Inc., que tais discussões passaram a ser concebidas como projetos comerciais. O que se almeja, de fato, é atingir a categoria "nível 5" de autonomia veicular, que é considerada ideal para a oferta de veículos autônomos ao mercado de consumo4. De todo modo, a inconcretude da autonomia faz surgir grande preocupação quanto aos riscos (e falhas) que podem apresentar as máquinas enquadráveis nos níveis mais baixos (que variam de "0" a "4"). É certo que a possibilidade de criar máquinas sofisticadas e capazes de potencializar o desenvolvimento das sociedades levanta uma série de questionamentos éticos, relacionados tanto à necessidade de que se garanta que tais máquinas não causem danos a humanos e outros seres moralmente relevantes, quanto aos aspectos concernentes aos variados estágios de projeto e de desenvolvimento em que se encontram5, e, para o que mais interessa a esse breve ensaio, à responsabilidade civil aplicável em razão de falhas desses sistemas algorítmicos. As propostas dos projetos "Waymo" e "Cruise" são baseadas na citada tecnologia LiDAR para a realização de cálculos matemáticos que projetam a distância do veículo em relação aos objetos que o circundam6. Em milissegundos, dados são coletados e processados para que se crie uma estrutura tridimensional do ambiente7. A partir dela, o algoritmo autoriza ou não a aceleração ou frenagem do automóvel, controlando, ainda, sua velocidade média e eventuais manobras (bruscas ou sutis). Naturalmente, há que se considerar uma série de parametrizações que variam de um fabricante para outro, e entre modelos de automóveis com diferentes dimensões, massa, estrutura aerodinâmica etc. Além disso, o fato de ser uma tecnologia baseada em luminância, ou seja, que mede a densidade da luz com base em feixes que são projetados pelo veículo, refletidos pelo ambiente, que retornam e são recapturados pelo sensor que os projetou, o qual afere, por fórmulas, a distância entre a projeção original e o reflexo capturado, sua principal utilização sempre foi a medição de eixos perpendiculares (abscissas e ordenadas) para mapeamento morfológico, indicando a estrutura de relevo do solo a partir de feixes emitidos por satélites artificiais geoestacionários dedicados ao mapeamento topográfico. Somente agora é que essa tecnologia vem sendo testada para projetos envolvendo veículos autônomos. É nesse contexto que se suscita a dúvida sobre a segurança desses sistemas. Imagens e dados coletados a partir de estruturas de luminância e de radares compõem o conjunto inicial que alimenta o sistema e aciona o algoritmo respectivo. A partir de então, um modelo 3D é gerado e dá início à etapa de navegação veicular propriamente dita. É a partir desse modelo de três dimensões (largura, altura e profundidade) - e de novos dados que serão continuamente coletados e utilizados para identificar os elementos do entorno (a própria estrada, eventuais objetos, suas cores, contornos etc.) - que se dá início à segunda etapa, "interação", pela qual o veículo passará ao processamento de dados e iniciará seu deslocamento. Nesse momento, as sinalizações horizontais e verticais serão consideradas, bem como eventuais objetos e obstáculos, como transeuntes e outros automóveis. É a etapa mais crítica do processo, pois é nela que eventuais colisões e atropelamentos podem ocorrer. Na terceira etapa, descrita como "raciocínio"8, tem-se a estruturação de rotinas cíclicas de tomada de decisão. Os dados que chegam a esse estágio já foram tratados e filtrados anteriormente para que, então, seja viável a aferição contextual das consequências de eventual decisão (acelerar, frear, mudar a trajetória, gerar um alerta etc.). E o ciclo se repete continuamente, com novos dados, novos contextos e novas decisões. O veículo e sua composição material são mero objeto, controlado por um algoritmo (software) complexo, que considerará espaço, tempo, velocidade, contexto, natureza dos outros objetos dos arredores, riscos de colisão, potenciais danos9 e que, enfim, "decidirá" como "reagir" a tudo isso. É nessa etapa do processo que decisões algorítmicas, baseadas em predições estatísticas, são implementadas10. Também é nesses ciclos decisionais que eventuais erros podem gerar danos! E, entre o previsível e o imprevisível, o ponderável e o imponderável, há decisões que ultrapassam a mera heurísticas... São decisões morais. Iniciativas como a Moral Machine ("Máquina Moral"), do Massachusetts Institute of Technology - MIT, propõem a testagem das decisões tomadas por humanos em cenários extremos (de "dano ou dano")11. Um carro autônomo ilustrativo é apresentado em situações nas quais, por exemplo, um pedestre atravessa a pista e é preciso escolher entre a manutenção do percurso, que causará o atropelamento e a morte do pedestre, ou, alternativamente, o desvio de percurso, implementado para salvar o pedestre, mas causando a colisão ou perda de controle do veículo e a morte certa do passageiro que está em seu interior12. Por óbvio, havendo erro, seja pela má coleta, seja pelo mau processamento, seja ainda pela inviabilidade de solução algorítmica para o problema, corre-se o risco de que a decisão tomada seja contaminada por vieses. Em simples termos, o enviesamento algorítmico (algorithmic bias)13 indica a falha 'no consequente', que pode gerar dano. Entretanto, é preciso que se considere o 'antecedente', ou seja, que se investigue o percurso causal do processo heurístico para que seja possível aferir se a decisão eivada de vício foi tomada em função de uma falha ocorrida em etapa prévia, que tenha acabado por macular os estágios de processamento subsequentes. Em 2019, a grande mídia noticiou haver maior propensão de carros autônomos baseados na tecnologia LiDAR ao atropelamento de pessoas negras, denotando possível natureza discriminatória do algoritmo14. De fato, é usual que debates envolvendo o assunto "inteligência artificial" gerem sonoras polêmicas, inclusive do ponto de vista terminológico, pois ainda não se atingiu o especulativo e distópico momento da "singularidade tecnológica"15 descrita por Vernor Vinge e Ray Kurzweil. Além disso, o tema é permeado por inconsistências e incertezas, que tornam qualquer pretensão regulatória um desafio ainda maior. Nos Estados Unidos da América, foi apresentado, em 12 de dezembro de 2017, o "Fundamentally Understanding the Usability and Realistic Evolution of Artificial Intelligence Act", ou apenas "Future of AI Act"16, que é bastante apegado à correlação entre o conceito de IA e o funcionamento do cérebro humano, denotando proximidade conceitual com a ideia de "singularidade tecnológica". Tal documento indica, ainda, diretrizes éticas para o fomento ao desenvolvimento algorítmico, mas não aborda a responsabilidade civil de forma direta. Alguns documentos mais recentes, como o Artificial Intelligence Act europeu de 202117 (2021 EU AIA) e o recentíssimo Algorithmic Accountability Act norte-americano de 202218 (2022 US AAA), que atualizou a versão anterior, de 201919, evitam a discussão terminológica sobre o alcance semântico do termo "inteligência", preferindo se reportar a "sistemas decisionais automatizados"20 (Automated Decision Systems, ou ADS's) para explicitar a necessidade de que seja definido um regime de responsabilidade civil aplicável em decorrência de eventos danosos propiciados por tais sistemas, e, até mesmo, para reafirmar a importância da estruturação de parâmetros éticos para o desenvolvimento de algoritmos. Segundo abalizada doutrina21, os documentos citados possuem qualidades que podem servir para mútua inspiração, denotando a importância da adequada assimilação semântica (além de outros temas) para a evolução das discussões até mesmo a nível global. No Brasil, os projetos de lei 5.051/19, 21/20 e 872/21 visam regulamentar o tema em linhas gerais (e não apenas para o contexto dos carros autônomos), priorizando a delimitação de um sistema de responsabilização baseado na anacrônica teoria da culpa, que simplesmente não faz sentido para tutelar matéria tão complexa. Todavia, em fevereiro de 2022, foi instituída, pelo Senado Federal, a elogiável "Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA" (CJSUBIA). Já foram realizadas diversas reuniões e audiências públicas e os trabalhos de elaboração do substitutivo, com término originalmente previsto para 9/8/22, tiveram seu prazo prorrogado para 7/12/2222. Sem dúvidas, as atividades da comissão merecem efusivos encômios e seus membros são extremamente competentes. Por isso, espera-se que seja apresentado um projeto substitutivo que mais se aproxime da solução adotada na União Europeia, que há anos discute a matéria em caráter prospectivo, primando por estratificar as soluções possíveis para cada contexto, a depender do grau de risco que a atividade implique. O exemplo da tecnologia LiDAR simboliza bem isso, pois, sendo baseada em feixes de luz e na aferição da luminância para o mapeamento de obstáculos, suas falibilidades e sua previsibilidade (foreseeability) permitem, com absoluta segurança, identificar o liame causal para viabilizar a responsabilização civil do fabricante que coloca no mercado um automóvel baseado em tal tecnologia, com supedâneo na teoria do risco. Eis algumas das razões: (i) são sensores costumeiramente utilizados para o mapeamento topográfico, tendo sido apenas recentemente aplicados a veículos autônomos; (ii) a dependência dos sensores de verificação da luminância acarreta riscos de enviesamento de dados nos processos ulteriores à coleta; (iii) a dependência do algoritmo quanto à qualidade dos dados reduz a possibilidade de redundância do sistema, acarretando a deturpação dos resultados nos estágios de processamento de decisões e inviabilizando o monitoramento de erros e a auditoria de dados; (iv) não há clareza quanto à inclusão de backdoors nos carros autônomos baseados em LiDAR (como "freios de emergência", by design), recursos de desligamento automático ("shut down") ou recursos que permitam aos operadores ou usuários "desligar a IA" por comandos manuais, ou torná-la "ininteligente" ao pressionar um botão de pânico. Logo, ao invés de simplesmente acolher um regime geral de responsabilidade civil subjetiva para eventos envolvendo falhas de sistemas de IA, mais prudente seria que o Brasil reconhecesse a plêiade de situações com maior ou menor propensão à causação de danos a partir de tais sistemas, viabilizando soluções condizentes com as particularidades de cada situação, tal como definido no recente documento europeu (2021 EU AIA), no qual se optou pela regulação por abordagem baseada em riscos (risk-based approach). No caso do LiDAR, sendo evidentes os riscos, objetiva seria a responsabilização. E também assim poderia ser no Brasil. Nesse ponto, filiamo-nos ao pensamento de Nelson Rosenvald23, que destaca, com argumentos sólidos, a necessidade de que o substitutivo ao projeto de lei brasileiro supere o singelo modelo subjetivista e avance nesse debate, ampliando a compreensão que se tem sobre a teoria do risco para abarcar múltiplas camadas que a catalisem, a exemplo da accountability e da answerability. ---------- 1 Algumas reflexões iniciais em torno do tema e que serviram de inspiração para esta coluna foram extraídas de artigo que escrevi em 2020, a saber: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Discriminação por algoritmos de Inteligência Artificial: a responsabilidade civil, os vieses e o exemplo das tecnologias baseadas em luminância. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 1007-1043, 2020. 2 FINGAS, Jon. Waymo launches its first commercial self-driving car service. Engadget, 5 dez. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 3 OHNSMAN, Alan. GM's Cruise Poised To Add 1,100 Silicon Valley Self-Driving Car Tech Jobs. Forbes, 04 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 4 GOH, Brenda; SUN, Yilei. Tesla 'very close' to level 5 autonomous driving technology, Musk says. Reuters, 09 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 5 BOSTROM, Nick; YUDKOWSKY, Eliezer. The ethics of Artificial Intelligence. In: FRANKISH, Keith; RAMSEY, William (ed.). The Cambridge Handbook of Artificial Intelligence. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 316. 6 Cf. NEFF, Todd. The laser that's changing the world: the amazing stories behind LiDAR for 3D mapping to self-driving cars. Nova York: Prometheus, 2018. E-book. 7 ÖZGÜNER, Ümit; ACARMAN, Tankut; REDMILL, Keith. Autonomous ground vehicles. Boston: Artech House, 2011, p. 86-87. Explicam: "A scanning laser range finder system, or LIDAR, is a popular system for obstacle detection. A pulsed beam of light, usually from an infrared laser diode, is reflected from a rotating mirror. Any nonabsorbing object or surface will reflect part of that light back to the LIDAR, which can then measure the time of flight to produce range distance measurements at multiple azimuth angles". 8 CHENG, Hong. Autonomous intelligent vehicles: theory, algorithms, and implementation. Londres: Springer, 2011, p. 13. 9 SIEGWART, Roland; NOURBAKHSH, Illah. Introduction to autonomous mobile robots. Cambridge: The MIT Press, 2004, p. 90. 10 FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 15-22. 11 BELAY, Nick. Robot ethics and self-driving cars: how ethical determinations in software will require a new legal framework. The Journal of the Legal Profession, Tuscaloosa, v. 40, n. 1, p. 119-130, 2015, p. 119-120. Anota: "Perhaps most notably, machines will have to make decisions regarding whom to save or protect in the event of a collision or unforeseen obstacle". 12 MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY. Moral Machine. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 13 DANKS, David; LONDON, Alex John. Algorithmic bias in autonomous systems. Proceedings of the Twenty-Sixth International Joint Conference on Artificial Intelligence (IJCAI-17), Viena, p. 4691-4697, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 14 KIM, Theodore. Op-Ed: AI flaws could make your next car racist. Los Angeles Times, 7 out. 2021. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; HERN, Alex. The racism of technology - and why driverless cars could be the most dangerous example yet. The Guardian, 13 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022; VIEIRA, Laís. Carros autônomos podem atropelar mais pessoas negras do que brancas. R7, 11 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 15 A "singularidade tecnológica" seria o momento teorético e futuro no qual o avanço e a sofisticação de sistemas algorítmicos propiciaria verdadeira simbiose - e possível indistinção - entre o 'biológico' e o 'tecnológico'. Conferir, sobre o tema, VINGE, Vernor. The coming technological singularity: How to survive in the post-human era. In: Interdisciplinary Science and Engineering in the Era of Cyberspace. NASA John H. Glenn Research Center at Lewis Field, Cleveland, 1993, p. 11-22. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; KURZWEIL, Ray. The age of spiritual machines: when computers exceed human intelligence. Nova York: Viking, 1999. p. 213; BARBOSA, Mafalda Miranda. Inteligência artificial, e-persons e direito: desafios e perspectivas. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 3, n. 6, p. 1475-1503, 2017, p. 1501-1502. 16 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 4625, Dec. 12, 2017. FUTURE of Artificial Intelligence Act. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 17 EUROPA. European Commission. Artificial Intelligence Act. 2021/0106(COD), abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 18 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 6580, Feb. 3, 2022. Algorithmic Accountability Act of 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 19 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 2231, Apr. 10, 2019. Algorithmic Accountability Act of 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 20 Cf. SELBST, Andrew. An institutional view of algorithmic impact assessments. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 35, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 21 The US Algorithmic Accountability Act of 2022 vs. The EU Artificial Intelligence Act: what can they learn from each other? Minds and Machines, Cham: Springer, v. 22, p. 1-9, jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 22 BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA). Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 23 ROSENVALD, Nelson. A falácia da responsabilidade subjetiva na regulação da IA. Migalhas, 13 maio 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022.
O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, no dia 18 de maio de 2022, decidiu de forma monocrática pelo não provimento do AREsp 2.087.249-RS1, mantendo incólume a decisão do TJRS que não considerou como defeituosa a prestação do serviço do laboratório que forneceu resultado equivocado para Hepatite C, em razão da existência de advertência para complementação do exame. Constou na fundamentação da decisão que a inserção de informação clara e precisa no exame quanto à necessidade de confirmação do resultado obtido por intermédio de outros exames, especialmente pelo diagnóstico médico, impede a configuração do defeito, uma vez que os resultados obtidos não são "conclusivos". Com o não provimento do AREsp foi interposto AgInt no Agravo em Recurso Especial 2.087.249-RS, que foi distribuído à Relatoria do Ministro Antônio Carlos de Ferreira que, igualmente, manteve a decisão monocrática recorrida, a qual foi acompanhada em unanimidade pelos demais Ministros da Quarta Turma, no dia 29 de agosto de 2022. A nova decisão do STJ demonstra o acolhimento ao entendimento antigo do TJRS, no sentido de não admitir a existência de defeito em exame laboratorial equivocado, quando constar advertência expressa para a confirmação do resultado por intermédio de outros exames. Esse novo entendimento da Quarta Turma é contraposto ao entendimento que prevalece há mais de vinte anos no STJ, capitaneado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar2, quanto à configuração do defeito nos resultados laboratoriais equivocados, ou seja, o mero equívoco no resultado configura defeito na prestação de serviços do laboratório de análises clínicas, mas isso não significa o dever de indenizar, pois exige a presença dos pressupostos. A divergência de entendimentos quanto à configuração do defeito e consequente falha na prestação dos serviços é justamente o que se pretende discutir no presente artigo. É pacífico o entendimento do STJ sobre a relação contratual de resultado e de consumo entre o laboratório e o consumidor; a incidência da responsabilidade subjetiva quanto a apuração de possível responsabilidade do médico Patologista que laudar o exame clínico; incidência da responsabilidade objetiva do laboratório por danos causados aos consumidores em qualquer fase da prestação dos serviços, com a aplicação do artigo 14 do CDC3; bem como a possibilidade de indenização por dano moral, desde que efetivamente comprovado o dano pelo consumidor4. O parâmetro legal é o CDC e a segurança do serviço é determinante na configuração do defeito, como estabelece o artigo art. 14, § 1°5: "o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido" (grifos nossos). Contudo, salvo comprovação por parte do prestador de serviços quanto à inexistência de defeito, responsabilidade exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 14, § 3°), o laboratório será responsabilizado objetivamente quando configurar um defeito, haja vista tratar-se de inversão ope legis, como bem destacou o Ministro Marco Buzzi, na decisão monocrática proferida em abril de 2022, no Recurso Especial 1.979.899 - SP6. Por outro lado, a falha pela ausência ou deficiência da informação transmitida ao consumidor em qualquer uma das fases contratuais, também viola a segurança do serviço prestado e configura um defeito nos termos do que dispõe o CDC, no art. 14: "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos" (grifos nossos). Dessa forma, quando o laboratório não adverte o consumidor no exame quanto à necessidade de complementação de outros exames e análise médica para confirmação do resultado, ou mesmo não especifica qual a metodologia utilizada para obtenção do resultado apresentado no laudo, teremos uma hipótese de insegurança ao consumidor, pela ausência ou deficiência das informações, configurando igualmente o defeito na prestação dos serviços do laboratório. Obviamente que a informação correta e precisa é imprescindível para garantir a segurança do consumidor quanto ao serviço laboratorial prestado. No entanto, não se trata de uma excludente da responsabilidade, mas mera atenuante, como explicava o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao asseverar no seu julgado: "[...] ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada". Como consta no CDC, a informação é uma das formas de configuração do defeito e não uma excludente da responsabilidade objetiva do laboratório. Portanto, caso esse entendimento permaneça, os prestadores de serviço laboratorial poderão inserir uma cláusula padrão nos laudos, como subterfúgio para violar uma obrigação prevista em lei (art. 14, CDC) e unânime no STJ, até então. No mais, os erros em exames laboratoriais serão ainda mais tolerados após a fundamentação constante do novo julgado, que consignou: "a toda evide^ncia, a ressalva constante do laudo, sugerindo a realizac¸a~o de exame confirmato'rio, permite que se conclua que resultados falso positivos podem ocorrer com certa freque^ncia em exames dessa natureza" (grifos nossos). A ressalva de eventual necessidade de exame complementar não pode ser justificativa para escusa de "erro grosseiro" (REsp 1.979.899 SP)7. Não podemos confundir complementação de exames e análise diagnóstica pelo médico com erro de resultado. O resultado de exames laboratoriais ou de imagem equivocado é antigo na sociedade e, mesmo com todo o avanço da tecnologia, ainda nos deparamos com constantes resultados errados ou divergentes, que são atribuídos pelos prestadores dos serviços aos equipamentos, à metodologia, à falta de conclusividade dos exames, entre outros. Nesse sentido, o Presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial no biênio 2018/2019, analisou os exames laboratoriais e erros de diagnóstico em 2017, demonstrando o importante papel dos exames laboratoriais no diagnóstico dos pacientes, por corresponderem a 70% dos dados utilizados pelos médicos. Entretanto, mesmo com esse grau de importância, destacou que muitos estudos norte-americanos revelaram que 13,6% dos casos de erros nos exames decorreram da falha na interpretação e 14,7% estão relacionados a falha nos processos de diagnóstico. Ao mesmo tempo, concluiu, com base no relatório do Institute of Medicine (IOM): "[...] o sistema de trabalho e a cultura existentes na assistência à saúde não favorecem o processo de diagnóstico, que é tido como resultante de um esforço colaborativo e envolve cooperação entre membros de uma mesma equipe e entre diferentes profissionais, podendo ocorrer em consequência de erro humano ou de erro sistêmico"8, portanto, entendeu que é necessária uma cultura organizacional de cooperação entre Radiologistas e Patologistas, que valorize a discussão, visando reduzir o índice de erro nos exames laboratoriais.   Entretanto, independentemente da causa do resultado de um exame laboratorial ou de imagem equivocado, quando isso ocorre, claramente temos uma falha na prestação desse serviço, pouco importando para o consumidor o que foi determinante para a ocorrência desse fato. Por outro lado, mesmo que se tenha uma falha na prestação dos serviços, isso por si só não tem o condão de configurar um defeito, nos termos do decidido pelo STJ e, muito menos de desencadear o dever de indenizar, como erroneamente nos deparamos em demandas, sem o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, especialmente o dano, como bem analisou o Ministro Raul Araújo, no Recurso Especial 1.556.253-RJ9. Como regra, para existir o dever de indenizar dos laboratórios por resultados equivocados, será necessário o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil objetiva, ou seja, conduta defeituosa, dano e nexo de causalidade. Diante de todo o contextualizado, resta a análise do dano efetivo e real capaz de desencadear o dever de indenizar. Nesse contexto, temos que a lesão poderá ser patrimonial ou extrapatrimonial, que se apresentará através de um tratamento, uma hospitalização, um prolongamento da hospitalização ou mesmo o sofrimento brutal ocasionado pelo resultado equivocado ou pela forma como a informação foi transmitida, especialmente na hipótese de doenças graves, entre outros. No caso em comento, relativo ao AREsp 2.087.249-RS, constou na fundamentação: "é imperioso enfatizar, ainda, que a demandante na~o comprovou ter sofrido qualquer prejui´zo advindo do resultado laboratorial, o^nus que lhe cabia, nos termos do artigo 373, I, do CPC, e do qual na~o se desincumbiu a contento. Nesse cena´rio, na~o havendo provas do suposto dano moral sofrido, tampouco de ato ili´cito cometido pela parte demandada, consubstanciado na falha na prestac¸a~o do servic¸o laboratorial, na~o ha´ como acolher o pleito autoral de indenizac¸a~o por danos morais". Efetivamente, no caso analisado, a parte consumidora não sofreu qualquer dano moral. Isso porque, imediatamente após o recebimento do resultado falso positivo de Hepatite C, procurou a sua médica, que solicitou a realização de novo exame, tendo em vista a inexistência de sintomas compatíveis com a doença diagnosticada no exame laboratorial. Com isso, pouco tempo após o exame falso positivo, obteve o resultado correto, que indicou a inexistência de doença. Em razão de todo o exposto, se conclui que a consumidora não realizou nenhum tratamento e não teve qualquer prejuízo decorrente do laudo laboratorial errado. Contudo, restou configurado o defeito no serviço, em que pese a inexistência de dano, reforçando o entendimento consolidado do STJ.   __________ 1 STJ, AREsp. 2.087.249-RS, Min. Humberto Martins. J. 18.05.22. DJe.18.05.22. Disponível aqui. 2 STJ, REsp. 401.592- DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar. J. 16.05.2002. DJe.02.09.2002. RESPONSABILIDADE CIVIL. Laborato´rio de ana´lises cli´nicas. HIV. Responsabilidade do laborato´rio que fornece laudo positivo de HIV, repetido e confirmado, ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada. Ale´m disso, o laborato´rio assumiu a obrigac¸a~o de realizar exame com resultado veraz, o que na~o aconteceu, pois os realizados depois em outros laborato´rios foram todos negativos. Recurso conhecido e provido. Disponível aqui.  3 STJ, REsp 1.653.134/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3 T, J. 17.10.2017, DJe 23.10.2017; REsp 1.700.827/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 05.11.2019, DJe 08.11.2019; REsp 1.426.349/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 11.12.2018, DJe 02.02.2019; REsp 1.386.129/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 03.10.2017, DJe 13.10.2017; REsp 1.071.969/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 02.02.2010, DJe 01.03.2010;  4 STJ, AREsp 1.185.944/GO, Decisão monocrática da Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, J. 04.12.2017, DJe 04.12.2017  5 BRASIL. Lei 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. 6 STJ, REsp. 1.979.899-SP, Rel. Min. Marco Buzzi. J.04.04.22. DJe.04.04.2022. Disponível aqui. 7 SHCOLNIK, Wilson. Exames laboratoriais e erros diagnósticos. Publicado em 21.11.2017, Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial. Disponível aqui.  Acesso em: 18.09.22.     8 STJ, REsp. 1.556.253-RJ, Min. Raul Araújo. J.24.09.19. DJe.24.09.19. Disponível aqui. 9 CVS - SP. Portaria n. 13, de 04 de novembro de 2005, do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo,  que aprova NORMA TE´CNICA que trata das condic¸o~es de funcionamento dos Laborato´rios de Ana´lises e Pesquisas Cli´nicas, Patologia Cli´nica e Conge^neres, dos Postos de Coleta Descentralizados aos mesmos vinculados, regulamenta os procedimentos de coleta de material humano realizados nos domici´lios dos cidada~os, disciplina o transporte de material humano e da´ outras provide^ncias. Disponível aqui.
Nos quatro rincões desse país, não há um causídico, julgador ou membro do Ministério Público que no seu mister não se depare com a seguinte expressão nas sentenças/acórdãos que versam sobre dano moral: "atendendo a dupla função da responsabilidade civil (compensatória/punitiva) fixo o valor da indenização em R$...". O dito jargão mostra seus tentáculos nas mais diversas matérias: consumidor, que teve a bagagem extraviada; trabalhador, vítima de assédio moral; administrativo, no caso de morte de detento; família, quando o/a cônjuge é traído(a) com exposição pública; direito de vizinhança, quando altas músicas incomodam o confinante; contratos, quando a obra atrasa frustrando os projetos do casal; direitos da personalidade, quando a honra é vilipendiada; lei maria da penha, quando a mulher é violentada; etc. Contudo, por trás da ingênua e bem-intencionada expressão, escamoteiam-se violações - das graves - de diversas normas fundamentais do processo civil, notadamente da inércia, do contraditório, da fundamentação da decisão judicial e da dignidade da pessoa humana. Para demonstrar essa hipótese, serão explicados brevemente os conceitos relativos as aludidas funções da responsabilidade civil e as nomas fundamentais mencionadas, para ao final mostrar um diuturno convívio da prática jurídica da responsabilidade civil com a corrosão de pilares para um processo justo, com o objetivo de provocar uma reflexão acerca de quais caminhos a comunidade jurídica deve perquirir em matéria de direito de danos nessa zona em particular. Um parêntese, porém, para deixar claro que a responsabilidade civil desempenha multifacetadas funções, como a restitutória de lucros ilícitos, a preventiva, a reparatória, a promocional, dentre outras1. Mas, fiel ao recorte metodológico alhures destacado, o presente texto irá se ater apenas a função compensatória e punitiva. Adiciona-se também que existem dezenas de outras normas fundamentais no processo civil - para além das sublinhadas no introito), como a igualdade, a boa-fé, a efetividade, a primazia de mérito, a eficiência, a publicidade, o respeito a ordem cronológica de conclusão etc. Contudo, de modo a tornar possível a ideia que será aqui exposada, haverá uma concentração apenas no contraditório, dignidade da pessoa humana, fundamentação da decisão judicial e inércia. A função denominada de compensatória, com arrimo no art. 944 do CC/2002, visa a encontrar um valor indenizatório que se aproxime em maior medida possível da real magnitude do dano e do descalabro sofrido pela vítima. É a famosa busca por anular perdas imerecidas e injustas, com o diferencial que em se tratando de danos de ordem extrapatrimonial, como não é possível pôr exatamente a vítima em uma situação tal qual não tivesse ocorrido o dano, diz-se que tal função perquire amenizar as consequências danosas, sem perder de vista que apesar de impossível o retorno ao "status quo ante" o julgador deve estar comprometido com uma séria e profunda análise do valor que faça frente de forma proporcional ao mal causado. Nessa linha, diante da pergunta se haveria dinheiro que apagasse a morte de um filho ou a amputação de uma perna, Mazeaud e Tunc (1977, p. 438) ponderam: Es ésa una razón para negarle a la víctima el abono de daños y perjuicios?  En manera alguna; porque se trata precisamente de  ponerse  de  acuerdo acerca del exacto sentido de la palabra reparar. Repararun daño no es siempre  rehacer  lo  que  se  ha  destruido;  casi  siempre  suele ser darle a la víctima la posibilidad de procurarse satisfacciones equivalentes a  lo  que  ha  perdido.  El verdadero  carácter  del  resarcimiento  de  los  daños  y perjuicios es un papel satisfactorio. Hay que reconocer que el dinero no sólo facilita un  enriquecimiento  intelectual  o  artístico,  sino  que  le  da  a  quien  lo  recibe la posibilidad de aliviar por sí mismo muchos sufrimientos. Por lo tanto, no es  chocante  permitirle  a  un  padre  o  a  una  atenuación  a  su  pena  en  el  consuelo  que  llevarán  a  niños  desventurados.  Concederles esa  posibilidad  es desde  luego  reparar  el  daño,  a  menos  en  cierta  medida. Portanto, os critérios para a quantificação do dano moral nada mais são do que formas de identificar que a suposta vítima sofreu desequilíbrio injusto, o qual se manifesta em diversas dimensões da vida humana, sendo possível de forma exemplificativa avaliar alguns parâmetros, como o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc. A reforma trabalhista, no art. 223-G da CLT, é o dispositivo legal que mais traz bússolas para o julgador, caminhando bem em alguns pontos e pecando em outros.2 De outra ponta, a função punitiva é uma verba que tem por objetivo fixar um valor além do suficiente para compensar o dano, com o escopo de desestimular o ofensor a praticar novamente um ato marcado por alto grau de censurabilidade, que será aferida conforme a maior ou menor presença dos seguintes elementos: a) condutas ilegais reiteradas; b) aproveitamento de pessoas vulneráveis; c) indiferença com a vítima; d) práticas arquitetadas maliciosamente; e) danos físicos; f) risco de não se responsabilizar por todos os danos de ordem difusa ou coletiva etc. Como o direito brasileiro não possui previsão legal expressa de tal função, os contornos acima têm por base a experiência norte-americana (punitive damages), com parâmetros de casos julgados pela Suprema Corte, como o BMW of North America, Inc. v. Gore (1996), State Farm Insurance v. Campbell (2003) e Philip Morris v. Williams (2007), assim como a depuração conceitual do § 908 do Restatement of Torts, elaborado pelo American Law Institute: "indenização que não a compensatória, concedida contra uma pessoa para puni-la por sua conduta ultrajante e dissuadi-la, e outras como ela, de praticarem condutas semelhantes no futuro". Pois bem. Antes de fazer o entrelace propugnado na parte inicial do texto, resta conceituar brevemente as normas fundamentais descritas. A inércia (art. 2ª do CPC) exige que o Judiciário seja provocado para a tutela jurisdicional seja realizada e, como desdobramento disso, o juiz só pode julgar o conflito nos exatos limites do pedido (art. 492 do CPC). O contraditório (art. 9º/10º do CPC) é o direito de a parte participar ativamente do processo dentro da tríade informação-reação-influência. A fundamentação da decisão judicial (art. 11) determina que o magistrado demonstre as razões de cunho fático e jurídico que dão sustentáculo a conclusão, sem perder de vista que ao empregar conceitos indeterminados e invocar dispositivos legais sem demonstrar a sua pertinência com o caso eiva a decisão de nulidade (art. 489, § 1º, I e II). Por fim, a dignidade da pessoa humana no processo civil (art. 8º do CPC) representa a ideia de que o juiz deve estar comprometido em resguardar e promover aspectos básicos para o florescimento humano na dimensão existencial. Agora compreendamos como essas normas fundamentais são corriqueiramente vulneradas.             Inércia Juízes não mudam o mundo e não devem se arvorar em resolver problemas crônicos de injustiça na sociedade sem o correspondente permissivo legal, sob pena de exercício impróprio da jurisdição. Basta lembrar do embate entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Este foi criticado por aquele por ter declarado inconstitucional o crime de aborto numa turma, descumprindo a reserva de plenário, gerando como resposta a famosa frase "você é uma mistura do mal com atraso, com pitadas de psicopatia". De todo modo, se na petição inicial o advogado fundamenta apenas na finalidade compensatória, não pode o juiz, que não é a palmatória da maldade no mundo, atribuir na sentença quantificação de cunho punitivo com a nobre tarefa de "desestimular condutas nefastas", embora já tenha sido propugnado por Hans Kelsen (1979, p. 164) que a sanção civil de indenização já desempenha naturalmente o papel de prevenir danos. Se a indenização punitiva, mesmo que requerida na exordial, por si só já é extremamente criticada enquanto mecanismo de prevenção de danos sem previsão legal, imagine a sua utilização como jargão de toda e qualquer demanda envolvendo dano moral. Ah, mas e os "repeat players", que calculam meticulosamente a prática do ilícito lucrativo, praticando em escala massificada danos a grupos de pessoas? Para isso, não esqueçamos que os direitos da personalidade possuem a tutela inibitória (art. 12 do CC/02), a Lei da Ação Civil Pública permite esse tipo de proteção para proteger grupos de pessoas. E, de forma mais aprofundada, aconselho o estudo do dano moral coletivo e da função de restituição de ganhos ilícitos, quem sabe uma saída legítima para esse imbróglio, como vem ensinando o professor Nelson Rosenvald. Contraditório Merece reflexão também a indevida aglutinação que os juízes e tribunais brasileiros realizam com a indenização punitiva, inserindo-a dentro da compensatória sem destacar qual o valor é punitivo qual é compensatório. Nesse caminho, não se possibilita que o jurisdicionado e a sociedade identifiquem o que é compensatório e o que é punitivo, não garantindo o direito de recorrer, por exemplo, apenas da parte punitiva, debatendo seus fundamentos. Ademais, como se não bastasse a junção das verbas, muitas vezes se tem decisão surpresa, imprimindo viés punitivo na decisão sem que tenha oportunizado a manifestação sobre este ponto. Fulmina-se, portanto, duplamente, o direito de participar ativamente do processo, pilar do contraditório. Fundamentação da decisão judicial A norma fundamental da fundamentação da decisão judicial possui uma dupla afetação: na indenização compensatória e na punitiva. Na compensatória, ao invocar o conceito jurídico indeterminado do art. 944 do CPC (o valor da indenização mede-se pela extensão do dano), muitos juízes deixam de ser valor de parâmetros para justificar como alcançaram o quantum, utilizando expressões como proporcionalidade, mas sem fazer o cotejo nos autos com os inúmeros parâmetros que a doutrina desenvolveu para uma justa fixação:  o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc. É claro que juiz é e sempre será o senhor da fixação do valor indenizatório, porém, pelo próprio dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88) e pelo fato de que o juiz deve justificar racionalmente a interferência do Estado na esfera jurídica das pessoas, é salutar que no corpo da decisão judicial haja a busca por justificativas adequadas sobre a real magnitude das consequências danosas. No tocante a indenização punitiva, também se convive com falhas de fundamentação. Apesar de o instituto não estar previsto expressamente, ao menos caberia aos juízes trazer elementos nos autos pertinentes aos requisitos teóricos do instituto, como o alto grau de censurabilidade da conduta e o risco de o réu não pagar por todo o mal que fez, prejudicando o dever de fundamentação da decisão judicial. Dignidade pessoa humana A tarefa de arbitrar a indenização por dano moral deve ser um trabalho individualizado para a vida da vítima, jamais limitado a uma prova dos autos ou a um caso já julgado, pelo que se rechaça a pré-fabricação de valores indenizatórios presentes em gabinetes de alguns juízes e desembargadores. A norma processual que cabe ao juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico "promover a dignidade da pessoa humana", no campo da responsabilidade civil, indica que o julgador deve instruir o processo para compreender de forma fidedigna o que a vítima teve obstaculizado em sua vida após o dano, inclusive pela possibilidade de produção de provas de ofício (art. 370 do CPC). O valor da indenização sempre será uma forma de atenuar o mal causado, sem ter o condão de restaurar integralmente o equilíbrio anteriormente existente. Contudo, mesmo a função compensatória tendo uma tarefa mais árdua no campo do dano moral, ainda assim é preciso levar à sério a dimensão normativa da vítima, no sentido de investigar tudo aquilo de interesse juridicamente protegido que lhe foi afetado. A indenização é um remédio que visa a impor uma obrigação destinada a recompor os direitos da vítima, e, tanto quanto possível, lhe dar o equivalente aos seus direitos e interesses violados. Isso implica em mergulhar a fundo na identificação de todos os interesses jurídicos violados, e, ao mesmo tempo, na compreensão da magnitude dos danos, de modo a possibilitar não somente a caracterização de um dano como indenizável, mas também de proporcionar um valor monetário equivalente ou proporcional à total extensão normativa dos danos, da forma mais aproximativa possível. Em verdade, se atravessa um estágio de litigação de massa na qual os magistrados tentam gerir uma quantidade de processos descomunal, mas isso não pode impedir que estude a fundo a magnitude do dano em todas as suas nuances. Aliás, em tempos de crise no bojo de uma sociedade massificada e individualista só se reforça a busca pela máxima proteção da pessoa humana e de uma responsabilidade civil levada à sério, primando por uma leitura humanista, como assevera Pietro Perlingieri, ensinando que é preciso ler o direito civil não mais sob a ótica produtivista, mas sim "'relê-lo' à luz da opção ideológico-jurídica constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. As épocas de decadência moral e civil são aquelas nas quais a justiça civil é a grande derrotada" (1997, p. 4/6). ---------- 1 Para maior aprofundamento: ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3ª ed. Saraiva: São Paulo, 2017. 2 Para mais subsídios ler: BONNA, Alexandre Pereira; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. A quantificação do dano moral compensatório: em busca de critérios para os incisos V e X do art. 5o da CF/88. Revista Jurídica da Presidência   Brasília   v. 21 n. 123 Fev./Maio 2019 p. 124-146.
terça-feira, 20 de setembro de 2022

Dano climático e ambiental: o amanhã é hoje.

"Grande parte do CO2 liberado quando nossas bisavós acendiam seus fogões à carvão, nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, continua a aquecer nosso planeta hoje em dia. Contudo a maior parte dos danos começou a ser provocada a partir da década de 1950" (Tim Flannery. Senhores do clima. p. 200) Primeiramente, é preciso partir de uma premissa metodológica acerca da extensão e abrangência do significado de meio ambiente, tomando como base o conceito legal, de que ele é o "conjunto de condições, leis, influências e interação de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" (Art. 3º, I, da L. 6.938/81). Na doutrina, conforme Celso Fiorillo1, há o ambiente natural (art. 225, da CF/88), o artificial como espaço urbano (art. 182, da CF/88), o cultural (art. 216, da CF/88) e o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, da CF/88). Só que o meio ambiente natural se submete aos impactos antropogênicos2 e os quais afetam o clima. O problema climático, ao tornar-se preocupação global, em 1979, ocorre a Primeira Conferência Mundial sobre Clima (Genebra/Suíça), reconhecendo que a mudança climática representaria uma ameaça para o Planeta. A partir daí, é criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC), visando estudar causas e efeitos da mudança climática, e cujos resultados desses estudos culminaram no surgimento da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática. Em suma, acerca da mudança climática, ela (...) é reconhecida como uma questão ambiental de extrema complexidade, que gera um grande desafio para institucionalização de modelos de governança que promovam uma adequada política de enfrentamento de seus efeitos adversos. Tal dificuldade é causada, principalmente, pela existência de múltiplos fatores antropogênicos que contribuem para o aquecimento do planeta. Por exemplo, cada Estado, assim como as entidades dentro dos Estados, incluindo companhias, fazendas, lares e indivíduos, emitem um determinado nível de gases de efeito estufa (GEE) e, assim, contribuem para o problema. Ademais, a combinação de GEE na atmosfera conduzem a concentrações que são praticamente equivalentes em todo planeta3. E conforme se acentua o aquecimento do Planeta, compromete o "equilíbrio ecossistêmico"4, o "equilíbrio ecológico"5. Ou seja, à medida que o "homem humaniza a terra, imprime-lhe a sua marca (...) e transforma desmedidamente o mundo natural"6. E essa transformação atinge os recursos naturais e, também o "sistema climático" e a partir daí, em resposta, ocorre uma série de fenômenos negativos ambientais afetando as mais variadas situações existenciais das pessoas. Na verdade, despertam-se preocupações para se tutelar o sistema climático, desaguando em litígios climáticos - ainda muito pouco debatido no Brasil7. Esses litígios climáticos são o "conjunto de ações judiciais e administrativas envolvendo questões relacionadas à redução das emissões de gases de efeito estufa (mitigação), a redução da vulnerabilidade aos efeitos às mudanças climáticas (adaptação), à reparação de danos sofridos em razão das mudanças climáticas (perdas e danos) e à gestão de riscos climáticos (riscos)"8. Ainda, acerca do sentido de 'litigância climática, o Global Climate Litigation Report 2020 (status review)9, destaca as espécies de litígios associados aos desafios climáticos, quais sejam: i. empresas que omitem ou alteram10 informações sobre sua participação no agravamento de risco climático; ii. ausência de medidas (políticas públicas, por exemplo) voltadas para o planejamento e gerenciamento de catástrofes relacionados aos eventos naturais extremos associados ao clima; iii. controvérsias e litígios os quais acabam sendo arquivados; iv. Tribunais instados a se manifestarem sobre o direito e a ciência da atribuição do clima, para avaliar o quanto cada ator privado contribui para as alterações climáticas, bem como a ocorrência de litígios que exijam ações governamentais voltadas para políticas públicas relacionadas à mitigação da mudança do clima; v. litígios manejados em organismos internacionais e a possibilidade de eles contribuírem para serem incluídos no discurso jurídico das decisões do direito interno dos países. Focando a litigância climática sob a perspectiva da responsabilidade civil no âmbito do dano climático, conforme Annelise Steigleder11, há a ocorrência dos danos em detrimento do próprio clima em virtude da emissão de gases de efeito estufa; bem como, prossegue, há "danos decorrentes da mudança do clima"12. Portanto, a proposta é fazer uma abordagem contextualizada, afinal, há profunda conexão de sentidos entre eles, em que pese suas distintas considerações. Impõe-se à responsabilidade civil13 que ela seja, cada vez mais, analisada sob a perspectiva da sua função bem como sobre seus pressupostos. Em que pese haja a responsabilidade civil integral quando envolve dano ambiental, o foco é o dano climático. No dano climático, o intérprete deve reconhecer que ele tem sua gênese associada a uma multiplicidade de fatores e de fenômenos, haja vista que concorrem várias atividades e poluidores diretos e indiretos, enquanto fontes emissoras causadoras de impactos climáticos, sem que se possa avaliar, com precisão - até agora - quanto cada um deles impactam, por meio de suas condutas e atividades, para a produção do dano climático. O que vale realçar é que a Lei do Clima (L. 12.187/09 - LPNMC) reconhece que há uma responsabilidade dos poluidores, a qual ela é comum - ou seja abrange todos - e, embora comum, a própria lei reconhece que ela deve ser analisada de forma diferenciada - não de forma solidária -; e é comum a responsabilidade dos agentes porque "todos tem o dever de atuar em benefício das presentes e futuras gerações para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático" (art. 3º, I, da L. 12.187/09 - PNMC). E nesse contexto a responsabilidade civil torna mais complexa quando analisa nexo causal e o dano climático. Há uma complexa teia de situações geradoras de impactos socioambientais as quais podem contribuir em maior ou menor extensão enquanto fontes emissoras de emissões causadoras de impactos climáticos. É só pensarmos, por exemplo, numa cadeia de fornecedores baseada no hiperconsumo14, sem a preocupação com a etapa pós-consumo, de maneira a gerar resíduos e estes, sem destinação adequada, contribuírem em alguma medida com a emissão de gases de efeito estufa, como CO215 e outros, os quais afetam o sistema climático. Assim, é possível reconhecer danos climáticos, conforme se associa ao direito do consumidor e ao consumo sustentável16. Qual a participação e quanto cada um dos poluidores concorre para a emissão de gases? E se um dos fornecedores é um pequeno fabricante, mas, segue rigorosamente, normas ambientais? Como a responsabilidade é comum, todos concorrem e maneira comum para o dano climático, logo, o desafio é quanto cada um participa para referido dano. Um outro exemplo, por sua vez, diz respeito às novas tecnologias as quais podem gerar incertezas em relação aos riscos ambientais futuros17 e serem capazes, em maior ou menor extensão, causarem danos climáticos. Uma outra situação é o espaço urbano, cujos danos climáticos podem ocorrer à medida que se desenvolve o habitat urbano, em virtude do desarranjo frente a forte expansão do mercado imobiliário e é esquecida18 a proteção das florestas urbanas, dos rios, dos sumidouros de gases de efeito estufa; então potencializa o dano climático se acaso não há políticas públicas "integradas de mitigação e adaptação à mudança do clima no âmbito local (...)" (art. 5º, IV, da L.12.187/09 - LPNMC). E se não há adoção dessas políticas públicas, podem ocorrer desastres, o que significa afirmar que a questão climática se torna um dos fatores de agravamento de riscos19, por exemplo quando há chuvas extremas que afetam comunidades vulneráveis. Assim, a responsabilidade civil associada ao dano climático envolve um necessário conjunto de "relações": fatores antropogênicos à danos ou não aos recursos naturais e à natureza à perturbação em maior ou menor extensão do equilíbrio ecológico e dos serviços ambientais (por exemplo, as florestas neutralizam a emissão de carbono) à danos climáticos. Ao reconhecer essas relações capta-se a proposição de François Ost ao afirmar sobre a necessidade de "um saber ecológico realmente interdisciplinar: não só uma ciência da natureza, nem uma ciência do homem, mas uma ciência das suas relações"20. Registre-se que o estudo do dano climático e sua responsabilização vão demandar novos contornos mais sensíveis do intérprete. Na verdade, é preciso uma metamorfose no estudo da responsabilidade civil. Parafraseando Ulrick Beck, metamorfose está associado aos novos sentidos da compreensão de mundo; significa, explica o autor, em apartada síntese, que é necessário avaliar, não o presente em sua totalidade, mas o que é novo na realidade presente21; significa, também, ir além da teoria da sociedade de riscos22. Tal proposição dá pistas para o estudo do dano climático, à medida que ele deixa de ser uma abordagem oblíqua e periférica nos litígios ambientais; ou seja, ele se torna a causa fundamental e presente e não mais, apenas, considerações de que possa ocorrer no futuro. Nesse contexto, estudar o dano climático sob a perspectiva da responsabilidade civil demanda do intérprete: i. incorporar a valoração da razão prática no âmbito jurídico, o que significa superar de que tudo deve ser demonstrado e comprovado de forma experimental23 e, assim, flexibilizar a interpretação do nexo causal; ii. adotar uma postura proativa no sentido de serem incorporados no discurso jurídico da tutela climática, a dimensão ecológica da dignidade humana e a promoção do mínimo existencial ecológico24 e dos direitos humanos25, além da necessidade de reconhecer uma vulnerabilidade climática26 à medida que os mais afetados são os mais pobres e excluídos de serviços e de equipamentos públicos, ou seja, todos estão expostos aos impactos relacionados ao dano climático, porém há diferença dos efeitos e escala27; iii. tomar como premissa que o dano climático já é presente e para não se agravar, é necessária adoção de medidas preventivas pelos poderes públicos (art. 2º, IV, da L.12.187/09); iv. desenvolver novos parâmetros para avaliar o nexo de causalidade. O nexo de causalidade, portanto, para sua verificação pode, por exemplo assimilar a ciência de atribuição, considerando que ela, conforme Akaoki e Weddy, permite "ligar eventos climáticos extremos ao aumento das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera" 28; ainda, por meio da referida ciência "será possível de se demonstrar no Judiciário o nexo de causalidade entre desastres, as catástrofes ambientais e as emissões históricas de uma empresa ou de uma atividade específica"29, associando análises estatísticas; v.  funcionalizar a responsabilidade civil30 sob a perspectiva preventiva, inclusive, imprimindo deveres de conduta para proteção do sistema climático: v.1. dever de os atores privados, poluidores diretos e indiretos, de manterem investimento em pesquisas de forma continuada visando a substituição de tecnologias por outras, cada vez mais descarbonizadas; v.2. dever de colaboração e cooperação dos atores privados no sentido de fiscalizarem e de exigirem dos seus parceiros comerciais planos de gestão climática; v.3. estimular uma cultura de consumo mais sustentável e de preocupações climáticas. v. incorporar nos discursos jurídicos relacionados aos litígios que se debatem a responsabilização civil por danos climáticos, estudos e conclusões de Relatórios científicos e decisões de organismos internacionais. Frise que o nexo de causalidade quando envolve o dano climático, associado à fonte causadora, deve levar em conta que se reconheça "qualquer processo ou atividade que libere na atmosfera gás de efeito estufa, aerossol ou precursor de gás de efeito estufa" (art. 2º, V, da L. 12.187/09), considerando que dito gás se apresenta como "constituintes gasosos, naturais ou antrópicos, que, na atmosfera, absorvem e reemitem radiação infravermelha" (art. 2º, V, da L. 12.187/09), capazes de produzirem impactos causadores de "efeitos da mudança do clima nos sistemas humanos e naturais" (art. 2º, VI, da L. 12.187/09); ademais, não se pode deixar de considerar também, quanto à emissão de gases, as estimativas de emissão por meio de metodologias a serem, cada vez mais, implementadas e adotadas, mas, não apenas, de forma coercitiva, mas, também, de forma cooperativa31. Portanto, articular a responsabilidade civil no âmbito do dano climático, perpassa na necessidade de se reconhecer que sua caracterização e o nexo de causalidade não é apenas para reconhecer dano futuro, mas, sim, pluralidade simultânea de situações e poluidores diretos e indiretos, no contexto presente, afinal, qualquer atividade, no presente, em maior ou menor extensão, repercute, ainda que minimamente, na produção do dano climático. E conclui-se também a relevância preventiva da responsabilidade civil no intuito dela ser uma ferramenta a mais na tutela do clima. ---------- 1 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2019, p. 69. 2 IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Summary for Policymakers, 2022, p.12. Disponível aqui Acesso: 5 agosto 2022. 3 CONTIPELLI, Ernani de Paula. Política Internacional climática: do consenso científico à governança global. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 9, n. 2 (Ago.- Dez./2018), p. 82-94, em especial, p. 85. 4 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011, p. 108. 5 MILARÉ, Édis. Tutela Jurídico-civil do ambiente. Revista de Direito Ambiental, v.0 (Jan.-Dez./1996): p. 26-72, em especial, p. 3. 6 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito [Tradução: Joana Chaves]. Lisboa, Instituto Piaget, 1995, p. 21. 7 Sobre fonte de pesquisa em litígios climáticos no Brasil, sugere-se navegar na plataforma. 8 STEZER, Joana [et al]. Panorama da litigância climática no Brasil e no mundo. STEZER, Joana [et al] (Coordenadores). Litigância climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil. São Paulo, Thompson Reuters, 2019, p. 59-86. 9 United Nations Environment Programme (2020). Global Climate Litigation Report: 2020 Status Review. Nairobi (Kenya), 2020, p. 4. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/global-climate-litigation-report-2020-status-review#:~:text=It%20finds%20that%20a%20rapid,cases%20filed%20in%2038%20countries. 10 Há alguns anos, um escândalo tomou conta do mercado de veículos, quando, em Setembro de 2015, o governo dos Estados Unidos acusou uma fabricante de veículos de que ela estaria adulterando resultados em testes de poluentes em 500 mil veículos vendidos naquele país, situação que passou a ser denominada de Dieselgate (disponível aqui. Acesso 14 ago 2022] 11 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. Revista de Direito Ambiental, v. 58 (Abr.-Jun./2010), p. 223 - 257. 12 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade. Ob cit. 13 Steigleder, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental e sua adaptação climática ás mudanças climáticas. GAIO, Alexandre (Organizador).  A Política nacional de mudanças climáticas em ação: a atuação do ministério público organização. Belo Horizonte: Abrampa, 2021, p. 91-110. 14 LIPVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo [Trad. Maria Lucia Machado]. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 21. 15 ABRELPE - Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e resíduos Especiais. Panorama dos Resíduos Sólidos Brasil 2020, p. 46. Disponível aqui. 16 One of the greatest human interferences with the atmosphere is the scientifically proven release of GHGs, which are the primary cause of climate change. (.). This connection can be seen more clearly when one observes that one of the factors of greatest impact on GHG emissions is unsustainable consumption. (CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda D. L. The Roles of Sustainable Consumption and Disaster Law in Climate Risk Management. Alberto do Amaral Junior; Lucila de Almeida; Luciane Klein Vieira. (Org.). Sustainable Consumption: The Right to a Healthy Environment. 1ed.Cham, Switzerland: Springer, 2020 79-103, em especial, p. 86. 17 CARVALHO, Delton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização pelo risco ambiental. 2ª ed. [Revista, atualizada e ampliada]. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 18. 18 Nesse sentido sugere-se: NALINI, José Roberto. Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 175. 19 CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013, p. 51. Sob a perspectiva do agravamento do risco de desastres associado ao clima em virtude da omissão do dever do Estado de proteção do meio ambiente também há o estudo do Tiago Fenterseifer A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas Pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas: Uma Análise à Luz dos Deveres de Proteção Ambiental do Estado e da Proibição de Insuficiência na Tutela do Direito Fundamental ao Ambiente. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza (Jan.-Dez./20110), ano 9, n. 13, p.322-354. 20 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito [Tradução: Joana Chaves]. Lisboa, Instituto Piaget, 1995, p.16. 21 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade [Tradução: Maria Luíza X. de A. Borges. Revisão técnica: Maria Cláudia Coelho] Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 16 (grifos nossos) 22 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Ob cit. 34. 23 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucinalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Revista brasileira de estudos constitucionais, Belo Horizonte, a. 3, n. 9 (Jan.-Mar./2009): 95-133, em especial p. 101. 24 SARLET Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Thiago. Curso de direito ambiental. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 285. 25 VEDOVATO, Luis Renato; FRANZOLIN; Cláudio José; ROQUE, Luana Reis Roque. Deslocados ambientais: uma análise com base na dignidade da pessoa humana Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.03, 2020, p. 1654-1680. [ DOI: 10.1590/2179-8966/2019/40183] 26 "(.) changes in weather and climate extremes on regional and global scales, including observed changes and their attribution, as well as projected changes. The extremes considered include temperature extremes, heavy precipitation and pluvial floods, river floods, droughts, storms (including tropical cyclones), as well as compound events (multivariate and concurrent extremes) (.)" (Weather and Climate Extreme Events in a Changing Climate. In Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, 2021, Chapter 11, p. 5) 27 IWAMA, Yu; BATISTELLA, Mateus [et al]. Risco, vulnerabilidade e adaptação às mudanças climáticas: uma abordagem interdisciplinar. Revista Ambiente & Sociedade (São Paulo), v. XIX, n. 2 (Abr.-Jun./2016), p. 95-118, em especial, p. 98. 28 Akaoui, Fernando Reverendo Vidal; WEDDY, Gabriel. Direito climático: litígios e ciência da atribuição. Revista de direito ambiental, v. 106 (Abr.-Jun./2022), p. 283 - 304. 29 Akaoui, Fernando Reverendo Vidal; WEDDY, Gabriel. Direito climático. 30 "o viés preventivo da responsabilidade civil (...) para impor aos entes federativos a obrigação de adotar políticas públicas de mitigação e adaptação climática adequadas, seja para fazer com que o licenciamento ambiental (...)" (Steigleder, Annelise Monteiro. A responsabilidade civil ambiental e sua adaptação às mudanças climáticas. GAIO, Alexandre (Organização). Política nacional de mudanças climáticas em ação: a atuação do ministério público [livro eletrônico]. Belo Horizonte, Abrampa, 2021.91-110, em especial, p. 105) 31 Assim, por exemplo, destaca na CETESB - Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - o Acordo Ambiental São Paulo (Câmara Ambiental de Mudanças Climáticas-Grupo de Trabalho Ferramentas, Metodologias e Compartilhamento de Informações para Cumprimento do Acordo Ambiental São Paulo) o "compromisso voluntário de reduzir a emissão dos GEE e, além disso, a possibilidade de implementar melhorias ambientais. Para integrar o Acordo, a entidade ou empresa é informada que enviará voluntariamente suas emissões de GEE, a metodologia utilizada para mensurá-las e o cronograma de metas para diminuir suas emissões até 2030, assim que possível. As informações que serão enviadas para a CETESB, bem como os compromissos voluntários assumidos, poderão incluir ações de adaptação às mudanças climáticas. O cronograma de apresentação das metas do aderente será definido pelo próprio e atualizado anualmente (...). Nesse sentido, sugere-se a leitura sobre o tema: CETESB. Nota técnica 01.1. Quantificação e Relato de Emissões de Gases de Efeito Estufa [autores: Cristiane Lima Cortes et al.; colaboradores: Artur Ngai et al. São Paulo, Cetesb, 2021, p. 31. [Disponível aqui Acesso 12 ago 2022].
Em respeito aos princípios que norteiam os fundamentos da hermenêutica, não se pode prescindir dos alicerces históricos para se compreender o presente e prenunciar o futuro. Nesse intuito, as reminiscências da Medicina Legal surpreendem pela habitualidade com que se tratava a questão da reparação do dano corporal, já nos primórdios da história da humanidade. O objetivo desse trabalho é fazer uma reflexão sobre a relevância das regras de unificação de parâmetros de avaliação do dano à pessoa. Mas, por enquanto, são iniciativas puramente doutrinais, sem qualquer escopo restritivo. As doenças e as dores nasceram juntamente com o homem. Por isso, desde seu primeiro momento de racionalidade os tratou de predispor os meios necessários para combater ambos os males1. Desde os primórdios preveem-se sanções para os casos de culpa relativa ao dano à pessoa. As primeiras constatações que temos de sua origem histórica procede da Tábua de Nippur, chamada também de Lei de Ur Namur, primeiro barema também chamado de tabela de reparação de dano corporal que tem uma data de aproximadamente 2.500 a 3.000 anos a.C. Durante o período Babilônico, o Código de Hammurabi2 passou a reger todos os aspectos da vida civil. Atualmente, os profissionais médicos em geral, quando se referem a lesões ou danos pessoais, do ponto de vista médico/odontológico, consideram isso como qualquer alteração anatômica ou funcional do corpo, que devem diagnosticar, tratar, reabilitar e prevenir. No entanto, a lesão não deve ser tratada somente do ponto de vista estritamente da área da saúde, mas do ponto de vista médico-legal, assim, pertencendo ao direito. O mosaico dos sistemas legais é desconcertante e nossa sociedade cada vez mais se valendo dos seguros, ainda não conseguiu montar os fragmentos dispersos para construir um direito unificado e global de danos pessoais. Ou pelo menos um estudo mais abrangente para tentar solucionar as incoerências e as lacunas para tentar melhor remediá-las3. A responsabilidade civil sempre foi entendida como um mecanismo de transferência de danos de um agente para uma vítima em decorrência de um comportamento ilícito culposo. O princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que muitas vezes se converte em utopia, restando ao direito trabalhar com possibilidades aproximativas ou conjecturais4. E pensando igual ao ilustre Professor Nelson Rosenvald, ao invés de uma ideia de uma reparação integral vamos pensar em uma melhor reparação da vítima. Mas para que isso aconteça, precisamos de remédios compensatórios para aquele caso em concreto5. Estes danos à pessoa podem se definir como destruição, inutilização ou deterioração que sofre a pessoa em relação a seu estado anterior, tanto em seus bens extrapatrimoniais como patrimoniais, ou também como o conjunto de consequências que tem sobre a pessoa a lesão ou afecção de sua integridade psicofísica, que pode ser de caráter econômico, moral, familiar, penal, laboral, dentre outros6. A perícia médico-legal comporta enfoques próprios a cada interesse de ressarcir. Assim, ensejará visões diferentes, numa mesma lesão, na dependência do procedimento judicial cível, trabalhista ou penal. Procurará fornecer aos operadores do Direito os elementos técnicos referentes ao ramo jurídico perquirido. Oliveira Sá (1992) ao referir-se ao posicionamento do Instituto de Medicina Legal de Coimbra comenta sobre a experiência portuguesa:7. O teor dos quesitos, mesmo quando adequados e responsáveis, que as preocupações dos quesitantes nem sempre abrangem todos os parâmetros possíveis de expressão e valorização médico-legal do dano. Mas independentemente dessa limitação de base a metodologia é a perfeita negação duma verdadeira e correcta peritagem médico-legal - é a peritagem espartilhada, por chavetas, do sim ou não, aberta à resposta seca, em jeito de atestado. Com a agravante de serem possíveis quesitos perfeitamente desajustados ingénua ou intencionalmente, impondo forçosamente uma dada resposta que desinserida do contexto doutrinário que a legitima pode ser explorada para lhe atribuir um significado que não é correcto. Com a agravante suplementar de poderem aparentar dissonância e inconsequência pericial as respostas a quesitos diferentes (ou semelhantes) na "guerra" de quesitos entre o réu e a vítima. Bem ao contrário a verdadeira e necessária peritagem médico-legal supõe integração e globalidade quer no exame quer no relatório. Este tem que ser mesmo um relatório médico-legal, isto é, completo e com justificação de todas as posições e opções assumidas conclusivamente. (p. 69-70). Não esquecendo que a reparação do dano corporal implica uma dupla abordagem médica e jurídica, e que é necessária à colaboração do perito e do juiz, deve-se vislumbrar as informações que o primeiro pode dar ao segundo para esclarecer sobre a importância e extensão do prejuízo reparável, para esse autor os parâmetros de valorização médico-legal do direito civil são os danos temporários e os danos permanentes8, compatível com nosso ordenamento jurídico, nos termos dos arts. 944, 949, 450 e 951 do CC/2015. As perícias, por razões de equidade e justiça, deverão obedecer a parâmetros uniformes de apreciação e valoração, independentemente do perito em causa e do local onde ocorre a avaliação, por isso é necessária uma harmonização dos critérios de avaliação do dano corporal para atender esse objetivo de uniformização. Por essa razão, tem-se vindo a observar crescente interesse no estabelecimento de parâmetros técnico-científicos e incessante procura de métodos suficientemente objetivos para assegurar a unificação possível das avaliações e, consequentemente, das compensações. Béjui-Hugues e Bessières-Roques informam que na França no final da década de 1950 os peritos faziam menção a diversos baremas previstos na legislação de acidentes de trabalho. Esse panorama se modificou em 1959 com uma coletânea de decisões que enfatizou o caráter definitivo da avalição no direito civil. A avaliação da sequela no direito civil leva em consideração os resultados e a afetação funcional da lesão, independente da condição social. Já no direito do trabalho, são levados em consideração a afetação da capacidade profissional e a diminuição do desempenho do trabalhador. A partir desse estudo a avaliação dos danos no direito do trabalho distancia-se dos parâmetros de avaliação do direito civil. Em 1959, O "Concour Médical" publica um "Barème indicatif des invalidités en droit commum", uma espécie de coleções de decisões escrita pelo Dr. Pierre Arrivot9. Na busca de uma evolução convergente, foi adotado pelo Comitê de ministros do Conselho da Europa em 14 de março de 1975 a Resolução 75-7 (relativa à reparação dos danos em casos de lesões corporais e morte). A evolução comum dessa mentalidade se manifestou nos inúmeros simpósios sobre a reparação dos danos pessoais, que buscavam a convergência de uma metodologia de avaliação de danos aplicáveis a todos. Essa Resolução Conjunta tenta remediar as disparidades nos sistemas nacionais de reparação de danos pessoais. Essa Resolução é marcada pela distinção do que chamamos hoje de danos patrimoniais e extrapatrimoniais10.   O "Guide barème européen d'évaluation des atteintes à l'intégrité physique et psychique", foi desenhado por um grupo de trabalho formado por peritos médicos de seis países da União Europeia com maior tradição no uso dos baremas para a indenização dos danos corporais; foram os seguintes: da Alemanha, Walter Streck; da Bélgica, Pierre Lucas; da Espanha, César Borobia; da França, Hélène Béjui-Hugues; da Itália, Marino Bargagna e de Portugal Duarte Nuno Vieira. A apresentação da Recomendação se realizou em Trèves - Alemanha em junho de 200011. A definição Déficit Funcional Permanente, ou Alteração da Integridade Psicofísica que resultou do consenso europeu no Congresso de Trèves e atualizado em junho de 2020 é o seguinte: Redução definitiva do potencial físico, psico-sensorial ou intelectual resultante de uma alteração da integridade anátomo-fisiológica: medicamente constatável e como tal apreciável por um exame clínico apropriado, completado pelo estudo dos exames complementares realizados; à qual se juntam os fenômenos dolorosos e as repercussões psicológicas normalmente associadas à alteração sequelar descrita, assim como as consequências na vida diária habitualmente e objetivamente associadas a essa alteração. (tradução nossa)12. O objetivo da publicação desse barema é tratar de harmonizar dentro de um sistema de indenização de danos corporais ocasionados por acidentes de circulação, as sequelas derivadas desses e também para os casos de enfermidades. Um objetivo secundário é que pode ser utilizado na responsabilidade civil pelos profissionais sanitários. A finalidade desta estimativa numérica é a reparação dos prejuízos não econômicos utilizando uma convenção que tem por base princípios organizados e lapidados pelas decisões judiciais e pela doutrina, considerando ainda a cultura e os costumes regionais distintos para que ocorra uma adequada harmonização, fazendo com que as noções sejam aceitas por todos13. Os baremas visam mostrar uma descrição minuciosa das múltiplas situações, frequentemente complexas, que as lesões podem parecer. Esta característica é comum entre os baremas, porque sua utilização visa confrontar os déficits funcionais e as sequelas, com as porcentagens recomendadas, para em seguida se optar por um valor que se acredite ser justo, de acordo com a situação individual do caso. Em 2010 a Commission de Réflexion sur l'Évaluation et l'Indemnisation du Dommage Corporel (COREIDOC) publicou orientações sobre "La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe, bilan 2010" esse modelo, redigido em 2010 e atualizado em 2019, inclui várias proposições, entre as quais uma nomenclatura dos parâmetros de danos indenizáveis, e representa a conceitualização das decisões atuais. Confirma, ainda, a distinção entre danos patrimoniais e extrapatrimoniais, temporários e permanentes14. A meta do mencionado relatório é a unificação da nomenclatura e a reparação do dano corporal, favorecendo um tratamento igualitário das vítimas e instaurando a segurança jurídica. Pierre Lucas disse em uma conferência que os juristas definiam os conceitos e os peritos imputavam, objetivavam e quantificavam, sem ultrapassar os limites de suas competências. Ao perito cabe quantificar os danos da pessoa humana que são constatáveis ou explicáveis pela medicina. O perito explica e quantifica aquilo que ele constata e mede, permanecendo técnico, abstendo-se de sua íntima convicção. Ele não quantifica o que não mede, apenas diz o que é ou não admissível pela medicina. E nem sempre há sempre uma perfeita adequação entre o quadro jurídico e a complexidade do ser humano. A função do perito é a quantificação dos danos da pessoa humana constatáveis ou explicáveis pela medicina15. É fundamental que os peritos e/ou assistentes técnicos detenham informações suficientes para manter a uniformidade de condutas na prática pericial, adotando uma metodologia que garanta que cada uma das lesões que afetam corpo humano seja valorada e quantificada de forma equivalente. Portanto, o barema espanhol, francês, português, italiano, dentre outros estudados pela comunidade europeia e em consonância com nossa legislação, no que tange a quantificação do dano corporal, é a maneira mais justa de uma melhor reparação da vítima, permanecendo o mais fiel possível aos elementos verificáveis e que personalizam o dano, sem fazer adição de subjetividades do ferido, do perito e do julgador. Seu uso deve acompanhar, obrigatoriamente, uma explicação à parte. Mas, um barema é somente uma ferramenta de medida, permitindo ao perito de se referenciar, mas ele não deverá ser, em nenhum caso, um manual de patologia sequelar, nem um compêndio de metodologia de avaliação. Ele não pode esconder a insuficiência de competência do perito, qualquer que seja a situação e a origem de sua missão. Os parâmetros de avaliação pericial não necessitam estar baseados em legislação positivada, mas sim, basear-se onde estas matérias já levam mais um século de intensa reflexão doutrinária, de concretização prática e de contínua evolução científica e metodológica. A prova pericial ao quantificar o dano deve estar sustentada por conceitos científicos ex legis que são atualizados conforme a evolução da sociedade. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. rev. e atual. à luz do novo Código Civil, com acréscimo doutrinário e jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2003. cap.2, p. 45-53. 2 BOUZON, E. O código de Hamurabi. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. cap.1, p. 7-17. 3 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012. p. 43. 4 RESENDE, Roberta. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. Migalhas, [S. l.], n. 5.434, 15 set. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022. 5 CONCEITOS fundamentais de Direito Civil: responsabilidade civil. Por: Nelson Rosenvald. Belo Horizonte: Nelson Rosenvald, 23 set. 2020. 1 vídeo (54 min.). Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022. 6 HERNANDEZ CUETO, Claudio. Valoración médica del daño corporal. Barcelona: Ed Masson, 2001. 7 OLIVEIRA SÁ, Fernando Manuel de. Clínica médico-legal da reparação do dano corporal em Direito Civil. Coimbra: APADAC, 1992. 8 ROUSSEAU, Claude; FOURNIER, Claude. Précis d'évaluation du dommage corporel en droit commun. Paris: Association pour l'Etude de la Réparation du Dommage Corporel, 1989. 9 BÉJUI-HUGUES, Hélène; BESSIÉRES-ROQUES, Isabelle. Précis d'évaluation du dommage corporel. 4. ed. Paris: L'argus de L'assurance, 2009.  10 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012; p. 41.  11 BOROBIA, César. Valoración del daño corporal: legislación, metodología y prueba pericial médica. Barcelona: Masson, 2006. 520 p.  12 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. De I'atteint à I'intégrité physique et psychque (AIPP) au déficit fontionnel permanente (DFP). Paris: AREDOC, jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 2022 ago. 2022. 13 BOUCHARDET, Fernanda Capurucho Horta. A valoração do dano corporal nas reclamações de responsabilidade extrapatrimonial. 59f. Monografia (Graduação em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2022. 14 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe Bilan 2010. Paris: AREDOC, Dec. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22 ago. 2022. 15 LUCAS, Pierre. Problèmes connexes à l'harmonisation européenne de l'évaluation des attentes à la personne humaine. Avellino: Istituto di Cultura Germânica, 2004.
terça-feira, 13 de setembro de 2022

Direito da Concorrência e varas especializadas

Uma crescente judicialização de decisões administrativas em temas envolvendo o direito concorrencial tem se observado ao longo dos últimos anos. Não bastasse tal constatação, um aumento ainda maior da prestação jurisdicional envolvendo a matéria é esperado em razão da esperada sanção presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, que visou ajustar características da Lei da Concorrência brasileira (Lei 12.529/11) para criar incentivos adicionais para ações de indenização decorrentes de infrações concorrenciais. Apesar do movimento identificado, ainda se percebem grandes dificuldade por parte do Poder Judiciário para proferir decisões que envolvam o direito concorrencial. E natural que o seja, visto tratar o direito concorrencial de ramo do direito dotado de elevado grau de abertura em sua tipicidade, em muito o assemelhando a um sistema de common law, em que os precedentes emanados da autoridade possuem elemento relevante na construção de uma maior segurança jurídica. Assim, decisões da Superintendencia Geral e do Tribunal do CADE modelam a aplicação da lei, criando relevantes dificuldades para outros órgãos, como o Poder Judiciário, de aplicar ou revisar as normas, ainda mais diante do também relevante papel que desempenha a microeconomia para avaliação da ilegalidade de condutas de agentes com poder de mercado.   Neste contexto, é possível destacar algumas dificuldades enfrentadas pelos jurisdicionados em casos envolvendo questões concorrenciais em trâmite nas varas comuns. A principal delas, problemas mais qualitativos das decisões proferidas, decorrentes de ausência de subsídio de matéria concorrencial administrativa para avaliar potenciais infrações à ordem econômica, o que acaba por priorizar um controle de legalidade mais afeto aos seus elementos processuais do que propriamente ao mérito das discussões. O dever de deferimento às decisões dos órgãos administrativos de fato existe, mas não pode se converter em barreira oportuna a furtar revisões de decisões que tenham mal avaliado o mérito das questões. É certo que a revisão judicial deve respeitar a discricionariedade administrativa. Contudo - e nas palavras do subprocurador Geral da República e ex-Conselheiro do CADE Antonio Fonseca - esta deferência não exclui o poder-dever do Judiciário de, escrutinando o mérito da discrição administrativa, examinar eventual lesão de direito e, se for o caso, repará-la1. Como exemplo podemos citar um equilibrado balanço das evidências postas à decisão por parte das autoridades, que por vezes se encontram bastante aquém de padrões de prova utilizadas pelos tribunais em matéria comercial, criminal ou cível. Da mesma forma, em razão de maior distanciamento do Judiciário com o tema concorrencial, uma segunda dificuldade verificada decorre da adoção de diferentes critérios para avaliação das condutas, ou seja, diferentes testes aplicados, normalmente mais superficiais e tendenciosamente mais privatistas, desconsiderando por vezes o carácter institucional da norma de defesa da concorrência, para avaliação de ilegalidade de condutas avaliadas. É dizer que o Judiciário tem tendido, em especial nas questões que lhe são levadas sem quaisquer pré-discussões com o órgão de defesa da concorrência, a um viés de análise mais focado em efeitos entre partes do que propriamente no mercado e nas empresas nele atuantes de forma geral. Tais elementos acabam por criar visões bastante antagônicas entre os efeitos e consequente ilegalidades de condutas dos agentes dominantes, resultando em decisões diametralmente opostas entre a seara administrativa e judicial.   Por fim, verifica-se ainda maior morosidade do Poder Judiciário em decidir disputas com fundo concorrencial, comprometendo por vezes a efetividade das decisões proferidas pelos órgãos administrativos. O caso Nestle-Garoto bem ilustra tal dicotomia. E tudo isso somente sopesa a maior insegurança jurídica no trato do tema. Neste contexto, diversos estudos já demonstraram que decisões proferidas por varas especializadas tendem a propiciar ambientes juridicamente mais estáveis, e que juízes de varas comuns sem especialização na matéria tendem a decidir de forma distinta a respeito de questões semelhantes. A experiência com as varas especializadas em direito empresarial também indica que decisões proferidas por tribunais especializados têm mais probabilidade de ser mantidas por tribunais superiores.2 O que nos leva à reflexão se, ao menos, a insegurança jurídica decorrente da falta de previsibilidade de casos envolvendo matérias específicas - como o direito da concorrência - levadas ao Poder Judiciário poderia ser, ao menos em parte, mitigada pela especialização de varas judiciais. Como mencionado, tal falta de especialização na matéria resulta ainda em inefetividade de decisões proferidas, havendo aqui clara correlação entre especialização e efetividade. Além disso, a especialização de varas envolve também a especialização de seus servidores, que tende a agilizar não somente as decisões em si, mas também procedimentos mais burocráticos relacionados ao processo. Argumentos corriqueiros contrários à especialização de varas comentam que tal modelo institucional acabaria por limitar as chances de reversão no Poder Judiciário, ainda conhecido como o risco de captura. Outro argumento comumente citado é o de engessamento da jurisprudência, que estaria a cargo de poucos juízes. Contudo, tais argumentos parecem ser recorrentes e insuficientes para sobrepujar os benefícios da especialização de varas. De fato, a especialização garantiria, a partir de cursos de aperfeiçoamento e especialização dos servidores destinados a tratar da matéria, maior segurança jurídica aos litígios trazidos ao Judiciário e maior coerência com legislação específica sobre o tema. Traria ainda maior agilidade na condução dos processos, que deixariam de compor o fundo da pilha processual dos gabinetes, aquele destino dado a matérias que requerem maior e mais custosa curva de aprendizado para que uma decisão seja proferida. A comunidade jurídica, de forma geral, defende a especialização de varas e câmaras como uma possibilidade de o Judiciário fornecer melhores respostas a questões de maior complexidade. A especialização das varas em matéria concorrencial trará melhorias à prestação jurisdicional, beneficiando seus jurisdicionados, o próprio Poder Judiciário e a sociedade em geral, ao garantir maior qualidade, segurança jurídica, celeridade e eficiência às decisões judiciais envolvendo casos complexos. Faz-se assim necessário incorporar a cultura do direito da concorrência ao Poder Judiciário, de modo que as empresas e indivíduos se sintam incentivados a discutir a matéria, não com o intento de postergar o cumprimento da decisão administrativa, mas para levar suas questões a um foro preparado para resolver, em tempo econômico e com qualidade técnica, as lides a ele submetidas. O debate ainda passa, além da materialidade da discussão, pela sua instrumentalização de forma eficiente. E para tanto se discute se varas especializadas devem ser criadas (novas varas) ou se varas comuns devem ser especializadas para tratar da matéria, com claro viés orçamentário; se tais varas devem ser exclusivas ou não exclusiva; se devem abarcar tão somente matéria concorrencial ou ainda outros temas, como defesa comercial, direito aduaneiro ou propriedade intelectual, e seu consequente risco de asfixia; a quantidade de varas e magistrados sujeitos a especialização, de forma a se mitigarem argumentos de captura; eventual especialização da segunda instância e questões mais procedimentais e corriqueiras como a implementação de códigos de distribuição, sem os quais pode se tornar sem efeito a especialização com riscos de nulidade de decisões proferidas pelo poder judiciário em desrespeito a competências absolutas estabelecidas. A Resolução CJF-RES-2017/00445 de 2017 já dispôs sobre a especialização, com competência concorrente, de varas federais em Direito da Concorrência e do Comércio Internacional. Subsequentemente a ela, alguns passos foram trilhados, com a criação de vara especializada no TRF-2, com a criação de um grupo de trabalho para estudo de viabilidade de sua implantação na 3ª Região - discussão que aparentemente não tem evoluído, contudo -, criação de varas federais especializadas (16ª e 29ª) na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, com competência para processar e julgar feitos que envolvam matéria de concorrência, comércio internacional, direito aduaneiro, marítimo e portuário; e finalmente com a criação de grupo de trabalho instituído pela Portaria Presidencial nº 350/2021 do TRF-1, para estudar a especialização de vara federal de processos que versem sobre direito da concorrência e comércio internacional. É preciso que tais discussões avancem, que se especializem mais varas, para que se possa confiar, com maior grau de expectativa de segurança jurídica, discussões envolvendo matéria concorrencial ao Poder Judiciário. Ainda, com a expectativa de sansão presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, tais discussões devem ainda se ampliar para as varas estaduais, que detêm competência para discussões de indenizações envolvendo matéria concorrencial. Essa é a expectativa da comunidade jurídica e empresarial brasileira, que busca sempre um ambiente de maior competitividade e de maior segurança jurídica para atuarem. __________ 1 FONSECA, Antonio. Papel dos Tribunais Administrativos e Sistema Judicial. Revista IBRAC Volume 6 número 3 (1999). 2 RIBEIRO, Ivan César. CVM e Judiciário: o efeito da incerteza jurídica nos investimentos em ações e a justiça especializada. Revista Direito GV. V. 3, N.1, p. 035-056, Jan/jun 2007. Pag. 49-50.
Introdução A flexibilização de barreiras, trazida pela modernidade, proporcionou uma sociedade mais sexualizada. Neste novo ambiente de grandes transformações pelas quais passou a sociedade, houve alteração da legislação, criminalizando-se não os padrões sociais, mas as condutas que viessem de encontro aos preceitos fundamentais, garantidos constitucionalmente.1 Novos atos perpetrados contra a dignidade e liberdade sexuais passaram a ser previstos pela lei penal, justamente por isso, como será visto, estamos diante da necessidade da criação doutrinária de mecanismos que viabilizem uma proteção à liberdade e autonomia de atos de disposição sobre a imagem do próprio corpo da mulher, de modo que a vítima de um crime contra a dignidade sexual possa voltar a decidir o que deseja fazer com o fato do agressor/ autor do dano, ter disponibilizado sem o seu consentimento, suas imagens, quer a motivação tenha sido a de auferir lucro (sextorsion), ou de promover uma espécie de vingança (revenge porn).2 O termo "violência contra a mulher" foi alcunhado pelo movimento social feminista há mais de vinte anos, podendo se referir a diversas situações, atos e comportamentos que prejudicam a mulher: A violência contra a mulher inclui, por referência ao âmbito da vida familiar, além das agressões e abusos, impedimentos ao trabalho ou estudo, recusa de apoio financeiro doméstico, controle dos bens do casal e/ou dos bens da mulher exclusivamente pelos homens da casa, ameaças de expulsão da casa e perda de bens, como forma de "educar" ou punir por comportamentos que a mulher tenha adotado.3 A Organização Pan Americana de Saúde, traz os seguintes dados/estatísticas sobre a violência contra a mulher. Alertando para o fato de que tal violência pode ter consequências mortais, como o homicídio ou o suicídio, os dados são alarmantes:4 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida; 42% das mulheres vítimas de violência por parte do parceiro relatam lesões como consequência da violência (...) depressão, estresse pós-traumático e outros transtornos de ansiedade, dificuldades de sono, transtornos alimentares e tentativas de suicídio. A taxa foi ainda maior para as mulheres que sofreram violência sexual de não-parceiros; 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento relata ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual na vida por parte de seu parceiro; 20% das mulheres relatam terem sido vítimas de violência sexual na infância; Globalmente, 38% dos assassinatos de mulheres são cometidos por um parceiro masculino; Entre os fatores associados ao aumento do risco de perpetração da violência e ao aumento do risco de ser vítima de parceiros e de violência sexual estão a baixa escolaridade, maltrato infantil ou exposição à violência na família (ou entre os pais) uso nocivo do álcool, abuso durante a infância, atitudes violentas e que permitem desigualdade de gênero; Os custos sociais e econômicos da violência por parte do parceiro e da violência sexual são enormes e repercutem em toda a sociedade. Bloqueios e inseguranças são comumente criados na mente das mulheres, fazendo-as temerem de participar da vida social, em igualdade de condições com os homens. A violência de gênero ocorre nos meios educacionais, corporativos ou familiares. Em todas essas formas de violência contra a dignidade da pessoa da mulher, o propósito maior do autor das violências é de as manter em situação de controle, desmotivando-as, reforçando a lógica colonialista de sua culpabilização, como forma de manter seus controles psicológico, material e existencial. Essa violência termina por contaminar toda a sociedade, de forma que as mulheres ao contestar essa forma de manipulação psicológica e ao tentar contrapô-la são transformadas em figuras desnecessariamente agressivas, ameaçadoras, descontroladas e histéricas.5 Nas palavras de Kruger6 "como uma prática sexista sutil e extremamente naturalizada, o fenômeno contribui para a recorrente desqualificação intelectual e infantilização de mulheres", por isso as práticas consideradas como violência contra a mulher foram ampliadas para se adequar aos novos danos que elas vêm sofrendo. Sendo considerada como violência psicológica, toda forma de ação ou omissão que implique em agressão, humilhação, exposições vexatórias, a qual o opressor expõe à vítima, podendo-lhe causar sérios danos emocionais a sua autoestima e a sua identidade. A violência verbal ocorre juntamente com à violência psicológica, de conotação específica, posto visar causar dano à sanidade mental da mulher. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 JAKOBS, Gumther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000.p. 45 2 Neste artigo serão analisados atos praticados em razão da violência de gênero, a vítima será analisada sob o único prisma: o fato de ser mulher. 3 SACRAMENTO, Lívia de Tartari e; REZENDE, Manuel Morgado. Violências: lembrando alguns conceitos. Aletheia, Canoas, n. 24, p. 95-104, dez. 2006. Disponível aqui. acessos em 13 maio 2022. 4 Disponível aqui. 5 KRUGER, Patrícia de Almeida. Penetrando o Éden: Anticristo, de Lars Von Trier, à luz de Brecht, Strindberg e outros elementos inquietantes. Tese. Universidade de São Paulo. São Paulo: 2016. 6 Idem p. 184.
Proposto inicialmente no Senado em 2016, onde tramitava sob o no 293, o PL 11.275/2018 que hoje tramita na Câmara dos Deputados foi recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e espera-se que logo receba a sanção presidencial. Esse projeto modifica a lei 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência - "LDC") especificamente para alterar o teor de seus artigos 47 e 85, além de inserir os novos artigos 46-A e 47-A, visando dar maior robustez ao sistema brasileiro de persecução privada concorrencial. As modificações previstas tratam de temas cruciais ao desenvolvimento da indenização das vítimas de ilícitos à ordem econômica: o prazo prescricional aplicável e o termo inicial que deve ser utilizado na sua contagem; a distribuição do ônus probatório, especialmente no que se refere ao repasse dos danos ao longo da cadeia produtiva; a possibilidade de escolha do procedimento arbitral pelas vítimas contra os violadores que confessaram a conduta ilícita às autoridades (via Acordo de Leniência ou Termo de Cessação de Prática); e a indenização em dobro das perdas e danos sofridas pelas vítimas. O Brasil vive uma fase de crescimento das ações indenizatórias por danos concorrenciais, que se desenvolveram muito a partir de 2015, caminho natural quando se observa as experiências americana e europeia. Neste sentido, espera-se que a nova lei que surgirá com a sanção do PL 11.275/2018 trará incentivo ainda maior a tal prática, na medida que proporcionará segurança jurídica a temas que antes dependiam da interpretação de normas não específicas e ainda pendiam de harmonização pelo Poder Judiciário. Assim, pode-se dizer que a importância dessa aguardada mudança legislativa é, ao final, aumentar o enforcement privado concorrencial no Brasil. Ou seja, se hoje as ações judiciais existentes encontram dificuldades para pedir o mínimo do prejuízo experimentado pelas vítimas (com dificuldade de comprovação até mesmo do sobrepreço, que é o dano emergente mais evidente) e para avançar na marcha processual, no futuro o ressarcimento poderá ser mais abrangente e incluir também tanto o lucro cessante, quanto os demais prejuízos gerados pela deformação do ambiente comercial em razão das práticas anticoncorrenciais, além de promover mais rapidez e assertividade nas decisões judiciais. Ora, não custa lembrar que a importância do enforcement privado é preservar o ambiente concorrencial como um todo, visto que a persecução pública dos infratores não é suficiente para coibir e prevenir novas infrações, por melhor que ela seja realizada. A punição nas esferas administrativa e criminal, por suas próprias naturezas, são sempre previsíveis ao infrator, fator que possibilita a este antever o resultado final e incluir tais eventuais perdas econômicas na conduta ilegal, aumentando ainda mais o prejuízo das vítimas. Portanto, a indenização privada não é apenas a única forma de ressarcir as vítimas por seus prejuízos como tem papel fundamental no desincentivo à violação da lei, na medida em que elimina qualquer possibilidade de lucro ao infrator. Sabendo-se que parte relevante das vítimas são grandes corporações, prescinde de análise o impacto que a reforma legislativa promovida em relação ao sistema brasileiro de persecução de indenizações por dados concorrenciais possui sob a ótica corporativa. Indaga-se assim até onde iria a responsabilidade do administrador de uma empresa caso ela tenha sido vítima de uma infração concorrencial. Tal questionamento cresce em importância se esta empresa for uma companhia aberta e, em função disto, submetida não apenas aos regramentos trazidos pela Lei no 6.404/1976 (LSA), como também pelas normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O fato de existir a oportunidade de ingressar com uma ação indenizatória (seja ela no âmbito concorrencial ou outro) impõe uma decisão ao administrador da empresa, o que, considerando o arcabouço legal trazido pela LSA, implica em deveres e responsabilidades à figura deste agente fiduciário. Vejamos. Ao descrever o dever de diligência deste administrador no seu artigo 153, a LSA remete a um parâmetro de cuidado e diligência que deve ser empregado por todo homem ativo e probo no exercício da administração de seus próprios negócios. Este parâmetro direciona a análise do caso concreto ao modo de atuação deste administrador, isto é, procurando averiguar se ele cercou-se de todas as precauções necessárias à tomada de decisão1. Trazendo ao caso concreto, o dever de diligência estaria materializado no dever do administrador de analisar todos os aspectos, sejam eles positivos ou negativos, da decisão sobre a possibilidade de ingressar ou não com a demanda reparatória, seja ela judicial ou arbitral. Neste sentido, considerando os montantes a serem ressarcidos pela companhia e as peculiaridades inauguradas pela modificação legislativa (que facilitam antigos obstáculos processuais, como a contagem do prazo prescricional e a distribuição do ônus probatório), parece-nos que desconsiderar sequer a hipótese do ingresso da demanda ou não possuir motivos racionais para tanto pode ensejar a responsabilização deste administrador por não atuar de forma diligente para com a companhia, colocando a perder montantes expressivos, que certamente contribuiriam à consecução da sua atividade empresarial ou seriam revertidos em lucros aos acionistas. De fato, essa obrigação e reforçada pelo artigo 154 da mesma LSA, que prevê o dever de lealdade do administrador, por meio do qual ele deve sempre buscar o melhor interesse da companhia. Ainda, mesmo em nível assemblear essa preocupação com o bem comum da companhia, pois o artigo 166 da LSA estende ao acionista controlador os deveres de lealdade e diligência. Por consequência, uma decisão do controlador que freie a busca por valores de direito da companhia pode atentar aos direitos dos minoritários e configurar até mesmo abuso de poder. Como é possível depreender a partir da orientação consolidada pelo colegiado da CVM, foge à competência do órgão a análise quanto ao resultado da conduta dos administradores, restando, porém, sob seu escrutínio, o processo de tomada de decisão. Este processo, por sua vez, consiste em verificar se o administrador, ao ser confrontado com a situação em concreto, agiu de maneira informada, refletida e desinteressada2. Assim, para além da análise sobre o modo pelo qual atuou o administrador, sob as lentes do artigo 153 da LSA, também se faz necessário analisar se a decisão do administrador efetivamente buscou a consecução dos fins sociais da companhia. Em ambos os casos, a regra para avaliar a sua decisão negocial seguirá o padrão da Business Judgement Rule. Ao elaborar sobre o tema, Sampaio Campos observa que "não se exige do administrador, então, apenas uma conduta formalmente de acordo com os preceitos da LSA, mas, sim, materialmente em linha com os seus preceitos. Da mesma forma que os conceitos de discricionariedade próprios do direito administrativo têm aplicação aos administradores, permitindo a LSA larga margem de ação. Essa faixa de atuação é conferida apenas para que o administrador possa realizar o objeto social e atender ao interesse social, à medida que o poder e a liberdade dos administradores é eminentemente funcional como órgão da companhia. Se o administrador usar seu poder e mesmo sua discricionariedade para qualquer outra finalidade ou contrariamente ao interesse social incidirá em desvio de poder, conceito construído pelos administrativistas, mas que tem inteira cabida na atuação dos administradores das companhias"3 (grifo nosso) Precedentes também recentes da CVM seguem essa interpretação legal, na medida que consideram que avaliações posteriores das decisões dos administradores devem considerar se eles teriam condições de antever a iminência do implemento de determinado risco, com base nas informações que lhe estavam disponíveis, pouco importando se efetivamente tiveram consciência do alerta4. Ora, este "desvio de poder" e falha no cumprimento dos deveres de diligência e lealdade podem se configurar no caso das decisões sobre demandas para indenização por danos concorrenciais tanto nas hipóteses de desvio de finalidade em razão de algum tipo de conflito de interesses que possa macular a decisão de determinado administrador, quanto em situações que demonstrem sua contrariedade ao interesse social da companhia. Tal consequência surge tanto porque tal administrador age visando beneficiar outro agente econômico de interesse contrário como por ausência da devida diligência em analisar a oportunidade, porque em ambos os casos o resultado é o mesmo: colocar a perder montantes expressivos que serviriam aos interesses corporativos. Dessa forma, conclui-se que, para o caso das Sociedades Anônimas, é pujante que a reforma legislativa em comento, ao contribuir com a viabilidade das demandas indenizatórias em questão e dobrar o valor das indenizações devidas, igualmente elevará o rigor das justificativas que precisarão ser apresentadas para justificar a recusa de seu ingresso em juízo. __________ 1 O dever de diligência não é circunscrito aos administradores de sociedades anônimas. Ao contrário, os administradores de outras espécies de sociedades têm o mesmo dever em razão do preceito do artigo 1.011 do Código Civil, que tem o mesmo conteúdo do artigo 153 da LSA. 2 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/1443, de relatoria do Diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa, julgado em 21-03-2006 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/0097, de relatoria da Diretora Maria Helena de Santana, julgado em 15-03-2007. 3 SAMPAIO CAMPOS, Luiz Antonio. Orientação da Aplicação da LSA. In FILHO, Alfredo Lamy; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias, p. 1084. 4 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2008/8046, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 30-10-2018 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2014/8013, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 31-08-2018.
A produção de danos decorrentes da atividade médica não se estende apenas no plano material, podendo incidir na esfera psíquica do paciente, tendo em vista a dor-sensação produzida por intervenções que podem ser, de algum modo, dolorosas e traumáticas. O prejuízo corporal se compõe de elementos variáveis, indenizáveis separadamente, conforme a invalidez seja parcial ou total, permanente ou temporária. Também o próprio estado patológico do doente, que se pretendia aliviar ou curar, pode resultar agravado ou crônico. Nesse cenário, dentre os maiores desafios postos ao julgador, estará a quantificação dos danos morais e estéticos em virtude dos padecimentos experimentados pela vítima diante da ocorrência da culpa profissional. O dano estético, assim como o dano moral, representa uma ofensa a um direito de personalidade. Todavia, Teresa Ancona Lopes ensina que o dano moral constitui o "acervo da consciência", voltado para dentro do sujeito, incorpora-se ao psiquismo, afeta os seus sentimentos.  Já o dano estético está voltado para fora, correspondendo ao "patrimônio da aparência", isto é, ele é a lesão à beleza física, à harmonia das formas externas do sujeito.1 A fixação do quantum indenizatório dos danos extrapatrimoniais sempre foi objeto de acendrados debates doutrinários e jurisprudenciais. Em busca de uma solução, alguns países - como Reino Unido e Itália - adotam diferentes sistemas de tabelamento de danos.2 Na tentativa de objetivar a quantificação das indenizações por danos morais, no julgamento do REsp 959.780/ES (3ª Turma, j. 23.08.2011) e do REsp 1.473.393/SP (4ª Turma, j. 04.10.2016),3 o STJ passou a adotar o denominado "critério bifásico", consubstanciado na seguinte fórmula: na primeira fase, "arbitra-se o valor básico ou inicial da indenização, considerando-se o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos)." A justificativa é assegurar uma justiça comutativa, que é uma razoável igualdade de tratamento para casos semelhantes, assim como que situações distintas sejam tratadas desigualmente na medida em que se diferenciam. Já na segunda fase "procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustando-se o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias. Partindo-se, assim, da indenização básica, eleva-se ou reduz-se esse valor de acordo com as circunstâncias culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes) até se alcançar o montante definitivo." Nessa etapa, procede-se a um arbitramento efetivamente equitativo, que respeita as peculiaridades do caso. Pensando em experiências alienígenas e na orientação contida na primeira fase do método bifásico, há a ferramenta desenvolvida pela Comissão de Inovação do TJRS (Inovajus) e Escola Superior da Magistratura da AJURIS, em parceria com a PUCRS - chamada "Tabela de Parâmetros do Dano Moral" -, utilizada desde 2020 pelos Juízes e Desembargadores gaúchos que, ao digitarem os termos de busca desejados na tabela, chegam rapidamente a uma lista com casos semelhantes, indicando-se os valores máximo, mínimo, mediano e a média, com algumas referências às peculiaridades dos casos selecionados. Explica Eugênio Facchini Netto que, "assim, o julgador pode comparar as peculiaridades do caso que está analisando com as peculiaridades dos casos já julgados e constatar os valores já usados para casos semelhantes."4 Nas demandas judiciais sobre responsabilidade civil médica, é notória a relevância do método bifásico de quantificação dos danos morais para minimizar eventual arbitrariedade de critérios unicamente subjetivos do julgador, além de afastar a tarifação do dano, trazendo um ponto de equilíbrio entre a garantia de uniformidade das decisões judiciais e o respeito às peculiaridades de cada caso concreto. Essa metodologia, contudo, ainda encontra certa resistência e desafios na sua correta aplicação pelos tribunais estaduais. Ademais, é necessária a análise de viabilidade da extensão desse critério pretoriano para a quantificação do dano estético. Diante disso, estas breves reflexões têm o objetivo de demonstrar a maneira pela qual o Tribunal de Justiça do Paraná - mais especificamente, a 8ª, 9ª e 10ª Câmaras Cíveis, especializadas em responsabilidade civil - aplicam o método bifásico e estabelecem valores indenizatórios compensatórios, em casos envolvendo danos moral e estético decorrentes da atividade médica. A 8ª Câmara Cível do TJPR, no julgamento da Apelação Cível n º 0017082-44.2015.8.16.0019,5 manteve a condenação de médico por negligência diante do esquecimento de uma compressa cirúrgica no interior do estômago da paciente que se estendia até o duodeno, quando da realização de uma gastroplastia, o que lhe teria causado dores e desconforto até a retirada, ocorrida aproximadamente três anos depois. Contudo, reduziu-se a indenização por danos morais fixada em R$ 70.000,00 (setenta mil reais). Adotando-se o método bifásico, na primeira fase, identificou-se que os bens jurídicos violados são a saúde e a integridade física da paciente, diante do esquecimento da compressa cirúrgica em seu abdômen, causando-lhe dores por mais de um ano. Tendo isso em mente, nesta fase, extraiu-se um grupo de casos da jurisprudência do TJPR que, em situações análogas relacionadas à responsabilidade civil por erro médico, com o esquecimento de compressa ou gaze cirúrgica e sem sequelas permanentes, o patamar médio da indenização por danos morais varia entre R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e R$ 40.000,00 (quarenta mil reais).6 Estabelecida esta premissa, restou na segunda fase da quantificação avaliar se as circunstâncias peculiares do caso, cumprindo apreciar a extensão do dano (art. 944, CC), o grau de culpa dos envolvidos e as condições econômicas, sociais e pessoais das partes. O STJ apresenta algumas diretrizes (critérios) no arbitramento dessas verbas indenizatórias por dano moral na segunda fase, tendo como norte a fixação em quantum sintonizado com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade: 1) a gravidade do fato em si e suas consequências para a vítima (dimensão e tempo de duração do dano) - além da eventual participação culposa do ofendido (culpa concorrente); 2) a ponderação sobre as condições pessoais e econômicas das partes, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, ainda, de modo que sirva para desestimular a conduta do ofensor.7 3) deve-se levar em consideração o caráter pedagógico e sancionatório da indenização - e, nesse sentido, avaliar a intensidade do dolo ou o grau de culpa do agente.8 Esses critérios foram observados pelo TJPR na análise do caso acima relatado. Inicialmente, considerou-se que, da data da cirurgia até a retirada do corpo estranho passaram-se aproximadamente três anos, além de que a paciente se queixava de fortes dores abdominais por cerca de um ano. Ainda, levou-se em conta que a paciente foi diagnosticada com disfunção do esfíncter de oddi - que em nada se relacionava com o corpo estranho -, uma vez que naquele momento apresentou dores de característica biliar, sendo então marcada cirurgia para a desobstrução. Portanto, não foi necessária a realização de cirurgia exclusiva para a retirada do corpo estranho, cujo achado, inclusive, foi surpresa para os médicos que realizavam o procedimento. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 44. 2 Sobre o tema, remeta-se a FACCIO, Lucas Girardello. A quantificação do dano moral. O uso de tabelas no direito italiano e sua viabilidade no direito brasileiro. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. 3 É sabido que os precedentes das Turmas da Seção de Direito Privado do STJ, em razão da dificuldade de se sistematizar parâmetros objetivos, vêm determinando a aplicação do critério bifásico para "garantir o arbitramento equitativo da quantia indenizatória, valorados o interesse jurídico lesado e as circunstâncias do caso, minimizando eventual arbitrariedade ao se adotar critérios unicamente subjetivos do julgador, além de afastar eventual tarifação do dano". (STJ, AgInt no AREsp n. 1.799.380/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 26.04.2022) 4 FACCHINI NETO, Eugênio. O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha. Consultor Jurídico, 16/2/2020. Acesso em 30 de agosto de 2022. 5 TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 0017082-44.2015.8.16.0019, rel. Des. Clayton Maranhão, j. 28.03.2019. 6 TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1582929-3, rel. Des.  Luiz Cezar Nicolau, j. 18.05.2017; TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1364036-1, rel. Des. Marcos S. Galliano Daros, j. 05.11.2015; TJPR, 8ª Câmara Cível, AC n. 1527935-3, rel. Des. Gilberto Ferreira, j. 01.09.2016. 7 Nesse sentido, cf.: STJ, AgInt no AREsp n. 1.931.192/MS, rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j. 14.03.2022. 8 Nesse sentido, cf.: STJ, REsp 1677957/PR, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 24.04.2018.
Nos dias atuais, tornou-se corriqueiro o Poder Judiciário ser acionado para resolver questões relacionadas à publicação de conteúdo ofensivo em redes sociais. A solução desses casos demanda, com certa frequência, a participação das plataformas digitais a fim de viabilizar a identificação do usuário criador do conteúdo ilícito. Tendo em mente a indagação feita no título deste ensaio, pensemos na seguinte hipótese: uma vítima de conteúdo ofensivo publicado em rede social ajuíza a ação prevista no art. 22 da lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet - MCI), no prazo previsto no art. 15 do MCI, porém, a plataforma não fornece os registros de acesso à aplicação do autor do conteúdo, sob a alegação de que o usuário desativou o perfil, pelo que a rede social invoca o art. 248 do Código Civil (art. 248 - Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos) para sustentar a resolução da obrigação. Nesse cenário, indaga-se: a omissão da plataforma ao não fornecer os dados pode ensejar a sua responsabilidade civil? O art. 248 do Código Civil afasta a responsabilidade da rede social nesse caso? Na hipótese em exame, o provedor ignorou o que prevê o MCI, notadamente as regras legais acerca do dever do provedor de aplicação de manter os dados de registro dos usuários pelo tempo previsto na norma, como forma de viabilizar a eventual responsabilização daqueles que se utilizam da rede mundial de computadores para violar direitos assegurados na Constituição da República. O MCI, editado com o propósito de estabelecer os princípios, garantias direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, determina que os provedores de conexão mantenham a guarda dos registros de conexão pelo prazo de 01 (um) ano (art. 13), bem como impõe aos provedores de aplicação - como a rede social -  a conservação dos registros de acesso à aplicação de internet pelo prazo de 06 (seis) meses (art. 15). Os dispositivos não definem o termo inicial dos referidos prazos de guarda obrigatória de dados. A Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1738651/MS, fixou o entendimento de que o termo inicial para a contagem retroativa do prazo de 01 (um) ano ou de 06 (seis) meses de guarda é a data em que a parte requerida toma conhecimento do ajuizamento da ação de requisição judicial dos registros. No caso hipotético, o autor ingressou com a ação judicial no prazo do art. 15 do MCI, portanto, quando a rede social ainda estava obrigada a conservar os registros de acesso dos seus usuários. Logo, quer parecer ser indiscutível a conduta omissiva do provedor, que não observou um comando legal expresso, agindo, desse modo, de forma negligente no desempenho de sua atividade que, em certa medida, já se está regulada pelo Estado brasileiro. Assim sendo, a conduta omissiva do provedor, ao passo que configura um dos elementos da responsabilidade civil (conduta), sugere, a um só tempo, a presença de outro, a saber, a culpa, na vertente da negligência empregada no comportamento omissivo. A jurisprudência do STJ (REsp 1642560/SP) vem entendendo que, uma vez apresentado pela vítima o URL da página virtual com o conteúdo ofensivo, é dever do provedor de aplicação - no caso, a rede social - manter um sistema ou adotar as providências, tecnicamente a seu alcance, de modo a possibilitar a identificação do usuário responsável pelo conteúdo apontado como ofensivo, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão em que incide, tratando-se, desse modo, de responsabilidade subjetiva. Uma vez reconhecida a culpa do provedor de aplicação, não há falar em incidência do art. 248 do Código Civil para afastar a responsabilidade civil da plataforma, pois, para isso, a norma exige a ausência desse elemento subjetivo. A alegada impossibilidade de fornecer os registros de acesso do usuário infrator decorreu de culpa da rede social, na medida em que não manteve a guarda dos dados do perfil excluído pelo internauta agressor. O argumento de que o usuário infrator excluiu da rede o seu perfil e o conteúdo ofensivo publicado na plataforma não isenta o provedor da obrigação legal de conservar os registros de acesso à aplicação da internet. Por outro lado, o descumprimento desse dever, por si só, não legitima acionar o regime da responsabilidade civil, para o que se mostra imprescindível a ocorrência de algum dano ao interessado na identificação do autor do conteúdo. Entender diferente importaria no reconhecimento da responsabilidade civil sem danos, o que não se mostra compatível com a razão de ser do sistema de responsabilização civil, enquanto mecanismo voltado à indenização ou compensação de um prejuízo. Afinal, antijuridicidade da conduta não se confunde com o dano, assertiva à qual se pode acrescentar, ainda, que o dano não é um consectário lógico e inarredável da ilicitude do comportamento. Identificada a conduta omissiva, bem como a culpa da rede social, que agiu negligentemente ao não manter a guarda dos dados do usuário, cumpre indagar qual o dano e, se constatado algum, qual a sua relação com a postura da plataforma (nexo causal). Obviamente, aqui abre-se margem para uma enorme gama de possibilidades empíricas de pedidos de danos pelo ofendido, porém, para fins do caso hipotético em estudo, adota-se a premissa de que a vítima sofreu danos morais e materiais decorrentes da publicação. Os danos materiais, assim como os danos morais - traduzidos pela doutrina nacional majoritária como violação dos direitos da personalidade1 -, são disciplinados pela teoria do interesse, idealizada pelo jurista italiano Francesco Carnelutti2. Na lição de Carnelutti, a tutela jurídica é conferida não ao bem jurídico em si, mas à relação jurídica entre ele e o sujeito, o que denota o caráter normativo da ideia de dano, em contraponto à visão naturalista da teoria da diferença, circunstância que permitiu a acomodação dos danos extrapatrimoniais pela teoria do interesse. Assim, dano passou a ser concebido como a lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, independentemente de sua natureza, se bem patrimonial ou bem integrante da personalidade do ofendido3. Admitida a existência dos danos causados pela publicação, indaga-se, doravante, acerca da relação de relação de causalidade entre eles e a conduta omissiva da rede social ao não fornecer os registros de acesso à plataforma digital, em descumprimento à determinação judicial. Na perspectiva naturalística, inexiste tal relação de causalidade, ao menos diretamente. A conduta do provedor de aplicação não se confunde com a daquele que criou o conteúdo violador de direitos. Daí que não se pode atribuir ao primeiro, desde logo, o dever de indenizar pela mera divulgação do conteúdo ilícito e danoso à vítima, sob pena de caracterização de responsabilidade objetiva ao arrepio da lei e do atual entendimento do STJ. Nada obstante, não se deve olvidar a circunstância de que a relação jurídica entre o criador do conteúdo ofensivo e a rede social é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo juridicamente viável enquadrar a vítima da publicação, mesmo não sendo usuária da plataforma, na qualidade de consumidor equiparado (art. 17, CDC). Nessa perspectiva, considerando que a rede social, inobstante não tenha criado diretamente o conteúdo ofensivo, propiciou meios técnicos para que ele fosse concebido e, mais do que isso, divulgado para uma infinidade de pessoas, é possível sustentar que ela integra a cadeia de fornecimento para fins do art. 7º, parágrafo único, do CDC, segundo o qual "Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo". Em outros termos, há a participação instrumental do provedor de aplicação nessa cadeia, ao fornecer o ambiente virtual onde o conteúdo é criado e disseminado em uma velocidade diretamente proporcional ao interesse e à curiosidade que esse material pode despertar em usuários e não usuários da plataforma, de modo que um eventual dano, notadamente a direito da personalidade, pode assumir proporções de difícil dimensionamento. Na seara processual, é importante destacar que o raciocínio desenvolvido neste ensaio para admitir a possibilidade da incidência de responsabilidade civil da rede social no caso de descumprimento de determinada decisão judicial não desconsidera a existência das medidas executivas de coerção indireta, das quais se destacam as astreintes, também chamada de multa diária, cujo escopo é compelir o devedor a realizar a obrigação de fazer ou não fazer. O regime de responsabilidade civil do provedor de aplicação, notadamente, das redes sociais, na hipótese em discussão, pressupõe o insucesso da aplicação dos mecanismos de coerção indireta, inclusive a multa cominatória. Portanto, na hipótese proposta neste ensaio, a recusa da rede social em fornecer ao Poder Judiciário os registros de acesso à aplicação de internet pode ensejar a sua responsabilização civil pelos danos experimentados pela vítima do conteúdo ofensivo publicado na plataforma digital.
quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Responsabilidade pré-contratual e prescrição

O tema do enquadramento jurídico da culpa in contrahendo constitui uma questão debatida na doutrina1. Em síntese apertada, a matéria envolve a situação em que as partes rompem as tratativas para contratar, verificando-se assim a necessidade de examinar se essa conduta constitui uma violação do princípio da boa-fé, a fim de apurar se houve prejuízos à parte afetada pela interrupção da negociação. Desse modo, inexistindo ainda o contrato, tender-se-ia a configurar a matéria no âmbito da responsabilidade extracontratual.  A riqueza do tema não se limita, pura e simplesmente, à identificação da natureza jurídica da culpa in contrahendo. Ela se vincula à questão histórica da dicotomia das fontes do vínculo obrigacional, a partir do delineamento estabelecido por Gaio, nas Institutas, a denominada summa divisio, entre contrato e delito2. Mesmo que se pretenda ver na sua lição uma finalidade meramente didática, ao referir que toda obrigação nasce ou do contrato ou do delito3, Gaio não parece deixar espaços para esfumaturas. É certo que essa perspectiva redutiva sofre uma crítica, que pode ser percebida na concepção de contato social4, que na doutrina brasileira teve em Clóvis do Couto e Silva uma visão precursora, ao indicar já na década de sessenta do século XX a existência de uma crise da teoria das fontes5. Essa problemática não se restringe, é certo, à teoria geral, na medida em que também a responsabilidade civil e suas figuras e institutos são afetadas pela divisão clássica decorrente de Gaio. Muito embora se preconize a visão unitária da responsabilidade civil, há que se reconhecer a presença da diferenciação em muitos dos pontos de sua disciplina. No que concerne à prescrição, o Código civil de 2002 havia estabelecido uma regra unitária para o prazo da ação de indenização, que abrangia, portanto, os dois campos da responsabilidade civil. Ao decidir os Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP, julgados em 15 de maio de 2019, o Superior Tribunal de Justiça considerou, por maioria, que "a bipartição existente entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e funcional entre ambas, obsta o tratamento isonômico entre as duas esferas". Pode-se identificar, portanto, que para a corrente majoritária sobrevive, em essência, a percepção gaiana: haveria uma diferenciação ontológica, isto é, na própria estrutura entre os dois planos da responsabilidade civil, que ultrapassaria a previsão legislativa originária contida na codificação civil. Concluiu-se, assim, pela diferenciação entre os prazos prescricionais: a previsão de três anos contida no artigo 206, § 3º, V, restringe-se à responsabilidade extracontratual, enquanto nos casos de responsabilidade contratual aplica-se o prazo decenal, previsto no artigo 2056. É certo que a questão submetida a análise do Superior Tribunal de Justiça nos aludidos Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP versava sobre o inadimplemento de um contrato de compra e venda, que se enquadra como um contrato típico, dotado de prestações específicas a serem cumpridas pelas partes. Cabe a pergunta se o prazo decenal se aplica a todos os casos de responsabilidade contratual. No âmbito dos contratos de seguro, por exemplo, a partir da previsão específica contida no artigo 206, a resposta do Superior Tribunal de Justiça foi negativa, tendo decidido que se aplica o prazo ânuo para toda a gama de pretensões decorrentes desse tipo de contrato7. Como ficamos então, relativamente ao prazo prescricional, no caso da responsabilidade pré-contratual, situação em que não se perfectibilizou o contrato? A partir da distinção clássica, poder-se-ia adotar aqui a orientação no sentido de que o prazo será o de três anos: não tendo se aperfeiçoado o contrato, adota-se a diretriz preconizada para a responsabilidade extracontratual. O tema foi objeto de discussão no direito comparado, como serve de exemplo o ordenamento italiano, que no artigo 2.947 do seu Código Civil contempla o prazo prescricional de 5 anos para a responsabilidade aquiliana, sendo que o prazo geral é de dez anos nos termos do artigo 2.946. Diante dessa diferenciação, a orientação recente da Corte de Cassação tem sido de considerar que se aplica à responsabilidade pré-contratual o prazo de dez anos, a partir de uma concepção que a qualifica como uma hipótese de responsabilidade contratual decorrente de um "contatto sociale qualificato"8. Em síntese, reconhece-se a visão de que muito embora inexista propriamente na culpa in contrahendo a violação de uma prestação9, a circunstância de configurar-se a violação pela parte de deveres decorrentes da boa-fé implica no reconhecimento da natureza contratual da responsabilidade pré-contratual. A essa discussão não está alheio o Superior Tribunal de Justiça, que já enfrentou o tema da natureza jurídica da responsabilidade pré-contratual, em especial para decidir qual a disciplina a ser adotada em relação a alguns tópicos, como é o caso dos juros de mora. Foi o caso do REsp n. 1.367.955-SP10, em que apesar de reconhecer o debate doutrinário a respeito, considerou na decisão que se deveria reputar a responsabilidade pré-contratual como hipótese de responsabilidade contratual, a partir do fundamento de que o princípio da boa-fé está disciplinado no artigo 422, no âmbito da tutela contratual. É claro que em uma visão tópica, percepções como o da tutela da confiança também aparecem na fundamentação do Superior Tribunal de Justiça, para embasar o seu reconhecimento da responsabilidade pré-contratual11. Pontue-se, ainda, que na decisão anteriormente indicada, do Superior Tribunal de Justiça, relativa ao estabelecimento da prescrição ânua para todas as pretensões decorrentes de contrato de seguro, fez-se expressa menção ao reconhecimento da clássica orientação de obrigação como processo, para afirmar que o "conteúdo da obrigação contratual (direitos e obrigações das partes) transcende as prestações nucleares expressamente pactuadas". Vê-se, portanto, que a base jurídica para a decisão se aproxima da concepção hoje presente no direito italiano, que considera a violação dos deveres de boa-fé como sendo de natureza contratual. Cuida-se em essência da concepção também indicada por Clóvis do Couto e Silva no sentido da 'obrigação como totalidade' e que se atualiza, em uma aproximação singela, na orientação de 'obrigação complexa'12. Por fim, é certo que se pode favorecer uma solução legislativa, que no âmbito de uma atualização da matéria da prescrição, explicite a regra cabível para a hipótese do prazo prescricional relacionado à culpa in contrahendo. No presente cenário, porém, a partir da nova orientação traçada jurisprudencialmente pelo STJ, excetuando-se situações em que exista disposição legislativa expressa em contrário, a orientação no sentido de que o prazo decenal se aplica à reponsabilidade pré-contratual se harmoniza com a visão presente no cenário nacional, constituindo-se, além de tudo, como fator dissuasório de condutas contrárias ao princípio da boa-fé no âmbito das tratativas negociais.  __________ 1 Ver, por exemplo, ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontrattuale. Scritti in onore di Carlo Castronovo, Napolis: Jovene Editore, 2018, p. 1695; BLANC, Valérie. La Responsabilité précontractuelle, perspectives quebecoise et internationalle. Université de Montreal, 2008, p. 1 ss. Na doutrina nacional atual ver, por exemplo, FRITZ, Karina Nunes. A Culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 161 ss. 2 Ver, por exemplo, Zimmermann, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Oxford University Press, 1996, p. 10 e ss. 3 Gaio, Institutas, III, 88, Belles Lettres, Paris, 1989. 4 Ver, por exemplo, GAROFALO, Andrea Maria. Il Problema del contato sociale. Teoria e Storia del Diritto Privato, 2018, n. XI, p. 1 ss. 5 COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1976, p. 76ss. 6 A questão permanece, porém, em debate na doutrina. Ver, por exemplo, BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa; Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. A Prescrição das pretensões de reparação por responsabilidade contratual e extracontratual: em busca de coerência. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/371238/as-pretensoes-de-reparacao-por-responsabilidade-contratual 7 Ver REsp 1.303.374-ES, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, segunda seção, por maioria, j. 30.11.2021. 8 IULIANNI, Antonello. La Cassazione riafferma la natura contrattuale della responsabilità precontrattuale. Nuova Giurisprudenza Civile, 2016, v. 11, p. 1451 ss. 9 Sobre o tema ver ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontratualle, cit., p. 1703, que a par de traçar amplo panorama da evolução italiana sobre o tema, reconhece a aproximação entre esse desenvolvimento e a origem alemão da questão a partir da concepção de 'relação contratual sem deveres primários de prestação' (Schuldverhältnis ohne primäre Leistungspflicht). 10 Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18.03.2014, 3ª Turma. 11 Ver, por exemplo, REsp n. 1.051.065-AM, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 21.02.2013, 3ª Turma. 12 MIRABELLI DI LAURO, Antonino Proscida. L'Obligazione come rapporto complesso. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 7, 2016, p. 132 ss.
Traz-se com frequência a juízo questão relativa à restituição da integralidade do valor pago na aquisição de passagem aérea por força da desistência do consumidor em dar seguimento ao contrato de transporte aéreo. Neste contexto impõe-se investigar se é abusiva a cláusula contratual que impõe a perda de percentual, por vezes significativo, do valor da passagem aérea ou até mesmo da integralidade do preço, em caso de desistência do consumidor, quando o bilhete de passagem aérea é comprado na modalidade promocional. A questão será analisada à luz do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que de um lado da relação jurídica tem-se a figura do consumidor, como destinatário final do serviço, e um agente econômico na condição de fornecedor deste mesmo serviço (CDC, arts. 2º e 3º). Contudo, haverá diálogo de fontes posto que também incide na questão o Código Civil (CC, arts. 389 e seguintes e arts. 731 e 740), uma vez que se trata de inadimplemento contratual. Também haverá diálogos de fontes com a Resolução ANAC 400/16, que dispõe sobre as condições gerais de transporte aéreo e que também regula a "alteração e resilição do contrato de transporte aéreo por parte do passageiro". O art. 731 do Código Civil prescreve que a regulamentação de serviço de transporte autorizado, permitido ou concedido deve ser regido por norma específica: "O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código". Neste sentido, a norma a ser aplicada a presente questão é a Res. 400/16 da ANAC. Portanto, embora seja esta uma relação de consumo, isto, por si só, não veda apreciação do caso também à luz da regulamentação específica aplicável, seja porque o próprio Código Civil em seu artigo remeteu o intérprete à norma de regência (Res. ANAC 400/16), seja porque há, de fato, diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade1 entre o CDC e a apontada Resolução na medida em que o CDC, na condição de norma especial, tem a sua aplicação complementada pela citada Resolução quanto aos instituto da resilição do contrato de transporte aéreo.   Em princípio, o consumidor pode se desistir do contrato de transporte aéreo no prazo de 7 dias sem qualquer ônus, quando a compra é realizada pela internet, posto que nesta hipótese se aplica o art. 49 do CDC (direito de arrependimento), aplicável a qualquer tipo de compra que ocorra fora do estabelecimento comercial. Afora esta hipótese, a Resolução 400/16, em seu art. 3º, impõe ao consumidor multa de 5% para hipótese de reembolso do valor do bilhete em caso de desistência, desde que observado o disposto nos seus art. 11 e art. 29, vale dizer, quando a compra da passagem se dê no prazo igual ou superior a sete dias da data de embarque. Confira-se: Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante. Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque. Art. 29. O prazo para o reembolso será de 7 (sete) dias, a contar da data da solicitação feita pelo passageiro, devendo ser observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea. Parágrafo único. Nos casos de reembolso, os valores previstos no art. 4º, § 1º, incisos II e III, desta Resolução, deverão ser integralmente restituídos. Excluídas estas duas hipóteses de restituição integral do valor pago em caso de desistência do contrato de transporte aéreo, não se configura abusiva a cláusula contratual de transporte aéreo que prevê a aplicação de multa escalonada e progressiva, que pode resultar até mesmo na perda do valor integral do preço pago. Isto porque se a passagem foi comprada na tarifa promocional o consumidor, que a ela adere já recebe de antemão benefício que a compra passagem na tarifa convencional não possui. Ao comprar tarifa promocional o consumidor realizou escolha racional, mediante análise de custo-benefício. Ao assim proceder, o consumidor enfrentou tradeoff2 (escolha) entre a compra de uma passagem de menor custo, contudo, com menores benefícios, ao invés de passagem com maior custo, porém com maiores benefícios. Dentre os benefícios que renunciou está o de sofrer imposição de multa na hipótese de desistência de voar. O benefício do consumidor que compra na tarifa promocional consiste em pagar menos, todavia, submete-se ao risco de até mesmo perder a integralidade do preço pago, ao passo que o consumidor que compra pela tarifa convencional tem garantido o reembolso de valor mais substancial em caso de resilição do contrato. Por imposição da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro - LINDB (decreto-lei 4.657/42), o juiz não deve decidir sem levar em consideração o impacto econômico da decisão tomada isoladamente em cada processo: "Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Quando o transportador aéreo disponibiliza tarifa promocional fez análise de custo para adotá-la. Se o judiciário intervém neste cálculo desequilibrará indevidamente o custo de transação3 da operação de compra e venda do serviço. Para o consumidor o custo de transação importou em renunciar a benefícios como possibilidade de, por exemplo, alterar o dia e hora do voo, sem assunção de novos ônus ou imposição de multa. Para o transportador aéreo o custo de transação importou em renunciar à obtenção de lucro maior em cada um dos bilhetes disponibilizados. Não se trata de discriminação entre consumidores, posto que o custo de oportunidade resultou da escolha racional de cada consumidor que foi amparada pelo acordo entabulado. Se o judiciário der o mesmo tratamento a ambos os consumidores estará, aí sim, promovendo desigualdade porque contemplará o consumidor que comprou tarifa promocional com o mesmo desconto que será aplicado ao consumidor que comprou passagem na tarifa convencional, que é mais onerosa. Mankiw4 aponta que "as pessoas reagem a incentivos". Isto significa que, acaso o Judiciário decida pela restituição do valor integral do bilhete aéreo comprado com tarifa promocional, mais consumidores optarão pela compra com tarifa promocional porque obterão o melhor proveito possível, sabendo que poderão se socorrer do Poder Judiciário para, na hipótese de desistência, requerer a restituição integral do valor da tarifa. Por outro lado, companhias aéreas tenderão a aumentar o preço da tarifa promocional (ou até mesmo extinguir) de modo à, efetivamente, prejudicar o consumidor que optou pela compra na tarifa promocional, para quem a compra da tarifa com menor preço era interessante, uma vez que as empresas aéreas reagirão de forma negativa ao incentivo adotado pelo Judiciário quando concedeu a restituição da integralidade do preço da passagem ao consumidor que comprou na tarifa promocional. A análise econômica do direito aplicada a esta questão demonstra que dar tratamento igual a situações diversas cria estímulo para que o consumidor da tarifa promocional obtenha vantagem que não tem o consumidor da tarifa convencional que pagou mais caro para viajar e obterá o mesmo percentual de multa aplicado ao consumidor de tarifa promocional. Em resumo, a adoção de tratamento igual entre consumidores que optaram por pagar preços diferenciados em face do risco assumido criará estímulo para que o consumidor opte por comprar tarifa promocional e depois se socorrer do judiciário para obter a aplicação da multa aplicada à tarifa convencional, acaso desista de viajar e solicite a restituição do valor pago. Portanto, sob a lógica econômica o não reembolso da passagem vendida com tarifa promocional não infringe o disposto no art. 51, IV, do CDC, que trata da nulidade de cláusula abusiva porque não há iniquidade que coloque o consumidor em desvantagem exagerada ou incompatível com a boa-fé ou equidade. A título de argumentação, ainda que se aplique isoladamente o Código Civil para abordar a questão, não há vedação a que a multa chegue à integralidade do preço pago porque a sua aplicação não tem relação com o valor da tarifa, a teor do que disposto o art. 412 do CC que apenas limita o valor da multa ao da obrigação principal. Confira-se o teor do art. 412: "O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal." O teor desta regra do CC (art. 412) foi reproduzida na Res. ANAC 400 em seu art. 9º: "As multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo. (...)". Neste sentido, não há retorque a ser feito quanto à possibilidade de perda, até mesmo na integralidade, do valor da tarifa promocional, desde que expressamente evidenciado no bilhete aéreo, por força da obrigação do fornecedor de prover o consumidor com "informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem (...)" (CDC, art. 6º, III). Acresça-se, ainda, que segundo o art. 416 do CC não há necessidade de que o credor (fornecedor) alegue prejuízo para aplicação da pena convencional: "Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo. (...).". Portanto, é irrelevante saber se o fornecedor revendeu a terceiro a passagem que o consumidor desistiu de utilizar. Deste modo, conclui-se não ser abusiva a cláusula de contrato de compra de passagem aérea na tarifa promocional que disponha acerca da perda da integralidade do preço pago. ---------- 1 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 8 ed. São Paulo: RT, 2016. p. 784.  2 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017. 3 SZTAJN, Raquel. A incompletude do contrato de sociedade. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 99, Jan-Dez. 2004, p. 283. 4 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017.
quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Incoterms & demurrage no direito brasileiro

Introdução Dadas as características do comércio internacional, boa parte das operações econômicas de exportação ou importação não chegam a ser instrumentalizadas em contratos com redação detalhada. Não só os instrumentos, como as cláusulas contratuais padronizadas acabam sendo preferidas em razão da necessidade de agilidade na conclusão dos negócios. Isto é especialmente verdade para duas significativas partes destas operações: a compra e venda (normalmente instrumentalizada por meio de uma fatura ou invoice) e o transporte (normalmente um documento padrão fornecido pelo armador - BL ou bill of lading). Destes contratos extraem-se duas importantes disposições contratuais, padronizadas com o tempo, que buscam gerenciar aspectos jurídicos centrais das relações: os riscos (perda/deterioração e atraso). São elas os INCOTERMS e a demurrage. Enquanto está prevê a responsabilidade e o montante indenizatório em caso de atraso na liberação do contêiner, aquela, estabelece as condições de transferência do risco e, consequentemente, acaba influindo no estabelecimento dos custos da transação. Ambas as cláusulas acabaram se consolidando em instrumentos negociais de extrema importância para o comércio internacional e, embora pensados para os aspectos internacionais das operações, acabaram alcançando espaço de debate também na jurisprudência nacional brasileira. O presente texto, então, se propõe, a partir de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, a entender qual a natureza obrigacional de cada uma destas clausulas a partir da ótica do Direito brasileiro. Eis o que se passa a fazer. Incoterms A sigla INCOTERMS significa International commercial terms, ou seja, condições comerciais internacionais. Ela se refere, principalmente, aos contratos internacionais de compra e venda em que é indispensável, na ausência de regulação específica, a identificação do momento de transferências dos riscos sobre a mercadoria. Dada a forma de sua redação (11 combinações de três letras), acaba se revelando extremamente prática e evitaria falhas de compreensão1. Sua natureza é debatida, alguns entendem-na como contrato especial de compra e venda2 ou contratos-tipo3. Parece, contudo, mais adequado tratá-la como cláusula da compra e venda4, cuja compilação - mais famosa e utilizada - é realizada pela Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI) desde 1936 (a versão mais atual entrou em vigor em janeiro de 2020). Pode-se até mesmo afirmar que tal iniciativa obedece a certa tendência internacional de uniformização das regras contratuais5 e teria por intuito a facilitação da interpretação das condições negociais a partir da adoção de padrões oriundos das práticas contratuais internacionais6. Dada sua natureza de cláusula contratual, sua obrigatoriedade advém do exercício da autonomia privada, embora sua "autoridade" seja extremamente reconhecida no comércio internacional, motivo pelo qual apesar de inúmeras ocasiões inexistir referência específica ao seu regulamento, poderiam servir de regras de interpretação. Embora normalmente sejam expressas em conjunto com a definição do preço, não se resumiriam a isso já que regulam não só o custo da mercadoria, mas a responsabilidade pelos riscos (perda e deterioração da mercadoria), pelas contratações (transporte e seguro, por exemplo), pelo fornecimento de licenças e pelo desembaraço aduaneiro. Chega-se a afirmar que a função principal dos INCOTERMS reside na definição do momento em que os riscos são transferidos7, servindo de definição uniforme8 das condições negociais mais usais nesse comércio internacional, evitando dúvidas9 e repetições10. Convém, contudo, destacar que os INCOTERMS não são as únicas condições contratuais consolidadas do comércio internacional. Ao lado deles são amplamente usadas as "Definições americanas revisadas do comércio exterior" (Revised American Foreign Trade Definitions). Embora muito similares, possuem diferenças substanciais11. Como exemplos de instrumento de lex mercatoria12, acabaram encontrando reconhecimento até mesmo pelo Direito nacional brasileiro, uma vez que compuseram legislação aduaneira brasileira13. Neste sentido, a própria ideia dos INCOTERMS pode parecer paradoxal: ao mesmo tempo que privilegia a dinamicidade do comércio, busca a consolidação de condições padrões. Eis o motivo pelo qual é cada vez mais comum a contratação de adaptações (que só passaram admitidas, embora não recomendadas, pela versão 2010). Um exemplo desta lógica é, justamente, a internacionalidade14 que define a própria sigla. Interessante notar, contudo, que a própria CCI reconhece o fenômeno da utilização nacional dos INCOTERMS. Fato é, no entanto, que tais adaptações têm ocorrido15 e que precisam de definição por parte da doutrina e jurisprudência. Neste sentido deve-se destacar iniciativa de adaptação (linguística-operacional) dos INCOTERMS ao comércio eletrônico16. De uma forma geral, com base em pesquisa jurisprudencial17, pode-se afirmar que os tribunais brasileiros, quando instados a resolver situações envolvendo tais condições negociais, ainda que de forma intuitiva, acabam dando a interpretação usual a cada uma delas. Assim, casos mais simples que envolvem mera discussão sobre a composição do preço (dever ou não de ressarcimento, por exemplo), protesto (in)devido em razão da responsabilidade pelo pagamento do frete e discussão sobre o momento a partir do qual passa-se o risco de perda da mercadoria acabam sendo adequadamente tratados. A complexidade maior está, no entanto, em fundamentar uma dada interpretação dispensada a negócios que fogem do usual. Como se sabe, nem todas as soluções negociais, podem ser apontadas pelos INCOTERMS, pois ainda que sejam guia amplamente testado pela prática, sua abrangência é limitada. É neste ponto que a criatividade negocial precisa do respaldo teórico. Demurrage A segunda cláusula que merece nossa atenção é a demurrage. Para seu adequado entendimento, contudo, convém antes realizar sumária explicação sobre o contrato de transporte marítimo. De acordo com o Direito positivo brasileiro, o contrato de transporte marítimo é contrato oneroso por meio do qual "alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.", nos termos do art. 730 do Código Civil. Esta retribuição é denominada frete, que pode ser calculada com base no peso, volume ou valor da mercadoria. O contrato, por sua vez, é instrumentalizado pelo chamado conhecimento de transporte, nos termos do art. 744 do Código Civil, que lhe serve de prova e no qual constarão os detalhes que especificam a carga e limitam a responsabilidade do transportador (art. 750 do Código Civil). No comércio internacional, este documento recebe o nome de bill of lading (BL). Neste mercado, é comum que atuem os agenciadores de carga que contratam o transporte internacional de mercadorias com empresas transportadoras e/ou amadores, disponibilizando este transporte àqueles que dependem da logística internacional de produtos. Neste caso específico, o agenciador contrata com o armador a disponibilização de espaço para transporte de mercadorias e a utilização dos contêineres de sua (dele) titularidade. O armador e o agenciador estabelecem o valor do frete e as consequências da eventual mora na devolução de seus contêineres, portanto. Sendo agora titular do "espaço de transporte", o agenciador contrata com seus clientes seu uso, mediante pagamento (frete) e a responsabilidade em caso de atraso na liberação do contêiner (demurrage). Esta última, normalmente, é feita por meio da celebração de instrumento específico, de longa duração, que cria verdadeira "tabela" de valores devidos em razão do atraso. Assim, o agenciador assume a obrigação perante o armador, mas mantém com seus clientes cláusula de "reembolso", em caso de atraso na devolução do contêiner. A Convenção Internacional para a Unificação das regras aplicáveis aos conhecimentos de transporte (Regras da Haia) prevê que se não for consignada a obrigação de pagar demurrage no conhecimento de transporte, ele não é devido pelo consignatário da carga a quem o frete é transferido. Embora não só as "Hague Rules" não tenham sido ratificadas pelo Brasil, como não se trate de demurrage no embarque/desembarque no navio, este tipo de disposição ajuda a compreender que a cláusula de demurrage (sobre estadia) é praticamente obrigatória para o armador. Neste caso, então, deveriam existir duas cláusulas de demurrage: uma estabelecida para o atraso no embarque/desembarque e, outra, para o atraso na liberação dos contêineres. O Glossary of Shipping Terms do Departamento de Transportes dos Estados Unidos deixa ainda mais clara a natureza contratual da demurrage: "A penalty charge against shippers or consignees for delaying the carrier's equipment or vessel beyond the allowed free time. The free time and demurrage charges are set forth in the charter party or freight tariff."18  Percebe-se, então, a natureza contratual da demurrage e sua utilização como "multa". Disso se pode tirar duas conclusões iniciais: a demurrage só existe porque (e se) contratada e possui natureza acessória dentro do contrato de transporte (quando prevista para caso de atraso no embarque e desembarque) ou de disponibilização dos contêineres (quando prevista para mora em sua devolução). Outro importante fator é a remuneração: a disponibilização de contêineres, usualmente, é remunerada dentro do quadro geral do frete. Isto é natural quando o armador é ao mesmo tempo aquele que disponibiliza o transporte e a embalagem. Em termos sucintos: não há remuneração isolada do frete pela "locação" de contêineres. Além disso, o tratamento da disponibilização do contêiner como acessório ao contrato de transporte (que é o contrato principal) é facilmente percebido na jurisprudência brasileira19. Aliás, a conclusão parece independer do atraso do navio."20. Nem poderia ser diferente: neste caso o armador não cede apenas os contêineres que, isoladamente, pouco sentido faz. A cessão do uso dos contêineres só faz sentido, na medida em que o transporte de longo curso será feito por meio deste acondicionamento. Como na operação econômica em questão o armador é, ao mesmo tempo, aquele que disponibiliza o transporte e a embalagem em que será feito o transporte, a natureza contratual daquele se sobrepõe a deste. Isto é reforçado pelo fato de que não só não há contratação autônoma de locação de contêineres, como sua remuneração está embutida no frete. Portanto, a conclusão a que se pode chegar é que, neste caso, a disponibilização dos contêineres para transporte de mercadorias (e eventual cláusula de demurrage) estariam inseridos em um quadro negocial mais amplo, dominado pelo contrato de transporte marítimo. Considerando que a disponibilização dos contêineres também só ocorre e é remunerada dentro do próprio contrato de transporte marítimo (frete), este adquire, neste caso, o papel de contrato principal. Desta forma, não só a disponibilização dos contêineres é acessória ao contrato de transporte marítimo, como as obrigações que dela (disponibilização) decorrem devem ser tratadas como subordinadas ao contrato de transporte marítimo. Considerando, por fim, que o frete é a principal obrigação assumida pelo tomador para remuneração do agenciador de carga (e via indireta o armador), ele condiciona a demurrage que é cláusula acessória no contrato acessório de disponibilização de contêineres. Neste caso, portanto, há dupla acessoriedade: demurrage como "multa" e o contrato de disponibilização de contêineres como acessório ao "frete". Segundo a doutrina brasileira, a cláusula penal tem natureza acessória21 e serviria para que os contratantes fixassem, antecipadamente, o valor das perdas e dá-nos em caso de inadimplemento22. A mesma doutrina menciona, ainda, uma natureza inibitória do inadimplemento, ou seja, intimidação contratual para que o inadimplemento não ocorra. Segundo este raciocínio, a cláusula penal representaria a tentativa de se evitar o descumprimento da obrigação, reforçando a obrigação assumida por meio da definição de consequências para aquele descumprimento. Alguns autores destacam este objetivo23, embora contemporaneamente, a doutrina negue a importância a esta tentativa de preponderância24 e unanimemente afirme que ambas as funções (inibitória e previsão de indenização em caso de inadimplemento) compõem a cláusula penal. Como se pode perceber, então, a natureza da cláusula penal é indenizatória e não penal25, destinada a "pré-liquidar danos"26 e não punir (ou sancionar) o descumprimento da obrigação. A ideia de punição pressuporia a noção de "castigo" e de avaliação subjetiva da intenção do devedor. Esta análise, como se sabe, não é própria do Direito Privado, nem caberia, dentro da lógica contratual da Civil Law. A avaliação do comportamento e punibilidade da conduta também ignoraria o fato de que o inadimplemento se refere à consequência "dano" (reparação) e não à punição daquele que causa danos, que poderia vir a ser tratada em outro âmbito (penal, administrativo, moral). Esta ordem de coisas também se refere à natureza atribuída à obrigação no Direito brasileiro: como seu conteúdo é patrimonial, a ofensa à obrigação seria, igualmente, patrimonial (dano). E o dano, neste sentido, poderia ser indenizado ou compensado de forma objetiva, sem a necessidade de julgamento do devedor, assim como compelir ao cumprimento da obrigação, quando possível, seria o suficiente para tutelar a obrigação. Diferentemente, a lógica contratual da Common Law parte da premissa de que a obrigação é antes uma promessa e sua violação é algo que deve ser moralmente repudiado. Abre-se, assim, a possibilidade (ou necessidade) de avaliação da conduta do ofensor: ele deve então vir a ser punido, se o descumprimento é, de fato, esta quebra de promessa. Daí porque explica DAVID que: "O que é sancionado pela common law não é propriamente a obrigação contratual que foi assumida e a cujo respeito a boa-fé obriga: a common law não mandará executar essa obrigação. O que ela leva em consideração é o prejuízo causado injustamente ao autor pela conduta do réu, que assumiu uma obrigação e cumpriu-a de forma inadequada, ou não a cumpriu: o réu será condenado por perdas e danos."27 É também em razão disso que a Common Law consagra a distinção entre penalty clauses e liquidated damages clauses. Enquanto estas seriam cláusulas com previsão indenizatória, aquelas serviriam para uma finalidade "punitiva". BEATSON explica que as liquidated damages clauses correspondem à previsão dos contratantes como estimativa do dano provável em caso de inadimplemento. As Cortes, segundo o autor, tendem a aceitá-las como genuína previsão indenizatória ou como limitação à indenização que possa vir a ser cobrada. Por outro lado, adverte o autor, se a cláusula estabelecer uma hipótese "ad terrorem", a soma é considerada uma penalty e, portanto, não será exequível28. O autor salienta, por fim, que não importa o nome dado à cláusula, o papel da Corte é entender sua natureza29. Esta é a mesma advertência que MCKENDRICK faz: "If the term in the contract making provi-sion for the payment of damages is held to be a penalty clause, it will not be enforced and the innocent party will be confined to a claim for damages (...) On the other hand, if the term is held to be a liquidated damages clauses then the clause will be valid and it fix the liability of the party in breach, in the sense that the sum stipulated in the clause will be the sum that must be paid, irrespective of the loss that is actually suffered on the facts of the case."30   Por fim, CALAMARI e PERILLO informam que de acordo com o Direito norte-americano: "Liquidated damages clauses are valid.  Penalty clauses are void"31, sua diferença seria, claro, o propósito: enquanto a primeira se refere a estimativa econômica da perda (baseada em razoabilidade e boa-fé) a outra tentaria evitar o descumprimento do contrato32. Informam, ainda, que não são admitidas as "Punitive damages" em demandas contratuais, salvo se decorrem de outra hipótese independente de responsabilidade civil33. O que se percebe, então, é que mesmo no Direito Contratual da Common Law não é amplamente permitida a "punição" via cláusula contratual, preferindo-se, também entre os anglo-saxões, a previsão indenizatória. Pode-se ir além: a fórmula permitida como "remédio" para o inadimplemento contratual é uma cláusula de estipulação indenizatória, de valor limitado (não ad terrorem, por exemplo), cuja finalidade seja, justamente, a liquidação antecipada dos danos que possam vir a ser sofridos. O que se pode concluir, então, é que a figura existente no Direito brasileiro (cláusula penal) se assemelha a figura dos Liquidated damages clauses do Direito anglo-saxão34. Em ambos os casos o propósito é a previsão indenizatória. Outra conclusão que se pode extrair: a forma de prever a liquidação dos danos em sede contratual, na Civil Law e na Common Law, é por meio de cláusula que, aqui no Brasil, ganha o nome de cláusula penal. Pode-se concluir, então, que a demurrage é definida como cláusula de liquidated damages para os casos de atraso na restituição do navio/contêiner, cujo montante não precisa ser demonstrado. No Direito obrigacional brasileiro estas mesmas características são definidoras da cláusula penal, razão pela qual, quando aplicável o Direito brasileiro, a demurrage possui natureza de cláusula penal. Dito isso, a demurrage se aplicam todos os limites previstos pela legislação brasileira à cláusula penal35. Conclusões O crescimento da participação brasileira no comércio internacional exigirá maior compreensão acerca de instrumentos logísticos e complexidades específicas. Algumas tentativas de uniformização ou harmonização de ferramentas normativas próprias existem, mas nem sempre foram apropriadas pelo Ordenamento jurídico brasileiro. Aliada à complexidade normal de um ambiente normativo plural, a relativa desatualização internacional brasileira torna o desafio de solucionar, as poucas controvérsias que batem as portas do Judiciário, ainda mais desafiador. Apesar disso, nos exemplos específicos dos INCOTERMS e da mora na devolução do contêiner, percebe-se que os tribunais brasileiros buscam instrumentais conhecidos e relativamente consagrados para, ainda que de forma analógica, justificarem as soluções encontradas. ---------- 1 OBERMAN, Neil Gary. Transfer of risk from seller to buyer in international commercial contracts: a comparative analysis of risk allocation under the CISG, UCC and Incoterms. www.cisg.law.pace.edu/cisg/thesis/Oberman.html. 2 MARTINS, Fran. O contrato de compra e venda internacional. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n° 33, 1979, p. 33. 3 KASSIS, Antoine. Théorie générale des usages du commerce: droit compare, contrats et arbitrage internationaux, lex mercatoria. Paris, 1984, p. 274. 4 FONSECA, Patrícia Bezerra de M. Galindo da. Anotações pertinentes à regulamentação sobre transmissão de risco: Convenção da ONU de 1980, Incoterms e Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa, n°139, 1998, p.47. 5 MARTINS COSTA, Os princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na convenção de Viena de 1980. In CASELLA, Paulo Borba (Coord.). Contratos internacionais e Direito econômico no MERCOSUL: após o término do período de transição. São Paulo, 1996, p. 167. 6 GLITZ, Frederico E. Z. Contrato, globalização e lex mercatoria, São Paulo, 2014, passim.  7 DERAINS, Yves; GHESTIN, Jacques (Direc.). La convention de Vienne sur la vente internationale et les incoterms: actes du colloque des 1er et 2 décembre 1989. Paris : LGDJ, 1990, p. 39. 8 STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio, 4. Ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 282. 9 CAMARA, Bernardo Prado da. O contrato de compra e venda internacional de bens. In Revista de Direito Privado, n° 27. São Paulo: RT, Jul/Set 2006, p. 19; BARBI FILHO, Celso. Contrato de compra e venda internacional: abordagem simplificada de seus principais aspectos jurídicos. In Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 25. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, dez. 1996, p. 30; GUIMARÃES, Antônio Márcio da Cunha; SILVA, Geraldo José Guimarães da. Manual de Direito do Comércio Internacional: contrato de câmbio. São Paulo: RT, 1996, p. 251; GOULART, Monica. Eghrari. A Convenção de Viena e os Incoterms. In Revista dos Tribunais, vol. 856. São Paulo: RT, fevereiro de 2007, p. 73; STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio, 4. Ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 284-285. 10 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie, 5. Ed. São Paulo, 2005. Vol. III, p. 74-75. 11 MARTINS, Op. Cit., 34. 12 BOITEUX, Fernando Netto. Contratos mercantis. São Paulo: Dialética, 2001, p. 34;  CALIENDO, Paulo. Incoterms, cláusulas padronizadas de comércio internacional. In Revista da Faculdade de Direito Ritter dos Reis, vol. 1, Porto Alegre, 1998, p.123; BAPTISTA, Luiz Olavo. A boa-fé nos contratos internacionais. In Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 20. São Paulo: RT, abril/junho 2003, p. 24-46; GOULART, Op. Cit., p. 69; ARAUJO, Nadia. A cláusula de hardship nos contratos internacionais e sua regulamentação nos Princípios para os contratos comerciais internacionais do UNIDROIT. In POSENATO, Naiara (Org.). Contratos internacionais: tendências e perspectivas. Ijuí: Editora Unijuí, 2006. p. 322. Como codificação dos costumes e, portanto, fonte  formal da Lex mercatoria: OSMAN, Filali. Les príncipes généraux de la lex mercatoria: contribution à l'étude d'un ordre juridique anational. Paris: LGDJ, 1992, p. 280-281. 13 Podem-se ser citadas ainda as Circulares n°3.325/2006, 3291/2005, 3264/2004 (já revogadas), 3249/2004 (já revogadas), etc. todas do Banco Central e a Portaria n°35/2006 da Secretaria de Comércio Exterior (já revogada) e a Resolução GECEX n° 21/2011 da Secretaria Executiva da Câ-mara de Comércio Exterior (revogada em 2020). Atualmente em vigor a Resolução CAMEX n° 16/2020 disponível em: http://www.camex.gov.br/resolucoes-camex-e-outros-normativos/58-resolucoes-da-camex/2669-resolucao-n-16-de-2-de-marco-de-2020. 14 CALIENDO, Op. Cit., p. 122; GOULART, Op. Cit., p. 73. 15 JOLIVET, Emmanuel. Les incoterms: étude d'une norme du commerce international. Paris : Litec/FNDE, 2003, p. 375. 16 FOEKENS, Arjan; MITRAKAS, Andreas; TAN, Yao-Hua. Facilitating International Electronic Commerce by formalizing the Incoterms. Disponível em:  http://www2.computer.org/portal/web/csdl/abs/proceedings/hicss/1997/7734/04/7734040459abs.htm.  17 GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin . TRANSFERÊNCIA DO RISCO CONTRATUAL E INCO-TERMS: breve análise de sua aplicação pela jurisprudência brasileira. Revista do Instituto do Direi-to Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 5, p. 3885-3944, 2013. 18 US DEPARTMENT OF TRANSPORTATION. Maritime Administration, Glossary of Shipping terms, 2008, p. 37. 19 Cite-se, como exemplo, o voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: "Na verdade, o que se verifica é que o contêiner é um instrumento de guarda da mercadoria transportada, uma unidade de carga, que permite utilização por vários meios de transporte de modo que a mercadoria sai do vendedor até o destino, com uma combinação possível de transporte rodoviário, ferroviário, marí-timo, aeronáutico etc. Ele adere, portanto, ao veículo transportador." (BRASIL. Recurso Especial n° 176.903. DIREITO COMERCIAL.  PRESCRIÇÃO.  SOBREESTADIA DE "CONTAINERS". CÓDIGO COMERCIAL, ART. 449, INCISO 3º. LEI Nº 6.288, DE 1975, ART. 3º. Na sobreestadia do navio, a carga ou a descarga excedem o prazo  contratado;  na  sobreestadia  do  "container",  a  devolução  deste  se  dá após  o  prazo  usual  no  porto  de  destino.  Num caso  e  noutro,  as  ações  que perseguem a indenização pelos respectivos prejuízos estão sujeitas à regra do artigo 449, inciso 3º, do Código Comercial. Recurso especial não conhecido. AS Ivarans Rederi versus Trombini Papel e Embalagens S/A, Relator Min. Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 20 de fevereiro de 2001). 20 Mesmo diante de uma situação de transporte intermodal, a sobreestadia refere-se necessariamente à permanência do navio no porto porque não chegaram os contêineres, que, segundo a própria inicial alega, passaram meses após o desembarque para serem retirados das dependências portuárias. E, ademais, o questionamento posto está sob o ângulo das cartas de correção a determinado número de "Bills of Lading", para que os contêineres pudessem ser liberados." (Voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Recurso Especial n° 176903/PR). 21 GOMES, Orlando. Obrigações, 12. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 159; SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil: obrigações em geral, 6. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 156; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: teoria geral das obrigações, 20. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, Vol. II, p. 145; VIANA, Marco Aurélio S. Curso de Direito Civil: Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2007,  p.441; FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 421; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: obrigações. São Paulo: Atlas, 2008, p.392; RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações, 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 537; 22 GOMES, Op. Cit., p. 159; SERPA LOPES, Op. Cit., p. 152; FARIAS, Op. Cit., p. 422; VIANA, Op. Cit.,  p. 444; GAMA, Op. Cit., p.390 e 395; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: obrigações, 5. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, Vol. II, p.476, 479; RIZZARDO, Op. Cit., p. 539; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004, Vol. V, T. II, p. 421-422. 23 PEREIRA, Op. Cit., p. 146; RIZZARDO, Op. Cit., p. 538; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p.243-244. 24 VIANA, Op. Cit.,  p. 444; GAMA, Op. Cit., p.390 e 395; NADER, Op. Cit., p.476; MARTINS-COSTA, Op. Cit., p. 423-430; CASSETTARI, Christiano. Multa contratual: teoria e prática. São Paulo: RT, 2009, p. 61; FLORENCE, Tatiana Magalhães. Aspectos pontuais da cláusula penal. In TEPEDINO, Gustavo (org.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 516-518. 25 SERPA LOPES, Op. Cit, p. 152; NADER, Op. Cit., p.479. 26 GOMES, Op. Cit., p. 159. 27 DAVID, René. O direito inglês. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 112. 28 BEATSON, J. Anson's Law of Contract, 28. Ed., Oxford: Oxford press, 2002, p.625. 29 BEATSON, Op. Cit., p.625. 30 MCKENDRICK, Ewan. Contract Law: text, cases and materials, 3. Ed., Oxford: Oxford press, 2008, p. 927. 31 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Contracts. St. Paul: West, 2004, p.365. 32 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Op.Cit., p.365-366. 33 CALAMARI, John D.; PERILLO, Joseph M. Op.Cit., p.369. 34 GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Mora na devolução do conteiner: análise da visão jurisprudencial brasileira acerca do comércio internacional. In Revista do Instituto de Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, n. 11, 2013, p. p.12423-12463. 35 GLITZ, Frederico E. Z.; GONDIM, Glenda Gonçalves. O Direito obrigacional brasileiro e a natureza jurídica da demurrage em contratos de agenciamento de carga. In CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Teoria e prática da demurrage de contêiner. São Paulo: Aduaneiras, 2018, p. 93-122.
Introdução Desde os estudos seminais de Daniel Kahneman e Amos Tversky, a behavioral economics (economia comportamental) tem conquistado um relevante campo de pesquisa, sobretudo ao propor questionamentos ao modelo tradicional de racionalidade abstratamente formulado nas diversas vertentes teóricas da economia neoclássica, como por exemplo, na teoria da utilidade esperada. Dentre as diversas pesquisas conduzidas pelos supracitados autores, destacam-se dois artigos: no primeiro, "Judgment under uncertainty: heuristics and biases", experimentos empíricos demonstraram que os seres humanos, muitas vezes, adotam heurísticas ou atalhos mentais para realizar julgamentos de probabilidade que visam simplificar e acelerar o processo de tomada de decisão. Tal comportamento, que em muitas ocasiões é bastante útil, também pode acarretar em falhas cognitivas (vieses), gerando erros sistemáticos e previsíveis1. No segundo artigo, "Prospect theory: an analysis of decision under risk", Kahneman e Tversky, psicólogos de formação, passaram a influenciar decisivamente o pensamento econômico, estabelecendo uma vertente teórica descritiva do comportamento humano observado em situações de incerteza. Tomando por base a concepção tradicional de racionalidade, os autores não refutam a ideia de que o ser humano visa maximizar o seu bem-estar. No entanto, a partir de consistentes estudos empíricos, restou por diversas vezes demonstrado que essa maximização da utilidade pode não ocorrer conforme o esperado. Cite-se, por exemplo, os experimentos conduzidos pelos autores que comprovaram a aversão à perda e propensão ao risco2. O motivo? Como seres humanos, alcançamos conquistas extraordinárias. Contudo, nossa racionalidade nunca deixou de ser humanamente limitada. Desde então, os estudiosos da economia comportamental têm expandido o seu campo de estudos para além da ciência econômica, tornando-se um manancial para a pesquisa interdisciplinar e formulação de políticas públicas. No campo do direito, diversos estudos contemplando insights da psicologia, da economia e da neurociência tem contribuído para a formação de uma compreensão mais realista do fenômeno jurídico3. Sem qualquer intenção de esgotar o assunto, este texto procurará apresentar o potencial dessa análise interdisciplinar no campo da responsabilidade civil, especialmente para analisar como o conhecimento da heurística do reconhecimento poderá contribuir para uma melhor proteção do consumidor na sociedade de consumo contemporânea. A heurística do reconhecimento e sua influência no contexto da tomada de decisão do consumidor A heurística do reconhecimento, estudada há décadas por Gerd Gigerenzer e Daniel G. Goldstein, tem sido utilizada tanto pelos seres humanos quanto pelos animais em situações relacionadas à falta de informações ou conhecimento. Exemplificando como o princípio do reconhecimento pode ser aplicado, os autores mencionam um estudo realizado com camundongos em que os animais optaram por se alimentar com alimentos anteriormente conhecidos, seja por já tê-los farejado ou ingerido, em detrimento de alimentos desconhecidos. Em outro estudo, os autores observaram o quão importantes são as técnicas de publicidade que visam favorecer o reconhecimento das marcas pelos consumidores, muitas vezes superando até mesmo os esforços para divulgação das qualidades dos próprios produtos disponibilizados4. Nesse sentido, a heurística do reconhecimento é adotada quando uma pessoa precisa fazer um juízo de valor diante de mais de uma possibilidade de escolha. No caso, os estudos indicam que a pessoa tende a conferir maior valor à opção mais facilmente reconhecida por ela, mesmo quando não necessariamente tenha vivenciado uma experiência direta. A partir desse raciocínio, a heurística do reconhecimento pode ser estudada como um modelo de preferências no âmbito da tomada de decisão dos consumidores. Exemplificando, cite-se um experimento clássico conduzido por Wayne Hoyner e Steven Brown que testou a importância do reconhecimento para a escolha de alimentos5. No caso, foram disponibilizados três potes de pasta de amendoim, sendo um deles de alta qualidade e os outros dois de pior qualidade. Em um primeiro momento e realizando o teste às cegas, a maioria dos participantes optou pelo alimento de melhor qualidade. Contudo, quando se fixou aleatoriamente em um dos potes um rótulo de uma marca amplamente reconhecida e nos outros dois potes rótulos de marcas desconhecidas, percebeu-se uma mudança no comportamento dos participantes. Quando a pasta de amendoim de alta qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo de uma marca desconhecida, apenas em 20% das vezes essa foi a opção escolhida. Por outro lado, quando a pasta de pior qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo da marca mais conhecida, os participantes fizeram essa opção 73% das vezes. Quando a mesma pasta de amendoim apresentando a mesma qualidade foi colocada em três potes diferentes, sendo que um deles continha o rótulo de marca mais conhecida e os outros dois potes o rótulo de marcas não conhecidas, o pote com o rótulo da marca mais familiar para os participantes foi escolhido 75% das vezes.6 Onvara Oeusoonthornwattana e David R. Shanks, a partir de experimentos relatados pela literatura especializada, elencam três motivos que justificam a utilidade do estudo da heurística do reconhecimento em relação à tomada de decisão do consumidor: a) em primeiro lugar, ao escolher um produto, o consumidor lida com objetos reais, muitas vezes por ele já conhecidos em virtude de compras anteriores; b) em segundo lugar, há pesquisas que já comprovaram a importância do reconhecimento da marca para o aumento de vendas, como no caso de uma famosa campanha publicitária realizada pela Benetton, estudada e relatada por Gerd Gigerenzer. No caso, a empresa realizou uma impactante propaganda - utilizando imagens fortes e chocantes - para alavancar as suas vendas, estratégia que acabou sendo bem-sucedida; c) o terceiro motivo está no fato de que os consumidores normalmente apresentam dificuldade para distinguir os produtos atinentes a marcas não especificadas por rótulos, apresentando uma predisposição bastante acentuada para avaliar positivamente marcas que lhes são familiares quando estas são identificadas7. A heurística do reconhecimento, portanto, influencia decisivamente o processo de escolha realizado pelo consumidor8, sendo um instrumento precioso para o posicionamento de uma marca no mercado, para o estabelecimento de estratégias de vendas, bem como a realização de campanhas publicitárias. Por outro lado, um conhecimento mais aprofundado a respeito dessa heurística também poderá ser um importante insight para o estabelecimento de medidas protetivas ao consumidor, sujeito vulnerável na relação de consumo, especialmente quando os fornecedores a utilizarem de forma não transparente e abusiva, aproveitando-se das limitações cognitivas do ser humano9. Nesse sentido, cite-se a possibilidade bastante plausível de utilização da heurística do reconhecimento por meio de campanhas publicitárias visando explorar demasiadamente o processo de familiarização do nome de determinada marca em detrimento da real qualidade dos produtos oferecidos, induzindo, por um lado, os consumidores ao cometimento de erros de julgamento e, por outro, gerando lucros ilícitos para aqueles que exploram a vulnerabilidade alheia10. Behavioral economics e responsabilidade civil: um diálogo possível O problema da manipulação da tomada de decisão e os potenciais danos que ela pode causar aos consumidores é uma temática que demanda constante atualização, especialmente em virtude da evolução da internet e da tecnologia. Obviamente, o mercado de consumo acompanha essa evolução: atualmente, não estamos mais diante apenas dos grandes magazines e das campanhas publicitárias na televisão. Vivenciamos a era da revolução digital, das redes sociais, dos influenciadores digitais, enfim, novos ambientes e personagens que complexificam ainda mais a relação de consumo. Precisas são as considerações realizadas por Jon D. Hanson e Douglas A. Kysar, destacando que, em virtude da racionalidade limitada do ser humano, há uma forte probabilidade de que aqueles que possuem o controle sobre a informação passem a utilizá-la de maneira a influenciar a tomada de decisão de terceiros, visando explorar as limitações cognitivas decorrentes das heurísticas e dos vieses com o intuito de obter vantagens econômicas11. Pensando no consumidor e sua inserção no atual mercado de consumo, tal forma de manipulação corresponderia à exploração da sua vulnerabilidade cognitiva12, violando preceitos importantes do Código de Defesa do Consumidor. Nesse contexto, os estudiosos da responsabilidade civil extracontratual podem se perguntar se o modelo tradicional do instituto, calcado na compensação pelos prejuízos, ainda é capaz de lidar com determinados comportamentos antijurídicos, especialmente aqueles que surgem no bojo deste novo mercado de consumo, fortemente influenciado pela internet, pelas redes sociais e pela disseminação muitas vezes sem controle da informação. No presente texto, a abordagem restringiu-se à heurística do reconhecimento e seu potencial causador de danos. Contudo, diversas outras heurísticas e vieses poderiam ter sido abordados13, o que demonstra a necessidade de reflexão a respeito da proteção do consumidor nesta quadra da história. A título de exemplo, pensemos na possibilidade de um influenciador digital se valer da heurística do reconhecimento para, com o seu prestígio, manipular os seus seguidores, orientando-os a optar por escolhas que não maximizarão o seu bem-estar, visando apenas a obtenção de vantagens ilícitas ou lucros indevidos, seja para o seu próprio proveito ou em conjunto com fornecedores. A mera compensação de eventuais prejuízos resolveria, efetivamente, o problema? No texto "A natureza dos preventive damages", Nelson Rosenvald destaca a importância de repensarmos os estudos da responsabilidade civil extracontratual, ampliando os seus horizontes para além da compensação pelos prejuízos causados, sobretudo se a intenção for "prevenir comportamentos antijurídicos, remover lucros ilícitos ou restituir despesas decorrentes de um fato contrário ao direito". Para tanto, o autor propõe uma "ressignificação do princípio da reparação integral", tratando a indenização preventiva como "remédio autônomo da responsabilidade civil"14. Em conclusão, para lidar com os dilemas da sociedade de consumo contemporânea, como é o caso da possível utilização abusiva da heurística do reconhecimento nas redes sociais, propomos um diálogo com o texto do professor Rosenvald. Para restituir o consumidor à situação anterior ao dano ou remover lucros indevidos daqueles que utilizam heurísticas e vieses de forma abusiva e não transparente, não basta pensarmos apenas na compensação pelos prejuízos causados. Enfrentar o problema também pressupõe encarar o comportamento ilícito visando combater ao máximo a sua ocorrência futura. __________ 1 TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases: Biases in judgments reveal some heuristics of thinking under uncertainty. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974, p. 1124. 2 KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Prospect theory: an analysis of decision under risk. Econometrica, v. 47, n. 2, p. 263-292, mar. 1979. 3 JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard. A behavioral approach to law and economics. Stanford Law Review, v. 50, p. 1471-1550, jul. 1998. 4 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. Reasoning the fast and frugal way: models of bounded rationality. Psychological review, v. 103, n. 4, p. 650-669, 1996, p. 663. 5 HOYER, Wayne D.; BROWN, Steven P. Effects of brand awareness on choice for a common, repeat-purchase product. Journal of consumer research, v. 17, n. 2, p. 141-148, 1990. 6 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. The recognition heuristic: A decade of research. Judgment and Decision Making, v. 6, n. 1, p. 100-121, 2011, p. 114. 7 OEUSOONTHORNWATTANA, Onvara; SHANKS, David R. I like what I know: Is recognition a non-compensatory determiner of consumer choice? Judgment and Decision Making, v. 5, n. 4, p. 310-325, 2010, p. 312-313. 8 Há um importante debate mais aprofundado a respeito do tema, que questiona se a heurística do reconhecimento é utilizada de maneira não compensatória ou compensatória no processo de tomada de decisão de consumo. Tal discussão, que demanda análise empírica, foge aos objetivos do presente texto. Em relação ao mencionado debate, veja-se: THOMA, Volker; WILLIAMS, Alwyn. The devil you know: the effect of brand recognition and product ratings on consumer choice. Judgment and Decision Making, v. 8, n. 1, p. 34-44, 2013. 9 BORTOLOTTI, Lisa; SULLIVAN-BISSETT, Ema. Costs and benefits of imperfect cognitions. Consciousness and Cognition, v. 33, p, 487-489, 2015, p. 488. 10 BOUDRY, Maarten; VLERICK, Michael; MCKAY, Ryan. Can evolution get us off the hook? Evaluating the ecological defence of human rationality. Consciousness and cognition, v. 33, p. 524-535, 2015, p. 530. 11 HANSON, Jon D.; KYSAR, Douglas A. Taking behavioralism seriously: the problem of market manipulation. New York University Law Review, v. 74, n. 3, p. 630-749, jun. 1999, p. 635. 12 OLIVEIRA, Amanda Flávio de; FERREIRA, Felipe Moreira dos Santos. Análise econômica do direito do consumidor em períodos de recessão: uma abordagem a partir da economia comportamental. Revista de Direito do Consumidor, v. 81, p. 13-38, jan./mar. 2012. 13 Cite-se o fenômeno do superendividamento e os estudos que abordam como agravantes do problema a utilização abusiva dos vieses do superotimismo e da ilusão do controle. Cf. KILBORN, Jason J. Behavioral economics, overindebtedness and comparative consumer bankruptcy: searching for causes and evaluating solutions. Emory Bankruptcy Developments Journal, v. 22, p. 13-46, abr. 2005. 14 ROSENVALD, Nelson. A natureza dos preventive damages. Migalhas, 18 abr. 2022. Disponível aqui.
Responsabilidade civil No texto permanente da Constituição Federal de 1988, há o emprego da palavra responsabilidade em quarenta e uma oportunidades, observando-se, por exemplo, a) a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e aos direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII), b) os crimes de responsabilidade (arts. 29, § 3º, 50, § 2º, 52, I e II, 85), c) a responsabilidade criminal dos infratores (art. 58, § 3º) e d) o grau de responsabilidade dos cargos componentes de uma carreira (art. 39, §1º, I). Por sua vez, o termo responsabilidade civil é utilizado literalmente nas seguintes situações: a) competência da União para explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer natureza, observando a responsabilidade civil por danos nucleares independentemente da existência culpa (art. 21, XXIII, 'd'), b) encaminhamento da apuração e das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos casos cabíveis, ao Ministério Público para que, além da responsabilidade criminal, promova a responsabilidade civil dos infratores (art. 58, § 3º), c) caráter alimentar do precatório originário de indenização por morte ou invalidez, fundada na responsabilidade civil (art. 100, § 1º), e d) responsabilidade civil dos delegatários extrajudiciais dos serviços notariais e registrais, a qual é regulamentada nos termos da lei (art. 236, § 1º). Também existe o comando constitucional de que as "pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa", segundo o artigo 37, § 6º, CF/88. Essas cinco previsões constitucionais, que relacionam a responsabilidade civil com competências estatais e temas de direito público, confirmam a importância desse instituto no Estado Constitucional brasileiro. A adequada interpretação e a correta incidência desses dispositivos produzem importantes discussões jurídicas. Vejamos. O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a COVID-19, no Senado Federal, apresentou vinte e seis indiciamentos, versando o último acerca da responsabilidade civil. Neste item, a CPI cientifica o Ministério Público Federal de "atos de todos aqueles que, por qualquer meio, promoveram de forma sistemática a difusão do tratamento precoce e da imunidade de rebanho por contaminação natural", apontando agentes "para possível condenação a reparação de dano moral coletivo à sociedade brasileira"1. De outro lado, membros da CPI da COVID-19, no Senado Federal, atualmente criticam a atuação da Procuradoria Geral da República sobre as conclusões do relatório. Em relação à responsabilidade civil dos notários e dos registradores, o Supremo Tribunal Federal fixou o tema 777 de repercussão geral em Recurso Extraordinário, determinando que "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. Como as atividades notariais e registrais são serviços públicos delegados que devem "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos", de acordo com o artigo 1º, lei Federal 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), a indenização por eventuais danos causados aos usuários e aos terceiros ganha destaque. Apesar dos sólidos argumentos do voto do Ministro Relator no Recurso Extraordinário nº. 842.846, parece-nos que os fundamentos do voto vencido do Ministro Luís Roberto Barroso deveriam ter prevalecido, visto que a responsabilidade civil dos notários e registradores titulares não é tratada pelo artigo 37, § 6º, e sim pelo artigo 236, § 1º, CF/88. Dessa forma, o artigo 22 da lei Federal 8.935/1994 estabeleceu a responsabilidade subjetiva, não significando, "necessariamente, transferir um ônus insuportável para o demandante, porque considero que o juiz pode perfeitamente aplicar o art. 373, § 1º, do novo Código de Processo Civil - nosso Código Fux"3.  Eleições, responsabilidade gerencial e Constituição A responsabilização dos governos, dos servidores públicos e das pessoas físicas e jurídicas que interagem com o Estado é da essência do Estado Democrático de Direito, o qual é fixado no art. 1º, caput, Constituição Federal de 1988 (CF/88). As eleições livres, periódicas e competitivas, nos termos do artigo 60, § 4º, II, CF/88, que ocorrerão em 2022, possuem diversas funções sociais e jurídicas, porém a responsabilização política é elemento central. A literatura especializada descreve esse fenômeno como accountability eleitoral, sendo um instrumento necessário para a concretização da democracia constitucional e dos direitos fundamentais4. Nesse sentido, partidos e candidatos são escrutinados à luz das atividades realizadas, dos resultados obtidos no exercício de funções e cargos públicos e das propostas apresentadas, podendo ser premiados com os votos dos eleitores ou sancionados (responsabilizados) com a ausência de votação. Interessante registrar que uma tradução comum da palavra accountability é responsabilização ou responsividade. As responsabilidades civil, criminal e administrativa disciplinar dos agentes públicos, assim como as eleições, são relevantes no Estado Constitucional, porém são insuficientes para a efetivação do direito fundamental à boa administração pública. Nesse contexto, o direito administrativo europeu continental travou debate, pelo menos desde a década de sessenta do século passado, sobre a necessidade de a administração pública obter resultados. Assim, três questões principais surgem: a) os objetivos constitucionais permanentes informam a estruturação da administração pública e a própria atuação de governos eleitos, b) a construção da correta relação entre administração pública e governos eleitos e c) a responsabilidade gerencial. O constitucionalismo social prevê objetivos a serem implementados, consistindo em finalidades da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, de acordo com o artigo 3º, CF/88. Os governos eleitos possuem liberdade parcial de conformar a atuação da administração pública, buscando concretizar os compromissos eleitorais. Por sua vez, as finalidades e as metas constitucionais do Estado inexoravelmente necessitam ser efetivadas por todos os governos. Dessa maneira, a competência constitucional do Presidente da República de exercer a direção da administração federal (art. 84, II, CF/88) não permite que o Chefe do Executivo estabeleça diretrizes, ainda que sufragadas eleitoralmente, contrárias aos objetivos e aos valores constitucionais. De outra banda, as relações entre governos eleitos e administração pública precisa ser calibrada. De um lado, a administração pública permanece e os governos passam, não sendo eficiente e produtiva uma completa alteração dos procedimentos da administração pública com a mudança dos governantes. Também, a administração pública deve ser permeada e informada pelos programas políticos sufragados democraticamente. Considerando a) o equilíbrio entre interesses e funções dos governos e dos membros da administração pública e b) o compromisso por resultados, cria-se a responsabilidade gerencial. Na Constituição Federal brasileira, essa modalidade específica de responsabilidade possui os contornos traçados no artigo 37, § 8º, caput: "A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade". Trata-se de nítido mecanismo de contratualização da administração pública. A lei Federal 13.934/2019 regulamentou o artigo 37, § 8º, fixando, no artigo 2º, que o contrato de desempenho tem por objeto "o estabelecimento de metas de desempenho do supervisionado, com os respectivos prazos de execução e indicadores de qualidade, tendo como contrapartida a concessão de flexibilidades ou autonomias especiais". Conforme escrevemos outrora e dialogando com o ordenamento jurídico italiano: Para além da possível aplicação de mais de uma forma de responsabilização por um mesmo fato, existem, no entanto, semelhanças da responsabilidade gerencial especialmente com a responsabilidade civil por descumprimento contratual e com a responsabilidade disciplinar. No  que  respeita  aos  pontos  de  contato  com  a  responsabilidade  contratual, observa-se  que  também  a  responsabilidade  gerencial  possui  uma  base  ou  uma estrutura contratual, pois pressupõe a existência de uma relação obrigacional entre órgão de orientação política e órgão de gestão administrativa. Apesar de os princípios que regem  e  disciplinam  a  responsabilidade  gerencial,  assim  como  os  objetivos prosseguidos, serem de caráter público, há o descumprimento (intencional ou por culpa) de obrigações de interesse público que decorrem dos deveres do cargo de gestão (gerencial)5. A doutrina italiana demonstra que o desenvolvimento dogmático da responsabilidade gerencial, a qual é focada na obtenção de metas pela administração pública, em muito se beneficia das reflexões acerca da responsabilidade civil6. __________ 1 SENADO FEDERAL. Relatório Final da CPI da COVID-19. Aprovado pela Comissão em 26 de outubro de 2021. 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº. 842.846 - Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 27.02.2019. 3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário nº. 842.846 - Santa Catarina, julgado em 27.02.2019, páginas 80 e 81. 4 Sobre o tema, ROBL FILHO, Ilton Norberto. Conselho Nacional de Justiça: Estado Democrático de Direito e Accountability. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 108-116. 5 CELONE, Cristiano; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A Garantia Constitucional da -Responsabilidade Gerencial-: Responsabilidade por Resultados dos Dirigentes Públicos nos Sistemas Brasileiro e Italiano e as Relações entre Órgãos Políticos e Administrativos. REVISTA JURÍDICA DA PRESIDÊNCIA, v. 21, p. 471, 2020. 6 CELONE, Cristiano. La Responsabilità Dirigenziale tra Stato ed Enti Locali. Torino: Napoli, 2018, p. 93-140.
Acerca da prescrição, Atalá Correia adverte que "é necessário saber em que medida o legislador pode estipular os prazos para as situações jurídicas e, além disso, é preciso definir se o julgador pode corrigir e em que extensão as soluções injustas que daí considere advindas"1. O Código Civil fixou que (i) "a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor" (CC, art. 205) e (ii) a pretensão de reparação civil prescreve em três anos (CC, art. 206, §3º, inc. V). Tais regras representaram acentuada redução dos prazos prescricionais: o art. 177 do revogado CC/16 previa um prazo de 20 anos para essas hipóteses! Este artigo revisitará os argumentos utilizados pelo STJ a respeito do sentido e alcance da expressão "reparação civil", contida no inc. V do §3º do art. 206 do CC. O STJ entendeu por restringir essa expressão à responsabilidade civil extracontratual. Assim, a prescrição no caso de responsabilidade civil contratual ficou em 10 anos (EREsp 1.280.825/RJ, j. 27/6/18). Antes dessa definição, as turmas do STJ haviam oscilado no tema. Por um lado, havia precedentes indicando que "o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual" (CORRENTE UM)2. Por exemplo, no REsp 1.281.594/SP, 3ª Turma, j. 22/11/16, o relator Min. Bellizze mostrou-se preocupado com a segurança, a previsibilidade e a uniformidade de tratamento dos prazos prescricionais, nos seguintes termos: "foi abordada a relevância da unificação dos prazos prescricionais, sobretudo em torno da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa, visando a garantir, nas relações jurídicas contemporâneas, maior segurança, previsibilidade e uniformidade de tratamento, se levadas em consideração pretensões que trazem em si similaridade de conteúdo e objeto, mas que dão causa a ações com as mais variadas nomenclaturas." Ademais, o ministro chama atenção para a importância da coerência lógica do sistema jurídico, asseverando que é "importante perceber que a sistemática adotada pelo Código Civil de 2002 (...) foi a de redução dos prazos prescricionais, visando sobretudo a garantir a segurança e a estabilização das relações jurídicas em lapso temporal mais condizente com a dinâmica natural das situações contemporâneas. Seguindo essa linha de raciocínio, não parece coerente com a lógica estabelecida pelo Código Civil de 2002 deixar prevalecer, como se regra fosse, o prazo prescricional decenal (art. 205), de caráter tão alongado, para as reparações civis decorrentes de contrato, e somente entender aplicável o lapso temporal trienal para a parte veicular judicialmente as pretensões de reparação civil no âmbito extracontratual ou de enriquecimento sem causa (art. 206, § 3º, IV e V)." Para evitar incongruências na sistemática que envolve relações privadas, é feita interessante comparação com o prazo prescricional quinquenal estabelecido pelo CDC que regula relações em que uma das partes é vulnerável, in verbis: "É de se notar, ademais, que nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor, editado no idos de 1990 - o qual tem como objetivo maior a tutela dos direitos de vulneráveis postos no mercado de consumo, primando, assim, pela assimetria inerente às relações jurídicas estabelecidas entre o consumidor e o fornecedor -, concede tanta elasticidade ao prazo prescricional para que o interessado busque sua pretensão de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, que, ao final, também é derivada de relação contratual. O art. 27 estabelece o lapso de cinco anos para o ajuizamento de demanda fundada em acidente de consumo, o qual é exatamente a metade do prazo previsto no art. 205 do Código Civil de 2002. Então, por que razão o Código Civil de 2002 - editado mais de uma década após o CDC - que trouxe a tônica de prazos prescricionais reduzidos e que, em regra, regula relações jurídicas em que há paridade entre os sujeitos, admitiria interpretação no sentido de fazer preponderar o prazo prescricional de dez anos para reparação de danos atinentes a contratos que nem sequer envolvem parte vulnerável?" Por outro lado, havia precedentes no sentido de que o prazo prescricional de 3 anos só se aplica a pretensões que veiculem reparações decorrentes da prática de ato ilícito absoluto (responsabilidade extracontratual); ao passo que as pretensões decorrentes de violações contratuais (caso não haja regra especial) se submetem ao prazo decenal (CORRENTE DOIS). Ex.: REsp 1.280.825/RJ, 4ª Turma, j. 21/6/16 (sob a relatoria da Minª Maria Isabel Gallotti). Sob essa ótica, a pretensão para o cumprimento específico de uma obrigação prevista em uma relação contratual está sujeita ao prazo prescricional de 10 anos previsto no art. 205 do CC/02 (salvo regra especial no art. 206 do CC para o referido contrato). Seria incongruente que, caso o credor optasse por resolver o contrato e haver perdas e danos, tivesse o prazo de sua pretensão reparatória reduzido para três anos. Ora, se as perdas e danos podem ser exigidas pela frustração no implemento da obrigação contratual específica, é sintomática a constatação de que o prazo para reparação civil contratual não pode ser inferior ao prazo para o cumprimento específico da obrigação contratual. Assim, a expressão "reparação civil" estaria mais ligada à responsabilidade extracontratual3 e, por isso, o inc. V do §3º do art. 206 do CC/02 não alcançaria as pretensões fundadas em responsabilidade civil contratual. Contra esse argumento, o Min. Belizze, no REsp 1.281.594/SP, ao tratar das obrigações de fazer inadimplidas (nas quais o credor pode optar por exigir o cumprimento da obrigação ou a resolução do contrato, cabendo, em ambos os casos, indenização por perdas e danos, conforme dicção do art. 475 do CC/20024), ponderou que: "Nessas hipóteses, optando o credor pela resolução do contrato, com pleito de indenização por perdas e danos, a pretensão estará sujeita à regra prescricional trienal da reparação civil (art. 206, § 3º, V). Entretanto, ainda que escoado esse prazo, poderá exigir o credor o cumprimento da obrigação de fazer pelo devedor no prazo decenal do art. 205, o qual, mesmo assim, poderá ser convertido em reparação por perdas e danos, desde que verificada a impossibilidade de cumprimento da obrigação (nesse caso não estará prescrita a pretensão indenizatória porque ela só tem lugar em função da impossibilidade de cumprimento da obrigação, não mais se constituindo em faculdade do credor)." Em reforço, no EREsp 1.280.825/RJ, o Min. Cueva asseverou que: "Não há falar também em incongruência resultante do fato de serem distintos os prazos prescricionais da pretensão de adimplemento (art. 206, §º 5º, inciso I, do CC/2002 - de cinco anos) e de reparação civil decorrente do inadimplemento da obrigação contratual (art. 206, §3º, inciso I, do CC/2002 - de três anos). Tal distinção se justifica em virtude da própria complexidade negocial que tratativas com vistas ao adimplemento tardio costuma apresentar e que não se apresentam quando o credor opta por demandar em juízo, de imediato, a própria reparação dos prejuízos que eventualmente tenha suportado em virtude do inadimplemento contratual." De todo modo, no que tange à adequada sistematicidade que se espera do ordenamento jurídico, a Minª Gallotti, no REsp 1.280.825/RJ, afirmou: Reconheço, por fim, de lege ferenda, que seria imensamente conveniente a unificação dos prazos para a pretensão de reparação civil e ressarcimento de enriquecimento sem causa. Da mesma forma, associo-me à compreensão de que o atual prazo geral previsto pelo Código Civil no art. 205 não mais se revela compatível com a realidade social contemporânea, com a dinâmica das relações jurídicas e com a realidade de mercado hoje vigente, em que se urge pela rapidez e celeridade, sem se renunciar à segurança jurídica. Bem se percebe pelas correntes contrapostas acima indicadas que o esforço dos julgadores, de uma e outra divisão, foi tentar manter coerência ao sistema jurídico. Por repetidas vezes, os julgadores apelaram para a "coerência sistemática". Diante de tal cenário: indaga-se: a que corrente pertence a força do melhor argumento? Por maioria de votos, a Segunda Seção (EREsp 1.280.825/RJ) e a Corte Especial (EREsp 1.281.594/SP) firmaram-se a favor da segunda corrente: a que defende a distinção entre prazos prescricionais a depender do fundamento (contratual ou extracontratual) do dever de ressarcir. Nos EREsp 1.280.825/RJ, a Minª Nancy Andrighi, a qual anteriormente havia votado a favor da CORRENTE UM5, admitiu que "a distinção dos prazos comporta crítica, mas diz respeito somente a uma possível alteração legislativa". Todavia, mudou seu entendimento e conduziu a maioria no sentido de prestigiar a CORRENTE DOIS. Para ela, "do ponto de vista pragmático, também se mostra adequada a distinção dos prazos. Em contratos mais duradouros, sempre é viável e mais provável que as partes se componham de alguma maneira, de forma a evitar longas e dispendiosas disputas judiciais, o que é improvável de ocorrer na responsabilidade extracontratual."6 Segundo Chaïm Perelman7, o direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência: (i) uma de ordem sistemática - a elaboração de uma ordem jurídica coerente; (ii) a outra, de ordem pragmática - a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque em conformidade ao que lhe parece justo e razoável. O enfrentamento do tema referente aos prazos prescricionais nas ações que envolvem responsabilidade civil (contratual e extracontratual) bem mostra o quão delicado e complexo é o esforço de se criar uma ordem jurídica coerente. Respondendo à pergunta deste artigo quanto a que corrente pertence a força do melhor argumento, entendemos que melhor teria sido que os votos majoritários tivessem levado em consideração comparações entre o prazo prescricional trienal do art. 27 do CDC e prazo decenal do art. 205 do CC e concluído pela aplicação do prazo prescricional de três anos para ambos os casos de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual). Cabe ao legislador ou à jurisprudência futuramente revisitar o tema. ---------- 1 CORREIA, Atalá. Prescrição e Decadência: entre passado e futuro. São Paulo: Universidade de São Paulo [Tese de Doutorado], 2020, p. 91. 2 A propósito, em termos doutrinários, nesse mesmo sentido, quando da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 9, 10 e 11 de novembro de 2011, foi aprovado o Enunciado nº 419. 3 É interessante notar que a expressão "reparação civil" aparece em três oportunidades no CC/2002 (art. 206, §3º, inc. V; art. 932 e art. 1.510-E, parágrafo único). No parágrafo único do art. 1.510-E do CC/2002, pode-se perceber que o legislador, quando trata do direito de laje, incluiu, na previsão de "reparação civil" contra o culpado ruína da construção-base, tanto hipóteses de responsabilidade contratual quanto extracontratual. 4 CC/2002, art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 5 REsp 1.281.594/SP. 6 Com relação a esse argumento, entendemos, em alinhamento com a doutrina de Atalá CORREIA (2020, p. 221), que: "O ideal é que haja um prazo uniforme para pretensões contratuais, sejam elas reparatórias ou não. Entretanto, não parece que esta situação seja mais incongruente do que atribuir à pretensão contratual de reparação prazo bastante superior àquele visto para as pretensões aquilianas. Dentre esses dois casos, se há um deles que merece prazo mais largo, trata-se da pretensão de responsabilidade extracontratual, pois o lesado, muitas vezes, deve diligenciar para descobrir o causador do dano. Na responsabilidade contratual, como é evidente, já se sabem, de antemão, os dados da contraparte e não é justo que essa situação seja premiada com prazo tão amplo quanto o decenal." 7 PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: nova retórica; tradução Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 238.
O crescente número de casos de estelionato no Brasil e no mundo chama a atenção. Mais de 5 milhões de brasileiros foram vítimas de algum de tipo de golpe só no ano passado e, especificamente sobre o estelionato afetivo, houve um aumento de quase 70% de casos, segundo dados da Polícia Civil1. Os dados são ainda incipientes, haja vista que grande parte das vítimas deste tipo de golpe se sentem constrangidas de denunciar, seja pela exposição de sua intimidade, seja pelo abalo psicológico ocasionado pela humilhação de ter sido vítima em virtude do amor. Tal aspecto demonstra que há muitas vítimas que preferem suportar o prejuízo financeiro e emocional a reviver o trauma. A referida situação não é uma exclusividade brasileira2, a fraude ocorre em todo mundo e ficou evidenciada pelo famoso documentário "O Golpista do Tinder", lançado em fevereiro deste ano e que já conquistou a marca de documentário mais assistido na Netflix em todos os tempos. Diante desse cenário, no qual o afeto vem sendo utilizado em larga escala para vitimizar pessoas, surge questionar se a responsabilidade civil pode ser aplicada aos casos de Estelionato Sentimental e, em caso afirmativo, quais seriam seus pressupostos. Antes, no entanto, é preciso esclarecer que a terminologia estelionato advém do tipo previsto no art. 171 do Código Penal, no qual, "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento" é crime. Não há nenhuma referência no tipo penal ao aspecto afetivo para configuração do crime, mas a jurisprudência entende que o meio fraudulento empregado pode ser o afeto. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que o estelionato é um crime de forma livre, que pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente e, na hipótese de estelionato sentimental, o ardil utilizado é o próprio relacionamento afetivo construído com a vítima, concluindo que "merece maior reprovação a conduta do paciente de se valer do relacionamento íntimo que possuía com a vítima para a prática do delito."3 A definição do estelionato prevista no Código Penal vem sendo utilizada para fundamentar pedidos de responsabilidade civil por estelionato afetivo, pois facilita a compreensão da configuração do comportamento ardiloso praticado pelo agente e que deve ser suficiente e proporcional para a consecução dos fins almejados de obter vantagem financeira, através de um estímulo irresistível provocado na vítima, que acaba por transmitir o próprio patrimônio para o agente. Cumpre distinguir, nesse momento, que o ato de disposição patrimonial em um contexto afetivo não pode, por si só, ser considerado como estelionato sentimental, razão pela qual é preciso delimitar seu conceito e alcance. Outrossim, o estelionato sentimental é diferente de empréstimos ou doações que podem ocorrer em uma relação afetiva como forma de apoio ou incentivo, visto que no estelionato afetivo a transmissão patrimonial não se dá por mera liberalidade, mas ocorre mediante um vício de consentimento. Dessa forma, o entendimento aqui defendido perpassa pela necessidade de enquadrar a conduta da vítima como erro, induzido pela manipulação e consequente imprecisão da realidade, decorrente dos meios ardilosos aplicados pelo agente, que seduz a vítima a agir sob falso pressuposto, transferindo seus bens de forma errônea, baseada em uma confiança construída mediante fraude. O erro da vítima, nesse aspecto, não se confunde com culpa, pois a exteriorização de sua vontade não se deu de forma livre. Assim, a vítima, ao celebrar negócios jurídicos com o agente, doando seu patrimônio ou emprestando dinheiro, o faz mediante vício que macula a validade dos contratos firmados. Ou seja, a pessoa manifesta sua vontade em negócios jurídicos que lhe são desfavoráveis, em razão de uma falsa percepção da realidade. Falsa percepção esta desencadeada pela pessoa com quem está se relacionando intimamente. A manifestação de vontade decorre, portanto, de dolo.  Se a constatação de que os negócios jurídicos praticados neste contexto decorreram de um vício de consentimento, tendo o dolo como sua causa, estes negócios são anuláveis, nos termos do art. 145 do Código Civil.   No entanto, assim como a responsabilidade penal, a anulação do negócio jurídico, por si só, também não é suficiente para compensar a vítima pelo estrago advindo do estelionato sentimental. Dessa forma, entende-se que a Responsabilidade Civil se apresenta como a melhor opção para a vítima, o que não significa dizer que ela não possa se utilizar dos outros institutos ou cumulá-los. Resta, portanto, investigar o problema central do tema que é a incidência da Responsabilidade Civil e seus pressupostos. A doutrina4 que se debruça sobre a temática geralmente enquadra o estelionato sentimental como ilícito subjetivo. Embora esteja correto o fundamento jurídico para responsabilização civil na modalidade do art. 186 do Código Civil, parece mais adequado pensar na imputação objetiva de responsabilidade por um abuso de confiança, estabelecido a partir do relacionamento afetivo e, nesse ponto, seria possível desvincular a vítima da necessidade de demonstrar culpa (ainda que ela exista). Assim, pela teoria do abuso do direito, com fulcro no art. 187 do Código Civil, tem-se como fundamento para a imputação de responsabilidade a violação da boa-fé objetiva, em virtude da ardilosa quebra da confiança e da transparência praticada pelo agente. Os relacionamentos afetivos têm como atributos a confiança estabelecida entre o casal, as expectativas comuns e os compromissos assumidos, atributos estes que são criados de forma ilegítima na vítima, com o intuito de obter vantagem econômica, em flagrante violação à boa-fé.  Segue-se, do exposto, que o estelionato sentimental se reveste de ilicitude subjetiva e objetiva, motivo pelo qual, para a vítima, a utilização da imputação objetiva por abuso de direito pode ser utilizada, ainda que se vislumbre a intenção do agente de causar o dano. A própria noção de dolo, enquanto vício de consentimento, está diretamente relacionada à violação da boa-fé, em virtude da manipulação ardilosa5, o que reforça o abuso de direito defendido. O enquadramento como abuso de direito, portanto, parece muito mais fácil e natural, desincumbindo a vítima da difícil tarefa de perquirir culpa. A discussão de culpa é sempre tormentosa, a doutrina há muito alerta sobre os percalços de se atribuir culpa nos relacionamentos familiares, por revolver situações que acabam por aumentar a extensão dos danos. Exatamente por isso, desde 2010, com o advento da Emenda Constitucional 66, foi extirpada a discussão de culpa nos processos de dissolução conjugal. Fato é que o estelionato sentimental quase sempre aparece em relações afetivas que ainda não se transformaram em união estável ou casamento, embora a possibilidade exista6. Ainda assim, nas relações de namoro ou envolvimento afetivo, revolver a culpa traz os mesmos malefícios apontados para os casos de união estável e casamento, motivo pelo qual opta-se por defender a responsabilização pela violação da boa-fé objetiva. Também tratando sobre a questão da culpa, chama a atenção a quantidade de comentários sobre a história real retratada no documentário O Golpista do Tinder, em que os expectadores passaram a questionar a conduta das vítimas, atribuindo a elas a responsabilidade por terem sido ludibriadas, em razão de ingenuidade ou interesse na condição financeira do golpista. A expressiva quantidade de comentários repudiando as mulheres que foram enganadas pelo golpista demonstra a perversa cultura ainda existente de culpar a vítima, especialmente mulheres sexualmente ou afetivamente vitimizadas, que acabam revitimizadas. O que se deve ter em mente é que a culpa não está no afeto que se sente, mas no engodo de quem finge amar para auferir vantagem econômica. Nesse contexto, resta ainda mais evidente a necessidade de afastar a culpa como critério de imputação de responsabilidade nesses casos, posto que não há fundamento para se questionar culpa ou fato exclusivo da vítima, pois, como foi delimitado, o estelionato sentimental decorre da manipulação praticada pelo agente em claro abuso da confiança da vítima. Portanto, é necessário compreender que qualquer um está sujeito a ser vítima de estelionato, seja ele sentimental ou não, pois, por mais esperto e prudente que possa se julgar, o fato de gostar de alguém romanticamente é inerente à condição humana. E, segundo a psicologia, amar é se tornar vulnerável. O problema surge quando a construção da confiança e credibilidade ocorre através de perfis falsos, histórias bem contadas que nunca existiram e promessas de amor que nunca serão cumpridas. Tais fatores são determinantes para que o golpe ocorra. Por mais cauteloso que se possa ser, amar alguém é entregar-se à vulnerabilidade. O que não pode ocorrer é a confusão entre vulnerabilidade e culpa. Seja de forma on-line ou em um tradicional relacionamento presencial, cuidados devem ser tomados, mas sob pena de se esvaziar o caráter afetivo de um relacionamento, a confiança deve estar presente7, em maior ou menor medida. Considerando tudo isso, reforça-se a noção de que criar expectativas, ajudar financeiramente ou receber presentes não são ações que, por si só, configuram um ato ilícito. Mas não é isso que ocorre no estelionato sentimental, já que este é um tipo de relacionamento abusivo e, como tal, configura-se o nexo de causalidade não pelo prejuízo financeiro decorrente do suporte mútuo e natural que surge de um relacionamento afetivo. O critério de imputação será um descumprimento ético, uma violação à boa-fé e às expectativas criadas em razão de uma falsa realidade. A produção de provas no processo de responsabilidade civil por estelionato afetivo deve ser construída, portanto, de forma a demonstrar os danos materiais, relacionando os prejuízos financeiros a uma manifestação de vontade viciada, que decorre da violação da boa-fé pela manipulação e quebra da confiança, sendo o induzimento ao erro a causa do prejuízo econômico. Quanto aos danos morais, entende-se que a constatação do estelionato sentimental, por sua natureza, invoca a noção de dano in re ipsa, seja porque há uma clara ofensa à dignidade humana, seja porque a violência patrimonial ou psicológica praticada se enquadra na Lei Maria da Penha, quando a vítima é mulher e, segundo o Superior Tribunal de Justiça, configura-se dano moral presumido nestas hipóteses8. Embora a referida lei não se aplique ao homem, entende-se que os fundamentos utilizados pelo STJ para a presunção do dano, também podem ser aproveitados para o homem vítima de estelionato sentimental. Assim, enfrentadas as problematizações sobre a incidência de responsabilidade civil, seus critérios de imputação e produção de provas, resta enfrentar a última problematização importante quanto ao estelionato sentimental, referente à possibilidade de responsabilização dos aplicativos de relacionamento em que a vítima e o agente iniciaram o relacionamento. É certo que não cabe às plataformas de relacionamento o dever de conferir a veracidade de todas as informações alimentadas pelos usuários, tampouco fiscalizar ou se responsabilizar pela conduta destes usuários fora da plataforma. Contudo, como é de consumo a relação que se estabelece entre os usuários e os aplicativos de relacionamento, a incidência do Código de Defesa do Consumidor atrai a teoria objetiva e, portanto, poderia se questionar o cabimento da reponsabilidade independentemente de culpa. Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro não adota a teoria objetiva pura, ou seja, admite-se excludentes de responsabilidade. Sendo assim, a reponsabilidade das plataformas de relacionamento pode ser excluída por fato exclusivo de terceiro, no caso, quem praticou o estelionato sentimental. Por outro lado, quando há notificação pelo usuário ou por terceiro sobre violação aos termos de uso, ou direitos de imagem, intimidade, ou ainda fraude, é dever da plataforma averiguar tais informações e proceder à remoção do perfil ou conteúdo falso, sob pena de responsabilidade. Caminhando para o fim, reforça-se a importância de pensar a reparação/compensação civil para as vítimas de estelionato sentimental de forma a evitar a revitimização, utilizando a teoria do abuso de direito. Se, para a vítima, o amor foi uma ficção transformada em pesadelo e para o estelionatário um negócio lucrativo, que a responsabilidade civil seja o despertar para uma nova realidade possível, mais ética, responsável e equilibrada. ---------- 1 MARQUES, David; LAGRECA, Amanda. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Os crimes patrimoniais no Brasil:  entre novas e velhas dinâmicas. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf.  2 Dados apresentados este ano pela Federal Trade Commission revelam perda de 547 milhões de dólares em estelionato afetivo no ano de 2021. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2022/02/ftc-data-show-romance-scams-hit-record-high-547-million-reported-lost-2021 3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no HC n. 577.861/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 17/6/2020. 4 DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; RABELO, Sofia Miranda. Responsabilidade Civil nas Relações de Afeto: Análise Crítica sobre o Estelionato Afetivo.  IN: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela (coord). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2021. 5 FERNÁNDEZ, Guillermo Ospina; ACOSTA, Eduardo Ospina. Teoría general del contrato y del negocio jurídico. 7ª ed., Bogotá, Editorial Temis, 2014. 6 Caso o estelionato afetivo ocorra no contexto de relações familiares, como o namoro ou união estável, além da aplicação das normas apresentadas nestes trabalho, incidirá a tutela estatal específica, como por exemplo, direito aos alimentos e regime de bens. 7 HONNETH, Axel. Direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015. 8 REsp n. 1.675.874/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018.
O procedimento do incidente de desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil constitui um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais. Traz maior segurança jurídica para sócios e empresários ao impor a estrita observância ao contraditório. E evita surpresa à parte, tumulto processual. Tumulto que, não raro, é observado em alguns processos. Se aplicada com razoabilidade, garantindo o devido processo legal e a ampla defesa, a técnica pode evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, ao trazer mecanismos para tornar ineficazes práticas ilícitas do devedor. A teoria, porém, só pode ser invocada se não estiver prescrito o crédito fraudado ou simulado. Como evidenciado por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pretende destruir o histórico princípio da separação patrimonial da sociedade e seus sócios, mas, contrariamente, servir como mola propulsora da funcionalização da pessoa jurídica, garantindo as suas atividades e coibindo a prática de fraudes e abusos através dela".1 Há um acórdão do STJ, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, que elucida o instituto de que aqui se trata com clareza solar: "A desconsideração da personalidade jurídica tem como finalidade a superação episódica da personalidade da pessoa jurídica, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelos débitos contraídos pela empresa" (AgInt na Pet n. 12.712/SP, Terceira Turma, julgado em 23/9/2019). A lei processual contém outra importante regra relativa à matéria, lastreada na possibilidade de que a desconsideração da pessoa jurídica se processe na forma "inversa", adentrando ao patrimônio da sociedade para pagamento de dívida pessoal do sócio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, aliás, já se manifestou nesse sentido: "À semelhança do que ocorre na hipótese de sucessão de empresas, em que a sucessora é incluída no processo para atuar como se fosse a própria parte sucedida, a pessoa jurídica atingida pela desconsideração inversa da personalidade jurídica passa a integrar a relação processual na condição de parte" (REsp n. 1.978.261/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022). Para Rolf Madaleno, a desconsideração inversa da personalidade jurídica só se afigura legítima quando se verifica que a sociedade "se tornou mera extensão da pessoa física do sócio". Trata-se, no entender do autor, de hipótese em que se verifica haver "abuso da personalidade física através do mau uso da pessoa jurídica".2 A observância do contraditório e da ampla defesa evitam decisões injustas e descabidas, como por exemplo, quando a pessoa jurídica não paga porque simplesmente não tem patrimônio. Ou então quando promoveu uma dissolução irregular perante a Junta Comercial, sem incorrer em fraude ou simulação. O STJ tem entendido que: "A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica" (AgInt no AREsp n. 1.797.130/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/6/2021). Segundo Fábio Ulhoa Coelho, casos como o acima enunciado demonstram a aplicação incorreta da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para o autor, "essa aplicação incorreta reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. Nela, adota-se o pressuposto de que o simples desatendimento de crédito titularizado perante uma sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta, seria suficiente para a imputação de responsabilidade aos sócios ou acionistas".3 Neste sentido, o STJ já afirmou que jurisprudência é pacífica no sentido de que "a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial" (AgInt no AREsp 2.021.508/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/4/2022). O STJ também entende que, se o sócio tiver apenas um único bem imóvel que sirva de morada, não tendo outros bens penhoráveis, a penhora não pode recair sobre esse bem de família: "a mera desconsideração da personalidade jurídica não tem o condão de afastar a impenhorabilidade do bem de família regularmente constituído, ressalvado o enquadramento nas hipóteses excepcionadas em lei" (AgInt no AREsp n. 935.235/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 1/6/2020). Decisão recente do tribunal diz também ser impossível que a desconsideração atinja o patrimônio do acionista minoritário: "A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica" (REsp n. 1.861.306/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/2/2021). Da mesma forma entende o Tribunal de Justiça de São Paulo: "Sócio minoritário com 1% (um por cento) do capital social e sem poderes de administração que não deve responder pessoalmente pela dívida da pessoa executada e, por isso, deve ser excluído do polo passivo da relação jurídica processual" (TJSP, Agravo de Instrumento 2024937-74.2022.8.26.0000, Relatora Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, julgado em 03/06/2022). A premissa é de que o sócio-administrador age com dolo ou culpa no ato abusivo, sendo que o sócio minoritário responde apenas excepcionalmente, ou seja, quando sua conduta omissiva ou comissiva contribuiu para a ocorrência do evento que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido vai o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Descabe a inclusão de sócio minoritário no polo passivo da execução, em razão da desconsideração da personalidade jurídica, quando não possui cargo de gestão, nem tampouco comprovado que tenha concorrido para a dissolução irregular da empresa executada" (Apelação Cível nº 70082719196, Décima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 05/03/2020). É importante destacar, porém, que a decisão judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente resolve uma questão processual, determinando que o sócio se torne parte executada, mas não implica sua condenação. Como destaquei em outro espaço, na companhia de Luiz Rodrigues Wambier e Regiane França Liblik,4 a desconsideração da personalidade jurídica, quando aplicada à luz das garantias fundamentais processuais, assume o valoroso papel de evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, tornando ineficazes as tentativas do devedor de fazer uso da empresa como escudo patrimonial. É preciso, contudo, como lá afirmamos, que haja prudência na aplicação da medida, que deve ser empregada em situações excepcionais e no contexto da ordem constitucional. __________ 1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 486. 2 MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 81-82. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 4. ed. em e-book baseada na 23. ed. impressa. V. 2, p. RB-2.7. 4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; LOBO, Arthur Mendes; LIBLIK, Regiane França. Tipologia das sociedades e a desconsideração da personalidade jurídica. Revista eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, a. 12, v. 19, n. 3, p. 523-542, set./dez. 2018.
A responsabilidade civil do Estado é disciplinada pelo art. 37, § 6º, da Constituição, nos seguintes termos: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Diante disso, a doutrina e a jurisprudência firmaram entendimento no sentido de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada na teoria do risco administrativo (Meirelles, 1982, p. 622-623; Cahali, 2007, p. 40; Di Pietro, 2006, p. 600). No entanto, o elemento subjetivo se faz presente na configuração do dever de indenizar, pois seu primeiro pressuposto é que o dano seja causado por algum agente estatal. Por via de consequência, embora a responsabilidade objetiva dispense prova da culpa, na maior parte dos casos é necessário analisar a conduta do agente para estabelecer o nexo de causalidade (Câmara, 2010, p. 87-90). Por fim, a demonstração da culpa do agente é requisito para a promoção da ação de regresso prevista no texto constitucional. O aspecto subjetivo da responsabilidade civil do Estado comparece de maneira incisiva nos casos de agressões e ofensas pessoais praticadas por agentes públicos, nos quais a vítima se sente pessoalmente ofendida e deseja, não apenas receber uma indenização paga pelo poder público, mas acima de tudo responsabilizar o funcionário que praticou a ofensa. Ocorre que a propositura da ação indenizatória diretamente contra o funcionário público traz alguns inconvenientes para a vítima, a começar porque fica obrigada a demonstrar a culpa do agente causador direto do dano. Fora isso, tratando-se de dano moral, o valor da indenização provavelmente será menor, uma vez que a condição econômica do agressor é um dos fatores considerados pelo juiz para fixação do montante indenizatório. Não bastasse, a vítima pode esbarrar na insolvência do agressor que, em muitos casos e até mesmo em consequência administrativa do fato lesivo, já se encontra desligado do serviço público. De outro lado, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria um dilema para a defesa do ente público, que precisa alegar e provar que o agente público agiu regularmente a fim de afastar sua responsabilidade. Porém, posteriormente, caso a ação seja julgada procedente, terá que valer-se de argumento contrário para obter o ressarcimento em uma futura e eventual ação de regresso. Por fim, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria embaraços para o Poder Judiciário no que tange à colheita da prova e definição das responsabilidades dentro de um mesmo processo em que se discute responsabilidade objetiva e subjetiva simultaneamente. Em razão disso, foi se construindo paulatinamente o entendimento de que o autor deve mover sua ação contra o poder público e este, posteriormente, caso seja vencido na ação, deve mover ação de regresso contra o agente causador do dano, mediante comprovação da culpa. Tema 940 de Repercussão Geral: disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente público Olhando para o processo evolutivo da responsabilidade civil em geral, observa-se uma tendência à objetivação, de modo que a teoria subjetiva tem aplicação restrita aos danos causados nos relacionamentos interindividuais, entre um causador e uma vítima, ao passo que a responsabilidade civil objetiva amplia seu alcance cada vez mais sobre os riscos das atividades desenvolvidas na vida em sociedade. Essa tendência também se faz presente na seara da responsabilidade civil do Estado, que parte do reconhecimento da responsabilidade pessoal dos empregados públicos por atos contrários à lei, passando pela fase da culpa administrativa no início do século XX até alcançar a teoria do risco de administrativo nos dias atuais (Cavalcanti, 1956, p. 272-286, Cahali, 2007, p. 20-22, Meirelles, 1982, 620; Di Pietro, 2006, p. 597). Neste percurso, também se observa uma mudança significativa do papel do agente público que, ao tempo do absolutismo, era considerado longa manus "del Rey" e, portanto, um representante do poder estatal, cujas ações se confundiam com as ações do Estado (Cavalcanti, 1956, p. 272-286). Nos dias atuais, procuramos nos distanciar da noção de agente público detentor de poder estatal, que age em nome do Estado e cuja vontade se confunde com a vontade soberana do Estado. Tendo em vista os princípios que regem a Administração Pública, particularmente o da legalidade e o da impessoalidade (CF, art. 37, caput), bem como o processo de modernização e de profissionalização dos serviços públicos, é mais correto a afirmar que os agentes públicos desempenham tarefas no âmbito das atividades públicas pelas quais o Estado responde objetivamente. Diante dessa tendência à objetivação, torna-se a cada dia mais claro que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são desempenhadas por meio de atos e condutas de seus agentes. Logo, mostra-se inadequado demandar contra os agentes públicos que não são responsáveis pelas atividades estatais, mas apenas executam tarefas no âmbito dessas atividades. Desse modo, o agente público só pode responder ao ente público ao qual se encontra vinculado, desde que fique demonstrado que cumpriu suas tarefas de modo inadequado, irregular ou ilegal. O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extraordinário 1.027.633/SP, no caso em que um funcionário público demandou a prefeita municipal por prática de assédio político. O juiz rejeitou a demanda por entender que a vítima deveria acionar o Município e não a prefeita, mas o Tribunal de Justiça reformou a sentença por entender que a vítima poderia optar entre processar o ente público por responsabilidade objetiva ou o agente que causou o dano por responsabilidade subjetiva. No julgamento do recurso, que teve reconhecida a repercussão geral, o Min. Marco Aurélio Mello, relator do processo, lembrou que a responsabilidade objetiva do Estado tem como base o art. 37, § 6º, da Constituição, ao passo que o agente público responde por dolo ou culpa, com base no art. 122 da Lei 8.112/1990, o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais. Desse modo, concluiu o Ministro que "Consoante o dispositivo, a responsabilidade do Estado ocorre perante a vítima, fundamentando-se nos riscos atrelados às atividades que desempenha e na exigência de legalidade do ato administrativo. A responsabilidade subjetiva do servidor é em relação à Administração Pública, de forma regressiva"1. Na esteira deste entendimento, o Min. Alexandre de Moraes assinalou que a responsabilidade civil objetiva prevista na Constituição se dirige exclusivamente às pessoas jurídicas de direito público e às empresas prestadoras de serviços públicos, sem possibilidade de aplicação aos agentes públicos, os quais respondem subjetiva e regressivamente perante o Estado. Como resultado do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal fixou a seguinte tese: A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Com o julgamento do Tema 940, está claro que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada no risco da atividade administrativa. A vítima fica isenta de comprovar a culpa do agente causador do dano, mas está proibida de acionar diretamente o agente, que só pode ser demandado pelo ente público em ação de regresso. Conforme preconizado por Hely Lopes Meirelles, há uma clara disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente. O Estado indeniza a vítima e depois busca o ressarcimento contra o agente, em ação de regresso (Meirelles, 2007, p. 659-660). O julgamento do caso Lula vs Dellagnol pelo STJ O caso Lula vs Dellagnol é emblemático da disjunção estabelecida pelo Tema 940 entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva dos agentes públicos. O procurador da República Delton Dellagnol, coordenador da denominada Operação Lava-jato, convocou a imprensa no dia 14/09/2016 para expor a acusação formulada contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, utilizando, para tanto, um arquivo de PowerPoint. Diante disso, o ex-presidente moveu ação indenizatória de danos morais contra o procurador da República, alegando que aquela exposição ofendeu sua imagem, seu nome e sua reputação frente à opinião pública. O juiz de primeiro grau afastou a preliminar de ilegitimidade passiva e julgou improcedente a ação ao entendimento de que os fatos da causa não constituem violação aos direitos da personalidade do autor. O Tribunal de Justiça de São Paulo por entender que a divulgação da denúncia por meio de PowerPoint não viola os direitos da personalidade do acusado. Ao conhecer do Recurso Especial 1.842.613, interposto pelo autor, o Superior Tribunal de Justiça decidiu reformar as decisões de primeiro e segundo graus, por maioria de votos, julgando procedente a ação e condenando o réu a pagar R$ 75.000,00 ao autor. No que diz respeito à legitimidade passiva, a Corte Superior argumentou que: Nas hipóteses em que a conduta da qual deriva o dano consistir no exercício das funções públicas regulares, do agir funcional, (...) a demanda, necessariamente, será ajuizada em face do Estado, que, em ação regressiva, poderá acionar o agente público. Por outro lado, (...) nas situações em que o dano (...) é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se como "irregular" conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, (...) a ação com desígnio indenizatório, (...) pode ser ajuizada em face do agente. Isso porque, não pertencendo o atuar abusivo ao rol dos atos funcionais, não se reconhece no ordenamento jurídico fundamento capaz de legitimar a inclusão do ente estatal na demanda. Como visto, o Superior Tribunal de Justiça adotou a regularidade ou irregularidade da conduta do agente como critério para estabelecer a legitimidade passiva na ação indenizatória: se a conduta do agente público for legítima e regular, o ente público deve reparar o dano causado; se a conduta for irregular e abusiva, o próprio agente deve ser responsabilizado. Antes de tudo, é preciso adotar como premissa que, no caso analisado, o procurador da República agiu no desempenho de suas atribuições funcionais, inclusive atendendo às orientações regulamentares emanadas de seus superiores hierárquicos. Por outro lado, o art. 37, § 6º, da Constituição diz que o poder público é responsável pelos danos causados por seus agentes, sem fazer distinção sobre a regularidade ou irregularidade da conduta. Desse modo, a regularidade ou irregularidade da conduta só tem relevância, posteriormente, para efeito de ressarcimento do erário em ação regressiva. Por essa razão, a Min. Isabel Gallotti deixou registrado em seu voto vencido que a ilicitude não é pressuposto da responsabilidade civil do Estado, podendo haver ato administrativo regular que acarreta dano e, por conseguinte, o dever de indenizar, em razão dos riscos inerentes à atividade estatal. É preciso ter presente que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são executadas por seus agentes. O agente público só pode ser demandado diretamente se a conduta lesiva for praticada fora do âmbito das atribuições funcionais e, portanto, fora do âmbito das atividades estatais, em que sequer se pode cogitar a responsabilidade estatal. É o caso, por exemplo, do agente policial que disparou e feriu outra pessoa, mas a investigação apurou que se tratou de crime passional que se deu por questões familiares2. De todo modo, a decisão adotada pelo STJ, no caso Lula vs Dellagnol está em desacordo com o Tema 940 de Repercussão Geral, julgado pelo STF no RE 1.027.633/SP. Tratando-se de fato supostamente lesivo praticado por agente público na execução das atividades estatais, a vítima deve mover a ação de indenização contra a pessoa jurídica de direito ente público à qual o agente se encontra vinculado, devendo demonstrar apenas o dano e o nexo de causalidade com a atividade estatal. Posteriormente, em caso de condenação, o ente público pode mover ação de regresso contra o agente para se ressarcir do prejuízo, mediante demonstração de que o agente procedeu com culpa. Palavras finais Em síntese conclusiva, à luz do art. 37, § 6º, da Constituição, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, com base no risco da atividade, cabendo ação de regresso contra o agente que causou dano a terceiro, no desempenho de suas atribuições, mediante demonstração da culpa. A discussão sobre a possibilidade de mover ação indenizatória diretamente contra o agente público, isoladamente ou em conjunto com o ente público a que pertence, foi pacificada com o julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Contrariando essa diretriz, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a legitimidade passiva do agente público quando do julgamento do caso Lula vs Dellagnol, ao argumento de que os atos lesivos foram irregulares, no sentido de que não se enquadram no rol das atribuições institucionais do servidor público. Caso o tema seja levado à Suprema Corte, é bem provável que o julgamento do STJ seja modificado a fim de que prevaleça a tese fixada quando do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral. Referências Cahali, Y. S. (2007). Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. Câmara, J. A. (2010). A relevância da culpa na responsabilidade extracontratual do Estado. In: Guerra, A. D. M., Pires, L. M. F., Benacchio, M. (coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos (p. 79-91). São Paulo: Quartier Latin. Cavalcanti, A. (1956). Responsabilidade civil do Estado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi. Di Pietro, M. S. Z. (2006). Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas. Meireles, H. L. (1982). Direito administrativo brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. __________ 1 Trecho do acórdão. 2 TJSP - 12ª Câm. Dir. Público. Apelação Cível 0236728-47.2009.8.26.0000 (994.09.236728-9). Rel. Desemb. EDSON FERREIRA. J. 10/10/2010, v.u.
De tempos em tempos, debates jurídicos versam com maior ênfase sobre a teoria da perda de uma chance em razão de julgados proferidos pelo STJ. Isso revela a especial relação desta teoria com decisões judiciais, pois a sua criação ocorreu na jurisprudência, é nela que teve o seu maior desenvolvimento e é por ela que não é esquecida. Perante a corte especial do STJ, encontram-se os casos julgados de grande repercussão no país, como a responsabilidade de uma emissora pela equivocada elaboração de uma pergunta em um jogo de acertos, o que impossibilitou o jogador de ganhar o prêmio, uma vez que não haveria resposta correta1. Também, a aplicação da teoria na responsabilidade médica, especificamente, ao considerar que a impossibilidade de sobrevida do paciente é considerada uma chance merecedora de reparação (dano chance)2. Ainda, a decisão proferida pela 3ª turma do STJ, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial 1.877.375/RS3, sobre a responsabilidade do advogado e a conduta culposa diante da não defesa dos interesses do cliente. E é a partir deste julgamento que se passa a analisar a aplicação da teoria da perda de uma chance na responsabilidade advocatícia neste breve estudo. Para tanto, avalia-se a responsabilização na atuação advocatícia por si só. Isto porque, trata-se de uma responsabilidade negocial, decorrente de uma contratação entre as partes, por meio da qual, o advogado obriga-se a utilizar os meios disponíveis e acessíveis para alcançar o resultado. Portanto, além da avaliação da culpa, tem-se a aplicação da divisão obrigacional consagrada por René Demogue, entre obrigação de resultado e de meio, para o que se aplica a última4. A partir destas premissas, mesmo quando caracterizada uma conduta culposa, pela ação ou omissão, nem sempre é possível responsabilizar um advogado por não obter êxito em uma demanda judicial ou defesa dos interesses dos seus clientes, uma vez que não está no seu escopo obrigacional o resultado. A sua obrigação tem como foco a utilização de todos os meios possíveis para que ele fosse alcançado. Por isso, a responsabilização ocorrerá após a avaliação da conduta do profissional, a fim de avaliar a eventual culpa e, também, se os meios disponíveis, existentes e acessíveis à época foram utilizados. Portanto, não há uma obrigação em relação ao resultado a ser obtido ou pretendido pelo cliente, mas sim se o advogado atuou de forma diligente, prudente e a partir de todos as possíveis formas disponíveis, à época, de defesa dos interesses do cliente. Ademais, um fator que não pode ser ignorado é que, assim como a atuação médica, há concausas que poderão afetar o resultado. Portanto, mesmo que tenham sido adotadas todas as condutas possíveis para melhor alcançar o resultado, fatores externos, como posicionamento jurisprudencial ou informações e documentos da outra parte, poderão alterar o pretenso sucesso. Essas concausas não podem ser ignoradas. Porque, mesmo o mais diligente advogado poderá não alcançar o resultado desejado pelo seu cliente e, por essa razão, não é necessariamente a perda de um prazo ou a não utilização adequada da melhor técnica que culminará no prejuízo ou frustração. Isso acarreta a exclusão do nexo causal entre a conduta e o resultado (dano final). Mas, não significa, por si só, que não haverá responsabilização. É preciso avaliar se até o momento da conduta culposa havia probabilidades de ter um resultado favorável ou não. É nestas situações que se aplica a teoria da perda de uma chance, quando há um desencadeamento de eventos que ao final resultariam em uma vantagem esperada, mas que não ocorreu em virtude de uma interrupção indevida, resultante de um ato antijurídico. Não há nexo causal entre a antijuridicidade e o resultado obtido ao final (dano final), mas há causalidade com a probabilidade perdida (dano chance)5. Por isso, a sua nomenclatura "perda de uma chance", uma vez que se entende que há uma chance que foi perdida em virtude da conduta de outrem. Nas decisões judiciais, os casos mais comuns para aplicação desta teoria são atuação de profissionais liberais, que se obrigam com os meios adotados e não com os resultados a serem obtidos. Também, porque nas atuações de médicos ou advogados, há concausas que poderão alterar a ocorrência do resultado e, portanto, ainda que todas as possíveis e disponíveis condutas fossem adotadas, a vantagem esperada pode não ocorrer. Por isso, ausente o nexo causal entre o dano final, mas presente para com o dano chance, uma vez que demonstrada "a probabilidade de que tais eventos viriam a ocorrer, como também que se evidencie que eles ainda são conseqüência[s] adequada[s] do fato antijurídico"6. Esta é a base da teoria da perda de uma chance, cuja aplicação já é consagrada na jurisprudência brasileira, "desde que efetivamente comprovadas a probabilidade de ser alcançada a vantagem esperada, acaso o desencadeamento natural dos fatos não tivesse sido interrompido"7. A interrupção indevida do desencadeamento de fatos decorrente da inadequada conduta do advogado configura o pressuposto culpa, por sua vez, a probabilidade esperada quando desta indevida interrupção importará no dano a ser reparado (dano chance). Há momentos da atuação advocatícia que a probabilidade será mais difícil de ser comprovada, por exemplo, quando analisadas as probabilidades de êxito antes da propositura da demanda, porque ainda não foi formado o contraditório, pois não houve sequer a citação da outra parte para apresentação de contestação. A rigor, a decisão judicial depende de fatores que acontecem no curso do processo para ser favorável ou não a um argumento apresentado8, o que impediria a certeza na probabilidade9. Contudo, não é possível apenas afastar toda e qualquer probabilidade de êxito quando ainda não formado o contraditório. Também, não se pode presumir a total aleatoriedade nas decisões judiciais. Há temas que permitem analisar a probabilidade ou não de serem acolhidos de acordo com provas existentes à época e posicionamentos já consagrados pelos Tribunais. Não se pode olvidar que há um objetivo atual de uniformização da jurisprudência para maior segurança jurídica10, desta maneira, em demandas que não sejam inéditas não é possível dizer que haveria uma aleatoriedade tamanha que impossibilitaria a análise de probabilidades do resultado. Pelo contrário, nestes casos, há a possibilidade de se avaliar probabilidades diante dos fatos e provas existentes e as probabilidades que decorreriam da sua apresentação em juízo. O mesmo raciocínio pode ser aplicado quando da não interposição de um recurso, que a rigor estaria dentro do escopo de uma conduta culposa pela falta de cuidado pela omissão (negligência) e não utilização dos meios disponíveis (a possibilidade de interposição de um recurso). Contudo, se não há certeza de que a decisão seria revertida não há que se falar em reparação pelo prejuízo final. Deverá ser analisada qual a probabilidade de o recurso ter êxito e essa probabilidade que deverá ser reparada. Se não há certeza do provimento, também não há certeza do improvimento11. Interpretação que também se aplica quando da não apresentação de uma defesa ou se apresentada, quando inadequada. Neste caso, além da preclusão de análise dos argumentos futuramente, haverá a possibilidade de verificação das probabilidades de êxito em afastar o pedido formulado, acaso tivessem sido apresentados os argumentos adequados ou a própria defesa. Exatamente neste sentido é o julgado proferido pelo STJ, no acórdão de lavra da relatora Ministra Nancy Andrighi. Verificou-se a antijuridicidade, ante a omissão dos advogados que apesar de devidamente contratados não realizaram qualquer atuação em defesa do seu cliente. A partir desta ausência de defesa ou manifestações em nome do cliente, apurou-se qual seria a probabilidade de sucesso se a atuação tivesse ocorrido diligentemente12. Constatada a existência dessa probabilidade, configurada a teoria da perda de uma chance. De um lado há a indevida conduta do advogado, que apesar de devidamente contratado, quedou-se inerte sem apresentação sequer da peça de contestação para defesa dos interesses do cliente. Por outro lado, é sabido que sem uma defesa as probabilidades de alcançar êxito para proteção de seus interesses, quando existentes, são reduzidas drasticamente. No caso julgado, concluiu-se pela probabilidade de situação mais vantajosa que não foi possível de ser alcançada pela desídia dos advogados, o que configurou a chance perdida. Além dos citados casos de omissão, como perda do prazo para defesa ou da propositura da ação, podem ser exemplos de aplicação da teoria da perda de uma chance, atuações em que a ação é indevida e hábil a ensejar a responsabilização do advogado, como por exemplo, quando atua de forma contrária aos interesses do cliente13. A atuação advocatícia deve primar pelo melhor interesse do cliente e não pode se pautar por interesses pessoais do advogado ou até mesmo em benefício de terceiros, mesmo que sejam outros clientes. Verificada a conduta culposa, seja pela omissão, seja pela ação, que tenha interrompido o desencadeamento dos fatos, com o impedimento de se alcançar um resultado favorável, aplica-se a teoria. Como consequência, deve o julgado avaliar o dano a partir das probabilidades avaliadas e verificadas no caso concreto. Isto porque, será reparado o dano chance e não o dano final suportado. No julgamento em análise neste estudo, corretamente a condenação dos advogados resultou no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), não obstante o prejuízo do cliente em decorrência da não atuação dos advogados tenha sido de R$ 947.904,20 (novecentos e quarenta e sete mil, novecentos e quatro reais e vinte centavos). É que será reparada a chance perdida (dano chance), com aplicação do art. 403, do Código Civil, que dispõe que "(...) as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual."14 Por isso repara-se a chance perdida (dano chance) e não a vantagem esperada e não alcançada (dano final). A aplicação da teoria da perda de uma chance, a partir do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, além dos exemplos acima apresentados, não exclui a possibilidade de responsabilização na atuação advocatícia pelo resultado (dano final). Mas, essa responsabilidade existirá apenas quando for possível verificar que a conduta culposa resultou no prejuízo total suportado pelo cliente. Caso contrário, se restar ausente o nexo causal com o resultado (dano final), averiguado o liame para com probabilidades perdidas, aplicar-se-á a teoria da perda de uma chance. É clara portanto a possibilidade da aplicação da teoria da perda de uma chance em atuação advocatícia, quando comprovada a conduta culposa, bem como a probabilidade perdida, uma vez que a chance séria, real e efetiva é dano reparável. _____________ 1 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459. Quarta Turma. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento: 08 de novembro de 2005. 2 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1335622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento: 18 de dezembro de 1012. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 173.148/RJ. Segunda Turma. Relatora Ministra Assusete Magalhães. Julgamento: 03 de dezembro de 2015. 3 Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022.  4 GIOSTRI, Hildegard Taggesel. Algumas reflexões sobre as obrigações de meio e de resultado na avaliação da responsabilidade médica. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro: Padma, 2001. v.5. p. 102. 5 SILVA, Rafael Peteffi. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2007, p. 13. 6 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil, 2.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1, p. 674. 7 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 97. Disponível aqui. 8 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: L.G.D.J., 1939. t.1., p. 12. 9 STOCO, Rui. Responsabilidade civil do advogado à luz das recentes alterações legislativas. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v.6, p. 549. 10 O Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015) prevê expressamente tal objetivo para maior segurança jurídica, como é possível verificar no art. 926, caput, "Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente." (BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível aqui. 11 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11.ed. ver., atual. de acordo com o Código Civil de 2002. Aument. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 426. 12 No acórdão constou expressamente: "Uma vez estabelecida, de maneira incontroversa, a desídia dos réus, importa consignar que havia real possibilidade de êxito dos autores no âmbito da ação de prestação de contas ou de, ao menos, obterem uma situação mais vantajosa, se as graves falhas na prestação dos serviços advocatícios não houvessem ocorrido." (Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022). 13 ANDRADE, Fabio Siebeneicheler. Responsabilidade Civil do Advogado. Revista dos tribunais, São Paulo: RT, v. 697, 1993, p. 24-26. 14 BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível aqui.
Alguns casos, sobretudo aqueles que envolvem celebridades ou fatos de grande repercussão social, são dotados de excepcional potencialidade para o estudo das matérias a eles correlatas, seja por atraírem a atenção do público em geral, seja por permitirem a fácil visualização daquilo que se convencionou chamar de direito vivido, o direito efetivamente aplicado pelos tribunais. No dia 01 de junho deste ano sete jurados do condado de Fairfax, no estado norte americano da Virgínia, nos brindaram com um destes casos: o veredicto da contenda entre os atores Johnny Depp e sua ex-esposa e também atriz Amber Heard. O objetivo desta coluna é aproveitar a publicidade do caso para apresentar, na extensão própria esperada para este espaço, algumas reflexões dele extraídas sobre a interlocução entre responsabilidade civil e o direito de família e a função punitiva da responsabilidade civil, aplicada por meio das indenizações punitivas (punitive damages). O caso pode ser assim sintetizado: a ação foi ajuizada por Johnny Depp em 2019, alegando que a ex-esposa o havia difamado em artigo por ela publicado no jornal Washington Post1 em dezembro de 2018, sob o título "Amber Heard: Eu falei contra a violência sexual - e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso precisa mudar". No texto, embora não cite expressamente o nome de Depp, a atriz afirma ter vivenciado violência no passado recente (últimos dois anos), justamente o período em que esteve casada com Johnny Depp. Afirmando que tal publicação prejudicou sua reputação profissional e até mesmo o boicote em alguns papéis, o ator pleiteou a condenação de sua ex-esposa ao pagamento de cinquenta milhões de dólares em indenizações. Em sua defesa, a atriz alegou que não mencionou o ex-marido no texto, e apresentou ainda pedido contraposto, pleiteando a condenação de Depp por difamação, especificamente em razão de uma declaração dada por seu então advogado de que as alegações de violência doméstica por ela narradas eram uma farsa. O júri, composto por cinco homens e duas mulheres, reconheceu que houve difamação recíproca, mas decidiu de forma substancialmente favorável ao ator: de um lado, condenou Amber Heard ao pagamento de dez milhões de dólares a título compensatório e mais cinco milhões a título de danos punitivos, sendo estes reduzidos pela juíza Penney Azcarate a trezentos e cinquenta mil dólares. De outro lado, condenou Johnny Depp ao pagamento de dois milhões de dólares a título compensatório. Para afastar a confusão realizada por alguns veículos de imprensa e postagens em redes sociais, é preciso destacar que a ação versou apenas sobre o pedido de indenização por difamação, de forma autônoma, e não teve por objeto o divórcio das partes ou qualquer medida protetiva, ações que já haviam sido julgadas anteriormente. Conforme amplamente noticiado pela imprensa, os atores se casaram em fevereiro de 2015, e poucos meses depois, em maio de 2016, Amber Heard ajuizou ação de divórcio, solicitando também uma ordem de restrição (medida protetiva) contra o marido, baseada em violência doméstica. Em agosto do mesmo ano, o casal fez uma declaração pública de que chegaram a um acordo quanto ao divórcio, e que nunca tiveram o objetivo de ferir um ao outro, seja de forma física ou emocional. Em razão do acordo, Amber desistiu da medida protetiva anteriormente ajuizada, e em janeiro de 2017 o casamento foi oficialmente dissolvido, restando estabelecido apenas que Depp pagaria a sua então esposa o valor de sete milhões de dólares. A primeira reflexão serve a evidenciar como as relações familiares não são imunes a responsabilidade civil. Não obstante, a interlocução destas disciplinas demanda cuidadosa análise do intérprete, afinal, o direito de família se encontra estribado no afeto e em relações de caráter extrapatrimonial, ao passo que a responsabilidade civil representa, historicamente, o mecanismo de reparação à danos patrimoniais. Por vezes, o encontro destas espacialidades pode resultar em efeitos desastrosos. Basta pensar na outrora comum responsabilização civil pelo mero rompimento do noivado, que bem analisada, representa desarrazoada coação estatal dirigida à formação do casamento, mesmo quando o desfazimento do noivado representa o mais franco ato de liberdade existencial: a liberdade de constituir (ou não constituir) família (CF, art. 226, §7). Claramente, a responsabilidade civil não se presta a tal fim, e a função punitiva adotada no caso em análise pode acabar por legitimar o julgamento moral de condutas familiares diversas daquelas próprias do modelo majoritário. Ainda quanto a intersecção entre responsabilidade civil e direito de família, o caso Depp vs. Heard revela uma tendência da atual jurisprudência brasileira, notadamente de que as frustrações e abalos decorrentes da dissolução da sociedade conjugal, por si, não autorizam a reparação civil2. Tal fato não decorre de qualquer falsa imunidade que o casamento possa atribuir aos atos danosos praticados pelos cônjuges, mas sim de que o fim da conjugalidade, por si só, não gera danos indenizáveis. De outro lado, declarações difamatórias ou quaisquer outras condutas que ilicitamente violem diretos patrimoniais ou de personalidade de qualquer dos cônjuges encontra aptidão para deflagrar a responsabilização civil, mesmo que realizadas na seara familiar. Foi exatamente o que ocorreu com o casal Depp-Heard, personagens de um divórcio midiático e conturbado que não teve a interferência da responsabilidade civil, buscada apenas dois anos depois e em razão de outros atos, notadamente declarações difamatórias proferidas por ambas as partes. Por fim, não se pode deixar de considerar as externalidades derivadas deste julgamento, sobretudo sua influência sobre as denúncias contra a violência doméstica, tema que não passou despercebido a Anderson Schreiber ao apontar que "a pergunta que talvez mais interesse em tudo isso é a seguinte: pode a decisão do júri desestimular a denúncia de casos de violência doméstica? Se a resposta for afirmativa, pode-se acabar produzindo o efeito oposto àquele declaradamente pretendido pela atriz em seu artigo"3. O tema é sensível e merece cuidadosa atenção dos juristas. A segunda oportunidade oferecida pelo caso é a análise dos controversos punitive damages. Se tradicionalmente a responsabilidade civil teve por atribuição a compensação de danos, contemporaneamente avoca também as funções de prevenção do dano e punição de seu causador. O tema é controverso, tanto no Brasil4 quanto nos Estados Unidos, ao ponto de Mitchell Polinsky e Steven Shavell afirmarem que "uma das mais controversas características do sistema legal americano é a imputação de indenizações punitivas"5. No direito norte americano, este instituto concentra tanto uma função punitiva, voltada especificamente para punir uma pessoa por uma conduta ultrajante (sendo mais frequentemente aplicado a condutas intencionais ou maliciosas), como também uma função preventiva (deterrance), voltada a evitar que esta pessoa ou mesmo outras pessoas realizem condutas similares6. Em que pese a pretendida importação da função punitiva para o direito brasileiro se dê, no mais das vezes, de forma generalizada, estatisticamente estas indenizações são raras no Estados Unidos: o número de casos com pedidos de indenização punitiva admitidos para julgamento representa entre três a cinco por cento das causas cíveis levadas aos tribunais estaduais, e neste reduzido número de causas admitidas, menos de cinco por cento tem o pedido julgado procedente7. Ou seja, o percentual de causas em que estas indenizações são admitidas varia entre 0,15% e 0,25% das causas cíveis - menos de uma em cada quatrocentas ações.   Ponto sensível da temática é a fixação do valor desta indenização - sua quantificação. Ordinariamente, esta atribuição compete ao corpo de jurados, portanto, a leigos, e o valor atribuído é dotado de grande variação (mesmo entre casos idênticos) e imprevisibilidade. Conforme apurado por Cass Sunstein, Reid Hastie, John Payne, David Schkade e W. Kip Viscusi, os jurados são instruídos de que o valor da indenização deve ser aquele que efetivamente expresse a desaprovação social contra a conduta punida, bem assim que seja o necessário para induzir o réu ou outros indivíduos a não repetir aquela conduta, sem receber quaisquer critérios objetivos para a fixação do valor de eventual indenização, tampouco informações quanto ao valor aplicado em casos análogos. Quando os autores pediram aos jurados para justificar o valor por eles atribuído a título de punitive damages, as respostas revelaram que os valores partiram dos mais variados valores-base, dentre os quais (a) o valor do orçamento anual destinado pelo réu para publicidade, (b) um milhão de dólares por réu; (c) vinte e cinco mil dólares por vítima; (d) a metade do lucro anual do réu; dentre tantos outros. Quase nenhum jurado fez referência às instruções dadas pelo magistrado e a maior parte das justificativas se referiam ao objetivo de "mandar uma mensagem" ou "ferir" o causador do dano. Os autores cogitam que tal resultado pode decorrer da dificuldade de compreensão pelos jurados das instruções sobre a indenização punitiva, o que os leva a atuar com base em sua intuição, reações emocionais ou mesmo por simpatia com a parte, ao invés de observar os critérios judiciais8. Esta constatação parece ter sido corroborada pelo caso em análise, em que tanto a mídia quanto a população em geral apresentaram forte sentimento de simpatia em relação a Johnny Depp durante o julgamento.  Em que pese a admissão de sua constitucionalidade pela Suprema Corte dos EUA, a matéria é de competência estadual, e dos cinquenta estados americanos, apenas cinco expressamente proíbem a aplicação de punitive damages. Dentre os estados que admitem a aplicação de indenizações punitivas, dezoito limitam o valor da indenização a ser atribuída pelo júri, como é o caso do estado da Virginia9. É por esta razão que embora o júri tenha condenado Amber Heard ao pagamento de cinco milhões de dólares a título de punitive damages, o valor foi reduzido pela juíza togada ao limite estadual de trezentos e cinquenta mil dólares. No âmbito jurisdicional, em State Farm vs. Campbell a Suprema Corte Americana chegou a formular a 'single digit rule", ou regra de um dígito, pela qual o valor da indenização fixada a título de dano punitivo deveria ser proporcional ao valor indenização compensatória, na extensão máxima de um dígito deste valor (portanto, entre uma e nove vezes o valor da indenização compensatória). Aponta a doutrina, porém, que em casos subsequentes (Philip Morris vs. Williams) a própria Suprema Corte deixou de aplicar tal regra, deixando de responder se o critério se trata efetivamente de uma regra de julgamento ou apenas uma diretriz10. Ao fim e ao cabo, a figura das punitive damages parecem despertar tantas controvérsias quanto o próprio caso Depp vs. Heard, cabendo a doutrina arrostar a responsabilidade de realizar as mediações necessárias à importação da figura ao direito brasileiro, sob pena da tradução acabar por revelar uma traição ao próprio instituto11. _______________ 1 Disponível aqui. 2 BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A ilicitude como requisito da responsabilidade civil no direito de família: o cotejo entre a doutrina e a jurisprudência. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (et. al.). Responsabilidade Civil e Direito de Família. O direito de danos na parentalidade e na conjugalidade. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021. 3 SCHREIBER, Anderson. Depp x Heard e as novas funções da responsabilidade civil. Portal Jota. Publicado em 07/06/2022. 4 Entre nós, a função punitiva é acolhida por substancial parcela da doutrina, dentre os quais Nelson Rosenvald e Ricardo Dal Pizzol, ao passo que ainda é rejeitada por outra relevante parcela, capitaneada por Maria Celina Bodin Moraes e Anderson Schreiber. 5 POLINSKY, Mitchell; SHAVELL, Steven. Punitive damages: an economic analysis. Harvard Law Review. Vol. 111, n. 4, 1998. 6 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009. 7 SHARKEY, Catherine M. Economic Analysis of punitive damages: theory, empirics, and doctrine. New York University Law and Economics Working Papers. Paper 289. 8 SUNSTEIN, Cass (et. al.). Punitive Damages : how juries decide. Chicago: The University of Chicago Press. 2002. 9 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009. 10 Idem. 11 FONSECA, Ricardo Marcelo. Tradições, traduções, traições: diálogos entre culturas jurídicas. História do Direito: RHD. Curitiba, v.1., n.1., 2020.
Em sentido figurado, a "caixa-preta" se refere a qualquer sistema cujo mecanismo de funcionamento interno não é claro ao observador externo. O legislador brasileiro, no art. 402 do código civil, não realiza nenhuma distinção dentro da categoria por ele denominada de "danos emergentes". Os tipos de danos emergentes sofridos pelo credor na hipótese de inadimplemento do contrato, as fórmulas utilizadas para o seu cálculo, bem como a interação desses danos entre si constituem uma verdadeira "caixa-preta", no sentido acima aludido, para a doutrina e a jurisprudência brasileiras. O objetivo deste pequeno ensaio é jogar uma luz sobre o assunto, que será explorado de forma mais profunda em outro trabalho de nossa autoria, desvendando o conteúdo da "caixa-preta". Para entender o assunto, é necessário distinguir entre os danos tipicamente, mas não exclusivamente, sofridos pelo credor alienante e pelo credor adquirente.1 "Alienante" e "adquirente" aqui entendidos em sentido amplo, como aqueles que oferecem e adquirem, respectivamente, quaisquer tipos de bens ou serviços no mercado. Esquematicamente, o dano emergente tipicamente sofrido pelo credor alienante é a perda resultante da realização de uma transação substituta ou, alternativamente, a perda do lucro que ele (credor) esperava obter no contrato inadimplido. Tal lucro não se confunde com o denominado lucro cessante, que é um dano tipicamente - embora não exclusivamente - sofrido pelo credor adquirente.2 As duas fórmulas para a mensuração do dano sofrido pelo credor alienante (perda com a transação substituta e perda do lucro esperado) competem entre si. Em princípio, o credor alienante deve mensurar o seu dano com base no critério da perda resultante da realização de uma transação substituta; sendo-lhe facultado o emprego do critério da perda do lucro nos casos em que a realização de tal transação for inviável, extremamente onerosa ou improvável. Para ilustrar a aplicação dessas normas, vejamos os fatos do caso Lazenby Garages Ltd. v. Wright.3 Wright comprou um BMW usado de Lazenby, um vendedor de automóveis, pela quantia de £ 1.640. No entanto, o comprador mudou de ideia no dia seguinte. Lazenby manteve o carro no seu estande de vendas e, dois meses depois, vendeu o referido carro para outro comprador pelo preço de £ 1.700. Em seguida, Lazenby entrou com um processo na justiça contra Wright para cobrar o lucro que ele havia perdido no contrato inadimplido (£ 315), calculado com base na diferença entre o preço combinado de £ 1.640 e o valor pelo qual Lazenby havia adquirido o carro, £ 1.325. O tribunal britânico julgou improcedente o pedido. O principal motivo da improcedência do pedido é o fato de que o credor não sofreu prejuízos com o inadimplemento do devedor, por ter feito uma transação substituta, vendendo o bem para um terceiro por um preço mais elevado. Assim, o credor obteve não apenas o lucro inicialmente visado (£ 315), mas também um benefício superior ao que ele teria recebido no contrato inadimplido. Portanto, não houve qualquer perda com a realização da transação substituta. E a questão da indenização dos demais danos sofridos pelo credor (vendedor) no caso apresentado (Lazenby Garages Ltd. v. Wright) como o dano resultante da privação da prestação alheia (dinheiro) por dois meses, bem como o dano decorrente da cobrança judicial ou extrajudicial da dívida? Presumivelmente, o benefício adicional obtido pelo credor alienante com a transação substituta (£ 60), quando comparamos tal transação com o benefício que o credor alienante iria receber com base no contrato inadimplido, foi suficiente para compensar os prejuízos sofridos por Lazenby com o atraso de dois meses no recebimento da quantia de dinheiro que lhe era devida pelo comprador inadimplente, bem como os prejuízos decorrentes da cobrança da dívida (compensatio lucri cum damno). Por outro lado, se o credor - Lazenby - tivesse revendido o BMW usado por um preço mais baixo do que aquele combinado com o devedor inadimplente (ou seja, inferior a £ 1.640), ele teria o direito de cobrar indenização pela diferença entre o preço da transação substituta e o preço combinado no contrato inadimplido. Ele poderia cumular a cobrança da indenização desse prejuízo (perda com a realização da transação substituta) com a cobrança da indenização de outros prejuízos (como a perda com o atraso no recebimento do preço e a perda com eventuais cobranças judiciais ou extrajudiciais do preço devido pelo devedor inadimplente). Finalmente, é importante ressaltar que o dano resultante da realização de uma transação substituta é mensurado com base numa transação hipotética (diferença entre o preço combinado no contrato inadimplido e o preço médio pelo qual o credor poderia revender a sua prestação no mercado), sendo admitida a mensuração com base numa transação substituta efetivamente realizada apenas na hipótese: (a) de tal transação gerar um menor dano ao credor do que a transação hipotética; ou (b) na hipótese de tal transação ser considerada razoável nas circunstâncias do caso, ainda que gere um maior dano ao credor, a ser indenizado pelo devedor. O caso Snelling v. Dine4 fornece uma boa ilustração a respeito do emprego da fórmula da perda do lucro esperado. Um comerciante (comprador) encomendou 50 refrigeradores customizados, a serem fabricados por uma empresa (vendedora) especializada na construção desse tipo de equipamento. Ficou combinado entre as partes que o pagamento do preço de cada um daqueles refrigeradores, no valor de $100 por unidade, seria feito na data da entrega de cada unidade. Após a construção de 10 refrigeradores, a vendedora notificou o comprador para informá-lo sobre a disponibilidade de entrega daquelas unidades. O comprador concordou em receber apenas 7 unidades, pagando o seu preço. O comprador se recusou a receber e a pagar pelas outras 3 unidades já fabricadas, bem como anunciou a sua intenção de não receber e pagar pelas outras 40 unidades que ainda precisavam ser construídas. A vendedora então revendeu os 3 refrigeradores já fabricados para terceiros por um preço mais barato do que o preço que havia sido combinado no contrato inadimplido, sofrendo uma perda com a realização dessa transação substituta. Além da indenização desse dano, a vendedora também exigiu a indenização da perda do lucro que ela iria obter no contrato inadimplido com a venda dos 40 refrigeradores restantes. Tal lucro era representado pela diferença entre o preço de venda daquelas 40 unidades e o seu custo variável de construção.5 Por sua vez, nas circunstâncias do caso concreto, foram considerados como elementos desse custo o valor das peças e acessórios necessários para a fabricação dos 40 refrigeradores restantes; acrescido das despesas relacionadas ao trabalho de montagem. Em suma, o custo de fabricação consistia no material e na mão de obra necessários para a montagem dos refrigeradores. Por questões de limitação de espaço, não iremos detalhar alguns pontos do caso acima apresentado. Pelo mesmo motivo, não iremos mostrar como as fórmulas cabíveis ao credor alienante (perda com a transação substituta ou perda do lucro esperado) são afetadas pelos seguintes problemas: (i) casos em que o custo variável de cumprimento para o credor no contrato inadimplido difere do seu custo variável de cumprimento na transação substituta; (ii) inadimplemento antecipado; (iii) perda do volume de vendas que não causa transtornos ao planejamento do credor; (iv) incertezas quanto à duração do contrato. Finalmente, a título de conclusão, é importante destacar algumas questões que sequer foram abordadas nesta coluna, como a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos pelo credor adquirente e a interação entre eles (perda com a transação substituta, custo de complementação e reparo, perda com a diminuição do valor da prestação); a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos por qualquer credor (perda decorrente da privação da prestação alheia, despesas com o recebimento da prestação alheia, perda da prestação conferida pelo credor ao devedor e perda com a cobrança da prestação devida); e a menção aos danos atípicos e seus problemas. Tais questões, e outras não aludidas, serão detalhadas em outro trabalho. ________________ 1 Tal distinção é sugerida, entre outros, por EISENBERG, Melvin Aron. Foundational principles of contract law. New York: Oxford University Press, 2018, p. 189-194, 201-215. 2 O lucro cessante não é considerado, em nossa tradição jurídica, um dano emergente. A respeito dos vários esquemas classificatórios elaborados pelos juristas europeus, após a redescoberta do direito romano, para a categorização dos diversos tipos de danos que o credor poderia sofrer, cf. COING, Helmut. Derecho privado europeo. Madrid: Fundación Cultural del Notariado, 1996, tomo I, p. 553-559 (período do direito comum mais antigo), tomo II, p. 574-577 (século XIX e período das grandes codificações). O lucro cessante é o dano, normalmente sofrido pelo credor adquirente, resultante da incapacidade de tal credor de fazer um uso produtivo da prestação que ele teria direito de receber da outra parte como um bem de capital no sentido da teoria econômica. 3 [1976] 1 W.L.R. 459 (Ct. App.) (U.K.). 4 270 Mass. 501, 170 N.E. 403 (Mass. 1930). 5 O conceito de lucro empregado aqui é utilizado exclusivamente para a mensuração da indenização cabível, não possuindo qualquer relação com o conceito de lucro eventualmente empregado nas normas tributárias. O custo variável, a ser deduzido do preço, é o custo que o credor teria de incorrer para produzir cada unidade adicional do bem ou serviço a ser entregue ao devedor. O custo fixo (e.g., aluguel da loja, salários de empregados permanentes, etc.) não é deduzido do preço; de maneira que o lucro do credor alienante é representado pela diferença entre o preço combinado e o custo variável de tal credor para a realização da sua própria prestação.