COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
A novela Pantanal, enorme sucesso na televisão brasileira, está no ar em uma nova produção da TV Globo trinta e dois anos após sua exibição original na extinta TV Manchete. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, a história tem como centro a personagem Juma, uma mulher que vira onça em uma transfiguração de fazer inveja a Minerva McGonagall. Antes da versão atual, a novela original foi reprisada em 2008 pelo SBT, oportunidade na qual este que vos escreve teve contato com a obra. E esta exibição, realizada pelo canal de Silvio Santos foi editada com cortes e supressões sem a prévia autorização do autor, Benedito Ruy Barbosa, o que nos leva ao objeto desta reflexão. No último dia 31 de maio foi publicado no site do STJ o acórdão de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, da Terceira Turma do tribunal, que decidiu o recurso especial interposto por Benedito Ruy Barbosa na fase de cumprimento de sentença da ação movida por este contra o SBT em razão da violação de direitos do autor pela reprodução da novela com as adaptações não consentidas pelo autor. Anteriormente, no curso da ação de conhecimento, a Terceira Turma do STJ também decidiu a questão em recurso especial interposto por Ruy Barbosa, dando parcial provimento ao REsp 1.558.683 / SP para condenar o SBT apenas ao pagamento de danos extrapatrimoniais a serem arbitrados na instância de origem, expressamente mantendo a improcedência do pedido inicial quanto aos danos materiais. Contudo, em sede de embargos de declaração esclareceu que: "Feitas essas considerações, é de se ressaltar que os critérios para o arbitramento dos danos morais serão apreciados nas instâncias inferiores de acordo com a legislação de regência, observados os elementos orientadores para a reparação integral do dano, abrangendo a efetiva penalização dos infratores, com o objetivo de desestimular a prática ilícita, bem como a adequação do montante indenizatório de acordo com o volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida". Ou seja, o STJ definiu que a reparação integral do dano (função reparatória) abrangeria uma efetiva penalização dos infratores (função punitiva) e deveria levar em consideração o volume econômico da atividade gerado pelo ilícito (função restitutória), tudo isso sob a rubrica de danos extrapatrimoniais que seriam arbitrados pelo Juízo originário no primeiro grau. Daí se extrai um primeiro aspecto importante. O aresto indica uma inclinação da Corte Especial em reconhecer uma polifuncionalidade da responsabilidade civil, contudo, sem a correta distinção dos remédios aplicados ao caso concreto. Sob o manto do princípio da reparação integral concentra todas as soluções funcionais em um só remédio, o reparatório (indenização dos danos extrapatrimoniais). Fica claro a dificuldade do STJ em romper com o paradigma reparatório e acatar as outras funções da responsabilidade civil de modo isoladoi. O segundo aspecto surge no cumprimento de sentença em primeiro grau, em que foi determinado a nomeação de perito para aferir o dano extrapatrimonial que o STJ havia mandado arbitrar. Dessa decisão o SBT recorreu ao TJSP que, através de sua 4ª Câmara de Direito Privado, acolheu o agravo interposto pelo canal e afastou a necessidade de perícia, ressaltando a subjetividade do magistrado na fixação dos danos morais, dado que o STJ havia expressamente rejeitado o pleito de condenação do SBT em danos patrimoniais. Do acórdão do TJSP Ruy Barbosa recorreu ao STJ, afirmando que o título executivo judicial incluiu como critério de quantificação do dano extrapatrimonial elementos econômicos (leia-se materiais), o que fora desconsiderado pelo TJSP. Então, na decisão publicada no REsp 1.983.290/SP, assim como Juma se transforma em onça na novela, também uma figura que tem ganhado destaque nos debates acadêmicos da responsabilidade civil foi transfigurada em dano extrapatrimonial: os ganhos ilícitos ou lucro da intervenção. Na decisão o Ministro Moura Ribeiro, também relator para o acórdão na fase de conhecimento, deu provimento ao recurso de Ruy Barbosa para determinar a realização de perícia para "apurar o quantum indenizatório levando em consideração o volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida", seguindo o que havia já sido apontado nos embargos de declaração no REsp 1.558.683/SP. Continuando, deixou claro que a apuração por perícia do "volume econômico da atividade em que a utilização indevida da obra foi inserida" tratava-se nada mais, nada menos, que a restituição de ganhos ilícitos (restitutionary damages), típico remédio restitutório que não se confunde com a reparação de danos extrapatrimoniais: "Assim, considerando que escapa das regras normais da experiência um conhecimento adequado acerca dos lucros obtidos pelo SBT com a divulgação (indevida) da "Novela Pantanal", tem-se, de fato, como imprescindível a realização da perícia determinada em primeiro grau de jurisdição para que, levando em conta a observação relativa aos lucros percebidos, seja fixado percentual sobre tal verba que sirva de efetiva recomposição dos danos morais do autor". Votaram com o relator os ministros Ricardo Villas Boas Cueva, Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy Andrighi. Divergiu e foi vencido o Ministro Marco Aurélio Bellizzeii. O que o voto do relator, acolhido no acórdão proferido na fase de execução fixou, portanto, não foram apenas danos morais, mesmo que na decisão exequenda a corte houvesse deferido apenas a indenização de danos extrapatrimoniais. Por uma via transversa, revelou a aplicação de um dos remédios restitutóriosiii (restitutory damagesiv), a indenização restitutória (restitutionary damages), remédio restitutório aplicável em face de ilícitos de origem na Common Law e que "compreende a restituição de uma transferência indevida de valor a partir da fixação de um valor razoável pelo direito violado, em uma única verba ou em forma de royalties"v. Fica isso evidente quando o voto vencedor indica que a perícia deverá apurar os lucros realizados pelo SBT com a exibição indevida da novela para que seja fixado um percentual de participação de Ruy Barbosa nesses lucros (espécie de royalties). Claramente, é a fixação de uma indenização restitutória e não critério de avaliação do dano extrapatrimonial. Se se tratasse apenas de dano extrapatrimonial, o lucro do ofensor seria irrelevante para o seu arbitramento, dado os limites fixados pelo próprio art. 944 do Código Civil ao remédio reparatório. Nesse ponto, com razão, o Ministro Marco Aurélio Bellizze em seu voto vencido destacou que "ao fim e ao cabo, o Magistrado a quo se valerá da análise subjetiva das particularidades do caso para fixar o respectivo valor do dano moral, independentemente do lucro ou prejuízo da emissora obtido com a disponibilização da novela 'Pantanal'". Concordamos com o Ministro Bellizze. A compensação por danos extrapatrimoniais independe da verificação de lucro ou prejuízo por parte do ofensor, devendo, tão somente, ser medida pela extensão do dano na esfera da personalidade do ofendido. A própria utilização de critérios patrimoniais/econômicos é incoerente com a função reparatória quando aplicada a danos extrapatrimoniais. Por sua vez, para boa parte da doutrinavi, sequer se trataria de caso de responsabilidade civil, já que o instituto deveria ser trabalhado através do denominado lucro da intervençãovii, fundamentado no enriquecimento sem causa, uma adaptação do enriquecimento por intromissão do direito alemão para o direito brasileiroviii. Assim, a inclusão dos lucros no dano extrapatrimonial estaria inserindo uma tutela de enriquecimento sem causa na responsabilidade civil. A solução encontrada pelo STJ no caso aqui analisado, ainda que anime aqueles que advogam pela aplicação de remédios contra os lucros ilícitos, traz perturbação quanto à forma de sua realização. Em última análise, significa um elastecimento do conceito de dano extrapatrimonial que é indesejável, pois funcionaliza um interesse existencial para a realização de interesses patrimoniais do ofendido, mesmo que tendo como premissa uma lesão a direitos da personalidade. Trata-se de uma subversão indesejada e que deve ser desencorajada, pois traz o risco de tornar ainda mais complexa a definição dos contornos dessa figura de já difícil definição que são os danos extrapatrimoniais. É preciso separar a onça do ser humano, estabelecer os corretos limites entre os remédios jurídicos que a responsabilidade civil oferece para tutelar a pessoa em sua integralidade. O que o STJ fixou com o acórdão, portanto, corresponde a um remédio restitutório, voltado a tratar da questão dos ganhos ilícitos, incongruentemente escondido sob as vestes do dano extrapatrimonial. Nesse ponto, com o máximo respeito ao voto vencedor e ao entendimento dos Ministros que o acompanharam (posto que civilistas de primeira ordem e merecedores da mais distinta admiração), o voto do Ministro Bellizze, conquanto trate os lucros ilícitos como danos materiais, acerta ao afastá-los da quantificação do dano extrapatrimonial. É preciso tratar da questão dos ganhos ilícitos, isso, contudo, não será alcançado alargando a noção de dano extrapatrimonial e incluindo critérios ontologicamente inadequados para sua quantificação. _____________ i O que no caso se compreende tanto em razão dos limites da lide, já que não houve pedido de condenação em restituição de ganhos ilícitos, quanto da carência de previsão legislativa expressa para realização das funções punitiva e restitutória, o que dificulta sua compreensão e aplicação pelos operadores do direito. ii Do voto divergente do Ministro Bellizze destacamos os seguintes fundamentos: "Ocorre que, data maxima venia, a realização de perícia não serve para o arbitramento de indenização por dano moral , mas apenas para se estabelecer o quantum a ser fixado a título de dano material, o qual, todavia, foi expressamente afastado pela Terceira Turma no REsp 1.558.683/SP". [...] De fato, embora esta egrégia Terceira Turma tenha determinado, no julgamento do aludido recurso especial, que a indenização pelos danos extrapatrimoniais fosse apurada por arbitramento, tal conclusão não implica necessariamente na realização de perícia, a qual só servirá para atrasar o encerramento do processo, pois, ao fim e ao cabo, o Magistrado a quo se valerá da análise subjetiva das particularidades do caso para fixar o respectivo valor do dano moral, independentemente do lucro ou prejuízo da emissora obtido com a disponibilização da novela "Pantanal". [...] Dessa forma, não há razões para que se determine a realização de perícia, visto que não existem critérios objetivos a serem apurados, cabendo ao Juiz a análise das peculiaridades do caso, a fim de encontrar o valor mais adequado para compensar o recorrente pelo abalo moral sofrido. iii Se a decisão do STJ houvesse determinado a remoção de todo o lucro obtido pelo SBT com a exibição da novela estaríamos falando de outro remédio restitutório, a remoção de ganhos ilícitos (disgorgement of profits). Enquanto os restitutionary damages se caracterizam por um give back, revertendo uma transferência indevida de valor conexo ao direito ofendido, o disgorgement of profits tem como função um give up, ou seja, a remoção dos ganhos realizados pelo autor da ofensa. iv No Brasil a figura dos restitutory damages a partir da responsabilidade civil foi pioneiramente abordado por Nelson Rosenvald. Cf. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. v PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2020. p. 283. vi Sendo pioneira a tese de Sérgio Savi no que tange ao lucro da intervenção como espécie de enriquecimento sem causa in SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012. vii Já houve interessante reflexão nesta coluna sobre a possibilidade de se buscar no lucro da intervenção um remédio contra violações de direitos autorais na Fashion Law , em analogia ao caso de Pantanal. Cf. SOARES, Renata Domingues B. M. Responsabilidade Civil e Fashion Law. Migalhas de Responsabilidade Civil, 10 mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 3 jun. 2022. viii CUNHA, Leandro Reinaldo da. Para além dos sonegados, o lucro da intervenção em caso de não colação. Migalhas de Responsabilidade Civil, 29 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em 4. 4 jun. 2022.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais trouxe dispositivos próprios acerca da responsabilidade civil e muito se tem pesquisado sobre o tema, notadamente quanto ao regime ou regimes adotado(s) na LGPD. Entre as previsões de responsabilidade civil na Lei Geral está a do parágrafo único do artigo 44 que estabelece a responsabilidade por violação de segurança que cause danos, "ao deixar de adotar as medidas de segurança" contidas no artigo 46 da mesma lei. Por sua vez, a previsão do artigo 46, que está na seção seguinte à da responsabilidade civil e trata de segurança e sigilo de dados, inaugura o capítulo da Lei sobre segurança e boas práticas com o comando aos agentes de tratamento de dados para agirem adotando medidas capazes de evitar "qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito". Portanto, um assunto que ainda merece ser enfrentado é a figura da responsabilidade civil por tratamento inadequado. Seria uma espécie de responsabilidade civil por ato lícito? No caso de vislumbrada a figura por abuso de direito, há possibilidade de já se inserir no tratamento ilícito, dada previsão do artigo 187 do Código Civil. Importante se rememorar que a seção da Responsabilidade Civil engloba os artigos 42 a 45, sendo que o parágrafo único do artigo 44 assim estabelece: "Responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta lei, der causa ao dano". Nota-se a responsabilização por danos decorrentes da violação de segurança por não adoção de medidas estipuladas no artigo 46 impõe que devem ser realizadas medidas aptas a evitar qualquer forma de "tratamento inadequado ou ilícito", sendo que a não adoção dessa medidas pode acarretar responsabilização. Há, na lei, a determinação para evitar qualquer forma de tratamento ilícito. O que está claro! Todavia, também há - ligada por conjunção alternativa ou - a mesma previsão tocante a tratamentos que, mesmo não sendo ilícitos, sejam inadequados. Ao separar inadequado de ilícito pela conjunção alternativa, a LGPD teria estabelecido que responde por danos decorrentes da violação de segurança dos dados o agente de tratamento de dados que deixar de adotar medidas de segurança aptas a evitarem tratamento inadequado. Isto é, do tratamento inadequado que advierem danos, o agente será responsabilizado ao ressarcimento. Oportuno destacar desde já que a referida normativa não diz o que seria tratamento adequado tampouco inadequado. A bem da verdade, tratamento inadequado é somente mencionado na lei em uma única ocasião: exatamente, a aqui tratada. Para melhor compreensão, é prudente o exame da responsabilidade civil na LGPD como um todo para se particularizar a aqui examinada. A LGPD constitui um diploma legal inspirado (além do Regulamento Geral de Proteção de Dados) no Código de Defesa do Consumidor. E, tal qual o CDC, a Lei Geral cria uma teia interconectada de dispositivos, ligando um princípio a um direito do titular, um fundamento a um conceito e, assim sucessivamente. Nada obstante essa intraconexão normativa, referidos diplomas legais expressamente abrem-se para outros ao estabelecerem que suas previsões não excluem diferentes disposições legais (artigos 7º do CDC e 64 da LGPD), com consequências também na seara da responsabilidade civil. Nesse sentido, o próprio artigo 45 da LGPD faz remissão para o CDC quando estatui a aplicabilidade de normas atinentes à defesa do consumidor em caso de violações de direitos de titulares de dados ocorrem em relações de consumo. Merece anotação que não apenas em relações de consumo poderá haver incidência conjunta da LGPD e do CDC, mas também nas situações jurídicas de consumo, como pode ser o caso de eventual vazamento de dados representando, ao mesmo tempo, um acidente de consumo. O que atrai a incidência do CDC, por força do artigo 17 do Código do Consumidor. Já nos artigos 42 a 44, a LGPD trata especificamente da responsabilidade civil, sem esquecer de outros dispositivos da própria Lei Geral que envolvem a responsabilidade civil, como o princípio da responsabilização e prestação de contas (artigo 6º, X), associando a não observância de adoção e realização de deveres de cuidado e transparência com as consequências danosas e os deveres de ressarcimento. E é destes dispositivos que nascem as teorias sobre os regimes estabelecidos, como é o caso da denominada responsabilidade civil proativa1, da responsabilidade civil objetiva pelo risco2, objetiva por falha nos deveres de segurança3 e, ainda, da responsabilidade subjetiva4, bem como de posicionamentos que compreendem pela coexistência dos regimes subjetivo e objetivo na LGPD5. Ou, ainda, uma responsabilidade civil objetiva por violação dos deveres de segurança agregada6 a um dever de proatividade e, pois de prevenção de danos. No tocante à responsabilidade civil por tratamento inadequado, não há7 exames pela doutrina ou jurisprudência. De toda forma, nota-se a previsão de responsabilidade civil por não adoção de medidas capazes de prevenir tratamento inadequado8. Acrescente-se que a LGPD igualmente impõe responsabilização para tratamento irregular que cause danos (caput do artigo 44). Assim, haveria as figuras de tratamento ilícito, tratamento irregular e tratamento inadequado. O primeiro acontece quando há tratamento em violação à legislação de proteção de dados, já o irregular "quando deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar", nos termos do mencionado artigo 44. Examina-se, então, o tratamento inadequado, sendo que não há previsão expressa sobre tratamento adequado9 (tampouco inadequado). Estaria a LGPD, ao distinguir tratamento inadequado de ilícito, dispondo sobre responsabilidade civil por ato lícito? Ou, ainda, seria, tal qual o CDC, um diverso regime de responsabilidade civil para além dos especificamente estabelecidos? Isso porque o CDC disciplina a responsabilidade civil pelo fato do produto ou do serviço, como também pelo vício. Além destes, há o direito básico do consumidor de prevenção e reparação de danos, sendo considerado como um terceiro regime de responsabilidade civil, qual seja, uma cláusula geral de responsabilidade civil no CDC10. Seria, assim, uma cláusula geral de responsabilidade civil na LGPD a responsabilidade civil por tratamento inadequado? O que poderia estar em consonância com os princípios expressos no referido diploma legal, notadamente com os princípios da prevenção e da responsabilização e prestação de contas. Nesse caso, na presença de danos injustos e ressarcíveis decorrentes de situações que envolvam tratamento de dados pessoais, sem que ocorra específica incidência de um dos artigos da LGPD, se poderia estar diante do dever de ressarcimento por tratamento inadequado de dados pessoais, ainda que não haja ilicitude. Com efeito, a Lei Geral traz campo fértil aos estudos sobre responsabilidade civil. De forma que o presente texto compartilha dúvidas para, quem sabe, lançar novas sementes para investigações ainda necessárias. ____________ 1 BODIN DE MORAES, Maria Celina; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGPD. Cadernos Adenauer xx (2019), nº 3. Proteção de dados pessoais: privacidade versus avanço tecnológico. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, outubro 2019. 2 MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Compliance digital e responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 263-297. 3 CRAVO, Daniela Copetti; KESSLER, Daniela Seadi; DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Responsabilidade Civil na portabilidade de dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 185-201. Nesse sentido: "Logo, sejam os "vazamentos" considerados espécie do gênero "incidente de segurança" - como sugere a ANPD - ou uma categoria sui generis de ilícito relativo a dados pessoais, fato é que sua ocorrência será determinada pela concretude danosa de natureza patrimonial, moral, individual ou coletiva (art. 42), catalisada pela irregularidade da atividade de tratamento, cuja aferição não deverá se pautar por qualquer espécie de culpa, mas pela identificação casuística das situações acidentais ou ilícitas (art. 46) que permitam concluir, a partir de circunstâncias objetivas (art. 44, I a III), que o tratamento realizado, em qualquer de suas etapas, até mesmo após o término (art. 47), não oferece a segurança esperada pelo titular (arts. 44, caput, e 49), e desde que o nexo causal não seja excepcionalmente afastado (art. 43)." FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados/351388/o-que-e-afinal-um-vazamento-de-dados 4 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Término do Tratamento de Dados. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato coord. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro [livro eletrônico] / 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 5 SCHREIBER, Anderson. Responsabilidade Civil na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In: DONEDA, Danilo et al. Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 330-349. 6 MAIMONE, Flávio Henrique Caetano de Paula. Responsabilidade civil na LGPD: Efetividade na proteção de dados pessoais. 1ª ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. 7 Ao menos, não foi encontrada fonte em sentido diverso. 8 Ou de tratamento ilícito, fazendo uma distinção entre esses dois tratamentos que podem ensejar responsabilização: inadequado ou ilícito. 9 A Lei Geral refere-se ao termo (in)adequado noutros dispositivos, cujas menções não parecem guardar relação com o "tratamento inadequado". Destacamos, ainda, que a LGPD impõe o cumprimento do princípio da adequação (artigo 6º, II), pelo qual deve haver, simultaneamente, compatibilidade entre as atividades de tratamento de dados e o princípio da finalidade e, ainda, conformidade destas atividades com o contexto do tratamento. Se pensarmos que tratamento inadequado seria um tratamento que viole referido princípio, ao que parece, estaremos declarando que uma violação a esse princípio seria diferente de tratamentos que violem os demais princípios da Lei, sendo que violação a princípio em si (que causar danos) enseja responsabilidade por tratamento ilícito. Reforçamos, assim, não enxergar uma específica responsabilidade civil por violação a um específico princípio, como seria uma violação ao princípio da adequação. Apenas destacamos referido princípio pela nomenclatura utilizada no diploma legal, todavia não entendemos que seja essa a resposta para o exame aqui iniciado. 10 BESSA, Leonardo Roscoe. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
É atribuida à tradição jurídica anglo-americana (common law) a criação do instituto do  punitive damages, definidos como "danos, diferentes daqueles do tipo compensatórios ou nominais, impostos contra uma pessoa para puni-la em razão de sua conduta ultrajante e impedir a ela e a terceiros de incorrerem na mesma conduta no futuro" (tradução nossa)1 (BRUGGGEMAN, 2010). No instituto dos punitive damages há a previsão de sujeição do ofensor a um dever de indenizar em quantia superior ao dano,  resposta retaliatória a conduta ilícita, não se tratando de uma indenização compensatória. Nos punitive damages, o valor estabelecido é disposto distintamente do qunatum reparatório e/ou compensatório,  respondendo como forma de sanção contra o comportamento lesivo caracterizado por grave negligência, malícia ou opressão, ou seja, ato ilícito. Por sinal, valor é substancialmente maior do que seria necessário para compensar o dano sofrido (punição e prevenção punição / MARTINS-COSTA, 2005). Os punitive damages, portanto,  têm como objetivo: educação; retribuição; reforço da lei; prevenção pela exemplaridade e compensação (OWEN, 1994). Na jurisidição brasileira a denominado como Teoria do valor do desestímulo, pois visa inibir certas práticas de forma difusa e reiterada (Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimento no agravo de instrumento 850.273-BA. Quarta Turma. Relator: Desembargador Honildo Amaral de Mello Castro (convocado do Tribunal de Justiça do Amapá). Data de julgamento: 03 ago. 2010. Data de publicação: 24 ago. 2010). Logo, mesmo se considerando a exigência da tradição jurídica liberal do Direito do "tripé" da ilicitude, ou seja, causa (culpa), dano e nexo causal para a caracterização da responsabilidade, deve-se atentar também contra a violação do direito em si, o dano ao Direito, ao sistema de tutelas e, consequentemente as perdas patrimoniais e extrapatrimoniais (morais/existenciais) da vítima, conforme a prática jurídica da "common law", por sinal de inspiração jus romana clássica (ROSENVALD, 2017). Citando Jhering (2001), "também as leis do Estado, a ordem jurídica e a lei moral. Será que o devedor, que discorda do preço estabelecido com o vendedor, o locador, que não cumpre o contrato, o mandatário, que trai minha confiança, enganando-me, não fazem o mesmo?" Pois bem, o equívoco é afirmar que instituto jurírdco dos punitive damages ou da responsabilidade "sem dano", seria alienígena ao sistema romano-germânico. Constrariamente, o punibilidade em resposta ao ilicito civil estave presente seja na Lex Duodecimum Tabularum, na Lex Aquilia de damno e com nuancas no Direito Justinianeu. A ênfase no delito dano inicia-se na Baixa Idade Média, no Direito Canônico e influenciou o Direito Moderno Liberal, atendendo a reivindicações emancipatórias, da mínima intervenção do Estado na vida privada e da proteção dos direitos à propriedade e de propriedade (relacionadas à liberdade material e segurança jurídica). A tradição jurídica romana e a função punitiva da responsabilidade civil O termo resposanbilidade civil, advém da termo latino spondeo/spondere, que na tradição jurídica latina, não era associada à sanção ou à coercitividade retaliatória/reparatória, mas a uma medida solene (fas), associada a contratos verbais (direito quiritário), sujeitando o devedor ao credor, após a resposta de uma pergunta: Spondesne (garatntes)? Spondo (garanto)! A responsabilidade no direito romano estava, a partir do século II DC,  associada ao termo Obligatio, aquilo que se esta ligado, a consequência coercitiva do descumprimento de um Debitum (nexum era entendido como sujeição, o iussum - dever), ou seja, a obrigação quando descumprida gerava respostas coercitivas exigindo o cumprimento e alcançando seu patrimônio. No ius civile romanae, inicialmente, se reconhecia em sentido amplo a Iniuria, ou ofensa, não apenas na dimensão reparatória, mas na perspectiva punitivo-pedagógica. Por sinal, o intuito primeiro era responder ao ilícito. Entende-se, portanto, que a sanção aos delitos privados, possuía natureza de pena privada. No direito privado romano, reconhecia-se três tipos de danos: a) furtum et rapina, danos resultantes de apropriação indevida da propriedade; b) iniuriae, danos causados contra a pessoa; c) o damnum iniuria datum, prejuízos contra propriedade corpórea; e d) dolus et metus, danos resultantes de atos maliciosos (dolosos). É importante salientar que o termo iniuria era tratado de forma ampla, ou seja, qualquer forma de ofensa, patrimonial ou pessoal, ou de forma específica, restringindo-se apenas as questões de ordem moral. Sobre a iniuria stricta, reconhecida como uma delictum maleficium, era a modalidade de ofensa instramissível e intransferível, tendo dimensões não somente morais, mas patrimoniais, cuja a punição tinha uma dimensão incialmente retaliatória, mas visando uma compensação financeira ao agredido. Já a iniuria lata perseguia qualquer forma de dano, buscando pela aestimatio, não só a punição do agente, mas a valoração pecuniária da ofensa, o que já era previsto na Lex Duodecimum Tabularum, cumulativamente as penas de membrum ruptum e fractum ( já existia uma previsão primordial do in damnoe). Inclusive já era previsto na Lei das Doze Tábuas a actio pauperie, a actio de pastus pecoris e a actio de arboribus succissis, que será recepcionado pela Lei Aquilia sobre o dano. É importante ratificar que o resposta jurídica ao dano reporta-se a faz, a um direito religioso, sendo a sanção um sacrifício, um ato sacro de purgação ou expiação, ritualizado. Com a Lex Aqulia ad damnum (287 AC), a punição assume especificamente uma proteção ao patrimônio e a obrigatoriedade da compensação (simultaneamente /cumulativamente). Reconheceu-se o damnum iniuria datum, que fundamentava a responsabilização (aquiliana), na produção culposa de dano em coisa alheia.  O cálculo da pena era pecuniário e voltado para reparação ou compensação dos danos sofridos por proprietários (corpore corporis) e não proprietários (jurisprudencialmente non corpore sed corporis), porém o fim da sanção era atingir o comportamento antijurídico. Em casos de danos causados por coisas caidas, a actio de effusis et dejectis, previa a reparação e conjugada punição. Considerando a cláusula penal, ou stipulatio poenoe, o intuito era reforçar o cumprimento com uma advertencia de punibilidade patrimonial pela mensuração prévia da indenização. A stipulatio, portanto, por um pactum, estabelecia uma obligatio, sendo o credor protegido pela actio certae creditae pecuniae e o devedor sujeito ao actio bonae fidei. Logo, na responsabilidade era uma medida de condenação pecuniária determinada pelo juiz ou pelo credor. O cálculo era objetivo, considerando o valor da res (quanti e a res est), na perspectiva das perdas, o valor considerado pelo credor (id quod interest) e a apreciação do juizo (iudicia bonae fidei), resguardando a equidade. Considerando novamente a Lex Aquilia, mesmo sendo o marco da patrimonialização do direito romano, o intuito não era ressarcir, mas punir, não se considerando propriamente o valor de mercado, mas uma estimativa  de maior preço no ano anterior ou nos trinta dias anteriores ao acometimento do dano. Logo, a condenação poderia ser superior ao prejuizo em si. Com o colapso do Império Romano Ocidental, observa-se um profundo retrocesso no direito privado, sujeintando-se a um primordial direito consuetudinário e retaliatório. Na baixa Idade Média, com a restauração das rotas comerciais entre Europa e Oriente, por via do Mediterrrãneo, o Direito Romano e as noções de ilicitude civil e responsabilização ressurgem, por via dos glosadores, mas sob influência do Direito Justinianeu, que associava o delito aquiliano (ou privado) ao delito de dano (a reparação, e não mais  punição, é o teleos da responsabilidade). A fórmula id quod interest é aprimorada por meio do reconhecimento de duas referências de cálculo: o dano emergente (damnus emergens) e o lucro cessante (lucrum cessans). O modelo reparatório de responsabilidade, desenvolvido no direito canônico, será a base para o direitos liberal, atendendo sua bandeira emancipatória e securitária. Isso já se observa no século XVII, com a construção do conceito abstrato e uniforme de Dano, que substituiu o modelo fragmentário.  A reposnsabilidade assume uma função prioritariamente reparatória em uma acepção amplissima de de Dano. O Código Civil Francês  de 1804, a responsabilidade se reduz na consequência do fato humano culposo causador do dano, tendo como fim a reparação (art.1382). Há o reconhecimento da cláusula geral do Dano (categoria única e abstrata) no intuito de combater, em princípio, qualquer deminutio patrimonial. Logo, o dano ílcito e o dano culposo e indenizável. Observa-se, portanto, que as medidas punitivas tornaram-se exclusivas do direito penal, objeto de tutela da ordem pública. Responsabilidade civil e a modernidade liberal: emancipação, segurança jurídica e patrimonialidade. A se abordar o termo Modernidade, o que se expõe é um projeto filosófico e fenômeno sociocultural com dimensões civilizacionais.  A Modernidade como expressão do mundo da vida (Lebenswelt, mundo sociocultural), repositório de sentidos e símbolos compartilhados ("consciência coletiva"). A Modernidade é, portanto, um conjunto de valores substanciais e símbolos vinculados a uma forma de vida específica e formados no processo histórico-social ocidental, desenvolvendo-se como projeto intelectual de ruptura, de contestação de uma ordem político-econômico-moral preexistente, tendo como bandeira a emancipação, a autenticidade do indivíduo pelo livre-arbítrio, pela da autodeterminação do homem (soberania decisória pessoal), como forma de alcance da autossatisfação (patrimonial e extrapatrimonial). Neste sentido, o homem é protagonista no processo de ruptura e modificação de valores. A emancipação pressupõe pluralidade, a sujeição da coletividade à autonomia, a transição da organização coletiva comunitária em societária, desierarquizada e comutativa. A sociedade política como sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. O "tripé" principiológico da modernidade liberal (emancipação, pluralidade e secularidade) pressupõe a formação de um Estado de Direito e um sistema de tutelas fundamentais. No caso do direito privado que visa garantir autenticidade/dignidade da pessoa pelas vias dos direitos de personalidade; no exercício negocial e familiar, a mínima intervenção dos Estado; e a liberalidade na constituição patrimonial, com segurança na conservação. Nos espaços privados, a liberdade é um atributo natural ao homem, justificado por leis morais racionais universais. O exercício da facultas agendi  sujeita-se a requisitos racionais-procedimentais decisórios, viabilizando o exercício da autonomia. Enfatizando, a autonomia da vontade manifesta-se em três momentos: pelo livre arbítrio o homem individualiza suas escolhas, juízos e projetos de vida; pela autodeterminação a vontade se faz em ação; pela autorrealização, o homem busca pela sua própria ação o seu sustento, a sua autonomia material, ou seja, a ação como trabalho. Porém, a autenticidade decisória (autonomia), pressupõe sociabilidade/alteridade. Logo, há o imperativo moral de sujeição da liberdade à responsabilidade. A autonomia da vontade, comporta o sentido de dever. Porém, nos espaços privados, o preceito moral racional da autorresponsabilidade é exclusivamente moral, não tendo uma repercussão cogente de natureza punitiva. A heteronomia jurídica, que tem como fim a uniformização de condutas, acaba, no direito privado, por afiançar a supremacia decisória nos espaços particulares e a segurança jurídica resultante da liberdade material (obtenção de bens). A ponte entre a vontade e a ação se encontra na patrimonialidade/ propriedade. A propriedade privada é tratada como a extensão do direito à liberdade. A liberdade no exercício do trabalho/empreendimento, que se objetiva no produto ou no recurso (a moeda como unidade de valor), saciando as necessidades essenciais, segurança pessoal e acúmulo de riquezas. Sem patrimônio não há o que falar de um futuro garantido (JHERING, 2002). Ao se falar, assim, do direito à propriedade, é necessária a divisão em duas espécies: o Direito à propriedade (direito dinâmico e imediato/ obtenção) e o Direito de propriedade (direito estático e mediato / conservação). O direito de propriedade consiste na manutenção daquilo que foi adquirido. As responsabilidades só são aventadas no direito privado liberal-continental- europeu, quando há o atentado intencional contra bens e direitos do outro-eu, no intuito da reparação/compensação, não como sanção/cerceamento deliberativo. Daí a percepção que ilícito civil só existe com a existência de culpa, dano e nexo causal. A responsabilidade se legitima como garantidora da Segurança Jurídica, na certeza, clareza, objetividade e estabilidade (amparado pela força coercitiva de natureza indenizatória), sem se tornar meio de colonização e opressão da autonomia pessoa e da intersubjetividade.  ALMEIDA, José Luiz Gavião de (Org.) Temas atuais de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2007. ANDRADE, André Gustavo Correa de. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. 18ª ed. rev. - Rio de Janeiro: Forense, 2018 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. Revista dos Tribunais, no 32, 1993 BRAGA NETTO, Felipe et al. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. BRUGGGEMAN, Véronique. Compensating catastrophe victims: A comparative law and economics approach. Holanda: Kluwer Law International, 2010. CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade civil sem dano: uma análise crítica. São Paulo: Atlas, 2014. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A punição na responsabilidade civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: WMF, Martins Fontes, 2012, vol. 2. IHERING, Rudolph. A luta pelo direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001 JUSTO. A. Santos. Breviário de direito privado romano.  Coimbra: Editora Coimbra, 2010 OWEN, David G. A punitive damages overview: Functions, problems and reform. Disponível em . Acesso em: 12 jan. 2018. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz et al (Coords.). Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem à Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. ROSENVALD, Nelson. Uma reviravolta na responsabilidade civil. Disponível aqui, consulta em 11/05/2022. TAYLOR, Charles. A secular age. Harvard: Belknap Press, 2007 Walzer, Michael. Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes _______________ 1 No original, em inglês: "[...] damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a person to punish him for his outrageous conduct and deter him and others like him from similar conduct in the future".
A noção do dano indireto ou reflexo ainda é objeto de discussão pela doutrina brasileira e seu sentido poderá variar conforme o ordenamento jurídico analisado. Durante a evolução do regime jurídico do common law, no século XVIII, a reparação do ilícito (Torts), na perspectiva do dano direto, era tratada como trespass e o exemplo clássico era dado pelo ato de alguém atirar uma pedra atingindo outrem; o dano indireto, por sua vez, denominado trespass on the casei, cuidava da ausência de uma ação, a exemplo de alguém que tropeçava em um bastão deixado no chão e vinha a se ferir. Em síntese, os exemplos tratavam de danos provocados por ação, na modalidade direta, e danos decorrentes da negligência do ofensor, na modalidade indireta.ii     Nos sistemas romano-germânicos, o dano indireto tem seguido outras linhas e sentidos e houve certa resistência quanto à sua aplicação. Na França, por exemplo, Geneviève Viney ressalta a evolução e o reconhecimento de determinada categoria de danos que ultrapassam os danos sobre a vítima, atingindo outras pessoas a ela relacionadas, por isso conhecidos como danos por ricochete (dommage par ricochet). O dano por ricochete é identificado especialmente em decisões do final do século XIX e reiteradas no século XX, em que há o reconhecimento aos parentes da vítima de uma indenização de  ordem moral (préjudice d'affection), atrelada especialmente às situações em que há homicídio ou lesão grave.iii Portanto, o dano indireto aqui verificado, diferentemente da situação indicada para os casos do common law,  não trata de situações de negligência, mas de danos provocados à esfera própria e pessoal de um terceiro vinculado à vítima do dano por afeição e parentesco. No Brasil, a divisão e a noção do dano direto e indireto não apresentam propriamente um consenso, contudo pode-se considerar que, ao menos no estágio inicial do desenvolvimento da matéria, há semelhança parcial entre o conceito brasileiro e aquele presente no regime civil francês. Tradicionalmente, são indicados como danos indenizáveis, em conformidade com o art. 403 do CC, aqueles relacionados direta e imediatamente com o fato gerador do prejuízo.  Trata-se da imediatidade do nexo causal. Logo, como justificar o dano indireto como indenizável nesse contexto?iv Rafael Peteffi da Silva oferece uma noção do dano indireto ou reflexo ressaltando-o como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.v Ocorre que um mesmo fato, provocado por ato ou omissão do agente infrator, poderá repercutir em danos de natureza diversa (danos emergentes, lucros cessantes, dano existencial, dano moral, entre outros) na esfera própria de pessoa distinta da vítima inicial, mas sempre preservado o liame jurídico com o dano suportado pela primeira vítima. Logo, o lesado indireto apresenta dano próprio que é consequência do ilícito provocado pelo ofensor à vítima (lesado direto). É dano reflexo, pois atinge imediatamente um primeiro sujeito e indiretamente alcança os interesses dignos de proteção de um segundo sujeito lesado, sendo este vinculado àquele,vi mas não há vínculo prévio em relação ao ofensor e ao lesado indireto. A materialização do vínculo, consistente no dever de reparar, surge somente a partir do momento em que há a constatação do dano suportado pelo lesado inicial, com reflexos (de ordem extrapatrimonial e patrimonial) sobre o lesado indireto. O liame jurídico dessa triangulação, portanto, justifica-se pelas teorias sobre o nexo de causalidade e, entre elas, ressaltamos o fundamento da subteoria da causalidade necessária, como um desdobramento da teoria da causalidade direta e imediata que se encontra expressa no art. 403 do CCB. A subteoria em questão foi atribuída a Charles Dumoulin na obra de Agostinho Alvim, e, pela referida subteoria, admite-se que a causa próxima e a remota possam ser justificativas do dever de indenizar pelo agente ofensor, desde que, no segundo caso, haja a permanência de sua relação direta com o dano.vii Logo, se o dano indireto é essencialmente decorrente da primeira relação jurídica geradora do dever de reparar - constituída pelos danos que a vítima sofre em virtude da ação ou omissão do ofensor -, a causa é única e direta, o que justifica o dever de reparar na segunda relação jurídica, não raras vezes, de consequência subsequente à primeira, constituída pelos danos que recaem sobre a pessoa distinta da vítima inicial, mas que com ela se encontra conectada. Atualmente, o dano indireto ou reflexo (ricochete) é tradicionalmente apontado na hipótese tratada pelo art. 948 (incisos I e II) do Código Reale, de modo semelhante à previsão contida no art. 1.537 (incisos I e II) do Código Beviláqua, voltada para os casos em que ofensor, responsável pelo homicídio da vítima, ficava obrigado à prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, sem prejuízo do pagamento das despesas com o tratamento da vítima, funeral e luto da família. Todavia, essa compreensão se encontra atualmente ampliada com contemporizações dadas pela doutrinária e decisões judiciais dos tribunais. É o que justifica o Enunciado n.º 560 da VI Jornada de Direito Civil do CJF ao afirmar que, "no plano patrimonial, a manifestação do dano reflexo ou por ricochete não se restringe às hipóteses previstas no art. 948 do Código Civil". Quanto ao tema, podem-se cogitar como dano patrimonial reflexo as despesas que uma família necessita realizar para adaptação do lar, ou mesmo mudança de residência, a fim de melhorar a vivência do parente ou amigo vitimado em acidente de trânsito com sequela grave e irreversível. Mesmo assim, trata-se de uma matéria que necessita de cautelosa construção no Brasil, sobretudo para compreender a noção do dano indireto indenizável no contexto que extrapola as situações de morte e lesão corporal grave com reflexos de danos patrimonial e extrapatrimonial na esfera dos lesados indiretos que se vinculam à vítima (pessoa natural) por elos assistenciais ou afetivos. Daí a relevância dos estudos e das pesquisas sobre as hipóteses de ressarcimento de dano indireto ou reflexo. Nessa perspectiva, não é simples encontrar decisões nesse sentido no Brasil. Isso porque a noção de dano indireto patrimonial não guarda um sentido comum e único nas decisões judiciais (acompanhando a ausência de uniformidade da doutrina). Na recente decisão da 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 50000521920198210022, com a relatoria do Desembargador Carlos Eduardo Richinitti, julgado em 27 de abril de 2022, notamos situação fática que, inicialmente, poderia auxiliar na compreensão da modalidade de dano reflexo patrimonial indenizável, não vinculado à vítima, como pessoa natural. Na situação fática, o dano ambiental consistiu no derramamento acidental de ácido sulfúrico pelo Navio Bahamas, atracado no Porto de Rio Grande, sendo atingido o estuário da Laguna dos Patos. O dano imediato foi ao meio ambiente, compreendido como direito difuso ao meio ambiente equilibrado, reconhecidos em ação civil pública precedente, com a condenação da empresa adquirente do produto químico, entre outras, na cadeia de transporte, à indenização aplicável. Além disso, dada a impossibilidade de pesca no local, com prejuízos às empresas do lugar e aos pescadores, bem como à população da região, reconheceu-se, em ação de indenização individual, o ressarcimento dos danos materiais indiretos aos pescadores que tiveram seus rendimentos afetados pelo acidente ambiental.viii A decisão indica a teoria do risco integral a mitigar exigências relacionadas ao nexo de causalidade e aponta a responsabilidade da tripulação e do comandante do navio no caso, o que poderia levar à revisão do nexo de causalidade até aqui exposto, com a consideração do dano direto na perspectiva da cadeia de prejuízo subsequente (ou seja o dano imediato inclui os danos ao meio ambiente e aos pescadores). De todo modo, duas decisões são apresentadas como justificativas do Enunciado supracitado. A primeira, da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconheceu-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos.ix A segunda decisão, da 7.ª câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0159983-31.2006.8.26.0000, com relatoria da Desembargadora Constança Gonzaga, julgado em 26 de maio de 2011, condenou instituição de ensino particular ao ressarcimento de dano patrimonial indireto ao Estado, pelo furto do fardamento de um soldado (integrante do corpo de bombeiros do Estado), que se encontrava no interior de veículo parado em estacionamento ofertado pela instituição.x Esteja, portanto, o leitor prevenido de que a identificação do dano como indireto, para além do exemplo simples e tradicional (art. 948 do CC), como favorece o enunciado em comento, é frequentemente uma questão em debate, demandando aprofundamento técnico na designação de certo dano como direto e outro, indireto. De todo modo, ainda que a importância do tema mereça desenvolvimento detido, o que não será possível nestas breves linhas, observa-se cada vez mais a indicação da expressão "dano indireto" em cláusulas que visam estabelecer limites indenizatórios em relações civis e empresariais (habitualmente precedidas de negociação), o que tem sido reconhecido como válido por decisões judiciaisxi e que, atualmente, encontra reforço nos incisos I a III, além do caput do art. 421-A do CCB, incluído pela lei 13.874/19. Tais cláusulas, que versam sobre direitos disponíveis, não incluem os casos de responsabilidade por culpa grave e dolo, sendo sua aplicação restrita aos contratantes em situação de paridade no âmbito da responsabilidade contratual, permanecendo resguardado o terceiro lesado que está amparado na responsabilidade extracontratual.   __________________ i GRAMSTRUP, Erik. O 'Tort' anglo-saxão e norte-americano, in da Estrutura à função na responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) a professor Renan Lotufo. Coord. Alexandre Guerra. [et. al.], Indaiatuba: Foco, 2021, p.532. ii TESAURO, Paolo; RECCHIA, Giorgio. Origini ed evoluzione del modelo del "torts". In: MACIOCE Francesco (a cura di). La responsabilitità civile nei sistemi di common law. Padova: Cedam, 1989. v. I, p. 143 e 147. iii VINEY, Geneviève. Traité de droit civil: introduction à la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 1989. p. 150-151. iv ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 341. v SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e  de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul./dez. 2012. vi ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil cit., p. 402. vii ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jurídica e universitária, 1965, p. 338-339. viii TJRS, 9.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 50000521920198210022, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 27.04.2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2022. ix STJ, 4.ª Turma, REsp n.º 753.512/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, relator para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 16.03.2010, DJe 10.08.2010. Disponível aqui. Acesso 30.05.2022. x TJSP,  7.ª Câmara de Direito Público, Foro de Marília - 5.ª Vara Cível, Apelação Cível n.º 0159983-31.2006.8.26.0000, Rel. Constança Gonzaga, j. 26.05.2011, registro 1.º.06.2011. xi Nessa linha: TJMG, 14.ª Câmara Cível, Apelação Cível  n.º 1.0024.13.304475-0/001, Rel. Des. Cláudia Maia, j. 27.04.2017, publicação da súmula em 05.05.2017.
Diante do surgimento e da ascensão da internet, destacou-se uma nova categoria de profissionais - a dos influenciadores digitais -, que são os maiores difusores de produtos ou serviços de diversas marcas, visto que são acompanhados diariamente por milhares de seguidores. Em apenas um "clique" milhares de potenciais consumidores são alcançados, público que dificilmente seria atingido por outro meio ou canal de comunicação. Os influenciadores digitais se utilizam do seu forte poder de persuasão junto ao público para a venda de produtos e serviços, e sua influência independe do número de seguidores que possuem, pois ela é medida através do engajamento dos seus seguidores com o conteúdo postado. Por essa razão, têm sido cada vez mais responsabilizados por prejuízos experimentados por consumidores insatisfeitos com os produtos e serviços adquiridos e que não atenderam às suas expectativas. Um exemplo disso foi a informação veiculada pelo portal do UOL notícias, de que conhecidos influenciadores como Rafa Kalimann, Jojo Toddynho, Luisa Sonza, Carla Diaz e outros, em um total de 21, foram processados, em razão da suposta propaganda enganosa de um iPhone. Os referidos influenciadores acabaram sendo citados no processo movido pelo consumidor, que alega não ter recebido os dois celulares que teria comprado. O consumidor afirma que somente se sentiu confiante para comprar com a empresa em razão da credibilidade dos influenciadores que estavam fazendo a propaganda, razão pela qual entendeu que eles também seriam responsáveis pelos prejuízos e danos sofridos, pois foram as propagandas informando sobre a solidez e confiabilidade da empresa nas redes sociais que o fizeram crer que a fornecedora do produto era confiável e a entrega do produto seria realizada.1   O caso aconteceu em 2018 e a ação tramita na 4ª Vara Cível de Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Tal fato nos leva a questionar: Qual é o limite da responsabilidade desses influenciadores digitais pelas ações publicitárias veiculadas em suas redes sociais? Pode-se dizer que os influenciadores digitais são indivíduos que utilizam seu carisma e grande poder de persuasão para incentivar novos hábitos de consumo por meio de produção de conteúdo próprio e fomentar o consumo de produtos e serviços. Segundo a plataforma estadunidense, Insights for Professionals, os microinfluenciadores não são celebridades, mas podem atuar de maneira mais eficaz que muitos perfis famosos. Para Gabriel Weimann, presidente do Departamento de Comunicação e professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Haifa, o influenciador pode ser definido como: "usuário que tem a capacidade de persuadir uma rede de contatos por meio da propagação de informações, exercendo uma espécie de autoridade, permitindo que suas mensagens sejam transmitidas de forma mais rápida e com maior credibilidade"2 Portanto, influenciadores digitais são indivíduos que exercem demasiada influência sobre um determinado público e, através de diálogos informais com seus seguidores, tem o poder de influenciar a mudança de opiniões e padrões comportamentais, pois eles possuem a ideia, a impressão de que os influenciadores são indivíduos mais acessíveis, próximos a eles, já que são alcançados por um meio informal e, até há pouco tempo, pouco tradicional, o que muitas vezes faz com que percam a percepção do que é publicidade e o que é natural. Assim, a contratação dos influencers tornou-se uma alternativa para empresas que apostam que o público-alvo de divulgação está justamente nos perfis desses criadores de conteúdo, e não estão errados. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Qualibest, os influenciadores digitais são a segunda fonte de informações para a tomada de decisão na compra de um produto, perdendo apenas para amigos e parentes.3 . Analisando isso, percebe-se que os influenciadores digitais estabelecem com seus seguidores uma relação de consumo conexa à relação principal, atuando assim como "ajudantes" para que esta última aconteça, pois é certo que sem a divulgação dos influenciadores digitais, as marcas teriam mais dificuldade para alcançar um grande público, motivo pelo qual a utilização dessas personalidades como seus porta-vozes têm se tornado cada vez mais comum. Sendo assim, na relação de consumo entre a empresa fornecedora do produto e/ou serviço divulgado e o consumidor atraído pela credibilidade da celebridade que divulga a propaganda nas redes sociais, os influencers digitais podem ser enquadrados no conceito de fornecedor por equiparação, devido à criação de conteúdo, facilitação da comercialização e ampla divulgação dos produtos e serviços de consumo realizados por eles, atividades que lhes geram lucro. No fornecimento por equiparação, a relação de consumo conexa contamina a relação principal, que pode ser de consumo, e atrai a incidência do arcabouço normativo consumerista. Claudia Lima Marques resumiu a teoria do fornecedor equiparado, definindo-o como: "aquele terceiro na relação de consumo, um terceiro apenas intermediário ou ajudante da relação de consumo principal, mas que atua frente a um consumidor ou a um grupo de consumidores como se fornecedor fosse"4 Basicamente, o fornecedor por equiparação seria um terceiro, que serve como ajudante na aproximação entre as marcas e os consumidores para que a relação principal entre consumidor e fornecedor se realize, atuando perante aquele - no caso dos influencers, atuando perante os seguidores - como se fornecedor fosse. O intermediário seria o responsável pela relação conexa à principal, por possuir uma espécie de poder de influência na relação com o consumidor, como é o caso dos influenciadores digitais. Ao enquadrar o influencer como fornecedor por equiparação, ele se torna parte integrante da cadeia produtiva de consumo e, ao ter uma atuação desregrada, causando prejuízos ao consumidor, ofendendo os princípios da boa-fé objetiva, da confiança e da função social dos contratos, deve ser responsabilizado de forma objetiva. Dessa forma, à luz do artigo 7º, parágrafo único, do CDC, havendo mais de um agente envolvido na cadeia de consumo, todos responderão solidariamente pela reparação do dano, sendo que a responsabilidade dos agentes envolvidos na atividade de colocação de produto ou serviço no mercado de consumo é de natureza objetiva, não se fazendo necessária a presença da culpa para que se configure o dever de reparar o dano. Portanto, todos os responsáveis solidários respondem pelo descumprimento de seus deveres, não havendo necessidade de comprovação de culpa, visto que a natureza da responsabilização é objetiva. Nessa mesma linha, estabelece o artigo 422 do CC5 que os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé6. Relacionado a esse artigo, o Conselho de Justiça Federal emitiu o Enunciado 36356, o qual estabelece que são de ordem pública os princípios da probidade e da confiança, motivo pelo qual cabe à parte lesada demonstrar apenas a existência da violação desses princípios, não havendo necessidade da demonstração de culpa. Portanto, tomando como base no enunciado, havendo violação do princípio da confiança e da probidade pelo influenciador digital, não há necessidade de que o ofendido comprove a culpa do criador de conteúdo, devendo apenas demonstrar a violação desses princípios. Logo, entende-se que o influenciador passa a responder de forma objetiva, levando em consideração a relação de confiança entre os influenciadores e potenciais consumidores, fazendo com que, ao se depararem com um anúncio veiculado por um influenciador, os consumidores criem legítimas expectativas, as quais devem ser protegidas e, caso contrariadas, causando prejuízos, geram dever de reparação. Ressalta-se, portanto, a importância de o influenciador atentar-se à veracidade das informações repassadas, além de agir com cautela ao realizar a publicidade, de forma que não cause prejuízos à saúde física e/ou mental do consumidor. Preceitua Nelson Rosenvald7 que a melhor solução para proteger os três polos dessa relação de consumo (influenciadores, marcas, seguidores) demanda o seguinte: "(...) Um ônus de informar qualificado a quem contrata a celebridade; um "dever de se informar" por parte de quem empresta a sua fama a uma publicidade respeitante às qualidades e riscos daquilo que comercializará e, uma percepção mínima por parte do público do que objetivamente consiste em uma "expectativa" e o que de fato aquele produto possa lhe proporcionar e, além disso, se efetivamente vale a pena se vincular com aquele fornecedor." Nessa mesma linha, afirma Gustavo Tepedino que "em matéria de informação, tão importante quanto a cooperação do devedor é a cooperação do credor", pois também é dever do credor esforçar-se para obter as informações necessárias, relevantes e acessíveis sobre o produto/serviço que pretende anunciar e, caso contrário, deixaria de agir conforme a boa-fé objetiva, assim como os representantes das marcas que falham com seu dever de informação. Porém, ressalta o autor que deve ser ponderada a assimetria informacional entre as partes e o grau de vulnerabilidade do credor da informação, visto que, "quanto maior a assimetria, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar"8 O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária9, em suas normas10, define os princípios éticos que devem nortear a publicidade e, entre eles, está o cuidado com o depoimento de pessoas famosas, estabelecendo que esses indivíduos devem ter uma atenção especial às recomendações do Código. Também prevê o Código que o anúncio testemunhal da pessoa famosa não deverá ser estruturado de maneira que iniba o senso crítico do consumidor em relação ao produto, além de estabelecer que o anunciante que recorrer ao testemunho de pessoa famosa deve ter presente a sua responsabilidade para com o público. Observa-se, portanto, que o dever de informação alcança os contratantes e os influenciadores. Os criadores de conteúdo não suportam sozinhos o ônus de atentar-se às especificidades dos produtos divulgados, visto que as marcas também devem lhe prestar as devidas informações, mas tal fato não os exonera do dever de verificar os riscos de anunciar determinado produto ou serviço e a qualidade deles, pois os influencers também têm o dever de ser informar sobre o que está sendo veiculado, sob pena de responderem solidariamente. Segundo o STJ, o anúncio da oferta integra o contrato e, assim, o fornecedor (direto ou indireto) se responsabiliza pelas expectativas que a publicidade desperta no consumidor, o que exige do anunciante, nesse caso, do influenciador digital, os deveres de lealdade, confiança, cooperação e informação, sob pena de responsabilidade11. Portanto, considerando que os influenciadores digitais obtêm vantagem econômica com os anúncios e demais atividades produzidas em suas plataformas digitais, é necessário que assumam o ônus de sua atividade caso não se comportem de maneira proba. O ex-Ministro do STJ, Castro Filho, ao proferir seu voto no Recurso Especial 578.777/RJ, afirmou que a propaganda, em alguns casos, vincula um produto à imagem de determinada pessoa. Essa estratégia é utilizada para "fazer crer que a coisa anunciada tenha as vantagens apregoadas pela pessoa que as afirma. E o efeito positivo do anúncio dependerá do prestígio público de quem faz a propaganda"12 Portanto, o marketing de influência é muito utilizado atualmente, em razão da possibilidade de agregar as características da celebridade anunciante que, graças ao seu prestígio, contribui com a valorização do produto e estimula o consumo do bem ou serviço divulgado. Nesse sentido, Bruno Miragem13, também defensor da responsabilização objetiva dos influenciadores, comunga que devemos nos atentar para o fato de que a credibilidade das celebridades é transferida para o produto e/ou serviço divulgado, criando assim uma ponte entre fornecedor e consumidor, motivo pelo qual os influencers devem arcar com o ônus de sua atividade. Assim, considerando todos os argumentos expostos e enquadrando os influenciadores digitais como fornecedores por equiparação, conclui-se que, em razão dos influencers serem integrantes da cadeia de consumo, são responsáveis de forma solidária e objetiva por qualquer possível dano causado ao consumidor acerca dos produtos/serviços divulgados, pois os criadores de conteúdo, além do fornecedor principal, são incentivadores do consumo do bem/serviço anunciado. _____________ 1 Disponível aqui. 2 WEIMANN, Gabriel. The influentials: people who influence people. Albany: State University of New York Press, 1994. 3 PACETE, Luiz Gustavo. Meio e mensagem. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/06/2020. 4 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 104 5 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022 6 Art. 422. Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação. 7 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. P. 212. 8 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. 09 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022 9 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA - CONAR. Disponível aqui. 10. "2.1. O anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código. 2.2. O anúncio apoiado em testemunhal de pessoa famosa não deverá ser estruturado de forma a inibir o senso crítico do consumidor em relação ao produto. 2.3. Não será aceito o anúncio que atribuir o sucesso ou fama da testemunha ao uso do produto, a menos que isso possa ser comprovado. 2.4. O Anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa deverá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua responsabilidade para com o público." 11 STJ, REsp 1.365.609-SP (2011/0105689-3), rel. Min.Luis Felipe Salomão, 4ªT., j.28.04.2015 12 STJ, REsp 578.777/RJ (2003/0162647-7), rel. Min. Castro Filho, 3ª T., j. 24.08.2004 13 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 281.
Inúmeros indicadores apontaram a intensificação das mudanças climáticas diante de ações antrópicas nos últimos anos. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), divulgado no início deste ano, porém, concluiu que as mudanças climáticas já estão causando danos ao planeta e aos seres humanos1.  O planeta Terra está enfrentando as consequências negativas causadas por diversas condutas humanas que, ao promoverem o aumento da emissão de gases de efeito estufa (GEE), estão elevando anormalmente a temperatura média do planeta. Em termos dogmáticos, essas consequências negativas na composição da atmosfera mundial se traduzem no próprio dano ao clima ou danos climáticos, mas as ações antrópicas não se limitam a esses, cada vez mais o meio ambiente e a população vêm sentindo seus efeitos. As mudanças climáticas estão aumentando a frequência de eventos climáticos extremos, como o derretimento de geleiras, o aumento do nível do mar, as enchentes, as ilhas de calor e as subsequentes secas e queimadas, e, consequentemente, estão causando danos ambientais e danos às pessoas em escala mundial. No Brasil, os ecossistemas e a população já estão enfrentando danos decorrentes das mudanças climáticas nos últimos anos. Diversos relatórios e reportagens nacionais evidenciam os danos causados, por exemplo, pelo aumento anormal das chuvas no Sudeste e no Sul e pelo aumento da estiagem no Norte e no Nordeste2. Para além dos debates científicos e socioeconômicos, de escala mundial, a respeito do fenômeno do aquecimento global e da necessidade premente de limitação da variação da temperatura do planeta Terra, a atribuição do ônus específico de reparar os danos decorrentes das mudanças climáticas antrópicas ganha importância ímpar na sistemática nacional.    A imputação do dever de indenizar não foge à regra geral da responsabilidade civil ambiental, devendo-se comprovar os pressupostos clássicos da responsabilidade civil objetiva: dano, conduta antijurídica e nexo de causalidade. À luz do artigo 14, § 1º, da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída pela lei 6.938/1981, sabe-se que Art 14. [.] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. Todavia, apurar se a conduta humana deu causa ao dano climático e/ou aos danos daí decorrentes torna-se o grande desafio contemporâneo no âmbito das mudanças climáticas. Evidentemente nem todos os danos decorrentes das mudanças climáticas serão corrigidos pelo instituto da responsabilidade civil, mormente diante da indeterminação das fontes emissoras de GEE e da extensão mundial das consequências negativas. Uma fonte emissora de GEE localizada na América do Norte, por exemplo, pode desencadear mudanças climáticas que causarão danos ambientais em países da América do Sul. Como corolário lógico, a adoção de políticas públicas regulatórias de prevenção e reparação de danos urge no contexto mundial3. Sob outra perspectiva, a questão da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática nacional pode ser resolvida normativamente. Da leitura das diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela lei n. 12.187/2009, depreende-se que a norma estabeleceu a responsabilidade civil por danos climáticos diante da contribuição e do efeito da geração de fonte emissora de GEE para a subsequente mudança climática. Sendo importante citar que os incisos I e III do artigo 3º da PNMC dispõem sobre a correlação entre a participação da fonte emissora e a responsabilidade pelo lançamento e o impacto negativo no clima terrestre:  Art. 3º A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional, e, quanto às medidas a serem adotadas na sua execução, será considerado o seguinte: I - todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático; [...] III - as medidas tomadas devem levar em consideração os diferentes contextos socioeconômicos de sua aplicação, distribuir os ônus e encargos decorrentes entre os setores econômicos e as populações e comunidades interessadas de modo equitativo e equilibrado e sopesar as responsabilidades individuais quanto à origem das fontes emissoras e dos efeitos ocasionados sobre o clima; [...]. Em complementação ao PNMC, a alínea e) do inciso III do artigo 3º da PNMA definiu poluição como "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos". O legislador nacional estabeleceu o dever de indenizar os danos climáticos a partir do grau de tolerabilidade de emissão de GEE de acordo a atividade normalmente desenvolvida. Na precisa síntese de Annelise Steigleder, "o cumprimento ou não dos limites máximos de emissão de GEE consiste em um critério muito importante para a imputação da responsabilidade civil"4. Sempre bom pontuar, nesse contexto, que a antijuridicidade da conduta também está presente na responsabilidade civil objetiva, posto que, conforme elucida Rafael Peteffi da Silva, "o ordenamento jurídico cobre com o manto da antijuridicidade os fatos causadores de danos que estiverem dentro da área de atuação de determinado agente, ainda que a conduta normalmente desenvolvida, apesar de perigosa, não seja considerada, per se, ilícita"5. A partir dessas perspectivas, portanto, depreende-se que o pressuposto do nexo de causalidade deve ser analisado considerando a contribuição da emissão de GEE, implicando na relação direta entre a fonte poluidora e a alteração do clima. Uma empresa que ultrapassa o limite do tolerado pela norma jurídica, ainda que licenciada, está poluindo (conduta evidentemente antijurídica) e causando danos climáticos, porque está elevando objetivamente a temperatura do planeta e, ao menos tempo, violando o escopo de proteção da norma ambiental. Dessa forma, ao que tudo indica, as teorias clássicas do nexo de causalidade serviriam para resolver o problema da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática do ordenamento jurídico nacional. Mais precisamente, tanto a teoria da causalidade adequada quanto a teoria do escopo de proteção da norma violada serviriam de importante mecanismo para aferição do nexo de causalidade ao tratar de danos climáticos6. Longe de esgotar esta riquíssima temática, este pequeno ensaio buscou evidenciar um dos maiores desafios mundiais na contemporaneidade: as mudanças climáticas. É importante destacar que o clima terrestre sempre passou por ciclos naturais de aquecimento e resfriamento, mas as mais diversas condutas humanas estão alterando de forma anormal estes ciclos climáticos: a queima de combustíveis fósseis, as atividades industriais, o transporte, a agropecuária, o descarte de resíduos sólidos, o desmatamento etc. Urge, portanto, a necessidade de se avançar no combate às mudanças climáticas, especialmente na limitação da emissão de GEE para prevenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado7, numa perspectiva homem-natureza8. Da mesma forma que é premente o reconhecimento do dever de indenizar do agente-poluidor frente aos danos climáticos na realidade nacional, considerando como lente de análise a emissão de GEE acima dos índices normalmente permitidos para a atividade normalmente desenvolvida9. ________________ 1 Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Climate Change 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022. 2 Para conhecimento, ler: MUDANÇAS climáticas: como o aquecimento global afeta a vida no Brasil. National Geographic, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022. 3 Esse é, inclusive, o entendimento da Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu. 4 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (orgs.). Direito e mudanças climáticas: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010. 5 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Antijuridicidade como requisito da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, 2019. 6 Para maiores considerações, cf. JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. p. 671-687, 2020. 7 No Brasil possuímos o projeto de lei 1308/2021, atualmente em análise na Câmera dos Deputados, que visa instituir a Política de Promoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, definida em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU). 8 Expressão cunhada por BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano e ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, a. 3, n. 9, p. 10-52, jan./mar. 1998. 9 Os litígios climáticos estão crescendo no âmbito nacional e internacional. Para maiores considerações sobre o assunto, ler: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Desafios da responsabilidade civil frente às mudanças climáticas. Migalhas, 23 mar. 2021. Disponível aqui; e STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Os estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos. Migalhas, 13 abr. 2021. Disponível aqui.
Consoante já tivemos oportunidade de expor[1], a multiplicidade de fatores que concorrem, direta ou indiretamente, para o aquecimento global colocam em cheque as teorias da causalidade[2] para fins de imputação de responsabilidade civil por danos causados ou intensificados pelas alterações do clima. O aquecimento global é um fenômeno que, sob a perspectiva jurídica, pode ser interpretado como um dano cumulativo ao sistema climático, resultado de padrões civilizatórios baseados no uso de combustíveis fósseis pelo menos desde 1850. Somam-se às emissões de gases de efeito estufa - GEE por parte de atividades industriais ligadas ao carvão e aos combustíveis, as emissões veiculares, o desmatamento e de conversão do uso do solo, que eliminam os sumidouros naturais desses gases. Além das informações produzidas pelo IPCC[3] a respeito das origens do aquecimento global, a base de dados Carbon Majors aponta para as 100 empresas que mais emitiram GEE, concluindo que a indústria de combustíveis respondeu por 91% dos GEE industriais em 2015 e cerca de 70% de todas as emissões antropogênicas desses gases[4]. No entanto, isoladamente, estas fontes emissoras podem ser pouco significativas, de tal sorte que não se caracterizam como "a causa adequada", ou a "conditio sine qua non" do desequilíbrio do sistema climático. Ou seja, as teorias explicativas do nexo de causalidade, que foram concebidas com amparo em uma lógica linear de construção de causa e efeito,  mostram-se insuficientes para permitir a imputação de responsabilidade nos casos de danos cumulativos tão complexos. Diante desse impasse, no qual, de um lado ainda remanesce um certo apego à lógica da certeza e da segurança jurídica; e de outro a importância de dar uma solução para problemas tipicamente civilizatórios, que se apresentam com um produto da sociedade tecnológica, defenderemos nesse breve estudo que se possa avançar para a adoção da causalidade estatística, quando os danos forem o resultado de uma combinação de variações naturais e antrópicas, produzidas ao logo do tempo, sem que se tenha certeza a respeito de condições diretas ou adequadas que determinaram a produção do dano. Facchini Neto vislumbra que o recurso à causalidade estatística é uma forma de flexibilização da lógica da certeza no âmbito do nexo de causalidade, para fins de responsabilização civil. Argumenta que A abertura do juiz para as contribuições de outras ciências faz com que o julgador perceba que a convicção necessária para um julgamento favorável a uma pretensão não necessariamente beire à certeza. No mundo em que vivemos, em que a acumulação incessante de conhecimento faz com que dogmas e certezas sejam rapidamente superados ou revistos, o julgador deve aceitar o fato que o mundo de certezas e de segurança, que o Direito procurou sempre assegurar, já não mais subsiste em sua integridade[5]. Em seu estudo, Facchini Neto apresenta diversas abordagens teóricas e jurisprudenciais, retiradas do Direito Comparado, em se adotam formulações probabilísticas do nexo de causalidade com amparo em bases estatísticas, tudo com vistas à priorização do direito das vítimas. Ainda que não se consiga propiciar-lhes a reparação integral, ao menos compensações proporcionais à contribuição para a causação do dano são asseguradas. Nos parece que esse mesmo caminho deverá ser trilhado pela litigância climática, nos casos em que se pretender a reparação/compensação de danos ou mesmo a adoção de medidas de mitigação/adaptação. Os estudos de atribuição podem ajudar a construir o nexo de causalidade entre determinados eventos extremos e o aquecimento global[6].   Veja-se que o nexo causal é necessário tanto para a imputação da obrigação de reparar o dano, como para impor obrigações voltadas à mitigação e à adaptação climática. Ou seja, também nas ações judiciais direcionadas contra governos, para que estes elaborem e implementem específicas políticas públicas, é necessário que se percorra o nexo de causalidade, de tal forma a se demonstrar a urgência e a relevância do fenômeno do aquecimento global cujas consequências se busca mitigar ou impedir por meio da implementação de políticas e programas. Inserem-se nessa categoria, como exemplos, a ação da Fundação Urgenda contra o Governo da Holanda, a ação do agricultor Leghari contra o Governo do Paquistão[7] e a ação ajuizada pelo Instituto de Estudos Amazônicos contra a União Federal para "que cumpra com sua obrigação jurídica de fazer constante no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm, vinculado à Política Nacional sobre a Mudança do Clima - PNMC, no sentido de que, no ano de 2020, o índice máximo de desmatamento ilegal na Amazônia Legal não ultrapasse a taxa de 3.925,00 Km2"[8]. Estes casos judiciais têm em comum a ampla exploração de dados científicos a respeito da intensificação do aquecimento do planeta e das condições que incrementam esse aquecimento, observando-se o esforço dos juristas em extrair consequências obrigacionais a partir dessas informações técnicas; e é nesse contexto que os estudos de atribuição emergem como um instrumento muito promissor para a imputação de responsabilidades. Os estudos de atribuição proporcionam informações baseadas em probabilidade estatística e têm sido utilizados tanto para a formulação de políticas públicas de mitigação e adaptação climática, como no âmbito da responsabilidade civil por danos[9], consoante  demonstra o célebre caso do fazendeiro peruano Saul Lluya contra a gigante alemã RWE, que lhe atribui a responsabilidade por haver concorrido com 0,47% das emissões mundiais de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial[10]. Swain, Singh, Touma e Diffesnbaugh asseveram que os estudos de atribuição procuram elucidar a questão a respeito de se as mudanças climáticas influenciaram a frequência, a probabilidade e/ou a severidade de determinado evento extremo, o que é calculado estatisticamente[11]. Por sua vez, Burger, Wentz e Horton esclarecem que tais estudos de atribuição examinam o efeito das atividades humanas no sistema climático global, que é amplamente definido para incluir a atmosfera, a hidrosfera, a criosfera, a litosfera, a biosfera e as interações entre esses componentes, com o foco de apurar como as mudanças induzidas pelas atividades humanas na composição química da atmosfera afetam outras variáveis climáticas essenciais, como a temperatura, a precipitação, o nível do mar e as geleiras. Muito embora ainda existam dificuldades quanto à obtenção de dados históricos nas escalas adequadas para observação da variabilidade do clima, já existem juízos de alta probabilidade a respeito da conexão causal entre as atividades antrópicas responsáveis pelo aquecimento global e a maior intensidade de precipitações, de formação de ondas de calor ou de frio extremo[12]. Dentre os eventos extremos que foram atribuídos ao aquecimento global por pesquisas científicas, tem-se o intenso calor que ocorreu no verão europeu de 2003[13], as inundações que assolaram Jacarta em 2014 e as tempestades que atingiram Chenai, na Índia, em 2015[14]. Também o National Oceanic and Atmospheric Administration- NOOA identificou que diversas inundações provocadas por chuvas torrenciais nos Estados Unidos no ano de 2010 tiveram conexão com o aquecimento global[15]. Vale, ainda, colacionar os 18 casos citados pela American Metereological Society em um relatório intitulado Explaning Extreme Events in 2020 from a Climate Perspective[16]. Nesses casos, a conexão causal não é linear, porque não existe uma única causa singular rastreável que conecte o aquecimento global ao evento extremo singular. No entanto, a não configuração da lineraridade não significa que não exista a conexão e que não devam ser reconhecidas consequências jurídicas em virtude desse liame, ainda que tais consequências sejam projetadas para o futuro, de modo a orientar a responsabilização pela elaboração de  políticas públicas. A respeito,  Swain, Singh, Touma e Diffesnbaugh destacam que o evento extremo singular é produto de numerosos processos complexos e inter-relacionados que atuam em uma ampla gama de escalas espaço temporais. No entanto, mesmo diante de tamanha variabilidade, a partir do reconhecimento de que tempo e clima existem em um continuum, é possível, com amparo em modelagens probabilísticas, observações e outros estudos científicos, compreender se determinado evento extremo foi intensificado pelo aquecimento global, que, por sua vez, é o resultado cumulativo de atividades emissoras de gases de efeito estufa[17]. Transpondo a racionalidade dos estudos de atribuição para o Direito, em um diálogo interdisciplinar, observa-se que a questão crucial é proporcionar critérios e elementos cognitivos que permitam conectar determinada atividade antrópica, como da empresa RWE no caso de Lluya, e o evento extremo cujas consequências se pretende evitar ou mitigar, formulando-se, a partir de dados estatísticos, um conceito normativo de causalidade. Vislumbra-se que tais estudos serão especialmente úteis para a tomada de decisões em ações judiciais estruturais que busquem a implementação de políticas públicas e a responsabilização preventiva pela adoção de providências voltadas à adaptação e à mitigação climática, porque, nestas, a exigência do liame causal tende a ser menos rígida do que ocorre em uma ação de responsabilidade pela reparação de danos. E é nesse contexto que os estudos já existentes, elaborados para a compreensão de desastres ocorridos em outros continentes, podem ser tomados emprestados para a interpretação de eventos extremos ocorridos no nosso país. A causalidade estatística é uma abordagem que vem sendo adotada nos Estados Unidos, em julgamentos relacionados à exposição de pessoas a produtos e resíduos perigosos do que decorrem doenças ocupacionais[18].  Tais precedentes surgem em contextos de alta complexidade, nos quais os danos não são consequências lineares de eventos estáticos: são, ao contrário, danos que surgem após um período de latência e da combinação de fatores naturais e genéticos com circunstâncias produzidas externamente, de tal sorte que remanesce alguma margem de incerteza a ser enfrentada. Também merece referência os casos de litigância relacionados à morte de abelhas em virtude da deriva de produtos agrotóxicos. Nessas situações, nem sempre há certeza do que resultou na morte dos insetos, senão que se configura a probabilidade diante de eventos semelhantes e de determinadas circunstâncias climáticas. Nessa direção, vale colacionar um precedente francês, citado por Bailo. Em abril de 2000, durante o período de floração da canola, alguns apicultores franceses perceberam um aumento significativo da mortandade de abelhas e a diminuição associada de sua atividade nas colméias. Presumindo que este fato possuía correlação com o uso de agrotóxicos, os apicultores processaram a cooperativa que explorava economicamente os campos. Em dezembro de 2008, a Corte de Apelações de Angers condenou a cooperativa a reparar os danos causados aos apicultores (Affaire n° 07/01836), sob o argumento de que, em questões ambientais, o nexo de causalidade entre a ação e o dano deveria ser avaliado tendo em conta o maior risco de causar o dano, inerente aos produtos agrotóxicos[19]. Ou seja, em virtude de sua periculosidade intrínseca haveria maior probabilidade de que a morte das abelhas tenha ocorrido em virtude da deriva dos agrotóxicos. Em conclusão, considera-se que a responsabilidade civil por danos associados às mudanças climáticas precisa ser formulada, no sentido de que o nexo de causalidade seja  construído a partir de bases normativas, que não demandem a aferição da causa adequada e que colham dados dos estudos de atribuição, capazes de estimar a probabilidade estatística de correlação entre o aquecimento global e os impactos socioeconômicos, ambientais e culturais. E que a partir desses estudos, possam ser imputadas obrigações voltadas à reparação de danos e, sobretudo, obrigações voltadas à implementação de políticas públicas que mirem na necessidade urgente de mitigação e de adaptação climática, em um viés preventivo da responsabilidade civil. _________________ 1 Disponível aqui, acesso em 30 de mai. 2022. 2 Sobre as teorias para definição do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental, ver: STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3ª. Edição, 2017. 3 O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, IPCC, foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) em 1988 com o objetivo de fornecer aos formuladores de políticas avaliações científicas regulares sobre a mudança do clima, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como para propor opções de adaptação e mitigação. Atualmente, o IPCC possui 195 países membros, entre eles o Brasil. 4 The Carbon Majors Database CDP Carbon Majors Report 2017. Disponível em: https://cdn.cdp.net/cdp-production/cms/reports/documents/000/002/327/original/carbon-majors-report-2017.pdf?1501833772, acesso em 30 mai.2021. 5 FACCHINI NETO, Eugênio. A ciência estatística e sua repercussão no nexo causal da responsabilidade civil: levando a sério a probabilidade.  In VEIGA, Fábio da Silva e FINCATO, Denise Pires (diretores). Estudos de Direito, Desenvolvimento e Novas Tecnologias. Porto: Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos, 2020. 6 WEDY, Gabriel e AKAOUI, Fernado Vida. Direito climático e a ciência da atribuição. In https://www.conjur.com.br/2022-mai-07/ambiente-juridico-direito-climatico-ciencia-atribuicao, acesso em 31 mai. 2022. 7 Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente, mayo 2017 El estado del litigio en materia de cambio climático - una revisión global. Disponível em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/20767/the%20status%20of%20climate%20change%20litigation%20-%20a%20global%20review%20-%20un%20environment%20-%20may%202017%20-%20es.pdf?sequence=7&isallowed=y, acesso em 30 mai. 2022. 8 A ação está disponível em http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2020/20201008_12742_complaint.pdf, acesso em 31 de mai. 2022. 9 BURGER, Michael; WENTZ, Jessica; HORTON, Radley. The Law and Science of Climate Change Attribution. 2020. In  https://journals.library.columbia.edu/index.php/cjel/article/view/4730/2118, acesso em 30 mai. 2022. 10 O caso é analisado em STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos. In https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/343464/estudos-de-atribuicao-e-a-responsabilidade-civil-ambiental, acesso em 30 de mai. 2022. 11 SWAIN, Daniel; SINGH, Deepti; TOUMA, Danielle; DIFFENBAUGH, Noah. Attributing extreme events to climate change: A new frontier in a warming world. Disponível em:  https://doi.org/10.1016/j.oneear.2020.05.011, acesso em 30 mai. 2022. 12 Top 10 things to know about extreme event attribution. In  https://www.climatecentre.org/wp-content/uploads/top-10-things-to-know-about-extreme-event-attribution.pdf, acesso em 30 mai. 2022. 13 Este estudo, publicado em 2004 por Scott, foi o primeiro estudo de atribuição. World Weather Attribution. Pathways and pitfalls in extreme event attribution.  13 mai. 2021. Disponível em https://www.worldweatherattribution.org/pathways-and-pitfalls-in-extreme-event-attribution/, acesso em 30 mai. 2022. 14 World Weather Attribution. Pathways and pitfalls in extreme event attribution.  13 mai. 2021. Disponível em https://www.worldweatherattribution.org/pathways-and-pitfalls-in-extreme-event-attribution/, acesso em 30 mai. 2022. 15 Ver a respeito: National Oceanic and Atmospheric Administration.  Sea Level Rise and Nuisance Flood Frequency Changes around the United States (2014) https://tidesandcurrents.noaa.gov/publications/noaa_technical_report_nos_coops_073.pdf, acesso em 30 mai. 2022. 16 Disponível em  https://www.ametsoc.org/ams/index.cfm/publications/bulletin-of-the-american-meteorological-society-bams/explaining-extreme-events-from-a-climate-perspective/#, acesso em 30 ma. 2022. 17 O Relatório Carbon Majors (2017) aponta para cem empresas como as responsáveis por 71% dos gases de efeito estufa desde 1988, o ano em que as mudanças climáticas de origem antrópica foram oficialmente reconhecidas através da instituição do IPCC. Disponível em: https://www.cdp.net/en/articles/media/new-report-shows-just-100-companies-are-source-of-over-70-of-emissions, acesso em 30 mai. 2022. 18 SULYOK, Katalin. Managing uncertain causation in toxic exposure cases: lessons for the European Court of Human Rights from U.S. Toxic Tort Litigation. 2017. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2989876, acesso em 30 mai. 2022. 19 BAILO, G.L. Litigación sobre polinizadores (el derecho según las abejas)Derecho y Ciencias Sociales. Mayo-Octubre 2019. Nº 21. Pgs 263-283. ISNN 1852-2971. Instituto de Cultura Jurídica y Maestría en Sociología Jurídica. FCJ y S. UNLP. Disponivel em https://revistas.unlp.edu.ar/dcs/article/view/8821, acesso em 31 mai. 2022.
Sêneca, em "A Brevidade da Vida", estabeleceu um diálogo com Aristóteles sobre o tempo de vida do homem na terra, entendendo o segundo ser este tempo um período muito curto para o ser humano dar cabo aos projetos essenciais da vida; todavia, o filósofo estoico, ao revés, avaliou esse espaço de tempo suficiente desde que o homem canalizasse suas energias aos projetos que verdadeiramente importassem. Seja como for, a vida pode ser breve ou não, mas sempre de acordo com a perspectiva de cada ser vivente. E a morte, é breve? Ou, existindo um período mais ou menos longo de padecimentos ou sofrimentos que precede o desfecho final humano, impediria de adjetiva-la como "instantânea", sob a ótica do Direito? A morte é um fenômeno natural e deve ser analisado sempre de acordo com a perspectiva cultural de cada povo, apresentando-se ora como um trauma ante o desligamento da pessoa falecida dos seus entes queridos, ora como algo que se deve comemorar por ter o sujeito cumprido os propósitos que lhe foram conferidos e, portanto, como o momento de desfrutar a realidade eterna e, em outras ocasiões, como algo a ser apreciado, porquanto o morto passaria a ser visto enquanto objeto de culto por seus familiares e herdeiros, a exemplo do que ocorria nas primeiras cidades antigas até a formação das polis gregas e cidades romanas tais quais foram conhecidas mais de perto, conforme relatou Fustel de Coulanges em "A Cidade Antiga". A importância da morte se estabelece não somente na seara religiosa, mas também na econômica, sociológica, filosófica e jurídica. Sob esse último aspecto, a morte é fato jurídico desencadeador de diversos efeitos no direito obrigacional, societário, de danos, familiar e sucessório. No que pertine ao direito de danos (no plano puramente "reparatório") urge perscrutar sobre os danos que ensejam o direito de compensação, isto é, se do fato antijurídico da morte decorre apenas direito reparatório aos familiares da vítima - na ordem conferida por lei - pelos danos morais reflexos ou, lado outro, se o próprio morto adquire o direito à reparação civil pelo atingimento de sua própria vida, enquanto titular do direito personalíssimo, ainda que a morte se apresente aparentemente "instantânea". Não restam dúvidas de que a vida é o bem integrante do patrimônio existencial da pessoa mais elevado e que merece tutela efetiva e concreta por parte do ordenamento de um Estado. Por isso, tal direito restar-se regulado desde a perspectiva do direito constitucional até a do direito penal, o qual, de sua vez, prevê tipos penais que tangenciam a proteção conferida constitucionalmente ao homem desde a vida intrauterina até a última fase do percurso existencial humano. Inobstante isso, indaga-se: uma pessoa que sofreu ilicitamente atentado à sua vida tem direito a uma reparação, ainda que a título compensatório, pela perda da própria vida? A doutrina espanhola e a portuguesa, e com elas a jurisprudência desses países, ocuparam-se com apimentados debates acerca do tema, chegando uns a negar peremptoriamente esse direito à vítima, impondo-se óbice à reparação enquanto direito que não pode ser adquirido por quem já morreu, isto é, o direito não poderia ser adquirido ante o fato de sua própria extinção, qual seja, a morte. Outros, porém, advogavam a tese segundo a qual o direito de reparação pode ser incorporado ao patrimônio da pessoa desde que exista um lapso temporal entre a lesão e a morte propriamente dita. Contudo, existem aqueles que admitem a reparação mesmo nas situações de morte "instantânea", sob o argumento da contradição de se aceitar a reparação por lesões não provocadoras de morte e não se aceitar nas situações de lesões fatais, evidenciando tratamento satisfatório para aquele exímio matador que produziu a lesão fatal e prejudicando, em contrapartida, o matador amador. A morte pode ser, em algum momento, considerada um fato passageiro? Existe morte instantânea? É consabido que a medicina, ao avaliar o processo de morte de alguém, regra geral, confere o estado de morto àquele que não apresenta sinais neurológicos vitais (cessação das funções do cerebelo), porém, tal argumento vem cedendo espaço no campo da filosofia médica e da bioética. Afirma a Professora de filosofia da USP, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, que pela diferente resistência vital das células, tecidos, órgãos e sistemas, forçoso é admitir que a morte se trata de um processo e "processo incoativo". De sua parte, o Professor de bioética Antônio Puca adverte que a morte como a cessação irreversível das funções do cérebro, parece ser incompatível com a dimensão do ser no plano filosófico, assim, a morte como um processo de cessação permanente do funcionamento do organismo humano como um todo parece mais adequado. Nessas considerações arrima-se a fundamentação da tese ora a se construir, ou seja, não sendo a morte algo instantâneo - apenas "aparentemente instantâneo" - ela por si só não terá o condão de impedir o ingresso no patrimônio material do morto da reparação em dinheiro pelo dano da perda da própria vida e, por consequência, a transmissão aos herdeiros na ordem de vocação hereditária. Aliás, tal constatação impactará não somente a configuração do direito reparatório para o ofendido, mas também a forma de aquisição por seus familiares, se por meio de transmissão hereditária ou por direito próprio e, ainda, a função da responsabilidade civil que respaldaria a condenação do ofensor. A legislação civil espanhola, como qualquer outra da mesma estirpe, é provida de cláusulas gerais de reparação do dano por fato próprio, de terceiros e das coisas do responsável dependentes, inexistindo um sistema de tipificação de ilícitos e de danos indenizáveis como acontece, por exemplo, na Alemanha e na Itália. O artigo 1.092 do Código Civil espanhol dispõe: "El que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado". Santos Briz1, em 1970, escreveu que na Espanha os danos morais encontravam fundamento no Código Penal espanhol2 e em Leis esparsas, contudo, a jurisprudência, a partir da sentença de 28 de fevereiro de 1964 do Tribunal Supremo, fundada em orientação doutrinária existente na época, passou a admitir a reparação dos danos morais "puros" e os imateriais decorrentes de diversos sofrimentos e de dores causadas aos cidadãos, com fundamento no artigo 1902 do Código Civil desse país De forma bastante genérica, dispõe o dispositivo em análise apenas os pressupostos de reparação civil e da necessidade da prova do fator de imputação culpa do dever de reparar, tratando-se de responsabilidade subjetiva, portanto. A se considerar a legislação em análise, parte-se do raciocínio de que, em tese, nada obsta o reconhecimento da indenização do dano-morte ante a amplitude da cláusula de responsabilidade civil extracontratual em estudo, o que poderia se fazer supor que inexistem muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto. Entretanto, não é bem isso que se estabelece no Direito espanhol. Até 1969, escreve Santos Briz, a jurisprudência do Superior Tribunal (Sentenças de 20 de dezembro de 1930, 8 de abril de 1936, 8 de janeiro de 1946, 17 de fevereiro de 1956 e de 25 de fevereiro de 1906) trataram do tema, tendo, especificamente, a decisão de 17 de fevereiro de 1956 reconhecido o direito à indenização aos herdeiros pela morte instantânea da genitora, porém, não a título de sucessão por herança, por não ser possível - de acordo com essa visão - o valor da reparação ingressar no patrimônio do autor da herança. Existiria, em razão do argumento, direito a tais herdeiros a título direto de ação. Entretanto, as sentenças de 8 de fevereiro de 1936 e de 3 de fevereiro de 1940 excluíram os herdeiros do direito à reparação pelo dano da morte, tratando-se da reparação de danos derivada de culpa extracontratual. De seu turno, a sentença de 17 de fevereiro de 1956 fez a distinção entre os prejuízos morais e os patrimoniais, sendo estes relativos aos gastos com velório, tratamento médico e hospitalar. Assim, se a morte não tivesse ocorrido de forma "instantânea", o direito reparatório seria transmitido aos herdeiros em razão do falecimento do de cujos, ao passo que, inclusive a reparação moral, não poderia transmitir-se aos filhos, por não ter havido a incorporação ao patrimônio do falecido, mas estes poderiam reclamar por direito próprio, em caso de "morte instantânea". O autor em referência advoga a tese segundo a qual os herdeiros sucedem ao defunto em todos os seus direitos e obrigações pelo só fato de sua morte, com espeque no artigo 651 do Código Civil, contudo, nasceria uma nova ação por direito próprio em favor dos primeiros e não ex jure hereditatis, nas hipóteses de morte instantânea, ocorrendo a sucessão quando esta não se evidenciasse a este título. Regra geral, tal qual no Brasil, os manuais e cursos de Direito Civil e de Responsabilidade Civil na Espanha, hodiernamente, raramente tratam da indenização pelo dano da morte, sempre se referindo aos danos morais, enquanto categorias de danos imateriais, omitindo, todavia, o dano decorrente da perda da própria vida na particular catalogação. Em Portugal, a tese da reparação do dano derivado da morte para o próprio ofendido prevaleceu tanto em doutrina quanto em jurisprudência, exsurgindo posteriormente a norma extraída da interpretação do art. 496, nº 2 do CCP no sentido de os familiares indicados em lei adquirirem, por direito próprio, a indenização. Destarte, pacificou-se a orientação acerca do tema por meio de sua doutrina e jurisprudência, tendo se estabelecido que o dano da morte tem previsão legislativa no artigo 496, nº 2 do Código Civil, vencida a posição da irressarcibilidade defendida pelo Professor José Oliveira Ascenção3. A previsão legal do artigo 496 dispõe de quatro dispositivos, tendo o primeiro deles previsto uma cláusula geral de ressarcimento em dinheiro do dano não patrimonial, previsão esta inexistente sob a égide do Código Civil de 1967. Estabelece o artigo 496: 1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem. 3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior. Diante da previsão legal, três correntes doutrinárias se estabeleceram em torno do assunto. A primeira defende que o direito à indenização do dano da morte é devido ao de cujos e se transmite iuri hereditatis para os seus herdeiros na ordem de vocação hereditária legal; a segunda, defende a aquisição do direito pelo próprio falecido e posteriormente transmitido aos seus parentes, contudo, apenas aos familiares previstos no art. 496, nº 2 do CCP; e, por último, a terceira corrente advoga o entendimento de que a indenização pelo dano-morte é devida, mas os familiares da vítima elencados no artigo citado adquirem tal direito de forma direta, sem qualquer transmissibilidade, sendo esta última corrente a que prevaleceu entre os autores portugueses4. No direito Brasileiro não se vem tratando o tema com a amplitude que ele merece, havendo omissão dos doutrinadores sobre o assunto ou a defesa da irreparabilidade do dano-morte, atentando poucos autores que o estudam na particular perspectiva da reparação. De fato, inexiste no Brasil regra igual àquela do direito português, entretanto, a partir da leitura constitucional do direito civil brasileiro, evidencia-se que os artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, ambos da CF, além dos artigos 186, 927 e 948 do CCB, conferem plausibilidade à tese da reparação civil do dano da morte por aqui, e por ela se constituir um procedimento - ainda que aparentemente "instantâneo", por mais breve que possa parecer - não tão breve se apresenta para o direito de danos a fim de ingressar a respectiva indenização (rectius: compensação) no patrimônio da vítima, e, ao desfecho final do processo incoativo, transmitir-se aos herdeiros do morto, na forma dos artigos que regulam o direito sucessório respectivo. Em resumo, da brevidade da vida enquanto objeto de foco do observador resulta a não brevidade da morte sob o ponto de vista do Direito. A vida até pode ser considerada breve, no entanto, a morte continuará a se produzir em círculos incoativos, sepultando-se as controvérsias em torno da reparação do dano derivado da morte, da sua incorporação ao patrimônio da vítima e posterior transmissão aos familiares e da função compensatória da Responsabilidade civil nessa seara. __________ 1 BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil. Derecho Sustantivo y derecho procesal. Madrid: Editorial Montecorvo, 1970, p. 165-167 e 268-270.  2 ASCENÇÃO, José de Oliveira. DIREITO CIVIL. Sucessões. Coimbra: Cimbra editora, 1989, p. 47-51. 3 sobre o assunto: FERREIRA, Bruno Bom. Dano da morte: compensação dos danos não patrimoniais à luz da evolução da concepção de família. Coimbra: Almedina, 2019. 4 ROSENVALD, Nelson. O dano morte: experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. In. BARBOSA, Mafalda, ROSENVALD, Nelson. MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil e comunicação. IV jornada luso-brasileiras de responsabilidade civil. Indaiatuba - SP: Foco, 2021, p. 319-339.
O protagonismo da covid-19 nos dois últimos anos exigiu uma celeridade por parte das indústrias farmacêuticas, visando a obtenção de um medicamento capaz de prevenir, tratar ou tentar erradicar essa terrível doença, que infelizmente matou milhares de pessoas ao redor do mundo. As vacinas foram o caminho mais efetivo para minimizar as consequências devastadoras dessa doença, especialmente entre os idosos. Contudo, a segurança, requisito indissociável, só poderá ser alcançada de forma indiscutível daqui a alguns anos. Isso porque, com a não conclusão dos estudos clínicos de muitas vacinas destinadas à Covid-19, só obteremos a confirmação da real segurança alguns anos após a vacinação, haja vista a possibilidade de reações adversas serem identificadas a longo prazo, como ocorreu com o medicamento Talidomida.  Não existe dúvida que o risco da doença poderá ser muito mais letal à algumas pessoas do que a própria vacina. No entanto, já estão sendo identificados relatos e confirmações de reações adversas desconhecidas ao tempo da introdução dos produtos e utilização pela população na Europa1, EUA2, Brasil, entre outros. Nesse contexto, surge a indagação de quem será o responsável pelas sequelas, ou mesmo mortes, decorrentes da pós-vacinação da covid-19 no Brasil, especialmente considerando a cláusula de isenção de responsabilidade das indústrias farmacêuticas. Entretanto, antes de analisar a responsabilidade civil aplicável, necessária a distinção entre efeitos adversos e reações adversas ao uso de medicamentos. Isso porque, muitas vezes os termos são tratados como sinônimos, mas a Farmacovigilância3 brasileira, nos apresenta conceitos diversos. Os denominados efeitos adversos4(EA), correspondem a qualquer ocorrência médica durante o tratamento com um medicamento. Podendo citar: reação adversa, interação medicamentosa (associação de dois ou mais medicamentos; ou ainda medicamento e alimento), uso excessivo de medicamento (intencional ou não), utilização off-label e etc. Por outro lado, as reações adversas5(RAM), correspondem a uma resposta prejudicial, indesejável e não intencional ao uso normal de um medicamento, dentro da dosagem recomendada para a faixa etária prevista na bula e para a terapêutica pesquisada. Em outras palavras, os efeitos adversos correspondem ao gênero, do qual é espécie a reação, haja vista a especificidade. Dentre as reações adversas pós-vacina (RAPV), devemos analisar se o caso em estudo corresponde a um efeito colateral conhecido e previsível ou desconhecido e imprevisível. Isso porque os efeitos desconhecidos e/ou imprevisíveis no momento em que o produto foi colocado à disposição do paciente, poderão configurar um defeito no produto, segundo entendimento do STJ6. Entretanto, as reações conhecidas e previsíveis, como regra, não configurarão defeito no produto, salvo se estivermos diante de uma violação do dever de informação, que deve ser observado pelo fabricante, nos termos do que estabelece expressamente o artigo 127 do CDC. Todo medicamento traz um risco inerente, mas visando controlá-lo, há obrigatoriedade de cumprimento das normas e procedimentos impostos para o estudo clínico, regulamentado pela Farmacovigilância brasileira, que integra a ANVISA, através RDC no 9, de fevereiro de 2015. Os medicamentos só poderão ingressar no mercado brasileiro para comercialização ou disponibilização gratuita à população a partir da fase IV dos estudos clínicos, mediante autorização provisória e constante fiscalização da Anvisa, pelo período mínimo de um ano. Diante dos procedimentos legais, impostos para a entrada e disponibilização de um medicamento para a população brasileira, necessária a autorização da agência reguladora (ANVISA) e cumprimento dos requisitos exigidos, incluindo-se a conclusão dos estudos clínicos, na hipótese de medicamento novo. Cumpridas as exigências legais, pressupõe-se que o medicamento possui segurança mínima para utilização e circulação, mesmo com os riscos naturais.      Contudo, a situação excepcionalíssima e inesperada vivida pela humanidade desde 2020, justificou a entrada emergencial de medicamento (vacina), sem o cumprimento das exigências impostas pela RDC no 9, de fevereiro de 2015, em relação a medicamentos novos. Cumpre salientar que as vacinas para a covid-19, não correspondem a medicamentos experimentais, uma vez que que não estão sendo utilizados durante um estudo clínico, requisito para essa qualificação, nos termos do que estabelece expressamente a RDC no 98 de fevereiro de 2015, da Anvisa. A vacinação compulsória para a covid-19, passou a ocorrer no Brasil a partir da vigência da lei 13.979/20.9 Entretanto, em virtude da exclusividade do Estado quanto à importação e fornecimento das vacinas para a população, inaplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor, diante da inexistência de relação de consumo, bem como por se tratar de objeto relacionado a prestação do serviço de saúde atribuída constitucionalmente ao Estado.10 Em que pese a importância da vacinação e a imposição como medida de saúde pública, a ser implementada pelo Estado em cumprimento aos deveres constitucionais que lhes são atribuídos, inexoravelmente o cidadão faz jus à reparação de todos os danos patrimoniais e extrapatrimoniais que sofrer em decorrência de efeitos adversos ou reações adversas da vacinação, inclusive quando realizada pelos demais entes da federação. Nesse sentido, o sistema aplicável ao Estado, por condutas lícitas ou ilícitas, que causem dano ao cidadão, inclusive decorrente de vacinação é o da responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco administrativo, nos termos da previsão do art.37, § 6º da CF.11 Nesse sentido, o STJ12 já se posicionou em relação a caso semelhante: "quando o Ministério da Saúde planeja a vacinação em massa assume, com absoluta previsibilidade, que lesará alguns vacinados. Ao estabelecer programa de obrigatoriedade de vacinação chama a si a responsabilidade pelos danos emergentes das previsíveis reações adversas, ainda que em ínfima parcela dos vacinados". (grifos nossos). Na referida decisão, o Ministro Herman Benjamin, reafirmou a responsabilidade objetiva da União pelas reações adversas experimentadas por um idoso, após a vacinação em massa, contra o vírus Influenza - Gripe, por desenvolver a Síndrome de Guillain-Barré. Não obstante a indicação específica quanto ao dever do Estado em indenizar reações previsíveis, ou seja, aquelas conhecidas pela indústria farmacêutica e indicadas na bula, como efeitos colaterais possíveis, segundo constatação nos estudos clínicos, subsiste o dever de reparar e/ou indenizar do Estado pelos danos decorrentes de reações imprevisíveis ou não conhecidas, incluindo-se as que decorram do risco do desenvolvimento. O fundamento para a responsabilidade integral do Estado, seja por reações previsíveis ou imprevisíveis está dentro da esfera de obviedade quanto a ocorrência de algum fato danoso, quando se tratar de vacinação em massa, independente de qual vacina estejamos analisando. Por outro lado, consta expressamente que o importador (Brasil) é responsável pela segurança, eficácia e qualidade das vacinas, conforme art. 4o, da Resolução 476/202113, motivo pelo qual tem-se mais um fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado. No entanto, será possível falarmos em reações adversas não conhecidas e imprevisíveis pelo uso das vacinas para a covid-19 e qualificarmos como risco do desenvolvimento? A primeira dúvida, é se poderemos denominar como risco do desenvolvimento a identificação futura de reações, considerando a não conclusão dos estudos clínicos das vacinas para a covid-19, quando foram introduzidas para uso da população.    Para responder é necessário lembrar que ao tratarmos do risco do desenvolvimento deve se considerar "...como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno."14 Nesse contexto, caso comprovado que o defeito decorre de um problema na concepção, ou seja, relacionado a fórmula do medicamento ou mesmo ocasionado com a elaboração do produto e, poderia ter sido identificado, caso concluídos os estudos no momento da inserção do produto no mercado, não estaremos diante de um risco do desenvolvimento. A única alternativa para configurar risco do desenvolvimento é a impossibilidade técnica ou científica de identificação do defeito no momento da colocação do produto, mesmo que estivéssemos diante do exaurimento de todas as fases dos estudos clínicos.  Em outras palavras, defeitos não cognoscíveis através do mais avançado estado da ciência e da técnica, independente da conclusão ou não dos estudos. Por fim, a última questão, diz respeito à possibilidade ou não, de um cidadão brasileiro postular indenização em face da indústria farmacêutica, diante da possível existência de cláusula contratual prevendo a isenção da responsabilidade do fabricante do medicamento (vacina para a Covid-19). Para possibilitar a resposta, fundamental observar que o instrumento foi firmado entre o Brasil e uma indústria estrangeira privada, para permitir o fornecimento de medicamento para a população brasileira.   Portanto, nos termos do art. 9o § 1o 15da LINDB, será aplicada a Lei brasileira, mesmo que a eleição do foro para arbitragem seja em Nova Iorque, haja vista a execução no território brasileiro. A lei 8.666/93, observando as alterações trazidas pela lei 14.133/21, que regulamenta os contratos públicas, será o parâmetro principal, frente a participação do Estado brasileiro. Nada obstante, "Os contratos de que trata esta lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado," (art. 89 da lei 14.133/21). Desse modo, passível a utilização subsidiária das normas de Direito privado. O contrato firmado pelo Estado brasileiro, através do Ministro da Saúde, que representa um órgão da administração direta, vincula e obriga todos os brasileiros, haja vista tratar-se de matéria de Direito Público e não de Direito Privado, em que pese a possibilidade de utilização subsidiária, como exposto. O caso é de representação válida e, como tal, vinculante aos representados, pois não se trata de mera presentação, diante do exercício do múnus público. Motivo pelo qual todas as cláusulas integrantes do contrato assinado diretamente pelo Ministro da Saúde são erga omnes, não permitindo o afastamento sob a alegação de ter efeito relativo, pelo regramento dos contratos privados, firmados entre particulares. Se admitirmos a não vinculação da população aos contratos firmados pelos governantes, sejam eles governadores, prefeitos ou presidente da república, bem como pelos órgãos da administração direta ou indireta, diante da previsão na lei 14.124/21, teremos uma violação direta ao princípio da segurança jurídica, expressamente previsto no art.5º da lei 14.133/21. Entretanto, o maior ônus será atribuído à própria população, pois sofrerá diretamente se admitirmos a violação da segurança jurídica. Isso porque poderemos estar diante da recusa das indústrias farmacêuticas quanto ao fornecimento de medicamentos ao Brasil, especialmente no que se refere à vacina da covid-19. Além disso, é imprescindível considerar que, mesmo tratando-se de matéria regida pelo Direito Público, as empresas farmacêuticas não omitiram sobre a inexistência de encerramento das pesquisas clínicas, pelo contrário, é fato notório e, a nível mundial. Mesmo com a isenção da responsabilidade das indústrias farmacêuticas, o Estado brasileiro vislumbrava a possibilidade de risco real e efetivo a uma parcela de vacinados, sem que possa alegar desconhecimento, diante da plena ciência quanto a não conclusão dos estudos clínicos, fundamento mundial para segurança de um medicamento ser utilizado pela população. Diante desse cenário e acompanhando o raciocínio do Ministro Herman Benjamin no citado julgado, o Estado brasileiro atraiu para si a integral responsabilidade por reações adversas conhecidas ou desconhecidas, previsíveis e imprevisíveis, inclusive as que possam ser denominadas como decorrentes do risco do desenvolvimento. Portanto, competirá ao Estado, com absoluta exclusividade, a responsabilidade integral daqueles que porventura tenham a infelicidade de sofrer reação adversa pós-vacina da covid-19. ______________ 1 European Medicines Agency - Disponível aqui. (acesso em: 19.05.22) 2 Centers for Disease Control and Prevention - Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 3 BRASIL. Anvisa. "Farmacovigilância é definida como a ciência e atividades relativas à identificação, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos adversos ou quaisquer problemas relacionados ao uso de medicamentos". Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 4 BRASIL. Anvisa. "O evento adverso é conceituado como qualquer ocorrência médica desfavorável que pode ocorrer durante o tratamento com um medicamento, mas que não possui, necessariamente, relação causal com esse tratamento. Tal conceito abrange uma série de problemas relacionados ao uso dos medicamentos, incluindo a reação adversa ao medicamento e a inefetividade terapêutica". Boletim de Farmacovigilância -ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em:19.05.22) 5 BRASIL. Anvisa. "A reação adversa ao medicamento é definida como "qualquer resposta prejudicial ou indesejável, não intencional, a um medicamento, que ocorre nas doses usualmente empregadas para profilaxia, diagnóstico ou terapia de doenças ou para a modificação de funções fisiológicas humanas". Boletim de Farmacovigilância - ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em: 19.05.22) 6 STJ, REsp. 1.599405-SP, Min. Marco Aurélio Bellize. Terceira Turma. J. 04.04.2017. DJe.17.04.2017. Disponível aqui (acesso em: 19.05.2022) 7 BRASIL. Lei no 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos (grifos nossos) 8 BRASIL. Anvisa. RDC no 9 de fevereiro de 2015. Medicamento experimental - produto farmacêutico em teste, objeto do DDCM, a ser utilizado no ensaio clínico, com a finalidade de se obter informações para o seu registro ou pós-registro. Disponível aqui (acesso em:19.05.22) 9 BRASIL. Lei no 13.979/20. Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:...d) vacinação e outras medidas profiláticas. 10 BRASIL. Constituição Federal. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 11 BRASIL. Constituição Federal. Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 12 STJ, REsp. 1.388.197-PR, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 18.06.15, DJe. 19.04.17. 13 BRASIL. Anvisa. Resolução 476/2021. Art.4º Caberá ao importador: III - responsabilizar-se pela qualidade, eficácia e segurança do medicamento ou vacina a ser importado; Disponível aqui (acesso em 20.05.22). 14  STJ, REsp. 1.774.372-RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 05.05.20, DJe. 18.05.20. 15 BRASIL. LINDB. Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
A Era Digital alterou profundamente o modelo de comunicação me'dico-paciente e os padrões da publicidade dos profissionais da Medicina. Em um mercado cada vez mais conectado e disputado, os médicos foram lançados no meio digital e levados a promover a publicidade médica como meio de divulgação do seu trabalho. Em especial, as mídias sociais trouxeram dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidade dos profissionais se conectarem com seus potenciais pacientes, mantendo-os informados sobre os seus serviços. Todavia, o grande desafio para os médicos é fazer publicidade e, ao mesmo tempo, adequar suas técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais. O Conselho Federal de Medicina (CFM), erroneamente, diz que o médico pode fazer publicidade, porém, por vezes, confunde os conceitos de "publicidade" com "propaganda". Enquanto a propaganda não tem conteúdo comercial, na medida em que visa propagar uma ideia, ideal e valores, como ocorre com a propaganda eleitoral, a publicidade está relacionada ao despertar de desejo de compra e aquisição, de valorização de determinado produto ou serviço com o intuito promocional. O Código de Ética Médica (CEM/2019) apresenta a visão de que a Medicina é exercida sem finalidade comercial, conforme o inciso IX dos princípios fundamentais: a Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. Contudo, ao regulamentar a forma de comunicação dos médicos com o público, o CFM oscila nas denominações "propaganda" e "publicidade". O Código de Ética Médica nomina a comunicação médica como "publicidade médica", dedicando um capítulo exclusivo para tratar da matéria. Já a Resolução CFM 1974/2011, responsável por detalhar e regulamentar a comunicação médica com o público, apresenta na sua ementa que a normativa é responsável por "estabelecer os critérios norteadores da propaganda em Medicina, conceituando os anúncios, a divulgação de assuntos médicos, o sensacionalismo, a autopromoção e as proibições referentes à matéria". Paradoxalmente, o Código de Ética Médica estabelece que a comunicação médica em meios de comunicação em massa deve ter finalidade exclusivamente educativa e de caráter esclarecedor, conforme o art. 111, mas a Resolução CFM 1974/11 permite que os médicos façam publicidade em revistas, jornais, busdoors, outdoors, internet e TV. Ou seja, na prática, o CFM permite tanto a publicidade como a propaganda. Frise-se que a veiculação de informação de caráter pedagógico é propaganda, mas a veiculação da marca, endereço, imagens e serviços médicos é encarada como publicidade. Partindo-se da premissa que é possível realizar as duas formas de comunicação para a população, é necessário observar que, em um mar de quase 550 mil médicos no Brasil, conforme dados da Demografia Médica em 20201, a publicidade, especialmente em ambiente digital, torna-se ferramenta essencial para obter destaque no mercado. O problema repousa nos limites e potenciais consequências ético-jurídicas decorrentes do exercício da publicidade médica. Considerando a obrigação de meio dos profissionais médicos, é vedada a promessa de resultado, bem como a exibição de imagens de pacientes. De acordo com o art. 75 do CEM, é vedado ao médico "fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou imagens que os tornem reconhecíveis em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente". Complementando o referido dispositivo, a Resolução 1974/11 do CFM proíbe o uso de antes/depois. Em um mundo hiperconectado, a partir de rápida pesquisa nas redes sociais, observa-se que a norma é pouco seguida pelos profissionais, visto que, diuturnamente, enquanto Sociedade da Informação, somos bombardeados com resultados de terceiros e a exibição de resultados de pacientes. Nesse contexto, propõem-se dois questionamentos: 1.     Os resultados postados pelos profissionais, além de antiéticos, podem ser enquadrados como ilícitos cíveis? 2.     A veiculação de resultados pode ser interpretada como promessa de resultado? Em relação à primeira indagação, é incontroverso que a publicação de resultados de pacientes em rede social é uma possível infração ética expressamente vedada pelo CEM em seu art. 75 e pela Resolução CFM 1974/11 em seu art. 3º, "g", porém o possível ilícito cível, apto a reverberar na esfera da responsabilidade civil, exige a falta de consentimento e o uso indevido da imagem do paciente. Em linhas gerais, a publicidade médica deve abranger os princípios da licitude, veracidade, transparência e completude, de modo que ocorra a divulgação do profissional e, em paralelo, informe-se corretamente a população sobre cuidados/tratamentos médicos. A publicidade do profissional da Medicina submete-se à disciplina deontológica estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina, contudo, eventual abuso publicitário será eventualmente analisado na esfera civil, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista as relações contratuais do médico com o seu paciente são consideradas, pela jurisprudência atual majoritária, como relação de consumo e, quando presentes as figuras do consumidor e fornecedor (artigos 2º, 3º, 17, 29, todos do CDC), aplicar-se-ão as normas consumeristas de ordem pública, as quais vedam a prática de publicidade enganosa e abusiva (artigos 6º, IV, 30, 31, 35, 36, 38, todos do CDC), cuja inobservância pode dar ensejo à sanção (artigos 56, 60, 67, 68, 69, todos do CDC). Especificamente em relação à publicidade médica no contexto da prática do "antes e depois", comumente utilizada nas redes sociais para demonstrar os resultados da intervenção médica no paciente, quando há consentimento do paciente para uso da sua imagem, não se pode falar em responsabilidade civil do médico, apenas em potencial responsabilidade ética. Diante do exercício da autonomia do paciente em autorizar, de forma expressa ou tácita, a veiculação do resultado, não se torna possível que o paciente vise a responsabilização civil do profissional. Frise-se que o direito à imagem é disponível, nos termos do artigo 20, do Código Civil. Por outro lado, há limitação na esfera deontológica, segundo ditames do art. 75, do CEM, de modo que mesmo diante de eventual autorização, o profissional ainda pode ser responsabilizado eticamente. Já na hipótese de não ter ocorrido autorização do paciente, o médico poderá responder civilmente pelo uso indevido da imagem e por violação aos direitos da personalidade. Ressalte-se que, ante o sigilo aos dados do paciente, o médico não deve veicular tais informações. Desta forma, há possivelmente dois ilícitos cíveis: violação do sigilo e uso indevido da imagem do paciente. Em relação ao segundo questionamento proposto, destaque-se que a veiculação de resultados de pacientes em redes sociais apenas representa os tempos modernos de um oceano de superficialidade formado por ilhas de sucesso, beleza e bons resultados, enquanto os bastidores e maus resultados são submersos. Ao veicular bons resultados dos pacientes, notadamente na área estética, o profissional acaba por difundir um ideal de beleza e de possibilidade terapêutica que é extremamente subjetivo. Como bem reforça William Osler, a Medicina é a arte da incerteza e a arte da probabilidade. Ou seja, a publicidade médica pode transparecer uma garantia de certeza e alcance daquilo que é incerto e, por vezes, inalcançável. Essa veiculação de resultados pode representar violações ao processo de consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido), uma vez que as imagens veiculadas podem comprometer a percepção e compreensão do ato médico. Uma vez violado o consentimento do paciente, o médico poderá ser responsabilizado pela distorção causada no dever de informar. Paralelamente, as imagens poderão gerar uma possível responsabilidade decorrente da violação à legítima expectativa do paciente, isto é, da promessa de resultado, ainda que de forma implícita. Ao publicizar os resultados pretéritos, o profissional pode atrair uma obrigação de resultado, pois incute no paciente que aquele resultado individual e subjetivo pode ser replicado em terceiros. Não se nega que as regras de publicidade médica precisam ser mais bem discutidas e atualizadas, porém há uma necessidade premente de que a utilização das imagens de pacientes ocorra mediante o consentimento dos retratados, ainda que se utilize devidamente as imagens no contexto da prática do "antes e depois" para publicidade, a fim de que haja a preservação e integridade na informação, processamento e exercício da autonomia por parte do potencial paciente. Paralelamente, o profissional deve ter a exata dimensão das possíveis consequências do uso (autorizada e não autorizada) da imagem dos seus pacientes. Em um mundo de aparências, a veiculação da realidade é a maior beleza que se pode exigir. ____________________ SCHEFFER, Mário et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. p. 37
O debate em relação a possibilidade de aplicação, dos chamados danos punitivos, (punitive damages, exemplar damages) com função punitivo-pedagógica, na responsabilidade civil por danos ambientais, é constante. Danos punitivos sempre existiram, desde o Código de Hamurabi, mas vinculados à esfera civil-ambiental é recente. Conforme Lourenço, "a pena privada constitui uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil".1 (*) Atualmente, menciona Gomes, há consenso à admissão da finalidade preventiva e punitiva da responsabilidade civil, ainda que que subordinada, pois "mesmo atribuindo-lhe um papel secundário, isto é, subordinado, aceita-se hoje, em princípio, a importância da finalidade preventivo-punitiva da responsabilidade civil". Menciona preventivo-punitiva, justamente "porque, no fundo, prevenção e punição são duas faces de uma mesma medalha, expressões de um único princípio",2 pois para a doutrina portuguesa, a função primordial da responsabilidade civil é a função reparatória, embora hoje a função preventiva, antes secundária, tenha ganhado importância. Por isso a doutrina portuguesa, acentua Antunes, embora afeiçoada ao entendimento "tradicional da primazia da natureza ressarcitória do instituto, concede no acolhimento de funções de índole preventiva e punitiva em sede do regime actual e, mesmo, perspectivando a sua extensão".3 Há também quem entenda de forma contrária, conforme Leitão, embora faça a advertência da impossibilidade da aplicação dos punitive damages no direito português, deixa em aberto uma saída possível, ou seja, a elaboração de critérios para avaliação do dano ambiental. Menciona que "o dano ambiental, por se verificarem lesões de situações jurídicas individuais, coloca exclusivamente o problema da determinação do quantum indemnizatório". E complementa que mesmo "não sendo admissível no nosso direito uma ideia de punitive damages, a solução será a da elaboração de critérios para avaliação do dano ambiental".4 Há que se registrar que a Europa possui a Directiva 2004/35CE - (Regime Próprio de Responsabilidade Ambiental), internalizada por Portugal pelo decreto-lei 147/08 (Regime de Prevenção de Reparação do Dano Ecológico). Já o Brasil não possui um "Regime jurídico de responsabilidade por danos ambientais". Então três são os fundamentos: 1) Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, 6.938/1981 Artigos 3º, inciso IV e 14, §1º; 2) Constituição Federal Brasileira de 1988 - Art. 225 § 3º e 3) Código Civil de 2002 - Artigo 927 - Parágrafo único. Voltando à função punitiva, no Brasil, um projeto de lei 6.960/025 mencionava a função punitiva, mas tal projeto nunca virou lei para entrar em vigor, sendo arquivado.6 Merecem referência ainda outros projetos para alterar o Código Civil, PL 669/117 e PL 3880/12.8. Destaque-se: No Brasil, a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva, independe de culpa, baseada na teoria do risco integral, cuja comprovação do nexo causal entre o dano e a conduta-atividade-risco é fundamental. Por isso, reafirme-se que a responsabilidade civil pode ser adotada tanto preventivamente como, na maioria das vezes, de forma reparatória e indenizatória,9 visto que o instituto desempenha não só uma função sancionatória, mas também preventiva.10 Há que se mencionar que as medidas de prevenção e precaução também devem integrar a reparação de danos.11 Então, as medidas que devem ser adotadas para uma efetiva reparação civil do dano ambiental são: a reparação propriamente dita, a supressão do fato danoso, com a cessação da atividade causadora do dano, a restauração natural, quando possível, a compensação de danos extrapatrimoniais e, também, as indenizações, pois, no campo da responsabilidade civil, esta se concretiza com a obrigação de fazer, não-fazer e dar, no pagamento de soma em dinheiro, revertida para o Fundo de Direitos Difusos e Coletivos. Relembre-se que, de forma inovadora, ainda no ano de 2013, no Recurso Especial 1.414.547-MG, publicado em 10 de dezembro de 2014, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, abordou-se o caráter punitivo do dano moral coletivo, cujo valor da condenação em dinheiro é revertido para os fundos nacional e estadual.12 Nem toda doutrina e jurisprudência, porém, converge, pois também há votos contrários a aplicação dos danos punitivos, como no Recurso Especial 1.354.536-SE, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que afasta, portanto, o caráter punitivo da responsabilidade civil quando presente dano ambiental, e esta deve ser usada somente no Direito Penal e no Direito Administrativo, sendo considerada inadequada a aplicação na reparação civil.13.14. Outros julgados ainda mereceriam destaque aqui... Por tudo, toma-se como pressuposto, no exame da responsabilidade civil por dano ambiental, o regime jurídico traçado no Brasil, consagra a responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco integral, e com reparação integral, ao poluidor/degradador, tanto a pessoa física como jurídica, ao poluidor direto e indireto, em perspectiva pública e privada, com a possibilidade de cumulação da recomposição do meio ambiente e de parcelas relativas à indenização dos danos morais coletivos, extrapatrimoniais, as quais revertem para os fundos dos direitos difusos que viabilizam importantes projetos, principalmente de educação ambiental, para as presentes e para as próximas gerações. Por fim, doutrina e jurisprudência estendem o debate... ______________ *Tema integrante da Tese de Pós-doutoramento pela FDUL - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal, agora em livro: BÜHRING, Marcia Andrea. Responsabilidade civil ambiental/ecológica: Pontos e contrapontos no "transitar verde" entre contextos distintos de estudo comparado entre Portugal e Brasil. Londrina, PR: Thoth, 2022. 1 LOURENÇO, Paula Meira. Os danos punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol XLIII, nº 2, pp 1.024-1.025. Traz importante evolução: "A atribuição de uma indemnização que excede o dano sofrido pelo lesado, com um escopo sancionatório e preventivo, era já prevista no Código de Hammurabi (2000 A.C.), nas Leis Hititas (1400 a.C.) e no Direito Romano, segundo o qual, em sede de relações privadas (delicta privata), a pessoa que houvesse ofendido os direitos de outrem ficava obrigado a pagar-lhe uma pena pecuniária com finalidade repressiva (obrigatio ex delicto).[...]" 2 GOMES, Júlio. Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade penal? Revista de Direito e Economia. Coimbra, ano 15, 1989, p. 106. 3 ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do lucro ilícito e de Efeitos Punitivos entre as Consequências da Responsabilidade Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 553-554. 4 LEITÃO, Luis Menezes. A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente. Actas do Colóquio: A responsabilidade civil por dano ambiental. Faculdade de Direito de Lisboa Dias 18, 19 e 20 de Novembro de 2009. Organização de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes. Edição: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. www.icjp.pt Maio de 2010. p. 23-24. 5 BRASIL. PL 6.960/2002. Disponível aqui.  Acesso em 20 dez. 2018. 6 GIANCOLI, Brunno Pandori; WALD, Arnoldo. Direito Civil: Responsabilidade Civil: v. 7. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 53. 7 SÁ, Arnaldo Faria de. PL 669/2011. Altera o Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui.  Acesso em: 01 jun. 2021. 8 NETO, Domingos. PL 3880/2012. Altera a redação dos arts. 186 e 944 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. 2012. Disponível aqui . Acesso em: 10 abr. 2021. 9 BÜHRING, Marcia Andrea; TONINELO, Alexandre Cesar. Responsabilidade Civil Ambiental do Estado, em face dos desastres naturais: na visão das teorias mitigadas e da responsabilidade integral. Revista de Direito ambiental e socioambientalismo, v. 1, p. 57-77, 2018. 10 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2.ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 118. 11 "A reparação do dano ambiental deve incluir medidas de prevenção e precaução, tendentes a transformar a gestão de riscos ambientais no processo produtivo da fonte poluidora, para que os danos ambientais não ocorram ou não se repitam. Trata-se aqui de mudar o modus operandi que determinou a ocorrência do dano, procurando-se atuar sobre as externalidades ambientais negativas, que deverão ser incorporadas no processo industrial, de sorte a evitar-se a apropriação quantitativa e qualitativa dos elementos naturais". STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade Civil Ambiental: As dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 265. 12 Veja-se: "A condenação judicial por dano moral coletivo é sanção pecuniária, com caráter eminentemente punitivo, em face de ofensa a direitos coletivos ou difusos nas mais diversas áreas (consumidor, meio ambiente, ordem urbanística etc.). A indefinição doutrinária e jurisprudencial concernente à matéria decorre da absoluta impropriedade da denominação dano moral coletivo, a qual traz consigo - indevidamente - discussões relativas à própria concepção do dano moral no seu aspecto individual. [...] O objetivo da lei, ao permitir expressamente a imposição de sanção pecuniária pelo Judiciário, a ser revertida a fundos nacional e estadual (art. 13 da Lei 7.347/85), foi basicamente de reprimir a conduta daquele que ofende direitos coletivos e difusos. Como resultado necessário dessa atividade repressiva jurisdicional surgem os efeitos - a função do instituto - almejados pela lei: prevenir a ofensa a direitos transindividuais, considerando seu caráter extrapatrimonial e inerente relevância social". Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2019. 13 "Ação Indenizatória por Dano Ambiental proposta por Maria Gomes de Oliveira em desfavor de Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras). A autora alegou que, no dia 5 de outubro de 2008, a Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN), uma das várias unidades de operações da Petrobrás, deixou que cerca de 43.000 litros de amônia vazassem para o leito do rio Sergipe, causando a mortandade dos animais que dele dependem e o desequilíbrio da cadeia alimentar" 14 Veja-se: "[...] b) a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar a sua obrigação de indenizar; c) é inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo; d) em vista das circunstâncias específicas e homogeneidade dos efeitos do dano ambiental verificado no ecossistema do rio Sergipe - afetando significativamente, por cerca de seis meses, o volume pescado e a renda dos pescadores na região afetada -, sem que tenha sido dado amparo pela poluidora para mitigação dos danos morais experimentados e demonstrados por aqueles que extraem o sustento da pesca profissional, não se justifica, em sede de recurso especial, a revisão do quantum arbitrado, a título de compensação por danos morais, em R$ 3.000,00 (três mil reais) [...]". BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1245550/MG. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 17 mar. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 22 dez. 2018.  
Panorama fático O agronegócio (agro) representa um pilar econômico nacional e sua pujança se comprova pela participação em 27,4% do PIB e geração de receitas com exportação no patamar de US$ 120,59 bilhões, em 2021. Borges e Parré (2022, p. 20) interligam diretamente o sucesso produtivo à disponibilidade de crédito, público e privado. Apenas no ano passado, foram liberados R$ 251,22 bilhões para fomento da atividade no Plano Safra. Indissociáveis, portanto, o agro e o crédito compõem o sistema financeiro e econômico constitucional que objetiva o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades e o progresso do Estado brasileiro. Apesar do indubitável sucesso, o agro, por se tratar de atividade com atuação agrária direta, sempre representou algum tipo de risco ao meio ambiente, notadamente porque também responsável por desflorestamentos e poluições. Consoante registro do MAPBIOMAS, houve a perda de aproximadamente 10% das matas entre 1985 e 2020, representando 13.853 km2 de área apenas nesse último ano analisado. Desse total, 98,9% foram desmatamentos ilegais, 12,4% em unidades de conservação (UC's) federais ou estaduais e 7,3% em área indígena, com finalidade predominante de abertura de novas fronteiras agrícolas e pecuária, ou seja, relacionados intimamente à cadeia do agronegócio. Do ponto de vista creditício, a exemplo de qualquer atividade capitalista produtiva, a exposição aos riscos, inclusive ambientais, integra o cerne e a essência negocial pela busca do lucro, os quais são sopesados nas condições legais, negociais e remuneratórias.  Com efeito, apesar do compromisso pela sustentabilidade exigido de todos os ramos econômicos, não é possível afastar integralmente o perigo de lesão ambiental em empreendimentos financiados. Como não há na jurisprudência do E. STJ enfrentamento específico sobre a modalidade jurídica de responsabilização aplicável aos agentes financiadores, encaminham-se aos distintos leitores algumas das nossas reflexões acerca da temática. Responsabilidade ambiental do financiador A responsabilidade civil, subdividida em objetiva e subjetiva, é a figura do Ordenamento Jurídico reservada para imposição, ao agente gerador do ato ilícito, da obrigação de reparação e indenização. Para sua caracterização, Destefenni (2005, p. 82/93) elenca três requisitos: o primeiro, a conduta, ato ativo do agente, comportamento, procedimento; o segundo, o dano, a lesão gerada pela conduta comissiva ou omissiva; e, o terceiro, nexo de causalidade, a relação, conexão entre o ato e a lesão. Conforme Ayala (2012, p. 125), a culpa reflete uma ofensa, maculação, um desrespeito a uma obrigação prévia, caracterizado pela negligência, imperícia ou imprudência. Para a modalidade objetiva inexiste vínculo imperativo entre a conduta e a culpa do agente, senão somente nexo de causalidade entre a lesão e a conduta, vez que não perquirida a culpa, como cediço.. Lado outro, para a modalidade subjetiva (regra no Direito Civil), necessário o dano, o nexo de causalidade e a conduta típica, assim entendida como ato do agente culposo ou doloso. Nesse panorama fático-jurídico, a análise sobre a (im)possibilidade de responsabilização dos agentes financiadores considera duas alternativas com consequências distintas. Responsabilidade Objetiva A corrente doutrinária predominante defende a responsabilização objetiva dos agentes financiadores por qualquer dano ambiental. Para Fiorillo (2011, p. 98), inexiste a necessidade de culpa, bastando apenas que o dano seja oriundo do ato, já que o exercício de uma atividade apresenta seus riscos inerentes. Para essa corrente, eventual lesão ao meio ambiente gerado por obra ou atividade financiada decorre por força de lei, independentemente de qualquer requisito ou circunstância. De forma enfática, Raslan (2012, p. 274/275) afirma que a intermediação financeira visa ao lucro e afasta a possibilidade de análise de culpabilidade, conquanto a relação de causalidade surge desde a formalização da operação creditícia. O nexo causal se concebe no exato momento de liberação dos recursos destinados ao empreendimento financiado, porquanto sem referida intermediação não existiria a possibilidade do dano. Dessa forma, não há distinção entre o poluidor direito e o indireto, representando o segundo mero coobrigado solidário do primeiro. Em diversas decisões recentes (REsp 1778729/PA, exempli gratia), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) corroborou com sua adoção, conceituando a obrigação ambiental como de natureza objetiva, ilimitada, solidária, propter rem e imprescritível. Todavia, não se vislumbrou na pesquisa nenhum julgado específico no tocante aos agentes financeiros. A doutrina denomina essa teoria de Risco Integral. Segundo Sampaio (2013, p. 39), o risco integral impossibilita, inclusive, qualquer causa excludente de responsabilidade prevista no Código Civil, ou seja, o dever de reparar perdura tão somente pelo dano, mesmo atribuindo-se a culpa exclusiva ao financiado, em caso fortuito ou força maior. Em contrapartida, o mesmo autor defende que a adoção dessa teoria alcançaria restritamente o poluidor direto, não sendo cabível interpretação extensiva. A adoção da responsabilização objetiva e do risco integral representa a solução com maior perspectiva de defesa do meio ambiente, seja na espécie preventiva ou reparatória, dada a capacidade administrativa e financeira dos bancos. Responsabilidade Subjetiva A corrente antagônica defende que a responsabilização objetiva dos agentes financiadores, na prática, possui traços de subjetividade, pois pressupõe uma das características da culpa (imprudência, imperícia ou negligência), notadamente, porque o ato de financiar de per si não representa risco ambiental. Desconsiderar integralmente o aparato legal na análise da responsabilização ambiental, basicamente iguala o fornecedor creditício que respeitou amplamente os princípios constitucionais (prevenção, precaução e desenvolvimento sustentável), leis infraconstitucionais, resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central, exigiu a averbação da reserva legal, não financiou produtores em listas de trabalho escravo, realizou fiscalizações contratuais, enfim, adotou toda diligência esperada, com outro fornecedor que garantiu o crédito sem nenhuma exigência. A solidariedade ilimitada implicaria, de fato, em ilegítimo incentivo à não observância do regramento existente para a concessão de crédito, notadamente, porque a adoção das cautelas retrocitadas apenas elevaria o custo administrativo e empresarial, sem efeito material na responsabilização. O risco extremo, além da possibilidade de restrição creditícia, levaria os financiadores a laborarem com excesso de diligência e interferência no agronegócio, invadindo a esfera privada na sua dimensão econômica, em grave ofensa aos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de atividade. Não se pode olvidar também que o Estado sempre se posicionaria como poluidor intermediário indireto, seja na qualidade de licenciador ou na condição de fiscalizador. Outrossim, representa também a responsabilização de todos os outros intervenientes da cadeia, tais como, fabricante, revendedor de agrotóxicos, implementos agrícolas, profissionais da área ou qualquer pessoa física ou jurídica integrante da relação danosa, dada que a seletividade ofenderia o tratamento isonômico. Por tais motivos, a mitigação do risco integral e a adoção do risco criado se mostra viável. Para essa teoria aquele que gera uma situação de risco em virtude de atividade ou profissão atrai para si a responsabilidade pela reparação de dano causado, desde que não consiga comprovar que agiu da forma esperada para evitá-lo ou que tomou todas as precauções regulamentares no exercício da atividade. (Raslan, 2012, p. 201). Machado (2020, p. 410) é enfático no sentido de abalizar a transferência do risco para o financiador, apontando o compartilhamento como a melhor solução jurídica, permitindo dessa forma a apreciação da culpabilidade. A propósito, foi essa a solução aplicada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região, ao julgar o Agravo de Instrumento 0060759-67.1997.4.01.0000.  Conclusão In casu, o caminho mais sensato é se posicionar de maneira restritiva no ponto da responsabilidade objetiva. Não havendo, por ora, jurisprudência consolidada no tema, cabe ao Mercado dialogar com os Tribunais, mormente com o STJ, dada a sua qualidade de responsável pela uniformização de entendimento. Certo é que a condenação indiscriminada dos bancos poderá acarretar efeito econômico negativo (restrição de crédito e juros mais altos, v.g.), sem, efetivamente, gerar maior grau de proteção ambiental. A solução é harmonizar estas duas dimensões à luz do estado da arte da Responsabilidade Civil. Bibliografia AYALA, Patryck de Araújo. Direito Fundamental ao Ambiente e a Proibição de Regresso nos Níveis de Proteção Ambiental na Constituição Brasileira. In: LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental na Sociedade de Risco. São Paulo: Saraiva. 2012. Borges, M. J., Parre', J. L. (2022). O impacto do crédito rural no produto agropecuério brasileiro. Revista de Economia e Sociologia Rural, 60(2), e230521. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Exportações do agronegócio batem recorde em dezembro e no ano de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 02 jan. 2022. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano Safra 2021-2022. Disponível aqui. Acesso em 02 abr. 2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1778729/PA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/09/2019, DJe 11/09/2020. Disponível aqui. Acesso em 12 mar. 2022. BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento 0060759-67.1997.4.01.0000, Rel. JUIZ ANTÔNIO SÁVIO O. CHAVES (CONV.). SEGUNDA TURMA, julgado em 07/11/2000, DJe 11/12/2000. Disponível aqui. Acesso em 22 abr. 2022. CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA) E CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA E PECUÁRIA (CNA). PIB do agronegócio brasileiro. Disponível aqui. Acesso em 02.abr.2022. DESTEFENNI, Marcos. A responsabilidade civil ambiental e as formas de reparação do dano ambiental: aspectos teóricos e práticos. Campinas: Bookseller, 2005. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2020. RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade Civil Ambiental do Financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2020 - São Paulo, Brasil - MapBiomas, 2021 - 93 páginas. Disponível aqui. Acesso em 02 jan. 2022. SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Reponsabilidade civil ambiental das instituições financeiras. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 201
Alberich, senhor dos Nibelungos, segundo a mitologia nórdica, forjou um anel que trazia consigo uma benção ou poder e, ao mesmo tempo, uma maldição. E, estes rápidos escritos, que têm pretensão de apenas plantar uma reflexão, irão tratar de um poder que traz consigo, muitas das vezes, uma dura maldição. Quando se fala em demanda ressarcitória, ação de indenização, ação de compensação etc., somos levados a pensar, quase que mecanicamente, em danos materiais que geram indenizações ou danos morais (como a conhecida negativação indevida) que promovem a possibilidade do pleito compensatório. É um reflexo natural. Pensamos em danos do dia a dia e da importância do sistema de ressarcimento estabelecido para eles. Contudo, nos esquecemos de situações mais profundas, mais delicadas, principalmente ligadas a grandes tragédias e/ou danos existenciais em que um ingrediente duro, áspero, doloroso, se faz presente a todo momento: a lembrança. O tempo é capaz de amansar e adelgaçar as feridas. Mas ele possui uma adversária cruel, a recordação. Ela, senhora do ontem, faz uso de todo momento e oportunidade possível para trazer à tona o que jazia no fundo, de tornar revolto o que já havia decantado. E é o tempo que tenta apagar o motor que mantém cada vez mais forte o poder da lembrança. É a lembrança, a recordação, a responsável por gerar a revitimização pelo viés que interessa este escrito. O rememorar, o reviver a dor. E todo episódio é uma infeliz oportunidade para o sofrer. A revitimização é tema de estudo na Ciência do Crime, em delitos contra a dignidade sexual, violência doméstica. Na esfera civil, o abandono afetivo é pari passu com esta questão. Mas a esfera da Responsa Civil, quando fincada em danos existenciais, é repleta de questões que, despertas, nos levam a refletir sobre o dano intrínseco à própria demanda. Nos livros mais antigos, o conceito de strepitus judicii (literalmente, o barulho do julgamento) buscava abarcar o dano contido no manejo da ação criminal e, justificava, restrições ao direito de agir nos, ao tempo, crimes contra os costumes. Hoje, evoluindo esta visão, inicia-se uma jornada para se evitar que a vítima seja submetida à uma desnecessária exposição. Das diversas facetas que a revitimização pode se apresentar, duas interessam diretamente a este rápido escrito. A primeira, através da conduta opressora do próprio Estado-Juiz ou Estado-Administração, quando do conduzir do processo e, outra, decorrente da duração excessiva do feito. A primeira vertente já foi objeto de análise pelo Direito Penal. A segunda, contudo, resta esquecida na compreensão indevida de que o processo dura o tempo que se faz necessário. De lege lata, é possível ver que o sistema Processual Penal, tanto o comum quanto o regime dos Juizado Especiais Penais, há tempos, já demonstra preocupação com a revitimização. Desde 2017, com a lei 11.340, o tema da revitimização ganhou tutela no art. 10-A da referida lei. Antes, já se reconhecia a violência institucional como um mecanismo que poderia gerar a revitimização, na lei 13.431/17 (em seu art. 4º, IV). O Conselho Nacional de Justiça se manifestou, em 2018, sobre o tema, através da resolução 254. E, mais recentemente, as leis 14.425/21 e 14.321/22, trouxeram em seu bojo a penalização da conduta da violência institucional1. A segunda situação, que se apresenta para análise de lege ferenda, é a possibilidade de se estabelecer, a símile do que ocorre no processo penal, um sistema especial de prazos, sem que se decote ou suprima o contraditório e ampla defesa, mas garanta um transcorrer célere entre a propositura da ação ressarcitória existencial e a sentença final. Fundamental que se tenha, também, reflexos sobre o sistema recursal, como já, timidamente, agiu o Legislador no art. 1.015 do Código de Processo Civil acrescido da visão do Superior Tribunal de Justiça em relação à norma. É conhecida a frase que afirma ser a justiça tardia, na realidade, injustiça qualificada e manifesta, imortalizada por Rui Barbosa. Contudo, os prazos processuais destinados ao Magistrado e às Serventias e Auxiliares, enfim, ao Judiciário como um todo, são, no mais das vezes, impróprios. Tentado reunir os conceitos, não se pode confundir tal questão com a possibilidade de uma citação levar um ou dois anos para se efetivar, ou um processo, em ponto de decisão final, levar meses para ser sentenciado. Ou, também, em demanda de erro médico, o conhecimento ou não de denunciação da lide tenha sua apreciação, em grau de recurso por Tribunal, após quase três anos. Os Juizados Especiais, por sua lei, tiveram por objetivo trazer celeridade para demandas de menor complexidade e, desta forma, desatende de plano a proposta que aqui se apresenta. Pior, é fato que, na prática forense, as demandas por tal via acabam, por vezes, consumindo mais tempo até a final decisão do que se se optasse pela via comum de conhecimento. Advirta-se não ser razoável colocar num mesmo quadro de preferência demandas indenizatórias unicamente materiais, derivadas de danos materiais ou mesmo morais, mas que não atinjam o âmago da existência. É preciso realizar, sobre as hipóteses de cabimento, um recorte temático. Erros médicos graves, abandono afetivo, grandes acidentes, enfim, questões que geram o desgaste a cada retomada. É fato, também, que em se determinando que tocaria a definição de aplicabilidade (ou não) do rito célere ao Magistrado ocorreria o patente risco de construção de mais meios recursais, o que, ao invés de acelerar, tornaria ainda mais lento o feito. Do mesmo modo, a previsão de um rol fechado, estreito, de hipóteses em que deveria ser reconhecido o rito especial, colocar de fora da previsão novas compreensões de danos existenciais, seria também um fato perigoso. Neste espaço, o meio termo pode se apresentar como uma solução. Um rol, de natureza exemplificativa, estabeleceria a aplicação automática do rito, somente sendo recorrível se o Magistrado compreender não se adequar a previsão legal à situação, cabendo ao interessado, o recurso de Agravo para a obtenção do rito especial. Este limite pode servir como um inibidor do mal uso do procedimento. Dito isto, como se conceber um tal rito especial para as demandas existenciais? Um primeiro passo, importante para que se ressalte a especial natureza do feito, passa por definir os sujeitos destinatários de uma esperada previsão legal de celeridade. Para isto, o conceito de hipervulnerável (no momento deste texto contempla os indígenas - REsp 135.867 -, crianças e adolescentes - REsp 1.517.973 -, idosos - EREsp 1.192.577 -, pessoas com deficiência - REsp 931.513 - e mulheres em situação de violência doméstica - RHC 100.446), o qual vem sendo cunhado pelo STJ serviria de um porto seguro para a partida. À razão subjetiva, o esteio objetivo baseado nas demandas existenciais, estabeleceria o conjunto elementar para o lastro da norma esperada. Tudo isso desaguaria no processo. Proposta a demanda ocorria a fixação de urgência na conclusão e, após o despacho, a realização da citação ocorria em regime de urgência. Feito isso, prazos específicos para os atos como os já conhecidos "decidirá em 10 dias", como exemplo. Por fim, o estabelecimento de um prazo final para a sentença, respeitando a necessidade, ou não, de perícia, de forma a limitar no tempo medidas que unicamente buscam atrasar o feito. Pois, aqui, o tempo machuca e faz doer. Tudo isso faz da função educacional da responsabilidade (prevenção geral) letra morta e acaba por antepor uma questão complexa: se o brocardo popular afirma que o crime não compensa, será que ainda persistiremos em aceitar que os delitos civis compensarão? E, ao mesmo tempo, insistir em desconhecer a importância de se proteger a vítima nas demandas ressarcitórias existenciais? A proposta pode abarcar variações, por exemplo, um rito próprio para demandas com perícia pessoal e outro para demandas em que a perícia recaia sobre documentos; a efetiva justificativa acerca da necessidade do depoimento do autor solicitado pelo requerido, são exemplos de recortes processuais que não empobreceriam o feito e não amputariam a garantia Constitucional da ampla defesa. Sobre este último tema, o decote de provas ou diligências desnecessárias, contemplado no Código de Processo Civil em seu art. 370, parágrafo único, pode, antes de qualquer modificação legal, trazer maior humanidade para as demandas existenciais. Mas, hoje, sob o argumento de não se impedir a defesa processual, há feitos em que se deferem as medidas mais estapafúrdias e desencontradas ou mesmo passa-se pela fase do saneador com uma simples listagem das provas requeridas, sem que se faça necessário justificar o que pedido. Por tudo isso, perdeu o Legislador, quando tratou da violência institucional, grande oportunidade para cuidar das demandas civis. É necessário entender que aquele que sofre o dano civil deve ser devidamente tratado como vítima e o mesmo sistema que reconhece a proteção para o defendente, deve conhecer da importância de se tutelar quem, a cada momento do encadernado processual, é lembrado da dor, do sofrimento, da ruptura. Não se tem, assim, um ponto feito, mas espera-se que como todo crochê seja este um movimento que, junto aos que lhe antecederam e aos que ainda virão, possibilitarão, um dia, a compreensão de que a vítima já sofreu e sofre, não havendo sentido em se reforçar, ainda mais, tal lembrança. E, nesta jornada, se não se apagar por completo da forja do Rei dos Nibelungos, que, ao menos, o anel possa ser rompido, livrando a maldição uma parte dos cidadãos brasileiros. _____________ 1 Recomenda-se, para um perfeito recorrido histórico, a leitura do texto de Renee do Ó Souza, publicado aqui.
A caracterização dos danos extrapatrimoniais no âmbito dos contratos de transporte aéreo há muito gera intenso debate em âmbito doutrinário, não havendo ainda consenso no campo jurisprudencial. Ante a histórica dificuldade da comprovação de lesão a um interesse existencial, defende-se, de um lado, que se deve presumir a ocorrência do dano (dano in re ipsa), quando perpetrado um ilícito no desenvolvimento da atividade de transporte, como, por exemplo, em casos de cancelamento ou atrasos de voo. De outra parte, no entanto, sustenta-se caber ao consumidor a prova de que houve a efetiva violação a direito da personalidade1, não se podendo concluir pela ocorrência de dano unicamente em razão de um ato ilegal efetivado pela companhia aérea. O desenvolvimento da ideia de dano moral in re ipsa deve ser entendida no contexto da excessiva judicialização de diversos aspectos da vida social. De fato, não se pode ignorar a circunstância de que a ampliação desmesurada da litigiosidade tem como uma de suas causas a crença infundada de que o Poder Judiciário teria como um de seus escopos a transformação social, substituindo, deste modo, a atuação, muitas vezes deficitária, dos Poderes Executivo e Legislativo. O processo judicial tem-se transformado em instrumento de solução das mais variegadas mazelas sociais que afetam o país. Debate-se, neste sentido, o custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Segundo a ANAC, no ano de 2017, as condenações judiciais decorrentes de demandas ajuizadas por passageiros representaram cerca de 1% dos custos e despesas operacionais das empresas aéreas brasileiras. De acordo com a Junta de Representantes das Companhias Aéreas Internacionais do Brasil (JURCAIB), este gasto, de aproximadamente R$ 311 milhões, é resultado de mais de 60.000 processos intentados contra as empresas de aviação nacionais. Relata-se ainda que o número de processos propostos por passageiros contra as aéreas saltou de 64 mil em 2018 para 109 mil, apenas entre os meses de janeiro e julho de 2019, de acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER). Segundo o diretor da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), em 2018 havia, em média, 174 ações por dia, elevando-se este número para 520, no primeiro semestre de 2019, de forma que a judicialização do setor no Brasil alcançou o custo de R$ 1 bilhão por ano. Poder-se-ia argumentar, como modo de justificar os números apresentados, que as empresas de aviação aérea nacionais prestariam um serviço de péssima qualidade, ostentando números mais elevados de cancelamento e atrasos de voos, em comparação com a média internacional, e deixando de assistir os passageiros quando da ocorrência de alguma falha no exercício da atividade. Esta hipótese, no entanto, não parece coincidir com a realidade. Com efeito, segundo se noticiou, uma empresa americana operou, em 2017, 5.000 voos diários nos EUA, recebendo, ao longo do ano, cerca de 130 processos ajuizados por consumidores naquele país. Esta mesma empresa, que também tem funcionamento no Brasil, operou aproximadamente 5 voos diários no mesmo período, figurando como ré em 1.200 processos, embora siga protocolos similares em ambos os países2. Ainda segundo dados fornecidos por Dany Oliveira, diretor da IATA, uma companhia aérea, com oferta global em 67 países, cuja participação no Brasil era de apenas 3%, possuía mais de 85% das causas judiciais alocadas em território brasileiro. Deve-se notar ainda que, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (ABEAR), cerca de 85% dos voos das empresas aéreas associadas partiram e chegaram nos horários previstos em 2018, enquanto nos EUA essa taxa alcançou o patamar de 82%, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e do Departamento de Transportes dos Estados Unidos. Outrossim, a taxa de falhas no manuseio de bagagens pelas aéreas nacionais, também em 2018, teria sido de 2,45 para cada mil volumes despachados, menos da metade da média mundial (5,68), segundo a Sociedade Internacional de Telecomunicações Aeronáuticas (SITA)[3]. Corroborando tais dados, o relatório "OAG Punctuality League 2019 - On time performance results for airlines and airports", produzido pela consultoria britânica Official Airline Guide (OAG), especializada em inteligência de mercado de aviação, demonstra que a aviação brasileira ocupa posição de destaque mundial no quesito pontualidade4. Em pesquisa no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, constata-se que a expressão "dano moral in re ipsa" é utilizada pela primeira vez5 em julgado do ano de 1997, em processo sob a relatoria do Min. Cesar Asfor Rocha6. Trata-se de caso em que autora era uma das passageiras do ônibus da empresa ré, causadora de um acidente de trânsito por imprudência e imperícia de seu motorista, que trafegava sem segurança, com lonas dos pneus soltas e descoladas, tendo a vítima sofrido lesões corporais que a incapacitaram temporariamente para o trabalho. O impacto do acidente causou ainda sequelas na coluna vertebral, reduzindo sua capacidade laborativa. Amparado na doutrina de Carlos Alberto Bittar, entendeu o relator pela desnecessidade da prova do prejuízo e fixou a compensação por dano moral no montante de 100 salários mínimos. Em relação a casos de atraso de voo, o primeiro acórdão do STJ a aplicar a tese do dano moral presumido, e a mencionar expressamente o "dano moral in re ipsa", data de novembro de 2009. Segundo se registrou na ementa, "o dano moral decorrente de atraso de voo, prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador se opera, in re ipsa, por força do simples fato da sua violação em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro". Analisando-se o relatório e o voto do relator, constata-se que sequer se menciona a duração do atraso, entendendo-se pela existência de dano extrapatrimonial unicamente em razão do retardo da partida do voo. Ante a dificuldade, portanto, da realização da prova das consequências ou prejuízos morais causados à vítima, tem-se declarado que o dano moral é in re ipsa, decorrendo inevitavelmente da ilicitude praticada. Esta construção teórica, no entanto, parte de premissas equivocadas e parece não se sustentar ante as incongruências que apresenta. Com efeito, não se mostra correta a identificação do dano extrapatrimonial com seus efeitos, não constituindo o pressuposto anímico elemento ontológico da lesão existencial. A existência de sentimentos deletérios não serve à caracterização do dano moral, eis que impossível a sua aferição por meio de critérios objetivos. A dor e o sofrimento, embora muitas vezes se materializem nos casos de lesão não patrimonial, consistem em mera manifestação consequencial do dano, com este não se confundindo. Neste sentido, os nascituros, as crianças de tenra idade e os portadores de doenças mentais podem vir a sofrer danos extrapatrimoniais. Tal não se dá em razão da presunção (in re ipsa) da ocorrência de consequências morais negativas, que podem nem mesmo se fazer presentes no caso concreto, mas sim em razão da violação a direito da personalidade da vítima.   A tendência de utilização de presunções de dano, entretanto, nos casos envolvendo o transporte aéreo, tem sido revertida no STJ. De fato, já em 2018, no REsp 1484465/MG, decidiu-se que, embora comumente se considere presumido (in re ipsa) o dano moral decorrente de atraso de voo, o tema carecia de maior reflexão, exigindo aprimoramento das ponderações até então empreendidas7. Segundo a Corte, o reconhecimento da lesão extrapatrimonial in re ipsa, independentemente da duração do atraso e demais circunstâncias do caso, induz à conclusão de que "uma situação corriqueira na maioria - se não por dizer na totalidade - dos aeroportos brasileiros ensejaria, de plano, dano moral a ser compensado, independentemente da comprovação de qualquer abalo psicológico eventualmente suportado." Entendeu então o STJ que se faz premente a análise das circunstâncias que envolvem o caso concreto, para fins de comprovação da ocorrência de dano extrapatrimonial. A título exemplificativo, foram citadas certas particularidades que podem ser examinadas: i) a investigação da duração de tempo que foi gasto para solucionar o problema, ou seja, a real duração do atraso; ii)  a verificação da oferta, pela companhia aérea de alternativas para melhor atender os interesses dos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da empresa aérea, com o escopo de mitigar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros. A fixação de critérios objetivos, como os acima apontados, propicia maior segurança jurídica, oportunizando ainda que os fundamentos da decisão judicial sejam efetivamente conhecidos. A mera alusão à ocorrência do "dano moral in re ipsa" consiste em solução simplificada para os diversos e distintos problemas que emergem do fornecimento do serviço de transporte aéreo. Deste modo, se não se pode, de um lado, exigir que o consumidor comprove o prejuízo moral sofrido, como a dor e o sofrimento ocasionados pelo ato ilícito praticado, tampouco se deve exonerá-lo da atividade probatória ínsita à configuração do dano extrapatrimonial.    ____________ 1 Dispõe o art. 251-A do Código Brasileiro de Aviação, com redação dada pela Lei 14.034/2020: "A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga."   2 ALENCAR, Lais Facó; CATANANT, Ricardo; FENELON JUNIOR, Ricardo. O custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Jota. Disponível aqui. Acesso em 29 de ago. 2020. 3 ABEAR e associadas discutem judicialização no setor aéreo em evento em São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 30 de ago. 2020. 4 No ranking de aeroportos de pequeno porte, Curitiba (4º lugar), Fortaleza (8º lugar) e Salvador (13º lugar) se destacam no cenário internacional. Considerando-se apenas os aeroportos de médio porte, o de Viracopos ocupa a 3ª posição no quesito pontualidade. Outros aeroportos, como o de Recife (4º lugar), o Santos Dumont (5º lugar), o de Belo Horizonte (6º lugar), o do Rio de Janeiro (8º lugar) e o de Porto Alegre (9º lugar), figuram entre os 20 aeroportos com maior média de pontualidade. Assim, dos 20 aeroportos de médio porte mais bem pontuados, 5 se situam no Brasil. Por fim, relativamente aos aeroportos de grande porte, destacam-se os de Brasília (3º lugar) e o de Congonhas (6º lugar). Os dados podem estão disponíveis aqui. Acesso em 30 de ago. 2020.  5 Foram encontrados 785 julgados em que a locução "dano moral in re ipsa" foi utilizada no STJ. 6 O mesmo entendimento foi adotado pelo STJ no REsp 23575/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 09/06/1997. 7 STJ, REsp 1.584.465/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018.
A popularização dos computadores pessoais inundou nossa rotina de novos hábitos que, em geral, encurtaram distâncias entre ausentes, e, como tudo tem um preço, criaram "ausências" entre presentes. O avanço alterou conceitos que pareciam imutáveis. À guisa de exemplo, o termo "companhia", transcrito no inciso I, do art. 932, do CC/2002, hoje ganha novo significado. Se aos pais sempre foi imputado os deveres de vigilância, guarda e educação dos filhos,1 impedindo que algo de mau os aconteça e, através desse complexo processo que chamamos educação, que sejam eles, os filhos, os promotores de más condutas, não há como negar que atualmente essa "guarda" precisa ser exercida fora do alcance dos seus olhos. A rua da geração passada, na qual brincávamos sob olhares atentos, ganhou a dimensão do mundo inteiro, trazendo a reboque a majoração dos riscos aos quais nossos filhos estão expostos e podem expor os outros. Diante de tudo isso, velhos atos nocivos que ficavam restritos aos presentes, como a prática de bullying, agora podem ser eternizados pela rede - através do cyberbullying - transformando um anônimo em celebridade mundial, no pior sentido que a essa posição de destaque possa carregar. Como é sabido, em matéria de responsabilidade dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, migramos do modelo da responsabilidade civil subjetiva, para o da objetiva. Dessa maneira, os pais respondem independentemente de culpa pelos danos causados por seus filhos, seja em ambiente físico ou virtual, mas o mesmo pode ser garantido quando estes filhos já estejam emancipados? Estes breves escritos têm o intuito de enfrentar a matéria, cotejando os atuais limites da autoridade parental, o exercício das liberdades individuais pelas crianças e adolescentes e a responsabilidade civil objetiva imposta aos genitores. Com o receio de que seus filhos se envolvam em ilícitos virtuais, genitores têm se utilizado de ferramentas para sua constante vigilância, e.g o aplicativo Life 360, que garante acesso em tempo real à localização dos usuários, ou, com acesso ainda mais amplo, o Teen Safe, que funciona como espião, garantindo aos pais acesso às conversas, postagens e até mesmo fotos e vídeos gerados pela câmera do celular do "protegido" ou recebidos de outros usuários, comprometendo, desta forma, não apenas a privacidade e a intimidade dos filhos mas, de igual modo, de terceiros que participaram dos diálogos. Embora o controle parental na internet tenha permissão legal expressa no art. 29 do Marco Civil da Internet, como forma de garantir o dever de vigilância pelos pais, tal diploma disciplina que esse comando deve se dar em consonância com o ECA, que reafirma os direitos de personalidade de crianças e adolescentes destacando o exercício da autonomia, donde se extrai a autorrealização/autodeterminação informativa como princípio a ser respeitado.2 O desafio dos genitores reside, portanto, no alcance da fórmula de ouro que assegure uma "fiscalização" saudável do trânsito dos filhos pela internet sem comprometer as garantias fundamentais destes e de terceiros com os quais mantenham contato. Não se quer aqui rechaçar, em absoluto, a utilização dos aplicativos mencionados (Teen Safe, Life 360 ou outros), mas, como dito, chamar a atenção para a importância da compreensão de que tal conduta deve se dar na exata proporção da necessidade, isto é, da imaturidade dos filhos para lidar com o ambiente cibernético, de tal modo que quanto mais evoluídos estes se mostrarem, menor deve ser a interferência dos genitores.3 Como referimos, o art. 932, I, disciplina: "são também responsáveis pela reparação civil os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia". Num país de "famílias mosaico", é forçoso perguntar. I) a "autoridade" mencionada se confunde com a guarda? II) Se o menor houver causado o dano na companhia do genitor guardião, aquele que não detém a guarda será igualmente responsável, ou somente responderá subsidiariamente, ou mesmo, não responderá? III) Considerando o termo "e em sua companhia", se o menor houver praticado o ato na ausência de ambos os genitores, não seriam estes responsabilizados? Afinal, é ou não é independente de perquirição de culpa a responsabilização civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, inclusive no âmbito virtual? Antes de qualquer outra consideração referente ao "Direito dos Danos", é mister aclararmos, em sede de Famílias, que os institutos da "guarda" e da "autoridade parental" não se confundem. É isso que se extrai da leitura conjunta dos artigos 1.632 e 1.634 do CC/2002. Portanto, mesmo o genitor que não detiver a guarda de seus filhos continua em pleno exercício de sua autoridade parental, não havendo que se falar em causa de exclusão de responsabilidade por essa razão. É necessário ainda mais cuidado com a expressão "sob sua companhia" também constante do mencionado 932, I. Como mencionado, ela pode nos conduzir à falsa impressão de que o dispositivo exige a presença física dos pais no momento da conduta geradora do dano para que se fale em responsabilidade civil objetiva. Ora, se assim fosse, o que teríamos seria persecução da culpa in vigilando e não uma responsabilização independente de sua comprovação.4 O enunciado 450, da V Jornada de Direito Civil, sugere a solidariedade passiva de ambos os genitores na responsabilidade, mas, preserva a possibilidade de regresso caso haja culpa exclusiva de um dos genitores em não exercer o dever de cuidado a contento. Ou seja, a culpa seria irrelevante para o ressarcimento do lesado, podendo este exigir a totalidade da indenização a qualquer dos genitores, mas, essa culpa continuaria a ter relevância na relação interna da solidariedade passiva, instituída por lei, permitindo ao não culpado se ressarcir daquilo que despendeu. Soa-nos destoante da realidade, entretanto, imaginar a culpa exclusiva de um dos pais pela prática da maioria dos atos potencialmente lesivos praticados por seus filhos. Mal comparando, esse pensamento segue a mesma ratio daquele que acredita ser possível identificar numa relação matrimonial que perdurou por décadas um único cônjuge responsável pelo desenlace. Não nos parece que a culpa dos pais pelo dano causado por seu filho possa ser extraída exclusivamente de sua desatenção no momento da conduta danosa (dever de cuidado), mas, que a má ética do menor tenha derivado de desatenção ao dever de educação que a ambos os pais é imposto e, dessa maneira, concorreriam em igualdade na responsabilidade, devendo o ressarcimento alcançar, no máximo, a sua quota como codevedor na relação interna da solidariedade passiva, nos moldes da primeira parte do artigo 283 do CC/02. Impende reconhecermos, contudo, não haver uma equação garantidora de que uma boa educação formará jovens probos, mas, não é isso que está em causa, já que a responsabilidade pelas condutas será, como tantas vezes já dito, objetiva, e os pais suportarão as margens de álea resultante da criação do filho que trouxeram ao mundo. Marcamos posição, portanto, pela responsabilização solidária de ambos os pais, independentemente de ser o guardião ou ter presenciado a conduta geradora do dano, de forma exclusiva. Entendemos que a norma possibilita, quando muito, o direito de regresso daquele que suportou todo o prejuízo para se ressarcir em 50% do que pagou, enquanto codevedor, havendo solvência do outro genitor. No parágrafo único do artigo 5º, o CC/2002 traz as hipóteses pelas quais cessará a incapacidade civil dos menores. Os referidos incisos prenunciam três formas de emancipação, a emancipação legal, incisos II a V; a emancipação voluntária, primeira parte do inciso I; e a emancipação judicial, segunda parte do inciso I. Como o nome sugere, na emancipação legal a incapacidade cessará em virtude de lei, observadas as situações previstas nos incisos citados acima. Na emancipação judicial, o mesmo fenômeno ocorre, desde que o menor conte com ao menos 16 anos e, por sentença, o juiz, o emancipe, após a oitiva do tutor. Na emancipação voluntária, contudo, é a própria ação volitiva dos pais5, autônoma de homologação judicial, a impulsionadora da cessação da incapacidade. Diante disso, não é difícil imaginar que esses mesmos pais pudessem enxergar como solução para as constantes condenações de reparação civil resultante dos danos causados por seu rebento, a sua emancipação. Dessa maneira, poderiam pensar que blindariam seu patrimônio, ao tornar o filho infrator plenamente capaz para os atos da vida civil, e que, a partir dali ele, o filho, responderia com seus próprios bens pelos danos eventualmente praticados. O próximo passo seria óbvio: não conferir patrimônio a esse filho que ainda é economicamente dependente. Afinal, quem não tem patrimônio, via de regra não indeniza, dessa maneira os lesados não seriam ressarcidos. Hipótese que num olhar apressado parece ter sido contemplada pelo artigo 928 do Código Civil. Seria o plano perfeito, mas o Direito não é dado a esse tipo de chicana. Aclare-se que a responsabilização do menor através de patrimônio próprio prevista no artigo 928, é subsidiária, e somente terá lugar nas hipóteses nas quais os pais não disponham de bens suficientes para a integral reparação do dano suportado pelo lesado6 ou, quando estes genitores não estiverem obrigados a fazê-lo. Entretanto, já é entendimento pacífico de nossa Suprema Corte (RTJ 62/108, RT 494/92) que a emancipação somente desobrigará os pais pelos danos praticados pelos filhos quando ocorrida na forma de emancipação legal7, não servindo esse instituto como remédio para afastar precocemente a responsabilidade dos genitores que voluntariamente o buscaram.8 A parentalidade, ainda que exercida na sociedade de informação, continua a ser fascinante, mas, como toda grande recompensa, traz grande encargos. A objetivação da responsabilidade civil visando garantir a reparabilidade dos danos causados pelo menor pôs sobre as cabeças dos progenitores uma espécie de espada de Dâmocles, quem se atreve a desfrutar dos prazeres desse banquete dionisíaco deve estar ciente dos riscos derivados de sua posição. __________ 1 Vd., arts. 1.630 c/c 1.634 do Código Civil. 2 Vd. art. 17 do E.C.A 3 Para melhor compreensão do paradoxo apresentado, recomenda-se o episódio "Arkangel", da série Black Mirror disponível na plataforma NETFLIX. 4 Enunciado 590 da VII Jornada de Direito Civil - "A responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhosmenores, prevista no art. 932, inc. I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria hábil para a sua responsabilização." Essa "companhia", portanto, não se traduz pela exigência da presença física dos pais no momento da prática do ato lesivo, senda mero encadeamento dedutivo de uma asserção precedente, a "autoridade parental" e os deveres que dela derivam. 5 Que devem levar em conta o melhor interesse da criança e do adolescente para decidirem sobre o ato. 6 Nesse sentido, REsp 1.436.401/MG. Rel: Min. Luis Felipe Salomão, Publicado no DJE em 16/03/2017. 7 Já havendo quem defenda, em privilégio da reparação integral, até mesmo a responsabilidade dos pais pelos atos lesivos praticados pelos filhos maiores. Vd. FARIAS. Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil.São Paulo: Saraiva, 2019, p. 136. 8 Nessa mesma linha o Enunciado 41 da I Jornada de Direito Civil, assim redigido: "A única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código Civil."
terça-feira, 3 de maio de 2022

Novas regras do SAC: Apontamentos críticos

Um dos atuais mantras das empresas que se pretendem socialmente responsáveis é a certificação de excelência no atendimento do consumidor. Para demonstrarem esta preocupação, muitas delas anunciam a adoção de instrumentos de governança socioambiental (ESG), ajustando sua comunicação para expressar termos como 'inclusão', 'acolhimento', 'proteção' e 'atenção'. É muito difícil e, injusto, generalizar conclusões a partir de experiências pessoais, mas, confesso que não é fácil se sentir acolhido por diversos destes mesmos sistemas empresariais de atendimento ao cliente. É neste contexto que se torna relevante um olhar crítico sobre a mais recente regulamentação do famoso Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), recentemente publicada (decreto 11.034/221) e que entrará em vigor em, aproximadamente, seis meses. Antes de mais nada, deve-se lembrar que o tema (SAC) não é novo, uma vez que era regulamentado no Brasil desde 2008. Tornava-se necessária, entretanto, alguma atualização, especialmente, por exemplo, pelos meios de comunicação: dos telefones de 2008 para os "canais" mais abrangentes de 2022 (art. 2º). Embora o âmbito de aplicação do Decreto continue o mesmo (serviços regulados como planos de saúde, telefonia e bancos - art. 1º), ampliou-se o escopo do SAC para incluir não apenas o acesso à informação, mas também o tratamento de demandas (art. 1º, II). Além disso, o atendimento telefônico será obrigatório, ainda que sem a mesma disponibilidade de acesso ininterrupto dos demais canais (apenas oito horas diárias - art. 4º, § 2° e art. 5º, I). Aqui, por exemplo, já se encontram limitações regulamentares à propalada 'inclusão': o acesso fora de horário comercial, provavelmente, estará disponível apenas por meio de recursos eletrônicos, dificultando o acesso daqueles com restrições tecnológicas (acesso ou manuseio). Isso para não se mencionar o enigmático parágrafo terceiro2 do mesmo art. 4º que abre brecha para a interrupção do atendimento. Além disso, embora se assegure a acessibilidade (art. 6º), as condições em que esta se dará dependem de futura regulamentação pelo Ministério da Justiça; algo muito distante da forma preferencial prevista no Decreto anterior. O novo decreto aliás, inova negativamente em relação aos requisitos mínimos de garantia de atendimento. Se o antigo Decreto previa que a transferência para o atendimento presencial e definitivo deveria ocorrer em até sessenta segundos, não se admitindo transferência em caso de reclamação ou cancelamento; isto tudo agora dependerá de futura e incerta regulamentação do órgão competente. Aparentemente haverá incentivo para adoção de tecnologias de atendimento, como os "robôs" ou chatbots. Já quanto à lógica da 'atenção', o novo Decreto também exige o consentimento do consumidor para veiculação de mensagens publicitárias (art. 4º, §5º), mas, paradoxalmente, não define as condições mínimas de como este consentimento será dado e autoriza - independentemente de consentimento do consumidor - a veiculação de mensagens de caráter informativo (§6º). Quem já teve a oportunidade de aguardar atendimento telefônico em um SAC sabe que consentimentos são obtidos por meio opções cansativas em menus pouco explicativos e que mensagens informativas são fáceis disfarces para publicidade institucional. Além disso, a antiga proibição de que a 'ligação' não fosse finalizada antes da conclusão do atendimento - sempre ignorada - passou a ser uma possibilidade (art. 11), especialmente ao se permitir ao fornecedor sua conclusão (art. 11, III)! Ou seja, o consumidor passaria a ter o eventual ônus da falha do próprio sistema de atendimento. Quem já tentou cancelar um serviço por meio do SAC, sabe que são comuns longas esperas e sucessivas 'quedas' do sistema ou das ligações. Este ponto, aliás, é de interessante do ponto de vista da responsabilidade civil incidente nas relações de consumo. No passado, por exemplo, já se entendeu que a perda do tempo do consumidor deveria ser indenizada uma vez que redundaria de "defeito" na prestação do próprio serviço (art. 14 do CDC). Este raciocínio, aliás, está na base da atual compreensão do desvio produtivo encampada pelo Superior Tribunal de Justiça3. Neste sentido, perde-se uma oportunidade de fixação de parâmetros mais objetivos de análise (ou de imputação de responsabilidade), tais como aqueles constantes das diversas leis municipais e estaduais para o tempo de espera em filas bancária Também a presencialidade e a humanização do atendimento não parecem ser prioridades, uma vez que não se repete a preferência pelo atendimento pessoal. Isto impacta, é claro, na acessibilidade, 'inclusão' e 'acolhimento' já que ferramentas como chatbots nem sempre 'entendem' a solicitação do consumidor, são muitas vezes limitadas e, em muitos casos, parecem ser destinadas a criar uma antepara à reclamação ou cancelamento do serviço. Fora que sua utilização indiscriminada desumaniza o atendimento, especialmente daqueles não afeitos à tecnologia (vulneráveis, por exemplo). A pessoalidade do atendimento, aliás, não é necessariamente sinônimo de atraso tecnológico, mas de valorização do consumidor (vide a ênfase dada nesta característica de serviço, em várias peças publicitárias bancárias). Do ponto de vista da responsabilidade civil, aliás, a clara definição de "nexos de imputação"4 de responsabilidade civil para o caso de danos causados pela adoção de tecnologias assistivas de atendimento deve ser encarada como prioridade. Isto porque, para além das 'quedas', inúmeras situações danosas ao consumidor podem surgir deste atendimento, tais como o desvio produtivo, a utilização de vieses discriminatórios de atendimento, a utilização de algoritmos que selecionem as prioridades e recusem atendimentos com base em programação prévia, a captura de dados por terceiros, etc. Há, claro, aspectos positivos na nova regulamentação: amplia-se o acesso do consumidor ao histórico de suas demandas, criando-se procedimento e prazo de envio do documento (art. 12). Além disso, prevê-se, expressamente, a suspensão imediata de cobranças questionadas (art. 13, §3°). Também se manteve o dever de manutenção da gravação das ligações por 90 dias e do registro do atendimento por dois anos, assim como o recebimento imediato dos pedidos de cancelamento. Por outro lado, aumentou-se o prazo para retorno sobre a demanda do consumidor (de 5 dias úteis para solução para 7 dias corridos para resposta). Além disso, o Decreto anterior, ao contrário do novo, diferenciava a prestação de informações (que deveria ser imediata) da solução da demanda (5 dias úteis). Estaria, então, o acesso à informação condicionado ao novo e maior prazo? Quanto à 'proteção', pelo menos dos dados, o Decreto mantém a lógica anterior de proibir o condicionamento ao fornecimento de dados do consumidor e menciona a existência e incidência da LGPD. Mais uma vez a nova regulamentação parece, contudo, ter perdido uma oportunidade de ampliar a proteção do consumidor: qualquer um que já acessou um SAC teve que fornecer, no mínimo, o número de CPF para ser atendido (sim, trata-se de um dado). Além disso, partindo-se da premissa das diferentes funções contemporâneas da Responsabilidade Civil, seria de se esperar que a regulamentação do SAC se utilizasse de ferramentas de accountability promovendo a inserção regulatória de "regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos"5 e enfatizasse seu cumprimento, claramente, pela imposição de consequências da não compliance. É aqui que as verdadeiras iniciativas de ESG se embasam. Enquanto slogans, servem apenas como mensagens publicitárias muitas vezes enganosas ou veladas iniciativas de greenwashing e socialwashing. Infelizmente a atual legislação consumerista não é suficiente para cobrir os desafios sociais e tecnológicos que são postos com maior complexidade e velocidade. É neste sentido que se deve lamentar as perdas de oportunidades nesta iniciativa regulatória. A sensação final que se tem da leitura comparada de ambas as regulamentações é de que o novo texto avançou pouco, repetiu muito e perdeu algumas oportunidades essenciais, especialmente em razão dos recentes desdobramentos legislativos, como a Lei do Superendividamento e a LGPD (apenas mencionada), e as discussões recentes sobre bens digitais, tecnologias assistivas, obsolescência programada6 e sobre o marco legal da inteligência artificial. Aparentemente será papel da iniciativa privada, por meio de reais instrumentos de ESG, impor um padrão mais protetivo, acolhedor e inclusivo de atendimento ao consumidor. _________________ 1 Disponível aqui 2 § 3º  Na hipótese de o serviço ofertado não estar disponível para fruição ou contratação nos termos do disposto no caput, o acesso ao SAC poderá ser interrompido, observada a regulamentação dos órgãos ou das entidades reguladoras competentes. 3 Vide, neste sentido, o famoso precedente do Superior Tribunal de Justiça: REsp. nº 1.737.412-SE que reconheceu que o "O descumprimento de normas municipais e federais que estabelecem parâmetros para a adequada prestação do serviço de atendimento presencial em agências bancárias, gerando a perda do tempo útil do consumidor, é capaz de configurar dano moral de natureza coletiva." 4 Neste sentido, vide o excelente estudo de Roberto Altheim que os define como "Já o fator de atribuição (ou nexo de imputação) significa o fundamento (ou a razão de justiça) pela qual se imputa o dever de indenizar um determinado dano injusto a uma certa pessoa." Disponível aqui. 5 Na explicação de Clemente e Rosenvald, disponível aqui. 6 Sobre o tema, vide aqui.
Não foi a primeira vez que Will e Jada Smith foram alvo de piadas de gosto duvidoso do Chris Rock em cerimônias de premiação do Oscar. Na cerimônia de 2016, o casal de atores não compareceu à cerimônia do Oscar para protestar pela falta de atores negros na premiação. Na ocasião, Chris Rock afirmou: "Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha da Rihanna. Eu não fui convidado!". Ainda na mesma cerimônia, o humorista fez uma brincadeira a respeito da ausência de indicação do nome Will Smith para a premiação pelo papel em "Um homem entre gigantes". Na ocasião, Chris Rock: "Não é justo que Will seja tão bom e não tenha sido indicado. Você está certo. Também não é justo que Will tenha recebido US$ 20 milhões por 'As Loucas Aventuras de James West'", filme de 1999 considerado um dos maiores fracassos da carreira de Smith. Além disso, em 2018, depois de Will Smith fazer um post parabenizando Sheree Zampino, mãe de seu primeiro filho, pelo seu aniversário. Chris Rock comentou: "Uau! Você tem uma esposa muito compreensiva", em referência à Jada. Em 2022, a cerimônia de premiação do Oscar não foi marcada pela tradicional qualidade dos filmes, atores, diretores que compõem a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas pelo tapa na cara dado pelo ator Will Smith no colega Chris Rock logo após o comediante ter feito uma piada sobre a calvície da esposa de Will, Jada Smith, que sofre de alopecia.  No dia seguinte após o episódio, Will Smith pediu desculpas em longo texto publicado em sua conta pessoal do Instagram cujos trechos merecem destaque: "Estou envergonhado e minhas ações não foram indicativas do homem que quero ser. Não há lugar para violência em um mundo de amor e bondade". Adiante continuou: "Eu gostaria também de pedir desculpas à Academia, aos produtores do show, aos convidados e a todos que assistiram ao redor do mundo. Eu gostaria de pedir desculpas à família Williams e à minha família King Richard. Eu me arrependo profundamente que meu comportamento tenha manchado o que está sendo uma incrível jornada para todos nós. Eu sou um trabalho em andamento." Depois, Will Smith achou por bem aplicar a si uma sanção, ao renunciar à vaga de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de onde era parte desde 2001. Além disso, a instituição baniu Smith pelo prazo de 10 anos de todas as cerimônias eventos por ela promovidos. Nesse contexto, o que fazer depois de causar um dano a alguém? Desde cedo recebemos a lição ética de reconhecer os erros e pedir desculpas como regra basilar da educação infantil. Mas qual a consequência de tal comportamento no direito? Em algumas situações, o pedidos de desculpas pode ser utilizado como confissão do dano e, em razão disto, representar apenas a desnecessidade de instrução probatória apta a permitir o provimento antecipado de uma ação de cunho indenizatório. Sob este ponto de vista, não há qualquer repercussão positiva para o réu que se desculpou de sua conduta. No julgamento da Apelação Cível 70054214358 do TJRS, duas pessoas compraram bilhetes de viagem de ônibus, contendo a mesma numeração da poltrona. O equívoco na averiguação do bilhete resultou na discussão entre a vítima e o motorista do coletivo que pediu a retirada dela do veículo para solucionar o problema no guichê da empresa, dando lugar à outra passageira. Ao final, reconheceu o equívoco e pediu desculpas à autora, pois a outra passageira havia comprado a passagem para o dia seguinte. A empresa condenada recorreu argumentando ter havido atritos verbais de ambas as partes, sem qualquer desmoralização. Disse terem sido superadas as palavras rudes do motorista pelo pedido público de desculpas por parte dele. No julgamento do apelo, o Tribunal não levou em consideração a retratação da empresa de ônibus que havia, inclusive, demitido motorista e ressaltou: Ora, a retratação do motorista é um forte indício de que houve excesso de sua parte no trato com a autora. O equívoco na verificação das passagens é incontroverso. Não obstante a solução do impasse, pois a autora teria viajado na poltrona 15, conforme adquirido, e a escusa do motorista, é induvidosa a falha na prestação do serviço pela ré, a qual, como dito, responde pelos atos de seus prepostos/empregados (Apelação Cível 70054214358 do TJ/RS). Percebe-se que as desculpas foram utilizadas para referendar a prática do dano pelo ofensor, ao invés de minorá-lo. Situação discrepante foi o julgamento da Apelação Cível 996/99, da turma Recursal dos Juizados Especiais do TJ/DF. Na hipótese, a vítima sofreu escoriações em razão de uma queda sofrida quando descia do coletivo da empresa ofensora, por não ter motorista esperado a passageira descer do veículo. O pedido da vítima era a condenação da empresa de ônibus a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado do motorista, além do pagamento de verba indenizatória a título de danos materiais ("danos sofridos e despesas realizadas", segundo declarou a vítima). Após a sua condenação, a empresa recorreu sob o argumento de não ser objeto do pedido da vítima a indenização por danos morais. A fundamentação da Turma Recursal foi na contramão do que prega a norma processual, realizando um julgamento totalmente fora do pedido: A bem da verdade, há que se reconhecer que não houve um pedido expresso de condenação por danos morais. Entretanto, em face das peculiaridades que cercam os procedimentos nos Juizados Especiais, sobretudo a possibilidade de a parte ajuizar a ação sem estar assistida por advogado, hão que ser mitigados o rigorismo das formas e excesso de tecnicismo inerentes ao Código de Processo Civil. Em sua petição, a autora formulou pedido no sentido  de que fosse a ré condenada a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado de seu funcionário, e ao pagamento da importância de R$ 2.600,00 (dois mil e seiscentos reais), referentes aos danos sofridos e despesas realizadas. Ora, se é certo que, neste tipo de procedimento, não pode o juiz compelir a ré a pedir as desculpas da forma proposta, não menos certo é que, com tal manifestação, inequivocamente, a autora demonstrou sentimentos de vergonha, desrespeito e descaso experimentados publicamente, pela atitude reprovável do motorista da ré que, como disse, "arrancou" bruscamente o veículo, sem esperar que a mesma descesse com segurança, num total desrespeito, o que caracteriza o dano moral. Salta aos olhos a nulidade da decisão: a consumidora requereu expressamente a retratação formal da empresa e, apesar de não ter sido atendida neste pondo, obteve uma indenização pecuniária da qual não foi objeto do seu pedido. A informalidade do procedimento obedecido pelos juizados especiais não justifica a decisão, pois a norma procedimental não permite, sob nenhuma hipótese, a concessão de provimento jurisdicional diverso do objeto do pedido. Por outro lado, essa forma de reparação não pecuniária pode ser utilizada como atenuante do dano causado no momento da valoração da indenização patrimonial.  No julgamento do processo n. 0013092-32.2011.8.17.0480, da 5º Vara Cível de Caruaru - PE, a Magistrada reconheceu a atenuação da ofensa diante da presença do pedido de desculpas por parte de uma empresa de cinemas. Na hipótese, a transmissão do término filme atrasou em 40 minutos e o os funcionários se recusaram a devolver o valor dos ingressos aos consumidores. A empresa de cinemas, reconhecendo a prática lesiva, realizou um pedido formal e público de desculpas aos consumidores lesados. Diante disto, a Magistrada utilizou o pedido de desculpas na valoração do dano e esclareceu: Ao que tange o pedido formal e público de desculpas, esse merece ponderações. Vislumbrando o direito a reparação do dano, em um ponto de vista constitucional, me parece possível o cumulo de pedidos, prestação pecuniária, mais a retratação formal e em pública da conduta reconhecida como ilícita judicialmente. As lesões que atingem uma pessoa são de naturezas distintas: uma de natureza física, que é aquela que viola a incolumidade corpórea e a saúde mental do indivíduo, tipificada nos Capítulos I a VI, do Título I da Parte Especial do Código Penal; e outra de natureza moral, que atinge (ou pode atingir) os sentimentos mais íntimos do ser humano, como honra, bem-estar, podendo ocasionar sensações ruins, como sofrimento, dor, angústia, humilhação etc. Essa ultima se diferencia da primeira, na forma de se perceber esses danos, enquanto os físico são visíveis a qualquer pessoa, os morais, são visíveis apenas a vitima, já que lhe atingiu o que há de mais intimo. A retratação em público por parte da empresa requerida se mostra de forma eficaz para a amortização dos danos do requerente, além do que por outro lado, evita que grandes grupos empresariais resolvam incluir possíveis condenações a título de dano moral como custo operacional, pagando o preço para lesionar direitos. Na hipótese, o pedido de desculpas foi utilizado de forma a atender tanto os consumidores ofendidos como também à empresa de cinemas que espontaneamente retratou-se pelos danos por ela gerados. Tudo isso referenda a falta de uniformidade das decisões do Judiciário sobre o tema. Sob um outro ponto de vista, a ausência desta retratação pública pode ser tomada como causa para ajuizamento de ação indenizatória. Esta foi a conhecida demanda judicial travada entre o comediante Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo. A cantora buscou a reparação patrimonial do dano sofrido por não ter conseguido obter do comediante a sua retratação que, além de resistir à retratação, seguiu debochando das vítimas por entender que a liberdade de humor pode se sobrepor aos eventuais danos à personalidade dos satirizadosi. Não parece adequado restringir as possibilidades dos sujeitos que sofrem violações de cunho extrapatrimonial às mesmas alternativas postas à disposição daqueles que experimentam danos emergentes e lucros cessantes. Se a natureza dos direitos que não possuem significação patrimonial exata não permite aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem admite a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas à recomposição pecuniária do prejuízo, utilizando para tanto todos os meios admitidos em direito. Se para essas situações o dano é in re ipsa, isto é,  presume-se a responsabilidade pela violação ao direito da personalidade, sem perquirir se - de fato - houve lesão ao patrimônio imaterial da pessoa, o mesmo deve valer para a retratação. Deve-se posicionar o pedido de desculpas no lugar correto: ele interfere na extensão do prejuízo, podendo-se compará-lo a o arrependimento posterior como forma de redução do montante da indenização. O episódio do Oscar dividiu opiniões tanto acerca da punição sofrida por Smith por parte da Academia como pelas provocações sequenciadas de Chris Rock, havendo quem defendesse ter este último merecido o tapa e muito mais. Afinal, as piadas ácidas por ele contadas provocam não só ódio de alguns, mas referendam o clássico jargão "Todo mundo odeia o Chris", título do seriado narrado pelo humorista. De fato, Chris precisava de um limite, porém a reação da vítima foi desproporcional ao dano provocado por ele. Afinal, não se justifica uma agressão. Apesar disso, caso o episódio tivesse sido levado ao Judiciário brasileiro, as desculpas pedidas no dia seguinte ao ocorrido por parte de Smith deveriam ser levadas em consideração na valoração do dano. __________ i Sobre esse tema vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego e MOUTINHO, Maria Carla. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade do humor. In EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.) Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 219-235.
As questões atinentes ao dever de indenizar têm sido objeto de uma série de estudos nos últimos tempos, com uma plêiade de grandes juristas dedicando seus esforços para entender e desenvolver um tema tão relevante no nosso Direito, cabendo-nos o mister de contribuir para essa árdua tarefa. Nessa empreitada temos tecido algumas considerações vinculando as questões indenizatórias com o árido mundo do Direito das Sucessões e, mais especificamente, com a figura da colação e sonegados, objeto de uma ampla pesquisa que culminou na elaboração da obra "Sucessões. Colação e Sonegados", lançada no presente ano. Um dos aspectos que nos toca nesse trabalho alicerça-se em algumas das consequências do não colacionar (ou mais especificamente, do não retorno para a sucessão do que se adiantou) para as relações jurídicas, passando por uma compreensão do instituto que culmina num giro importante para a discussão do Direito das Sucessões. Para tanto partimos da necessidade de superar entendimentos jurídicos construídos ainda sob a vigência do Código Civil de 1916 e que seguem sendo repetidos mesmo com uma alteração no núcleo da questão no atual texto legal. Atesto, de plano, que o entendimento aqui exposto quanto aos efeitos da colação e compreensão do art. 544 do CC/02 não é o adotado atualmente pela doutrina ou jurisprudência, contudo sustentamos a necessidade de que a discussão seja posta e considerada ante a sua relevância e impactos práticos. De início é preponderante salientar que, diferentemente do que estava consignado no art. 1.171 do Código Civil de 1916, a legislação vigente ao discorrer sobre a doação realizada em favor de descendentes não mais a trata como um adiantamento da legítima, mas sim como "adiantamento do que lhes cabe por herança" nos temos do CC/02 (art. 544). Ao nosso ver é manifesta a distinção existente entre se afirmar que a doação nessa circunstância há de ser compreendida como uma antecipação de herança e não mais de legítima, fato esse que obrigatoriamente tem que estender seus reflexos por todo o nosso sistema sucessório, causando um profundo impacto na compreensão da colação como um todo. Ainda que o corriqueiro seja que o art. 544 do CC/02 apenas seja lembrado para se falar em colação e que não se questione que esta tenha por objetivo igualação das legítimas é indiscutível que tal questão há de ser precedida pela realidade que circunda a doação que tenha sido realizada a descendentes e cônjuges, nos termos do referido artigo, que, com sua redação, determina que o objeto da liberalidade praticada há de ser entendido como uma antecipação do que o herdeiro efetivamente viria a ter direito em decorrência do falecimento do doador, mas não mais sob o selo da legítima1. Assim é imprescindível que "antes de que se possa pensar em discutir a colação em si é necessário se verificar se o que se adiantou em razão da doação corresponde efetivamente ao que o herdeiro teria direito a esse título"2, isso porque se a liberalidade praticada, nos termos do art. 544 do CC/02, foi o recebimento prévio do que se teria direito por herança é imperioso se aferir se tal herança efetivamente existiria quando do falecimento do doador, bem como a forma que seria partilhada e o montante que cada herdeiro teria o direito de receber. Nesse contexto, podemos sustentar que caso os bens do falecido mostrem-se insuficientes para a satisfação de todos os seus débitos torna-se plausível que aquele credor que não viu a obrigação adimplida pelo de cujus possa suscitar o questionamento acerca da ocorrência de algum "adiantamento de herança", vez que não se pode "discutir antecipação se sua condicionante inerente não se efetiva da forma prevista, [assim] o que se recebeu de maneira prévia é indevido por não corresponder o que se adiantou"3. Reitere-se que desde o início da vigência do atual CC/02 não há mais que se falar em adiantamento de legítima mas sim de herança, e, como tal, só é admissível qualquer sorte de distribuição de ativos do falecido após a satisfação dos seus débitos, já que, como bem salienta o art. 1.997, "a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido". Ao se consignar que a doação para descendente não mais haverá de ser considerada uma antecipação de legítima não se pode continuar a afirmar que o retorno do objeto da doação para o pagamento de dívidas do falecido é irrelevante já que há de retornar para o relictum e não mais para a legítima.  Com a nova construção para o tema trazida no art. 544 do CC/02 entendemos não mais ser válida a concepção de Nelson Pinto Ferreira que se opunha à possibilidade de que o credor do falecido viesse a ter qualquer interesse nos bens a serem colacionados ainda que seus débitos superassem seu patrimônio ativo4. Consignamos aqui de forma clara que em nenhum momento ignoramos o disposto no art. 1.847 e no parágrafo único do art. 2.002 do CC/02 que asseveram que os bens colacionados haveriam de ser acrescidos à legítima e que os bens colacionados não ensejariam em qualquer aumento da parte disponível. Apenas sustentamos que tais dispositivos se mostram conflitantes com o preconizado no art. 544 do CC/02 e que, por ser a doação ato que precede a sucessão, haveria, por lógica, que prevalecer o entendimento ali indicado de que a doação é adiantamento de herança e não legitima, como consideram os arts. 1.847 e 2.0025. Assim, ainda que se possa afirmar que ao credor do falecido não importa a colação (já que a igualação do que os herdeiros necessários receberão em nada lhe toca) é indubitável que é detentor de legítimo interesse relativo à existência de um adiantamento da herança, pois se houve alguma doação realizada pelo falecido a algum herdeiro descrito no art. 544 do CC/02 é manifesto que a quitação de suas dívidas há de preceder a qualquer questionamento envolvendo a legítima6. Tal concepção traz desdobramentos importantes até mesmo para a figura da colação que, em que pese objetivar a igualação das legítimas, tem como sua consequência prática mais evidente a consideração do que foi antecipado da herança na sucessão. Dessa maneira é de se entender que a discricionariedade que caracteriza a possibilidade de que se exija que o coerdeiro colacione acaba sendo mitigada ao se constatar que o não retorno do que se antecipou não atinge exclusivamente os herdeiros necessários, mesmo que não esteja agindo em conluio com os demais herdeiros, já que pode ensejar que credores do falecido não tenham a satisfação de seus créditos7. Segundo o entendimento consolidado sob a égide do CC/02 anterior inexistiria ao credor qualquer sorte de prejuízo face a inércia do herdeiro que não exigisse a colação dos demais (já que a restituição do bem à discussão sucessória já se daria em sede de legítima), o que há de ser interpretado de forma diversa ante ao texto legal vigente, havendo o efetivo interesse quanto ao retorno do que se adiantou para a herança bruta, sendo de se compreender que o que se antecipou, ao menos sob uma perspectiva obrigacional, ainda há de ser visto como integrante do patrimônio do falecido e responsável pela satisfação de suas dívidas8. A fim de demonstrar a mesma perspectiva por um outro viés é de se considerar que em tendo ocorrido a colação seria possível se afirmar que os demais herdeiros experimentariam um acréscimo no que receberiam da sucessão do falecido à guisa de herança, fato que poderia influenciar na satisfação de créditos daquele credor que viesse a demandar o referido coerdeiro, considerando que teria ocorrido um acréscimo nas forças da herança por ele recebida e que seriam, portanto, responsáveis pelo pagamento das dívidas do falecido, nos termos do art. 1.792 do CC/029. Pontua-se, assim, que a não colação pode vir a caracterizar uma redução no montante que o herdeiro se responsabiliza quando aos débitos do falecido que foram sub-rogados com a sucessão. Nesse mesmo diapasão seria possível consignar a situação vivenciada pelo credor do herdeiro do falecido que ao não pleitear que se faça a colação não terá o acréscimo patrimonial que tal conferência iria propiciar, o que afetará a possibilidade de que venha a conseguir saldar suas próprias dívidas, em uma evidente situação de fraude contra credores, com a não exigência da colação podendo ser entendida como uma transmissão gratuita (art. 158 do CC/02). Ciente de que a previsão da colação prevista na lei destina-se à equiparação das legítimas é de se entender que o credor do falecido não tem legitimidade para exigir que a conferência seja realizada, contudo é evidente que permitir que o herdeiro mantenha consigo montante que deveria ser utilizado para a satisfação das dívidas do falecido enseja claramente uma hipótese de enriquecimento sem causa, expressamente vedado no art. 884 do CC/02. A fim de buscar minorar as críticas que possam ser dirigidas ao pensamento aqui apresentado, não entendemos que a solução explicitada coloca em risco a segurança jurídica acerca da doação realizada por considerarmos de direito a possibilidade de que o doador houvesse expressamente afastado a incidência do disposto no art. 544 do CC/02 quando da realização da liberalidade, por sustentarmos que o disposto no referido artigo "tem natureza supletiva, impondo-se apenas quando da omissão do doador"10. Somos do entendimento de que não se trata apenas da possibilidade de que o doador venha a determinar que a doação seja excluída da legítima11 ou que seja afastado o dever de colacionar, mas sim que o doador tem a possibilidade de, valendo-se de sua autonomia, determinar expressamente que a doação que está a realizar não encerra qualquer relação com uma futura questão sucessória. Ficando demonstrado que o herdeiro foi premiado por uma situação em que valores oriundos da herança lhe foram atribuídos, remanescendo em aberto dívidas do falecido, é de se considerar a possibilidade de que o credor venha a pleitear que tal benefício seja afastado, exigindo que o enriquecimento sem causa proporcionado ao herdeiro seja atacado, com a indenização em seu favor do montante equivalente à herança recebida que deveria ter sido usada para a satisfação das obrigações do falecido. Tal solução lastreada no art. 884 do CC/02 se mostra hoje extremamente relevante ao se ponderar que além do credor do falecido não poder manejar o mecanismo de exigir que os herdeiros colacionem tem se colocado de forma recorrente que ele não teria como pleitear, em sede sucessória, que os herdeiros beneficiados com o adiantamento da herança responsabilizem-se pelas dívidas do falecido com o montante objeto da liberalidade. Por sustentar que inegavelmente esse herdeiro/donatário está a se valer de forma indevida do que lhe foi adiantado da herança, desfrutando de uma importância que deveria ter sido considerada para a satisfação dos débitos do falecido, é que pugnamos pela possibilidade de que o credor venha a exigir a indenização equivalente ao benefício recebido que deveria ter sido destinado a quem tinha haveres para receber do de cujus. Se mostra diametralmente contrária às proposições elementares do nosso ordenamento jurídico permitir que os direitos creditórios de alguém não seja satisfeito segundo a alegação de que o falecido não deixou patrimônio para quitar suas dívidas enquanto seus herdeiros gozam de acréscimo patrimonial oriundo do recebimento da herança. Caracterizado o enriquecimento sem causa esse há de ser devidamente rechaçado. _____ 1 Toda a construção e aprofundamento da tese aqui descrita está no capítulo 2.1.1 de "Sucessões: Colação e Sonegados", ed. Foco, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 166. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 165. 4 FERREIRA, Nelson Pinto. Da colação no direito civil brasileiro e no direito civil comparado. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 138-139. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 19. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 162. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 166. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 167. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 167. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessões: Colação e Sonegados, ed. Foco, 2022, p. 79. 11 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, Tomo LX. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 137.
Introdução* O ar da madrugada do dia 12 de Fevereiro de 2020 foi tomado por forte odor em  praticamente toda a Região Metropolita do Vale do Aço, Estado de Minas Gerais. O que ocorreu em razão de vazamento de gases não condensáveis (GNC - mercaptanas) resultante de uma falha no sistema de segurança de queima de gases da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra)1. Os efeitos desse acidente ambiental foram sentidos de forma mais intensa nos municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Timóteo e Santana do Paraíso. Contudo, eventos como esse, ocorrem há décadas nas cidades que compõe a Região Metropolitana do Vale do Aço. Os órgãos de fiscalização Estaduais e Municipais, exercendo o seu poder de polícia, autuaram a Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de ter "emitido matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com osníveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público"2. Considerando que a empresa possui sede no município de Belo Oriente e que as autuações decorrentes da poluição atmosférica por gases não condensáveis (GNC - mercaptanas) foram emitidas por Órgãos Ambientais do Estado de Minas Gerais e de municípios diversos, um questionamento surgiu, qual seja: teriam os municipios competência para proceder à autuação da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de uma acidente ambiental decorrente de emissão de poluição atnosférica ocorrido, em tese, fora de seus limites geográficos? A resposta para esse questionamento exige que (i) seja estabelecido um conceito de poluição transfronteiriça e (ii) analisada as regras de competência ambiental estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Só assim será possível perceber quais órgãos ambientais podem buscar a responsabilização da empresa infratora pelos danos ambientais decorrentes de sua ação ou omissão. Poluição Transfronteiriça: Estabelecendo um conceito para compreender o problema A doutrina aponta a Resolução do Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, de 14 de Novembro de 1974, como um dos primeiros atos normativos a definir um conceito de poluição3. Documento que define poluição como sendo "a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou energia no meio ambiente que causem consequências prejudiciais, de modo a colocar em perigo a saúde humana, prejudicar recursos biológicos ou sistemas ecológicos, atentar contra atrativos (agréments) ou prejudicar outras utilizações do meio ambiente"4 Definição que, no âmbito Direito Ambiental Brasileiro, é adotada pela lei Federal 6.938/1981, de onde extrai que poluição é "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: (a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; (c) afetem desfavoravelmente a biota; (d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; (e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos" (Art. 3º, III). Possível perceber, portanto, que, com pequenas alterações, o conceito de poluição é aceito pelo Direito Internacional e, também, pelo ordenamento jurídico brasileiro. Definição que, através do acréscimo de novos elementos constitutivos, permitiu a compreensão do que se entende por poluição transfronteiriça. Termo cuja origem se confunde com a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente. Afinal, a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente e, de certa forma, do Direito Ambiental interno foi impulsionada, dentre outros motivos, em razão de questões afetas ao trato da poluição transfronteiriça. Isso porque, a ciência jurídica-ambiental, que remonta o seu nascimento ao famoso caso da Fundição Trail (1941), surge em razão do combate a uma poluição que não respeita às fronteiras jurídico-políticas entre os Estados5. Embate jurídico que, passados trinta e um anos, influenciou na redação do enunciado do Princípio 21 da Declaração de Estocolmo. Norma proibitiva que impõe, aos Estados Nacionais, "a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob o seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional" (Princípio 21). Vedação que, ressalvadas alterações redacionais, é reafirmada no Princípio 2 da Declaração do Rio 92. O termo poluição transfronteiriça, como sedimentado na melhor doutrina e em diversos atos internacionais, se relaciona, portanto, à poluição cujas fontes emissoras se encontram localizadas em um determinado território, mas cujos seus efeitos ultrapassam os limites geográficos de origem6-7. Perceber-se, de tal forma, que a poluição transfronteiriça é uma forma de poluição atmosférica. Entendida, esta, como sendo "a introdução na atmosfera pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou de energia que têm uma ação nociva, de forma a por em perigo a saúde do homem, a prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas, a deteriorar os bens materiais e a pôr em risco ou prejudicar os valores estéticos e as outras legítimas utilizações do ambiente" (Art. 1º, a, Convenção de Genebra de 1979). Tratando do tema, a Resolução Conama 491, de 19 de Novembro de 2018, entende como poluente atmosférico como "qualquer forma de matéria em quantidade, concentração, tempo ou outras características, que tornem ou possam tornar o ar impróprio ou nocivo à saúde, inconveniente ao bem-estar público, danoso aos materiais, à fauna e flora ou prejudicial à segurança, ao uso e gozo da propriedade ou às atividades normais da comunidade" ( Art. 2º, I). Assim sendo, considerando que os gases não condensáveis emitidos pela empresa ultrapassaram os limites geográficos dos municípios de Belo Oriente atingindo os municípios de Ipaba, Santana do Paraíso, Ipatinga, Coronel Fabriciano, Timóteo e diversos outros municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, não restam dúvidas quanto a estar caracterizado o ato de emitir matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com os níveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público de todo o Colar Metropolitano do Vale do Aço. Desta feita, demonstrado que o ato de emitir gases não condensáveis (GNC - marcaptanas), em desacordo com as normas ambientais, acarretando inconvenientes ao bem-estar público de toda a Região Metropolitana do Vale do Aço, se amolda perfeitamente ao conceito: (i) de poluição; (ii) de poluição atmosférica; e, consequentemente, (iii) de poluição transfronteiriça, resta avaliar se os municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, atingidos pela poluição atmosférica emitida, possuem competência para lavrar o auto de infração e buscar a responsabilização da empresa infratora. Breve Análise da Competência Municipal para Lavrar o Auto de Infração em Razão de Poluição Atmosférica Transfronteiriça  A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugura uma nova ordem ambiental e, com ela, estabelece os limites para o exercício do poder de proteção do meio ambiente. Balizas que podem ser encontradas nos artigos 23, VI e VII, e 24, VI e VIII, da Carta Cidadã, de onde se extrai as regras de competência material e legislativa em matéria ambiental8. "Pela competência material, define-se qual ente político poderá exercer o poder de polícia em relação à matéria ambiental. Pela competência legislativa, define-se qual ente político tem poder para legislar sobre o meio ambiente".9 A proteção ambiental é, portanto, fixada de forma descentralizada, o que implica em uma repartição de competência entre os Entes Federados. Desta feita, a promoção e proteção do meio ambiente é realizada através de um sistema normativo e administrativo que envolve a atuação dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União.  A repartição de competência objetiva proporcionar uma melhor adequação das normas nacionais às peculiaridades locais, pois a competência em matéria ambiental possui como critério delimitador o princípio da predominância do interesse público. Competência que é tanto material como legislativa, conforme dito alhures. No que tange à competência material, o artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil afirma que: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; (...). Percebe-se, portanto, que o exercício do poder de polícia em matéria ambiental caracteriza competência comum de todos os Entes Federados. Ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem o exercer. Quanto à competência legislativa, o artigo 24 de nossa Magna Carta dispõe que: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...)VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; (...);VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...).  Significa dizer que todos os Entes Federados podem legislar em matéria ambiental, devendo: (i) a União fixar normas gerais e (ii) os Estados e os Municípios estabelecerem normas de caráter supletivo, respeitadas as suas especificidades e o interesse local. Cabe, portanto, ao Município desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, o que deve ser feito através de um exercício concreto da competência legislativa e material atribuída ao referido ente federativo. Ou seja, ao Município foi "outorgada não apenas uma competência legislativa residual para aspectos de interesse local (art.30, I e II da CRFB), mas também uma competência material para atuar em paralelo e em conjunto com os demais entes (art. 23, VI e VII)10. Desta feita, "a técnica de repartição de competências empregada pelo constituinte levou em consideração a maior eficácia da proteção, o menor custo e a participação (comprometimento) da sociedade na salvaguarda dos bens e valores contemplados pelas citadas normas"11. No que se refere especificamente à chamada competência material (administrativa), simples debruçar sobre o texto do artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil é capaz de comprovar se tratar de competência comum. Significa dizer que, "neste caso, existe a possibilidade de mais de um ente político (União, Estado, Município) atuar para tratar do mesmo assunto em pé de igualdade com os outros. Vale a regra ainda que, a priori, o ente federativo não tenha competência para legislar sobre o tema ali tratado"12. A atuação de um dos entes federativos, de tal forma, não exclui a competência dos demais, que podem exercer cumulativamente a competência material (administrativa), sempre objetivando uma melhor concretização da proteção e promoção do meio ambiente13. Resta claro que "a ideia do legislador constituinte, ao estatuir a competência comum, foi evitar que a tutela jurídica do meio ambiente fosse prestada de modo deficiente"14-15. Assim sendo, se tratando de poluição atmosférica transfronteiriça que acarretou inconvenientes ao bem-estar público da população do município de Coronel Fabriciano, resta claro a ocorrência de dano ambiental local, o que autoriza o exercício do poder de polícia por parte dos Órgão Ambientais de todos os municípios afetados. Conclusão Ante ao exposto resta claro a competência dos Órgãos Ambientais de todos os municípios afetados pela poluição atmosférica transfronteiriça decorrente da emissão de gases não condensáveis para autuar e buscar a responsabilização da empresa emissora dos poluentes. Responsabilização que, por ser objetiva e decorrente da Teoria do Risco Integral, apesar de exigir a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, impossibilita que a empresa responsável pelo dano ambiental busque guarida nas excludentes de responsabilidade civil, conforme sedimentado na jurisprudência pátria uníssona16. O que significa dizer que a responsabilidade da empresa emissora dos poluentes subsiste independente da presença de situações de culpa exclusiva da vítima, culpa de terceiro, caso fortuito e/ou força maior. Isso porque, sua obrigação de reparar os danos ambientais decorre do mero exercício de sua atividade, resguardado o seu direito à ação de regresso. __________ * O presente artigo tem por base parecer emitido pelo autor no exercício de suas atribuições como Gerente Consultivo de Prevenção da Secretaria de Governança Jurídica do Município de Coronel Fabriciano. Sendo importante observar, ainda, que o caso empírico abordado foi amplamente noticiado pelos veículos de informação. 1 Notícias sobre o ocorrido podem ser acessadas aqui (Nota de Esclarecimento à Comunidade da Cenibra); (ii) (Notícia publicada no site G1); (Notícia publicada no site Diário do Aço); entre outros. 2 Artigo 2º, I, da Resolução Conama nº 491, de 19 de Novembro de 2018. 3 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades. Editora Atlas. São Paulo. 2001. p. 212. 4 KISS, Alexandre. Droit International de L'environnemente. p. 68. Tradução livre. 5 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del Medio Ambiente. McGraw-Hill. Madrid. 1999. p.263 ss. 6 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del...Op. Cit. p.263 ss. 7 O conceito do termo "poluição transfronteiriça" pode ser encontrado, com pequenas alterações, em diversas Convenções e Protocolos  internacionais. 8 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 164 ss. 9 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 165. 10 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 188. 11 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 189. 12 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 195. 13 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 194 ss. 14 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 197. 15 Sobre o tema ver: STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 711.405/PR, rel. Min. Humberto Martins, DJ 15-5-2009 16 Neste sentido ver, entre outros: STJ. AgRg no AREsp 232494/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 26/10/2015.
George Orwell, em seu "1984", descreveu a figura do "Grande Irmão" para representar o Estado, que se julgava autorizado a prescrutar a vida de todos, sob os mais variados pretextos. Assim, naquele enredo, ninguém mais estava sozinho. Todos estavam fadados a ser permanentemente vigiados. Sua privacidade, intimidade), imagem e outros direitos da personalidade foram completamente relativizados. E hoje, será que essa realidade mudou muito? Parece que o cenário sofreu alterações; e os protagonistas, esses, certamente, são outros. Quanto ao palco, a revolução tecnológica marcou o início da chamada sociedade informacional, que é complexa, conectada, globalizada, guiada pela velocidade, rapidez e facilidade das comunicações. Além disso, é pautada na informação do indivíduo e não mais na sua força de produção. Plasmada na globalização e no estabelecimento da sociedade informacional, a relação Estado/indivíduo alterou-se, gerando a necessidade de se conceber novos conceitos - como a cidadania digital, por exemplo - e, consequentemente, numa releitura dos direitos fundamentais e da personalidade, tanto em escala vertical (face ao Estado), quanto na dimensão horizontal (frente aos demais indivíduos e entidades particulares). Portanto, o cenário, atualmente, é muito mais virtual que real, e é nele que se percebe a formação de inúmeras relações jurídicas. No que tange aos personagens deste enredo, hodiernamente, não é mais o Estado o temido "Big Brother" que a tudo vigia. O "Olho de Sauron", hoje, se traveste das redes sociais (CASTELLS, 2017). E o que é pior: a violação dos atributos essenciais do indivíduo, via de regra, é incentivada por elas e facilitada "espontaneamente" pelo próprio ofendido. Então, também nesse aspecto, pode-se constatar modificação de dimensões bastante importantes, eis que um dos protagonistas deixa de ser o Estado e passa a ser as grandes corporações privadas. E ao voltar-se as luzes de análise aos dados das pessoas, e principalmente quanto ao sigilo e controle de seu uso - que foi erigido recentemente à categoria de direito fundamental - impende tecer algumas reflexões sobre essa expressa categorização, sobre a influência das estratégias de consumo como vetor que impulsiona a superexposição de informações e dados, bem como os impactos destes na seara da responsabilidade civil. É inegável que a internet seja hoje uma indispensável ferramenta de comunicação, de entretenimento, de informações e de exercício profissional, além de tantas outras finalidades que acumula. Ela liga indivíduos ao redor do mundo, viabiliza o compartilhamento de experiências, dados e cultura em tempo real, ao tempo em que possibilita a realização de compras de produtos quando não se tem acesso físico aos mesmos e, é claro, facilita a ampla pesquisa de mercado a qualquer hora. Todavia, todas essas facilidades e benesses não estão disponíveis online despretensiosamente: grande parte delas é fomentada ou incentivada pelas táticas de marketing e consumo, impactando as pessoas sem muitas vezes elas sequer notarem, especialmente quando se trata de seus direitos mais essenciais. O mecanismo é nefasto: Há muito já se entendeu que não é a necessidade de fato o elemento determinante da compra, o seu combustível natural. O que se busca suprir - muitas vezes de modo insano - é o status que dado produto vai atribuir ao comprador e como a estética trabalha a serviço do consumo, como destacam Gilles Lipovetsky e Elyette Roux (2005), em seu "O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas". E esse comportamento passa pelas mais variadas "escolhas": desde o tipo de carro, a escola dos filhos, a marca do smartphone, as grifes das roupas, o destino de viagens, as festas frequentadas e outras. Também é fato que esses tipos de consumo são incentivados/provocados a ser expostos nas redes sociais, tendendo-se a rotular pessoas com base em um padrão de consumo que estratifica os indivíduos (BAUMAN, 2004). E no afã de se enquadrar num perfil socialmente valorizado ou de pertencer a determinado grupo, muitos indivíduos, ao exibirem muito de suas vidas nas redes sociais, permitem àquelas, a formação de um gigantesco banco de dados e a composição de um perfil extremamente detalhado de suas preferências (notadamente as de consumo). Assim, cada um contribui para a violação de direitos da personalidade e, de modo especial, quanto aos próprios dados (que comporão os tais perfis, cujo conhecimento e domínio não pertencem mais do Estado - daí a afirmação alhures de que os protagonistas deste enredo já não serem mais os mesmos) -, mas aos milionários e influentes comandantes destas empresas globais. O "Grande Irmão" (ou seria o inimigo?), agora é outro. Nessa perspectiva, então, já resta sabido, consabido e discutido que essa postura gera potenciais riscos aos usuários das redes, eis que dados (sensíveis ou não) valem muito dinheiro e informações são muito preciosas no que tange ao direcionamento das políticas de mercado. Ou seja: essas informações armazenadas (disfarçadas de perfis) têm um elevado valor comercial e são, a olhos vistos, disponibilizados e comercializados para fins de estratégias de marketing. Ora, quem aqui nunca efetuou uma busca numa página de viagens e imediatamente começou a receber propaganda de pacotes, promoções etc para o destino pesquisado? E quantas vezes a mesma coisa ocorre quanto a um dado produto ou serviço comentado ou curtido? Então, ao incentivar a divulgação doentia e constante de tudo que se faz, as redes sociais fomentam a deletéria isca: fazem com que se contribua "espontaneamente" para a permanente alimentação e atualização destes arquivos e, é claro, lucram milhares de dólares com isso. E não é preciso muito esforço para fazer com que as pessoas contribuam com esse arquivo de modo constante: a postura exibicionista é fomentada pela tese de que quem não frequenta as redes sociais cai no ostracismo e será excluído das relações profissionais, de mídia, de relacionamento, ou que se a pessoa não adquire tal produto, não realiza dada atividade, não é convidado a estar tal local, não possui um smartphone do último tipo e da marca mais glamurosa, não está apto ao convívio social: Pobres daqueles que, em razão da escassez de recursos, são condenados a continuar usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas. Pobres daqueles que, pela mesma razão, permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos da sociedade de consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes, os fracassados - famintos definhando em meio à opulência do banquete consumista. (DIAMOND, 2013, p. 66). Nessa linha, e por receio da exclusão, os indivíduos culminam por fazer o que não desejam, a trabalhar com o que não os provoca satisfação e a gastar recursos os quais não possuem; tudo para serem acolhidos pelo estrato que elegeram como relevante: voilà o retrocitado mecanismo nefasto! Quanto a este ponto, deve vir à lume um efeito que tangencia não somente o Direito e o mundo virtual como de costume, mas que também toca às relações de consumo: o Efeito Veblen, ou Efeito de Esnobismo. Trata-se de uma teoria que não é nova, mas pode ser revisitada face ao mundo virtual, adquirindo novas tintas, afinal, "Assim como a idade moderna foi obcecada pela produção e pela revolução, a idade pós-moderna é obcecada pela informação e pela expressão". (LIPOVETSKI, 2005, p. 23). Bem, a Teoria foi publicada no final do século XIX, em 1899, sob o nome de "Teoria da Classe Ociosa" pelo economista e sociólogo Thorstein Veblen e trata de "uma sátira aos costumes das classes altas", ridicularizando o jogo, a religião, a moda e até os animais domésticos das classes abastadas de sua época (VEBLEN, 1965), sendo que foi por meio dessa obra que "os conceitos de ócio e consumo conspícuos disseminaram-se e passaram a fazer parte do jargão das ciências sociais". (MONASTÉRIO, 2005, p. 01). Para Veblen, no consumo de bens de luxo, quanto mais elevado o preço do produto, mais desejável ele será. Traduzindo em miúdos: tudo que é caro é bom; diferencia dos comuns e mantém numa classe social de pessoas que se distinguem das demais. Torna exclusivo. Sob esse prisma, não seria, portanto, a necessidade natural que determina o ato de consumir, mas sim o ato de mostrar o que se consumiu: [...] O consumo ostentatório é símbolo de um vínculo a um grupo privilegiado e não pode ser inferido da axiomática da microeconomia. [...] Quanto mais aumentar o preço desses bens, tanto mais seu consumo satisfaz as exigências sociais do grupo e tanto mais importante é a sua procura. [...] O efeito Veblen, a semelhança de outros efeitos, mostra bem que, ao contrário de uma hipótese da teoria da escolha racional, o consumo de um indivíduo ou de um grupo social não é independente do de outrem. (BOUDON, 1995, p. 154). Atualmente esse efeito pode ser verificado no episódio do indonesiano Rudy Kurniawan (REVISTA VEJA, 2012) que, rico e elegante, leiloava as garrafas a preços caríssimos. O vinho era falso (como constatou o FBI) mas, mesmo assim, muitos diziam que como era caro, ainda que de gosto duvidoso, deveria ser bom (?!). E onde esse efeito (impulsionado pelas políticas de consumo) tangencia o mundo virtual e o comportamento das pessoas, notadamente quanto a violação de seus dados e outros direitos fundamentais e da personalidade? Sabe-se de inúmeras pessoas que se espelham nos chamados influenciadores. Também se sabe que eles constantemente recebem "presentes" das grandes marcas para ostentar os mimos e despertar a cobiça de todos que, no afã de se distinguir da plebe ordinária que compra em lojas mais populares e são praticantes de preços acessíveis, a se endividar para adquirir produtos cuja qualidade nem é tão constatável assim (mas é invariavelmente, cara). Um dos exemplos emblemáticos nesta seara é o da norteamericana Lisette Calveiro, que acumulou uma dívida de 32 mil dólares para adquirir produtos valiosos somente para postar em suas redes sociais e tornar evidente um modo de vida diferenciado das outras pessoas (O ESTADO, 2018), (leia-se, caro e, portanto, pela lógica Vebleriana, bom!), mesmo que esse modo de vida não fosse, de fato, tão bom assim. Tudo isso, somente para alimentar a superexposição permanente em redes sociais (e a provocar, subliminarmente, a atualização do seu banco de dados). Assim, é preciso que se dê conta da massiva política de incutir nas pessoas as tais "necessidades" que, de fato, não existem. E o efeito Veblen é só mais uma dessas artimanhas. O mote principal, além do marketing, é a obtenção de informações e dados das pessoas, como já afirmado. E como comporta-se o ordenamento jurídico - notadamente o microssistema reparatório - quanto à ofensa aos direitos da personalidade - enfaticamente face aos dados e ao seu (mau) uso? Bem, os dados pessoais passaram a gozar do status de direito fundamental por força da EC 115/22, aprovada no último mês de fevereiro. Então, principiando-se por aí, impende informar como remansa o texto constitucional após a publicação da mesma, eis que provocou a alteração da redação de três artigos da Constituição, a ver: A mais impactante modificação, foi a inserção expressa dos dados como direito fundamental no rol do artigo 5º, eis que o seu inciso LXXIX passou a conter o seguinte: "[...] é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Em consequência desta inclusão, o inciso XXVI do art. 21, teve sua redação alterada para: "Compete à União: [...] organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei"; e o art. 22 passou a vigorar com acréscimo do inciso XXX, cujo teor é "[...] Compete privativamente à União legislar sobre: [...] proteção e tratamento de dados pessoais".   Assim, diante da inserção dos dados pessoais no rol de direitos do artigo 5º constitucional, daqui em diante, não se discute mais a fundamentalidade do direito ao controle e gestão dos dados e informações das pessoas, sendo que quanto a sua proteção, deve-se dar destaque à concretização do já conhecido princípio da autodeterminação informativa, que se constitui na [...] faculdade que toda pessoa tem de exercer, de algum modo, controle sobre seus dados pessoais, garantindo-lhe, em determinadas circunstâncias, decidir se a informação pode ser objeto de tratamento (coleta, uso, transferência) por terceiros, bem como acessar bancos de dados para exigir correção ou cancelamento de informações. (BESSA, 2020). Do prisma da legislação ordinária, tal como antes da EC 115/22, o CC/02 pugna pela tutela dos direitos da personalidade de modo amplo em seu art. 12 e, de modo mais específico quanto aos dados, no art. 21, eis que estes são abrangidos pelo conceito de vida privada do indivíduo. (FERRAZ JUNIOR, 1999). Ainda acerca da proteção dos dados conferida pelo cc/02, há o enunciado 404 da V Jornada de Direito Civil, que reforça o entendimento de que aquele diploma legal não deixou a latere tal direito. Seu teor é o seguinte: A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnicas, as convicções religiosas, filosóficas e políticas. (sublinhou-se). Quanto a legislação especial, a lei 12.965/14 (o Marco Civil da Internet) esposa como um dos princípios do uso da internet no Brasil, o da proteção da privacidade e da intimidade (artigo 3º), o que fica reiterado pelo art. 7º, que versa sobre a cidadania: O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos. Inciso I - Inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Mais especificamente, Lei 14.058/20 (Lei Geral de Proteção de Dados ou LGPD), que entrou em vigor em setembro de 2021, é preclara quanto aos mais variados aspectos destinados a tutela, controle, manutenção, exclusão e administração de dados dos indivíduos, sendo que o mau uso, o vazamento, a publicação e tantas outras violações são passíveis de punições ao praticante, bem como fazem jus a indenização ao ofendido quanto da sua ocorrência. Todo esse aparato legislativo, é claro, intensificou também a análise e decisões proferidas pelos Tribunais do País, notadamente quanto a seara indenitária. Numa breve busca, pode-se colacionar decisões em que se concede a indenização levando em conta o simples fato de haver exposição dos dados (TJ/SP. Apelação Cível 1003122-23.2020.8.26.0157) ou outras que condicionam o pagamento de danos morais à vinculação entre o vazamento das informações e danos sofridos pelos autores das ações (TJ/SP. Apelação Cível 1008308-35.2020.8.26.0704). Se se pode indicar alguma novidade, é a possibilidade da condenação por dano moral coletivo (TJ/RJ. Ap. 0418456-71.2013.8.19.000). Quanto aos danos materiais, somente se condena à indenização se presentes os corriqueiros requisitos de indenizabilidade (TJ/DF. Ap. 0702829-80.2020.8.07.0020). Em todas as decisões analisadas, o aporte é sempre o art. 42 da LGPD: [...] o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. É certo que até pela pouca idade da LGPD, não há uma jurisprudência formada. Vislumbra-se, ainda, orientações divididas e posicionamentos díspares entre si, o que, muito provavelmente, com o passar do tempo e o amadurecimento da ideia de que os dados - agora de maneira expressa - galgaram o patamar de direito fundamental, vá se consolidar de forma mais tranquila. Assim, e analisados, mesmo que de forma breve, o estado d'arte da questão, finalmente é preciso trazer algumas reflexões sobre a questão, de modo específico quanto ao tripé deste ensaio: A um, será mesmo que as redes sociais (que nada mais são que grandes empresas como quaisquer outras), que insuflam a superexposição e alimentam "necessidades" como iscas para a coleta de dados e arquivamento de informações, e que, a claras luzes, lucram milhares de dólares por dia com isto, devem continuar atuando sem qualquer fiscalização ou freio estatal? Nessa linha, a ANPD  - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que deve fiscalizar a aplicação da LGPD, afirmou que inicialmente adotará apenas uma "postura responsiva", ou seja, não impactará de imediato, muito menos mitigará as nefastas práticas mercadológicas incentivadas e impulsionadas pelas redes. Isso, a despeito do art. 52 da LGPD, que prevê penalidades às situações em que houver dano decorrente do tratamento irregular de dados pessoais por controladores e operadores. A dois, as grandes redes, diante de vários escândalos já ocorridos, bem como da influência que exercem (na política, na sociedade e, mais que tudo, na economia), devem permanecer com suas práticas deletérias sem qualquer consequência jurídica? Neste ponto, não há como permitir a continuidade da atividade das redes sem considerar o princípio ubi emolumentum, ibi ônus; ubi commoda, ibi incommoda. Que seja, a concepção acerca da assunção do risco de produção de danos advindos de sua atividade, que quem incentiva a exposição de dados e com a qual lucra de maneira acentuada e inequívoca, deve responder pelos danos e desvantagens dela resultantes. A três, será que somente quando houver o inconteste vazamento de dados com danos morais comprovados, é que se ensejará eventual indenização (e do ponto de vista individual, apenas)? Ao que parece, neste aspecto, a concepção do dano moral in re ipsa seria o mais adequado, eis que a exposição do dado ou informação já viola, por si, direito da personalidade (privacidade ou intimidade dos dados), sendo desnecessária a exploração comprobatória do dano efetivo. Isso porque o argumento de que incidentes de segurança acontecem, e que nestas situações, somente se se constatar alguma violação a direito da personalidade é que haverá, como consectário, a condenação à compensação moral não deve perdurar, sob pena de haver uma inversão na concepção adequada de dano moral, convertendo-se num quase-dano material. A quatro, o que dizer do risco de dano (ou do dano potencial) que sofre aquele que tem seus dados e informações expostos? Ora, a mera exposição de dados e informações já não acarreta prejuízo à vítima, eis que a coloca em situação de risco e potencial prejuízo? A exposição indevida ao risco já é matéria pacífica em outras sendas, como na Justiça do Trabalho (vide TST. RR 24-97.2017.5.05.0024), que condena à indenização dos profissionais que atuam em condições que lhes submetam a situação passível de causação de danos, como é o motorista de veículos de transporte de valores, sem se cogitar a pecha de dano eventual ou hipotético. O fato é que na seara compensatória ou reparatória, há muito que se evoluir quanto a satisfatividade das condenações que envolvam dados e informações pessoais. Talvez o fato de os mesmos terem sido erigidos à categoria de direito fundamental contribuam para o amadurecimento das decisões que versem sobre sua violação e indenizabilidade. Basta saber, então, se a exposição indevida de dados e informações do indivíduo, não viola, por si só, um direito seu, fundamental e da personalidade, cujo substrato axiológico é a dignidade. E se houver essa ofensa, se não deverá esta ser devidamente indenizada por quem aufere gigantescas vantagens econômicas com a sua captação, conservação e controle cotidiano, mesmo que o fazendo de modo camuflado e subliminar. _____ 1 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. São Paulo: Zahar, 2004. 2 BESSA, Leonardo Roscoe. A LGPD e o direito à autodeterminação informativa. Site genjurídico.com.br. Seção de Artigos, de 20 out. 2020. Disponível aqui.  3 BOUDON, Raymon (Org.). Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 4 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venancio Majer. 18. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017. 5 DIAMOND, Jared Mason. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. Tradução de Silvia de Souza Costa. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. 6 FERRAZ, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 88, 1999. 7 LIPOVETSKY, Gilles; ROUX, Elyette. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch. Barueri, SP: Manole, 2005. 8 MONASTÉRIO, Leonardo Monteiro.  Veblen e o Comportamento Humano: uma avaliação após um século de "A Teoria da Classe Ociosa". Cadernos IHU de idéias, ano 3, 42/05. Disponível aqui. 9 O ESTADO de São Paulo. Blogueira contrai dívida de R$ 32 mil para fazer posts 'perfeitos' no Instagram. Jornal O Estado de São Paulo, 09 mar. 2018. Disponível aqui.  10 REVISTA VEJA, Indonésio é preso por golpe de US$ 1,3 mi em falsificação de vinhos. Revista Veja, versão online, Coluna de Economia, 13 mar. 2012. Disponível aqui. 11 VEBLEN, Thorstein B. Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Pioneira, 1965.
Milhões de cirurgias robóticas já foram realizadas ao redor do mundo com o chamado robô "Da Vinci", desde 2000.1 Durante a cirurgia, o médico permanece num console, manuseando dois controladores gerais (joysticks) - e os movimentos das suas mãos são traduzidos pelo robô, em tempo real, em instrumentos dentro do paciente, eliminando-se, assim, o tremor natural das mãos do ser humano e possibilitando um procedimento executado com maior precisão. Devido à maior flexibilidade dos braços robóticos em comparação com as ferramentas laparoscópicas convencionais, além da ampliação da visão do cirurgião por meio de uma microcâmera, tornam-se completamente acessíveis locais anteriormente de difícil acesso ou até mesmo inacessíveis.2 A utilização do robô torna a cirurgia mais segura e precisa, eliminando o tremor natural das mãos do ser humano; a microcâmera amplia a visão do cirurgião e a tomada de decisões no decorrer do procedimento cirúrgico se torna mais rápida e exata.3 Em 2002, um cirurgião, localizado nos Estados Unidos, realizou a primeira telecirurgia em uma paciente que estava a milhares de quilômetros de distância, na França.4 As plataformas robóticas, nas últimas duas décadas, têm ampliado as fronteiras das inovações em tecnologias da saúde, para obtenção de melhores resultados clínicos. A cirurgia robótica surgiu em um momento que cirurgiões demandavam, cada vez mais, tecnologias cirúrgicas minimamente invasivas, mais precisas e seguras, para aperfeiçoarem sua atuação. No Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, é o pioneiro em cirurgia robótica desde 2008, quando um paciente idoso foi submetido à extirpação da próstata com a assistência do robô.5 No dia 23 de março de 2022, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução 2.311/22,6 que regulamenta a cirurgia robótica no Brasil, trazendo importantes temas ético-jurídicos - consentimento do paciente, política de treinamento de hospitais, capacitação da equipe, responsabilidade médico-hospitalar e solidariedade na responsabilidade da equipe médica. Nestas breves reflexões, propõe-se o debate acerca da responsabilidade médica e solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução. Ao propósito de se identificar a importância deste assunto, cumpre, inicialmente, trazer à baila o perfil de possíveis litígios na cirurgia robótica. Em novembro de 2015, um senhor morreu após se submeter à cirurgia robótica no Freeman Hospital, em Newcastle, Inglaterra. O robô fez um movimento brusco e dilacerou parte do coração do paciente durante a cirurgia. Abriu-se inquérito policial para determinar a causa da morte e o cirurgião acabou revelando que "poderia ter realizado a cirurgia com mais treinamento prévio no robô, antes da intervenção cirúrgica"7 no paciente em questão e, ainda, relatou que o proctor (médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci), que deveria estar presente durante toda a cirurgia, saiu da sala na metade do ato cirúrgico. Além disso, constatou-se que o hospital, onde ocorreu a intervenção, não possuía nenhum serviço de apoio e suporte ou política de treinamento dos médicos em cirurgia robótica. O diretor médico do hospital emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo que "falhou em garantir um padrão de cuidado razoavelmente esperado na cirurgia robótica". Na situação narrada, fica evidente a hipótese de dano diretamente ocasionado por imperícia do profissional, além da falha na prestação adequada do serviço pelo hospital. Nos Estados Unidos, tem-se notícia de diversos pacientes que pleitearam indenização por danos sofridos durante a performance dos robôs Da Vinci. Entre os anos de 2000 e 2013, há 10.624 relatos de eventos adversos.8 Em um período de dez anos, a Intuitive Surgical promoveu 175 recalls do robô Da Vinci9 - tanto para pequenos ajustes, como esclarecimentos de instrução e atualizações de software, bem como recalls mais graves, como o caso de uma faca cirúrgica que não podia se mover e realizar algum corte necessário, braços cirúrgicos que apresentaram falhas e outros componentes do robô que fizeram movimentos inesperados. Há registro também de um instrumento robótico que, depois de fixado a um tecido do paciente, não podia mais se abrir - o que gerou também outro recall. Até o momento, quase todos os conflitos envolvendo eventos adversos em cirurgia robótica nos Estados Unidos foram resolvidos extrajudicialmente com a fabricante, com cláusula de confidencialidade sobre os seus termos ou, ainda, decididos sumariamente pelo juiz (summary judgment) na fase chamada pretrial, com exceção de dois casos que foram levados a julgamento pelos tribunais norte-americanos, os quais, posteriormente, também resultaram em acordo: Zarick v. Intuitive Surgical (2016) e Taylor v. Intuitive Surgical (2017). Mais recentemente, em abril de 2021, julgou-se o caso Rosenberg v. 21st Century Oncology, no qual se reconheceu a culpa do médico diante de danos sofridos pelo paciente submetido à cirurgia robótica de prostatectomia.10 Já no Brasil, em 2019, foi julgado pela 4ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis/SC,11 o primeiro caso que se tem notícia sobre responsabilidade civil médico-hospitalar em evento adverso sofrido por paciente submetido à cirurgia robótica, discutindo-se a responsabilidade pela incorreta esterilização do robô. Em primeiro grau, o hospital foi responsabilizado. Atualmente, aguarda-se julgamento do TJSC dos recursos interpostos pelo hospital e paciente. Em contexto norte-americano, as demandas indenizatórias sobre eventos adversos ocorridos durante a intervenção médica assistida por plataformas robóticas são conhecidas como "finger-pointing cases".12 Isso, porque há sempre a complexidade na aferição de quem é responsável pelo dano ao paciente submetido à cirurgia robótica: equipe médica, hospital ou o fabricante do equipamento. O médico e o hospital, diante de evento adverso na intervenção, alegam que há defeito no próprio robô e consequente responsabilidade do fabricante. Este, por sua vez, defende que o dano decorre de erro médico ou, ainda, da má conservação ou incorreta regulagem do robô pelos prepostos do hospital. A partir do estudo acerca dos litígios ao redor do mundo envolvendo eventos adversos ocorridos na cirurgia robótica, pode-se observar que a grande complexidade na análise da responsabilidade civil dá-se, sobretudo, na determinação da causa eficiente do dano - e a quem se atribuir o dever de indenizar. Diante disso, ao investigar tal problemática no ordenamento jurídico brasileiro, alvitramos a metodologia a seguir descrita. Para atribuição da responsabilidade por eventos adversos na cirurgia robótica, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu: "a) do serviço essencialmente médico: quando o dano decorre de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da medicina, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. Reconhecida a culpa do médico (art. 14, § 4º, do CDC; art. 186 e 951, ambos do CC), responderá, em regra, solidariamente o hospital (art. 932, III, do CC). O médico responderá por culpa stricto sensu, nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia. Destaque-se que, caso o médico não tenha vínculo de emprego/preposição com o hospital, apenas alugue o espaço da entidade hospitalar, a fim de realizar o procedimento cirúrgico com auxílio do robô, o hospital não terá responsabilidade solidária pela conduta culposa do profissional. b) do serviço paramédico: quando o dano advém da falha na intervenção dos enfermeiros com a correta regulagem do robô ou inadequada esterilização dos instrumentos robóticos. Em geral, são praticados pela enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores. Nessa situação, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC; c) do serviço extramédico: quando o dano resulta da inadequada ou inexistente política hospitalar de treinamento de médicos e outros profissionais, defeito de qualquer instalação ou má conservação/manutenção do robô pelo não atendimento aos cuidados recomendados pelo fabricante. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC".13 Portanto, no eventual exame da responsabilidade civil, a equação é conhecida: em primeiro plano, analisa-se a atuação pessoal do médico, com o intuito de se reconhecer a ocorrência de culpa stricto sensu (imperícia, imprudência ou negligência), por parte do médico; reconhecida a culpa do seu preposto, responderá solidariamente o hospital. Já por defeito do robô cirurgião (do software ou de um instrumento robótico), responderá o fabricante, independentemente da existência de culpa (art. 14, do CDC), pela reparação dos danos causados ao paciente. O robô será considerado defeituoso quando não oferecer a segurança que legitimamente se espera (art. 12, § 1º, do CDC), levando-se em consideração sua apresentação, uso e riscos que dele se esperam e à época em que foi colocado em circulação. O fornecedor também será responsabilizado pelas informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos acerca do seu produto.14 Importante mencionar que, até pouco tempo atrás, notava-se uma realidade de médicos com pouca prática, que faziam um breve treinamento com o fabricante do robô e já realizavam cirurgias robóticas sozinhos depois de pouquíssimos procedimentos cirúrgicos com auxílio do proctor.15 Por isso, a questão da culpa médica em cirurgia robótica, especialmente da imperícia, devido ao insuficiente treinamento dos médicos já foi bastante criticada pela comunidade jurídica norte-americana e europeia. Destaque-se que cirurgiões com extensa experiência na tecnologia declaram que se sentiram proficientes com o sistema Da Vinci apenas depois de realizarem ao menos 200 procedimentos assistidos pelo robô.16 O Brasil é o maior mercado de cirurgia robótica da América Latina. Contudo, apesar das plataformas robóticas serem realizadas no país desde 2008, apenas em 2020, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), vinculado à Associação Médica Brasileira (AMB), publicou a primeira declaração com diretrizes sobre o processo para emissão do certificado de habilitação em cirurgia robótica no Brasil, a serem seguidas por todos os novos cirurgiões robóticos e entidades hospitalares.17 Atualmente, já se observa uma tendência de mudança do modelo de treinamento, especialmente pela criação de diretrizes para o desenvolvimento de proficiência na realização de procedimentos cirúrgicos robóticos, bem como devido à implementação de simuladores do robô, com treinamento em realidade virtual, para que os médicos possam praticar no próprio hospital onde atuam. Importante a ponderação de que, somente em março de 2022 - após 14 anos de cirurgias robóticas realizadas no Brasil - o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 2.311/22, que regulamenta a cirurgia robótica no país e traz as diretrizes para capacitação e política de treinamento por médicos e hospitais. Diante do cenário apresentado, observa-se a importância das disposições trazidas na Resolução CFM 2.311/22 sobre o treinamento específico dos médicos em cirurgia robótica (arts. 2º e 3º), as etapas básicas de capacitação (Anexo 2) e a responsabilidade do cirurgião-instrutor (proctor) na orientação no manejo do robô e avaliação da competência do cirurgião principal (art. 4º). A cirurgia robótica é um procedimento de alta complexidade (art. 1º, § 1º) e só poderá ser realizada por médico que cumpra dois requisitos: 1º) tenha registro de qualificação de especialista pelo CRM na área cirúrgica relacionada ao procedimento; 2º) possua treinamento específico em cirurgia robótica durante a residência médica ou capacitação específica para a realização de cirurgia robótica de acordo com o Anexo 2 (etapas 1 + 2). Além disso, o cirurgião principal, após completada a etapa básica de capacitação (etapa 1 do Anexo 2), só poderá realizar cirurgia robótica sob supervisão e orientação de um cirurgião-instrutor (proctor) em um número mínimo de 10 cirurgias robóticas na especialidade de atuação. Após cumprir as duas etapas de treinamento (básico e avançado) e o número mínimo de cirurgias, o cirurgião principal se submeterá a uma avaliação do cirurgião-instrutor para atestar a sua competência na modalidade de cirurgia robótica. Comprovada a conclusão e aprovação no treinamento com o proctor, o cirurgião principal terá autonomia para realizar cirurgia robótica sem a participação do proctor (§ 3º do art. 3º). Para atuar como cirurgião-instrutor em cirurgia robótica, o médico deve comprovar ter realizado um número mínimo de 50 cirurgias robóticas na condição de cirurgião principal (§ 2º do art. 4º). Ressalte-se que, independentemente se a cirurgia robótica é realizada pelo médico a poucos metros distância e na mesma sala de cirurgia em que se encontra o paciente ou, ainda, na situação do profissional que opera o robô de forma remota a milhares de quilômetros de distância (telecirurgia), há a necessidade de um cirurgião auxiliar junto ao paciente, para intervir em caso de mau funcionamento do robô ou quaisquer interrupções tecnológicas. Evidentemente, deve-se garantir que toda a equipe de profissionais da saúde envolvidos (enfermeiros e médicos - principal, auxiliar, anestesiologista e instrumentador) seja apropriadamente capacitada e receba constantemente treinamento e atualização na nova tecnologia. Isso porque, além de eventuais dificuldades tecnológicas, a incorreta esterilização ou calibragem de um instrumento robótico, por exemplo, pode aumentar a probabilidade de um movimento impreciso do robô cirurgião ou, ainda, ocasionar uma falha na transmissão da imagem do sítio cirúrgico.18 Além disso, no art. 2º (e Anexo 1) da Resolução CFM 2.311, indica-se que as plataformas de cirurgia robótica, aprovadas pela Anvisa, só poderão ser utilizadas nos denominados "hospitais de Alta Complexidade", isto é, unidades hospitalares com condições técnicas, instalações físicas, equipamentos, serviços de apoio e suporte a todas as intercorrências possíveis e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada aos pacientes submetidos às cirurgias assistidas por robôs. Em relação às cirurgias robóticas realizadas remotamente, o art. 6º salienta que a telecirurgia somente poderá ser realizada com infraestrutura adequada e segura de funcionamento de equipamento (§ 1º). Somando-se à obrigatoriedade do termo de consentimento livre e esclarecido na telecirurgia, é imprescindível uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a cirurgia será realizada (§ 5º). Oportuno mencionar que, segundo dados da H. Strattner - única empresa que comercializa o robô Da Vinci no Brasil - já foram realizadas mais de 30 mil cirurgias robóticas desde 2008. Além disso, entre 2008 e 2020, o número de equipamentos de robótica cirúrgica instalados em hospitais brasileiros saltou de 40 para 76, correspondendo a um crescimento de mais de 90%.19 Todavia, ainda reside a nível mundial um dos maiores desafios a serem superados no implemento das cirurgias robóticas à distância (telecirurgias): as limitações tecnológicas - especialmente o time delay -, apesar de já se observar a tendência de aprimoramento dos sistemas de telecirurgia, sobretudo a partir das redes 5G, as quais propiciam menor tempo de latência entre o cirurgião remoto e a sala de cirurgia onde fica o paciente.20 Frise-se que, esse cenário de maiores riscos na cirurgia realizada à distância, bem como a necessidade de aprimoramento tecnológico para implemento da plataforma robótica, justifica a exigência trazida pela Resolução CFM 2.311 de uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a telecirurgia será realizada. A equipe de cirurgia robótica é composta por cirurgião principal, cirurgião auxiliar, médico anestesiologista, instrumentador, enfermeiro de sala (responsável pela movimentação externa do robô), técnico de enfermagem circulante de sala (estruturação trazida no glossário ao final da Resolução CFM 2.311/2022). O cirurgião principal é o médico que responderá diretamente pelo ato cirúrgico, conforme disposto no art. 3º, § 4º, da Resolução CFM 2.311/2022, in verbis: "a responsabilidade da assistência direta ao paciente é do cirurgião principal em relação ao diagnóstico, indicação cirúrgica, escolha da técnica e via de acesso, além das complicações intraoperatórias e pós-operatórias". Já o cirurgião auxiliar em campo é o médico especialista responsável pelo auxílio ao robô e instrumentais robóticos, devendo estar pronto para intervir rapidamente em caso de eventos adversos relacionados ao paciente ou ao robô. Por fim, o cirurgião-instrutor em cirurgia robótica (proctor) orientará o cirurgião principal no manejo do robô, incluindo o console e instrumentais robóticos, mas não será de sua responsabilidade participar da indicação cirúrgica, da escolha da técnica cirúrgica ou mesmo da assistência direta ao paciente no intraoperatório ou no pós-operatório (art. 4º). No caso das cirurgias robóticas à distância, o § 2º do art. 6º da Resolução CFM 2.311/2022 indica que a equipe médica cirúrgica principal para a telecirurgia deve ser composta, no mínimo, por um médico operador do equipamento robótico (cirurgião remoto que responde diretamente pelo ato cirúrgico), além do cirurgião presencial e cirurgião auxiliar, os quais serão responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas, como falha no equipamento robótico, falta de energia elétrica, flutuação ou interrupção de banda de comunicação. Ademais, seja na cirurgia robótica presencial ou à distância, o art. 5º prevê a responsabilidade do diretor técnico do hospital na conferência da documentação sobre a capacitação e competência do cirurgião principal (responsável direto pelo ato cirúrgico), cirurgião instrutor (proctor) e demais membros da equipe, devendo, ainda, exigir que a equipe cirúrgica descreva o procedimento robótico-assistido em prontuário, com assinatura do cirurgião principal, do cirurgião-instrutor e de outros médicos que eventualmente integrem a equipe. Destaque-se que referida documentação será de extrema importância em eventual litígio para aferir a responsabilidade civil decorrente de dano sofrido pelo paciente na cirurgia robótica. Nesse sentido, o 4º Considerando da Resolução CFM 2.311/2022 indica a Resolução CFM 1.490/1998, a qual dispõe sobre a composição da equipe cirúrgica e responsabilidade entre os membros da equipe. Imagine-se que um cirurgião remoto, localizado num hospital em Londres, estivesse realizando uma telecirurgia em um paciente em São Paulo, no exato momento em que o sistema do hospital inglês sofre interrupção por invasão de um hacker. Diante disso, o monitor - que passava imagens do sítio cirúrgico do paciente brasileiro - de repente, fica preto, não sendo mais possível saber quais movimentos serão reproduzidos pelo robô no Brasil. Em tese, o robô possui um mecanismo de segurança e para de se movimentar diante de falhas/interrupções tecnológicas ou quando o médico afasta o rosto do console onde estava manuseando os joysticks do robô. De todo modo, tal como no caso ora apresentado, a equipe do hospital brasileiro precisa ficar de prontidão, ao lado do paciente e, verificando qualquer falha no sistema ou movimento imprevisível do robô cirurgião, afastar este do paciente e, imediatamente, adotar as condutas emergenciais cabíveis, incluindo a transformação do procedimento cirúrgico em uma cirurgia convencional (aberta) sem a assistência do robô. Esse é um exemplo, dentre tantos outros, de que podem ocorrer situações em que a cirurgia robótica precisará ser interrompida e substituída por uma cirurgia convencional, realizada pelas próprias mãos de um médico (auxiliar), sem interferência do aparato tecnológico. E, muitas vezes, surgirão cicatrizes maiores no corpo do paciente, pois aquela cirurgia robótica minimamente invasiva precisará ser transformada em uma cirurgia aberta, com cortes mais extensos. Segundo a própria empresa fabricante do robô Da Vinci, essa conversão do procedimento pode significar "um tempo cirúrgico mais longo, mais tempo sob anestesia e/ou a necessidade de incisões adicionais ou maiores e/ou aumento de complicações",21 informações estas que deverão ser repassadas previamente ao paciente. Mencionou-se anteriormente uma metodologia para aferir a responsabilidade civil por eventos adversos na cirurgia robótica a partir da identificação da gênese do dano, isto é, se o dano decorre de serviço essencialmente médico, paramédico ou extramédico. A questão é que a Resolução CFM 2.311/2022 traz à tona o debate sobre os inúmeros profissionais envolvidos na cirurgia robótica e a responsabilidade e solidariedade dos membros da equipe médica,22 demonstrando a necessidade de, somada à metodologia antes apresentada, fazer uma análise pormenorizada da teoria da causalidade adequada.23 Desse modo, investiga-se a possibilidade de responsabilidade solidária do médico-cirurgião chefe, por danos causados ao paciente em decorrência de erro médico cometido por outro membro da equipe. Pensando-se no exemplo anteriormente mencionado de evento adverso na telecirurgia: o cirurgião remoto (médico 1) está realizando uma telecirurgia e o robô para de funcionar devido à invasão de um hacker e queda do sistema, ou qualquer outro problema tecnológico ou falha do equipamento - sendo que o cirurgião presencial (médico 2) e a equipe localizada junto ao paciente demoram para adotar as condutas emergenciais devidas no afastamento do robô e conversão cirúrgica - vindo o paciente sofrer eventuais danos ou até óbito. Para definir os limites do nexo causal, vale novamente mencionar que, na telecirurgia, o médico remoto responde diretamente e somente pelo ato cirúrgico em si, ao passo que os responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas são o cirurgião presencial e o cirurgião auxiliar. Assim, no caso supracitado, aplicando-se a teoria da causalidade adequada e tese de interrupção do nexo causal, considera-se que o dano sofrido pelo paciente decorre de ato diretamente praticado pelo médico 2 e/ou equipe médica local. A interrupção tecnológica ou falha do equipamento robótico constituiu-se como circunstância superveniente que abriu uma nova cadeia causal, isto é, o dano sofrido pelo paciente não foi o efeito necessário da interrupção da telecirurgia pelo médico 1, mas sim culpa do médico 2 e/ou da equipe médica local. Inclusive, mesmo que verificado o nexo causal entre o dano do paciente e um erro na conduta específica do cirurgião auxiliar, caberá responsabilização solidária do cirurgião presencial, chefe da equipe médica; isto porque, o causador do dano é integrante da equipe que participa da cirurgia e atua na condição de subordinado, ou seja, sob comando do cirurgião-chefe.24 Diferente situação seria se o cirurgião remoto, ao manipular os joysticks, realiza movimento brusco que gera alguma oscilação/imprevisibilidade e o robô acaba atingindo algum órgão ou tecido fora do sítio cirúrgico - sendo que, em seguida, verificando a impossibilidade de continuação da cirurgia com robô, o cirurgião remoto aciona a equipe local para conversão cirúrgica, mas as condutas emergenciais devidamente adotadas não são suficientes para evitar danos ao paciente. Nesse caso, a conduta do médico quando operava remotamente o robô foi a causa eficiente para a produção do dano. Imputa-se juridicamente as consequências dos danos ao paciente exclusivamente ao médico 1, cuja culpa acarretou o movimento imprevisível do robô. Além disso, não há solidariedade na responsabilidade do dever de reparar pelo médico 2. Isso porque, na hora da cirurgia, o médico 1 não é comandado por ninguém, tendo atribuição técnica totalmente distinta, possuindo autonomia, e mesmo integrando a equipe, opera remotamente o robô, não havendo por parte do cirurgião presencial nenhuma providência que possa ser tomada em relação ao próprio ato cirúrgico remoto com assistência do robô. O médico 1 e o médico 2 possuem trabalhos autônomos, cada um com sua regra de atuação, e um não participa ou influi no âmbito do resultado da atividade do outro. Contudo, ressalte-se que o médico 2 possui a responsabilidade pela assistência direta ao paciente e deve assumir a intervenção cirúrgica convencional (sem o robô) diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas. Por outro lado, partindo-se do mesmo exemplo supracitado, no qual foi configurada a culpa do médico 1 na telecirurgia, mas na hipótese de que as condutas emergenciais do médico 2 e equipe médica local também não foram devidamente adotadas ou ocorreu demora nesta conversão para a cirurgia tradicional, poder-se-ia considerar o fenômeno da concorrência ou concurso de causas (art. 945 do CC).25 Pode restar provado que uma condição do evento danoso - conduta do médico 2 e/ou equipe - foi elemento que contribuiu, de alguma forma, para a geração do dano ao paciente. Em eventual demanda indenizatória, caberá ao magistrado analisar duas questões:  1ª) se ambas as condutas - dos médicos 1 e 2 - concorreram para a produção do dano ao paciente; 2ª) se positiva a primeira resposta - verificada maior participação do médico 1 no evento lesivo -, em qual percentual se deu a participação de cada agente para a consecução do resultado lesivo. Assim, o julgador será capaz de repartir proporcionalmente os danos e, como no caso exposto, eventualmente reduzir o quantum indenizatório a ser pago pelo médico 2. Ressalta-se, por fim, que a causalidade múltipla não é excludente do nexo causal, mas uma forma de repartição de danos, a qual será delimitada conforme a apuração da contribuição causal de cada envolvido no episódio para o desfecho lesivo. Diante do exposto nestas breves reflexões, discutiu-se, sem a preensão de esgotar o tema, sobre a responsabilidade civil médica na cirurgia robótica e a solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução do Conselho Federal de Medicina, evidenciando, assim, a complexidade na forma de atribuição da responsabilidade civil entre os membros da equipe médica. ______________ 1 About da Vinci Systems. Disponível em: https://www.davincisurgery.com/da-vinci-systems/about-da-vinci-systems##. Acesso em: 02 abr. 2022. 2 SCHANS, Emma M. et. al. From Da Vinci Si to Da Vinci Xi: realistic times in draping and docking the robot. Journal of Robotic Surgery, v. 4, p. 835-839, dez. 2020. 3 FIORINI, Paolo. History of robots and robotic surgery. In: FONG, Yuman et. al (Ed.). The sages Atlas of robotic surgery. Cham: Springer, 2018, p. 1-14. 4 Operation Lindbergh - A world first in telesurgery: the surgical act crosses the atlantic!. Disponível em: https://www.ircad.fr/wp-content/uploads/2014/06/lindbergh_presse_en.pdf. Acesso em: 02 abr. 2022. 5 Brasil comemora 10 anos de cirurgia robótica. Disponível em: https://www.einstein.br/sobre-einstein/imprensa/press-release/brasil-comemora-10-anos-de-cirurgia-robotica. Acesso em: 02 abr. 2022. 6 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2311/. Acesso em: 28 mar. 2022.   7 Disponível em: https://www.kingsleynapley.co.uk/insights/blogs/blog-medical-negligence-law/heart-breaking-robotic-surgery-patient-dies-as-a-result-of-robotic-assisted-heart-surgery#page=1. Acesso em: 21 dez. 2021.   8 Neste período entre 2000 e 2013, foram realizadas 1,7 milhões de cirurgias robóticas. Adverse Events in Robotic Surgery: A Retrospective Study of 14 Years of FDA Data. Disponível em: https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1507/1507.03518.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.   9 Disponível em: https://www.nbcnews.com/health/health-news/da-vinci-surgical-robot-medical-breakthrough-risks-patients-n949341. Acesso em: 4 dez. 2021.   10 Disponível em: https://cvn.com/proceedings/rosenberg-v-21st-century-oncology-et-al-trial-2021-04-15. Acesso em: 12 dez. 2021.   11 Autos 0307386-08.2014.8.24.0023. Dessa sentença, foram interpostos recursos por ambas as partes, que, no dia 05.04.2022, ainda aguardavam julgamento pelo TJSC. Ao propósito do estudo sobre a referida decisão judicial brasileira, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.   12 MCLEAN, Thomas R. The Complexity of Litigation Associated with Robotic Surgery and Cybersurgery. The International Journal of Medical Robotics and Computer Assisted Surgery, v. 3, p. 23-29, fev. 2007.   13 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.   14 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Procedimentos cirúrgicos assistidos pelo robô Da Vinci: benefícios, riscos e responsabilidade civil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 9, n. 3, jul./set. 2020.   15 Proctor é o médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci.   16 PAGALLO, Ugo. The Laws of Robots: crimes, contracts, and torts. Londres: Springer, 2013, p. 88-94.   17 Disponível em: https://cbc.org.br/diretrizes-de-certificac%CC%A7a%CC%83o-em-cirurgia-robotica-2020/. Acesso em: 22 dez. 2021.   18 BHATIA, Neera. Telesurgery and the Law. In: KUMAR, Sajeesh; MARESCAUX, Jacques (coord.). Telesurgery. Londres: Springer, 2008, p. 175-181.   19 Disponível em: https://www.drleonardoortigara.com.br/artigos/o-panorama-da-cirurgia-robotica-no-brasil-em-2021. Acesso em: 5 abr. 2022.   20 CHOI, Paul J. Telesurgery: past, present, and future. Cureus Journal of Medical Science, v. 10, n. 5, maio 2018. Ao propósito do estudo mais aprofundado sobre os benefícios e riscos das cirurgias robóticas à distância, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e consentimento do paciente nas cirurgias robóticas realizadas à distância (telecirurgias). In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. (coord.). Telemedicina: Desafios Éticos e Regulatórios. Indaiatuba: Foco, 2022. [No prelo]   21 Disponível em: https://www.intuitive.com/en-us/about-us/company/legal/safety-information. Acesso em: 5 abr. 2022.   22 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.1, n. 2, p. 4-75, abr./jun., 2000.   23 A respeito das teorias sobre o nexo de causalidade, remeta-se a TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.6, n. 2, p. 3-19, abr./jun., 2001. Ademais, sobre a complexidade na aferição do nexo de causalidade em novas tecnologias na saúde, remeta-se a NALIN, Paulo; NOGAROLI, Rafaella. Perspectivas sobre ética e responsabilidade civil no contexto dos robôs inteligentes de assistência à saúde.  In: CAMPOS, Aline França; BERLINI Luciana Ferananda. (coord.). Temas contemporâneos de responsabilidade civil: teoria e prática. Belo Horizonte: D'Plácido; 2020. p. 61-94.   24 Discussão que paira na doutrina e frequentemente se observa na jurisprudência é sobre a possibilidade de solidariedade do médico-cirurgião pelos atos de demais membros da equipe médica, tal como um erro de médico auxiliar ou do anestesista. Sobre o tema: STJ, REsp 1790014/SP, j. 11/05/2021; STJ, EREsp 605.435/RJ, j. 2012   25 Ao propósito do estudo sobre teorias do nexo causal e a concorrência de causas, remeta-se às nobres lições de ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil - responsabilidade civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 462-513.
Os recursos resultantes do mundo tecnológico facilitaram e otimizaram as relações econômicas, a exemplo do pagamento das contas por plataformas, evento comum hodienarmente. Segundas vias de boleto, ou negociações financeiras podem ser facilmente realizadas pelo site da instituição financeira, por e-mail, ou até mesmo por WhatsApp. Todos esses artifícios são disponibilizados para que os consumidores tenham maior facilidade para realizar transações e honrar seus compromissos financeiros. O pagamento de contas por meio de boletos é uma das formas mais comuns utilizadas pelos brasileiros para saldar suas dívidas de forma rápida e segura. No entanto, o espaço virtual apresenta problemas de segurança, como na emissão de boletos ou qunado golpistas se aproveitam da fragilidade do sistema e se fazem passar pelas empresas, para obter vantagem econômica dos consumidores. Nesse universo de golpes cibernéticos, a indignação e frustração do consumidor lesado se mistura com a dúvida: quem vai arcar com os prejuízos sofridos? Com esse crescente número de casos de boletos falsos, os Tribunais estão se movimentando para criar um entendimento uniforme sobre o assunto. Não obstante, isso se mostra uma tarefa difícil aos julgadores. Nesse diapasão indaga-se, a responsabilidade nesses casos é da Instituição Financeira, que tem o dever de implementar políticas de segurança para evitar fraudes aos seus clientes? Ou, a responsabilidade é do cidadão médio, que se utilizou de meios não oficiais para tirar o boleto, não tendo o cuidado de conferir o beneficiário ao realizar o pagamento? Em casos de pagamento de boletos fraudados, salienta-se que a tutela jurídica enquadra-se  na relação de consumo, sendo entre a instituição financeira uma fornencedora (ofertante profissional de forma onerosa) de serviços e recursos e o cliente, como adquirente definitvo, conforme art. 3º, §2º e art. 2º. do CDC. Esses dispositivos e o enquadramento da atividade bancária como relação de consumo são ratificados pela súmula 297 do STJ, que dispõe que "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". Logo, é dever das instituições financeiras prover a segurança necessária no acesso e uso dos serviços para seus clientes dentro (ou até meso fora) de suas dependências, independentemente de ser virtual ou física. Considerando que o consumidor é sempre vulnerável (presunção absoluta) e na instrução probatório-processual é, em significativa parcela de casos, hipossuficiente, passa-se a analisar a responsabilidade do banco e a demonstração do nexo de causalidade entre o risco proveito e o dano sofrido pelo consumidor no caso de fraude de boletos, com base no art. 6º, inciso VIII, do CDC. Importante garantia assegurada ao consumidor, diante de flagrante hipossuficiência deste em relação às grandes instituições financeiras, é a inversão do ônus da prova em juízo, visando restabelecer o equilíbrio na instrução processual, amenizando a diferença de forças entre polos processuais. No caso em questão, a vulnerabilidade do consumidor não e apenas fática (socioeconômica), própria da relação de poder por parte do fornecedor, mas informacional e técnica, pois o desconhece o funcionamento sistêmica/funcional (o que pressupõe conhecimento técnico-científico), e a complexidade não permite acesso claro da informação sobre a oferta e uso do serviço. Em função das dificuldade sobre o domínio técnico e o acesso probatório sobre o funcionamento do sistema eletrônico de serviços bancários, cabe à instituição financeira o ônus da prova, devendo comprovar a existência, no caso concreto, das excludentes de responsabilidade previstas nos art. 12, §3º e art. 14, §3º, ambos do CDC, quais sejam:  demonstrar inexistência de defeito na prestação do serviço, ou comprovar que houve culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Nesse sentido, colaciona-se entendimento do TJ/DFT. In verbis: APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. BOLETO. EMISSÃO. MEDIANTE FRAUDE. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. 1. A instituição financeira tem o dever de zelar pela segurança do sistema e das informações de seus consumidores, empregando mecanismos que impeçam a atuação de fraudadores. 2. É objetiva a responsabilidade da instituição financeira que permite que terceiros acessem o seu sistema e obtenham informações privilegiadas acerca de débitos vencidos e não pago, bem como dos dados de contato do cliente, dos valores em atraso, entre outras informações, facilitando a emissão de boletos mediante fraude. 3. Recurso conhecido e desprovido. (TJ/DF 07383526820208070016 DF 0738352-68.2020.8.07.0016, relator: MARIA DE LOURDES ABREU, data de julgamento: 20/4/21, 3ª turma Cível, data de publicação: Publicado no PJe : 4/5/21 . Pág.: Sem Página Cadastrada). No entanto, logo ao lado do TJ/DFT, o TJ/GO esposa entendimento sobre a necessidade da apresentação de provas mínima de envolvimento ou facilitação do banco no ato delituoso, desconfigurando a responsabilidade de indenizar quando o nexo de causalidade não foi completamente visualizado. Nesses termos: EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONTRATO DE FINANCIAMENTO. INADIMPLÊNCIA. PREJUÍZO MATERIAL. PAGAMENTO DE BOLETO FALSO EMITIDO POR TERCEIRO ESTELIONATÁRIO. DANOS MORAIS. COBRANÇAS. ILICITUDE AFASTADA. I - Ausentes provas do envolvimento ou facilitação do banco apelante no ato delituoso, não se tem os requisitos completos da responsabilidade civil, afastando-se, outrossim, o dever reparatório material (ressarcimento), nos termos do art. 14, § 3º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor. II - O próprio autor confessa a inadimplência por 06 (seis) meses e, depois, mesmo tendo promovido o que achava ser a negociação da dívida, restou comprovado que o pagamento foi destinado ao estelionatário, continuando, pois, inadimplente, o que autoriza o credor a exercer seu legítimo direito de cobrança, não havendo, provas de excesso de ligações ou de pertubação exacerbada promovida pelo requerido a fim de se constituir o alegado dano moral, razão pela qual não cabe a referida condenação por ausência de ilicitude. SENTENÇA REFORMADA. APELO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ/GO, apelação cível 5441176.29.2019.8.09.0028, Rel. Maurício Porfírio Rosa, 2ª câmara Cível, publicado em 5/3/21) Também é importante salientar que a instituição bancária possui o dever de informar ao correntista quando há movimentações bancárias estranhas ao perfil do cliente e, quando isso não ocorre, resta configurada a má prestação de serviço por parte da instituição, isto é, a omissão do banco em avisar o cliente sobre movimentações estranhas em sua conta, gera responsabilidade. Logo, a entidade bancária falha em seu dever de resguardar os dados do correntista, permitindo que terceiros tenham acesso, o que oportuniza atos de estelionatários, que fazem crer são realmente agentes da Instituição, pois possuem todas as suas informações pessoais que apenas um funcionário do banco teria. Deve-se também considerar a responsabilidade de empresas intermediárias de pagamento online, frente aos golpes que vem ocorrendo em meio eletrônico, reconhecidas pela jurisidição civil, visto que ao permitir que qualquer indivíduo tenha a possibilidade de abrir conta em sua plataforma para receber pagamentos, passa a ser de sua responsabilidade o risco de possíveis fraudadores utilizarem de seus serviços. Ao permitir que qualquer pessoa emita boletos ao seu bel prazer, acaba por puxar a responsabilidade pelo risco do negócio desempenhado. É importante citar a súmula 479 do STJ, que trata sobre a responsabilidade objetiva das instituições financeiras por danos gerados por fortuito interno, relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros, no âmbito de operações bancárias. Conforme palavras da ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1.786.157/SP, as instituições financeiras são responsáveis em hipóteses de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito, desvio de recursos em conta corrente e clonagem, bem como falsificação de cartões e até mesmo assaltos em agências. Interessante é o acórdão recente do TJ/SC, ao julgar apelação do Banco Pan, requerendo a reforma da sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos da inicial para condenar o Banco a pagar R$ 15 mil a título de danos morais à autora, o relator desembargador Alexandre Morais da Rosa trouxe em seu voto o conceito de caso fortuito externo. Conforme dispõe o relator, o boleto pode ser emitido por qualquer pessoa, necessitando apenas dos dados do boleto, dados do emissor e do pagador. Para configurar culpa da instituição financeira, se mostra necessário que se verifique de forma direta ou indireta a participação da atividade bancária. Assim, consigna que "a mera alegação de que (a vítima) entrou em contato com o banco por meio do site e que recebeu o boleto falso por Whatsapp é insuficiente à demonstração do nexo de causalidade". Além disso, cabe citar diretamente o tópico sobre culpa exclusiva da vítima. In verbis: c.4) CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA: tratando-se de pagamento de boleto falso, é necessário analisar se houve participação (direta ou indireta) da atividade bancária, ou seja, se algum ato culposo pode lhe ser atribuída para além da compensação do pagamento efetivado por boleto. Se a parte autora utilizou os serviços online do banco réu, possui "logs" de uso do site do Banco, nos momentos respectivos, capazes de conferir suporte probatório mínimo. A mera alegação de que entrou em contato com o banco por meio do site e que recebeu o boleto falso por Whatsapp, é insuficiente à demonstração do nexo de causalidade. O fato de se dispor dos dados da parte autora decorre justamente de bancos de dados consultáveis por meio de OSINT (Open Source Intelligence), associados a consultas também públicas, dentre elas a do "Registrato" (https://www3.bcb.gov.br/registrato/login/). Hodiernamente existe divergência entre o entendimento dos Tribunais pátrios e, em cada caso ofertado para resolução jurídica, são analisados aspectos fáticos como falsificação grosseira, forma, obtenção de dados do cliente pelo fraudador, disponibilização de informações fraudulentas nos sites oficiais, cuidado mínimo do cliente. Muitas vezes o cliente entra no próprio site da instituição financeira, sendo o boleto falso emitido no ambiente supostamente seguro do banco, ou mesmo, quando o fraudador tem acesso aos dados pessoas da vítima, se passando pela instituição financeira, sabendo assim o número de prestações de um financiamento, o valor das parcelas e quais boletos estão em atraso. Em casos como esses, torna-se uma tarefa difícil aos Bancos demonstrar a ruptura do nexo de causalidade, sendo quase que certa a sua condenação ao pagamento de indenização. A realidade é que, para evitar ser vítima de fraude é necessária uma certa malícia do cliente, evitando assim a culpa exclusiva da vítima. Como demonstrado neste artigo, não são todos os casos que o nexo de causalidade será capaz de condenar a instituição financeira a indenizar os danos sofridos, podendo a vítima sair de um longo processo judicial sem nada nas mãos. Logo, não são em todos os casos que as instituições financeiras são responsáveis pelo dano sofrido pela vítima, especialmente se tratando de boletos fraudados em que a própria vítima não se utiliza das formas oficiais de comunicação e acaba por passar todos os seus dados aos fraudadores. Muitos bancos, em seus sites oficiais, oferecem instruções e dicas para minimizar os casos de fraude aos seus clientes. O SERASA, em sua plataforma também dispõe de dicas para que menos pessoas caiam nesse tipo de golpe. _____ 1 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 3 v. 3 KHOURI, PAULO R. ROQUE. Direito do Consumidor: contrato, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2021. 4 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 5 ZORZI, Caroline Carvalhaes. Responsabilidade civil por danos a clientes nas agências bancárias. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Vol. 58/2012. P.105-131. Out-Dez/2012. Disponível aqui.
A coibição da prática de sham litigation1, de advocacia predatória2 e de outros tipos de condutas cuja má-fé é a força motriz do ajuizamento de ação3 precisa ser desiderato do direito. E resultar em eficaz condenação (solidária ou isolada) do(a) advogado(a) que, visando objetivos desonestos, atue dessa forma ilícita. Afinal, tanto a atividade do Poder Judiciário não pode ser utilizada para fins espúrios, quanto não deve haver o consequente desrespeito aos direitos fundamentais e da personalidade dos prejudicados pelo ajuizamento. Em acontecendo, surge o dever de indenizar, o que deveria ser inexorável, mas não é o que acontece em elevado número de casos. E tal ocorre devido ao tratamento inadequado que tem sido dado para o equacionamento desse problema. Observe-se que nas fontes legais de onde poderiam brotar os melhores paradigmas4 existe parcimônia exagerada em adotar-se posicionamentos mais consentâneos com o adequado tratamento para essas situações. Já a jurisprudência, apegada ao que sua própria denominação sinaliza (do latim jurisprudentia, ou seja, o juris ligado a jus, significando justiça, está acompanhado de prudentia, a inferir cuidado5), em considerável número de decisões, tem se pautado em aplicar interpretação literal do inscrito no deficiente texto legal, um respeito exagerado à "letra fria" da lei, descurando do que se pode sinalizar como melhor justiça. Por isso, nessa área, há muitas decisões judiciais que se mostram inócuas para os objetivos esperados em termos de real responsabilização civil dos(as) advogados(as) lesantes. Os tempos pós-modernos demandam posicionamentos mais assertivos, com providências incisivas para enfrentar essas mazelas praticadas no meio social. Outro detalhe: não tem sido dada a devida atenção para o fato social de que, nas últimas décadas, vem diminuindo a remuneração (em percentual, considerada a causa) dos profissionais da advocacia. Essa circunstância fez surgir a denominada advocacia de massa e, com ela, a priorização da quantidade de causas/processos, com percebível queda no compromisso na qualidade do trabalho6 e aumento no risco de descambar para a advocacia predatória7. Não se pode ignorar a existência de situações caracterizadas pela busca intensa e incessante de encontrar ou mesmo gerar/criar causas para poder atuar em quantidade compensatória financeiramente. Nesse contexto, o trabalho profissional do(a) advogado(a) e sua respectiva responsabilidade civil apresentam muitas facetas, que abordaremos até alcançarmos mais especificamente a questão da sham litigation e/ou advocacia predatória, com suas graves consequências fáticas e jurídicas. Começa-se por referir que a Constituição Federal dispõe que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, mas nos limites da lei. Existe consenso quanto à primeira parte do dispositivo (indispensabilidade), mesmo que se considere haver exceções (confirmando a regra), as quais permitem à parte não se fazer acompanhar de advogado em determinadas causas (por exemplo, na participação em processos de menor valor em Juizado Especial ou em casos de determinados meios alternativos de solução de controvérsias, como a conciliação e a mediação pré-processuais). Idêntica consideração constata-se no tocante à prerrogativa da inviolabilidade do profissional quanto aos seus atos e manifestações que estejam ligadas à defesa judicial de seus clientes. Esta é uma condição considerada indispensável para o profissional, influindo diretamente no alcance e/ou preservação dos direitos de seu cliente, sendo que é componente relevante para o próprio regime democrático de direito. Importante atentar, entretanto, que a oportuna expressão "nos limites da lei" soa como advertência que suscita reflexões mais detidas. A primeira delas está na polêmica da responsabilidade civil do(a) advogado(a) na sua prestação de serviço para com os consumidores (standard e equiparados e para outros terceiros afetados) ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela lei 8.906/948 (combinada com o Código de Ética e Disciplina da OAB). Sem aprofundar essa discussão, sinalizamos que esse debate não justifica assumir que essas questões possam ser obstáculo para encontrar-se a melhor forma de equacionamento das situações práticas que surgem nessa área. Assim, avançando para o foco principal deste texto, aponta-se que na Lei nº 8.906/94, o caput do artigo 32 (que segue a linha do art. 2º e seus incisos) estabelece que: "o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa"9). Ora, essa norma não encontra dissonância significativa no CDC, que tem raiz constitucional e conforme seu art. 2º, é de ordem pública e interesse social (no dizer de eminentes doutrinadores, trata-se de lei principiológica10 ou de sobredireito11, a direcionar todo o sistema de proteção ao consumidor)12. Independente de qual corrente se adote (e até em Cortes Superiores são encontráveis posições divergentes13), em se tratando de responsabilidade civil do já referido profissional liberal, fica explícito que essas constatações apontam para uma excelente oportunidade de reconhecer-se o sentido de completude do sistema jurídico ou, em uma abordagem mais contemporânea, da aplicação de um profícuo diálogo das fontes14, tudo como forma para encontrar-se a solução mais justa para o caso concreto. Note-se que embora coexistam normas com redações até certo ponto diferentes, se bem analisadas, percebe-se que os textos delas não são excludentes, sendo que a pertinência para maior ou menor grau de utilização deve advir dos elementos encontrados no caso que esteja sob exame. Nesse contexto, na questão do aumento de sham litigation e/ou advocacia predatória e outras formas irregulares de adentrar em juízo, é capital analisar suas origens e respectivas características para, posteriormente, chegar-se ao respectivo exame da responsabilidade civil. Inicialmente, diga-se, não se pode "fechar os olhos" para as influências da cultura de leniência com procedimentos reprováveis (a moral e a ética foram aos poucos sendo relativizadas no convívio das famílias e na sociedade, alcançando também o meio jurídico). E mais, existe um fato social que não pode ser ignorado/desconsiderado, de haver aproximadamente um advogado para cada 170 habitantes15, algo surreal, que causa muita competitividade e incita excessos por parte daqueles menos afeitos ao cumprimento de normas ou regras éticas16. E por isso surgem esses casos de ausência de cumprimento do princípio da boa-fé. Na esfera da legislação, o que se tem e, lamentavelmente, ainda fundamenta muitas decisões judiciais é o parágrafo único do art. 32 da lei 8.906/94, que afirma textualmente: "em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria"17. Pois bem, note-se que independente de que para esse tipo de conduta, a multa prevista pelo art. 81 do CPC seja claramente módica (1% e 10% do valor dado a causa, sendo que somente em alguns casos pode chegar a 10 salários-mínimos), são equivocadas exigências como essa do(a) profissional ter de estar coligado(a) com cliente. E, pior, haver exigência de uma ação própria para repetir o que já transpareceu e foi reconhecimento em processo com sentença transitada em julgado. Na prática, essa exigência tem tornado inútil o restante do conteúdo do dispositivo, ou seja, essa responsabilização não acontece. Tacitamente, esses pré-requisitos acabam eliminando o que era a gênese da mens legis, se é que ela supostamente existia na mens legislatoris. Inclusive, é de se, respeitosamente, discordar da reforma por Instâncias Superiores (com base no art. 32 da lei 8.906/94), de sentenças de 1ª instância com condenação solidária do(a) advogado(a) que atuou de má-fé18, ocasionando que aqueles profissionais praticantes dos referidos ilícitos acabem protegidos ao ponto de impunidade. Não se pode compactuar com meios jurídicos que, direta ou indiretamente, instituam esse tipo de "blindagem", autêntico artifício que tem servido ao absurdo de retirar da norma a sua eficácia. Afinal, é ilógico - verdadeira incoerência - simplesmente desconsiderar o que já foi provado em processo e inserto na sentença judicial, tornando sem valor prático a verdade formal que atesta o ilícito (atuação de má-fé). Em autos com identificação dos fatos, do(s) autor(es) e de quem foi acionado injustificada e maliciosamente, basta então, em acréscimo, que a questão da má-fé do(a) advogado(a) tenha feito parte do contraditório e reste comprovada. Outro detalhe: a maioria dos lesados, depois de enfrentar um processo normalmente moroso e exaustivo para quem é inocente, não se dispõe a ajuizar essa ação própria (dispendiosa de tempo e dinheiro e com risco de improcedência, piorando a situação), sendo que, normalmente, o valor que poderá receber não compensará o desgaste. Assim, uma nova ação jamais deve ser pré-requisito para a condenação, mas sim, apenas uma faculdade da parte lesada visando que seja integral a reparação do dano sofrido. Essas constatações inferem que, tanto na lei, quanto nos reflexos dela na jurisprudência, precisam estar solidificadas disposições e interpretações que moralizem o tratamento dado nessas situações que denigrem a classe dos advogados, consomem recursos públicos e não conferem justiça às vítimas. Advogados(as) contam com o monopólio do registro na OAB, participam habitualmente das lides forenses as quais estão habituados, possuem nível de esclarecimento conferido por curso superior e têm proximidade e pessoalidade no trato da contratação. Na prática, então, são eles que direcionam a contratação e, na verdade, estabelecem os termos da ação que é ajuizada em nome do cliente, incluindo a narrativa dos fatos e a fundamentação19. Naturalmente, o(a) advogado(a) se vale das informações de seu constituinte, mas sabe que da ética profissional (vide o respectivo Estatuto) que coíbe a conduta de ajuizar lides temerárias, bem como de forma maliciosamente ser o agente e real criador delas. Atualmente, em relação às situações de sham litigation e/ou advocacia predatória, pode-se parodiar a célebre frase de Francisco Carnelutti e afirmar: "o advogado é o primeiro juiz da causa". Ao que se pode acrescer: "e, nestes casos de má-fé, ser o criador ou mentor principal dela". Ser acusado indevidamente, gastar para se defender, despender tempo em atos dentro e fora do Judiciário já representa fator indubitável de ocorrência de dano indenizável. E esse tipo de lesão não deve ficar tacitamente impune, escancarando uma injustiça pela qual o desonesto possa restar isento enquanto a vítima carrega seus prejuízos materiais e/ou morais. Importante deixar expresso que a imensa maioria dos(as) advogados(as) se porta dignamente, com probidade, integridade moral e ética, de modo que os corretos não merecem ver arranhado o conceito da classe por conta de condutas reprováveis de uma minoria que vem se mostrando cada vez mais ativa20. Reitera-se, então, a importância de eliminar essa fórmula que tacitamente conduz à impunidade. Se no processo judicial já ficou indene de dúvidas a comprovação da má-fé do(a) advogado(a) que, por sham litigation e/ou advocacia predatória foi condenado(a) isolada ou solidariamente ao pagamento de multa, o passo seguinte deve ser prosseguir-se nos mesmos autos até alcançar-se a reparação, tudo sem deixar-se de comunicar a OAB para o devido procedimento ético-disciplinar. E esta, em sendo fiel aos seus ideais e propósitos nunca deve proteger condutas impregnadas de má-fé, e sim, afastando falsos corporativismo, laborar por exemplar punição. Outro detalhe: a supressão na legislação (ou alteração da exigência em todos os casos) de realizar-se ação própria para a responsabilização do(a) advogado(a) não impede ou transmuta a aplicação da modalidade de responsabilização. Esta segue sendo subjetiva. Basta que no conjunto probatório tenha ficado indene de dúvidas a conduta ilícita (ato danoso), o dano (in re ipsa, decorrente da própria existência do processo) e o nexo causal acompanhado da intencionalidade do agente (culpa que caracteriza a má-fé), que a responsabilização de acontecer desde logo. Atente-se que toda decisão judicial (mesmo que em Primeira Instância) precisa estar fundamentada, de modo que, nesses casos, quando a fase de instrução já foi superada, obviamente, há que se considerar como demonstrado/comprovado o requisito culpa; caso contrário, tacitamente, estar-se-á anulando as conclusões que emergiram do conjunto probatório, bem como esvaindo a força da condenação. Exigir-se refazer, ou melhor, repetir tudo em novo processo no tocante a esses pontos, é um contrassenso, principalmente por conta de que a sentença não poderá ser simplesmente relegada à inutilidade e ser "desconfirmada" por outra que não é rescisória. E, acrescente-se, esses posicionamentos conferem concretude para o previsto nos artigos 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do CPC, jamais representando ativismo judicial (aproveitando a feliz expressão da Magistrada Henriqueta Lima: seria espécie de "racionalidade ética", pois a positividade precisa conter esse atributo21). Em momento no qual existe um intenso esforço institucional para tentar diminuir o número de processos tramitando no Poder Judiciário, é preocupante essa falta de atenção para o objetivo de buscar-se eficazmente coibir comportamentos protegidos pela exigência dessas ações próprias que apenas servem à manutenção (mesmo que temporária) da impunidade (incentivadora de novos ilícitos). A sham litigation, a advocacia predatória e outras condutas de má-fé são verdadeiras anomalias sociais que não podem contar com espaços para "chicanas" jurídicas dispostas a obstaculizar que, de fato, profissionais desonestos consigam se eximir das responsabilizações. Assim, urge uma mudança na legislação e, em paralelo, um posicionamento afirmativo da jurisprudência22, de modo que a responsabilidade civil nessa área se alinhe com os padrões mais consentâneos com a verdadeira Justiça. _____________ 1 Inicialmente, pode-se conceituar sham litigation como o exercício abusivo do direito de peticionar e demandar. (SILVA, André. Responsabilidade Civil do Advogado. E-book Kindle). 2 "A advocacia predatória é uma prática que infelizmente existe no nosso sistema de Justiça. Ela consiste no ajuizamento de ações em massa, através de petições padronizadas, artificiais e recheadas de teses genéricas, em nome de pessoas vulneráveis e com o propósito de enriquecimento ilícito". Assim definiu o juiz de Direito Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani, que atua na Vara da Fazenda Pública de Araraquara/SP, em entrevista concedida ao Migalhas (ADVOCACIA predatória: juiz explica modus operandi dos profissionais. Migalhas, 20 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022). 3 "Fabricar" causas imotivadas, acionando quem não merece, ou propositadamente incentivar conflitos judiciais com vistas a obter vantagens pecuniárias são, dentre outras, condutas de má-fé punível.  4 E, inclusive, uma espécie de paternalismo libertário mediante nudges, em prol de boas condutas. (THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. São Paulo: Objetiva, 2019. p. 113. E-book Kindle). 5 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1169. 6 Já existem escritórios de advocacia que perderam a característica de haver predominantemente o trabalho pessoal desses profissionais liberais nas prestações de serviços advocatícios aos seus clientes (relações de consumo), sendo que até escritórios menores costumam se valer de auxiliares (estudantes) que atuam como se fossem "técnicos jurídicos". Essas estruturas funcionam majoritariamente com estagiários não bacharéis (as quais atuam ao estilo "linha de montagem", inclusive copiando petições na internet, algumas até redigidas por leigos) e o advogado que os chefia somente assina ou posta no processo virtual, ou mesmo entrega a senha para o auxiliar fazer essa inserção do conteúdo. Por isso, independentemente de questões relacionadas ao direito postulado, em Juízo se pode encontrar peças que primam pela qualidade jurídica, mas também muitas (e que por ética não serão citadas aqui, mas cujos relatos são facilmente encontráveis no meio virtual) em que até o padrão da utilização da língua pátria (repleto de erros) aponta para o analfabetismo profissional do redator. Ou seja, a preocupação centra-se na quantidade de processos para garantir mais chance de rentabilidade. 7 Mesmo se sabendo que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90) prescreve que a responsabilidade civil para o advogado é de ordem pessoal (independente da responsabilidade da organização). 8 Na ementa do Acórdão 1317978, 07298762320198070001, em sede de julgamento em 24.02.2021, a Relatora, Des. Maria de Lourdes Abreu, da 3ª Turma Cível, afirma expressamente: "[...] 2. A responsabilidade civil do advogado é subjetiva, devendo ser apurada mediante a verificação da culpa, nos termos do disposto no artigo 32 da Lei 8.906/94, uma vez que não é aplicável o Código de Defesa do Consumidor às relações existentes entre os advogados e seus clientes [...]" (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. (3. Turma Cível). Autos nº 1317978, 07298762320198070001. Relator(a): Des. Maria de Lourdes Abreu, 23 de março de 2021. Disponível aqui.  Acesso em: 25 mar. 2022). 9 Vide BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 10 NERY JUNIOR, Nelson apud MARQUES, Claudia Lima. Proposta de uma teoria geral dos serviços com base no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 33, jan./mar. 2000. p. 84. 11 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 467. 12 Em complemento a esse aspecto, é oportuno mencionar que não convém afastar-se a importância da consideração quanto excludentes que afetam os requisitos previstos para toda e qualquer reparação, no caso, a existência de ato danoso (por ação ou omissão), dano e nexo causal a ligar um ao outro, restando a apuração da culpa conforme o já explicitado. 13 Sobre essas posições divergentes (umas considerando que para a responsabilidade civil do advogado se aplica o CDC e outras considerando que devem ser aplicadas as normas específicas para a advocacia, como a lei 8906/1994) vide TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método, 2014. p. 3223. E-book Kindle. 14 MARQUES, Claudia Lima (coord.). Diálogo das fontes: do conflito a coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 24-25. 15 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB). Institucional. Quadro da Advocacia. Quantitativo Total. Quadro da Advocacia regulares e recadastrados. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 16 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação. População do Brasil. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 17 O art. 33 da mesma lei determina o cumprimento rigoroso do Código e Disciplina que regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional, dentre outras obrigações. 18 Como exemplo, dentre muitas decisões que reconhecem expressamente a má-fé do profissional, mas equivocadamente aderem a exigência de ação própria, vide: TJSP - Apelação cível: 1016984-72.2019.8.26.0003. Disponível aqui. E também: TJ/MG (17. Câmara Cível). Apelação Cível 3133367-772011.8.13.0024. Disponível aqui. E também: Acessos em: 23 mar. 2022. 19 PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 34. 20 Envolvendo apenas 2 Comarcas de Pernambuco, Juiz extinguiu 3.488 processos visando coibir advocacia predatória. Disponível aqui. Acesso em: 26/03/2022. 21 LIMA, Henriqueta Fernanda Chaves Alencar Ferreira. Da judicialização da vida aos precedentes judiciais obrigatórios: uma análise do impacto na efetividade dos direitos da personalidade no Brasil. Rio de Janeiro: Processo, 2021. p. 327. 22 Como, exemplarmente, no Apelação Cível 1004729-42.2020.8.26.0005, TJ/SP. Disponível aqui. E na seguinte decisão de 11/03/2022, na qual, ex officio foi condenado solidariamente o patrono da recorrente (PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (16. Câmara Cível). Apelação 0000277-68.2020.8.16.0042. Relator: Des. Antonio Carlos Ribeiro Martins, 14 de março de 2022. Disponível aqui. Acessos em: 26 mar. 2022.  
Plataformas Digitais: Platforms ou Publishers? Um dos temas que mais tem despertado atualmente a atenção dos juristas e dos operadores dos sistemas de justiça mundo afora relaciona-se à responsabilidade civil das plataformas digitais pelo conteúdo das postagens realizadas por seus usuários, sobretudo por via das redes sociais.1 Os debates sobre o tema têm por premissa inicial a qualificação da natureza jurídica das plataformas digitais, com relevantes impactos sobre a imputabilidade e os limites de suas responsabilidades. Por um lado, sustenta-se que as empresas de tecnologia, ao disponibilizarem canais digitais para a inserção de dados por seus usuários, estariam atuando como meras Platforms, ou seja, como instituições neutras que tão somente permitem a comunicação e a distribuição de informações entre seus usuários, não tendo qualquer ingerência sobre o seu conteúdo ou procedência. Por outro lado, sustenta-se que referidas empresas, para muito além da disponibilização das plataformas digitais das redes sociais, acabam operando como autênticas Publishers, na medida em que possuem, por força de contrato ou da Lei, controles quanto ao conteúdo das postagens inseridas pelos consumidores, tendo poderes, inclusive, para a suspensão e para o cancelamento de contas dos usuários. Nesse sentido, nos Estados Unidos da América, ainda no ano de 1996, com o intuito de balizar o entendimento jurisprudencial das Cortes norte-americanas2 a respeito da natureza jurídica das plataformas digitais que hospedam redes sociais, uma importante inovação legislativa definiu as empresas provedoras de serviços interativos de computador como neutral platforms. Tratou-se da Section 230, incluída no Communications Decency Act (CDA) do U.S Code, por via da qual as companhias foram isentadas de responsabilidade quanto ao conteúdo publicado por usuários: "No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider".3 Contudo, apesar da caracterização legislativa norte-americana das empresas de tecnologia como platforms - meras hospedeiras do material inserido pelos usuários -, foi-lhes assegurada autonomia para moderar amplamente o conteúdo das postagens dos usuários. A contradição estava instaurada. Vale dizer, a bem da verdade, que a Section 230 originalmente serviu como escudo contra a imputabilidade de responsabilidade para os Provedores de Serviços de Internet (ISPs), em uma época na qual o acesso à internet era viabilizado pela contratação de empresas como a AOL e a CompuServe. A rede mundial de computadores acabava de ser inventada. Nessa conjuntura ainda rudimentar da internet, a regulação protetiva das plataformas online teve sua razão de ser, na medida em que ainda não se tinha ideia a respeito da projeção que a comunicação online viria a tomar.4 Nesse ambiente, o exercício do poder moderador a respeito do conteúdo postado pelos usuários das operadoras era visto como eventual e excepcional. Gradativamente, contudo, na exata medida da crescente repercussão da publicação de conteúdos considerados abusivos e do alcance de seus efeitos nocivos que instauraram um panorama de caos, tanto o Parlamento quanto o Poder Judiciário dos EUA passaram a questionar o entendimento até então consolidado sobre a natureza jurídica das plataformas digitais. A insuficiência e os riscos da autorregulação Como se percebe, trata-se de assunto extremamente polêmico cujas repercussões sobre o direito da responsabilidade civil são enormes. É fato que, para a utilização dos serviços das plataformas online, os usuários devem concordar com os "termos de serviço, política de privacidade e regras". A partir do "acordo de usuário do serviço" criam-se direitos e obrigações para provedores e usuários. Nos "termos de uso, serviços e políticas de conteúdo" divulgados por empresas de tecnologia como o Facebook/Meta, Instagram e o Twitter, é comum a descrição de que elas atuariam como neutral platforms, sendo os seus usuários cientificados acerca da sua exclusiva responsabilidade sobre os conteúdos postados - sobretudo por se tratar de mensagens pelos mesmos elaboradas, e que não representam a opinião das operadoras. Contudo, os provedores se reservam o direito de prever limitações quanto ao conteúdo e quanto a comportamentos permitidos na plataforma, sob pena de suspensão ou a cessação da conta, residindo justamente nessa espécie de poder moderador uma das maiores controvérsias a respeito da natureza dos serviços prestados pelas plataformas digitais. Diante das polêmicas envolvendo a contraposição entre o poder moderador exercido pelas empresas de tecnologia e exercício da liberdade de expressão, as próprias plataformas digitais passaram a criar mecanismos de autorregulação, como, por exemplo, a criação pelo Facebook/Meta/Instagram de um Comitê denominado Oversight Board, com vistas a garantir a liberdade de expressão por meio de uma mediação independente a respeito dos conteúdos postados. De acordo com o próprio Comitê, a finalidade de sua criação foi a de "ajudar o Facebook a responder a algumas das perguntas mais difíceis sobre o tema da liberdade de expressão: o que remover, o que permitir e por quê".5 Não obstante o reconhecimento da necessidade de uma autorregulação por parte das próprias plataformas digitais, inúmeras são as críticas a esse modelo, sobretudo na medida das desconfianças a respeito da independência e da neutralidade das empresas de tecnologia. O poder moderador - há muito atribuído às operadoras de internet, não apenas se revela insuficiente, como altamente questionável. Nunca é o bastante recordar que as redes sociais passaram a constituir fonte de informação primária para bilhões de usuários, sendo utilizadas inclusive como instrumento preponderante (senão único) de divulgação de informações oficiais de governos mundo afora. Não é exagero afirmar, assim, que as Big Techs passaram a dominar praticamente toda a infraestrutura de comunicação, desempenhando um papel de inegável interesse público.6 Como se percebe, a questão fundamental que se coloca diz respeito aos enormes perigos representados pelo controle privado do conteúdo das informações e das comunicações online, por parte de poucos e empoderados grupos corporativos, que passam, assim, a praticamente substituir o Estado na regulação da comunicação entre as pessoas.   Tal cenário aponta para a necessidade de uma adequada regulação pública, para além do aperfeiçoamento da autorregulação privada das plataformas digitais. Para tanto, novas arquiteturas de operação dessas empresas devem ser desenhadas e fiscalizadas, no intuito de compatibilizar o exercício de direitos e garantias individuais fundamentais (tais como a livre iniciativa e a liberdade de expressão), com interesses públicos notórios (tais como a proteção do sistema eleitoral democrático, da liberdade de imprensa e do dever de colaboração das plataformas digitais com os sistemas estatais de persecução criminal, dentre outros).7   Modelos de regulação pública: Online Safety Bill (Reino Unido) e Digital Services Act (União Europeia) Nesse sentido, ganha destaque o modelo regulatório proposto pelo Reino Unido por meio da Online Safety Bill, que objetiva a proteção e a segurança dos cidadãos na internet contra as diferentes categorias de online harms.8 A ideia central desse marco regulatório funda-se na estatuição de uma série de deveres e obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais (duty of care), fundamentados nos princípios da transparência, da confiança e da prestação de contas. Dessa forma, as plataformas digitais estariam submetidas a uma espécie de responsabilidade condicionada ao atendimento de referidas obrigações, cabendo o controle sobre sua atuação a organismos independentes, como o Office of Communications - OFCOM - entidade reguladora do governo britânico. Seguindo a mesma tendência do Reino Unido, foi aprovada pelo Parlamento Europeu o Digital Services Act - uma proposta regulatória da Comissão Europeia para a criação de um modelo único de serviços digitais dentro dos limites da União Europeia, com vistas à proteção dos usuários das plataformas digitais. A ideia é muito semelhante à da Online Safety Bill, na medida em que o marco regulatório propõe uma série de obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais, no contexto do qual "a transparência seria o elemento mais importante para atingir uma moderação de conteúdo eficiente".9 Conforme proposto pelo Digital Services Act, caberia a cada Estado-membro a designação de um Digital Services Coordinator, bem como a elaboração de relatórios de transparência e de boas práticas para modelos de auto e corregulação, a depender da natureza e do tamanho do provedor. A regulação das plataformas digitais no Brasil Seguindo as diretrizes da Section 230 do Communications Decency Act (CDA) do U.S Code (segundo as quais as companhias de tecnologia são, em regra, isentas de responsabilidade referentes ao conteúdo publicado por usuários), o Parlamento brasileiro editou a lei Federal 12.965/2014 (o Marco Civil da Internet) que também isenta de responsabilidade, em regra, os provedores de conexão à internet relativamente ao conteúdo gerado por terceiros. A partir da entrada em vigor da referida legislação, grande controvérsia se estabeleceu em torno da (in)constitucionalidade do seu artigo 19, que condiciona e restringe a incidência da responsabilidade civil dos provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais, ao desatendimento de ordem judicial específica, que determine a exclusão do conteúdo ilícito e lesivo postado. Ou seja, a responsabilização se daria tão somente pelo controle da retirada da publicação, mas não pelo seu conteúdo. Como não é difícil perceber, trata-se de alteração do regime jurídico até então vigente sobre o tema que vai na contramão da proteção das vítimas. Os ônus econômicos e temporais impostos às pessoas lesadas por conteúdos postados nas redes sociais - decorrentes da necessária judicialização prevista pelo art. 19 da lei 12.965/2014 - são notoriamente incompatíveis com a concepção de tutela adequada dos direitos fundamentais (tais como a vida privada, a honra e a dignidade), sobretudo quando se recorda a necessidade de serem preservados preventivamente. O modelo atualmente previsto pelo referido dispositivo legal acarreta às vítimas não só maior tempo de exposição aos danos, como também o seu agravamento.   É interessante notar que a orientação jurisprudencial de nossos tribunais, construída anteriormente à edição do Marco Civil da Internet, revelava-se menos hostil às vítimas, na medida em que lhes permitia notificar direta e extrajudicialmente os provedores, instando-os a retirar as informações difamantes postadas por seus usuários.10 De forma diversa, o regime jurídico reconstruído pela redação conferida aos artigos 18 e 19 da lei 12.965/2014, sutil e silenciosamente, implicou uma total reconfiguração da natureza jurídica dos provedores, requalificando seu status. Com efeito, na medida em que se condiciona a imputação de responsabilidade civil à desobediência à uma prévia ordem judicial, o legislador brasileiro simplesmente desonerou as empresas provedoras de qualquer obrigação de valorar o conteúdo veiculado na internet por seus usuários. Isso implica, na realidade, no reconhecimento legislativo de que os provedores de internet passaram a ser considerados meras neutral platforms.    Trata-se de uma profunda alteração do status jurídico direcionado às empresas de tecnologia que, para além dos já referidos efeitos nocivos à adequada proteção das vítimas, imuniza as operadoras, garantindo-lhes, na prática, um regime de plena irresponsabilidade civil sobre todo e qualquer conteúdo ilícito e lesivo postado por seus usuários - a menos que descumpram ordens judiciais para a supressão do conteúdo lesivo. Por tudo isso - e apesar desse novo regime jurídico que os artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet concede às operadoras -, é preciso ponderar se o ordenamento jurídico nacional viabiliza outras soluções que, quando menos, compatibilizem e estabilizem os diversos interesses em jogo.  Nesse sentido, é preciso lembrar que as empresas de tecnologia não são proibidas de, diante de conteúdos reputados abusivos ou ofensivos inseridos em suas plataformas, excluí-los unilateralmente. Aliás, a se recordar a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas (já corroborada no Brasil por precedentes do Supremo Tribunal Federal), tratar-se-ia não de mera faculdade, mas de verdadeira obrigação imposta às empresas de tecnologia no intuito de garantir a incolumidade dos direitos humanos essenciais.11    O exercício desse poder-dever das empresas de tecnologia desafia ainda maiores discussões acerca dos limites da moderação a ser desenvolvida pelas plataformas, até mesmo em função das expressas condições estabelecidas nos contratos firmados com seus usuários. De fato, nos contratos de adesão dos usuários às redes sociais, invariavelmente são reguladas as políticas de uso e de acesso aos serviços, assim como a previsão de limitação quanto aos tipos de conteúdo e comportamentos permitidos na plataforma. Dessa forma, se há efetivamente um modelo de triagem prévia a respeito do conteúdo e alguma forma de ingerência do seu fluxo - pelos quais as plataformas podem selecionar o conteúdo postado por seus usuários -, parece evidente que se está a admitir o exercício de um poder moderador cujos critérios de funcionamento, apesar de ainda bastante obscuros, escancaram não apenas a possibilidade técnica do exercício do controle de conteúdos como, também, a viabilidade de sua responsabilização.12 Para MARTINS, "a partir do momento em que o provedor intervém na comunicação, dando-lhe origem, escolhendo ou modificando o conteúdo ou selecionando o destinatário, passa a ser considerado responsável, pois a inserção de conteúdos ofensivos constitui fortuito interno, ou seja, risco conhecido e inerente ao seu empreendimento. Conclui-se, dessa forma, ser objetiva, com fundamento no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade pelo fato do serviço do detentor do site."13 Apesar disso, a interpretação literal dos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet aparentemente autoriza as empresas de tecnologia a se furtarem dos ônus decorrentes do controle dos conteúdos inseridos por seus usuários, sob a alegação de que não deteriam competência para efetuar qualquer tipo de juízo de valor sobre os mesmos - atribuição essa que competiria prévia e prioritariamente ao Poder Judiciário.  Por tal motivo, é de enorme relevância a definição, por parte do Supremo Tribunal Federal, do regime de responsabilidade civil dos provedores de internet, no âmbito do julgamento de dois temas de repercussão geral já fixados. A respeito desses temas, foi designada audiência pública objetivando aprofundar as discussões para o enfrentamento da (in)constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, através do sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos.14 Trata-se de ponderar, antes de tudo, a respeito de como direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, podem e devem ser adequadamente protegidos não apenas pelo Estado, mas também pelas próprias empresas de tecnologia, contra o uso indiscriminado das redes sociais como instrumento de vilipêndio de valores inatos à humanidade, como a saúde, a vida, a democracia e a verdade. *Thais Pascoaloto Venturi é doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil - IBERC. __________ 1 Redes sociais: plataforms ou publishers - Parte I. Disponível aqui. Acesso em 14 de março de 2022. 2 Destacam-se dois conhecidos precedentes: Cubby, Inc. v. CompuServe, Inc. U.S. District Court for the Southern District of New York - 776 F. Supp. 135 (S.D.N.Y. 1991) October 29, 1991. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. Vide, ainda, Stratton Oakmont, Inc. v. Prodigy Services Co. Supreme Court, Nassau County, New York, Trial IAS Part 34. May 24, 1995. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 3 47 U.S.C. § 230, (c)(1) 4 Atualmente existem 19 propostas legislativas para a alteração da Section 230: 1.Justice Against Malicious Algorithms Act of 2021 (H.R. 5596); 2.A bill to repeal Section 230 of the Communications Act of 1934 (S. 2972); 3.Federal Big Tech Tort Act (H.R. 5449); 4.The Accountability for Online Firearms Marketplaces Act of 2021 (S.2725); 5.Health Misinformation Act of 2021 (S. 2448); 6.Preserving Political Speech Online Act (S. 2338); 7.The Disincentivizing Internet Service Censorship of Online Users and Restrictions on Speech and Expression Act (DISCOURSE) (S.2228); 8.Protect Speech Act (H.R. 3827); 9. Safeguarding Against Fraud, Exploitation, Threats, Extremism and Consumer Harms (SAFE TECH) Act (H.R. 3421; companion bill to S.22); 10. 21st Century Foundation for the Right to Express and Engage in Speech Act (21st Century FREE Speech Act) S. 1384; 11.Protecting Americans From Dangerous Algorithms Act (H.R. 2154); 12. Stop Shielding Culpable Platforms Act (H.R. 2000); 13.Platform Accountability and Consumer Transparency (PACT) Act (S. 797); 14. Abandoning Online Censorship (AOC) Act (H.R. 874); 15. Safeguarding Against Fraud, Exploitation, Threats, Extremism, and Consumer Harms (SAFE TECH) Act; 16. See Something, Say Something Online Act of 2021 (S. 27); 17. Curbing Abuse and Saving Expression in Technology (CASE-IT) Act (H.R. 285); 18. Protecting Constitutional Rights From Online Platform Censorship Act (H.R. 83); 19. Earn it  act. 5 O Comitê analisa casos emblemáticos e determina se as decisões do Facebook foram tomadas de acordo com os valores declarados na plataforma, destacam-se os seguintes casos: Caso de confinamento e Covid19 - 2021-008-FB-FBR - Disponível aqui; Caso de câncer de mama - 2020-004-IG-UA - Disponível aqui; Caso Ayahuasca - 2021-013-IG-UA - Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 6 BOWERS, John, ZITTRAIN, Jonathan. Answering impossible questions: content governance in na age of disinformation. Harvard Kennedy School Misinformation Review, v.1, Issue 1, January, 2020.   7 KLONICK, Kate. The New Governors: The people, rules and processes governing online speech. Harvard Law Review. V. 131, pp. 1598-1670, 2018.     8 Disponível aqui. Acesso em 15 de março de 2022. 9 Disponível aqui. Acesso em 16 de março de 2022. 10 REsp 1175675/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 09/08/2011. 11 A respeito do tema, vide nossa coluna A state action doctrine norte-americana e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil, publicada em outubro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 12 Nesse contexto, afirmou o Ministro Luiz Felipe Salomão que "a alegada incapacidade técnica de varredura das mensagens incontroversamente difamantes é algo de venire contra factum proprium, inoponível em favor do provedor de internet (REsp n. 1.306.157/ SP, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/12/2013, Dje 24/03/2014). 13 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3 ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 434. 14 "Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da lei 12.965/2014 que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. (RE 1.037.396-SP, Ministro Relator Toffoli). E o Tema 533 - Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. (RE 1.057.258-MG, Relator Ministro Luiz Fux)."
Introdução O reconhecimento dos filhos e suas implicações estão muito além das previsões do Código Civil, em relação, por exemplo, à guarda (em termos de proteção, art. 1.583, CC/02), ou à proteção àqueles, havidos ou não, da relação de casamento (art. 1.596, CC/02), ou ainda na condição de herdeiros necessários (art. 1.845, CC/22). O respeito e sua dignidade, dos pais com aqueles, o cuidado, sua valoração, estão previstos pelo Direito Constitucional e também infraconstitucional. Sobre o ser humano e a importância da família, a doutrina ensina no sentido de que: "é certo que o ser humano nasce inserto no seio familiar - estrutura básica social - de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal".1  Já em relação ao objeto do Direito de Família, aquele recai justamente sobre a família.2 É justamente por ver o filho, no seio familiar e inserido por seus pais, que entendemos pela necessária formação e existência de um ambiente mínimo de respeito e de sua valorização, promovendo seu desenvolvimento na condição existencial de filho. Por outro lado, situações ocasionadas pelos genitores que venham a apagar aquela condição ou situação, através do fato abandono afetivo, fazem nascer a discussão relativa às reparações civis, estas que, em termos de causa de pedir e pedido, devem buscar e contextualizar um olhar constitucional sobre o tema, em termos de preservação da dignidade daquela situação existencial, como forma de promoção interna e externa da família e dos filhos, como passaremos a sustentar neste breve texto. Como ensina Paulo Bonavides sobre o conceito de direito constitucional, este se revela "[...] mais pelo conteúdo das regras jurídicas - a saber - pelo aspecto material - do que por efeito de aspectos ou considerações formais, dominantes historicamente [...]".3 1. Família, pessoa constitucional, os Códigos e os filhos Desenvolver-se como integrante de uma família, ver o respeito, a valorização da condição de filho (a), pelos pais, estes que, por sua vez, estão sob a mira da Constituição para com seus filhos é, em uma primeira análise, valorizar a dignidade da pessoa de cada um deles, justamente por uma série deveres impostos constitucionalmente. De sorte que desta breve reflexão, entendemos que existe, em um primeiro momento, uma conversa interna entre a própria Carta em relação à família e a dignidade de cada integrante.4 Cumprir com a norma constitucional, em especial no que toca à família, enquanto deveres constitucionais naquele texto inserido é, com certeza, como antes afirmamos, valorizar os filhos (as) enquanto seres humanos que são.5 Do primeiro diálogo partimos então para o segundo: dos Códigos para a Constituição, pois aqueles devem estar em sintonia com aquela; da Carta não podem desviar-se. No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente faz previsão de direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes (arts. 3º,6 15,7 178 e 189) bem como sobre deveres da família para com aqueles (art. 4º, caput). Portanto, a lei exige as condutas lá descritas, assim como o Código Civil, por sua vez, também trata sobre deveres dos pais, como o sustento, a guarda e a educação dos filhos.10 Das normas antes citadas, percebe-se, claramente, explicitamente ou implicitamente, um dever dos pais (e não apenas destes), de respeito, de tratamento digno às crianças e aos adolescentes. O fato é que tais deveres estão positivados e capitaneados pela Carta. 2. Abandono afetivo: dignidade e ordenamento Recentemente, tivemos a oportunidade de nos posicionarmos acerca de uma visão mais ampla da responsabilidade civil no Direito de Família, buscando ver a pessoa humana como norte, justamente pelo princípio da dignidade, para além e para com os Códigos.11 Os Códigos não preveem tudo; não são um manual quando se fala dos novos rumos da responsabilidade civil, esta, que vem sendo tratada como verdadeiro direito de danos. Se existe uma luta pelo respeito ao ser humano em termos de sua existencialidade, também há casos de desrespeito, de negação e, quando isso ocorre na forma do abandono afetivo, a Carta deve responder adequadamente ao fato, em conjunto com as normas infraconstitucionais trazidas nestas linhas. 3. Conclusão O amparo, o cuidado, o respeito e a valorização dos filhos por seus pais é, em nossa ótica, instrumento que os auxiliam no seu desenvolvimento pessoal, o que, como consequência, contribui para a felicidade no núcleo familiar, enquanto seres individualizados, mas, não por isso desconectados dos seus pais e mães: muito pelo contrário. O Direito Constitucional prevê a família e, formada por cada integrante, caso negada a condição de filho pelo pai ou pela mãe, violado o princípio da dignidade da pessoa humana pois, negada sua condição existencial de filho, o que fundamenta a ação de reparação de danos imateriais neste sentido, eis que, para fins de direito privado, há, assim entendemos, violação a direito da personalidade, justamente pela impossibilidade de projeção da condição de filho para dentro da família e também externamente, no meio social inserido. O entendimento trazido nestas linhas procura estabelecer a relação jurídica entre pais e filhos, enquanto o necessário respeito daqueles a estes, por força de uma interpretação constitucional do direito civil, à luz das normas constitucionais e infraconstitucionais mencionadas. De sorte que as lições de Anderson Schreiber, por analogia ao o que defendemos, vão no sentido de que "[...] as normas constitucionais podem e devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares".12 Apenas como exemplo, a título de complementação da norma do art. 18 (antes transcrito), do ECA, abandonar um filho, em nosso atendimento, é também repugnante, aos olhos de sua situação existencial de ser humano e também de ser filho. Será que, inexistir um filho para o pai ou mãe é se entender como um fato normal da vida? Em nosso entendimento, daí resulta a objetividade de reconhecimento de sua situação existencial que é violada justamente pelo abandono, configurando o ato ilícito,13 passível de reparação por danos imateriais,14 nos termos da Constituição15 e do Código Civil. As repercussões serão negativas, a ser analisadas a cada caso concreto, servindo, inclusive, de critérios para a quantificação do dano extrapatrimonial. ____________ ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. ________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. lei 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível aqui. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. ____________ 1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 33. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 34. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 34. 4 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]. 6 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 7 Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. 8 Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. 9 Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 10 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...] IV - sustento, guarda e educação dos filhos; [...]. 11 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021. 12 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 53.   13 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 14 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 15  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...].
Neste fim de semana foi determinada pelo STF a suspensão temporária do o aplicativo Telegram no Brasil. O pedido proveio da Polícia Federal, por meio da Petição 9.935 do Distrito Federal.1 O fato foi amplamente noticiado, inclusive no exterior.2 Os fundamentos da ordem judicial foram, essencialmente, dispositivos do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14, doravante MCI), tendo sido aplicada a sanção da suspensão temporária dos serviços uma das sanções, prevista no artigo 12, inciso III, do MCI. Portanto, não houve "bloqueio" do serviço, mas uma mera suspensão temporária, dentre outras medidas. Majorou, ainda, o STF a multa diária para 500 mil reais ao Telegram em caso de descumprimento e 100 mil às "pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo Telegram." 3   Não tardou e o famoso CEO da empresa, Pavel Durov, publicou em seu Twitter um pedido de "desculpas pela negligência", afirmando que os e-mails teriam sido enviados a endereços eletrônicos não usados na atualidade, e que tomariam providências para contribuir com as autoridades brasileiras, etc., pedindo para que a ordem não fosse cumprida e prometendo inclusive um escritório de representação no Brasil.4 O presidente chamou a decisão de inadmissível e a Advocacia Geral da União rapidamente peticionou nos autos da ADIn 5.557, que julga a constitucionalidade ou não dos bloqueios de serviços de mensagens como o Whatsapp pelo descumprimento de ordem judicial, requerendo interpretação conforme à constituição do art. 12, inciso III e IV, para assentar que as penalidades ali previstas não possam ser impostas por inobservância de ordem judicial.  O Telegram respondeu e, em decisão posterior, o Ministro Moraes deu mais 24 horas para cumprir integralmente as determinações judiciais do STF, em resumo, indicação, em Juízo, de representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica), prestação de informação "de todas as providências adotadas para o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorrerem nas mencionadas condutas" e exclusão de alguns conteúdos e canais de comunicação com conteúdo ilícito.  As ordens judiciais de agora divergem em muito da primeira decisão a se tornar nacionalmente conhecida, proferida por um juiz criminal em Lagarto, Sergipe, que determinou a suspensão do Whatsapp (com a prisão do CEO do Facebook na América Latina à época), no ano de 2.016, por não fornecer informações protegidas pela criptografia ponta a ponta de um grupo de pessoas em que supostamente combinavam a prática de crimes. A decisão ensejou a propositura da ADPF 403,5 cujo julgamento conjunto com a ADIn 5.527 está suspenso por voto vista do próprio Ministro Alexandre de Moraes.  Ali, a problemática central diz respeito à possibilidade (e proporcionalidade) de determinação de bloqueio pelo não fornecimento de informações pessoais de usuários, nos termos do art. 10 e 11 do MCI, pois protegidas pela "criptografia ponta a ponta". Curioso salientar que o Executivo Nacional, à época pelo Ministério da Justiça, defendeu a constitucionalidade da lei, salientando que seria um abuso permitir a ausência total de controle a qualquer provedor de aplicação de mensagens. Em sentido semelhante, a Procuradoria da República naquele momento, asseverando que - outro ponto central da discussão naqueles autos - seria constitucional a determinação judicial de fornecimento de metadados. Além disso, o próprio Ministro Fachin, no voto da ADPF 430, advertiu preliminarmente: "a solução proposta por este voto não abrange outros debates já submetidos à pauta deste Tribunal, como a questão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei 12.965, de 2014, ou Marco Civil da Internet (RE 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli, Tema 987)."  Aliás, a conclusão do voto do Ministro Fachin é diversa daquela agora requerida pela AGU na atualidade (a qual vai além do próprio pedido da ADIn 5.527). Isto porque, concluiu o ministro que caberia [...] declaração a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto parcial sem redução de texto tanto do inciso II do art. 7º, quanto do inciso III do art. 12 da lei 12.965/14, de modo a afastar qualquer interpretação do dispositivo que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet.6 Declaração parcial de nulidade sem redução de texto e interpretação conforme são técnicas de interpretação no controle de constitucionalidade aparentemente similares, mas, na verdade, são faces distintas da mesma moeda. Isto porque, sinteticamente, a interpretação conforme pode ser vista como técnica de interpretação e princípio de interpretação no controle de constitucionalidade. Como primeira, genericamente, constitui eventual fundamento para uma leitura conforme a Constituição de um dispositivo. Assim, como técnica de interpretação no controle, dá ao intérprete a possibilidade de, dentre todos os significados possíveis, somente uma  interpretação (ou mais de uma a ser indicada expressamente) de determinada regra seja considerada constitucional. Por seu turno, a técnica da declaração de nulidade parcial sem redução do texto, significa, em suma, que, dentre todos os sentidos possíveis de uma norma, somente um deles soja considerado inconstitucional pelo intérprete.7   Assim, o pleito da AGU na Pet. 9.555 é radicalmente diverso do que foi pedido inicialmente na própria ADI 5.557. A atual AGU quer que o STF determine que somente um sentido seja válido, ao passo que os próprios propositores da ADI pleiteiam que somente um sentido seja considerado inválido. Portanto, nos termos da atual AGU, as sanções do artigo 12, incisos III e IV, do MCI não poderiam decorrer, em hipótese alguma, do descumprimento de ordem judicial.8  Uma temeridade, já que, como lecionam Felipe Medon e Isabela Ferrari: "Ninguém é a favor de suspender a comunicação de milhares de usuários. Os bloqueios são a ultima ratio, [...]: é uma tentativa desesperada, em muitos casos, de fazer cumprir uma decisão que pode salvar vidas."9 Nesses tempos de guerra, é triste a notícia do filho que vivia na Ucrânia, contou ao pai na Rússia estar sendo alvo de bombardeios e escutou: "Pare de mentir, é só uma operação especial."10 Após descoberta a vacina, durante a Pandemia, a desinformação sanitária chegou a níveis assustadores. Quantos mais enterraremos por "não acreditar"? Mas muitos devem estar se perguntando: qual a relação disso com a responsabilidade dos provedores de redes sociais por conteúdo inserido por terceiros? Toda, já que, hoje, o artigo 19 do MCI será resolvido na esfera da constitucionalidade. Primeiramente, deve-se ter em mente que a Internet e todos os protocolos lógicos que a compõem são fruto de um ambiente descentralizado, onde uma minoria de engenheiros criou originalmente um "mundo a parte" em que se acreditava a ausência de intervenção do Estado como solução.11 Mas, hoje, décadas depois, vai se tornando paulatinamente mais evidente a cada dia a visão esboçada por grande parte da doutrina: espaço de "independência" da jurisdição não existem, são fruto de uma visão ideológica, mitológica que fingem desconhecer que a Internet é palco de violações desta mesma "liberdade" que acreditam ser absoluta e ilimitada.12 E mais: aos poucos se desmontam os tabus de que, para o cumprimento da lei, não seriam constitucionais determinações que atinjam a esfera lógica (filtros de conteúdo e recurso a inteligência artificial, por exemplo) ou a esfera física (backbones). É mais que necessário que os provedores de aplicação desenvolvam seus modelos de negócio (em exercício, portanto, do direito fundamental à liberdade de iniciativa econômica) em respeito a outros direitos fundamentai. Nelson Rosenvald leciona que responsabilidade é um termo polissêmico, razão por que ser condenado a pagar uma indenização (liability) é o último assunto a se falar. A responsabilidade civil nesses tempos globalizados convive com anglicismos com a dimensão moral da responsability, a assunção dos deveres jurídicos de accountability, e a capacidade da empresa em explicar por que tomou ou deixou de tomar determinada providência (answerability).13 E as práticas de compliance e due diligence servem para mostrar, na prática, que o negócio onde potencialmente haverá agentes causadores dos danos está manejando de modo a, ao menos, que se tente evita-los. O provedor de mensagens privadas que é o segundo mais usado no Brasil tem mecanismos eficazes para combater práticas como pedofilia, neonazismo e venda de comprovantes falsos de vacina, por exemplo? Não. A empresa compre com alguma política de conteúdo, contra crimes de ódio, crimes contra crianças e adolescentes, estelionatos e outras falsidades? Não. Foi intimada judicialmente para o cumprimento de decisões judiciais da mais alta Corte do país, para bloqueio de uma série de perfis e retirada de canais, cumpriu a decisão em prazo razoável? Não, sequer se obteve resposta. Até o CEO reconheceu publicamente que na instituição faltou due diligence é necessário compliance. Este episódio, inclusive, revela uma certa mudança de mentalidade no tema da responsabilidade dos provedores. A lógica do art. 19 do Marco Civil é a de que, para proteger a liberdade de expressão, só ordem judicial com o link específico, prazo razoável e nas "possibilidades técnicas" dos provedores pode ensejar a responsabilidade (liabilty). São tantas exceções que é quase uma peça em defesa dos provedores. Enquanto isso, em nome da "liberdade de expressão", o Brasil é chamado de "Disneylândia do Neonazismo."14 Nos últimos tempos, a compreensão crescente de que algo deve ser feito tem chegado aos Tribunais Superiores. Como exemplos recentes dessa tomada de consciência, a decisão do STJ sobre publicação ofensiva envolvendo menor de idade, concluindo ser  "insuficiente a aplicação isolada do art. 19" do MCI, "o qual, interpretado à luz do art. 5º, X, da CF, não impede a responsabilização do provedor de serviços por outras formas de atos ilícitos, que não se limitam ao descumprimento da ordem judicial a que se refere o dispositivo da lei especial." 15 Nessa esteira, o STF e o TSE estão fechando o cerco contra as chamadas "milicias digitais", que atuam com modus operandi ao que chamamos de "censura reversa". Uma coisa é isoladamente uma pessoa mentir, outra é uma organização mantida ostensivamente para se dirigir e divulgar notícias fraudulentas, transpassando o ilícito individual para atingir a coletividade e o próprio regime democrático. Tanto é assim que, ao final da elaboração desse texto, noticiou-se que o TELEGRAM cumpriu a integralidade da decisão e o STF a revogou,16 tendo sido importante o fato para incrementar a proteção da pessoa humana e reforçar a necessidade de se repensar o "safe harbor" aos provedores do art. 19, do MCI. ____________ 1 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. 2 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022. 3 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022. 4 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. 5 ADPF 430/SE. Voto do Relator Ministro Luiz Edson Fachin. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022. 6 Ibidem, p. 73. 7 Cf. STRECK, Lênio et alli. (coord.). Curso de Direito Constitucional. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.  p. 808. 8 Nos seus estritos termos: "[...] a merecer juízo de interpretação conforme, nos termos do exposto e do periculum in mora demonstrado, requerer seja proferida decisão cautelar, ad referendum do Plenário, para fixar interpretação conforme à Constituição ao art. 12, III e IV, da Lei nº 12.965/2014, para assentar que as penalidades nele previstas não podem ser impostas por inobservância de ordem judicial." P. 12. 9 MEDON, Filipe; FERRARI, Isabella. Bloqueios de aplicativos: o que realmente está em jogo na ADIn 5.527 e na ADPF 403 é o direito à criptografia de ponta-a-ponta. Migalhas, 19/05/2020. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022. 10 HOPKINS, Valerie. Ukrainians find that relatives in Russia don`t believe it is a war. The New York Times, Nova Iorque, 06/03/2022. Disponível aqui (acesso em 19/03/2021). 11 Cf. BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Davos, Switzerland, 8 feb. 1996. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2022. 12 Cf. RODOTÀ, Stéfano. Il mondo nella rete: quali diritti, quali vincoli? Roma: Laterza, 2014. p. 5. 13 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas, 06/11/2020. Disponível aqui. Acesso em 20/03/2022. 14 COSTA, Íris. Brasil é o país onde o extremismo de direita mais avança, aponta estudo. UOL, 27/02/2022 Disponível aqui (acesso em 21/03/2022). 15 DIREITO CIVIL, INFANTOJUVENIL E TELEMÁTICO. PROVEDOR DE APLICAÇÃO. REDE SOCIAL. DANOS MORAIS E À IMAGEM. PUBLICAÇÃO OFENSIVA. CONTEÚDO ENVOLVENDO MENOR DE IDADE. RETIRADA. ORDEM JUDICIAL. DESNECESSIDADE. PROTEÇÃO INTEGRAL. DEVER DE TODA A SOCIEDADE. OMISSÃO RELEVANTE. RESPONSABILIDADE CIVIL CONFIGURADA. [...] 1.2. Para atender ao princípio da proteção integral consagrado no direito infantojuvenil, é dever do provedor de aplicação na rede mundial de computadores (Internet) proceder à retirada de conteúdo envolvendo menor de idade - relacionado à acusação de que seu genitor havia praticado crimes de natureza sexual - logo após ser formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente de ordem judicial. [...] (REsp 1783269/MG, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 18/02/2022) 16 LOSEKANN, Marcos; RODRIGUES, Mateus. Telegram cumpre decisões, e Moraes revoga ordem de bloqueio do app em todo o país. G1, Brasília, 20/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 20/03/2022.
Diferentemente do que ocorre em monopólios naturais, o cartel origina o que Hovenkamp (1999, p. 17-26) explica ser um "processo de monopolização". Esta distinção é pertinente, na medida em que, enquanto as perdas de mercado decorrentes de um monopólio não provêm dos altos preços cobrados pelo produto, mas da perda da escolha dos compradores, no caso da monopolização, realmente há num sobrepreço artificial que é difundido em todo o mercado, afetando não apenas a formação dos preços, como também o seu próprio desenvolvimento - o que origina a dificuldade de desenhar políticas públicas capazes de dissuadir este tipo de infração à ordem econômica. De acordo com as diretrizes do banco mundial1, as penas impostas por autoridades de defesa da concorrência, seja para prevenir comportamentos cartelizados ou para evitar outras práticas lesivas, como é o caso de outras condutas anticoncorrenciais decorrentes de abusos de posição dominante, possuem tanto uma função retributiva, quanto preventiva, vez que a  imposição destas penas visa não apenas ressarcir a sociedade do dano à economia2, como também reduzir os incentivos detidos pelos infratores ao praticar o dano. Esta dupla função na esfera administrativa (cujo elemento retributivo parece ser subsidiário) também vem sendo reconhecida, de forma geral, quanto à esfera da responsabilidade civil3 (onde a subsidiariedade é reversa, isto é, a função retributiva é preponderante). Com base neste entendimento, autores como Fernandes (2012, p. 2) diferenciam as duas modalidades de enforcement no Direito Concorrencial, distinguindo entre o chamado public enforcement, que é realizado por entidades públicas para a proteção do interesse público nos termos da Constituição, e o private enforcement, realizado a partir da indenização das vítimas afetadas pela prática de condutas restritivas à concorrência. Em 2015, a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico liderou uma discussão a respeito da complementação entre estas duas modalidades em diferentes jurisdições, havendo concluído que, no caso brasileiro, a própria lei 12.529/2011 prevê um sistema de private enforcement4, na medida em que o legislador previu, no art. 47 da norma, o "direito de ação" para um rol de legitimados que poderiam requerer sua indenização por danos concorrenciais judicialmente, independentemente da existência de uma condenação do Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Ora, a complexidade de um ilícito concorrencial é tamanha que até a qualificação do tipo de responsabilidade civil originada a partir dele é problemática - a começar por sua natureza jurídica. Assim, como muitas vezes encontraremos relações contratuais diretas entre o lesado e o infrator, não é incomum que haja confusão sobre se um sobrepreço decorrente de um cartel deveria ser interpretado como uma responsabilidade civil extracontratual ou se, nos casos do legitimado possuir relação contratual direta com os infratores, os danos a serem pleiteados decorreriam de uma responsabilidade civil contratual - mais especificamente, a partir da falha no preenchimento da boa fé objetiva, conforme preceitua o art. 404 do CC/02. Entretanto, a existência de um cartel não macula a validade da celebração de um negócio jurídico, mesmo porque a deformação no mercado decorrente de um cartel não necessariamente implicará em uma falha contratual, estando a responsabilidade civil, neste caso, fundada na violação de uma norma que constitui um ato ilícito (art. 36º, lei 12/529/11 c/c art. 4º, lei 8.137/90), ou, simplesmente, uma responsabilidade civil aquiliana (art. 186 do CC/02 c/c art. 927 do CC/02). Este está longe de ser, contudo, o principal desincentivo à propositura de ARDCs no Brasil, função esta desempenhada pelo legislador brasileiro através das omissões deixadas pela lei 12.529/11, na medida em que o framework regulatório escolhido deixou (i) incertezas quanto ao prazo prescricional para a sua propositura, (ii) questionamentos envolvendo a ameaça às vantagens para celebrar acordos com o Cade à luz da resolução 21/18 , (iii) indefinição quanto ao possível caráter vinculante que as decisões administrativas da Autarquia, e (iv) dificuldades quanto à metodologia para quantificar os danos a serem indenizados. Enquanto alguns destes gargalos podem ser resolvidos a partir dos novos mecanismos trazidos com o PL 11.275/18, que hoje está em vias de concluir sua tramitação na segunda casa legislativa, para então ser submetido ao escrutínio do veto presidencial, caberá aos operadores do direito contribuir para que o framework brasileiro possa efetivamente contribuir para o desenvolvimento de um Private Enforcement benéfico, não apenas aos agentes lesados, como também à sociedade brasileira. Dessa forma, pretendemos, a seguir, brevemente revisar não apenas os gargalos atuais, mas tecer breves considerações sobre de que maneira a atualização normativa, que hoje está em vias de ser homologada, solucionaria tais gargalos, indicando, ainda, pontos de melhoria pendentes para o futuro. (i) Incertezas quanto ao prazo prescricional Há duas principais discussões que geram questionamentos àqueles que pretendem ajuizar ARDCs no Brasil: o termo a quo e o período para a prescrição de sua propositura. Com relação à primeira discussão, o embate inicia-se com a classificação de ilícitos concorrenciais como o cartel na qualidade de um crime permanente ou de um crime continuado, isto porque, como a lei especial (Lei 12.529/11) nada dispõe acerca do prazo prescricional para a propositura das ações indenizatórias, ele passa a ser regulado pelo CC/02, o qual determina que se a reparação de danos terá prescrição trienal (inciso V do § 3º do art. 206, CC/02), a contar da data em que houve a violação do direito (art. 189, CC/02). Conforme explicou Nucci (2006), por crime permanente, entende-se aquele em que o momento de sua consumação é estendida no tempo por deliberada vontade do agente, enquanto que um crime continuado prescinde de uma série de requisitos de continuidade delitiva, como condições de tempo, lugar e forma de execução idênticas, não havendo, contudo, nenhum tipo de extensão temporal, senão o que os tribunais têm entendido como uma "homogeneidade subjetiva", ou seja, um conjunto de vários crimes que resultem de plano previamente elaborado pelo mesmo agente (ou agentes)5. Ora, ao importamos esta distinção conceitual para a classificação de um cartel originamos duas vertentes no que diz respeito a qual viria a ser o termo inicial de contagem prescricional. Assim, se o cartel for entendido como um crime permanente, o termo inicial seria o início de sua operação, enquanto que, caso seja interpretado como um crime continuado, haveria vários termos iniciais, que remeteria às datas de cada decisão sobre o aumento de preços ou outras interferências, como a divisão de mercado ou a restrição no volume de vendas. Para solucionar a insegurança, o PL 11.275/18 dispõe que prescreve em cinco anos a pretensão a` reparação pelos danos causados pelas infrações previstas no art. 36 da Lei 12.529/2011, determinando que o início de sua contagem se dê a partir da ciência inequívoca do ilícito, cujo termo inicial passa a ser a publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade. Resolvido estaria este primeiro imbróglio. (ii)  Ameaças do Private Enforcement à manutenção da regra de ouro nos acordos administrativos celebrados perante o Cade Até a Resolução CADE 21/18, entendia-se haver um desincentivo à celebração de Acordos de Leniência ("Leniência") e Termos de Cessação de Conduta ("TCC") no âmbito do CADE, vez que a divulgação de seu conteúdo em momento anterior à decisão do Tribunal sobre a condenação do cartel criaria uma desvantagem à cooperação de delatores e contratantes de TCC, vez que eles ficariam mais vulneráveis às ações indenizatórias em razão de uma assimetria informacional6. Foi a partir da experiência norte-americana que constatou-se, de fato, a existência de um possível desestímulo à celebração de acordos desta natureza quando presente a possibilidade de que seus partícipes sejam demandados civilmente antes dos demais investigados7. Em razão desta experiência internacional, em 11/9/18, o CADE publicou a resolução 21, que regulamenta os procedimentos de acesso aos documentos e às informações contidas dos Processos Administrativos, expressamente assegurando sigilo durante a fase de negociação dos acordos (art. 8º), resguardando este sigilo durante a fase instrutória (art. 10º); e reconhecendo condenações judiciais ou extrajudiciais fruto de ações condenatórias como circunstância atenuante no cômputo de sanções administrativas (art. 12º). Apesar de resguardar o sigilo dos documentos dos celebrantes de acordos administrativos, a Resolução Administrativa não impôs (e nem poderia) outras vantagens como no caso norte-americano, que criou a figura dos treble damages os agentes que não colaboraram com a Autarquia e eximiu de responsabilidade solidária na esfera cível tanto lenientes, quanto compromissários. Entretanto, uma das disposições trazidas pelo projeto de lei é exatamente de acrescentar ao sistema brasileiro os mesmos gatilhos, optando, entretanto, pela adoção de double damages, ou seja, de uma indenização em dobro para os que se eximiram de colaborar com o Cade. (iii) Indefinição quanto ao possível caráter vinculante que as decisões administrativas da autarquia A doutrina distingue estas ações indenizatórias em dois tipos, existindo as chamadas "stand-alone suits" e as conhecidas como "follow-on suits". Esta distinção remete à existência de uma decisão do CADE na qual a reparação de danos estará embasada, no sentido de utilizar a constatação da autoridade concorrencial sobre a existência de um ilícito como meio de prova. Atualmente, ações do tipo stand-alone vêm enfrentando uma ainda maior dificuldade probatória frente aos tribunais brasileiros. Este gargalo é endereçado pela doutrina nacional8 a partir da proposição de que as ferramentas de inversão do ônus da prova (conforme dispõe o Código de Defesa do Consumidor - CDC, em seu art. 6º) ou de sua distribuição dinâmica (conforme dispõe o CPC - Código de Processo Civil, em seu art. 373) sejam utilizadas nestes casos, de forma a estimular potenciais demandantes cujo interesse haja sido minado em função das inúmeras dificuldades e custos para o ajuizamento destas ações no Brasil. É certo que a recente decisão do STF no agravo regimental ao RE 1.083.955/DF, sob relatoria do min. Luiz Fux9, tornou-se um marco para o argumento da deferência do Poder Judiciário com relação às decisões administrativas do CADE, entretanto, há ainda percalços a percorrer nos tribunais inferiores, vez que, ao mesmo tempo que dita decisão não possuiu efeito vinculante, ela também está inserida em um contexto argumentativo de muitos percalços. Procurando endereçar este gargalo, o projeto de lei não apenas proporciona um reequilíbrio do ônus, como atribui à decisão administrativa do Cade o poder de fundamentar a concessão de tutela de evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente - o que foi fruto de uma recomendação da própria autarquia, quando da publicação da nota técnica 24/16, na qual a superintendência-geral do órgão sugere aos juízes cíveis que se utilizem da decisão do Cade como prova prima facie da existência da conduta e do dano10. (iv) Dificuldades quanto à metodologia para quantificar os danos a serem indenizados. Para além de todas as dificuldades anteriormente tratadas, o cálculo do valor a ser pleiteado pelos possíveis demandantes em sede de reparação de danos talvez seja um dos maiores entraves para o crescimento da utilização destas ações. Neste sentido, Vicentini (2018, p. 172) enumera três possíveis situações em que os danos a partir da constatação de um ilícito antitruste serão recuperáveis na perspectiva das vítimas, sendo elas: (i) a situação experimentada pela vítima que compra diretamente o produto com sobrepreço artificial; (ii) ainda com relação aos compradores diretos, os danos que o repasse do sobrepreço ocasionará com relação à diminuição nas vendas e consequentemente também em suas margens de lucro (conhecido como volume effect); e (iii) a situação vivida por outros membros ao longo da mesma cadeia produtiva (compradores indiretos) que também incorrem em prejuízos ocasionados em decorrência do sobrepreco (reconhecido como dano indireto, ou dano por ricochete). Todas as três situações enumeradas pelo autor possuem uma dificuldade em comum que diz respeito à identificação do status quo anterior à prática do ilícito, vez que o cálculo do valor do dano a ser indenizado requer uma estimação de um cenário contrafactual, ou seja, de como o mercado se comportaria na ausência da infração11. Ora, o nível de complexidade da mera explanação sobre como se dará o cômputo dos valores a serem demandados já enseja uma série de questionamentos sobre se o dano pleiteado seria excessivamente especulativo ou remoto demais para que seja computados e se não haveria o risco de estarmos impondo aos agentes infratores uma cobrança em duplicidade, conforme exemplificou Pitofsky et al (2019, p. 84). Especialmente com relação ao segundo questionamento, a tese de Pass On Defense vem sendo utilizada como uma estratégia de defesa judicial para limitar a reparação dos danos, sob pena de arriscar o enriquecimento ilícito do demandante, uma vez que ele poderia ter repassado o sobrepreço ao seu consumidor. Apesar de não endereçar todas as problemáticas relacionadas ao cômputo do valor a ser indenizado nestes casos, o que o PL 11.275/18 faz é exigir que a prova da existência do Pass On no caso concreto, o que, ao menos, dificultaria a recorrência de sua propositura. Feitas estas breves considerações sobre a situação atual e como ela se modificaria a partir das proposições legislativas hoje em discussão, é necessário concluir no sentido de que o Projeto de Lei em referência está longe de ser a solução para todos os problemas. Neste sentido, importa ressaltar que não apenas persistem os problemas estruturais do sistema judiciário brasileiro no sentido de comprometer a efetividade da via judicial para a consecução do pleito indenizatório, como também subsistem temas como a sistemática de ações coletivas e a extensão da responsabilidade objetiva do processo administrativo à discussão na esfera judicial, o que poderia comprometer os resultados esperados com a vigência do próprio projeto de lei. _____ 1 Banco Mundial/OCDE. Diretrizes para elaboração e implementação de política de defesa da concorrência. Trad. Port. de Fabiola Moura e Priscila Akemi Beltrame. São Paulo: Singular, 2003, p. 31-35. 2 Sobre o tema, o Prof. Porto Macedo, ex-conselheiro do CADE, reconheceu a necessidade da função administrativa da instituição atender não apenas à finalidade punitiva, como também a retributiva. In MACEDO JÚNIOR (2003), p. 37. 3 "A doutrina, unanimemente, aponta a prevenção coo objetivo prioritário à reparação, uma conquista da contemporânea teoria da responsabilidade civil, pois já não basta reparar, mas fazer cessar a causa do mal" in BENJAMIN, 1998, p. 15. 4 Tradução Livre de trechos do texto original: "(.) The primary goal of private enforcement, in its turn, is to compensate damaged parties. In other words, whereas penalties (including administrative ones) aim at discouraging infringements, private enforcement is mainly concerned with re-establishing the status quo ante of those who have been harmed by a certain conduct. Rather than repressing or sanctioning an action, indemnification is based on repairing an injury. Therefore, Brazilian civil law provides that compensation should be measured by the damages caused. Specifically in the field of damages for antitrust, the Brazilian Competition Law foresees the right of private parties to compensation, the "right of action" before the judiciary. Article 47 of the Brazilian Competition Law provides that aggrieved parties may take legal action in defence of their individual interests or individual homogenous interests so that the anti-competitive practices cease and they are compensated for the losses and damages suffered, regardless of the investigation or administrative proceeding, which will not be suspended due to court action". In OCDE. Working Party No. 3 (2015). 5 "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça compreende que, para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento de requisitos de ordem objetiva (mesmas condições de tempo, lugar e forma de execução) e subjetiva (unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre os eventos), nos termos do art. 71 do Código Penal. Exige-se, ainda, que os delitos sejam da mesma espécie. Para tanto, não é necessário que os fatos sejam capitulados no mesmo tipo penal, sendo suficiente que tutelem o mesmo bem jurídico e sejam perpetrados pelo mesmo modo de execução." (REsp 1.767.902/RJ, j. 13/12/2018). 6 Conforme explica Martinez (2013, p. 275-276), "nos termos do Art. 942 do Código Civil, todos os partícipes do cartel respondem solidariamente pela conduta do cartel, podendo uma parte lesada cobrar o valor integral da indenização de um dos membros da pratica colusiva. No caso das investigações de carteis em que haja um signatário do acordo de leniência, é provável que as partes lesadas busquem o ressarcimento integral dele, visto ser o único a ter confessado a prática". 7 Neste sentido, estudos publicados pelo Accountability Office dos Estados Unidos[7] demonstram que o número de acordos de leniência celebrados pelo Antitrust Division of the Department of Justice praticamente dobrou após a Reforma da legislação antitruste americana (Antitrust Criminal Penalty Enhancement and Reform Act - ACPERA), responsável por afastar a incidência dos chamados treble damages aos beneficiários dos acordos de leniência, possibilitando ainda a ausência de responsabilização solidária com relação aos demais cartelistas, desde que a cooperação dos lenientes seja entendida como satisfatória pelo regulador. 8 SANTOS, Marcelo H. G. Rivera M. O^nus da prova na ac¸a~o privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial. Revista dos Tribunais, vol. 959, 2015. p. 3. 9 EMENTA: AGRAVO INTERNO EM EXTRAORDINA'RIO. DIREITO ECONO^MICO E ADMINISTRATIVO. CONCORRE^NCIA. PRA'TICA LESIVA TENDENTE A ELIMINAR POTENCIALIDADE CONCORRENCIAL DE NOVO VAREJISTA. ANA'LISE DO ME'RITO DO ATO ADMINISTRATIVO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. INCURSIONAMENTO NO CONJUNTO FA'TICO-PROBATO'RIO DOS AUTOS. INCIDE^NCIA DA SU'MULA 279 DO STF. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 10 Ob cit, § 172, in verbis: "(...) utilizar a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do CADE como título executivo extrajudicial e prova prima facie da existência da conduta e do dano, de forma a facilitar o ajuizamento das ações civis do tipo "follow-on". Assim, estaria às partes potencialmente lesadas provar apenas o quantum do dano e o nexo causal, tal como ocorre em quase todas as jurisdições analisadas (União Europeia, Reino Unido, Alemanha, Holanda, Austrália e Canadá). Em que pese tal proposta, ações autônomas continuariam a ser ajuizadas concomitantemente à investigação do CADE, independentemente do Inquérito ou Processo Administrativo, nos termos do próprio caput do art. 47 da Lei n. 12.529, de 2011". 11 Conforme leciona Maggi (2018, p. 257), "ao contrário dos processos convencionais, nos quais a liquidação da sentença parte de valores reais que servem como base para o cálculo do valor da condenação, a quantificação dos prejuízos gerados por infrações à ordem econômica, em especial os cartéis, partem de um valor obtido por meio de estimativas baseadas em teorias econômicas. Neste sentido, acredita-se que, antes mesmo da fase de apuração dos valores, as partes terão de convencer o juiz que os estudos econômicos são formas legitimas e as mais adequadas para quantificar os prejuízos nesses casos, posto ser uma matéria nova nos tribunais". 12 BENJAMIN, Antônio Herman V. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista do Direito Ambiental, São Paulo, ano 3, n. 9, jan-mar. 1998, p. 15. 13 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. O caso White Martins e a questão da imposição de multas no direito antitruste brasileiro. Revista de Direito da Concorrência, IOB, Edição Especial - Retrospectiva/2003. 14 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: responsabilidade civil concorrencial. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018. 15 MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre o direito administrativo e penal. São Paulo: Editora Singular, 2013. 16 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 17 OCDE. Working Party No. 3 on Co-operation and Enforcement: Relationship between Public and Private Antitrust Enforcement - Brazil [DAF/COMP/WP3/WD(2015)23]. 15/06/2015. Disponível em , acesso em 20/12/2020. 18 PEIXOTO, Bruno Lanna; SILVA, Ludmilla Martins da. Alterações legislativas necessárias e o futuro das ações reparatórias por danos concorrenciais no Brasil. In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 59-74. 19 PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomia. 6ª ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. 20 PITOFSKY, Robert; GOLDSCHMID, Harvey J; WOOD, Diane P. Trade Regulation - Cases and Materials. 6a Edição. Foundation Press, 2010. 21 REQUENA, Giuliana Marchezi Franceschi Gonçalves e; BERNINI, Paula Muller Ribeiro. Valor probatório da decisão do CADE nas Ações de Reparação de Danos de Cartel ("ARDCs"). In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 133-153. 22 SANTOS, Marcelo H. G. Rivera M. O^nus da prova na ac¸a~o privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial. Revista dos Tribunais, vol. 959, 2015. p. 3. 23 VICENTINI, Pedro C.E. Danos Antitruste aos compradores diretos e indiretos: breves considerações sobre o pass-on effect no regime norte-americano, europeu e brasileiro. In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 171-192.
A inteligência artificial constitui um dos principais elementos catalisadores da inovação na modernidade. Presente nas ferramentas de personalização de conteúdo das grandes plataformas sociais, nos sistemas de gerenciamento de trânsito das smart cities e até mesmo na realização de operações cirúrgicas robóticas, tal advento disruptivo expande-se rapidamente pelas esferas particular e governamental.  Figurando na 39ª posição do "Índice Global de IA 2021" 1, fornecido pela agência de notícias britânica Tortoise Media, e liderando o "Índice de Contratação em IA 2021"2, divulgado pela Universidade de Stamford, o Brasil constitui um fértil terreno ao desenvolvimento do setor.  Como reflexo desse diagnóstico, emergem as primeiras tentativas nacionais de regulação da matéria, por intermédio: a) da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA)3, instituída pela Portaria 4.617/21 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), e, mais notadamente; b) do projeto de lei 21/204, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados.  As intensas controvérsias acerca do norteamento imposto à área da responsabilidade civil centralizam os debates acerca de tal proposição legislativa, sobretudo quando ponderadas as contemporâneas tendências de multifuncionalização do instituto e de consagração de um modelo objetivo baseado no elemento do risco.  A estruturação de um ambiente propício ao desenvolvimento de soluções de inteligência artificial reclama alicerces incentivadores da inovação, permeados nas garantias alusivas à propriedade e aos contratos, que atraem e resguardam investimentos direcionados ao setor.  Por outro lado, também envolve fundações protetivas em relação aos usuários, consumidores e terceiros afetados. Elas atuam como verdadeiras barreiras perante os potenciais riscos trazidos por essa tecnologia disruptiva, revestindo uma função preventiva/precaucional; e sob a forma de mecanismos ressarcitórios efetivos, que consagram o princípio da reparação integral e aproximam a vítima do estágio prévio, nos casos em que o dano não pode ser evitado.  Visto que a presente análise circunda tais bases, a obtenção de um melhor entendimento do panorama brasileiro de regulação da matéria perpassa, a princípio, a compreensão das discussões empreendidas no Velho Continente5, de onde se pode destacar a preocupação com a construção de uma perspectiva polifuncional da responsabilidade civil, buscando trazer segurança jurídica a todos os atores que orbitam os sistemas de IA, pela harmonização entre a adequada tutela da vítima e a preparação de uma atmosfera convidativa a inovações voltada, sobretudo, às pequenas e médias empresas. Almeja-se, portanto, conciliar a reparação integral do dano à proporcional responsabilização desses players, escudando-os de impactos econômicos excessivos e capazes de obstruir o surgimento de inovações futuras. Caso devidamente adaptadas às idiossincrasias locais, as lições fornecidas pelos documentos europeus mostrar-se-iam extremamente enriquecedoras aos legisladores brasileiros, dadas as recentes pressões por uma mobilização regulatória da área da inteligência artificial. No entanto, a realidade nacional falha na assimilação desses ensinamentos, levantando fundadas preocupações em relação à mitigação da esfera protetiva. Ainda que contemporâneas às orientações estrangeiras, as tentativas nacionais de disciplinamento da matéria não poderiam parecer mais assíncronas.  Executadas por intermédio da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) e do Projeto de Lei nº 21/2020, elas vêm traçando um futuro incerto para a responsabilidade civil, que se revela extremamente gravoso para as potenciais vítimas de danos ligados aos sistemas de IA. A Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), instituída pela Portaria 4.617/21 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI)6, representa uma política pública de inovação que busca definir uma estrutura para o fomento da área no Brasil e as diretrizes éticas que balizam a sua implementação.  Confeccionada a partir da percepção técnica especializada, aliada ao intercâmbio de experiências nacionais e estrangeiras, e complementada pelas contribuições online fornecidas pela sociedade; ela divide a temática em três eixos transversais: a) legislação, regulação e uso ético; b) governança da IA; e c) aspectos internacionais. Ao estabelecer as nuances de seu primeiro eixo transversal (legislação, regulação e uso ético), a "Estratégia" salienta, à luz do firmado na proposta europeia, que as atuais discussões prezam, além do binômio inovação-proteção, pela segurança jurídica. A consolidação desta, por sua vez, decorreria da estruturação de efetivos instrumentos de responsabilização, aplicáveis aos envolvidos nas variadas atividades associadas aos sistemas de IA autônomos7.  Deste modo, aproxima-se de uma abordagem concreta da responsabilidade civil, quando estabelece uma conexão entre a função reparatória e o instituto da revisão humana. Nesse sentido, sugere a exclusiva aplicação dele aos casos de decisões automatizadas dotadas de um maior potencial lesivo, a exemplo daquelas proferidas em ambientes alfandegários e de embarque em aeroportos8.  Eventuais falhas em tais cenários ensejariam a simultânea reparação dos prejuízos gerados à vítima. Como contraponto, situações frugais relacionadas à indevida utilização da tecnologia, como a confusão na exibição de anúncios publicitários customizados, não subsidiariam a aplicação desses mecanismos.   Firma-se, de maneira geral, uma cautelosa postura de disciplinamento da inteligência artificial, sob o receio de levantar indesejados obstáculos à inovação. Ao contemplar o clamor pela regulação da área, a "Estratégia" assevera que ela "deve ser desenvolvida com ponderação e com tempo suficiente para permitir que várias partes identifiquem, articulem e implementem os principais princípios e melhores práticas"9.  Em que pesem as deficiências do documento, tais como o caráter genérico de suas normas, a insuficiência do diagnóstico que fornece e a sua configuração como um mecanismo de soft law de aplicabilidade reduzida, a política acerta ao ligar a responsabilidade ao elemento do risco e às situações concretas, ao enfatizar a importância da feição preventiva e ao alertar acerca da paciência indispensável à formulação de um diploma específico sobre a IA. Inobstante a expressividade da advertência, a proposição de um marco legal da inteligência artificial permeia o Poder Legislativo. Com a ratificação de sua tramitação em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 21/2020 foi recentemente aprovado pela Câmara.  As vozes críticas ao instrumento, em uníssono, repudiam a celeridade imposta à sua apreciação. As significativas repercussões sobre os variados recortes da sociedade demandam, em qualquer tentativa de normatização da área, a conjugação de uma criteriosa avaliação técnica à democrática oitiva dos setores impactados; quase inexistente nos diminutos debates empreendidos até aqui10.   De forma geral, as avaliações da doutrina civilista sobre o projeto mostram-se pessimistas. Ao explorar o seu potencial fragmentador, Anderson Schreiber percebe uma indesejada dualidade em seu conteúdo, onde normas descontextualizadas convivem com novidades importadas, desvirtuando a noção de coesão jurídica11.  Perspectiva análoga é firmada por Laura Schertel Mendes ao explicitar a "crise de identidade" que assola o documento12. A indecisão acerca de sua configuração como uma mera carta de valores, desprovida de imperatividade e especificidade, ou como um sólido instrumento norteador do uso da inteligência artificial, acaba por macular a sua recepção e as prospecções de sua aplicação futura.  A comparação das redações originária e atual do PL 21/2020 permite a verificação de pontuais melhorias, particularmente quanto ao aprimoramento do linguajar técnico empregado em seus dispositivos iniciais13.  O projeto oferece algumas bem-vindas simplificações às descrições e complementações às lacunas, que modificam o seu primeiro esboço. Nessa senda, a conceituação do que representa um sistema de inteligência artificial é expandida, exigindo-se dele a capacidade de aprender a perceber, interpretar e interagir com o ambiente externo. Itens enumeradores de suas técnicas e de sua aptidão classificatória também são acrescentados (art. 2º, caput, e p. único).  Outrossim, tem-se uma aproximação ao campo da responsabilidade quando indicadas as máximas de "segurança e prevenção" e "inovação responsável" (art. 5º, VI e VII). As primeiras preconizam a utilização de ferramentas variadas (técnicas, organizacionais e administrativas) para monitorar e atenuar os riscos associados ao manuseio desses sistemas. Enquanto a última prevê a responsabilização dos agentes envolvidos nas citadas etapas pelos seus resultados, sopesadas as contribuições individuais, o contexto específico e as tecnologias acessadas. O dispositivo acerta ao atrelar a sua delimitação às circunstâncias fáticas.  Entretanto, o legislador pátrio ruma em direção oposta, ao definir a diretriz específica alusiva à responsabilidade: Art. 6º: [...] VI - responsabilidade: as normas sobre responsabilidade dos agentes que atuam na cadeia de desenvolvimento e operação de sistemas de inteligência artificial deverão, salvo disposição legal em contrário, pautar-se na responsabilidade subjetiva e levar em consideração a efetiva participação desses agentes, os danos específicos que se deseja evitar ou remediar e a forma como esses agentes podem demonstrar adequação às normas aplicáveis, por meio de esforços razoáveis compatíveis com os padrões internacionais e as melhores práticas de mercado (grifo nosso). Tal dispositivo motivou a elaboração de uma carta aberta ao Senado Federal, com fundadas críticas e sugestões ao texto acima destacado14. Constata-se que a versão original do PL 21/20 apenas determinava que os agentes de desenvolvimento e operação responderiam, na forma legal e em consonância às funções desempenhadas, pelas decisões tomadas pelos sistemas de IA15. Não se delimitava um regime reparatório, assim como não constavam referências à função preventiva ou precaucional.           O tratamento conferido à matéria passava longe do ideal, mas não se mostrava tão preocupante quanto o do presente texto, a começar pela imprecisão dos termos empregados; eles norteiam os vindouros legisladores para a exigência de comprovação do elemento da culpa, a qual, todavia, pode ser facilmente afastada por qualquer norma em sentido adverso16.  Outrossim, denota-se inexatidão quando o inciso define os agentes que podem ser responsabilizados. Como bem elucida Filipe Medon, a cadeia dos sistemas de IA engloba uma multiplicidade de atores aptos a interferir em seu funcionamento, desde os designers e operadores, até os programadores e usuários17. Falta uma maior especificidade para a sua melhor identificação, como ocorre na canalização europeia na figura do operador.  A "irresponsabilização generalizada", suscitada no mencionado documento enviado ao Senado, materializa-se na consolidação de um modelo abstrato subjetivo, onde a avaliação da atuação culposa das cinzentas figuras dos agentes ocorre a partir de parâmetros questionáveis.  Nele, tem-se a apreciação: a) de suas efetivas participações no resultado lesivo - as quais são dificilmente mensuráveis, dada a complexidade inerente aos sistemas de IA; b) do dano que se pretendia evitar ou remediar - ao invés de direcionar o enfoque ao risco; e c) da conformidade dos agentes às normas aplicáveis, consoante padrões internacionais e práticas de mercado. Como consequência, são construídos insuperáveis obstáculos à figura da vítima, relegada a uma posição de vulnerabilidade informacional18 que a impossibilita de corretamente identificar os agentes envolvidos e de comprovar os comportamentos desidiosos que contribuíram ao resultado lesivo, ferindo-se, assim, a garantia da reparação integral. As dificuldades tangenciam as questões: a) da transparência, diante da reduzida divulgação de informações acerca dos meandros dos sistemas de IA ao público-usuário; e b) da explicabilidade, porquanto a exposição inteligível do funcionamento dessas soluções, em uma linguagem acessível a tais destinatários, inexiste na prática. A preocupação com a assimetria de conhecimento técnico destacada na resolução europeia, não foi adequadamente contemplada na proposta brasileira. Sob a ótica da sociedade de riscos contemporânea, constata-se, na multifuncionalidade da responsabilidade civil e na adoção de um modelo reparatório objetivo, possíveis alternativas a tal problemática. A plurivalência do instituto, inicialmente edificada no campo doutrinário a partir da assimilação de experiências estrangeiras, comporta interessantes opções asseguradoras da reparação integral da vítima, influenciada pela releitura conferida pelo Direito de Danos. Contudo, as escolhas firmadas ao longo da regulação brasileira navegam por um arriscado caminho. Em adição à sua apressada tramitação e à generalidade de seu conteúdo, tem-se na configuração da responsabilidade civil o seu aspecto mais controverso. Embora as disposições iniciais do documento sinalizem a uma análise concreta do instituto, pautada pelo elemento do risco, a infeliz preferência por um modelo abstrato subjetivo (art. 6º, VI) condena a vítima a um cenário de significativa vulnerabilidade. Que a Comissão de juristas designada pelo Senado Federal para atuação na elaboração de minuta de substitutivo aos PL 5.051/19, 21/20 e 872/21 possa atuar conferindo a necessária correção de rumo no texto que irá a votação naquela casa legislativa. _______________ BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 21/220 (Redação do Substitutivo), de 29 de setembro de 2021. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei nº 21/2020 (Texto Original), de 04 de fevereiro de 2020. Estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da inteligência artificial no Brasil e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. GLOBAL AI INDEX. Intelligence. Global AI. Tortoise Media. Disponível aqui. Acesso em: 12 dez. 2021. IRRESPONSABILIZAÇÃO generalizada: Especialistas criticam responsabilidade subjetiva prevista no PL do marco da IA. MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. MINISTRO preside comissão de juristas que ajudará Senado a regulamentar IA. SCHERTEL MENDES, Laura. Projeto de Lei da Inteligência Artificial: armadilhas à vista. Fumus Boni Iuris. Blogs. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. Resolução do Parlamento Europeu 2020/2014 (INL), de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em: 11 nov. 2021. ZHANG, Daniel et al. AI Hiring Index. The AI Index 2021 Annual Report. Stanford University: Stanford, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 dez. 2021. _______________ 1 GLOBAL AI INDEX. Intelligence. Global AI. Tortoise Media. Disponível aqui. Acesso em: 12 dez. 2021. 2 ZHANG, Daniel et al. AI Hiring Index. The AI Index 2021 Annual Report. Stanford University: Stanford, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 dez. 2021. 3 BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI nº 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 4 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei nº 21/2020 (Redação do Substitutivo), de 29 de setembro de 2021. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 5 A Resolução do Parlamento Europeu 2020/2014 (INL), de 20 de outubro de 2020, fruto de longevos debates ao longo da última década, traz recomendações destinadas à Comissão Europeia e incorpora uma proposta de regulamento que disciplina, de maneira específica, o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em: 11 nov. 2021. 6 BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI nº 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 7 EBIA, p. 17. 8 EBIA, p. 20-21. 9 EBIA, p. 22. 10 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 11 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 12 SCHERTEL MENDES, Laura. Projeto de Lei da Inteligência Artificial: armadilhas à vista. Fumus Boni Iuris. Blogs. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 13 MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 14 IRRESPONSABILIZAÇÃO generalizada: Especialistas criticam responsabilidade subjetiva prevista no PL do marco da IA. 15 Art. 9º, V, e P. único, do texto original do PL 21/2020. 16 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 17 MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível em: aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 18 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro.
A alteração do clima é um evento mais antigo que a própria relação entre o homem e o meio ambiente. Eventos naturais, entretanto, ganharam uma nova qualidade e magnitude, quando passaram a sofrer a influência dos efeitos das ações antrópicas e de um modo de pensar, orientado pelas falsas ideias de infinitude dos recursos naturais e de um equilíbrio inabalável desses meios1. Isso porque, apesar de a relação homem e o meio ambiente remontar aos primórdios da humanidade, foi estabelecida, durante muito tempo, sob bases utilitaristas, pois o ser humano enxergava a natureza como detentora de uma única função: servir aos fins pretendidos pela sociedade. Percepção distorcida da realidade ambiental que resultou em uma ação humana em que o manejo e gestão dos recursos ambientais nunca foram prioridades2. Exatamente por isso que os desastres ambientais não são uma novidade do século XXI. Ao contrário, ocorrem há muito tempo. Muitos são os exemplos em âmbito mundial, como: (i) o caso da Fundição Trail Smelter, decorrente de impactos ambientais transfronteiriços entre o Canadá e Estados Unidos (1926-1941); (ii) Doença de Minamata resultante do envenenamento por mercúrio das águas da baía de Minamata, no Japão (1956); (iii) acidentes com os naivos tanques Torrey-Canion (1967); (iv)  nuvem de dioxina, fruto de uma explosão de uma fábrica de produtos químicos em Seveso, na Itália (1976); (v)    "pesadelo nuclear", ocorrido em razão de uma falha mecânica em um reator de uma usina nuclear situada na Pensilvânia, nos Estados Unidos (1979); (vi) vazamento em Bhopal, ocorrido em razão de um vazamento em uma fábrica de agrotóxicos na Índia (1984); (vii) explosão de Chernobyl, resultado de uma explosão em um reator de uma usina nuclear na Ucrânia (1986);  (viii) acidente com o navio pretoleiro Amoco-Cadiz (1989), entre outros. No Brasil podemos citar: (i) o acidente no Vale da Morte (1980), resultante da emissão de inúmeros gases tóxicos na cidade de Cubatão; (ii) o caso Césio 137 (1987), ocorrido em razão da exposição a material radioativo em Goiânia; (iii) rompimento da Barragem de Miraí (2007); (iv) rompimento da barragem de Mariana (2015); (v) rompimento da barragem em Brumadinho (2019), entre outros. Desastres ambientais que são capazes de comprovar a postura imediatista e utilitarista adotada pelo homem em sua relação com o meio ambiente, como se ignorasse que "o mundo é todo comparável a uma imensa rede de relações. Não há nada que não seja afim e que não se relacione com todo o restante nesse universo"3. Demonstram, ainda, que inexistia, por parte do ser humano, uma real preocupação com os resultados negativos de uma relação desregrada entre o homem e o ambiente que o circunda. Pensava-se que qualquer problema ambiental, além de atingir apenas um determinado recurso natural, ficaria restrito à uma área específica. Como num conto mágico, as pseudos barreiras geográficas seriam capazes de impedir ou minimizar todas as implicações advindas de um desastre ambiental4. Os diversos desastres ambientais, ocorridos ao longo do século XX, trataram de demonstrar, na prática, que, além daquele pensamento estar equivocado; as atividades antrópicas já haviam ocasionado impactos tão grandes que, diante da superação dos limites depurativos do planeta, estávamos perante uma crise ambiental de proporções jamais vistas. E, pior, o problema, ao contrário do que se imaginava, é dotado de incerteza quanto aos seus impactos, exigindo, na busca por solução, a cooperação de todos os atores internacionais5. Nesse momento, a sociedade mundial percebeu que se encontrava diante de uma crise ambiental, caracterizada pela socialização dos danos, ainda que a utilização dos recursos naturais e as riquezas produzidas não tenham sido equitativa e socialmente distribuídas. Os problemas ambientais ganharam, de tal forma, proporções condizentes à uma sociedade globalizada, não se encontravam, portanto, restritos à determinada área, país ou continente. E, evidentemente, não podiam continuar a ser enfrentados isoladamente6. As mudanças climáticas aparecem, desta feita, como um dos principais e prioritários problemas a serem enfrentados, neste século, face às alterações em seus padrões de ocorrência, em níveis bastante preocupantes. É, por isto, um dos temas mais relevante, quando se discute a crise ambiental global. E, diante das características dessas mudanças e das suas incertezas, os impactos das mudanças climáticas não ficam apenas na seara físicoambiental; trazem inúmeras outras implicações: sociais, econômicas, políticas, culturais e jurídicas. A realidade do fenômeno joga por terra qualquer ideia, cuja noção é de que todo problema ambiental, além de poder ser enfrentado isoladamente e de forma compartimentada, é o mesmo que poluição7. Prova disso é o fato de as alterações climáticas serem capazes de agravar a desertificação, a crise de recursos hídricos, a crise de biodiversidade, o degelo das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos, a queda da produção agrícola, os riscos para a saúde humana, e, intensificar a movimentação populacional no mundo, gerada pela deterioração ambiental. Tais alterações, como podem ser verificadas, afetam a todos do planeta8. A necessidade de rever essa relação desregrada entre o homem e o meio ambiente é anunciada, em âmbito internacional, desde o surgimento da Declaração de Estocolmo (1972). Lado outro, em nível nacional, essa necessidade ganha força com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, inaugurando, uma nova ordem ambiental estabelece um norte para a efetivação da proteção ambiental, assim como fixa um sistema de repartição de competências entre os Entes Federados. Tudo objetivando assegurar uma melhor adequação das normas às peculiaridades locais. Cabendo, de tal forma, aos Municípios desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, assim como a Política Nacional sobre Parcelamento do Solo Urbano e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano9. Neste sentido, devem, os Municípios, implementar, em âmbito local, medidas assecuratórias dos princípios que regem o direito urbanístico e ambiental, dentre os quais: (i) desenvolvimento sustentável; (ii) garantia do direito a cidades sustentáveis; (iii) gestão democrática das cidades; (iv) cooperação entre governos; (v) planejamento e distribuição das atividades econômicas; e, (vi) integração da atividade uirbana e rural, entre outros. Assim sendo, resta demonstrado que todos os Entes Federados, inclusive o Município, possuem a obrigação de adotarem medidas aptas a assegurar a precaução e a prevenção de desastres ambientais e dos seus riscos. Importante observar que catástrofes decorrentes de efeitos das mudanças climáticas não são novidade em território nacional, sendo possível citar: (i) a catástrofe ocorrida, aos 24 de Janeiro de 1967, na Serra das Araras, Rio de Janeiro; (ii)  a catástrofe ocorrida, aos 20 de Março de 1967, em Caraguatatuba, São Paulo; (iii) a catástrofe ocorrida, aos 08 de Fevereiro de 1988, em Petrópolis, Rio de Janeiro; (iv) a catástrofe ocorrida, aos 12 de Janeiro de 2011, em Petrópolis, Rio de Janeiro; entre outras. Possivel perceber, de tal forma, que os impactos decorrents das alterações climáticas ocorrem em território nacional há tempo e de forma razoavelmente recorrente10. Desta feita, o desastre ocorrido, aos 20 de fevereiro de 2022, em Petrópolis/RJ, decorrente de deslizamentos e inundações ocasionadas pelas chuvas que atingiram a cidade, vitimando mais de 130 (cento e trinta) pessoas, não pode ser considerado uma surpresa, mas sim uma consequência do descaso Estatal que insiste em negligenciar o seu dever cautela e de inobservar as normativas internacionais, nacionais, estaduais e municipais relacionada ao tema. Isso porque, sobre o Estado recai um dever de cuidado que impõe uma atuação preventiva capaz de, dentro dos limites impostos pela técnica, evitar a ocorrência de desastres climáticos. Prova da negligência Estatal em Petrópolis é o fato de 'a ocupação em áreas de risco em Petrópolis ter crescido mais que a média da ocupação total da cidade nos úlmimos 35 (trinta e cinco) anos. Enquanto as áreas totais de habitação na cidade saltaram de 30 quilômetros quadrados, em 1985, para 50 em 2020, as ocupações em aglomerados subnormais (locais de habitação irregular e em área de risco), saltaram de 1,9 para 4,1 quilômetros quadrados no mesmo período"11. A tragédia era anunciada e há muito conhecida, pois, além de desastres ambientais semelhantes terem ocorrido em 1988 e 2011, desde 2017 o Município possuia um Plano Municipal de Redução de Riscos que, através de seu trabalho de campo, "comprovou o contínuo crescimento da ocupação das enconstas para áreas de Perigo Alto e Muito Alto, áreas estas que se confundem com as áreas de preservação permanente (APP's)"12. Desta feita, ciente dos riscos inerentes ao aumento das ocupações subnormais, deveria o Estado ter exercido o seu dever de cautela, controle e fiscalização para, assim, concretamente agir objetivando mitigar os riscos, o que, ao que parece, não foi feito. E, assim sendo, existem bases suficientes para a sua responsabilização por omissão, pois a sua inércia foi determinante para a concretização e/ou agravamento dos danos causados em razão das chuvas que atingiram a cidade. _______________ 1 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016. 2 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática. Op. Cit. 3 Frase atrubuída a Lama Anagarika Govinda (Monge Budista - 1898-1985). 4 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 5 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 6 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 7 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 8 Neste sentido ver: GIDDENS, Anthony. A Política da Mudança Climática. Tradução para o português de Vera Ribeiro. Revisão Técnica de André Piani. Apresentação à Edição Brasileira de Sérgio Besserman Vianna. Editora Zahar. Rio de Janeiro.2010. p.07 ss; YAMIN, Farhana; DEPLEDGE, Joanna. The International Climate Change Regime: A guide to rules, institutions and procedure. Cambridge University Press. Cambridge. 2004. p.21-22; PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016. 9 FARIAS, Talden et al. Direito Ambiental. Coord. Leonardo de Medeiros Garcia. Coleção Sinopses para Concurso. 3ª Edição. Editora JusPodivm. 2015. p.84 ss. 10 Essas informações foram obtidas em: http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,catastrofe-em-petropolis-e-uma-das-maiores-da-historia,70003984015,0.htm#:~:text=Centenas%20de%20vidas%20perdidas%2C%20milhares,hoje%20%C3%A9%20de%20917%20mortos. 11 Trecho retirado de reportagem de autoria de Iuri Corsini, entitulada Petrópolis: ocupação de áreas irregulares acelerou desde 1985, diz especialista. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/petropolis-ocupacao-de-areas-irregulares-acelerou-desde-1985-diz-especialista/#:~:text=Enquanto%20as%20%C3%A1reas%20totais%20de,quil%C3%B4metros%20quadrados%2C%20no%20mesmo%20per%C3%ADodo. 12 DE OLIVEIRA, Luis Carlos Dias et al. Plano Municipal de Redução de Riscos PMRR - 1º (revisão), 2º, 3º, 4º e 5º Distritos - Petrópolis/RJ. p.151. Disponível em: https://sig.petropolis.rj.gov.br/cpge/Reflexoes.pdf.
quinta-feira, 10 de março de 2022

Responsabilidade Civil e Fashion Law

Há poucos anos, a comunidade jurídica no Brasil passou a se interessar e intensificar o debate sobre um novo ramo do Direito: o denominado Fashion Law ou Direito da Moda. Trata-se de uma área do Direito que surgiu nos Estados Unidos, a partir da criação de uma disciplina jurídica oferecida no curso de Direito da Universidade de Fordham, em Nova Iorque. Embora, inicialmente, seu campo de atuação se resumisse à propriedade intelectual (direito de autor e propriedade industrial), possui diversos pilares, a saber: Direito Civil (direitos da personalidade, direito contratual, responsabilidade civil), Direito do Consumidor (comércio eletrônico, cultura de consumo), Direito Empresarial (direito societário), Direito Internacional (vendas internacionais, comércio internacional), Direito do Trabalho, Direito Ambiental (sustentabilidade) e Tributário (importação, exportação, etc.), dentre outros. Para muitos doutrinadores, trata-se de uma compilação de disciplinas jurídicasi; para outros, não perde a característica de um novo ramo do Direitoii, baseado nas peculiaridades de uma indústria, ou até mesmo numa especialização por setor econômicoiii. Sob o aspecto filosófico, autores como Gilles Lipovetsky abordam o motivo de "a moda não aparecer no questionamento teórico das cabeças pensantes", apesar de "estar por toda a parte na rua, na indústria e na mídia (...)."iv Trata-se de "compreender a ascensão da moda ao poder nas sociedades contemporâneas, o lugar central, inédito, que ocupa nas democracias engajadas no caminho do consumo e da comunicação de massa."v Nota-se que as discussões desse ramo ganharam corpo no período da pandemia do novo coronavírus. Segundo dados da Infomoney, de março de 2020, o setor de confecção, no Brasil, enfrentou uma queda de mais de 90%. Inúmeras questões jurídicas decorrem dessa constatação, e, destaca-se a importância da gestão do dano. Mister ressaltarmos, nessa oportunidade, aquelas afetas ao tema responsabilidade civil. Assim, seja em razão da violação de direitos da personalidade (art. 12, do CC), ou por inadimplemento contratual (arts. 389 e 475, do CC)vi, ou, ainda, por descumprimento de deveres decorrentes da boa-fé objetiva (art. 422, do CC)vii, ou mesmo por ato ilícito (arts. 186 e 187, do CC) ou pela tutela externa de crédito (arts. 421 e 608, do CC), fala-se em responsabilidade civil e fashion law. Sem esquecermos da possibilidade de se cumular a indenização com o lucro da intervenção (art. 884, do CC)viii. Em se tratando de uma indústria que move bilhões de dólares na economia do mundo, e que, no campo empresarial, a segurança jurídica é um aspecto muito importante, não podendo ser desestimulado o empreendedorismo, é necessário fazermos uma abordagem levando em consideração a cadeia criativa, a cadeia produtiva da indústria da moda e a venda ao consumidor. O produto "moda" tem que ser pensado de forma diferente dos demais produtos manufatureiros. A moda não é um produto só industrial, mas também é um produto de valor, em razão de suas características imateriais. Como já disse o colega e professor Felipe Teixeira Neto, "há que se customizar a responsabilidade civil para o Direito da Moda!" (informação verbal).ix Enrico Cietta, economista italiano, explica que a moda foi progressivamente se hibridizando, ou seja, "uma parte do mercado (prêt-à-porter) foi gradativamente se transformando em um setor mais de significados do que de produtos. Significados que transformam o mercado, o produto e, inevitavelmente, toda a cadeia de empresa que os cria e os produz industrialmente". Para ele, "não se trata de uma ilusão apenas porque mudaram os cenários, os contextos e os instrumentos competitivos, mas porque o produto moda, provavelmente antecipando uma trajetória que outros produtos manufatureiros estão agora seguindo, foi adquirindo características cada vez mais imateriais."x Assim como nos últimos tempos passamos a pensar mais no propósito de vida, de carreira, de relações interpessoais, a moda também passou por esse movimento, e, consequentemente, o Direito da moda foi influenciado a buscar o respeito aos valores humanos, à sustentabilidade, ao consumo consciente, ao combate à pirataria e à proliferação de cópias, à prevenção de conflitos, ao surgimento de novos nichos de mercado (brechós, lojas de troca, aluguel, games, NFTs, etc.), à valorização dos povos originários, à luta antirracista, enfim, às parcerias que fazem sentido, inclusive as contratuais. Desde a cadeia criativa, é preciso resgatar valores humanos, seja do indivíduo ou da empresa. A escolha de temas que inspiram as coleções deve respeitar os direitos humanos, como o direito à imagem, à igualdade, direito moral de autor, direito ao meio-ambiente, ao trabalho digno, enfim, o respeito à dignidade humana, bem como evitar a apropriação cultural de referenciais artísticos, gráficos, elementos de outras etnias, raças, culturas, fora do contexto em que estão inseridos ou sem a devida autorização e contrapartida dos titulares do patrimônio imaterial. Lembra Tiago de Oliveira que "os designers têm procurado ferramentas jurídicas que impeçam outros de explorarem economicamente aquilo que é a sua maior vantagem competitiva: a unicidade do design das suas criações."xi Como bem anotado por Flávio Leão Bastos Pereira, "casos marcantes e esclarecedores sobre possível apropriação cultural pela indústria da moda podem ser indicados como ocorrências importantes para as reflexões ora propostas, como no caso da rede espanhola de varejos de roupas e calçados, Zara, que recentemente foi apontada por artesãs indígenas da região de Chiapas, no sul do México, que tradicionalmente produzem e vendem suas peças de vestuário baseadas nos grafismos, cores e na cultura indígena local, como tendo explorado estampas e motivos artísticos oriundos da cultura indígena da citada região (Chiapas), sem qualquer retorno à referida comunidade. A referida corporação colocou à venda por mil pesos (US$ 50) peças de roupas inspiradas - de forma 'agressiva', segundo a revista The Economist - nas produções das tecelãs indígenas mencionadas, que encontraram na sua produção artesanal e venda por preços inferiores, o complemento de suas rendas, indispensáveis à sobrevivência."xii Nessa linha de raciocínio, e para evitar os prejuízos que advém da prática da contrafaçãoxiii e das cópias, muitas marcas têm optado pelos contratos de parceria, conhecidos como collabs. Como já mencionamos em outra oportunidade, "na indústria da moda, há muitas alternativas para diminuir a falsificação, além da fiscalização: parceria entre estilistas famosos e grandes marcas de fast fashion (por exemplo: Versace e Riachuelo, Karl Lagerfeld e Falabella, etc); expansão do mercado de aluguel de produtos de luxo (os novos consumidores, chamados de millenials e geração ZA, buscam por experiência, preferem o 'usar' ao 'ter'); o desenvolvimento do segmento conhecido como 'difusion line', que são as segundas e terceiras linhas de produtos de uma grande marca; e muitos outros, como as práticas de 'compliance'."xiv A primeira alternativa mencionada, ou seja, as parcerias contratuais, collabs ou co-branding, como são conhecidas, são importantes instrumentos jurídicos e muito comuns nas últimas décadas na moda, podendo ser definidos como a combinação de duas marcas para criar um único produto. O objetivo da co-branding é capitalizar o patrimônio de cada marca e aumentar o sucesso do produto total. Trata-se de uma aliança entre duas marcas conhecidas, que se apresentam ao mesmo tempo ao consumidor. É uma estratégia que vem obtendo sucesso e muitas vantagens, dentre elas, a de uma empresa estender sua marca para uma categoria de mercado que, sem o suporte da outra marca, seria de difícil acesso. No Brasil, tivemos, recentemente, em 2021, o exemplo da parceria entre Riachuelo e a marca italiana Moschino. Como subespécie do contrato de parceria, podemos destacar a modalidade ingredient branding. Ingredient branding é um tipo de co-branding, é o termo técnico para essa estratégia de levar o produto, originalmente um produto business-to-business, para o mercado consumidor, onde ele obtém reconhecimento global. Ingredient Branding é uma gestão estratégica de marcas para materiais, componentes, peças, serviços, etc. Como exemplos mundialmente reconhecidos dessa prática na área da moda, temos o ingrediente Lycra, Swarovski, Seta di Como, e muitos outros. Cláusulas contratuais especiais podem e devem estar presentes nos fashion contracts. Dentre elas, podemos destacar as principais: não aliciamento, multa-diária e multa-horária (nas coleções de moda, horas de atraso podem significar perdas irreparáveis), exclusividade, limites à liberdade de expressão fotográfica (retoques autorizados), exoneração de responsabilidade por danos (produtos com defeitos), atividades de marketing e venda, padrão de produção (qualidade).xv Esta última, por sua vez, é cláusula imprescindível em contratos de ingredient branding, em que o parceiro contratual que fornece o ingrediente deseja que o produto final elaborado pelo produtor tenha um mínimo de padrão de qualidade, a não prejudicar seu nome no mercado. Falando de produção, ou melhor, da cadeia produtiva da moda (da matéria-prima ao mercado de consumo), também se deve seguir as exigências de sustentabilidade. Além de um produto que atenda ditames de sustentabilidade ambiental, o trabalho digno, com respeito às condições mínimas de saúde e segurança, deve ser perseguido, incluindo os trabalhadores migrantes, devendo ser eliminado o trabalho infantil, o trabalho forçado, a escravidão moderna, o tráfico de pessoas. Como diz Lilyan Berlim, a indústria da moda deve criar produtos que demonstrem consciência diante de questões sociais e ambientais.xvi Ao final dessa cadeia, momento em que se chega ao mercado de consumo, algumas questões jurídicas merecem destaque. Dentre os julgados selecionados, há um caso que envolve violação aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, e outro que envolve coligação contratual, respectivamente. O primeiro diz respeito ao inadimplemento de contrato de prestação de serviços de modelos, que, por intermédio de uma agência, assumiram obrigações (personalíssimas) "de realizar ensaio fotográfico para campanha publicitária, de participar de coquetel de lançamento e de realizar os desfiles de abertura e encerramento como 'noiva símbolo' da 14ª edição do Fest Noivas de 2007, não tendo comparecido aos eventos conforme combinado. (...) Sob tal perspectiva, verifica-se que, na espécie, as recorridas chegaram atrasadas para o coquetel de lançamento, por sua culpa, e dele saíram, inesperadamente, antes do combinado; deixaram o hotel na madrugada seguinte, sem comunicar previamente os recorrentes; ausentaram-se do desfile de abertura, comprovando apenas minutos antes a impossibilidade de fazê-lo; e deixaram de comparecer ao desfile de encerramento sem qualquer motivação razoável. E, conquanto tenham justificado a ausência da modelo no desfile de abertura, por motivo de saúde, certo é que as recorridas o fizeram tardiamente, quando lhes era exigível - e possível - comunicar tal fato prontamente, de modo a permitir que os recorrentes tomassem as providências que entendessem necessárias. Desse cenário extrai-se que o comportamento das recorridas revela absoluta inobservância dos deveres de informação e lealdade na execução do contrato, deveres esses aos quais, por força do art. 422 do CC/02, estavam vinculadas enquanto contratantes, mesmo que não escritos."xvi O segundo caso, por sua vez, narra uma situação de coligação contratual, em que se torna evidente que "a contratação de modelo para desfile e fotografia encerram atividades diversas, daí que a cessão de imagem pela apelante somente o foi para o desfile e atos dele decorrentes, jamais lhe foi esclarecido que se utilizariam das fotos para a finalidade que foram. Frise-se ser vago o depoimento de PF (a fls. 321), funcionário da requerida à época, a respeito, pois, não menciona a autorização expressa da autora, mas sim um juízo de valor de que ela sabia do uso para catálogo comercial. O fato de a autora haver posado para as fotografias não encerra autorização tácita para a publicação do catálogo, mas apenas o registro do desfile." Assim, o descumprimento de uma das obrigações contratuais - uso de imagem sem autorização, implica na violação do contrato como um todo, já que existe coligação contratual, resultando em indenização pelos danos sofridos. Por fim, nota-se que muitos outros casos envolvem o desrespeito por parte de terceiros aos contratos já celebrados (como se verá adiante), assim como também os contratos com influenciadores digitais, considerados peças fundamentais para as marcas, hodiernamente. Nesse sentido, interessante e recente julgado do E. TJSP, envolvendo marca de cosméticos, com fundamento no instituto do aliciamento, previsto no art. 608, do CC, e muito comum em relações que envolvem o fashion law e modelos de negócios de empresas de moda. Segundo a ementa, trata-se de "ação cominatória movida pela empresa licenciada da "Mary Key" no Brasil contra terceira que vende produtos dessa marca. Alegação de concorrência desleal, em desrespeito a seu modelo de negócios, de venda de produtos de beleza de porta em porta. Ação julgada improcedente. Apelação da autora. (...) Cabal demonstração pela autora dos fatos constitutivos de seu direito, a saber, o contrato de importação e distribuição exclusivas de produtos da marca "Mary Kay" celebrado com a sociedade estrangeira titular da marca, bem assim qual seja seu modelo de negócios (utilização de colportores, os vendedores de "porta em porta"), fato público e notório: não há vendas em lojas, físicas ou virtuais. Não pode ser outra a explicação para a posse dos produtos de que se cuida, senão a de que a ré alicia contratantes da autora, os colportores, para que os entreguem para venda. Facilidade com que a ré poderia ter provado a licitude da aquisição dos produtos "Mary Kay", apresentando notas fiscais de compra, em contraponto com a evidente dificuldade para a autora de provar o contrário. Teoria dos ônus dinâmicos da prova (§ 1 o do art. 373 do CPC). Peculiaridades da causa que indicam a impossibilidade ou a excessiva dificuldade de cumprimento, pela autora, do encargo de provar decorrente do art. 373, I, do CPC. Ré terceira ofensora. Art. 608 do Código Civil: "Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos." Doutrina de ALEXANDRE DARTANHAN DE MELLO GUERRA, MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO e NELSON ROSENVALD. Ofensa ao modelo de negócios da autora, consistente na intermediação direta entre produtor e consumidor por colportores pessoas físicas que atuam em território determinado e estabelecem relacionamento de fidelidade com clientes, a caracterizar concorrência desleal. Precedentes das Câmaras de Direito Empresarial deste Tribunal em julgamentos a envolver a própria "Mary Kay" e também a marca pioneira nas vendas de porta em porta, "Avon". Sentença reformada, ação julgada procedente, apelação provida."xviii Discussões doutrinárias e jurisprudenciais surgirão, sempre. É o que se percebe, por exemplo, no tocante à figura dos influenciadores digitais, cuja responsabilidade civil tem sido tema frequente, enfrentando posições em diversos sentidos: da responsabilidade subjetiva à objetiva, com destaque para o fundamento do fornecedor por equiparação. O que buscamos, no campo do fashion law, é harmonizar o instituto da responsabilidade civil com as peculiaridades de um setor específico, que exige um prévio conhecimento de suas funcionalidades por parte de seus atores. Portanto, se na construção das teorias jurídicas, falamos em pirâmide de Kelsen, no Direito da Moda, o segmento é compreendido pela pirâmide fashion, e, nela, não cabem soluções jurídicas Prét-à-Porter! _____________ i JIMENEZ, Guillermo C.; KOLSUN, Barbara (coord.). A survey of Fashion Law. Key Issues and Trends. In: Fashion Law. A guide for designers, fashion executives & attorneys. Second edition. New York: Bloomsbury, 2014, p. 2. ii SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Fashion Law. Posição favorável. In: Carta Forense, mar 2017. iii Enrique Ortega Burgos. Presidente da Associação dos Peritos em Direito da Moda, membro do comitê executivo do MODAESPAÑA, membro do comitê de especialistas da Associação Espanhola de Retalhistas AER, e consultor e CEO em EO Editorial. iv LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia de bolso, 2017, p. 09. v LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia de bolso, 2017, p. 12. vi Ver SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A indústria da moda e os novos paradigmas contratuais: princípios, espécies e características. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz (coord.). Fashion Law. Direito da Moda. São Paulo: Almedina, 2019, p. 79-94. vii Ver SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: LTr, 2008. viii Ver "Caso Giovanna Antonelli": A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a um recurso da atriz Giovanna Antonelli para determinar a utilização de critérios técnicos na apuração do lucro da intervenção obtido por uma farmácia de manipulação com o uso indevido de sua imagem para vender um produto. Sem contrato ou autorização, a farmácia utilizou o nome e a imagem da atriz de forma sugestiva para alavancar as vendas de um composto "detox" que teria efeitos de emagrecimento. De acordo com o Enunciado 620 da VIII Jornada de Direito Civil, que interpretou o artigo 884 do Código Civil, "a obrigação de restituir o lucro da intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa". Além de reconhecer o dever de restituição do lucro da intervenção, o relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que, "para a configuração do enriquecimento sem causa por intervenção, não se faz imprescindível a existência de deslocamento patrimonial, com o empobrecimento do titular do direito violado, bastando a demonstração de que houve enriquecimento do interventor". (Disponível em: Último acesso em: 02.03.2022). ix Aula Magna no curso de LLM em Fashion Law Mackenzie, em 31 de agosto de 2021. x CIETTA, Enrico. A economia da moda. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. xi OLIVEIRA, Tiago de. A proteção jurídica das criações de moda. Entre o Direito de Autor e o Desenho ou Modelo. Coimbra: Almedina, 2019, p. 17. xii PEREIRA, Flávio Leão Bastos. Os Direitos Humanos e Apropriação Cultural na Indústria da Moda. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Fashion Law. Direito da Moda. São Paulo: Almedina, 2019, p. 319. xiii Ver ROVAI, Armando Luiz (org.). Atualidades na proteção das marcas e propriedade intelectual. Combate à pirataria. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2021. xiv SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Entrevista. In: ROVAI, Armando Luiz (org.). Atualidades na proteção das marcas e propriedade intelectual. Combate à pirataria. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, p. 450-451. xv Palestra "Contratos na Indústria da Moda", proferida por Renata Domingues Balbino Munhoz Soares, em 20 de setembro de 2019, na OAB de Santos-SP. xvi BERLIM, Lilyan. Moda e Sustentabilidade. Um reflexão necessária. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016. xvii STJ, Resp. nº 1.655.139 - DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 05/12/2017. xviii Apelação Cível nº 1040406-81.2016.8.26.0100. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. CESAR CIAMPOLINI, j. em 27.01.2022.