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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
Introdução* O ar da madrugada do dia 12 de Fevereiro de 2020 foi tomado por forte odor em  praticamente toda a Região Metropolita do Vale do Aço, Estado de Minas Gerais. O que ocorreu em razão de vazamento de gases não condensáveis (GNC - mercaptanas) resultante de uma falha no sistema de segurança de queima de gases da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra)1. Os efeitos desse acidente ambiental foram sentidos de forma mais intensa nos municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Timóteo e Santana do Paraíso. Contudo, eventos como esse, ocorrem há décadas nas cidades que compõe a Região Metropolitana do Vale do Aço. Os órgãos de fiscalização Estaduais e Municipais, exercendo o seu poder de polícia, autuaram a Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de ter "emitido matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com osníveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público"2. Considerando que a empresa possui sede no município de Belo Oriente e que as autuações decorrentes da poluição atmosférica por gases não condensáveis (GNC - mercaptanas) foram emitidas por Órgãos Ambientais do Estado de Minas Gerais e de municípios diversos, um questionamento surgiu, qual seja: teriam os municipios competência para proceder à autuação da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de uma acidente ambiental decorrente de emissão de poluição atnosférica ocorrido, em tese, fora de seus limites geográficos? A resposta para esse questionamento exige que (i) seja estabelecido um conceito de poluição transfronteiriça e (ii) analisada as regras de competência ambiental estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Só assim será possível perceber quais órgãos ambientais podem buscar a responsabilização da empresa infratora pelos danos ambientais decorrentes de sua ação ou omissão. Poluição Transfronteiriça: Estabelecendo um conceito para compreender o problema A doutrina aponta a Resolução do Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, de 14 de Novembro de 1974, como um dos primeiros atos normativos a definir um conceito de poluição3. Documento que define poluição como sendo "a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou energia no meio ambiente que causem consequências prejudiciais, de modo a colocar em perigo a saúde humana, prejudicar recursos biológicos ou sistemas ecológicos, atentar contra atrativos (agréments) ou prejudicar outras utilizações do meio ambiente"4 Definição que, no âmbito Direito Ambiental Brasileiro, é adotada pela lei Federal 6.938/1981, de onde extrai que poluição é "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: (a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; (c) afetem desfavoravelmente a biota; (d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; (e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos" (Art. 3º, III). Possível perceber, portanto, que, com pequenas alterações, o conceito de poluição é aceito pelo Direito Internacional e, também, pelo ordenamento jurídico brasileiro. Definição que, através do acréscimo de novos elementos constitutivos, permitiu a compreensão do que se entende por poluição transfronteiriça. Termo cuja origem se confunde com a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente. Afinal, a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente e, de certa forma, do Direito Ambiental interno foi impulsionada, dentre outros motivos, em razão de questões afetas ao trato da poluição transfronteiriça. Isso porque, a ciência jurídica-ambiental, que remonta o seu nascimento ao famoso caso da Fundição Trail (1941), surge em razão do combate a uma poluição que não respeita às fronteiras jurídico-políticas entre os Estados5. Embate jurídico que, passados trinta e um anos, influenciou na redação do enunciado do Princípio 21 da Declaração de Estocolmo. Norma proibitiva que impõe, aos Estados Nacionais, "a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob o seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional" (Princípio 21). Vedação que, ressalvadas alterações redacionais, é reafirmada no Princípio 2 da Declaração do Rio 92. O termo poluição transfronteiriça, como sedimentado na melhor doutrina e em diversos atos internacionais, se relaciona, portanto, à poluição cujas fontes emissoras se encontram localizadas em um determinado território, mas cujos seus efeitos ultrapassam os limites geográficos de origem6-7. Perceber-se, de tal forma, que a poluição transfronteiriça é uma forma de poluição atmosférica. Entendida, esta, como sendo "a introdução na atmosfera pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou de energia que têm uma ação nociva, de forma a por em perigo a saúde do homem, a prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas, a deteriorar os bens materiais e a pôr em risco ou prejudicar os valores estéticos e as outras legítimas utilizações do ambiente" (Art. 1º, a, Convenção de Genebra de 1979). Tratando do tema, a Resolução Conama 491, de 19 de Novembro de 2018, entende como poluente atmosférico como "qualquer forma de matéria em quantidade, concentração, tempo ou outras características, que tornem ou possam tornar o ar impróprio ou nocivo à saúde, inconveniente ao bem-estar público, danoso aos materiais, à fauna e flora ou prejudicial à segurança, ao uso e gozo da propriedade ou às atividades normais da comunidade" ( Art. 2º, I). Assim sendo, considerando que os gases não condensáveis emitidos pela empresa ultrapassaram os limites geográficos dos municípios de Belo Oriente atingindo os municípios de Ipaba, Santana do Paraíso, Ipatinga, Coronel Fabriciano, Timóteo e diversos outros municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, não restam dúvidas quanto a estar caracterizado o ato de emitir matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com os níveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público de todo o Colar Metropolitano do Vale do Aço. Desta feita, demonstrado que o ato de emitir gases não condensáveis (GNC - marcaptanas), em desacordo com as normas ambientais, acarretando inconvenientes ao bem-estar público de toda a Região Metropolitana do Vale do Aço, se amolda perfeitamente ao conceito: (i) de poluição; (ii) de poluição atmosférica; e, consequentemente, (iii) de poluição transfronteiriça, resta avaliar se os municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, atingidos pela poluição atmosférica emitida, possuem competência para lavrar o auto de infração e buscar a responsabilização da empresa infratora. Breve Análise da Competência Municipal para Lavrar o Auto de Infração em Razão de Poluição Atmosférica Transfronteiriça  A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugura uma nova ordem ambiental e, com ela, estabelece os limites para o exercício do poder de proteção do meio ambiente. Balizas que podem ser encontradas nos artigos 23, VI e VII, e 24, VI e VIII, da Carta Cidadã, de onde se extrai as regras de competência material e legislativa em matéria ambiental8. "Pela competência material, define-se qual ente político poderá exercer o poder de polícia em relação à matéria ambiental. Pela competência legislativa, define-se qual ente político tem poder para legislar sobre o meio ambiente".9 A proteção ambiental é, portanto, fixada de forma descentralizada, o que implica em uma repartição de competência entre os Entes Federados. Desta feita, a promoção e proteção do meio ambiente é realizada através de um sistema normativo e administrativo que envolve a atuação dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União.  A repartição de competência objetiva proporcionar uma melhor adequação das normas nacionais às peculiaridades locais, pois a competência em matéria ambiental possui como critério delimitador o princípio da predominância do interesse público. Competência que é tanto material como legislativa, conforme dito alhures. No que tange à competência material, o artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil afirma que: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; (...). Percebe-se, portanto, que o exercício do poder de polícia em matéria ambiental caracteriza competência comum de todos os Entes Federados. Ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem o exercer. Quanto à competência legislativa, o artigo 24 de nossa Magna Carta dispõe que: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...)VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; (...);VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...).  Significa dizer que todos os Entes Federados podem legislar em matéria ambiental, devendo: (i) a União fixar normas gerais e (ii) os Estados e os Municípios estabelecerem normas de caráter supletivo, respeitadas as suas especificidades e o interesse local. Cabe, portanto, ao Município desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, o que deve ser feito através de um exercício concreto da competência legislativa e material atribuída ao referido ente federativo. Ou seja, ao Município foi "outorgada não apenas uma competência legislativa residual para aspectos de interesse local (art.30, I e II da CRFB), mas também uma competência material para atuar em paralelo e em conjunto com os demais entes (art. 23, VI e VII)10. Desta feita, "a técnica de repartição de competências empregada pelo constituinte levou em consideração a maior eficácia da proteção, o menor custo e a participação (comprometimento) da sociedade na salvaguarda dos bens e valores contemplados pelas citadas normas"11. No que se refere especificamente à chamada competência material (administrativa), simples debruçar sobre o texto do artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil é capaz de comprovar se tratar de competência comum. Significa dizer que, "neste caso, existe a possibilidade de mais de um ente político (União, Estado, Município) atuar para tratar do mesmo assunto em pé de igualdade com os outros. Vale a regra ainda que, a priori, o ente federativo não tenha competência para legislar sobre o tema ali tratado"12. A atuação de um dos entes federativos, de tal forma, não exclui a competência dos demais, que podem exercer cumulativamente a competência material (administrativa), sempre objetivando uma melhor concretização da proteção e promoção do meio ambiente13. Resta claro que "a ideia do legislador constituinte, ao estatuir a competência comum, foi evitar que a tutela jurídica do meio ambiente fosse prestada de modo deficiente"14-15. Assim sendo, se tratando de poluição atmosférica transfronteiriça que acarretou inconvenientes ao bem-estar público da população do município de Coronel Fabriciano, resta claro a ocorrência de dano ambiental local, o que autoriza o exercício do poder de polícia por parte dos Órgão Ambientais de todos os municípios afetados. Conclusão Ante ao exposto resta claro a competência dos Órgãos Ambientais de todos os municípios afetados pela poluição atmosférica transfronteiriça decorrente da emissão de gases não condensáveis para autuar e buscar a responsabilização da empresa emissora dos poluentes. Responsabilização que, por ser objetiva e decorrente da Teoria do Risco Integral, apesar de exigir a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, impossibilita que a empresa responsável pelo dano ambiental busque guarida nas excludentes de responsabilidade civil, conforme sedimentado na jurisprudência pátria uníssona16. O que significa dizer que a responsabilidade da empresa emissora dos poluentes subsiste independente da presença de situações de culpa exclusiva da vítima, culpa de terceiro, caso fortuito e/ou força maior. Isso porque, sua obrigação de reparar os danos ambientais decorre do mero exercício de sua atividade, resguardado o seu direito à ação de regresso. __________ * O presente artigo tem por base parecer emitido pelo autor no exercício de suas atribuições como Gerente Consultivo de Prevenção da Secretaria de Governança Jurídica do Município de Coronel Fabriciano. Sendo importante observar, ainda, que o caso empírico abordado foi amplamente noticiado pelos veículos de informação. 1 Notícias sobre o ocorrido podem ser acessadas aqui (Nota de Esclarecimento à Comunidade da Cenibra); (ii) (Notícia publicada no site G1); (Notícia publicada no site Diário do Aço); entre outros. 2 Artigo 2º, I, da Resolução Conama nº 491, de 19 de Novembro de 2018. 3 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades. Editora Atlas. São Paulo. 2001. p. 212. 4 KISS, Alexandre. Droit International de L'environnemente. p. 68. Tradução livre. 5 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del Medio Ambiente. McGraw-Hill. Madrid. 1999. p.263 ss. 6 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del...Op. Cit. p.263 ss. 7 O conceito do termo "poluição transfronteiriça" pode ser encontrado, com pequenas alterações, em diversas Convenções e Protocolos  internacionais. 8 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 164 ss. 9 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 165. 10 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 188. 11 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 189. 12 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 195. 13 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 194 ss. 14 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 197. 15 Sobre o tema ver: STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 711.405/PR, rel. Min. Humberto Martins, DJ 15-5-2009 16 Neste sentido ver, entre outros: STJ. AgRg no AREsp 232494/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 26/10/2015.
George Orwell, em seu "1984", descreveu a figura do "Grande Irmão" para representar o Estado, que se julgava autorizado a prescrutar a vida de todos, sob os mais variados pretextos. Assim, naquele enredo, ninguém mais estava sozinho. Todos estavam fadados a ser permanentemente vigiados. Sua privacidade, intimidade), imagem e outros direitos da personalidade foram completamente relativizados. E hoje, será que essa realidade mudou muito? Parece que o cenário sofreu alterações; e os protagonistas, esses, certamente, são outros. Quanto ao palco, a revolução tecnológica marcou o início da chamada sociedade informacional, que é complexa, conectada, globalizada, guiada pela velocidade, rapidez e facilidade das comunicações. Além disso, é pautada na informação do indivíduo e não mais na sua força de produção. Plasmada na globalização e no estabelecimento da sociedade informacional, a relação Estado/indivíduo alterou-se, gerando a necessidade de se conceber novos conceitos - como a cidadania digital, por exemplo - e, consequentemente, numa releitura dos direitos fundamentais e da personalidade, tanto em escala vertical (face ao Estado), quanto na dimensão horizontal (frente aos demais indivíduos e entidades particulares). Portanto, o cenário, atualmente, é muito mais virtual que real, e é nele que se percebe a formação de inúmeras relações jurídicas. No que tange aos personagens deste enredo, hodiernamente, não é mais o Estado o temido "Big Brother" que a tudo vigia. O "Olho de Sauron", hoje, se traveste das redes sociais (CASTELLS, 2017). E o que é pior: a violação dos atributos essenciais do indivíduo, via de regra, é incentivada por elas e facilitada "espontaneamente" pelo próprio ofendido. Então, também nesse aspecto, pode-se constatar modificação de dimensões bastante importantes, eis que um dos protagonistas deixa de ser o Estado e passa a ser as grandes corporações privadas. E ao voltar-se as luzes de análise aos dados das pessoas, e principalmente quanto ao sigilo e controle de seu uso - que foi erigido recentemente à categoria de direito fundamental - impende tecer algumas reflexões sobre essa expressa categorização, sobre a influência das estratégias de consumo como vetor que impulsiona a superexposição de informações e dados, bem como os impactos destes na seara da responsabilidade civil. É inegável que a internet seja hoje uma indispensável ferramenta de comunicação, de entretenimento, de informações e de exercício profissional, além de tantas outras finalidades que acumula. Ela liga indivíduos ao redor do mundo, viabiliza o compartilhamento de experiências, dados e cultura em tempo real, ao tempo em que possibilita a realização de compras de produtos quando não se tem acesso físico aos mesmos e, é claro, facilita a ampla pesquisa de mercado a qualquer hora. Todavia, todas essas facilidades e benesses não estão disponíveis online despretensiosamente: grande parte delas é fomentada ou incentivada pelas táticas de marketing e consumo, impactando as pessoas sem muitas vezes elas sequer notarem, especialmente quando se trata de seus direitos mais essenciais. O mecanismo é nefasto: Há muito já se entendeu que não é a necessidade de fato o elemento determinante da compra, o seu combustível natural. O que se busca suprir - muitas vezes de modo insano - é o status que dado produto vai atribuir ao comprador e como a estética trabalha a serviço do consumo, como destacam Gilles Lipovetsky e Elyette Roux (2005), em seu "O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas". E esse comportamento passa pelas mais variadas "escolhas": desde o tipo de carro, a escola dos filhos, a marca do smartphone, as grifes das roupas, o destino de viagens, as festas frequentadas e outras. Também é fato que esses tipos de consumo são incentivados/provocados a ser expostos nas redes sociais, tendendo-se a rotular pessoas com base em um padrão de consumo que estratifica os indivíduos (BAUMAN, 2004). E no afã de se enquadrar num perfil socialmente valorizado ou de pertencer a determinado grupo, muitos indivíduos, ao exibirem muito de suas vidas nas redes sociais, permitem àquelas, a formação de um gigantesco banco de dados e a composição de um perfil extremamente detalhado de suas preferências (notadamente as de consumo). Assim, cada um contribui para a violação de direitos da personalidade e, de modo especial, quanto aos próprios dados (que comporão os tais perfis, cujo conhecimento e domínio não pertencem mais do Estado - daí a afirmação alhures de que os protagonistas deste enredo já não serem mais os mesmos) -, mas aos milionários e influentes comandantes destas empresas globais. O "Grande Irmão" (ou seria o inimigo?), agora é outro. Nessa perspectiva, então, já resta sabido, consabido e discutido que essa postura gera potenciais riscos aos usuários das redes, eis que dados (sensíveis ou não) valem muito dinheiro e informações são muito preciosas no que tange ao direcionamento das políticas de mercado. Ou seja: essas informações armazenadas (disfarçadas de perfis) têm um elevado valor comercial e são, a olhos vistos, disponibilizados e comercializados para fins de estratégias de marketing. Ora, quem aqui nunca efetuou uma busca numa página de viagens e imediatamente começou a receber propaganda de pacotes, promoções etc para o destino pesquisado? E quantas vezes a mesma coisa ocorre quanto a um dado produto ou serviço comentado ou curtido? Então, ao incentivar a divulgação doentia e constante de tudo que se faz, as redes sociais fomentam a deletéria isca: fazem com que se contribua "espontaneamente" para a permanente alimentação e atualização destes arquivos e, é claro, lucram milhares de dólares com isso. E não é preciso muito esforço para fazer com que as pessoas contribuam com esse arquivo de modo constante: a postura exibicionista é fomentada pela tese de que quem não frequenta as redes sociais cai no ostracismo e será excluído das relações profissionais, de mídia, de relacionamento, ou que se a pessoa não adquire tal produto, não realiza dada atividade, não é convidado a estar tal local, não possui um smartphone do último tipo e da marca mais glamurosa, não está apto ao convívio social: Pobres daqueles que, em razão da escassez de recursos, são condenados a continuar usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas. Pobres daqueles que, pela mesma razão, permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos da sociedade de consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes, os fracassados - famintos definhando em meio à opulência do banquete consumista. (DIAMOND, 2013, p. 66). Nessa linha, e por receio da exclusão, os indivíduos culminam por fazer o que não desejam, a trabalhar com o que não os provoca satisfação e a gastar recursos os quais não possuem; tudo para serem acolhidos pelo estrato que elegeram como relevante: voilà o retrocitado mecanismo nefasto! Quanto a este ponto, deve vir à lume um efeito que tangencia não somente o Direito e o mundo virtual como de costume, mas que também toca às relações de consumo: o Efeito Veblen, ou Efeito de Esnobismo. Trata-se de uma teoria que não é nova, mas pode ser revisitada face ao mundo virtual, adquirindo novas tintas, afinal, "Assim como a idade moderna foi obcecada pela produção e pela revolução, a idade pós-moderna é obcecada pela informação e pela expressão". (LIPOVETSKI, 2005, p. 23). Bem, a Teoria foi publicada no final do século XIX, em 1899, sob o nome de "Teoria da Classe Ociosa" pelo economista e sociólogo Thorstein Veblen e trata de "uma sátira aos costumes das classes altas", ridicularizando o jogo, a religião, a moda e até os animais domésticos das classes abastadas de sua época (VEBLEN, 1965), sendo que foi por meio dessa obra que "os conceitos de ócio e consumo conspícuos disseminaram-se e passaram a fazer parte do jargão das ciências sociais". (MONASTÉRIO, 2005, p. 01). Para Veblen, no consumo de bens de luxo, quanto mais elevado o preço do produto, mais desejável ele será. Traduzindo em miúdos: tudo que é caro é bom; diferencia dos comuns e mantém numa classe social de pessoas que se distinguem das demais. Torna exclusivo. Sob esse prisma, não seria, portanto, a necessidade natural que determina o ato de consumir, mas sim o ato de mostrar o que se consumiu: [...] O consumo ostentatório é símbolo de um vínculo a um grupo privilegiado e não pode ser inferido da axiomática da microeconomia. [...] Quanto mais aumentar o preço desses bens, tanto mais seu consumo satisfaz as exigências sociais do grupo e tanto mais importante é a sua procura. [...] O efeito Veblen, a semelhança de outros efeitos, mostra bem que, ao contrário de uma hipótese da teoria da escolha racional, o consumo de um indivíduo ou de um grupo social não é independente do de outrem. (BOUDON, 1995, p. 154). Atualmente esse efeito pode ser verificado no episódio do indonesiano Rudy Kurniawan (REVISTA VEJA, 2012) que, rico e elegante, leiloava as garrafas a preços caríssimos. O vinho era falso (como constatou o FBI) mas, mesmo assim, muitos diziam que como era caro, ainda que de gosto duvidoso, deveria ser bom (?!). E onde esse efeito (impulsionado pelas políticas de consumo) tangencia o mundo virtual e o comportamento das pessoas, notadamente quanto a violação de seus dados e outros direitos fundamentais e da personalidade? Sabe-se de inúmeras pessoas que se espelham nos chamados influenciadores. Também se sabe que eles constantemente recebem "presentes" das grandes marcas para ostentar os mimos e despertar a cobiça de todos que, no afã de se distinguir da plebe ordinária que compra em lojas mais populares e são praticantes de preços acessíveis, a se endividar para adquirir produtos cuja qualidade nem é tão constatável assim (mas é invariavelmente, cara). Um dos exemplos emblemáticos nesta seara é o da norteamericana Lisette Calveiro, que acumulou uma dívida de 32 mil dólares para adquirir produtos valiosos somente para postar em suas redes sociais e tornar evidente um modo de vida diferenciado das outras pessoas (O ESTADO, 2018), (leia-se, caro e, portanto, pela lógica Vebleriana, bom!), mesmo que esse modo de vida não fosse, de fato, tão bom assim. Tudo isso, somente para alimentar a superexposição permanente em redes sociais (e a provocar, subliminarmente, a atualização do seu banco de dados). Assim, é preciso que se dê conta da massiva política de incutir nas pessoas as tais "necessidades" que, de fato, não existem. E o efeito Veblen é só mais uma dessas artimanhas. O mote principal, além do marketing, é a obtenção de informações e dados das pessoas, como já afirmado. E como comporta-se o ordenamento jurídico - notadamente o microssistema reparatório - quanto à ofensa aos direitos da personalidade - enfaticamente face aos dados e ao seu (mau) uso? Bem, os dados pessoais passaram a gozar do status de direito fundamental por força da EC 115/22, aprovada no último mês de fevereiro. Então, principiando-se por aí, impende informar como remansa o texto constitucional após a publicação da mesma, eis que provocou a alteração da redação de três artigos da Constituição, a ver: A mais impactante modificação, foi a inserção expressa dos dados como direito fundamental no rol do artigo 5º, eis que o seu inciso LXXIX passou a conter o seguinte: "[...] é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Em consequência desta inclusão, o inciso XXVI do art. 21, teve sua redação alterada para: "Compete à União: [...] organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei"; e o art. 22 passou a vigorar com acréscimo do inciso XXX, cujo teor é "[...] Compete privativamente à União legislar sobre: [...] proteção e tratamento de dados pessoais".   Assim, diante da inserção dos dados pessoais no rol de direitos do artigo 5º constitucional, daqui em diante, não se discute mais a fundamentalidade do direito ao controle e gestão dos dados e informações das pessoas, sendo que quanto a sua proteção, deve-se dar destaque à concretização do já conhecido princípio da autodeterminação informativa, que se constitui na [...] faculdade que toda pessoa tem de exercer, de algum modo, controle sobre seus dados pessoais, garantindo-lhe, em determinadas circunstâncias, decidir se a informação pode ser objeto de tratamento (coleta, uso, transferência) por terceiros, bem como acessar bancos de dados para exigir correção ou cancelamento de informações. (BESSA, 2020). Do prisma da legislação ordinária, tal como antes da EC 115/22, o CC/02 pugna pela tutela dos direitos da personalidade de modo amplo em seu art. 12 e, de modo mais específico quanto aos dados, no art. 21, eis que estes são abrangidos pelo conceito de vida privada do indivíduo. (FERRAZ JUNIOR, 1999). Ainda acerca da proteção dos dados conferida pelo cc/02, há o enunciado 404 da V Jornada de Direito Civil, que reforça o entendimento de que aquele diploma legal não deixou a latere tal direito. Seu teor é o seguinte: A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnicas, as convicções religiosas, filosóficas e políticas. (sublinhou-se). Quanto a legislação especial, a lei 12.965/14 (o Marco Civil da Internet) esposa como um dos princípios do uso da internet no Brasil, o da proteção da privacidade e da intimidade (artigo 3º), o que fica reiterado pelo art. 7º, que versa sobre a cidadania: O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos. Inciso I - Inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Mais especificamente, Lei 14.058/20 (Lei Geral de Proteção de Dados ou LGPD), que entrou em vigor em setembro de 2021, é preclara quanto aos mais variados aspectos destinados a tutela, controle, manutenção, exclusão e administração de dados dos indivíduos, sendo que o mau uso, o vazamento, a publicação e tantas outras violações são passíveis de punições ao praticante, bem como fazem jus a indenização ao ofendido quanto da sua ocorrência. Todo esse aparato legislativo, é claro, intensificou também a análise e decisões proferidas pelos Tribunais do País, notadamente quanto a seara indenitária. Numa breve busca, pode-se colacionar decisões em que se concede a indenização levando em conta o simples fato de haver exposição dos dados (TJ/SP. Apelação Cível 1003122-23.2020.8.26.0157) ou outras que condicionam o pagamento de danos morais à vinculação entre o vazamento das informações e danos sofridos pelos autores das ações (TJ/SP. Apelação Cível 1008308-35.2020.8.26.0704). Se se pode indicar alguma novidade, é a possibilidade da condenação por dano moral coletivo (TJ/RJ. Ap. 0418456-71.2013.8.19.000). Quanto aos danos materiais, somente se condena à indenização se presentes os corriqueiros requisitos de indenizabilidade (TJ/DF. Ap. 0702829-80.2020.8.07.0020). Em todas as decisões analisadas, o aporte é sempre o art. 42 da LGPD: [...] o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. É certo que até pela pouca idade da LGPD, não há uma jurisprudência formada. Vislumbra-se, ainda, orientações divididas e posicionamentos díspares entre si, o que, muito provavelmente, com o passar do tempo e o amadurecimento da ideia de que os dados - agora de maneira expressa - galgaram o patamar de direito fundamental, vá se consolidar de forma mais tranquila. Assim, e analisados, mesmo que de forma breve, o estado d'arte da questão, finalmente é preciso trazer algumas reflexões sobre a questão, de modo específico quanto ao tripé deste ensaio: A um, será mesmo que as redes sociais (que nada mais são que grandes empresas como quaisquer outras), que insuflam a superexposição e alimentam "necessidades" como iscas para a coleta de dados e arquivamento de informações, e que, a claras luzes, lucram milhares de dólares por dia com isto, devem continuar atuando sem qualquer fiscalização ou freio estatal? Nessa linha, a ANPD  - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que deve fiscalizar a aplicação da LGPD, afirmou que inicialmente adotará apenas uma "postura responsiva", ou seja, não impactará de imediato, muito menos mitigará as nefastas práticas mercadológicas incentivadas e impulsionadas pelas redes. Isso, a despeito do art. 52 da LGPD, que prevê penalidades às situações em que houver dano decorrente do tratamento irregular de dados pessoais por controladores e operadores. A dois, as grandes redes, diante de vários escândalos já ocorridos, bem como da influência que exercem (na política, na sociedade e, mais que tudo, na economia), devem permanecer com suas práticas deletérias sem qualquer consequência jurídica? Neste ponto, não há como permitir a continuidade da atividade das redes sem considerar o princípio ubi emolumentum, ibi ônus; ubi commoda, ibi incommoda. Que seja, a concepção acerca da assunção do risco de produção de danos advindos de sua atividade, que quem incentiva a exposição de dados e com a qual lucra de maneira acentuada e inequívoca, deve responder pelos danos e desvantagens dela resultantes. A três, será que somente quando houver o inconteste vazamento de dados com danos morais comprovados, é que se ensejará eventual indenização (e do ponto de vista individual, apenas)? Ao que parece, neste aspecto, a concepção do dano moral in re ipsa seria o mais adequado, eis que a exposição do dado ou informação já viola, por si, direito da personalidade (privacidade ou intimidade dos dados), sendo desnecessária a exploração comprobatória do dano efetivo. Isso porque o argumento de que incidentes de segurança acontecem, e que nestas situações, somente se se constatar alguma violação a direito da personalidade é que haverá, como consectário, a condenação à compensação moral não deve perdurar, sob pena de haver uma inversão na concepção adequada de dano moral, convertendo-se num quase-dano material. A quatro, o que dizer do risco de dano (ou do dano potencial) que sofre aquele que tem seus dados e informações expostos? Ora, a mera exposição de dados e informações já não acarreta prejuízo à vítima, eis que a coloca em situação de risco e potencial prejuízo? A exposição indevida ao risco já é matéria pacífica em outras sendas, como na Justiça do Trabalho (vide TST. RR 24-97.2017.5.05.0024), que condena à indenização dos profissionais que atuam em condições que lhes submetam a situação passível de causação de danos, como é o motorista de veículos de transporte de valores, sem se cogitar a pecha de dano eventual ou hipotético. O fato é que na seara compensatória ou reparatória, há muito que se evoluir quanto a satisfatividade das condenações que envolvam dados e informações pessoais. Talvez o fato de os mesmos terem sido erigidos à categoria de direito fundamental contribuam para o amadurecimento das decisões que versem sobre sua violação e indenizabilidade. Basta saber, então, se a exposição indevida de dados e informações do indivíduo, não viola, por si só, um direito seu, fundamental e da personalidade, cujo substrato axiológico é a dignidade. E se houver essa ofensa, se não deverá esta ser devidamente indenizada por quem aufere gigantescas vantagens econômicas com a sua captação, conservação e controle cotidiano, mesmo que o fazendo de modo camuflado e subliminar. _____ 1 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. São Paulo: Zahar, 2004. 2 BESSA, Leonardo Roscoe. A LGPD e o direito à autodeterminação informativa. Site genjurídico.com.br. Seção de Artigos, de 20 out. 2020. Disponível aqui.  3 BOUDON, Raymon (Org.). Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 4 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venancio Majer. 18. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017. 5 DIAMOND, Jared Mason. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. Tradução de Silvia de Souza Costa. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. 6 FERRAZ, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 88, 1999. 7 LIPOVETSKY, Gilles; ROUX, Elyette. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch. Barueri, SP: Manole, 2005. 8 MONASTÉRIO, Leonardo Monteiro.  Veblen e o Comportamento Humano: uma avaliação após um século de "A Teoria da Classe Ociosa". Cadernos IHU de idéias, ano 3, 42/05. Disponível aqui. 9 O ESTADO de São Paulo. Blogueira contrai dívida de R$ 32 mil para fazer posts 'perfeitos' no Instagram. Jornal O Estado de São Paulo, 09 mar. 2018. Disponível aqui.  10 REVISTA VEJA, Indonésio é preso por golpe de US$ 1,3 mi em falsificação de vinhos. Revista Veja, versão online, Coluna de Economia, 13 mar. 2012. Disponível aqui. 11 VEBLEN, Thorstein B. Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Pioneira, 1965.
Milhões de cirurgias robóticas já foram realizadas ao redor do mundo com o chamado robô "Da Vinci", desde 2000.1 Durante a cirurgia, o médico permanece num console, manuseando dois controladores gerais (joysticks) - e os movimentos das suas mãos são traduzidos pelo robô, em tempo real, em instrumentos dentro do paciente, eliminando-se, assim, o tremor natural das mãos do ser humano e possibilitando um procedimento executado com maior precisão. Devido à maior flexibilidade dos braços robóticos em comparação com as ferramentas laparoscópicas convencionais, além da ampliação da visão do cirurgião por meio de uma microcâmera, tornam-se completamente acessíveis locais anteriormente de difícil acesso ou até mesmo inacessíveis.2 A utilização do robô torna a cirurgia mais segura e precisa, eliminando o tremor natural das mãos do ser humano; a microcâmera amplia a visão do cirurgião e a tomada de decisões no decorrer do procedimento cirúrgico se torna mais rápida e exata.3 Em 2002, um cirurgião, localizado nos Estados Unidos, realizou a primeira telecirurgia em uma paciente que estava a milhares de quilômetros de distância, na França.4 As plataformas robóticas, nas últimas duas décadas, têm ampliado as fronteiras das inovações em tecnologias da saúde, para obtenção de melhores resultados clínicos. A cirurgia robótica surgiu em um momento que cirurgiões demandavam, cada vez mais, tecnologias cirúrgicas minimamente invasivas, mais precisas e seguras, para aperfeiçoarem sua atuação. No Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, é o pioneiro em cirurgia robótica desde 2008, quando um paciente idoso foi submetido à extirpação da próstata com a assistência do robô.5 No dia 23 de março de 2022, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução 2.311/22,6 que regulamenta a cirurgia robótica no Brasil, trazendo importantes temas ético-jurídicos - consentimento do paciente, política de treinamento de hospitais, capacitação da equipe, responsabilidade médico-hospitalar e solidariedade na responsabilidade da equipe médica. Nestas breves reflexões, propõe-se o debate acerca da responsabilidade médica e solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução. Ao propósito de se identificar a importância deste assunto, cumpre, inicialmente, trazer à baila o perfil de possíveis litígios na cirurgia robótica. Em novembro de 2015, um senhor morreu após se submeter à cirurgia robótica no Freeman Hospital, em Newcastle, Inglaterra. O robô fez um movimento brusco e dilacerou parte do coração do paciente durante a cirurgia. Abriu-se inquérito policial para determinar a causa da morte e o cirurgião acabou revelando que "poderia ter realizado a cirurgia com mais treinamento prévio no robô, antes da intervenção cirúrgica"7 no paciente em questão e, ainda, relatou que o proctor (médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci), que deveria estar presente durante toda a cirurgia, saiu da sala na metade do ato cirúrgico. Além disso, constatou-se que o hospital, onde ocorreu a intervenção, não possuía nenhum serviço de apoio e suporte ou política de treinamento dos médicos em cirurgia robótica. O diretor médico do hospital emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo que "falhou em garantir um padrão de cuidado razoavelmente esperado na cirurgia robótica". Na situação narrada, fica evidente a hipótese de dano diretamente ocasionado por imperícia do profissional, além da falha na prestação adequada do serviço pelo hospital. Nos Estados Unidos, tem-se notícia de diversos pacientes que pleitearam indenização por danos sofridos durante a performance dos robôs Da Vinci. Entre os anos de 2000 e 2013, há 10.624 relatos de eventos adversos.8 Em um período de dez anos, a Intuitive Surgical promoveu 175 recalls do robô Da Vinci9 - tanto para pequenos ajustes, como esclarecimentos de instrução e atualizações de software, bem como recalls mais graves, como o caso de uma faca cirúrgica que não podia se mover e realizar algum corte necessário, braços cirúrgicos que apresentaram falhas e outros componentes do robô que fizeram movimentos inesperados. Há registro também de um instrumento robótico que, depois de fixado a um tecido do paciente, não podia mais se abrir - o que gerou também outro recall. Até o momento, quase todos os conflitos envolvendo eventos adversos em cirurgia robótica nos Estados Unidos foram resolvidos extrajudicialmente com a fabricante, com cláusula de confidencialidade sobre os seus termos ou, ainda, decididos sumariamente pelo juiz (summary judgment) na fase chamada pretrial, com exceção de dois casos que foram levados a julgamento pelos tribunais norte-americanos, os quais, posteriormente, também resultaram em acordo: Zarick v. Intuitive Surgical (2016) e Taylor v. Intuitive Surgical (2017). Mais recentemente, em abril de 2021, julgou-se o caso Rosenberg v. 21st Century Oncology, no qual se reconheceu a culpa do médico diante de danos sofridos pelo paciente submetido à cirurgia robótica de prostatectomia.10 Já no Brasil, em 2019, foi julgado pela 4ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis/SC,11 o primeiro caso que se tem notícia sobre responsabilidade civil médico-hospitalar em evento adverso sofrido por paciente submetido à cirurgia robótica, discutindo-se a responsabilidade pela incorreta esterilização do robô. Em primeiro grau, o hospital foi responsabilizado. Atualmente, aguarda-se julgamento do TJSC dos recursos interpostos pelo hospital e paciente. Em contexto norte-americano, as demandas indenizatórias sobre eventos adversos ocorridos durante a intervenção médica assistida por plataformas robóticas são conhecidas como "finger-pointing cases".12 Isso, porque há sempre a complexidade na aferição de quem é responsável pelo dano ao paciente submetido à cirurgia robótica: equipe médica, hospital ou o fabricante do equipamento. O médico e o hospital, diante de evento adverso na intervenção, alegam que há defeito no próprio robô e consequente responsabilidade do fabricante. Este, por sua vez, defende que o dano decorre de erro médico ou, ainda, da má conservação ou incorreta regulagem do robô pelos prepostos do hospital. A partir do estudo acerca dos litígios ao redor do mundo envolvendo eventos adversos ocorridos na cirurgia robótica, pode-se observar que a grande complexidade na análise da responsabilidade civil dá-se, sobretudo, na determinação da causa eficiente do dano - e a quem se atribuir o dever de indenizar. Diante disso, ao investigar tal problemática no ordenamento jurídico brasileiro, alvitramos a metodologia a seguir descrita. Para atribuição da responsabilidade por eventos adversos na cirurgia robótica, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu: "a) do serviço essencialmente médico: quando o dano decorre de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da medicina, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. Reconhecida a culpa do médico (art. 14, § 4º, do CDC; art. 186 e 951, ambos do CC), responderá, em regra, solidariamente o hospital (art. 932, III, do CC). O médico responderá por culpa stricto sensu, nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia. Destaque-se que, caso o médico não tenha vínculo de emprego/preposição com o hospital, apenas alugue o espaço da entidade hospitalar, a fim de realizar o procedimento cirúrgico com auxílio do robô, o hospital não terá responsabilidade solidária pela conduta culposa do profissional. b) do serviço paramédico: quando o dano advém da falha na intervenção dos enfermeiros com a correta regulagem do robô ou inadequada esterilização dos instrumentos robóticos. Em geral, são praticados pela enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores. Nessa situação, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC; c) do serviço extramédico: quando o dano resulta da inadequada ou inexistente política hospitalar de treinamento de médicos e outros profissionais, defeito de qualquer instalação ou má conservação/manutenção do robô pelo não atendimento aos cuidados recomendados pelo fabricante. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC".13 Portanto, no eventual exame da responsabilidade civil, a equação é conhecida: em primeiro plano, analisa-se a atuação pessoal do médico, com o intuito de se reconhecer a ocorrência de culpa stricto sensu (imperícia, imprudência ou negligência), por parte do médico; reconhecida a culpa do seu preposto, responderá solidariamente o hospital. Já por defeito do robô cirurgião (do software ou de um instrumento robótico), responderá o fabricante, independentemente da existência de culpa (art. 14, do CDC), pela reparação dos danos causados ao paciente. O robô será considerado defeituoso quando não oferecer a segurança que legitimamente se espera (art. 12, § 1º, do CDC), levando-se em consideração sua apresentação, uso e riscos que dele se esperam e à época em que foi colocado em circulação. O fornecedor também será responsabilizado pelas informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos acerca do seu produto.14 Importante mencionar que, até pouco tempo atrás, notava-se uma realidade de médicos com pouca prática, que faziam um breve treinamento com o fabricante do robô e já realizavam cirurgias robóticas sozinhos depois de pouquíssimos procedimentos cirúrgicos com auxílio do proctor.15 Por isso, a questão da culpa médica em cirurgia robótica, especialmente da imperícia, devido ao insuficiente treinamento dos médicos já foi bastante criticada pela comunidade jurídica norte-americana e europeia. Destaque-se que cirurgiões com extensa experiência na tecnologia declaram que se sentiram proficientes com o sistema Da Vinci apenas depois de realizarem ao menos 200 procedimentos assistidos pelo robô.16 O Brasil é o maior mercado de cirurgia robótica da América Latina. Contudo, apesar das plataformas robóticas serem realizadas no país desde 2008, apenas em 2020, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), vinculado à Associação Médica Brasileira (AMB), publicou a primeira declaração com diretrizes sobre o processo para emissão do certificado de habilitação em cirurgia robótica no Brasil, a serem seguidas por todos os novos cirurgiões robóticos e entidades hospitalares.17 Atualmente, já se observa uma tendência de mudança do modelo de treinamento, especialmente pela criação de diretrizes para o desenvolvimento de proficiência na realização de procedimentos cirúrgicos robóticos, bem como devido à implementação de simuladores do robô, com treinamento em realidade virtual, para que os médicos possam praticar no próprio hospital onde atuam. Importante a ponderação de que, somente em março de 2022 - após 14 anos de cirurgias robóticas realizadas no Brasil - o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 2.311/22, que regulamenta a cirurgia robótica no país e traz as diretrizes para capacitação e política de treinamento por médicos e hospitais. Diante do cenário apresentado, observa-se a importância das disposições trazidas na Resolução CFM 2.311/22 sobre o treinamento específico dos médicos em cirurgia robótica (arts. 2º e 3º), as etapas básicas de capacitação (Anexo 2) e a responsabilidade do cirurgião-instrutor (proctor) na orientação no manejo do robô e avaliação da competência do cirurgião principal (art. 4º). A cirurgia robótica é um procedimento de alta complexidade (art. 1º, § 1º) e só poderá ser realizada por médico que cumpra dois requisitos: 1º) tenha registro de qualificação de especialista pelo CRM na área cirúrgica relacionada ao procedimento; 2º) possua treinamento específico em cirurgia robótica durante a residência médica ou capacitação específica para a realização de cirurgia robótica de acordo com o Anexo 2 (etapas 1 + 2). Além disso, o cirurgião principal, após completada a etapa básica de capacitação (etapa 1 do Anexo 2), só poderá realizar cirurgia robótica sob supervisão e orientação de um cirurgião-instrutor (proctor) em um número mínimo de 10 cirurgias robóticas na especialidade de atuação. Após cumprir as duas etapas de treinamento (básico e avançado) e o número mínimo de cirurgias, o cirurgião principal se submeterá a uma avaliação do cirurgião-instrutor para atestar a sua competência na modalidade de cirurgia robótica. Comprovada a conclusão e aprovação no treinamento com o proctor, o cirurgião principal terá autonomia para realizar cirurgia robótica sem a participação do proctor (§ 3º do art. 3º). Para atuar como cirurgião-instrutor em cirurgia robótica, o médico deve comprovar ter realizado um número mínimo de 50 cirurgias robóticas na condição de cirurgião principal (§ 2º do art. 4º). Ressalte-se que, independentemente se a cirurgia robótica é realizada pelo médico a poucos metros distância e na mesma sala de cirurgia em que se encontra o paciente ou, ainda, na situação do profissional que opera o robô de forma remota a milhares de quilômetros de distância (telecirurgia), há a necessidade de um cirurgião auxiliar junto ao paciente, para intervir em caso de mau funcionamento do robô ou quaisquer interrupções tecnológicas. Evidentemente, deve-se garantir que toda a equipe de profissionais da saúde envolvidos (enfermeiros e médicos - principal, auxiliar, anestesiologista e instrumentador) seja apropriadamente capacitada e receba constantemente treinamento e atualização na nova tecnologia. Isso porque, além de eventuais dificuldades tecnológicas, a incorreta esterilização ou calibragem de um instrumento robótico, por exemplo, pode aumentar a probabilidade de um movimento impreciso do robô cirurgião ou, ainda, ocasionar uma falha na transmissão da imagem do sítio cirúrgico.18 Além disso, no art. 2º (e Anexo 1) da Resolução CFM 2.311, indica-se que as plataformas de cirurgia robótica, aprovadas pela Anvisa, só poderão ser utilizadas nos denominados "hospitais de Alta Complexidade", isto é, unidades hospitalares com condições técnicas, instalações físicas, equipamentos, serviços de apoio e suporte a todas as intercorrências possíveis e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada aos pacientes submetidos às cirurgias assistidas por robôs. Em relação às cirurgias robóticas realizadas remotamente, o art. 6º salienta que a telecirurgia somente poderá ser realizada com infraestrutura adequada e segura de funcionamento de equipamento (§ 1º). Somando-se à obrigatoriedade do termo de consentimento livre e esclarecido na telecirurgia, é imprescindível uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a cirurgia será realizada (§ 5º). Oportuno mencionar que, segundo dados da H. Strattner - única empresa que comercializa o robô Da Vinci no Brasil - já foram realizadas mais de 30 mil cirurgias robóticas desde 2008. Além disso, entre 2008 e 2020, o número de equipamentos de robótica cirúrgica instalados em hospitais brasileiros saltou de 40 para 76, correspondendo a um crescimento de mais de 90%.19 Todavia, ainda reside a nível mundial um dos maiores desafios a serem superados no implemento das cirurgias robóticas à distância (telecirurgias): as limitações tecnológicas - especialmente o time delay -, apesar de já se observar a tendência de aprimoramento dos sistemas de telecirurgia, sobretudo a partir das redes 5G, as quais propiciam menor tempo de latência entre o cirurgião remoto e a sala de cirurgia onde fica o paciente.20 Frise-se que, esse cenário de maiores riscos na cirurgia realizada à distância, bem como a necessidade de aprimoramento tecnológico para implemento da plataforma robótica, justifica a exigência trazida pela Resolução CFM 2.311 de uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a telecirurgia será realizada. A equipe de cirurgia robótica é composta por cirurgião principal, cirurgião auxiliar, médico anestesiologista, instrumentador, enfermeiro de sala (responsável pela movimentação externa do robô), técnico de enfermagem circulante de sala (estruturação trazida no glossário ao final da Resolução CFM 2.311/2022). O cirurgião principal é o médico que responderá diretamente pelo ato cirúrgico, conforme disposto no art. 3º, § 4º, da Resolução CFM 2.311/2022, in verbis: "a responsabilidade da assistência direta ao paciente é do cirurgião principal em relação ao diagnóstico, indicação cirúrgica, escolha da técnica e via de acesso, além das complicações intraoperatórias e pós-operatórias". Já o cirurgião auxiliar em campo é o médico especialista responsável pelo auxílio ao robô e instrumentais robóticos, devendo estar pronto para intervir rapidamente em caso de eventos adversos relacionados ao paciente ou ao robô. Por fim, o cirurgião-instrutor em cirurgia robótica (proctor) orientará o cirurgião principal no manejo do robô, incluindo o console e instrumentais robóticos, mas não será de sua responsabilidade participar da indicação cirúrgica, da escolha da técnica cirúrgica ou mesmo da assistência direta ao paciente no intraoperatório ou no pós-operatório (art. 4º). No caso das cirurgias robóticas à distância, o § 2º do art. 6º da Resolução CFM 2.311/2022 indica que a equipe médica cirúrgica principal para a telecirurgia deve ser composta, no mínimo, por um médico operador do equipamento robótico (cirurgião remoto que responde diretamente pelo ato cirúrgico), além do cirurgião presencial e cirurgião auxiliar, os quais serão responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas, como falha no equipamento robótico, falta de energia elétrica, flutuação ou interrupção de banda de comunicação. Ademais, seja na cirurgia robótica presencial ou à distância, o art. 5º prevê a responsabilidade do diretor técnico do hospital na conferência da documentação sobre a capacitação e competência do cirurgião principal (responsável direto pelo ato cirúrgico), cirurgião instrutor (proctor) e demais membros da equipe, devendo, ainda, exigir que a equipe cirúrgica descreva o procedimento robótico-assistido em prontuário, com assinatura do cirurgião principal, do cirurgião-instrutor e de outros médicos que eventualmente integrem a equipe. Destaque-se que referida documentação será de extrema importância em eventual litígio para aferir a responsabilidade civil decorrente de dano sofrido pelo paciente na cirurgia robótica. Nesse sentido, o 4º Considerando da Resolução CFM 2.311/2022 indica a Resolução CFM 1.490/1998, a qual dispõe sobre a composição da equipe cirúrgica e responsabilidade entre os membros da equipe. Imagine-se que um cirurgião remoto, localizado num hospital em Londres, estivesse realizando uma telecirurgia em um paciente em São Paulo, no exato momento em que o sistema do hospital inglês sofre interrupção por invasão de um hacker. Diante disso, o monitor - que passava imagens do sítio cirúrgico do paciente brasileiro - de repente, fica preto, não sendo mais possível saber quais movimentos serão reproduzidos pelo robô no Brasil. Em tese, o robô possui um mecanismo de segurança e para de se movimentar diante de falhas/interrupções tecnológicas ou quando o médico afasta o rosto do console onde estava manuseando os joysticks do robô. De todo modo, tal como no caso ora apresentado, a equipe do hospital brasileiro precisa ficar de prontidão, ao lado do paciente e, verificando qualquer falha no sistema ou movimento imprevisível do robô cirurgião, afastar este do paciente e, imediatamente, adotar as condutas emergenciais cabíveis, incluindo a transformação do procedimento cirúrgico em uma cirurgia convencional (aberta) sem a assistência do robô. Esse é um exemplo, dentre tantos outros, de que podem ocorrer situações em que a cirurgia robótica precisará ser interrompida e substituída por uma cirurgia convencional, realizada pelas próprias mãos de um médico (auxiliar), sem interferência do aparato tecnológico. E, muitas vezes, surgirão cicatrizes maiores no corpo do paciente, pois aquela cirurgia robótica minimamente invasiva precisará ser transformada em uma cirurgia aberta, com cortes mais extensos. Segundo a própria empresa fabricante do robô Da Vinci, essa conversão do procedimento pode significar "um tempo cirúrgico mais longo, mais tempo sob anestesia e/ou a necessidade de incisões adicionais ou maiores e/ou aumento de complicações",21 informações estas que deverão ser repassadas previamente ao paciente. Mencionou-se anteriormente uma metodologia para aferir a responsabilidade civil por eventos adversos na cirurgia robótica a partir da identificação da gênese do dano, isto é, se o dano decorre de serviço essencialmente médico, paramédico ou extramédico. A questão é que a Resolução CFM 2.311/2022 traz à tona o debate sobre os inúmeros profissionais envolvidos na cirurgia robótica e a responsabilidade e solidariedade dos membros da equipe médica,22 demonstrando a necessidade de, somada à metodologia antes apresentada, fazer uma análise pormenorizada da teoria da causalidade adequada.23 Desse modo, investiga-se a possibilidade de responsabilidade solidária do médico-cirurgião chefe, por danos causados ao paciente em decorrência de erro médico cometido por outro membro da equipe. Pensando-se no exemplo anteriormente mencionado de evento adverso na telecirurgia: o cirurgião remoto (médico 1) está realizando uma telecirurgia e o robô para de funcionar devido à invasão de um hacker e queda do sistema, ou qualquer outro problema tecnológico ou falha do equipamento - sendo que o cirurgião presencial (médico 2) e a equipe localizada junto ao paciente demoram para adotar as condutas emergenciais devidas no afastamento do robô e conversão cirúrgica - vindo o paciente sofrer eventuais danos ou até óbito. Para definir os limites do nexo causal, vale novamente mencionar que, na telecirurgia, o médico remoto responde diretamente e somente pelo ato cirúrgico em si, ao passo que os responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas são o cirurgião presencial e o cirurgião auxiliar. Assim, no caso supracitado, aplicando-se a teoria da causalidade adequada e tese de interrupção do nexo causal, considera-se que o dano sofrido pelo paciente decorre de ato diretamente praticado pelo médico 2 e/ou equipe médica local. A interrupção tecnológica ou falha do equipamento robótico constituiu-se como circunstância superveniente que abriu uma nova cadeia causal, isto é, o dano sofrido pelo paciente não foi o efeito necessário da interrupção da telecirurgia pelo médico 1, mas sim culpa do médico 2 e/ou da equipe médica local. Inclusive, mesmo que verificado o nexo causal entre o dano do paciente e um erro na conduta específica do cirurgião auxiliar, caberá responsabilização solidária do cirurgião presencial, chefe da equipe médica; isto porque, o causador do dano é integrante da equipe que participa da cirurgia e atua na condição de subordinado, ou seja, sob comando do cirurgião-chefe.24 Diferente situação seria se o cirurgião remoto, ao manipular os joysticks, realiza movimento brusco que gera alguma oscilação/imprevisibilidade e o robô acaba atingindo algum órgão ou tecido fora do sítio cirúrgico - sendo que, em seguida, verificando a impossibilidade de continuação da cirurgia com robô, o cirurgião remoto aciona a equipe local para conversão cirúrgica, mas as condutas emergenciais devidamente adotadas não são suficientes para evitar danos ao paciente. Nesse caso, a conduta do médico quando operava remotamente o robô foi a causa eficiente para a produção do dano. Imputa-se juridicamente as consequências dos danos ao paciente exclusivamente ao médico 1, cuja culpa acarretou o movimento imprevisível do robô. Além disso, não há solidariedade na responsabilidade do dever de reparar pelo médico 2. Isso porque, na hora da cirurgia, o médico 1 não é comandado por ninguém, tendo atribuição técnica totalmente distinta, possuindo autonomia, e mesmo integrando a equipe, opera remotamente o robô, não havendo por parte do cirurgião presencial nenhuma providência que possa ser tomada em relação ao próprio ato cirúrgico remoto com assistência do robô. O médico 1 e o médico 2 possuem trabalhos autônomos, cada um com sua regra de atuação, e um não participa ou influi no âmbito do resultado da atividade do outro. Contudo, ressalte-se que o médico 2 possui a responsabilidade pela assistência direta ao paciente e deve assumir a intervenção cirúrgica convencional (sem o robô) diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas. Por outro lado, partindo-se do mesmo exemplo supracitado, no qual foi configurada a culpa do médico 1 na telecirurgia, mas na hipótese de que as condutas emergenciais do médico 2 e equipe médica local também não foram devidamente adotadas ou ocorreu demora nesta conversão para a cirurgia tradicional, poder-se-ia considerar o fenômeno da concorrência ou concurso de causas (art. 945 do CC).25 Pode restar provado que uma condição do evento danoso - conduta do médico 2 e/ou equipe - foi elemento que contribuiu, de alguma forma, para a geração do dano ao paciente. Em eventual demanda indenizatória, caberá ao magistrado analisar duas questões:  1ª) se ambas as condutas - dos médicos 1 e 2 - concorreram para a produção do dano ao paciente; 2ª) se positiva a primeira resposta - verificada maior participação do médico 1 no evento lesivo -, em qual percentual se deu a participação de cada agente para a consecução do resultado lesivo. Assim, o julgador será capaz de repartir proporcionalmente os danos e, como no caso exposto, eventualmente reduzir o quantum indenizatório a ser pago pelo médico 2. Ressalta-se, por fim, que a causalidade múltipla não é excludente do nexo causal, mas uma forma de repartição de danos, a qual será delimitada conforme a apuração da contribuição causal de cada envolvido no episódio para o desfecho lesivo. Diante do exposto nestas breves reflexões, discutiu-se, sem a preensão de esgotar o tema, sobre a responsabilidade civil médica na cirurgia robótica e a solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução do Conselho Federal de Medicina, evidenciando, assim, a complexidade na forma de atribuição da responsabilidade civil entre os membros da equipe médica. ______________ 1 About da Vinci Systems. Disponível em: https://www.davincisurgery.com/da-vinci-systems/about-da-vinci-systems##. Acesso em: 02 abr. 2022. 2 SCHANS, Emma M. et. al. From Da Vinci Si to Da Vinci Xi: realistic times in draping and docking the robot. Journal of Robotic Surgery, v. 4, p. 835-839, dez. 2020. 3 FIORINI, Paolo. History of robots and robotic surgery. In: FONG, Yuman et. al (Ed.). The sages Atlas of robotic surgery. Cham: Springer, 2018, p. 1-14. 4 Operation Lindbergh - A world first in telesurgery: the surgical act crosses the atlantic!. Disponível em: https://www.ircad.fr/wp-content/uploads/2014/06/lindbergh_presse_en.pdf. Acesso em: 02 abr. 2022. 5 Brasil comemora 10 anos de cirurgia robótica. Disponível em: https://www.einstein.br/sobre-einstein/imprensa/press-release/brasil-comemora-10-anos-de-cirurgia-robotica. Acesso em: 02 abr. 2022. 6 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2311/. Acesso em: 28 mar. 2022.   7 Disponível em: https://www.kingsleynapley.co.uk/insights/blogs/blog-medical-negligence-law/heart-breaking-robotic-surgery-patient-dies-as-a-result-of-robotic-assisted-heart-surgery#page=1. Acesso em: 21 dez. 2021.   8 Neste período entre 2000 e 2013, foram realizadas 1,7 milhões de cirurgias robóticas. Adverse Events in Robotic Surgery: A Retrospective Study of 14 Years of FDA Data. Disponível em: https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1507/1507.03518.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.   9 Disponível em: https://www.nbcnews.com/health/health-news/da-vinci-surgical-robot-medical-breakthrough-risks-patients-n949341. Acesso em: 4 dez. 2021.   10 Disponível em: https://cvn.com/proceedings/rosenberg-v-21st-century-oncology-et-al-trial-2021-04-15. Acesso em: 12 dez. 2021.   11 Autos 0307386-08.2014.8.24.0023. Dessa sentença, foram interpostos recursos por ambas as partes, que, no dia 05.04.2022, ainda aguardavam julgamento pelo TJSC. Ao propósito do estudo sobre a referida decisão judicial brasileira, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.   12 MCLEAN, Thomas R. The Complexity of Litigation Associated with Robotic Surgery and Cybersurgery. The International Journal of Medical Robotics and Computer Assisted Surgery, v. 3, p. 23-29, fev. 2007.   13 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.   14 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Procedimentos cirúrgicos assistidos pelo robô Da Vinci: benefícios, riscos e responsabilidade civil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 9, n. 3, jul./set. 2020.   15 Proctor é o médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci.   16 PAGALLO, Ugo. The Laws of Robots: crimes, contracts, and torts. Londres: Springer, 2013, p. 88-94.   17 Disponível em: https://cbc.org.br/diretrizes-de-certificac%CC%A7a%CC%83o-em-cirurgia-robotica-2020/. Acesso em: 22 dez. 2021.   18 BHATIA, Neera. Telesurgery and the Law. In: KUMAR, Sajeesh; MARESCAUX, Jacques (coord.). Telesurgery. Londres: Springer, 2008, p. 175-181.   19 Disponível em: https://www.drleonardoortigara.com.br/artigos/o-panorama-da-cirurgia-robotica-no-brasil-em-2021. Acesso em: 5 abr. 2022.   20 CHOI, Paul J. Telesurgery: past, present, and future. Cureus Journal of Medical Science, v. 10, n. 5, maio 2018. Ao propósito do estudo mais aprofundado sobre os benefícios e riscos das cirurgias robóticas à distância, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e consentimento do paciente nas cirurgias robóticas realizadas à distância (telecirurgias). In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. (coord.). Telemedicina: Desafios Éticos e Regulatórios. Indaiatuba: Foco, 2022. [No prelo]   21 Disponível em: https://www.intuitive.com/en-us/about-us/company/legal/safety-information. Acesso em: 5 abr. 2022.   22 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.1, n. 2, p. 4-75, abr./jun., 2000.   23 A respeito das teorias sobre o nexo de causalidade, remeta-se a TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.6, n. 2, p. 3-19, abr./jun., 2001. Ademais, sobre a complexidade na aferição do nexo de causalidade em novas tecnologias na saúde, remeta-se a NALIN, Paulo; NOGAROLI, Rafaella. Perspectivas sobre ética e responsabilidade civil no contexto dos robôs inteligentes de assistência à saúde.  In: CAMPOS, Aline França; BERLINI Luciana Ferananda. (coord.). Temas contemporâneos de responsabilidade civil: teoria e prática. Belo Horizonte: D'Plácido; 2020. p. 61-94.   24 Discussão que paira na doutrina e frequentemente se observa na jurisprudência é sobre a possibilidade de solidariedade do médico-cirurgião pelos atos de demais membros da equipe médica, tal como um erro de médico auxiliar ou do anestesista. Sobre o tema: STJ, REsp 1790014/SP, j. 11/05/2021; STJ, EREsp 605.435/RJ, j. 2012   25 Ao propósito do estudo sobre teorias do nexo causal e a concorrência de causas, remeta-se às nobres lições de ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil - responsabilidade civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 462-513.
Os recursos resultantes do mundo tecnológico facilitaram e otimizaram as relações econômicas, a exemplo do pagamento das contas por plataformas, evento comum hodienarmente. Segundas vias de boleto, ou negociações financeiras podem ser facilmente realizadas pelo site da instituição financeira, por e-mail, ou até mesmo por WhatsApp. Todos esses artifícios são disponibilizados para que os consumidores tenham maior facilidade para realizar transações e honrar seus compromissos financeiros. O pagamento de contas por meio de boletos é uma das formas mais comuns utilizadas pelos brasileiros para saldar suas dívidas de forma rápida e segura. No entanto, o espaço virtual apresenta problemas de segurança, como na emissão de boletos ou qunado golpistas se aproveitam da fragilidade do sistema e se fazem passar pelas empresas, para obter vantagem econômica dos consumidores. Nesse universo de golpes cibernéticos, a indignação e frustração do consumidor lesado se mistura com a dúvida: quem vai arcar com os prejuízos sofridos? Com esse crescente número de casos de boletos falsos, os Tribunais estão se movimentando para criar um entendimento uniforme sobre o assunto. Não obstante, isso se mostra uma tarefa difícil aos julgadores. Nesse diapasão indaga-se, a responsabilidade nesses casos é da Instituição Financeira, que tem o dever de implementar políticas de segurança para evitar fraudes aos seus clientes? Ou, a responsabilidade é do cidadão médio, que se utilizou de meios não oficiais para tirar o boleto, não tendo o cuidado de conferir o beneficiário ao realizar o pagamento? Em casos de pagamento de boletos fraudados, salienta-se que a tutela jurídica enquadra-se  na relação de consumo, sendo entre a instituição financeira uma fornencedora (ofertante profissional de forma onerosa) de serviços e recursos e o cliente, como adquirente definitvo, conforme art. 3º, §2º e art. 2º. do CDC. Esses dispositivos e o enquadramento da atividade bancária como relação de consumo são ratificados pela súmula 297 do STJ, que dispõe que "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". Logo, é dever das instituições financeiras prover a segurança necessária no acesso e uso dos serviços para seus clientes dentro (ou até meso fora) de suas dependências, independentemente de ser virtual ou física. Considerando que o consumidor é sempre vulnerável (presunção absoluta) e na instrução probatório-processual é, em significativa parcela de casos, hipossuficiente, passa-se a analisar a responsabilidade do banco e a demonstração do nexo de causalidade entre o risco proveito e o dano sofrido pelo consumidor no caso de fraude de boletos, com base no art. 6º, inciso VIII, do CDC. Importante garantia assegurada ao consumidor, diante de flagrante hipossuficiência deste em relação às grandes instituições financeiras, é a inversão do ônus da prova em juízo, visando restabelecer o equilíbrio na instrução processual, amenizando a diferença de forças entre polos processuais. No caso em questão, a vulnerabilidade do consumidor não e apenas fática (socioeconômica), própria da relação de poder por parte do fornecedor, mas informacional e técnica, pois o desconhece o funcionamento sistêmica/funcional (o que pressupõe conhecimento técnico-científico), e a complexidade não permite acesso claro da informação sobre a oferta e uso do serviço. Em função das dificuldade sobre o domínio técnico e o acesso probatório sobre o funcionamento do sistema eletrônico de serviços bancários, cabe à instituição financeira o ônus da prova, devendo comprovar a existência, no caso concreto, das excludentes de responsabilidade previstas nos art. 12, §3º e art. 14, §3º, ambos do CDC, quais sejam:  demonstrar inexistência de defeito na prestação do serviço, ou comprovar que houve culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Nesse sentido, colaciona-se entendimento do TJ/DFT. In verbis: APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. BOLETO. EMISSÃO. MEDIANTE FRAUDE. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. 1. A instituição financeira tem o dever de zelar pela segurança do sistema e das informações de seus consumidores, empregando mecanismos que impeçam a atuação de fraudadores. 2. É objetiva a responsabilidade da instituição financeira que permite que terceiros acessem o seu sistema e obtenham informações privilegiadas acerca de débitos vencidos e não pago, bem como dos dados de contato do cliente, dos valores em atraso, entre outras informações, facilitando a emissão de boletos mediante fraude. 3. Recurso conhecido e desprovido. (TJ/DF 07383526820208070016 DF 0738352-68.2020.8.07.0016, relator: MARIA DE LOURDES ABREU, data de julgamento: 20/4/21, 3ª turma Cível, data de publicação: Publicado no PJe : 4/5/21 . Pág.: Sem Página Cadastrada). No entanto, logo ao lado do TJ/DFT, o TJ/GO esposa entendimento sobre a necessidade da apresentação de provas mínima de envolvimento ou facilitação do banco no ato delituoso, desconfigurando a responsabilidade de indenizar quando o nexo de causalidade não foi completamente visualizado. Nesses termos: EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONTRATO DE FINANCIAMENTO. INADIMPLÊNCIA. PREJUÍZO MATERIAL. PAGAMENTO DE BOLETO FALSO EMITIDO POR TERCEIRO ESTELIONATÁRIO. DANOS MORAIS. COBRANÇAS. ILICITUDE AFASTADA. I - Ausentes provas do envolvimento ou facilitação do banco apelante no ato delituoso, não se tem os requisitos completos da responsabilidade civil, afastando-se, outrossim, o dever reparatório material (ressarcimento), nos termos do art. 14, § 3º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor. II - O próprio autor confessa a inadimplência por 06 (seis) meses e, depois, mesmo tendo promovido o que achava ser a negociação da dívida, restou comprovado que o pagamento foi destinado ao estelionatário, continuando, pois, inadimplente, o que autoriza o credor a exercer seu legítimo direito de cobrança, não havendo, provas de excesso de ligações ou de pertubação exacerbada promovida pelo requerido a fim de se constituir o alegado dano moral, razão pela qual não cabe a referida condenação por ausência de ilicitude. SENTENÇA REFORMADA. APELO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ/GO, apelação cível 5441176.29.2019.8.09.0028, Rel. Maurício Porfírio Rosa, 2ª câmara Cível, publicado em 5/3/21) Também é importante salientar que a instituição bancária possui o dever de informar ao correntista quando há movimentações bancárias estranhas ao perfil do cliente e, quando isso não ocorre, resta configurada a má prestação de serviço por parte da instituição, isto é, a omissão do banco em avisar o cliente sobre movimentações estranhas em sua conta, gera responsabilidade. Logo, a entidade bancária falha em seu dever de resguardar os dados do correntista, permitindo que terceiros tenham acesso, o que oportuniza atos de estelionatários, que fazem crer são realmente agentes da Instituição, pois possuem todas as suas informações pessoais que apenas um funcionário do banco teria. Deve-se também considerar a responsabilidade de empresas intermediárias de pagamento online, frente aos golpes que vem ocorrendo em meio eletrônico, reconhecidas pela jurisidição civil, visto que ao permitir que qualquer indivíduo tenha a possibilidade de abrir conta em sua plataforma para receber pagamentos, passa a ser de sua responsabilidade o risco de possíveis fraudadores utilizarem de seus serviços. Ao permitir que qualquer pessoa emita boletos ao seu bel prazer, acaba por puxar a responsabilidade pelo risco do negócio desempenhado. É importante citar a súmula 479 do STJ, que trata sobre a responsabilidade objetiva das instituições financeiras por danos gerados por fortuito interno, relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros, no âmbito de operações bancárias. Conforme palavras da ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1.786.157/SP, as instituições financeiras são responsáveis em hipóteses de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito, desvio de recursos em conta corrente e clonagem, bem como falsificação de cartões e até mesmo assaltos em agências. Interessante é o acórdão recente do TJ/SC, ao julgar apelação do Banco Pan, requerendo a reforma da sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos da inicial para condenar o Banco a pagar R$ 15 mil a título de danos morais à autora, o relator desembargador Alexandre Morais da Rosa trouxe em seu voto o conceito de caso fortuito externo. Conforme dispõe o relator, o boleto pode ser emitido por qualquer pessoa, necessitando apenas dos dados do boleto, dados do emissor e do pagador. Para configurar culpa da instituição financeira, se mostra necessário que se verifique de forma direta ou indireta a participação da atividade bancária. Assim, consigna que "a mera alegação de que (a vítima) entrou em contato com o banco por meio do site e que recebeu o boleto falso por Whatsapp é insuficiente à demonstração do nexo de causalidade". Além disso, cabe citar diretamente o tópico sobre culpa exclusiva da vítima. In verbis: c.4) CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA: tratando-se de pagamento de boleto falso, é necessário analisar se houve participação (direta ou indireta) da atividade bancária, ou seja, se algum ato culposo pode lhe ser atribuída para além da compensação do pagamento efetivado por boleto. Se a parte autora utilizou os serviços online do banco réu, possui "logs" de uso do site do Banco, nos momentos respectivos, capazes de conferir suporte probatório mínimo. A mera alegação de que entrou em contato com o banco por meio do site e que recebeu o boleto falso por Whatsapp, é insuficiente à demonstração do nexo de causalidade. O fato de se dispor dos dados da parte autora decorre justamente de bancos de dados consultáveis por meio de OSINT (Open Source Intelligence), associados a consultas também públicas, dentre elas a do "Registrato" (https://www3.bcb.gov.br/registrato/login/). Hodiernamente existe divergência entre o entendimento dos Tribunais pátrios e, em cada caso ofertado para resolução jurídica, são analisados aspectos fáticos como falsificação grosseira, forma, obtenção de dados do cliente pelo fraudador, disponibilização de informações fraudulentas nos sites oficiais, cuidado mínimo do cliente. Muitas vezes o cliente entra no próprio site da instituição financeira, sendo o boleto falso emitido no ambiente supostamente seguro do banco, ou mesmo, quando o fraudador tem acesso aos dados pessoas da vítima, se passando pela instituição financeira, sabendo assim o número de prestações de um financiamento, o valor das parcelas e quais boletos estão em atraso. Em casos como esses, torna-se uma tarefa difícil aos Bancos demonstrar a ruptura do nexo de causalidade, sendo quase que certa a sua condenação ao pagamento de indenização. A realidade é que, para evitar ser vítima de fraude é necessária uma certa malícia do cliente, evitando assim a culpa exclusiva da vítima. Como demonstrado neste artigo, não são todos os casos que o nexo de causalidade será capaz de condenar a instituição financeira a indenizar os danos sofridos, podendo a vítima sair de um longo processo judicial sem nada nas mãos. Logo, não são em todos os casos que as instituições financeiras são responsáveis pelo dano sofrido pela vítima, especialmente se tratando de boletos fraudados em que a própria vítima não se utiliza das formas oficiais de comunicação e acaba por passar todos os seus dados aos fraudadores. Muitos bancos, em seus sites oficiais, oferecem instruções e dicas para minimizar os casos de fraude aos seus clientes. O SERASA, em sua plataforma também dispõe de dicas para que menos pessoas caiam nesse tipo de golpe. _____ 1 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 3 v. 3 KHOURI, PAULO R. ROQUE. Direito do Consumidor: contrato, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2021. 4 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 5 ZORZI, Caroline Carvalhaes. Responsabilidade civil por danos a clientes nas agências bancárias. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Vol. 58/2012. P.105-131. Out-Dez/2012. Disponível aqui.
A coibição da prática de sham litigation1, de advocacia predatória2 e de outros tipos de condutas cuja má-fé é a força motriz do ajuizamento de ação3 precisa ser desiderato do direito. E resultar em eficaz condenação (solidária ou isolada) do(a) advogado(a) que, visando objetivos desonestos, atue dessa forma ilícita. Afinal, tanto a atividade do Poder Judiciário não pode ser utilizada para fins espúrios, quanto não deve haver o consequente desrespeito aos direitos fundamentais e da personalidade dos prejudicados pelo ajuizamento. Em acontecendo, surge o dever de indenizar, o que deveria ser inexorável, mas não é o que acontece em elevado número de casos. E tal ocorre devido ao tratamento inadequado que tem sido dado para o equacionamento desse problema. Observe-se que nas fontes legais de onde poderiam brotar os melhores paradigmas4 existe parcimônia exagerada em adotar-se posicionamentos mais consentâneos com o adequado tratamento para essas situações. Já a jurisprudência, apegada ao que sua própria denominação sinaliza (do latim jurisprudentia, ou seja, o juris ligado a jus, significando justiça, está acompanhado de prudentia, a inferir cuidado5), em considerável número de decisões, tem se pautado em aplicar interpretação literal do inscrito no deficiente texto legal, um respeito exagerado à "letra fria" da lei, descurando do que se pode sinalizar como melhor justiça. Por isso, nessa área, há muitas decisões judiciais que se mostram inócuas para os objetivos esperados em termos de real responsabilização civil dos(as) advogados(as) lesantes. Os tempos pós-modernos demandam posicionamentos mais assertivos, com providências incisivas para enfrentar essas mazelas praticadas no meio social. Outro detalhe: não tem sido dada a devida atenção para o fato social de que, nas últimas décadas, vem diminuindo a remuneração (em percentual, considerada a causa) dos profissionais da advocacia. Essa circunstância fez surgir a denominada advocacia de massa e, com ela, a priorização da quantidade de causas/processos, com percebível queda no compromisso na qualidade do trabalho6 e aumento no risco de descambar para a advocacia predatória7. Não se pode ignorar a existência de situações caracterizadas pela busca intensa e incessante de encontrar ou mesmo gerar/criar causas para poder atuar em quantidade compensatória financeiramente. Nesse contexto, o trabalho profissional do(a) advogado(a) e sua respectiva responsabilidade civil apresentam muitas facetas, que abordaremos até alcançarmos mais especificamente a questão da sham litigation e/ou advocacia predatória, com suas graves consequências fáticas e jurídicas. Começa-se por referir que a Constituição Federal dispõe que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, mas nos limites da lei. Existe consenso quanto à primeira parte do dispositivo (indispensabilidade), mesmo que se considere haver exceções (confirmando a regra), as quais permitem à parte não se fazer acompanhar de advogado em determinadas causas (por exemplo, na participação em processos de menor valor em Juizado Especial ou em casos de determinados meios alternativos de solução de controvérsias, como a conciliação e a mediação pré-processuais). Idêntica consideração constata-se no tocante à prerrogativa da inviolabilidade do profissional quanto aos seus atos e manifestações que estejam ligadas à defesa judicial de seus clientes. Esta é uma condição considerada indispensável para o profissional, influindo diretamente no alcance e/ou preservação dos direitos de seu cliente, sendo que é componente relevante para o próprio regime democrático de direito. Importante atentar, entretanto, que a oportuna expressão "nos limites da lei" soa como advertência que suscita reflexões mais detidas. A primeira delas está na polêmica da responsabilidade civil do(a) advogado(a) na sua prestação de serviço para com os consumidores (standard e equiparados e para outros terceiros afetados) ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela lei 8.906/948 (combinada com o Código de Ética e Disciplina da OAB). Sem aprofundar essa discussão, sinalizamos que esse debate não justifica assumir que essas questões possam ser obstáculo para encontrar-se a melhor forma de equacionamento das situações práticas que surgem nessa área. Assim, avançando para o foco principal deste texto, aponta-se que na Lei nº 8.906/94, o caput do artigo 32 (que segue a linha do art. 2º e seus incisos) estabelece que: "o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa"9). Ora, essa norma não encontra dissonância significativa no CDC, que tem raiz constitucional e conforme seu art. 2º, é de ordem pública e interesse social (no dizer de eminentes doutrinadores, trata-se de lei principiológica10 ou de sobredireito11, a direcionar todo o sistema de proteção ao consumidor)12. Independente de qual corrente se adote (e até em Cortes Superiores são encontráveis posições divergentes13), em se tratando de responsabilidade civil do já referido profissional liberal, fica explícito que essas constatações apontam para uma excelente oportunidade de reconhecer-se o sentido de completude do sistema jurídico ou, em uma abordagem mais contemporânea, da aplicação de um profícuo diálogo das fontes14, tudo como forma para encontrar-se a solução mais justa para o caso concreto. Note-se que embora coexistam normas com redações até certo ponto diferentes, se bem analisadas, percebe-se que os textos delas não são excludentes, sendo que a pertinência para maior ou menor grau de utilização deve advir dos elementos encontrados no caso que esteja sob exame. Nesse contexto, na questão do aumento de sham litigation e/ou advocacia predatória e outras formas irregulares de adentrar em juízo, é capital analisar suas origens e respectivas características para, posteriormente, chegar-se ao respectivo exame da responsabilidade civil. Inicialmente, diga-se, não se pode "fechar os olhos" para as influências da cultura de leniência com procedimentos reprováveis (a moral e a ética foram aos poucos sendo relativizadas no convívio das famílias e na sociedade, alcançando também o meio jurídico). E mais, existe um fato social que não pode ser ignorado/desconsiderado, de haver aproximadamente um advogado para cada 170 habitantes15, algo surreal, que causa muita competitividade e incita excessos por parte daqueles menos afeitos ao cumprimento de normas ou regras éticas16. E por isso surgem esses casos de ausência de cumprimento do princípio da boa-fé. Na esfera da legislação, o que se tem e, lamentavelmente, ainda fundamenta muitas decisões judiciais é o parágrafo único do art. 32 da lei 8.906/94, que afirma textualmente: "em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria"17. Pois bem, note-se que independente de que para esse tipo de conduta, a multa prevista pelo art. 81 do CPC seja claramente módica (1% e 10% do valor dado a causa, sendo que somente em alguns casos pode chegar a 10 salários-mínimos), são equivocadas exigências como essa do(a) profissional ter de estar coligado(a) com cliente. E, pior, haver exigência de uma ação própria para repetir o que já transpareceu e foi reconhecimento em processo com sentença transitada em julgado. Na prática, essa exigência tem tornado inútil o restante do conteúdo do dispositivo, ou seja, essa responsabilização não acontece. Tacitamente, esses pré-requisitos acabam eliminando o que era a gênese da mens legis, se é que ela supostamente existia na mens legislatoris. Inclusive, é de se, respeitosamente, discordar da reforma por Instâncias Superiores (com base no art. 32 da lei 8.906/94), de sentenças de 1ª instância com condenação solidária do(a) advogado(a) que atuou de má-fé18, ocasionando que aqueles profissionais praticantes dos referidos ilícitos acabem protegidos ao ponto de impunidade. Não se pode compactuar com meios jurídicos que, direta ou indiretamente, instituam esse tipo de "blindagem", autêntico artifício que tem servido ao absurdo de retirar da norma a sua eficácia. Afinal, é ilógico - verdadeira incoerência - simplesmente desconsiderar o que já foi provado em processo e inserto na sentença judicial, tornando sem valor prático a verdade formal que atesta o ilícito (atuação de má-fé). Em autos com identificação dos fatos, do(s) autor(es) e de quem foi acionado injustificada e maliciosamente, basta então, em acréscimo, que a questão da má-fé do(a) advogado(a) tenha feito parte do contraditório e reste comprovada. Outro detalhe: a maioria dos lesados, depois de enfrentar um processo normalmente moroso e exaustivo para quem é inocente, não se dispõe a ajuizar essa ação própria (dispendiosa de tempo e dinheiro e com risco de improcedência, piorando a situação), sendo que, normalmente, o valor que poderá receber não compensará o desgaste. Assim, uma nova ação jamais deve ser pré-requisito para a condenação, mas sim, apenas uma faculdade da parte lesada visando que seja integral a reparação do dano sofrido. Essas constatações inferem que, tanto na lei, quanto nos reflexos dela na jurisprudência, precisam estar solidificadas disposições e interpretações que moralizem o tratamento dado nessas situações que denigrem a classe dos advogados, consomem recursos públicos e não conferem justiça às vítimas. Advogados(as) contam com o monopólio do registro na OAB, participam habitualmente das lides forenses as quais estão habituados, possuem nível de esclarecimento conferido por curso superior e têm proximidade e pessoalidade no trato da contratação. Na prática, então, são eles que direcionam a contratação e, na verdade, estabelecem os termos da ação que é ajuizada em nome do cliente, incluindo a narrativa dos fatos e a fundamentação19. Naturalmente, o(a) advogado(a) se vale das informações de seu constituinte, mas sabe que da ética profissional (vide o respectivo Estatuto) que coíbe a conduta de ajuizar lides temerárias, bem como de forma maliciosamente ser o agente e real criador delas. Atualmente, em relação às situações de sham litigation e/ou advocacia predatória, pode-se parodiar a célebre frase de Francisco Carnelutti e afirmar: "o advogado é o primeiro juiz da causa". Ao que se pode acrescer: "e, nestes casos de má-fé, ser o criador ou mentor principal dela". Ser acusado indevidamente, gastar para se defender, despender tempo em atos dentro e fora do Judiciário já representa fator indubitável de ocorrência de dano indenizável. E esse tipo de lesão não deve ficar tacitamente impune, escancarando uma injustiça pela qual o desonesto possa restar isento enquanto a vítima carrega seus prejuízos materiais e/ou morais. Importante deixar expresso que a imensa maioria dos(as) advogados(as) se porta dignamente, com probidade, integridade moral e ética, de modo que os corretos não merecem ver arranhado o conceito da classe por conta de condutas reprováveis de uma minoria que vem se mostrando cada vez mais ativa20. Reitera-se, então, a importância de eliminar essa fórmula que tacitamente conduz à impunidade. Se no processo judicial já ficou indene de dúvidas a comprovação da má-fé do(a) advogado(a) que, por sham litigation e/ou advocacia predatória foi condenado(a) isolada ou solidariamente ao pagamento de multa, o passo seguinte deve ser prosseguir-se nos mesmos autos até alcançar-se a reparação, tudo sem deixar-se de comunicar a OAB para o devido procedimento ético-disciplinar. E esta, em sendo fiel aos seus ideais e propósitos nunca deve proteger condutas impregnadas de má-fé, e sim, afastando falsos corporativismo, laborar por exemplar punição. Outro detalhe: a supressão na legislação (ou alteração da exigência em todos os casos) de realizar-se ação própria para a responsabilização do(a) advogado(a) não impede ou transmuta a aplicação da modalidade de responsabilização. Esta segue sendo subjetiva. Basta que no conjunto probatório tenha ficado indene de dúvidas a conduta ilícita (ato danoso), o dano (in re ipsa, decorrente da própria existência do processo) e o nexo causal acompanhado da intencionalidade do agente (culpa que caracteriza a má-fé), que a responsabilização de acontecer desde logo. Atente-se que toda decisão judicial (mesmo que em Primeira Instância) precisa estar fundamentada, de modo que, nesses casos, quando a fase de instrução já foi superada, obviamente, há que se considerar como demonstrado/comprovado o requisito culpa; caso contrário, tacitamente, estar-se-á anulando as conclusões que emergiram do conjunto probatório, bem como esvaindo a força da condenação. Exigir-se refazer, ou melhor, repetir tudo em novo processo no tocante a esses pontos, é um contrassenso, principalmente por conta de que a sentença não poderá ser simplesmente relegada à inutilidade e ser "desconfirmada" por outra que não é rescisória. E, acrescente-se, esses posicionamentos conferem concretude para o previsto nos artigos 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do CPC, jamais representando ativismo judicial (aproveitando a feliz expressão da Magistrada Henriqueta Lima: seria espécie de "racionalidade ética", pois a positividade precisa conter esse atributo21). Em momento no qual existe um intenso esforço institucional para tentar diminuir o número de processos tramitando no Poder Judiciário, é preocupante essa falta de atenção para o objetivo de buscar-se eficazmente coibir comportamentos protegidos pela exigência dessas ações próprias que apenas servem à manutenção (mesmo que temporária) da impunidade (incentivadora de novos ilícitos). A sham litigation, a advocacia predatória e outras condutas de má-fé são verdadeiras anomalias sociais que não podem contar com espaços para "chicanas" jurídicas dispostas a obstaculizar que, de fato, profissionais desonestos consigam se eximir das responsabilizações. Assim, urge uma mudança na legislação e, em paralelo, um posicionamento afirmativo da jurisprudência22, de modo que a responsabilidade civil nessa área se alinhe com os padrões mais consentâneos com a verdadeira Justiça. _____________ 1 Inicialmente, pode-se conceituar sham litigation como o exercício abusivo do direito de peticionar e demandar. (SILVA, André. Responsabilidade Civil do Advogado. E-book Kindle). 2 "A advocacia predatória é uma prática que infelizmente existe no nosso sistema de Justiça. Ela consiste no ajuizamento de ações em massa, através de petições padronizadas, artificiais e recheadas de teses genéricas, em nome de pessoas vulneráveis e com o propósito de enriquecimento ilícito". Assim definiu o juiz de Direito Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani, que atua na Vara da Fazenda Pública de Araraquara/SP, em entrevista concedida ao Migalhas (ADVOCACIA predatória: juiz explica modus operandi dos profissionais. Migalhas, 20 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022). 3 "Fabricar" causas imotivadas, acionando quem não merece, ou propositadamente incentivar conflitos judiciais com vistas a obter vantagens pecuniárias são, dentre outras, condutas de má-fé punível.  4 E, inclusive, uma espécie de paternalismo libertário mediante nudges, em prol de boas condutas. (THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. São Paulo: Objetiva, 2019. p. 113. E-book Kindle). 5 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1169. 6 Já existem escritórios de advocacia que perderam a característica de haver predominantemente o trabalho pessoal desses profissionais liberais nas prestações de serviços advocatícios aos seus clientes (relações de consumo), sendo que até escritórios menores costumam se valer de auxiliares (estudantes) que atuam como se fossem "técnicos jurídicos". Essas estruturas funcionam majoritariamente com estagiários não bacharéis (as quais atuam ao estilo "linha de montagem", inclusive copiando petições na internet, algumas até redigidas por leigos) e o advogado que os chefia somente assina ou posta no processo virtual, ou mesmo entrega a senha para o auxiliar fazer essa inserção do conteúdo. Por isso, independentemente de questões relacionadas ao direito postulado, em Juízo se pode encontrar peças que primam pela qualidade jurídica, mas também muitas (e que por ética não serão citadas aqui, mas cujos relatos são facilmente encontráveis no meio virtual) em que até o padrão da utilização da língua pátria (repleto de erros) aponta para o analfabetismo profissional do redator. Ou seja, a preocupação centra-se na quantidade de processos para garantir mais chance de rentabilidade. 7 Mesmo se sabendo que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90) prescreve que a responsabilidade civil para o advogado é de ordem pessoal (independente da responsabilidade da organização). 8 Na ementa do Acórdão 1317978, 07298762320198070001, em sede de julgamento em 24.02.2021, a Relatora, Des. Maria de Lourdes Abreu, da 3ª Turma Cível, afirma expressamente: "[...] 2. A responsabilidade civil do advogado é subjetiva, devendo ser apurada mediante a verificação da culpa, nos termos do disposto no artigo 32 da Lei 8.906/94, uma vez que não é aplicável o Código de Defesa do Consumidor às relações existentes entre os advogados e seus clientes [...]" (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. (3. Turma Cível). Autos nº 1317978, 07298762320198070001. Relator(a): Des. Maria de Lourdes Abreu, 23 de março de 2021. Disponível aqui.  Acesso em: 25 mar. 2022). 9 Vide BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 10 NERY JUNIOR, Nelson apud MARQUES, Claudia Lima. Proposta de uma teoria geral dos serviços com base no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 33, jan./mar. 2000. p. 84. 11 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 467. 12 Em complemento a esse aspecto, é oportuno mencionar que não convém afastar-se a importância da consideração quanto excludentes que afetam os requisitos previstos para toda e qualquer reparação, no caso, a existência de ato danoso (por ação ou omissão), dano e nexo causal a ligar um ao outro, restando a apuração da culpa conforme o já explicitado. 13 Sobre essas posições divergentes (umas considerando que para a responsabilidade civil do advogado se aplica o CDC e outras considerando que devem ser aplicadas as normas específicas para a advocacia, como a lei 8906/1994) vide TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método, 2014. p. 3223. E-book Kindle. 14 MARQUES, Claudia Lima (coord.). Diálogo das fontes: do conflito a coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 24-25. 15 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB). Institucional. Quadro da Advocacia. Quantitativo Total. Quadro da Advocacia regulares e recadastrados. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 16 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação. População do Brasil. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2022. 17 O art. 33 da mesma lei determina o cumprimento rigoroso do Código e Disciplina que regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional, dentre outras obrigações. 18 Como exemplo, dentre muitas decisões que reconhecem expressamente a má-fé do profissional, mas equivocadamente aderem a exigência de ação própria, vide: TJSP - Apelação cível: 1016984-72.2019.8.26.0003. Disponível aqui. E também: TJ/MG (17. Câmara Cível). Apelação Cível 3133367-772011.8.13.0024. Disponível aqui. E também: Acessos em: 23 mar. 2022. 19 PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 34. 20 Envolvendo apenas 2 Comarcas de Pernambuco, Juiz extinguiu 3.488 processos visando coibir advocacia predatória. Disponível aqui. Acesso em: 26/03/2022. 21 LIMA, Henriqueta Fernanda Chaves Alencar Ferreira. Da judicialização da vida aos precedentes judiciais obrigatórios: uma análise do impacto na efetividade dos direitos da personalidade no Brasil. Rio de Janeiro: Processo, 2021. p. 327. 22 Como, exemplarmente, no Apelação Cível 1004729-42.2020.8.26.0005, TJ/SP. Disponível aqui. E na seguinte decisão de 11/03/2022, na qual, ex officio foi condenado solidariamente o patrono da recorrente (PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (16. Câmara Cível). Apelação 0000277-68.2020.8.16.0042. Relator: Des. Antonio Carlos Ribeiro Martins, 14 de março de 2022. Disponível aqui. Acessos em: 26 mar. 2022.  
Plataformas Digitais: Platforms ou Publishers? Um dos temas que mais tem despertado atualmente a atenção dos juristas e dos operadores dos sistemas de justiça mundo afora relaciona-se à responsabilidade civil das plataformas digitais pelo conteúdo das postagens realizadas por seus usuários, sobretudo por via das redes sociais.1 Os debates sobre o tema têm por premissa inicial a qualificação da natureza jurídica das plataformas digitais, com relevantes impactos sobre a imputabilidade e os limites de suas responsabilidades. Por um lado, sustenta-se que as empresas de tecnologia, ao disponibilizarem canais digitais para a inserção de dados por seus usuários, estariam atuando como meras Platforms, ou seja, como instituições neutras que tão somente permitem a comunicação e a distribuição de informações entre seus usuários, não tendo qualquer ingerência sobre o seu conteúdo ou procedência. Por outro lado, sustenta-se que referidas empresas, para muito além da disponibilização das plataformas digitais das redes sociais, acabam operando como autênticas Publishers, na medida em que possuem, por força de contrato ou da Lei, controles quanto ao conteúdo das postagens inseridas pelos consumidores, tendo poderes, inclusive, para a suspensão e para o cancelamento de contas dos usuários. Nesse sentido, nos Estados Unidos da América, ainda no ano de 1996, com o intuito de balizar o entendimento jurisprudencial das Cortes norte-americanas2 a respeito da natureza jurídica das plataformas digitais que hospedam redes sociais, uma importante inovação legislativa definiu as empresas provedoras de serviços interativos de computador como neutral platforms. Tratou-se da Section 230, incluída no Communications Decency Act (CDA) do U.S Code, por via da qual as companhias foram isentadas de responsabilidade quanto ao conteúdo publicado por usuários: "No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider".3 Contudo, apesar da caracterização legislativa norte-americana das empresas de tecnologia como platforms - meras hospedeiras do material inserido pelos usuários -, foi-lhes assegurada autonomia para moderar amplamente o conteúdo das postagens dos usuários. A contradição estava instaurada. Vale dizer, a bem da verdade, que a Section 230 originalmente serviu como escudo contra a imputabilidade de responsabilidade para os Provedores de Serviços de Internet (ISPs), em uma época na qual o acesso à internet era viabilizado pela contratação de empresas como a AOL e a CompuServe. A rede mundial de computadores acabava de ser inventada. Nessa conjuntura ainda rudimentar da internet, a regulação protetiva das plataformas online teve sua razão de ser, na medida em que ainda não se tinha ideia a respeito da projeção que a comunicação online viria a tomar.4 Nesse ambiente, o exercício do poder moderador a respeito do conteúdo postado pelos usuários das operadoras era visto como eventual e excepcional. Gradativamente, contudo, na exata medida da crescente repercussão da publicação de conteúdos considerados abusivos e do alcance de seus efeitos nocivos que instauraram um panorama de caos, tanto o Parlamento quanto o Poder Judiciário dos EUA passaram a questionar o entendimento até então consolidado sobre a natureza jurídica das plataformas digitais. A insuficiência e os riscos da autorregulação Como se percebe, trata-se de assunto extremamente polêmico cujas repercussões sobre o direito da responsabilidade civil são enormes. É fato que, para a utilização dos serviços das plataformas online, os usuários devem concordar com os "termos de serviço, política de privacidade e regras". A partir do "acordo de usuário do serviço" criam-se direitos e obrigações para provedores e usuários. Nos "termos de uso, serviços e políticas de conteúdo" divulgados por empresas de tecnologia como o Facebook/Meta, Instagram e o Twitter, é comum a descrição de que elas atuariam como neutral platforms, sendo os seus usuários cientificados acerca da sua exclusiva responsabilidade sobre os conteúdos postados - sobretudo por se tratar de mensagens pelos mesmos elaboradas, e que não representam a opinião das operadoras. Contudo, os provedores se reservam o direito de prever limitações quanto ao conteúdo e quanto a comportamentos permitidos na plataforma, sob pena de suspensão ou a cessação da conta, residindo justamente nessa espécie de poder moderador uma das maiores controvérsias a respeito da natureza dos serviços prestados pelas plataformas digitais. Diante das polêmicas envolvendo a contraposição entre o poder moderador exercido pelas empresas de tecnologia e exercício da liberdade de expressão, as próprias plataformas digitais passaram a criar mecanismos de autorregulação, como, por exemplo, a criação pelo Facebook/Meta/Instagram de um Comitê denominado Oversight Board, com vistas a garantir a liberdade de expressão por meio de uma mediação independente a respeito dos conteúdos postados. De acordo com o próprio Comitê, a finalidade de sua criação foi a de "ajudar o Facebook a responder a algumas das perguntas mais difíceis sobre o tema da liberdade de expressão: o que remover, o que permitir e por quê".5 Não obstante o reconhecimento da necessidade de uma autorregulação por parte das próprias plataformas digitais, inúmeras são as críticas a esse modelo, sobretudo na medida das desconfianças a respeito da independência e da neutralidade das empresas de tecnologia. O poder moderador - há muito atribuído às operadoras de internet, não apenas se revela insuficiente, como altamente questionável. Nunca é o bastante recordar que as redes sociais passaram a constituir fonte de informação primária para bilhões de usuários, sendo utilizadas inclusive como instrumento preponderante (senão único) de divulgação de informações oficiais de governos mundo afora. Não é exagero afirmar, assim, que as Big Techs passaram a dominar praticamente toda a infraestrutura de comunicação, desempenhando um papel de inegável interesse público.6 Como se percebe, a questão fundamental que se coloca diz respeito aos enormes perigos representados pelo controle privado do conteúdo das informações e das comunicações online, por parte de poucos e empoderados grupos corporativos, que passam, assim, a praticamente substituir o Estado na regulação da comunicação entre as pessoas.   Tal cenário aponta para a necessidade de uma adequada regulação pública, para além do aperfeiçoamento da autorregulação privada das plataformas digitais. Para tanto, novas arquiteturas de operação dessas empresas devem ser desenhadas e fiscalizadas, no intuito de compatibilizar o exercício de direitos e garantias individuais fundamentais (tais como a livre iniciativa e a liberdade de expressão), com interesses públicos notórios (tais como a proteção do sistema eleitoral democrático, da liberdade de imprensa e do dever de colaboração das plataformas digitais com os sistemas estatais de persecução criminal, dentre outros).7   Modelos de regulação pública: Online Safety Bill (Reino Unido) e Digital Services Act (União Europeia) Nesse sentido, ganha destaque o modelo regulatório proposto pelo Reino Unido por meio da Online Safety Bill, que objetiva a proteção e a segurança dos cidadãos na internet contra as diferentes categorias de online harms.8 A ideia central desse marco regulatório funda-se na estatuição de uma série de deveres e obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais (duty of care), fundamentados nos princípios da transparência, da confiança e da prestação de contas. Dessa forma, as plataformas digitais estariam submetidas a uma espécie de responsabilidade condicionada ao atendimento de referidas obrigações, cabendo o controle sobre sua atuação a organismos independentes, como o Office of Communications - OFCOM - entidade reguladora do governo britânico. Seguindo a mesma tendência do Reino Unido, foi aprovada pelo Parlamento Europeu o Digital Services Act - uma proposta regulatória da Comissão Europeia para a criação de um modelo único de serviços digitais dentro dos limites da União Europeia, com vistas à proteção dos usuários das plataformas digitais. A ideia é muito semelhante à da Online Safety Bill, na medida em que o marco regulatório propõe uma série de obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais, no contexto do qual "a transparência seria o elemento mais importante para atingir uma moderação de conteúdo eficiente".9 Conforme proposto pelo Digital Services Act, caberia a cada Estado-membro a designação de um Digital Services Coordinator, bem como a elaboração de relatórios de transparência e de boas práticas para modelos de auto e corregulação, a depender da natureza e do tamanho do provedor. A regulação das plataformas digitais no Brasil Seguindo as diretrizes da Section 230 do Communications Decency Act (CDA) do U.S Code (segundo as quais as companhias de tecnologia são, em regra, isentas de responsabilidade referentes ao conteúdo publicado por usuários), o Parlamento brasileiro editou a lei Federal 12.965/2014 (o Marco Civil da Internet) que também isenta de responsabilidade, em regra, os provedores de conexão à internet relativamente ao conteúdo gerado por terceiros. A partir da entrada em vigor da referida legislação, grande controvérsia se estabeleceu em torno da (in)constitucionalidade do seu artigo 19, que condiciona e restringe a incidência da responsabilidade civil dos provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais, ao desatendimento de ordem judicial específica, que determine a exclusão do conteúdo ilícito e lesivo postado. Ou seja, a responsabilização se daria tão somente pelo controle da retirada da publicação, mas não pelo seu conteúdo. Como não é difícil perceber, trata-se de alteração do regime jurídico até então vigente sobre o tema que vai na contramão da proteção das vítimas. Os ônus econômicos e temporais impostos às pessoas lesadas por conteúdos postados nas redes sociais - decorrentes da necessária judicialização prevista pelo art. 19 da lei 12.965/2014 - são notoriamente incompatíveis com a concepção de tutela adequada dos direitos fundamentais (tais como a vida privada, a honra e a dignidade), sobretudo quando se recorda a necessidade de serem preservados preventivamente. O modelo atualmente previsto pelo referido dispositivo legal acarreta às vítimas não só maior tempo de exposição aos danos, como também o seu agravamento.   É interessante notar que a orientação jurisprudencial de nossos tribunais, construída anteriormente à edição do Marco Civil da Internet, revelava-se menos hostil às vítimas, na medida em que lhes permitia notificar direta e extrajudicialmente os provedores, instando-os a retirar as informações difamantes postadas por seus usuários.10 De forma diversa, o regime jurídico reconstruído pela redação conferida aos artigos 18 e 19 da lei 12.965/2014, sutil e silenciosamente, implicou uma total reconfiguração da natureza jurídica dos provedores, requalificando seu status. Com efeito, na medida em que se condiciona a imputação de responsabilidade civil à desobediência à uma prévia ordem judicial, o legislador brasileiro simplesmente desonerou as empresas provedoras de qualquer obrigação de valorar o conteúdo veiculado na internet por seus usuários. Isso implica, na realidade, no reconhecimento legislativo de que os provedores de internet passaram a ser considerados meras neutral platforms.    Trata-se de uma profunda alteração do status jurídico direcionado às empresas de tecnologia que, para além dos já referidos efeitos nocivos à adequada proteção das vítimas, imuniza as operadoras, garantindo-lhes, na prática, um regime de plena irresponsabilidade civil sobre todo e qualquer conteúdo ilícito e lesivo postado por seus usuários - a menos que descumpram ordens judiciais para a supressão do conteúdo lesivo. Por tudo isso - e apesar desse novo regime jurídico que os artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet concede às operadoras -, é preciso ponderar se o ordenamento jurídico nacional viabiliza outras soluções que, quando menos, compatibilizem e estabilizem os diversos interesses em jogo.  Nesse sentido, é preciso lembrar que as empresas de tecnologia não são proibidas de, diante de conteúdos reputados abusivos ou ofensivos inseridos em suas plataformas, excluí-los unilateralmente. Aliás, a se recordar a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas (já corroborada no Brasil por precedentes do Supremo Tribunal Federal), tratar-se-ia não de mera faculdade, mas de verdadeira obrigação imposta às empresas de tecnologia no intuito de garantir a incolumidade dos direitos humanos essenciais.11    O exercício desse poder-dever das empresas de tecnologia desafia ainda maiores discussões acerca dos limites da moderação a ser desenvolvida pelas plataformas, até mesmo em função das expressas condições estabelecidas nos contratos firmados com seus usuários. De fato, nos contratos de adesão dos usuários às redes sociais, invariavelmente são reguladas as políticas de uso e de acesso aos serviços, assim como a previsão de limitação quanto aos tipos de conteúdo e comportamentos permitidos na plataforma. Dessa forma, se há efetivamente um modelo de triagem prévia a respeito do conteúdo e alguma forma de ingerência do seu fluxo - pelos quais as plataformas podem selecionar o conteúdo postado por seus usuários -, parece evidente que se está a admitir o exercício de um poder moderador cujos critérios de funcionamento, apesar de ainda bastante obscuros, escancaram não apenas a possibilidade técnica do exercício do controle de conteúdos como, também, a viabilidade de sua responsabilização.12 Para MARTINS, "a partir do momento em que o provedor intervém na comunicação, dando-lhe origem, escolhendo ou modificando o conteúdo ou selecionando o destinatário, passa a ser considerado responsável, pois a inserção de conteúdos ofensivos constitui fortuito interno, ou seja, risco conhecido e inerente ao seu empreendimento. Conclui-se, dessa forma, ser objetiva, com fundamento no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade pelo fato do serviço do detentor do site."13 Apesar disso, a interpretação literal dos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet aparentemente autoriza as empresas de tecnologia a se furtarem dos ônus decorrentes do controle dos conteúdos inseridos por seus usuários, sob a alegação de que não deteriam competência para efetuar qualquer tipo de juízo de valor sobre os mesmos - atribuição essa que competiria prévia e prioritariamente ao Poder Judiciário.  Por tal motivo, é de enorme relevância a definição, por parte do Supremo Tribunal Federal, do regime de responsabilidade civil dos provedores de internet, no âmbito do julgamento de dois temas de repercussão geral já fixados. A respeito desses temas, foi designada audiência pública objetivando aprofundar as discussões para o enfrentamento da (in)constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, através do sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos.14 Trata-se de ponderar, antes de tudo, a respeito de como direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, podem e devem ser adequadamente protegidos não apenas pelo Estado, mas também pelas próprias empresas de tecnologia, contra o uso indiscriminado das redes sociais como instrumento de vilipêndio de valores inatos à humanidade, como a saúde, a vida, a democracia e a verdade. *Thais Pascoaloto Venturi é doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil - IBERC. __________ 1 Redes sociais: plataforms ou publishers - Parte I. Disponível aqui. Acesso em 14 de março de 2022. 2 Destacam-se dois conhecidos precedentes: Cubby, Inc. v. CompuServe, Inc. U.S. District Court for the Southern District of New York - 776 F. Supp. 135 (S.D.N.Y. 1991) October 29, 1991. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. Vide, ainda, Stratton Oakmont, Inc. v. Prodigy Services Co. Supreme Court, Nassau County, New York, Trial IAS Part 34. May 24, 1995. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 3 47 U.S.C. § 230, (c)(1) 4 Atualmente existem 19 propostas legislativas para a alteração da Section 230: 1.Justice Against Malicious Algorithms Act of 2021 (H.R. 5596); 2.A bill to repeal Section 230 of the Communications Act of 1934 (S. 2972); 3.Federal Big Tech Tort Act (H.R. 5449); 4.The Accountability for Online Firearms Marketplaces Act of 2021 (S.2725); 5.Health Misinformation Act of 2021 (S. 2448); 6.Preserving Political Speech Online Act (S. 2338); 7.The Disincentivizing Internet Service Censorship of Online Users and Restrictions on Speech and Expression Act (DISCOURSE) (S.2228); 8.Protect Speech Act (H.R. 3827); 9. Safeguarding Against Fraud, Exploitation, Threats, Extremism and Consumer Harms (SAFE TECH) Act (H.R. 3421; companion bill to S.22); 10. 21st Century Foundation for the Right to Express and Engage in Speech Act (21st Century FREE Speech Act) S. 1384; 11.Protecting Americans From Dangerous Algorithms Act (H.R. 2154); 12. Stop Shielding Culpable Platforms Act (H.R. 2000); 13.Platform Accountability and Consumer Transparency (PACT) Act (S. 797); 14. Abandoning Online Censorship (AOC) Act (H.R. 874); 15. Safeguarding Against Fraud, Exploitation, Threats, Extremism, and Consumer Harms (SAFE TECH) Act; 16. See Something, Say Something Online Act of 2021 (S. 27); 17. Curbing Abuse and Saving Expression in Technology (CASE-IT) Act (H.R. 285); 18. Protecting Constitutional Rights From Online Platform Censorship Act (H.R. 83); 19. Earn it  act. 5 O Comitê analisa casos emblemáticos e determina se as decisões do Facebook foram tomadas de acordo com os valores declarados na plataforma, destacam-se os seguintes casos: Caso de confinamento e Covid19 - 2021-008-FB-FBR - Disponível aqui; Caso de câncer de mama - 2020-004-IG-UA - Disponível aqui; Caso Ayahuasca - 2021-013-IG-UA - Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 6 BOWERS, John, ZITTRAIN, Jonathan. Answering impossible questions: content governance in na age of disinformation. Harvard Kennedy School Misinformation Review, v.1, Issue 1, January, 2020.   7 KLONICK, Kate. The New Governors: The people, rules and processes governing online speech. Harvard Law Review. V. 131, pp. 1598-1670, 2018.     8 Disponível aqui. Acesso em 15 de março de 2022. 9 Disponível aqui. Acesso em 16 de março de 2022. 10 REsp 1175675/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 09/08/2011. 11 A respeito do tema, vide nossa coluna A state action doctrine norte-americana e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil, publicada em outubro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 17 de março de 2022. 12 Nesse contexto, afirmou o Ministro Luiz Felipe Salomão que "a alegada incapacidade técnica de varredura das mensagens incontroversamente difamantes é algo de venire contra factum proprium, inoponível em favor do provedor de internet (REsp n. 1.306.157/ SP, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/12/2013, Dje 24/03/2014). 13 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3 ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 434. 14 "Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da lei 12.965/2014 que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. (RE 1.037.396-SP, Ministro Relator Toffoli). E o Tema 533 - Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. (RE 1.057.258-MG, Relator Ministro Luiz Fux)."
Introdução O reconhecimento dos filhos e suas implicações estão muito além das previsões do Código Civil, em relação, por exemplo, à guarda (em termos de proteção, art. 1.583, CC/02), ou à proteção àqueles, havidos ou não, da relação de casamento (art. 1.596, CC/02), ou ainda na condição de herdeiros necessários (art. 1.845, CC/22). O respeito e sua dignidade, dos pais com aqueles, o cuidado, sua valoração, estão previstos pelo Direito Constitucional e também infraconstitucional. Sobre o ser humano e a importância da família, a doutrina ensina no sentido de que: "é certo que o ser humano nasce inserto no seio familiar - estrutura básica social - de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal".1  Já em relação ao objeto do Direito de Família, aquele recai justamente sobre a família.2 É justamente por ver o filho, no seio familiar e inserido por seus pais, que entendemos pela necessária formação e existência de um ambiente mínimo de respeito e de sua valorização, promovendo seu desenvolvimento na condição existencial de filho. Por outro lado, situações ocasionadas pelos genitores que venham a apagar aquela condição ou situação, através do fato abandono afetivo, fazem nascer a discussão relativa às reparações civis, estas que, em termos de causa de pedir e pedido, devem buscar e contextualizar um olhar constitucional sobre o tema, em termos de preservação da dignidade daquela situação existencial, como forma de promoção interna e externa da família e dos filhos, como passaremos a sustentar neste breve texto. Como ensina Paulo Bonavides sobre o conceito de direito constitucional, este se revela "[...] mais pelo conteúdo das regras jurídicas - a saber - pelo aspecto material - do que por efeito de aspectos ou considerações formais, dominantes historicamente [...]".3 1. Família, pessoa constitucional, os Códigos e os filhos Desenvolver-se como integrante de uma família, ver o respeito, a valorização da condição de filho (a), pelos pais, estes que, por sua vez, estão sob a mira da Constituição para com seus filhos é, em uma primeira análise, valorizar a dignidade da pessoa de cada um deles, justamente por uma série deveres impostos constitucionalmente. De sorte que desta breve reflexão, entendemos que existe, em um primeiro momento, uma conversa interna entre a própria Carta em relação à família e a dignidade de cada integrante.4 Cumprir com a norma constitucional, em especial no que toca à família, enquanto deveres constitucionais naquele texto inserido é, com certeza, como antes afirmamos, valorizar os filhos (as) enquanto seres humanos que são.5 Do primeiro diálogo partimos então para o segundo: dos Códigos para a Constituição, pois aqueles devem estar em sintonia com aquela; da Carta não podem desviar-se. No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente faz previsão de direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes (arts. 3º,6 15,7 178 e 189) bem como sobre deveres da família para com aqueles (art. 4º, caput). Portanto, a lei exige as condutas lá descritas, assim como o Código Civil, por sua vez, também trata sobre deveres dos pais, como o sustento, a guarda e a educação dos filhos.10 Das normas antes citadas, percebe-se, claramente, explicitamente ou implicitamente, um dever dos pais (e não apenas destes), de respeito, de tratamento digno às crianças e aos adolescentes. O fato é que tais deveres estão positivados e capitaneados pela Carta. 2. Abandono afetivo: dignidade e ordenamento Recentemente, tivemos a oportunidade de nos posicionarmos acerca de uma visão mais ampla da responsabilidade civil no Direito de Família, buscando ver a pessoa humana como norte, justamente pelo princípio da dignidade, para além e para com os Códigos.11 Os Códigos não preveem tudo; não são um manual quando se fala dos novos rumos da responsabilidade civil, esta, que vem sendo tratada como verdadeiro direito de danos. Se existe uma luta pelo respeito ao ser humano em termos de sua existencialidade, também há casos de desrespeito, de negação e, quando isso ocorre na forma do abandono afetivo, a Carta deve responder adequadamente ao fato, em conjunto com as normas infraconstitucionais trazidas nestas linhas. 3. Conclusão O amparo, o cuidado, o respeito e a valorização dos filhos por seus pais é, em nossa ótica, instrumento que os auxiliam no seu desenvolvimento pessoal, o que, como consequência, contribui para a felicidade no núcleo familiar, enquanto seres individualizados, mas, não por isso desconectados dos seus pais e mães: muito pelo contrário. O Direito Constitucional prevê a família e, formada por cada integrante, caso negada a condição de filho pelo pai ou pela mãe, violado o princípio da dignidade da pessoa humana pois, negada sua condição existencial de filho, o que fundamenta a ação de reparação de danos imateriais neste sentido, eis que, para fins de direito privado, há, assim entendemos, violação a direito da personalidade, justamente pela impossibilidade de projeção da condição de filho para dentro da família e também externamente, no meio social inserido. O entendimento trazido nestas linhas procura estabelecer a relação jurídica entre pais e filhos, enquanto o necessário respeito daqueles a estes, por força de uma interpretação constitucional do direito civil, à luz das normas constitucionais e infraconstitucionais mencionadas. De sorte que as lições de Anderson Schreiber, por analogia ao o que defendemos, vão no sentido de que "[...] as normas constitucionais podem e devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares".12 Apenas como exemplo, a título de complementação da norma do art. 18 (antes transcrito), do ECA, abandonar um filho, em nosso atendimento, é também repugnante, aos olhos de sua situação existencial de ser humano e também de ser filho. Será que, inexistir um filho para o pai ou mãe é se entender como um fato normal da vida? Em nosso entendimento, daí resulta a objetividade de reconhecimento de sua situação existencial que é violada justamente pelo abandono, configurando o ato ilícito,13 passível de reparação por danos imateriais,14 nos termos da Constituição15 e do Código Civil. As repercussões serão negativas, a ser analisadas a cada caso concreto, servindo, inclusive, de critérios para a quantificação do dano extrapatrimonial. ____________ ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. ________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. lei 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível aqui. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. ____________ 1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 33. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 34. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 34. 4 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]. 6 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 7 Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. 8 Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. 9 Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 10 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...] IV - sustento, guarda e educação dos filhos; [...]. 11 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021. 12 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 53.   13 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 14 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 15  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...].
Neste fim de semana foi determinada pelo STF a suspensão temporária do o aplicativo Telegram no Brasil. O pedido proveio da Polícia Federal, por meio da Petição 9.935 do Distrito Federal.1 O fato foi amplamente noticiado, inclusive no exterior.2 Os fundamentos da ordem judicial foram, essencialmente, dispositivos do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14, doravante MCI), tendo sido aplicada a sanção da suspensão temporária dos serviços uma das sanções, prevista no artigo 12, inciso III, do MCI. Portanto, não houve "bloqueio" do serviço, mas uma mera suspensão temporária, dentre outras medidas. Majorou, ainda, o STF a multa diária para 500 mil reais ao Telegram em caso de descumprimento e 100 mil às "pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo Telegram." 3   Não tardou e o famoso CEO da empresa, Pavel Durov, publicou em seu Twitter um pedido de "desculpas pela negligência", afirmando que os e-mails teriam sido enviados a endereços eletrônicos não usados na atualidade, e que tomariam providências para contribuir com as autoridades brasileiras, etc., pedindo para que a ordem não fosse cumprida e prometendo inclusive um escritório de representação no Brasil.4 O presidente chamou a decisão de inadmissível e a Advocacia Geral da União rapidamente peticionou nos autos da ADIn 5.557, que julga a constitucionalidade ou não dos bloqueios de serviços de mensagens como o Whatsapp pelo descumprimento de ordem judicial, requerendo interpretação conforme à constituição do art. 12, inciso III e IV, para assentar que as penalidades ali previstas não possam ser impostas por inobservância de ordem judicial.  O Telegram respondeu e, em decisão posterior, o Ministro Moraes deu mais 24 horas para cumprir integralmente as determinações judiciais do STF, em resumo, indicação, em Juízo, de representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica), prestação de informação "de todas as providências adotadas para o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorrerem nas mencionadas condutas" e exclusão de alguns conteúdos e canais de comunicação com conteúdo ilícito.  As ordens judiciais de agora divergem em muito da primeira decisão a se tornar nacionalmente conhecida, proferida por um juiz criminal em Lagarto, Sergipe, que determinou a suspensão do Whatsapp (com a prisão do CEO do Facebook na América Latina à época), no ano de 2.016, por não fornecer informações protegidas pela criptografia ponta a ponta de um grupo de pessoas em que supostamente combinavam a prática de crimes. A decisão ensejou a propositura da ADPF 403,5 cujo julgamento conjunto com a ADIn 5.527 está suspenso por voto vista do próprio Ministro Alexandre de Moraes.  Ali, a problemática central diz respeito à possibilidade (e proporcionalidade) de determinação de bloqueio pelo não fornecimento de informações pessoais de usuários, nos termos do art. 10 e 11 do MCI, pois protegidas pela "criptografia ponta a ponta". Curioso salientar que o Executivo Nacional, à época pelo Ministério da Justiça, defendeu a constitucionalidade da lei, salientando que seria um abuso permitir a ausência total de controle a qualquer provedor de aplicação de mensagens. Em sentido semelhante, a Procuradoria da República naquele momento, asseverando que - outro ponto central da discussão naqueles autos - seria constitucional a determinação judicial de fornecimento de metadados. Além disso, o próprio Ministro Fachin, no voto da ADPF 430, advertiu preliminarmente: "a solução proposta por este voto não abrange outros debates já submetidos à pauta deste Tribunal, como a questão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei 12.965, de 2014, ou Marco Civil da Internet (RE 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli, Tema 987)."  Aliás, a conclusão do voto do Ministro Fachin é diversa daquela agora requerida pela AGU na atualidade (a qual vai além do próprio pedido da ADIn 5.527). Isto porque, concluiu o ministro que caberia [...] declaração a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto parcial sem redução de texto tanto do inciso II do art. 7º, quanto do inciso III do art. 12 da lei 12.965/14, de modo a afastar qualquer interpretação do dispositivo que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet.6 Declaração parcial de nulidade sem redução de texto e interpretação conforme são técnicas de interpretação no controle de constitucionalidade aparentemente similares, mas, na verdade, são faces distintas da mesma moeda. Isto porque, sinteticamente, a interpretação conforme pode ser vista como técnica de interpretação e princípio de interpretação no controle de constitucionalidade. Como primeira, genericamente, constitui eventual fundamento para uma leitura conforme a Constituição de um dispositivo. Assim, como técnica de interpretação no controle, dá ao intérprete a possibilidade de, dentre todos os significados possíveis, somente uma  interpretação (ou mais de uma a ser indicada expressamente) de determinada regra seja considerada constitucional. Por seu turno, a técnica da declaração de nulidade parcial sem redução do texto, significa, em suma, que, dentre todos os sentidos possíveis de uma norma, somente um deles soja considerado inconstitucional pelo intérprete.7   Assim, o pleito da AGU na Pet. 9.555 é radicalmente diverso do que foi pedido inicialmente na própria ADI 5.557. A atual AGU quer que o STF determine que somente um sentido seja válido, ao passo que os próprios propositores da ADI pleiteiam que somente um sentido seja considerado inválido. Portanto, nos termos da atual AGU, as sanções do artigo 12, incisos III e IV, do MCI não poderiam decorrer, em hipótese alguma, do descumprimento de ordem judicial.8  Uma temeridade, já que, como lecionam Felipe Medon e Isabela Ferrari: "Ninguém é a favor de suspender a comunicação de milhares de usuários. Os bloqueios são a ultima ratio, [...]: é uma tentativa desesperada, em muitos casos, de fazer cumprir uma decisão que pode salvar vidas."9 Nesses tempos de guerra, é triste a notícia do filho que vivia na Ucrânia, contou ao pai na Rússia estar sendo alvo de bombardeios e escutou: "Pare de mentir, é só uma operação especial."10 Após descoberta a vacina, durante a Pandemia, a desinformação sanitária chegou a níveis assustadores. Quantos mais enterraremos por "não acreditar"? Mas muitos devem estar se perguntando: qual a relação disso com a responsabilidade dos provedores de redes sociais por conteúdo inserido por terceiros? Toda, já que, hoje, o artigo 19 do MCI será resolvido na esfera da constitucionalidade. Primeiramente, deve-se ter em mente que a Internet e todos os protocolos lógicos que a compõem são fruto de um ambiente descentralizado, onde uma minoria de engenheiros criou originalmente um "mundo a parte" em que se acreditava a ausência de intervenção do Estado como solução.11 Mas, hoje, décadas depois, vai se tornando paulatinamente mais evidente a cada dia a visão esboçada por grande parte da doutrina: espaço de "independência" da jurisdição não existem, são fruto de uma visão ideológica, mitológica que fingem desconhecer que a Internet é palco de violações desta mesma "liberdade" que acreditam ser absoluta e ilimitada.12 E mais: aos poucos se desmontam os tabus de que, para o cumprimento da lei, não seriam constitucionais determinações que atinjam a esfera lógica (filtros de conteúdo e recurso a inteligência artificial, por exemplo) ou a esfera física (backbones). É mais que necessário que os provedores de aplicação desenvolvam seus modelos de negócio (em exercício, portanto, do direito fundamental à liberdade de iniciativa econômica) em respeito a outros direitos fundamentai. Nelson Rosenvald leciona que responsabilidade é um termo polissêmico, razão por que ser condenado a pagar uma indenização (liability) é o último assunto a se falar. A responsabilidade civil nesses tempos globalizados convive com anglicismos com a dimensão moral da responsability, a assunção dos deveres jurídicos de accountability, e a capacidade da empresa em explicar por que tomou ou deixou de tomar determinada providência (answerability).13 E as práticas de compliance e due diligence servem para mostrar, na prática, que o negócio onde potencialmente haverá agentes causadores dos danos está manejando de modo a, ao menos, que se tente evita-los. O provedor de mensagens privadas que é o segundo mais usado no Brasil tem mecanismos eficazes para combater práticas como pedofilia, neonazismo e venda de comprovantes falsos de vacina, por exemplo? Não. A empresa compre com alguma política de conteúdo, contra crimes de ódio, crimes contra crianças e adolescentes, estelionatos e outras falsidades? Não. Foi intimada judicialmente para o cumprimento de decisões judiciais da mais alta Corte do país, para bloqueio de uma série de perfis e retirada de canais, cumpriu a decisão em prazo razoável? Não, sequer se obteve resposta. Até o CEO reconheceu publicamente que na instituição faltou due diligence é necessário compliance. Este episódio, inclusive, revela uma certa mudança de mentalidade no tema da responsabilidade dos provedores. A lógica do art. 19 do Marco Civil é a de que, para proteger a liberdade de expressão, só ordem judicial com o link específico, prazo razoável e nas "possibilidades técnicas" dos provedores pode ensejar a responsabilidade (liabilty). São tantas exceções que é quase uma peça em defesa dos provedores. Enquanto isso, em nome da "liberdade de expressão", o Brasil é chamado de "Disneylândia do Neonazismo."14 Nos últimos tempos, a compreensão crescente de que algo deve ser feito tem chegado aos Tribunais Superiores. Como exemplos recentes dessa tomada de consciência, a decisão do STJ sobre publicação ofensiva envolvendo menor de idade, concluindo ser  "insuficiente a aplicação isolada do art. 19" do MCI, "o qual, interpretado à luz do art. 5º, X, da CF, não impede a responsabilização do provedor de serviços por outras formas de atos ilícitos, que não se limitam ao descumprimento da ordem judicial a que se refere o dispositivo da lei especial." 15 Nessa esteira, o STF e o TSE estão fechando o cerco contra as chamadas "milicias digitais", que atuam com modus operandi ao que chamamos de "censura reversa". Uma coisa é isoladamente uma pessoa mentir, outra é uma organização mantida ostensivamente para se dirigir e divulgar notícias fraudulentas, transpassando o ilícito individual para atingir a coletividade e o próprio regime democrático. Tanto é assim que, ao final da elaboração desse texto, noticiou-se que o TELEGRAM cumpriu a integralidade da decisão e o STF a revogou,16 tendo sido importante o fato para incrementar a proteção da pessoa humana e reforçar a necessidade de se repensar o "safe harbor" aos provedores do art. 19, do MCI. ____________ 1 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. 2 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022. 3 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022. 4 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. 5 ADPF 430/SE. Voto do Relator Ministro Luiz Edson Fachin. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022. 6 Ibidem, p. 73. 7 Cf. STRECK, Lênio et alli. (coord.). Curso de Direito Constitucional. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.  p. 808. 8 Nos seus estritos termos: "[...] a merecer juízo de interpretação conforme, nos termos do exposto e do periculum in mora demonstrado, requerer seja proferida decisão cautelar, ad referendum do Plenário, para fixar interpretação conforme à Constituição ao art. 12, III e IV, da Lei nº 12.965/2014, para assentar que as penalidades nele previstas não podem ser impostas por inobservância de ordem judicial." P. 12. 9 MEDON, Filipe; FERRARI, Isabella. Bloqueios de aplicativos: o que realmente está em jogo na ADIn 5.527 e na ADPF 403 é o direito à criptografia de ponta-a-ponta. Migalhas, 19/05/2020. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022. 10 HOPKINS, Valerie. Ukrainians find that relatives in Russia don`t believe it is a war. The New York Times, Nova Iorque, 06/03/2022. Disponível aqui (acesso em 19/03/2021). 11 Cf. BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Davos, Switzerland, 8 feb. 1996. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2022. 12 Cf. RODOTÀ, Stéfano. Il mondo nella rete: quali diritti, quali vincoli? Roma: Laterza, 2014. p. 5. 13 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas, 06/11/2020. Disponível aqui. Acesso em 20/03/2022. 14 COSTA, Íris. Brasil é o país onde o extremismo de direita mais avança, aponta estudo. UOL, 27/02/2022 Disponível aqui (acesso em 21/03/2022). 15 DIREITO CIVIL, INFANTOJUVENIL E TELEMÁTICO. PROVEDOR DE APLICAÇÃO. REDE SOCIAL. DANOS MORAIS E À IMAGEM. PUBLICAÇÃO OFENSIVA. CONTEÚDO ENVOLVENDO MENOR DE IDADE. RETIRADA. ORDEM JUDICIAL. DESNECESSIDADE. PROTEÇÃO INTEGRAL. DEVER DE TODA A SOCIEDADE. OMISSÃO RELEVANTE. RESPONSABILIDADE CIVIL CONFIGURADA. [...] 1.2. Para atender ao princípio da proteção integral consagrado no direito infantojuvenil, é dever do provedor de aplicação na rede mundial de computadores (Internet) proceder à retirada de conteúdo envolvendo menor de idade - relacionado à acusação de que seu genitor havia praticado crimes de natureza sexual - logo após ser formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente de ordem judicial. [...] (REsp 1783269/MG, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 18/02/2022) 16 LOSEKANN, Marcos; RODRIGUES, Mateus. Telegram cumpre decisões, e Moraes revoga ordem de bloqueio do app em todo o país. G1, Brasília, 20/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 20/03/2022.
Diferentemente do que ocorre em monopólios naturais, o cartel origina o que Hovenkamp (1999, p. 17-26) explica ser um "processo de monopolização". Esta distinção é pertinente, na medida em que, enquanto as perdas de mercado decorrentes de um monopólio não provêm dos altos preços cobrados pelo produto, mas da perda da escolha dos compradores, no caso da monopolização, realmente há num sobrepreço artificial que é difundido em todo o mercado, afetando não apenas a formação dos preços, como também o seu próprio desenvolvimento - o que origina a dificuldade de desenhar políticas públicas capazes de dissuadir este tipo de infração à ordem econômica. De acordo com as diretrizes do banco mundial1, as penas impostas por autoridades de defesa da concorrência, seja para prevenir comportamentos cartelizados ou para evitar outras práticas lesivas, como é o caso de outras condutas anticoncorrenciais decorrentes de abusos de posição dominante, possuem tanto uma função retributiva, quanto preventiva, vez que a  imposição destas penas visa não apenas ressarcir a sociedade do dano à economia2, como também reduzir os incentivos detidos pelos infratores ao praticar o dano. Esta dupla função na esfera administrativa (cujo elemento retributivo parece ser subsidiário) também vem sendo reconhecida, de forma geral, quanto à esfera da responsabilidade civil3 (onde a subsidiariedade é reversa, isto é, a função retributiva é preponderante). Com base neste entendimento, autores como Fernandes (2012, p. 2) diferenciam as duas modalidades de enforcement no Direito Concorrencial, distinguindo entre o chamado public enforcement, que é realizado por entidades públicas para a proteção do interesse público nos termos da Constituição, e o private enforcement, realizado a partir da indenização das vítimas afetadas pela prática de condutas restritivas à concorrência. Em 2015, a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico liderou uma discussão a respeito da complementação entre estas duas modalidades em diferentes jurisdições, havendo concluído que, no caso brasileiro, a própria lei 12.529/2011 prevê um sistema de private enforcement4, na medida em que o legislador previu, no art. 47 da norma, o "direito de ação" para um rol de legitimados que poderiam requerer sua indenização por danos concorrenciais judicialmente, independentemente da existência de uma condenação do Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Ora, a complexidade de um ilícito concorrencial é tamanha que até a qualificação do tipo de responsabilidade civil originada a partir dele é problemática - a começar por sua natureza jurídica. Assim, como muitas vezes encontraremos relações contratuais diretas entre o lesado e o infrator, não é incomum que haja confusão sobre se um sobrepreço decorrente de um cartel deveria ser interpretado como uma responsabilidade civil extracontratual ou se, nos casos do legitimado possuir relação contratual direta com os infratores, os danos a serem pleiteados decorreriam de uma responsabilidade civil contratual - mais especificamente, a partir da falha no preenchimento da boa fé objetiva, conforme preceitua o art. 404 do CC/02. Entretanto, a existência de um cartel não macula a validade da celebração de um negócio jurídico, mesmo porque a deformação no mercado decorrente de um cartel não necessariamente implicará em uma falha contratual, estando a responsabilidade civil, neste caso, fundada na violação de uma norma que constitui um ato ilícito (art. 36º, lei 12/529/11 c/c art. 4º, lei 8.137/90), ou, simplesmente, uma responsabilidade civil aquiliana (art. 186 do CC/02 c/c art. 927 do CC/02). Este está longe de ser, contudo, o principal desincentivo à propositura de ARDCs no Brasil, função esta desempenhada pelo legislador brasileiro através das omissões deixadas pela lei 12.529/11, na medida em que o framework regulatório escolhido deixou (i) incertezas quanto ao prazo prescricional para a sua propositura, (ii) questionamentos envolvendo a ameaça às vantagens para celebrar acordos com o Cade à luz da resolução 21/18 , (iii) indefinição quanto ao possível caráter vinculante que as decisões administrativas da Autarquia, e (iv) dificuldades quanto à metodologia para quantificar os danos a serem indenizados. Enquanto alguns destes gargalos podem ser resolvidos a partir dos novos mecanismos trazidos com o PL 11.275/18, que hoje está em vias de concluir sua tramitação na segunda casa legislativa, para então ser submetido ao escrutínio do veto presidencial, caberá aos operadores do direito contribuir para que o framework brasileiro possa efetivamente contribuir para o desenvolvimento de um Private Enforcement benéfico, não apenas aos agentes lesados, como também à sociedade brasileira. Dessa forma, pretendemos, a seguir, brevemente revisar não apenas os gargalos atuais, mas tecer breves considerações sobre de que maneira a atualização normativa, que hoje está em vias de ser homologada, solucionaria tais gargalos, indicando, ainda, pontos de melhoria pendentes para o futuro. (i) Incertezas quanto ao prazo prescricional Há duas principais discussões que geram questionamentos àqueles que pretendem ajuizar ARDCs no Brasil: o termo a quo e o período para a prescrição de sua propositura. Com relação à primeira discussão, o embate inicia-se com a classificação de ilícitos concorrenciais como o cartel na qualidade de um crime permanente ou de um crime continuado, isto porque, como a lei especial (Lei 12.529/11) nada dispõe acerca do prazo prescricional para a propositura das ações indenizatórias, ele passa a ser regulado pelo CC/02, o qual determina que se a reparação de danos terá prescrição trienal (inciso V do § 3º do art. 206, CC/02), a contar da data em que houve a violação do direito (art. 189, CC/02). Conforme explicou Nucci (2006), por crime permanente, entende-se aquele em que o momento de sua consumação é estendida no tempo por deliberada vontade do agente, enquanto que um crime continuado prescinde de uma série de requisitos de continuidade delitiva, como condições de tempo, lugar e forma de execução idênticas, não havendo, contudo, nenhum tipo de extensão temporal, senão o que os tribunais têm entendido como uma "homogeneidade subjetiva", ou seja, um conjunto de vários crimes que resultem de plano previamente elaborado pelo mesmo agente (ou agentes)5. Ora, ao importamos esta distinção conceitual para a classificação de um cartel originamos duas vertentes no que diz respeito a qual viria a ser o termo inicial de contagem prescricional. Assim, se o cartel for entendido como um crime permanente, o termo inicial seria o início de sua operação, enquanto que, caso seja interpretado como um crime continuado, haveria vários termos iniciais, que remeteria às datas de cada decisão sobre o aumento de preços ou outras interferências, como a divisão de mercado ou a restrição no volume de vendas. Para solucionar a insegurança, o PL 11.275/18 dispõe que prescreve em cinco anos a pretensão a` reparação pelos danos causados pelas infrações previstas no art. 36 da Lei 12.529/2011, determinando que o início de sua contagem se dê a partir da ciência inequívoca do ilícito, cujo termo inicial passa a ser a publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade. Resolvido estaria este primeiro imbróglio. (ii)  Ameaças do Private Enforcement à manutenção da regra de ouro nos acordos administrativos celebrados perante o Cade Até a Resolução CADE 21/18, entendia-se haver um desincentivo à celebração de Acordos de Leniência ("Leniência") e Termos de Cessação de Conduta ("TCC") no âmbito do CADE, vez que a divulgação de seu conteúdo em momento anterior à decisão do Tribunal sobre a condenação do cartel criaria uma desvantagem à cooperação de delatores e contratantes de TCC, vez que eles ficariam mais vulneráveis às ações indenizatórias em razão de uma assimetria informacional6. Foi a partir da experiência norte-americana que constatou-se, de fato, a existência de um possível desestímulo à celebração de acordos desta natureza quando presente a possibilidade de que seus partícipes sejam demandados civilmente antes dos demais investigados7. Em razão desta experiência internacional, em 11/9/18, o CADE publicou a resolução 21, que regulamenta os procedimentos de acesso aos documentos e às informações contidas dos Processos Administrativos, expressamente assegurando sigilo durante a fase de negociação dos acordos (art. 8º), resguardando este sigilo durante a fase instrutória (art. 10º); e reconhecendo condenações judiciais ou extrajudiciais fruto de ações condenatórias como circunstância atenuante no cômputo de sanções administrativas (art. 12º). Apesar de resguardar o sigilo dos documentos dos celebrantes de acordos administrativos, a Resolução Administrativa não impôs (e nem poderia) outras vantagens como no caso norte-americano, que criou a figura dos treble damages os agentes que não colaboraram com a Autarquia e eximiu de responsabilidade solidária na esfera cível tanto lenientes, quanto compromissários. Entretanto, uma das disposições trazidas pelo projeto de lei é exatamente de acrescentar ao sistema brasileiro os mesmos gatilhos, optando, entretanto, pela adoção de double damages, ou seja, de uma indenização em dobro para os que se eximiram de colaborar com o Cade. (iii) Indefinição quanto ao possível caráter vinculante que as decisões administrativas da autarquia A doutrina distingue estas ações indenizatórias em dois tipos, existindo as chamadas "stand-alone suits" e as conhecidas como "follow-on suits". Esta distinção remete à existência de uma decisão do CADE na qual a reparação de danos estará embasada, no sentido de utilizar a constatação da autoridade concorrencial sobre a existência de um ilícito como meio de prova. Atualmente, ações do tipo stand-alone vêm enfrentando uma ainda maior dificuldade probatória frente aos tribunais brasileiros. Este gargalo é endereçado pela doutrina nacional8 a partir da proposição de que as ferramentas de inversão do ônus da prova (conforme dispõe o Código de Defesa do Consumidor - CDC, em seu art. 6º) ou de sua distribuição dinâmica (conforme dispõe o CPC - Código de Processo Civil, em seu art. 373) sejam utilizadas nestes casos, de forma a estimular potenciais demandantes cujo interesse haja sido minado em função das inúmeras dificuldades e custos para o ajuizamento destas ações no Brasil. É certo que a recente decisão do STF no agravo regimental ao RE 1.083.955/DF, sob relatoria do min. Luiz Fux9, tornou-se um marco para o argumento da deferência do Poder Judiciário com relação às decisões administrativas do CADE, entretanto, há ainda percalços a percorrer nos tribunais inferiores, vez que, ao mesmo tempo que dita decisão não possuiu efeito vinculante, ela também está inserida em um contexto argumentativo de muitos percalços. Procurando endereçar este gargalo, o projeto de lei não apenas proporciona um reequilíbrio do ônus, como atribui à decisão administrativa do Cade o poder de fundamentar a concessão de tutela de evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente - o que foi fruto de uma recomendação da própria autarquia, quando da publicação da nota técnica 24/16, na qual a superintendência-geral do órgão sugere aos juízes cíveis que se utilizem da decisão do Cade como prova prima facie da existência da conduta e do dano10. (iv) Dificuldades quanto à metodologia para quantificar os danos a serem indenizados. Para além de todas as dificuldades anteriormente tratadas, o cálculo do valor a ser pleiteado pelos possíveis demandantes em sede de reparação de danos talvez seja um dos maiores entraves para o crescimento da utilização destas ações. Neste sentido, Vicentini (2018, p. 172) enumera três possíveis situações em que os danos a partir da constatação de um ilícito antitruste serão recuperáveis na perspectiva das vítimas, sendo elas: (i) a situação experimentada pela vítima que compra diretamente o produto com sobrepreço artificial; (ii) ainda com relação aos compradores diretos, os danos que o repasse do sobrepreço ocasionará com relação à diminuição nas vendas e consequentemente também em suas margens de lucro (conhecido como volume effect); e (iii) a situação vivida por outros membros ao longo da mesma cadeia produtiva (compradores indiretos) que também incorrem em prejuízos ocasionados em decorrência do sobrepreco (reconhecido como dano indireto, ou dano por ricochete). Todas as três situações enumeradas pelo autor possuem uma dificuldade em comum que diz respeito à identificação do status quo anterior à prática do ilícito, vez que o cálculo do valor do dano a ser indenizado requer uma estimação de um cenário contrafactual, ou seja, de como o mercado se comportaria na ausência da infração11. Ora, o nível de complexidade da mera explanação sobre como se dará o cômputo dos valores a serem demandados já enseja uma série de questionamentos sobre se o dano pleiteado seria excessivamente especulativo ou remoto demais para que seja computados e se não haveria o risco de estarmos impondo aos agentes infratores uma cobrança em duplicidade, conforme exemplificou Pitofsky et al (2019, p. 84). Especialmente com relação ao segundo questionamento, a tese de Pass On Defense vem sendo utilizada como uma estratégia de defesa judicial para limitar a reparação dos danos, sob pena de arriscar o enriquecimento ilícito do demandante, uma vez que ele poderia ter repassado o sobrepreço ao seu consumidor. Apesar de não endereçar todas as problemáticas relacionadas ao cômputo do valor a ser indenizado nestes casos, o que o PL 11.275/18 faz é exigir que a prova da existência do Pass On no caso concreto, o que, ao menos, dificultaria a recorrência de sua propositura. Feitas estas breves considerações sobre a situação atual e como ela se modificaria a partir das proposições legislativas hoje em discussão, é necessário concluir no sentido de que o Projeto de Lei em referência está longe de ser a solução para todos os problemas. Neste sentido, importa ressaltar que não apenas persistem os problemas estruturais do sistema judiciário brasileiro no sentido de comprometer a efetividade da via judicial para a consecução do pleito indenizatório, como também subsistem temas como a sistemática de ações coletivas e a extensão da responsabilidade objetiva do processo administrativo à discussão na esfera judicial, o que poderia comprometer os resultados esperados com a vigência do próprio projeto de lei. _____ 1 Banco Mundial/OCDE. Diretrizes para elaboração e implementação de política de defesa da concorrência. Trad. Port. de Fabiola Moura e Priscila Akemi Beltrame. São Paulo: Singular, 2003, p. 31-35. 2 Sobre o tema, o Prof. Porto Macedo, ex-conselheiro do CADE, reconheceu a necessidade da função administrativa da instituição atender não apenas à finalidade punitiva, como também a retributiva. In MACEDO JÚNIOR (2003), p. 37. 3 "A doutrina, unanimemente, aponta a prevenção coo objetivo prioritário à reparação, uma conquista da contemporânea teoria da responsabilidade civil, pois já não basta reparar, mas fazer cessar a causa do mal" in BENJAMIN, 1998, p. 15. 4 Tradução Livre de trechos do texto original: "(.) The primary goal of private enforcement, in its turn, is to compensate damaged parties. In other words, whereas penalties (including administrative ones) aim at discouraging infringements, private enforcement is mainly concerned with re-establishing the status quo ante of those who have been harmed by a certain conduct. Rather than repressing or sanctioning an action, indemnification is based on repairing an injury. Therefore, Brazilian civil law provides that compensation should be measured by the damages caused. Specifically in the field of damages for antitrust, the Brazilian Competition Law foresees the right of private parties to compensation, the "right of action" before the judiciary. Article 47 of the Brazilian Competition Law provides that aggrieved parties may take legal action in defence of their individual interests or individual homogenous interests so that the anti-competitive practices cease and they are compensated for the losses and damages suffered, regardless of the investigation or administrative proceeding, which will not be suspended due to court action". In OCDE. Working Party No. 3 (2015). 5 "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça compreende que, para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento de requisitos de ordem objetiva (mesmas condições de tempo, lugar e forma de execução) e subjetiva (unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre os eventos), nos termos do art. 71 do Código Penal. Exige-se, ainda, que os delitos sejam da mesma espécie. Para tanto, não é necessário que os fatos sejam capitulados no mesmo tipo penal, sendo suficiente que tutelem o mesmo bem jurídico e sejam perpetrados pelo mesmo modo de execução." (REsp 1.767.902/RJ, j. 13/12/2018). 6 Conforme explica Martinez (2013, p. 275-276), "nos termos do Art. 942 do Código Civil, todos os partícipes do cartel respondem solidariamente pela conduta do cartel, podendo uma parte lesada cobrar o valor integral da indenização de um dos membros da pratica colusiva. No caso das investigações de carteis em que haja um signatário do acordo de leniência, é provável que as partes lesadas busquem o ressarcimento integral dele, visto ser o único a ter confessado a prática". 7 Neste sentido, estudos publicados pelo Accountability Office dos Estados Unidos[7] demonstram que o número de acordos de leniência celebrados pelo Antitrust Division of the Department of Justice praticamente dobrou após a Reforma da legislação antitruste americana (Antitrust Criminal Penalty Enhancement and Reform Act - ACPERA), responsável por afastar a incidência dos chamados treble damages aos beneficiários dos acordos de leniência, possibilitando ainda a ausência de responsabilização solidária com relação aos demais cartelistas, desde que a cooperação dos lenientes seja entendida como satisfatória pelo regulador. 8 SANTOS, Marcelo H. G. Rivera M. O^nus da prova na ac¸a~o privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial. Revista dos Tribunais, vol. 959, 2015. p. 3. 9 EMENTA: AGRAVO INTERNO EM EXTRAORDINA'RIO. DIREITO ECONO^MICO E ADMINISTRATIVO. CONCORRE^NCIA. PRA'TICA LESIVA TENDENTE A ELIMINAR POTENCIALIDADE CONCORRENCIAL DE NOVO VAREJISTA. ANA'LISE DO ME'RITO DO ATO ADMINISTRATIVO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. INCURSIONAMENTO NO CONJUNTO FA'TICO-PROBATO'RIO DOS AUTOS. INCIDE^NCIA DA SU'MULA 279 DO STF. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 10 Ob cit, § 172, in verbis: "(...) utilizar a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do CADE como título executivo extrajudicial e prova prima facie da existência da conduta e do dano, de forma a facilitar o ajuizamento das ações civis do tipo "follow-on". Assim, estaria às partes potencialmente lesadas provar apenas o quantum do dano e o nexo causal, tal como ocorre em quase todas as jurisdições analisadas (União Europeia, Reino Unido, Alemanha, Holanda, Austrália e Canadá). Em que pese tal proposta, ações autônomas continuariam a ser ajuizadas concomitantemente à investigação do CADE, independentemente do Inquérito ou Processo Administrativo, nos termos do próprio caput do art. 47 da Lei n. 12.529, de 2011". 11 Conforme leciona Maggi (2018, p. 257), "ao contrário dos processos convencionais, nos quais a liquidação da sentença parte de valores reais que servem como base para o cálculo do valor da condenação, a quantificação dos prejuízos gerados por infrações à ordem econômica, em especial os cartéis, partem de um valor obtido por meio de estimativas baseadas em teorias econômicas. Neste sentido, acredita-se que, antes mesmo da fase de apuração dos valores, as partes terão de convencer o juiz que os estudos econômicos são formas legitimas e as mais adequadas para quantificar os prejuízos nesses casos, posto ser uma matéria nova nos tribunais". 12 BENJAMIN, Antônio Herman V. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista do Direito Ambiental, São Paulo, ano 3, n. 9, jan-mar. 1998, p. 15. 13 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. O caso White Martins e a questão da imposição de multas no direito antitruste brasileiro. Revista de Direito da Concorrência, IOB, Edição Especial - Retrospectiva/2003. 14 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: responsabilidade civil concorrencial. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018. 15 MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre o direito administrativo e penal. São Paulo: Editora Singular, 2013. 16 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 17 OCDE. Working Party No. 3 on Co-operation and Enforcement: Relationship between Public and Private Antitrust Enforcement - Brazil [DAF/COMP/WP3/WD(2015)23]. 15/06/2015. Disponível em , acesso em 20/12/2020. 18 PEIXOTO, Bruno Lanna; SILVA, Ludmilla Martins da. Alterações legislativas necessárias e o futuro das ações reparatórias por danos concorrenciais no Brasil. In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 59-74. 19 PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomia. 6ª ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. 20 PITOFSKY, Robert; GOLDSCHMID, Harvey J; WOOD, Diane P. Trade Regulation - Cases and Materials. 6a Edição. Foundation Press, 2010. 21 REQUENA, Giuliana Marchezi Franceschi Gonçalves e; BERNINI, Paula Muller Ribeiro. Valor probatório da decisão do CADE nas Ações de Reparação de Danos de Cartel ("ARDCs"). In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 133-153. 22 SANTOS, Marcelo H. G. Rivera M. O^nus da prova na ac¸a~o privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial. Revista dos Tribunais, vol. 959, 2015. p. 3. 23 VICENTINI, Pedro C.E. Danos Antitruste aos compradores diretos e indiretos: breves considerações sobre o pass-on effect no regime norte-americano, europeu e brasileiro. In A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord). São Paulo: Singular, 2018, pp. 171-192.
A inteligência artificial constitui um dos principais elementos catalisadores da inovação na modernidade. Presente nas ferramentas de personalização de conteúdo das grandes plataformas sociais, nos sistemas de gerenciamento de trânsito das smart cities e até mesmo na realização de operações cirúrgicas robóticas, tal advento disruptivo expande-se rapidamente pelas esferas particular e governamental.  Figurando na 39ª posição do "Índice Global de IA 2021" 1, fornecido pela agência de notícias britânica Tortoise Media, e liderando o "Índice de Contratação em IA 2021"2, divulgado pela Universidade de Stamford, o Brasil constitui um fértil terreno ao desenvolvimento do setor.  Como reflexo desse diagnóstico, emergem as primeiras tentativas nacionais de regulação da matéria, por intermédio: a) da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA)3, instituída pela Portaria 4.617/21 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), e, mais notadamente; b) do projeto de lei 21/204, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados.  As intensas controvérsias acerca do norteamento imposto à área da responsabilidade civil centralizam os debates acerca de tal proposição legislativa, sobretudo quando ponderadas as contemporâneas tendências de multifuncionalização do instituto e de consagração de um modelo objetivo baseado no elemento do risco.  A estruturação de um ambiente propício ao desenvolvimento de soluções de inteligência artificial reclama alicerces incentivadores da inovação, permeados nas garantias alusivas à propriedade e aos contratos, que atraem e resguardam investimentos direcionados ao setor.  Por outro lado, também envolve fundações protetivas em relação aos usuários, consumidores e terceiros afetados. Elas atuam como verdadeiras barreiras perante os potenciais riscos trazidos por essa tecnologia disruptiva, revestindo uma função preventiva/precaucional; e sob a forma de mecanismos ressarcitórios efetivos, que consagram o princípio da reparação integral e aproximam a vítima do estágio prévio, nos casos em que o dano não pode ser evitado.  Visto que a presente análise circunda tais bases, a obtenção de um melhor entendimento do panorama brasileiro de regulação da matéria perpassa, a princípio, a compreensão das discussões empreendidas no Velho Continente5, de onde se pode destacar a preocupação com a construção de uma perspectiva polifuncional da responsabilidade civil, buscando trazer segurança jurídica a todos os atores que orbitam os sistemas de IA, pela harmonização entre a adequada tutela da vítima e a preparação de uma atmosfera convidativa a inovações voltada, sobretudo, às pequenas e médias empresas. Almeja-se, portanto, conciliar a reparação integral do dano à proporcional responsabilização desses players, escudando-os de impactos econômicos excessivos e capazes de obstruir o surgimento de inovações futuras. Caso devidamente adaptadas às idiossincrasias locais, as lições fornecidas pelos documentos europeus mostrar-se-iam extremamente enriquecedoras aos legisladores brasileiros, dadas as recentes pressões por uma mobilização regulatória da área da inteligência artificial. No entanto, a realidade nacional falha na assimilação desses ensinamentos, levantando fundadas preocupações em relação à mitigação da esfera protetiva. Ainda que contemporâneas às orientações estrangeiras, as tentativas nacionais de disciplinamento da matéria não poderiam parecer mais assíncronas.  Executadas por intermédio da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) e do Projeto de Lei nº 21/2020, elas vêm traçando um futuro incerto para a responsabilidade civil, que se revela extremamente gravoso para as potenciais vítimas de danos ligados aos sistemas de IA. A Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), instituída pela Portaria 4.617/21 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI)6, representa uma política pública de inovação que busca definir uma estrutura para o fomento da área no Brasil e as diretrizes éticas que balizam a sua implementação.  Confeccionada a partir da percepção técnica especializada, aliada ao intercâmbio de experiências nacionais e estrangeiras, e complementada pelas contribuições online fornecidas pela sociedade; ela divide a temática em três eixos transversais: a) legislação, regulação e uso ético; b) governança da IA; e c) aspectos internacionais. Ao estabelecer as nuances de seu primeiro eixo transversal (legislação, regulação e uso ético), a "Estratégia" salienta, à luz do firmado na proposta europeia, que as atuais discussões prezam, além do binômio inovação-proteção, pela segurança jurídica. A consolidação desta, por sua vez, decorreria da estruturação de efetivos instrumentos de responsabilização, aplicáveis aos envolvidos nas variadas atividades associadas aos sistemas de IA autônomos7.  Deste modo, aproxima-se de uma abordagem concreta da responsabilidade civil, quando estabelece uma conexão entre a função reparatória e o instituto da revisão humana. Nesse sentido, sugere a exclusiva aplicação dele aos casos de decisões automatizadas dotadas de um maior potencial lesivo, a exemplo daquelas proferidas em ambientes alfandegários e de embarque em aeroportos8.  Eventuais falhas em tais cenários ensejariam a simultânea reparação dos prejuízos gerados à vítima. Como contraponto, situações frugais relacionadas à indevida utilização da tecnologia, como a confusão na exibição de anúncios publicitários customizados, não subsidiariam a aplicação desses mecanismos.   Firma-se, de maneira geral, uma cautelosa postura de disciplinamento da inteligência artificial, sob o receio de levantar indesejados obstáculos à inovação. Ao contemplar o clamor pela regulação da área, a "Estratégia" assevera que ela "deve ser desenvolvida com ponderação e com tempo suficiente para permitir que várias partes identifiquem, articulem e implementem os principais princípios e melhores práticas"9.  Em que pesem as deficiências do documento, tais como o caráter genérico de suas normas, a insuficiência do diagnóstico que fornece e a sua configuração como um mecanismo de soft law de aplicabilidade reduzida, a política acerta ao ligar a responsabilidade ao elemento do risco e às situações concretas, ao enfatizar a importância da feição preventiva e ao alertar acerca da paciência indispensável à formulação de um diploma específico sobre a IA. Inobstante a expressividade da advertência, a proposição de um marco legal da inteligência artificial permeia o Poder Legislativo. Com a ratificação de sua tramitação em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 21/2020 foi recentemente aprovado pela Câmara.  As vozes críticas ao instrumento, em uníssono, repudiam a celeridade imposta à sua apreciação. As significativas repercussões sobre os variados recortes da sociedade demandam, em qualquer tentativa de normatização da área, a conjugação de uma criteriosa avaliação técnica à democrática oitiva dos setores impactados; quase inexistente nos diminutos debates empreendidos até aqui10.   De forma geral, as avaliações da doutrina civilista sobre o projeto mostram-se pessimistas. Ao explorar o seu potencial fragmentador, Anderson Schreiber percebe uma indesejada dualidade em seu conteúdo, onde normas descontextualizadas convivem com novidades importadas, desvirtuando a noção de coesão jurídica11.  Perspectiva análoga é firmada por Laura Schertel Mendes ao explicitar a "crise de identidade" que assola o documento12. A indecisão acerca de sua configuração como uma mera carta de valores, desprovida de imperatividade e especificidade, ou como um sólido instrumento norteador do uso da inteligência artificial, acaba por macular a sua recepção e as prospecções de sua aplicação futura.  A comparação das redações originária e atual do PL 21/2020 permite a verificação de pontuais melhorias, particularmente quanto ao aprimoramento do linguajar técnico empregado em seus dispositivos iniciais13.  O projeto oferece algumas bem-vindas simplificações às descrições e complementações às lacunas, que modificam o seu primeiro esboço. Nessa senda, a conceituação do que representa um sistema de inteligência artificial é expandida, exigindo-se dele a capacidade de aprender a perceber, interpretar e interagir com o ambiente externo. Itens enumeradores de suas técnicas e de sua aptidão classificatória também são acrescentados (art. 2º, caput, e p. único).  Outrossim, tem-se uma aproximação ao campo da responsabilidade quando indicadas as máximas de "segurança e prevenção" e "inovação responsável" (art. 5º, VI e VII). As primeiras preconizam a utilização de ferramentas variadas (técnicas, organizacionais e administrativas) para monitorar e atenuar os riscos associados ao manuseio desses sistemas. Enquanto a última prevê a responsabilização dos agentes envolvidos nas citadas etapas pelos seus resultados, sopesadas as contribuições individuais, o contexto específico e as tecnologias acessadas. O dispositivo acerta ao atrelar a sua delimitação às circunstâncias fáticas.  Entretanto, o legislador pátrio ruma em direção oposta, ao definir a diretriz específica alusiva à responsabilidade: Art. 6º: [...] VI - responsabilidade: as normas sobre responsabilidade dos agentes que atuam na cadeia de desenvolvimento e operação de sistemas de inteligência artificial deverão, salvo disposição legal em contrário, pautar-se na responsabilidade subjetiva e levar em consideração a efetiva participação desses agentes, os danos específicos que se deseja evitar ou remediar e a forma como esses agentes podem demonstrar adequação às normas aplicáveis, por meio de esforços razoáveis compatíveis com os padrões internacionais e as melhores práticas de mercado (grifo nosso). Tal dispositivo motivou a elaboração de uma carta aberta ao Senado Federal, com fundadas críticas e sugestões ao texto acima destacado14. Constata-se que a versão original do PL 21/20 apenas determinava que os agentes de desenvolvimento e operação responderiam, na forma legal e em consonância às funções desempenhadas, pelas decisões tomadas pelos sistemas de IA15. Não se delimitava um regime reparatório, assim como não constavam referências à função preventiva ou precaucional.           O tratamento conferido à matéria passava longe do ideal, mas não se mostrava tão preocupante quanto o do presente texto, a começar pela imprecisão dos termos empregados; eles norteiam os vindouros legisladores para a exigência de comprovação do elemento da culpa, a qual, todavia, pode ser facilmente afastada por qualquer norma em sentido adverso16.  Outrossim, denota-se inexatidão quando o inciso define os agentes que podem ser responsabilizados. Como bem elucida Filipe Medon, a cadeia dos sistemas de IA engloba uma multiplicidade de atores aptos a interferir em seu funcionamento, desde os designers e operadores, até os programadores e usuários17. Falta uma maior especificidade para a sua melhor identificação, como ocorre na canalização europeia na figura do operador.  A "irresponsabilização generalizada", suscitada no mencionado documento enviado ao Senado, materializa-se na consolidação de um modelo abstrato subjetivo, onde a avaliação da atuação culposa das cinzentas figuras dos agentes ocorre a partir de parâmetros questionáveis.  Nele, tem-se a apreciação: a) de suas efetivas participações no resultado lesivo - as quais são dificilmente mensuráveis, dada a complexidade inerente aos sistemas de IA; b) do dano que se pretendia evitar ou remediar - ao invés de direcionar o enfoque ao risco; e c) da conformidade dos agentes às normas aplicáveis, consoante padrões internacionais e práticas de mercado. Como consequência, são construídos insuperáveis obstáculos à figura da vítima, relegada a uma posição de vulnerabilidade informacional18 que a impossibilita de corretamente identificar os agentes envolvidos e de comprovar os comportamentos desidiosos que contribuíram ao resultado lesivo, ferindo-se, assim, a garantia da reparação integral. As dificuldades tangenciam as questões: a) da transparência, diante da reduzida divulgação de informações acerca dos meandros dos sistemas de IA ao público-usuário; e b) da explicabilidade, porquanto a exposição inteligível do funcionamento dessas soluções, em uma linguagem acessível a tais destinatários, inexiste na prática. A preocupação com a assimetria de conhecimento técnico destacada na resolução europeia, não foi adequadamente contemplada na proposta brasileira. Sob a ótica da sociedade de riscos contemporânea, constata-se, na multifuncionalidade da responsabilidade civil e na adoção de um modelo reparatório objetivo, possíveis alternativas a tal problemática. A plurivalência do instituto, inicialmente edificada no campo doutrinário a partir da assimilação de experiências estrangeiras, comporta interessantes opções asseguradoras da reparação integral da vítima, influenciada pela releitura conferida pelo Direito de Danos. Contudo, as escolhas firmadas ao longo da regulação brasileira navegam por um arriscado caminho. Em adição à sua apressada tramitação e à generalidade de seu conteúdo, tem-se na configuração da responsabilidade civil o seu aspecto mais controverso. Embora as disposições iniciais do documento sinalizem a uma análise concreta do instituto, pautada pelo elemento do risco, a infeliz preferência por um modelo abstrato subjetivo (art. 6º, VI) condena a vítima a um cenário de significativa vulnerabilidade. Que a Comissão de juristas designada pelo Senado Federal para atuação na elaboração de minuta de substitutivo aos PL 5.051/19, 21/20 e 872/21 possa atuar conferindo a necessária correção de rumo no texto que irá a votação naquela casa legislativa. _______________ BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 21/220 (Redação do Substitutivo), de 29 de setembro de 2021. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei nº 21/2020 (Texto Original), de 04 de fevereiro de 2020. Estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da inteligência artificial no Brasil e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. GLOBAL AI INDEX. Intelligence. Global AI. Tortoise Media. Disponível aqui. Acesso em: 12 dez. 2021. IRRESPONSABILIZAÇÃO generalizada: Especialistas criticam responsabilidade subjetiva prevista no PL do marco da IA. MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. MINISTRO preside comissão de juristas que ajudará Senado a regulamentar IA. SCHERTEL MENDES, Laura. Projeto de Lei da Inteligência Artificial: armadilhas à vista. Fumus Boni Iuris. Blogs. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. Resolução do Parlamento Europeu 2020/2014 (INL), de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em: 11 nov. 2021. ZHANG, Daniel et al. AI Hiring Index. The AI Index 2021 Annual Report. Stanford University: Stanford, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 dez. 2021. _______________ 1 GLOBAL AI INDEX. Intelligence. Global AI. Tortoise Media. Disponível aqui. Acesso em: 12 dez. 2021. 2 ZHANG, Daniel et al. AI Hiring Index. The AI Index 2021 Annual Report. Stanford University: Stanford, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 dez. 2021. 3 BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI nº 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 4 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei nº 21/2020 (Redação do Substitutivo), de 29 de setembro de 2021. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 5 A Resolução do Parlamento Europeu 2020/2014 (INL), de 20 de outubro de 2020, fruto de longevos debates ao longo da última década, traz recomendações destinadas à Comissão Europeia e incorpora uma proposta de regulamento que disciplina, de maneira específica, o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em: 11 nov. 2021. 6 BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira De Inteligência Artificial (EBIA). Instituída pela Portaria MCTI nº 4.617/2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 nov. 2021. 7 EBIA, p. 17. 8 EBIA, p. 20-21. 9 EBIA, p. 22. 10 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 11 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 12 SCHERTEL MENDES, Laura. Projeto de Lei da Inteligência Artificial: armadilhas à vista. Fumus Boni Iuris. Blogs. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 13 MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 14 IRRESPONSABILIZAÇÃO generalizada: Especialistas criticam responsabilidade subjetiva prevista no PL do marco da IA. 15 Art. 9º, V, e P. único, do texto original do PL 21/2020. 16 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro. 17 MEDON, Felipe. Danos causados por inteligência artificial e a reparação integral posta à prova: por que o Substitutivo ao PL 21/2020 deve ser alterado urgentemente?. Migalhas de Responsabilidade Civil. Colunas. Migalhas. Disponível em: aqui. Acesso em: 1 dez. 2021. 18 SCHREIBER, Anderson. PL da Inteligência Artificial cria fratura no ordenamento jurídico brasileiro.
A alteração do clima é um evento mais antigo que a própria relação entre o homem e o meio ambiente. Eventos naturais, entretanto, ganharam uma nova qualidade e magnitude, quando passaram a sofrer a influência dos efeitos das ações antrópicas e de um modo de pensar, orientado pelas falsas ideias de infinitude dos recursos naturais e de um equilíbrio inabalável desses meios1. Isso porque, apesar de a relação homem e o meio ambiente remontar aos primórdios da humanidade, foi estabelecida, durante muito tempo, sob bases utilitaristas, pois o ser humano enxergava a natureza como detentora de uma única função: servir aos fins pretendidos pela sociedade. Percepção distorcida da realidade ambiental que resultou em uma ação humana em que o manejo e gestão dos recursos ambientais nunca foram prioridades2. Exatamente por isso que os desastres ambientais não são uma novidade do século XXI. Ao contrário, ocorrem há muito tempo. Muitos são os exemplos em âmbito mundial, como: (i) o caso da Fundição Trail Smelter, decorrente de impactos ambientais transfronteiriços entre o Canadá e Estados Unidos (1926-1941); (ii) Doença de Minamata resultante do envenenamento por mercúrio das águas da baía de Minamata, no Japão (1956); (iii) acidentes com os naivos tanques Torrey-Canion (1967); (iv)  nuvem de dioxina, fruto de uma explosão de uma fábrica de produtos químicos em Seveso, na Itália (1976); (v)    "pesadelo nuclear", ocorrido em razão de uma falha mecânica em um reator de uma usina nuclear situada na Pensilvânia, nos Estados Unidos (1979); (vi) vazamento em Bhopal, ocorrido em razão de um vazamento em uma fábrica de agrotóxicos na Índia (1984); (vii) explosão de Chernobyl, resultado de uma explosão em um reator de uma usina nuclear na Ucrânia (1986);  (viii) acidente com o navio pretoleiro Amoco-Cadiz (1989), entre outros. No Brasil podemos citar: (i) o acidente no Vale da Morte (1980), resultante da emissão de inúmeros gases tóxicos na cidade de Cubatão; (ii) o caso Césio 137 (1987), ocorrido em razão da exposição a material radioativo em Goiânia; (iii) rompimento da Barragem de Miraí (2007); (iv) rompimento da barragem de Mariana (2015); (v) rompimento da barragem em Brumadinho (2019), entre outros. Desastres ambientais que são capazes de comprovar a postura imediatista e utilitarista adotada pelo homem em sua relação com o meio ambiente, como se ignorasse que "o mundo é todo comparável a uma imensa rede de relações. Não há nada que não seja afim e que não se relacione com todo o restante nesse universo"3. Demonstram, ainda, que inexistia, por parte do ser humano, uma real preocupação com os resultados negativos de uma relação desregrada entre o homem e o ambiente que o circunda. Pensava-se que qualquer problema ambiental, além de atingir apenas um determinado recurso natural, ficaria restrito à uma área específica. Como num conto mágico, as pseudos barreiras geográficas seriam capazes de impedir ou minimizar todas as implicações advindas de um desastre ambiental4. Os diversos desastres ambientais, ocorridos ao longo do século XX, trataram de demonstrar, na prática, que, além daquele pensamento estar equivocado; as atividades antrópicas já haviam ocasionado impactos tão grandes que, diante da superação dos limites depurativos do planeta, estávamos perante uma crise ambiental de proporções jamais vistas. E, pior, o problema, ao contrário do que se imaginava, é dotado de incerteza quanto aos seus impactos, exigindo, na busca por solução, a cooperação de todos os atores internacionais5. Nesse momento, a sociedade mundial percebeu que se encontrava diante de uma crise ambiental, caracterizada pela socialização dos danos, ainda que a utilização dos recursos naturais e as riquezas produzidas não tenham sido equitativa e socialmente distribuídas. Os problemas ambientais ganharam, de tal forma, proporções condizentes à uma sociedade globalizada, não se encontravam, portanto, restritos à determinada área, país ou continente. E, evidentemente, não podiam continuar a ser enfrentados isoladamente6. As mudanças climáticas aparecem, desta feita, como um dos principais e prioritários problemas a serem enfrentados, neste século, face às alterações em seus padrões de ocorrência, em níveis bastante preocupantes. É, por isto, um dos temas mais relevante, quando se discute a crise ambiental global. E, diante das características dessas mudanças e das suas incertezas, os impactos das mudanças climáticas não ficam apenas na seara físicoambiental; trazem inúmeras outras implicações: sociais, econômicas, políticas, culturais e jurídicas. A realidade do fenômeno joga por terra qualquer ideia, cuja noção é de que todo problema ambiental, além de poder ser enfrentado isoladamente e de forma compartimentada, é o mesmo que poluição7. Prova disso é o fato de as alterações climáticas serem capazes de agravar a desertificação, a crise de recursos hídricos, a crise de biodiversidade, o degelo das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos, a queda da produção agrícola, os riscos para a saúde humana, e, intensificar a movimentação populacional no mundo, gerada pela deterioração ambiental. Tais alterações, como podem ser verificadas, afetam a todos do planeta8. A necessidade de rever essa relação desregrada entre o homem e o meio ambiente é anunciada, em âmbito internacional, desde o surgimento da Declaração de Estocolmo (1972). Lado outro, em nível nacional, essa necessidade ganha força com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, inaugurando, uma nova ordem ambiental estabelece um norte para a efetivação da proteção ambiental, assim como fixa um sistema de repartição de competências entre os Entes Federados. Tudo objetivando assegurar uma melhor adequação das normas às peculiaridades locais. Cabendo, de tal forma, aos Municípios desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, assim como a Política Nacional sobre Parcelamento do Solo Urbano e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano9. Neste sentido, devem, os Municípios, implementar, em âmbito local, medidas assecuratórias dos princípios que regem o direito urbanístico e ambiental, dentre os quais: (i) desenvolvimento sustentável; (ii) garantia do direito a cidades sustentáveis; (iii) gestão democrática das cidades; (iv) cooperação entre governos; (v) planejamento e distribuição das atividades econômicas; e, (vi) integração da atividade uirbana e rural, entre outros. Assim sendo, resta demonstrado que todos os Entes Federados, inclusive o Município, possuem a obrigação de adotarem medidas aptas a assegurar a precaução e a prevenção de desastres ambientais e dos seus riscos. Importante observar que catástrofes decorrentes de efeitos das mudanças climáticas não são novidade em território nacional, sendo possível citar: (i) a catástrofe ocorrida, aos 24 de Janeiro de 1967, na Serra das Araras, Rio de Janeiro; (ii)  a catástrofe ocorrida, aos 20 de Março de 1967, em Caraguatatuba, São Paulo; (iii) a catástrofe ocorrida, aos 08 de Fevereiro de 1988, em Petrópolis, Rio de Janeiro; (iv) a catástrofe ocorrida, aos 12 de Janeiro de 2011, em Petrópolis, Rio de Janeiro; entre outras. Possivel perceber, de tal forma, que os impactos decorrents das alterações climáticas ocorrem em território nacional há tempo e de forma razoavelmente recorrente10. Desta feita, o desastre ocorrido, aos 20 de fevereiro de 2022, em Petrópolis/RJ, decorrente de deslizamentos e inundações ocasionadas pelas chuvas que atingiram a cidade, vitimando mais de 130 (cento e trinta) pessoas, não pode ser considerado uma surpresa, mas sim uma consequência do descaso Estatal que insiste em negligenciar o seu dever cautela e de inobservar as normativas internacionais, nacionais, estaduais e municipais relacionada ao tema. Isso porque, sobre o Estado recai um dever de cuidado que impõe uma atuação preventiva capaz de, dentro dos limites impostos pela técnica, evitar a ocorrência de desastres climáticos. Prova da negligência Estatal em Petrópolis é o fato de 'a ocupação em áreas de risco em Petrópolis ter crescido mais que a média da ocupação total da cidade nos úlmimos 35 (trinta e cinco) anos. Enquanto as áreas totais de habitação na cidade saltaram de 30 quilômetros quadrados, em 1985, para 50 em 2020, as ocupações em aglomerados subnormais (locais de habitação irregular e em área de risco), saltaram de 1,9 para 4,1 quilômetros quadrados no mesmo período"11. A tragédia era anunciada e há muito conhecida, pois, além de desastres ambientais semelhantes terem ocorrido em 1988 e 2011, desde 2017 o Município possuia um Plano Municipal de Redução de Riscos que, através de seu trabalho de campo, "comprovou o contínuo crescimento da ocupação das enconstas para áreas de Perigo Alto e Muito Alto, áreas estas que se confundem com as áreas de preservação permanente (APP's)"12. Desta feita, ciente dos riscos inerentes ao aumento das ocupações subnormais, deveria o Estado ter exercido o seu dever de cautela, controle e fiscalização para, assim, concretamente agir objetivando mitigar os riscos, o que, ao que parece, não foi feito. E, assim sendo, existem bases suficientes para a sua responsabilização por omissão, pois a sua inércia foi determinante para a concretização e/ou agravamento dos danos causados em razão das chuvas que atingiram a cidade. _______________ 1 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016. 2 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática. Op. Cit. 3 Frase atrubuída a Lama Anagarika Govinda (Monge Budista - 1898-1985). 4 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 5 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 6 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 7 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit. 8 Neste sentido ver: GIDDENS, Anthony. A Política da Mudança Climática. Tradução para o português de Vera Ribeiro. Revisão Técnica de André Piani. Apresentação à Edição Brasileira de Sérgio Besserman Vianna. Editora Zahar. Rio de Janeiro.2010. p.07 ss; YAMIN, Farhana; DEPLEDGE, Joanna. The International Climate Change Regime: A guide to rules, institutions and procedure. Cambridge University Press. Cambridge. 2004. p.21-22; PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016. 9 FARIAS, Talden et al. Direito Ambiental. Coord. Leonardo de Medeiros Garcia. Coleção Sinopses para Concurso. 3ª Edição. Editora JusPodivm. 2015. p.84 ss. 10 Essas informações foram obtidas em: http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,catastrofe-em-petropolis-e-uma-das-maiores-da-historia,70003984015,0.htm#:~:text=Centenas%20de%20vidas%20perdidas%2C%20milhares,hoje%20%C3%A9%20de%20917%20mortos. 11 Trecho retirado de reportagem de autoria de Iuri Corsini, entitulada Petrópolis: ocupação de áreas irregulares acelerou desde 1985, diz especialista. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/petropolis-ocupacao-de-areas-irregulares-acelerou-desde-1985-diz-especialista/#:~:text=Enquanto%20as%20%C3%A1reas%20totais%20de,quil%C3%B4metros%20quadrados%2C%20no%20mesmo%20per%C3%ADodo. 12 DE OLIVEIRA, Luis Carlos Dias et al. Plano Municipal de Redução de Riscos PMRR - 1º (revisão), 2º, 3º, 4º e 5º Distritos - Petrópolis/RJ. p.151. Disponível em: https://sig.petropolis.rj.gov.br/cpge/Reflexoes.pdf.
quinta-feira, 10 de março de 2022

Responsabilidade Civil e Fashion Law

Há poucos anos, a comunidade jurídica no Brasil passou a se interessar e intensificar o debate sobre um novo ramo do Direito: o denominado Fashion Law ou Direito da Moda. Trata-se de uma área do Direito que surgiu nos Estados Unidos, a partir da criação de uma disciplina jurídica oferecida no curso de Direito da Universidade de Fordham, em Nova Iorque. Embora, inicialmente, seu campo de atuação se resumisse à propriedade intelectual (direito de autor e propriedade industrial), possui diversos pilares, a saber: Direito Civil (direitos da personalidade, direito contratual, responsabilidade civil), Direito do Consumidor (comércio eletrônico, cultura de consumo), Direito Empresarial (direito societário), Direito Internacional (vendas internacionais, comércio internacional), Direito do Trabalho, Direito Ambiental (sustentabilidade) e Tributário (importação, exportação, etc.), dentre outros. Para muitos doutrinadores, trata-se de uma compilação de disciplinas jurídicasi; para outros, não perde a característica de um novo ramo do Direitoii, baseado nas peculiaridades de uma indústria, ou até mesmo numa especialização por setor econômicoiii. Sob o aspecto filosófico, autores como Gilles Lipovetsky abordam o motivo de "a moda não aparecer no questionamento teórico das cabeças pensantes", apesar de "estar por toda a parte na rua, na indústria e na mídia (...)."iv Trata-se de "compreender a ascensão da moda ao poder nas sociedades contemporâneas, o lugar central, inédito, que ocupa nas democracias engajadas no caminho do consumo e da comunicação de massa."v Nota-se que as discussões desse ramo ganharam corpo no período da pandemia do novo coronavírus. Segundo dados da Infomoney, de março de 2020, o setor de confecção, no Brasil, enfrentou uma queda de mais de 90%. Inúmeras questões jurídicas decorrem dessa constatação, e, destaca-se a importância da gestão do dano. Mister ressaltarmos, nessa oportunidade, aquelas afetas ao tema responsabilidade civil. Assim, seja em razão da violação de direitos da personalidade (art. 12, do CC), ou por inadimplemento contratual (arts. 389 e 475, do CC)vi, ou, ainda, por descumprimento de deveres decorrentes da boa-fé objetiva (art. 422, do CC)vii, ou mesmo por ato ilícito (arts. 186 e 187, do CC) ou pela tutela externa de crédito (arts. 421 e 608, do CC), fala-se em responsabilidade civil e fashion law. Sem esquecermos da possibilidade de se cumular a indenização com o lucro da intervenção (art. 884, do CC)viii. Em se tratando de uma indústria que move bilhões de dólares na economia do mundo, e que, no campo empresarial, a segurança jurídica é um aspecto muito importante, não podendo ser desestimulado o empreendedorismo, é necessário fazermos uma abordagem levando em consideração a cadeia criativa, a cadeia produtiva da indústria da moda e a venda ao consumidor. O produto "moda" tem que ser pensado de forma diferente dos demais produtos manufatureiros. A moda não é um produto só industrial, mas também é um produto de valor, em razão de suas características imateriais. Como já disse o colega e professor Felipe Teixeira Neto, "há que se customizar a responsabilidade civil para o Direito da Moda!" (informação verbal).ix Enrico Cietta, economista italiano, explica que a moda foi progressivamente se hibridizando, ou seja, "uma parte do mercado (prêt-à-porter) foi gradativamente se transformando em um setor mais de significados do que de produtos. Significados que transformam o mercado, o produto e, inevitavelmente, toda a cadeia de empresa que os cria e os produz industrialmente". Para ele, "não se trata de uma ilusão apenas porque mudaram os cenários, os contextos e os instrumentos competitivos, mas porque o produto moda, provavelmente antecipando uma trajetória que outros produtos manufatureiros estão agora seguindo, foi adquirindo características cada vez mais imateriais."x Assim como nos últimos tempos passamos a pensar mais no propósito de vida, de carreira, de relações interpessoais, a moda também passou por esse movimento, e, consequentemente, o Direito da moda foi influenciado a buscar o respeito aos valores humanos, à sustentabilidade, ao consumo consciente, ao combate à pirataria e à proliferação de cópias, à prevenção de conflitos, ao surgimento de novos nichos de mercado (brechós, lojas de troca, aluguel, games, NFTs, etc.), à valorização dos povos originários, à luta antirracista, enfim, às parcerias que fazem sentido, inclusive as contratuais. Desde a cadeia criativa, é preciso resgatar valores humanos, seja do indivíduo ou da empresa. A escolha de temas que inspiram as coleções deve respeitar os direitos humanos, como o direito à imagem, à igualdade, direito moral de autor, direito ao meio-ambiente, ao trabalho digno, enfim, o respeito à dignidade humana, bem como evitar a apropriação cultural de referenciais artísticos, gráficos, elementos de outras etnias, raças, culturas, fora do contexto em que estão inseridos ou sem a devida autorização e contrapartida dos titulares do patrimônio imaterial. Lembra Tiago de Oliveira que "os designers têm procurado ferramentas jurídicas que impeçam outros de explorarem economicamente aquilo que é a sua maior vantagem competitiva: a unicidade do design das suas criações."xi Como bem anotado por Flávio Leão Bastos Pereira, "casos marcantes e esclarecedores sobre possível apropriação cultural pela indústria da moda podem ser indicados como ocorrências importantes para as reflexões ora propostas, como no caso da rede espanhola de varejos de roupas e calçados, Zara, que recentemente foi apontada por artesãs indígenas da região de Chiapas, no sul do México, que tradicionalmente produzem e vendem suas peças de vestuário baseadas nos grafismos, cores e na cultura indígena local, como tendo explorado estampas e motivos artísticos oriundos da cultura indígena da citada região (Chiapas), sem qualquer retorno à referida comunidade. A referida corporação colocou à venda por mil pesos (US$ 50) peças de roupas inspiradas - de forma 'agressiva', segundo a revista The Economist - nas produções das tecelãs indígenas mencionadas, que encontraram na sua produção artesanal e venda por preços inferiores, o complemento de suas rendas, indispensáveis à sobrevivência."xii Nessa linha de raciocínio, e para evitar os prejuízos que advém da prática da contrafaçãoxiii e das cópias, muitas marcas têm optado pelos contratos de parceria, conhecidos como collabs. Como já mencionamos em outra oportunidade, "na indústria da moda, há muitas alternativas para diminuir a falsificação, além da fiscalização: parceria entre estilistas famosos e grandes marcas de fast fashion (por exemplo: Versace e Riachuelo, Karl Lagerfeld e Falabella, etc); expansão do mercado de aluguel de produtos de luxo (os novos consumidores, chamados de millenials e geração ZA, buscam por experiência, preferem o 'usar' ao 'ter'); o desenvolvimento do segmento conhecido como 'difusion line', que são as segundas e terceiras linhas de produtos de uma grande marca; e muitos outros, como as práticas de 'compliance'."xiv A primeira alternativa mencionada, ou seja, as parcerias contratuais, collabs ou co-branding, como são conhecidas, são importantes instrumentos jurídicos e muito comuns nas últimas décadas na moda, podendo ser definidos como a combinação de duas marcas para criar um único produto. O objetivo da co-branding é capitalizar o patrimônio de cada marca e aumentar o sucesso do produto total. Trata-se de uma aliança entre duas marcas conhecidas, que se apresentam ao mesmo tempo ao consumidor. É uma estratégia que vem obtendo sucesso e muitas vantagens, dentre elas, a de uma empresa estender sua marca para uma categoria de mercado que, sem o suporte da outra marca, seria de difícil acesso. No Brasil, tivemos, recentemente, em 2021, o exemplo da parceria entre Riachuelo e a marca italiana Moschino. Como subespécie do contrato de parceria, podemos destacar a modalidade ingredient branding. Ingredient branding é um tipo de co-branding, é o termo técnico para essa estratégia de levar o produto, originalmente um produto business-to-business, para o mercado consumidor, onde ele obtém reconhecimento global. Ingredient Branding é uma gestão estratégica de marcas para materiais, componentes, peças, serviços, etc. Como exemplos mundialmente reconhecidos dessa prática na área da moda, temos o ingrediente Lycra, Swarovski, Seta di Como, e muitos outros. Cláusulas contratuais especiais podem e devem estar presentes nos fashion contracts. Dentre elas, podemos destacar as principais: não aliciamento, multa-diária e multa-horária (nas coleções de moda, horas de atraso podem significar perdas irreparáveis), exclusividade, limites à liberdade de expressão fotográfica (retoques autorizados), exoneração de responsabilidade por danos (produtos com defeitos), atividades de marketing e venda, padrão de produção (qualidade).xv Esta última, por sua vez, é cláusula imprescindível em contratos de ingredient branding, em que o parceiro contratual que fornece o ingrediente deseja que o produto final elaborado pelo produtor tenha um mínimo de padrão de qualidade, a não prejudicar seu nome no mercado. Falando de produção, ou melhor, da cadeia produtiva da moda (da matéria-prima ao mercado de consumo), também se deve seguir as exigências de sustentabilidade. Além de um produto que atenda ditames de sustentabilidade ambiental, o trabalho digno, com respeito às condições mínimas de saúde e segurança, deve ser perseguido, incluindo os trabalhadores migrantes, devendo ser eliminado o trabalho infantil, o trabalho forçado, a escravidão moderna, o tráfico de pessoas. Como diz Lilyan Berlim, a indústria da moda deve criar produtos que demonstrem consciência diante de questões sociais e ambientais.xvi Ao final dessa cadeia, momento em que se chega ao mercado de consumo, algumas questões jurídicas merecem destaque. Dentre os julgados selecionados, há um caso que envolve violação aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, e outro que envolve coligação contratual, respectivamente. O primeiro diz respeito ao inadimplemento de contrato de prestação de serviços de modelos, que, por intermédio de uma agência, assumiram obrigações (personalíssimas) "de realizar ensaio fotográfico para campanha publicitária, de participar de coquetel de lançamento e de realizar os desfiles de abertura e encerramento como 'noiva símbolo' da 14ª edição do Fest Noivas de 2007, não tendo comparecido aos eventos conforme combinado. (...) Sob tal perspectiva, verifica-se que, na espécie, as recorridas chegaram atrasadas para o coquetel de lançamento, por sua culpa, e dele saíram, inesperadamente, antes do combinado; deixaram o hotel na madrugada seguinte, sem comunicar previamente os recorrentes; ausentaram-se do desfile de abertura, comprovando apenas minutos antes a impossibilidade de fazê-lo; e deixaram de comparecer ao desfile de encerramento sem qualquer motivação razoável. E, conquanto tenham justificado a ausência da modelo no desfile de abertura, por motivo de saúde, certo é que as recorridas o fizeram tardiamente, quando lhes era exigível - e possível - comunicar tal fato prontamente, de modo a permitir que os recorrentes tomassem as providências que entendessem necessárias. Desse cenário extrai-se que o comportamento das recorridas revela absoluta inobservância dos deveres de informação e lealdade na execução do contrato, deveres esses aos quais, por força do art. 422 do CC/02, estavam vinculadas enquanto contratantes, mesmo que não escritos."xvi O segundo caso, por sua vez, narra uma situação de coligação contratual, em que se torna evidente que "a contratação de modelo para desfile e fotografia encerram atividades diversas, daí que a cessão de imagem pela apelante somente o foi para o desfile e atos dele decorrentes, jamais lhe foi esclarecido que se utilizariam das fotos para a finalidade que foram. Frise-se ser vago o depoimento de PF (a fls. 321), funcionário da requerida à época, a respeito, pois, não menciona a autorização expressa da autora, mas sim um juízo de valor de que ela sabia do uso para catálogo comercial. O fato de a autora haver posado para as fotografias não encerra autorização tácita para a publicação do catálogo, mas apenas o registro do desfile." Assim, o descumprimento de uma das obrigações contratuais - uso de imagem sem autorização, implica na violação do contrato como um todo, já que existe coligação contratual, resultando em indenização pelos danos sofridos. Por fim, nota-se que muitos outros casos envolvem o desrespeito por parte de terceiros aos contratos já celebrados (como se verá adiante), assim como também os contratos com influenciadores digitais, considerados peças fundamentais para as marcas, hodiernamente. Nesse sentido, interessante e recente julgado do E. TJSP, envolvendo marca de cosméticos, com fundamento no instituto do aliciamento, previsto no art. 608, do CC, e muito comum em relações que envolvem o fashion law e modelos de negócios de empresas de moda. Segundo a ementa, trata-se de "ação cominatória movida pela empresa licenciada da "Mary Key" no Brasil contra terceira que vende produtos dessa marca. Alegação de concorrência desleal, em desrespeito a seu modelo de negócios, de venda de produtos de beleza de porta em porta. Ação julgada improcedente. Apelação da autora. (...) Cabal demonstração pela autora dos fatos constitutivos de seu direito, a saber, o contrato de importação e distribuição exclusivas de produtos da marca "Mary Kay" celebrado com a sociedade estrangeira titular da marca, bem assim qual seja seu modelo de negócios (utilização de colportores, os vendedores de "porta em porta"), fato público e notório: não há vendas em lojas, físicas ou virtuais. Não pode ser outra a explicação para a posse dos produtos de que se cuida, senão a de que a ré alicia contratantes da autora, os colportores, para que os entreguem para venda. Facilidade com que a ré poderia ter provado a licitude da aquisição dos produtos "Mary Kay", apresentando notas fiscais de compra, em contraponto com a evidente dificuldade para a autora de provar o contrário. Teoria dos ônus dinâmicos da prova (§ 1 o do art. 373 do CPC). Peculiaridades da causa que indicam a impossibilidade ou a excessiva dificuldade de cumprimento, pela autora, do encargo de provar decorrente do art. 373, I, do CPC. Ré terceira ofensora. Art. 608 do Código Civil: "Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos." Doutrina de ALEXANDRE DARTANHAN DE MELLO GUERRA, MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO e NELSON ROSENVALD. Ofensa ao modelo de negócios da autora, consistente na intermediação direta entre produtor e consumidor por colportores pessoas físicas que atuam em território determinado e estabelecem relacionamento de fidelidade com clientes, a caracterizar concorrência desleal. Precedentes das Câmaras de Direito Empresarial deste Tribunal em julgamentos a envolver a própria "Mary Kay" e também a marca pioneira nas vendas de porta em porta, "Avon". Sentença reformada, ação julgada procedente, apelação provida."xviii Discussões doutrinárias e jurisprudenciais surgirão, sempre. É o que se percebe, por exemplo, no tocante à figura dos influenciadores digitais, cuja responsabilidade civil tem sido tema frequente, enfrentando posições em diversos sentidos: da responsabilidade subjetiva à objetiva, com destaque para o fundamento do fornecedor por equiparação. O que buscamos, no campo do fashion law, é harmonizar o instituto da responsabilidade civil com as peculiaridades de um setor específico, que exige um prévio conhecimento de suas funcionalidades por parte de seus atores. Portanto, se na construção das teorias jurídicas, falamos em pirâmide de Kelsen, no Direito da Moda, o segmento é compreendido pela pirâmide fashion, e, nela, não cabem soluções jurídicas Prét-à-Porter! _____________ i JIMENEZ, Guillermo C.; KOLSUN, Barbara (coord.). A survey of Fashion Law. Key Issues and Trends. In: Fashion Law. A guide for designers, fashion executives & attorneys. Second edition. New York: Bloomsbury, 2014, p. 2. ii SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Fashion Law. Posição favorável. In: Carta Forense, mar 2017. iii Enrique Ortega Burgos. Presidente da Associação dos Peritos em Direito da Moda, membro do comitê executivo do MODAESPAÑA, membro do comitê de especialistas da Associação Espanhola de Retalhistas AER, e consultor e CEO em EO Editorial. iv LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia de bolso, 2017, p. 09. v LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia de bolso, 2017, p. 12. vi Ver SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A indústria da moda e os novos paradigmas contratuais: princípios, espécies e características. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz (coord.). Fashion Law. Direito da Moda. São Paulo: Almedina, 2019, p. 79-94. vii Ver SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: LTr, 2008. viii Ver "Caso Giovanna Antonelli": A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a um recurso da atriz Giovanna Antonelli para determinar a utilização de critérios técnicos na apuração do lucro da intervenção obtido por uma farmácia de manipulação com o uso indevido de sua imagem para vender um produto. Sem contrato ou autorização, a farmácia utilizou o nome e a imagem da atriz de forma sugestiva para alavancar as vendas de um composto "detox" que teria efeitos de emagrecimento. De acordo com o Enunciado 620 da VIII Jornada de Direito Civil, que interpretou o artigo 884 do Código Civil, "a obrigação de restituir o lucro da intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa". Além de reconhecer o dever de restituição do lucro da intervenção, o relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que, "para a configuração do enriquecimento sem causa por intervenção, não se faz imprescindível a existência de deslocamento patrimonial, com o empobrecimento do titular do direito violado, bastando a demonstração de que houve enriquecimento do interventor". (Disponível em: Último acesso em: 02.03.2022). ix Aula Magna no curso de LLM em Fashion Law Mackenzie, em 31 de agosto de 2021. x CIETTA, Enrico. A economia da moda. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. xi OLIVEIRA, Tiago de. A proteção jurídica das criações de moda. Entre o Direito de Autor e o Desenho ou Modelo. Coimbra: Almedina, 2019, p. 17. xii PEREIRA, Flávio Leão Bastos. Os Direitos Humanos e Apropriação Cultural na Indústria da Moda. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Fashion Law. Direito da Moda. São Paulo: Almedina, 2019, p. 319. xiii Ver ROVAI, Armando Luiz (org.). Atualidades na proteção das marcas e propriedade intelectual. Combate à pirataria. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2021. xiv SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Entrevista. In: ROVAI, Armando Luiz (org.). Atualidades na proteção das marcas e propriedade intelectual. Combate à pirataria. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, p. 450-451. xv Palestra "Contratos na Indústria da Moda", proferida por Renata Domingues Balbino Munhoz Soares, em 20 de setembro de 2019, na OAB de Santos-SP. xvi BERLIM, Lilyan. Moda e Sustentabilidade. Um reflexão necessária. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016. xvii STJ, Resp. nº 1.655.139 - DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 05/12/2017. xviii Apelação Cível nº 1040406-81.2016.8.26.0100. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. CESAR CIAMPOLINI, j. em 27.01.2022.  
Enchentes, deslizamentos, secas, incêndios, mudanças climáticas. Há contornos próprios e angustiantes nos quadros de captação e previsibilidade em relação aos riscos e desastres nas sociedades contemporâneas do século XXI. Para apreender em teor direto a configuração desses quadros, parte-se de contextos de assimilação ou descrição que revestem limiares de ruptura da normalidade, a acompanhar conjunturas de desastres e danos ambientais. Esses contextos determinam uma reflexão sobre os indicadores de variação, resistência e segurança, projetados no passado e que ainda têm seus objetos de avaliação em operação, mas sujeitos a novos parâmetros de aferição de risco. Em outras palavras, em que medida construções, estradas, sistemas de captação fluvial e pluvial, sistemas de irrigação, materiais de resistência, todos projetados no passado em conjunturas ali apuradas, são hoje sujeitos a novos parâmetros de avaliação que tornam inseguras ou sujeitas à revisão as variáveis de segurança então existentes? Este ponto é central quando se pensa em matrizes de risco e prevenção em termos jurídico-ambientais. Em que medida o parâmetro do passado ainda se aplica para fins de avaliação de patamares de previsibilidade? As novas conjunturas de risco tornaram o previsível imprevisível, fator que se acentua com as mudanças climáticas. Tomem-se as avaliações de estimativa de níveis de chuva. É habitual, quando se depara com enchentes ou alagamentos, que a notícia descritiva seja acompanhada da referência de que nos dias ou semanas do ocorrido os níveis de chuva superaram demasiadamente a média do mês. A questão provocativa é justamente até que medida as médias do mês para fins de previsibilidade são ainda sólidas para se fazer planejamentos de ação? Em que medida os níveis históricos precisam ser reconfigurados em análise para que agentes privados, sociedade e o próprio Estado se planejem em face das situações de risco? A prevenção e a precaução ambientais confrontam-se com um solo movediço em relação às variáveis de planejamento em face dos eventos naturais, que em verdade passam a ser cada vez mais influenciados por interferências antrópicas. O Instituto Nacional de Meteorologia - INMET - possui dados de análise das condições climatológicas apurados ao longo dos anos, inclusive com balanços climatológicos. Em relação às chuvas ocorridas no Estado de Minas Gerais em janeiro de 2022, o INMET indica uma média histórica para o mês, apurada de 1981 a 2010. Os dados indicam que a média histórica para o mês, em Belo Horizonte, é de 329,1 mm ao passo que em janeiro de 2022 o total acumulado foi de 528,2 mm. O volume de chuvas acarretou o galgamento da barragem da Mina de Pau Branco, a partir do que a barragem foi incapaz de conter os rejeitos, que se projetaram sobre área ecológica e ocuparam a BR-040, interditando a via. As estimativas de cálculo de contenção mostraram-se falhas. Situação que também demonstra os níveis dissonantes entre expectativa e concretização se passou em Petrópolis, que sofreu profundo desastre ambiental e humanitário com as chuvas de fevereiro de 2022, a exemplo de desastres anteriores, como o de 2011, também sofrido pela região serrana do Rio de Janeiro. Os desastres e crises ambientais provocam reflexão direta em termos de prevenção e de gestão de riscos para efeitos da responsabilidade civil. Os dados históricos, as médias de ocorrência, os limites-padrões de resistência ou durabilidade não podem ser tomados como réguas ou referenciais inalteráveis na gestão de medidas preventivas ou de precaução. A crise ambiental remete à crise dos referenciais de previsibilidade ou de referência de valorações de segurança. Mecanismos de prevenção ou estimativas de contenção de risco precisam estar apoiados em lastros de segurança que tenham uma crescente margem de resistência para variações que superem níveis de regularidade. Não se pode mais simplesmente programar ou gerir situações de risco com base em estimativas históricas lastreadas em outras conjunturas, justamente porque o perfil climático e ambiental como um todo está a sofrer alterações drásticas, sinérgicas e cumulativas cuja manifestação instável sujeita à confluência de variáveis diversas. A responsabilidade civil em matéria ambiental caminha para a tomada da prevenção e da precaução não somente a partir de roteiros de avaliação de conformidade para com indicadores usuais de segurança e resistência, mas também para com indicadores de imprevisibilidade, para com margens de segurança em face de instabilidades que projetem efeitos drásticos e de ocorrência probabilística não usual. O papel preventivo da responsabilidade civil passa, portanto, pelo desenvolvimento de fatores de margem de segurança extremados, lastreados cada vez mais não na probabilidade da anormalidade das variáveis de composição de risco, mas sim nas instabilidades reativas e nas extensões de dano projetável, ou seja, na magnitude de dano estimada em caso de concretização do risco. O Decreto 10.593/20, a regulamentar as leis 12.340/10 e 12.608/12, dispõe sobre a organização e funcionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e sobre o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, dentre outros temas de relevância. As ações de prevenção são descritas como medidas prioritárias destinadas a evitar a conversão de risco em desastre ou a instalação de vulnerabilidades. As avaliações e análises de vulnerabilidades, a acarretarem inclusive imputações de responsabilidade civil se ocorrido o dano, demandam a gestão de margens de instabilidade em uma verdadeira estimativa de imprevisibilidade relativa aos indicadores de previsibilidade históricos, que são cada dia mais suscetíveis de excepcionalidades. A questão que advém em uma sociedade de risco e na era dos desastres ecológicos é a imposição judicial e administrativa de situações de margem de risco aptas a fazerem face às excepcionalidades da linha média de prevenção exigida para atividades e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de danos ambientais de alta magnitude.  
Um indivíduo perdeu um dia de férias em razão de um atraso de voo e recebeu uma indenização por danos morais de 5 mil reais; outro sujeito teve seus dados pessoas utilizados para a realização de fraudes bancárias e abertura de financiamentos em seu nome, e também recebeu indenização por danos morais de 5 mil reais. Casos tão diferentes, com violações a bens jurídicos diferentes e repercussões pessoais e sociais diversas, mas com valores iguais de indenização. Como julgar se o valor recebido pelas partes é justo ou adequado? Estes casos são reais e traduzem um fenômeno que se repete todos os dias na prática de juízes e advogados, inclusive em casos diferentes do ilustrados acima. Este breve texto busca fazer apontamentos gerais sobre o método bifásico de quantificação dos danos morais, como instrumento que permite fornecer parâmetros de adequação e justificação dos valores atribuídos às indenizações por danos morais, avaliando o método e, principalmente, sua prática jurisprudencial. Com isso, o texto introduz as bases para uma pesquisa empírica em curso acerca do uso do método na jurisprudência brasileira. 1. A problemática da quantificação "Quanto vale uma indenização por dano extrapatrimonial?" é uma questão que ocupa há muito tempo a doutrina civilista e os juristas práticos, tendo recebido uma enorme quantidade de respostas. Elas costumam tomar como ponto de partida o reconhecimento da inviabilidade na aplicação do princípio da reparação integral aos danos morais, ou pelo menos na forma como tradicionalmente se caracteriza este princípio - isto é, que a indenização deve corresponder à exata extensão aferida do dano. O problema, portanto, é posto em como medir a extensão de um dano extrapatrimonial. Para isto, a jurisprudência vem determinando critérios que auxiliem na mensuração da extensão do dano extrapatrimonial. De forma bastante difusa, são diversos os critérios que são aplicados na prática, os quais somente podemos listar exemplificativamente: 1) Extensão do dano; 2) Vedação ao enriquecimento sem causa; 3) Posição da vítima; 4) Posição do agressor; 5) Situação econômica da vítima; 6) Situação econômica do ofensor; 7) Razoabilidade; 8) Equidade; 9) Proporcionalidade; 10) Culpa concorrente da vítima; 11)  Indústria do dano moral; 12) Função punitiva; 13) Função pedagógica; 14) Função preventiva; 15) Grau de culpa do ofensor; entre outros. Para operar com estes critérios, é necessário adotar uma sistemática de aplicação que, em verdade, configura um método de quantificação. Todos os dias estes métodos são aplicados, mesmo que de forma rudimentar e pressuposta nos processos decisórios. Os esforços doutrinários mais recentes em matéria de quantificação de danos morais vêm sendo na formulação e sistematização destes métodos. 2. O método bifásico Uma das propostas de método de quantificação mais influente na doutrina e jurisprudência recentes é o chamado método bifásico. O seu formato de maior fôlego pode ser visto na pesquisa de doutoramento do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, publicada em 2010 com o título "Princípio da Reparação Integral: indenização no Código Civil"1. Todavia, é no surgimento de diversas decisões que aplicam o método - inclusive do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do próprio Min. Sanseverino e de outros ministros - que a sua relevância é posta. O método consiste em duas fases. Na primeira, o julgador arbitra um valor de indenização por danos morais tendo como base precedentes judiciais em casos de violações do mesmo bem jurídico objeto da demanda, traçando uma média dos valores geralmente deferidos pela jurisprudência e fixando um "valor-base". A ideia, nesta fase, é garantir uniformidade e igualdade nas decisões de casos similares2. Na segunda fase, o método propõe uma modulação do valor-base atribuído na primeira fase de acordo com as peculiaridades do caso. Para isso, são aplicados alguns critérios que permitem o aumento ou a diminuição do valor-base de acordo com a incidência e peso do critério. O min. Sanseverino elenca quatro critérios: a) a gravidade do fato em si; b) a culpabilidade do agente; c) a eventual culpa concorrente da vítima e; d) a condição econômica das partes3. A seleção destes critérios específicos não é justificada na elaboração doutrinária do método, sendo um ponto de necessária análise para verificar se esses são critérios importantes e se outros poderiam figurar no rol de critérios da segunda fase. O método, como proposto, é simples e não constitui uma grande novidade, como é bem evidente. Em certo sentido, é uma forma de adaptação da metodologia de dosimetria da pena, prevista no Código Penal, à Responsabilidade Civil. Porém, é uma das formas mais elaboradas disponíveis para discussão de um processo de quantificação de danos morais minimamente justificado, que supere o excesso de arbitrariedade presente na prática jurídica. Por isso, vale a pena discuti-lo. Ele pode ser um ponto de partida para uma formulação mais robusta em busca de um processo de quantificação de indenizações mais racional e justificado. 3. A absorção do método bifásico pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Ao se falar na influência que o método bifásico possui, especialmente quanto à sua construção jurisprudencial, é forçoso reconhecer a notória contribuição do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, a quem se atribuem os méritos na tarefa de introduzir sua utilização nos julgados do STJ, além de toda a sistematização doutrinária realizada por ele já comentada. Na condição de integrante da Corte, o ministro invocou o método na ocasião do julgamento do Recurso Especial 959.780/ES pela 3ª turma, ocorrido em 26 de abril de 2011, e que envolvia o reconhecimento de indenização por dano moral em decorrência de evento morte. Trata-se do julgado paradigma na adoção do método bifásico pelo Tribunal. A partir de então, verifica-se que sua absorção pela jurisprudência do STJ ocorreu de forma consideravelmente paulatina, com a primeira ocorrência de sua utilização pela 4ª turma apenas em 04 de outubro de 2016, no julgado do REsp 1.473.393/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão4. Em que pese a relevância em se estabelecer parâmetros para a aferição do quantum indenizatório, é importante destacar que a utilização do método pode estar associada, em determinados casos, a uma aplicação abstrata e imprecisa das circunstâncias moduladoras da segunda fase, o que compromete a sua operabilidade e a segurança na sua aplicação. É o caso, por exemplo, do entendimento firmado no AgRg no REsp 1.493.022/PE, relatado pelo min. Paulo de Tarso Sanseverino e julgado pela 3ª turma em 05 de fevereiro de 2015. A hipótese em comento remete a acidente de trânsito ocorrido no Estado de Pernambuco, o qual resultou na morte de filho da autora. Diante do trágico evento, a requerente pleiteou judicialmente, em desfavor de empresa cujo condutor de ônibus esteve envolvido na colisão, pensão por morte e indenização por danos morais. Ao julgar recurso de apelação, o TJ/PE arbitrou a indenização por danos morais em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), gerando inconformidade à parte autora, que interpôs Recurso Especial ao STJ, por considerar o valor ínfimo frente à extensão da lesão suportada. De fato, trata-se de montante expressivamente inferior à média arbitrada pelo STJ para casos que envolvem o dano à vida (evento morte), a qual costuma oscilar entre 300 (trezentos) e 500 (quinhentos) salários-mínimos, conforme reconhecido pelo próprio Ministro Sanseverino na relatoria do caso em questão. Com relação ao valor da primeira fase, o ministro afirma que, "em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos), [...] deveria ser fixado em montante equivalente a 400 salários-mínimos na data de hoje", que representa a média do arbitramento feito pela 3ª e pela 4ª turma, que integram a Segunda Seção do STJ. Já ao analisar sinteticamente as circunstâncias da segunda fase do método, o Ministro assegura que "deve-se considerar, em primeiro lugar, a gravidade do fato em si, morte do filho, e a própria discussão, nos autos, da ocorrência ou não de caso fortuito e da culpa do motorista da empresa ré". Em seguida, transcreve trechos do acórdão recorrido e conclui, ao final, no sentido de arbitrar a indenização no montante equivalente a 300 salários-mínimos, sendo acompanhado de forma unânime por seus pares. A partir da leitura do inteiro teor do Acórdão, é possível extrair duas principais conclusões. A primeira é a de que não há clareza no peso atribuído a cada critério para majorar ou minorar o valor da primeira fase, o que faz com que não seja possível identificar a influência preponderante de quaisquer dos critérios aplicados para redução do quantum, a fim de justificar que o valor da segunda fase seja menor que o da primeira fase (redução significativa de 400 para 300 salários-mínimos). A segunda, que está diretamente associada à anterior, reside na referência meramente descritiva dos parâmetros, como se dá, por exemplo, com a gravidade do fato em si; a leitura do acórdão, neste particular, não nos permite concluir de forma peremptória se o resultado morte foi considerado como fato ensejador da elevação do quantum, ou se estamos diante de mera indicação nominal de uma das circunstâncias da segunda fase do método (gravidade do fato em si). É importante dizer que não se está a defender que o evento morte seja considerado uma circunstância capaz de majorar o quantum - uma vez que o valor da primeira fase já compreende a natureza do bem jurídico violado e, consequentemente, a extensão genérica do dano -; na realidade, sustentamos apenas que é necessário que se possa compreender o impacto que cada fator teve na delimitação do valor final da indenização. A realidade apresentada no julgamento do AgRg no REsp 1.493.022/PE não representa fato isolado na jurisprudência do STJ. Há diversidade de casos em que podemos encontrar inconsistências parecidas na aplicação do método, o que se atribui, em suma, a fatores que não podem ser explicitados com a devida profundidade neste texto, mas que podem ser parcialmente conhecidos em pesquisa anteriormente publicada a respeito do tema5. Para além do que foi destacado quanto ao julgado mencionado anteriormente, existem, ainda, outras questões a serem objeto de atenção dos estudiosos do assunto, tal como a referência a circunstâncias que não estão previstas no âmbito da segunda fase do método, o que ocorreu no julgamento do REsp 1.897.338/DF, em que se considerou "a responsabilidade do agente" para a fixação definitiva da indenização. Em suma, são pontos de análise que justificam a continuidade dos estudos acerca do método bifásico e sua utilização, sem excluir, porém, que sejam considerados parâmetros diversos para a fixação do quantum em indenizações por danos morais. 4. Notas conclusivas A caminhada em busca de maior previsibilidade no processo de quantificação das indenizações por danos morais nos remete, a um só tempo, à inevitável conclusão de que não se pode utilizar os mesmos critérios aplicados aos danos de natureza patrimonial, e a uma miríade de parâmetros usualmente encontrados na doutrina e na jurisprudência para justificar a fixação de valores. O método bifásico de quantificação é, indubitavelmente, marco relevante nesse processo, não apenas pela sua qualidade teórica - e seu projeto de reduzir o grau de subjetividade na aferição do quantum indenizatório -, mas também pela sua influência prática - com sua absorção na jurisprudência do STJ e, por consequência, em outros tribunais. Porém, a despeito dos méritos que o método traz consigo, há questões controversas que persistem no que diz respeito a sua utilização e à escolha dos critérios da segunda fase que foram definidos na formulação do min. Paulo de Tarso Sanseverino. Justifica-se, com isso, maiores pesquisas sobre o tema que possam esclarecer como o método opera na prática. Ao buscar sistematizar o que acreditamos se tratar de pontos nebulosos no tocante ao método e à sua prática, nosso intuito foi o de lançar algumas provocações acerca da temática, sem qualquer viés de esgotar a análise ou de minimamente delimitar o estado da arte da matéria - ao menos neste momento. Ao contrário, o presente estudo lança indagações e introduz uma pesquisa em curso desenvolvida pelos autores deste texto, dentro dos trabalhos do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico (UFPR), que visa avaliar, através de pesquisa empírica jurisprudencial, se a aplicação do método bifásico de quantificação das indenizações por dano extrapatrimonial possui coerência com seus próprios fundamentos e operabilidade nas decisões que a aplicam, especialmente no STJ. ______________ 1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. 2 Em outro artigo nesta coluna, Lucas Faccio apresenta novas iniciativas na formulação de tabelas como parâmetros para as indenizações por dano moral, que podem ser lidas como formas de avançar primeira fase do método bifásico. Cf.: FACCIO, Lucas Girardello. Uma nova fase do tabelamento do dano moral no Brasil. Disponível aqui. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 288-289. 4 A afirmação de que se trata do caso pioneiro de aplicação do método no âmbito da 4ª Turma do STJ deriva de pesquisa jurisprudencial realizada no sítio eletrônico do Tribunal, em 22 de fevereiro de 2022, com os indexadores , tendo sido localizados 90 julgados ao todo, 23 dos quais são pertencentes à 4ª Turma. 5 FAMPA, Daniel Silva; SILVA, João Vitor Penna e. A quantificação das indenizações por danos morais e o método bifásico na jurisprudência do STJ. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira; SANTANA, Ágatha Gonçalves. (Org.). Responsabilidade Civil no Século XXI e a construção do Direito de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 133-154. Disponível aqui.
A 3ª turma do STJ se deparou recentemente com importante caso envolvendo o recorrente tema da violência doméstica1, especificamente a respeito da possibilidade de o potencial agressor, a cujo respeito não houve ainda trânsito em julgado de sentença penal condenatória, fazer jus a indenização por meio de arbitramento de aluguel pelo fato de não mais poder usar e gozar de bem imóvel. No caso examinado pela Corte por força do REsp 1.966.556/SP, havia sido concedida medida protetiva de urgência, com previsão na le 11.340/06 (Maria da Penha), em desfavor de homem que teria protagonizado episódios de violência doméstica contra sua mãe e irmã, esta última coproprietária do bem imóvel em que residiam, impedindo-o de se aproximar de ambas e, por consequência, de ingressar na residência. Reputando-se prejudicado em razão da concessão da medida protetiva e do impedimento de exercer plenamente o seu direito de propriedade, Eduardo M. A. ajuizou ação de extinção de condomínio cumulada com arbitramento de aluguel em face de sua referida irmã e também de outro irmão, cada qual deles com fração ideal de 1/6 do bem imóvel, ao passo que o demandante titularizava o domínio na proporção de 2/3. O juízo de piso julgou procedentes os pedidos formulados pelo autor, determinando a alienação do imóvel em hasta pública e cominando à sua irmã o dever de lhe pagar aluguel mensal pela ocupação exclusiva do bem, em montante que seria apurado em sede de liquidação de sentença. Insatisfeita com a decisão, Ana Lucia M. A. apelou da sentença prolatada, recurso esse a que se deu provimento nos termos da ementa abaixo transcrita: "APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE EXTINÇÃO DE CONDOMÍNIO C.C. ARBITRAMENTO DE ALUGUEL - SENTENÇA PROCEDENTE QUE DETERMINOU ALIENAÇÃO DO IMÓVEL EM HASTA PÚBLICA E CONDENOU A RÉ AO PAGAMENTO DE ALUGUEL PELO USO EXCLUSIVO DO BEM - INCONFORMISMO DA RÉ - AUTOR AFASTADO DO IMÓVEL EM DECORRÊNCIA DE MEDIDA PROTETIVA - ABSOLVIÇÃO NA AÇÃO PENAL NO CURSO DA LIDE POR FALTA DE PROVAS - SENTENÇA QUE NÃO TRANSITOU EM JULGADO E NOTICIA BELIGERÂNCIA ENTRE AS PARTES - AFASTAMENTO QUE NÃO DECORREU DE ATO VOLUNTÁRIO DA RÉ INCABÍVEL CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE ALUGUEL - DADO PROVIMENTO AO RECURSO." Invocando violação à parte final do art. 1.319 do Código Civil2 ("Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou"), o autor interpôs recurso especial, inadmitido na origem e posteriormente conhecido em virtude de agravo, sorteada a relatoria ao Min. Marco Aurélio Bellizze. Consideradas as breves notas sobre os fatos, não há dúvidas de que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que o obstáculo ao exercício de quaisquer dos atributos da propriedade pelos demais coproprietários importa no dever de indenizar aquele que foi privado de usar e gozar do bem especialmente por meio do arbitramento de aluguel. Contudo, - e essa constitui a grande peculiaridade do caso concreto -, subsiste o dever de indenizar por parte do coproprietário que não privou o outro de modo direto de exercer plenamente a propriedade e seus consectários, mas através de decisão judicial fundamentada em indícios de violência doméstica? E mais: eventual absolvição na seara penal teria o condão de tornar exigível a indenização? Ao reformar a sentença para deixar de reconhecer o pedido de arbitramento de aluguel, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com acerto, já havia apontado o relevante fato para deslinde da controvérsia de que foi o próprio autor quem havia dado azo à proibição da utilização do bem, com o consequente uso exclusivo por sua mãe e sua irmã enquanto perdurasse a medida protetiva de urgência. Trata-se da adequada aplicação da máxima de que ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza, absorvida, ainda que em contexto diverso, pelo art. 150 do Código Civil, segundo o qual se ambas as partes procedem com dolo, nenhuma delas pode invocá-lo para anular o negócio jurídico ou exigir a correspondente indenização. Ora, se a noção de torpeza abarca o comportamento indigno e repulsivo, ainda que indiciário, daquele que por qualquer ação ou omissão, nos termos do caput do art. 5º da Lei Maria da Penha, com base no gênero, cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, resta evidente que o protagonista da violência em questão não pode, sob qualquer prisma, locupletar-se a despeito de sua própria ação ou omissão. Se ao fim e ao cabo o juízo penal determinar a cessação da medida protetiva de urgência e formar seu convencimento no sentido de que não houve a prática real de quaisquer das espécies de violência doméstica contra a mulher ou as mulheres, no caso a irmã e a mãe do autor, tampouco esse fato fará surgir em seu proveito o direito de ser indenizado por meio de arbitramento de aluguel. Em situações dessa natureza, deve-se afastar a aplicação da cláusula geral da vedação ao enriquecimento sem causa. A razão é simples. O autor foi alijado do exercício de plenitude da propriedade por iniciativa própria, sem que tenham concorrido sua mãe ou sua irmã com qualquer espécie de ato ilícito. Nesse contexto, torna-se juridicamente irrelevante, para o fim de arbitramento de aluguel, a emissão de juízo não exauriente por meio de magistrado que concede referidas medidas cautelares e que posteriormente, ao formar em definitivo seu convencimento, não vislumbra reais e efetivos atos de violência doméstica. De fato, a mera possibilidade de vir a pagar alugueis ao cônjuge, companheiro ou parente potencialmente agressor, mesmo que se conclua pela inexistência de violência doméstica ao final, constituiria um grave desestímulo para que a mulher buscasse o amparo estatal, por exemplo, para a fixação de medidas protetivas de urgência. A razão para a vedação ao aludido arbitramento encontra ainda amparo em princípios de matriz constitucional, rememorando-se, em primeiríssimo lugar, que o direito de propriedade, evidentemente, não é absoluto, podendo sofrer restrições em não poucas ocasiões.3 Nessa esteira, o relator, Min. Marco Aurélio Bellizze, invoca a ofensa ao art. 226, § 8º, da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos seus membros, criando mecanismos para coibir a violência nas relações que se desenvolvem em seu seio. Não só. Fundamenta ainda seu voto enunciando os arts. 1º, III (o ubíquo princípio da dignidade da pessoa humana), 3º, IV (o objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) e 5º, caput e I (igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações). Por fim, a decisão corrobora o dever estatal da vedação à proteção insuficiente, por meio do qual é essencial a concretização de um patamar mínimo de proteção,  cuidando-se de espécie de outra dimensão da proporcionalidade na condição de proibição de excesso de intervenção, de modo que a noção de proporcionalidade se relaciona intimamente com a ideia de que os fins, mesmo que legítimos, não autorizam o emprego de quaisquer meios para a sua consecução.4 Por todos esses motivos, oportuno e alvissareiro o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, garantindo às mulheres a proteção necessária para que levem sempre ao conhecimento do Poder Público, sem receio de futuro revés em termos patrimoniais, situações de violência doméstica de que sejam vítimas. ______________ 1 Cf., a esse, respeito, MORAU, Caio. Aplicabilidad de la Ley Maria da Penha en el ámbito civil como instrumento de prevención de la violencia doméstica. In: Jorge Mosset Iturraspe (org.). Revista de Derecho de Daños. Buenos Aires: Rubinzal, 2019, p. 237-.259. 2 Cf. LOUREIRO, Francisco. In PELUSO, Cezar (org). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, p. 1.323."A parte final do artigo dispõe que responde o condômino perante os outros pelos danos que causou à coisa comum, também na medida de suas frações ideais. Esses danos podem ser causados pela utilização exclusiva, em detrimento dos demais, ou pela própria deterioração ou perda culposa da coisa comum. Também o administrador da coisa comum responde aos demais coproprietários não somente pelos frutos recebidos com exclusividade como também por aqueles que culposamente deixou de perceber." 3 Nesse sentido, cf. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade de acordo com o Código Civil de 2002 e com o Estatuto da Cidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 4 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 304.
1. O início de 2022 trouxe a notícia sobre uma importante decisão no processo movido por Virgínia Giuffre em face do príncipe Andrew, relacionado a uma ação de responsabilidade civil devido à alegação de assédio sexual feita pela autora. Em decisão proferida pelo Juiz Lewis Kaplan1, foram rechaçados os argumentos da defesa, tendo então admitido a viabilidade da ação movida por Virgina Giuffre, que deverá agora ter o seu mérito examinado ao longo de 2022.  O processo movido por Virginia Giuffre teve início em agosto de 2021, tendo por base o relato da autora de ter sido forçada a manter encontros sexuais com o príncipe, a partir de festas ou encontros promovidos por Jeffrey Epstein no ano de 2001. 2. Sobre este ponto cabe desde logo uma primeira observação: muito embora o processo tenha sido proposto somente em 2021, o ato ilícito é apontado como tendo ocorrido muito tempo antes, em 2001, quando a autora tinha 17 de anos de idade. A base jurídica para a propositura desta recente ação reside em uma legislação do Estado de Nova Iorque promulgada em 2019, o Child Victims Act, que, dentre diversos dispositivos, suspendeu a prescrição para as chamadas ações civis de vítimas de abusos sexuais, menores de 18 anos, nos casos ocorridos anteriormente à entrada em vigor da lei2. Em essência, a referida legislação instituiu inicialmente uma 'janela de oportunidade' de um ano (one-year window), para que as vítimas de casos pretéritos ingressassem com ação contra o suposto causador do dano. Posteriormente, este prazo foi estendido, devido às limitações da pandemia da covid-19. Em face dessa disposição, cerca de dez mil ações foram ajuizadas no Estado de Nova Iorque até o prazo final previsto, em agosto de 20213. Dentre essas ações, sobressaiu a que foi movida por Virgína Giuffre em face do príncipe Andrew. Segundo o grupo de reflexão (think tank) para proteção da criança Child Usa, ao menos 24 estados americanos adotaram disposições no sentido de reabrir o prazo prescricional (revived expired civil statute of limitation)4, sem que se tenha nestes estados a mesma repercussão relativamente ao número de ações civis propostas. O tema da prescrição em matérias como as que foram objeto de tutela pela lei do Estado de Nova Iorque interessa, evidentemente, ao direito civil brasileiro e tem sido objeto de reflexão, especialmente a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que estabeleceu a imprescritibilidade nos casos de danos ao meio ambiente5. Mesmo que se possa ter questionamentos acerca da orientação adotada pela imprescritibilidade, não se pode negar a pertinência da reflexão feita por setores autorizados da doutrina brasileira: afinal, se há imprescritibilidade para o dano ambiental - ainda mais na extensão dada pela decisão do Supremo Tribunal Federal que não parece fazer qualquer distinção entre dano individual e coletivo - por que não suscitar o tema da imprescritibilidade para outras pretensões, como as que envolvem interesses existenciais relevantes6. Afinal, se é certo que o meio ambiente constitui um dos valores essenciais da nossa sociedade e, por conseguinte do nosso ordenamento jurídico, também se pode ao menos configurar que outros valores relativos à pessoa humana também possam merecer o benefício da imprescritibilidade, quando se tem presente que o ordenamento jurídico ainda é permeado pela noção antropocêntrica7. A pergunta que remanesce é se essa solução adotada por diversos estados americanos deva ser considerada como a mais adequada no direito civil brasileiro, na medida em que pode, de um lado, conduzir ao ingresso de uma verdadeira avalanche de ações - o que levou, no Estado de Nova Iorque, à criação de uma estrutura específica  para fazer face a essa situação - e, de outro, pode ser reputada como uma violação do princípio da segurança jurídica8, mesmo tendo presente a finalidade de permitir a justiça no caso concreto para as vítimas. Essas dúvidas sobre o modelo do direito americano não devem conduzir, porém, a um eterno imobilismo, quando se verifica que a orientação atual do direito brasileiro, paradoxalmente, foi a de estender o prazo prescricional para a responsabilidade contratual para dez anos, mantendo em três o período prescricional na hipótese de responsabilidade extracontratual. Precisamente, portanto, em questões relativas à pessoa temos hoje um período estrito de prescrição, o que revela uma opção de privilégio para a tutela de interesses patrimoniais, que não parece refletir os reais valores do nosso ordenamento jurídico! 3. A par dessa primeira questão ligada à prescrição e à responsabilidade civil, o processo movido por Virginia Giuffre se destaca por um outro ponto de direito material: é incontroverso que, em 2009, anteriormente ao ingresso de sua recente ação em face do príncipe Andrew, ela acionou Jeffrey Epstein no Estado da Flórida, pretendendo indenização. No âmbito desse feito, ainda em 2009, foi celebrada transação (Settlement Agreement and General Release), pela qual a autora recebeu U$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares), tendo em contrapartida desistido da ação proposta. Segundo os advogados do príncipe Andrew, a celebração da transação deveria ser considerada como uma causa extintiva para o processo movido, tendo em vista que no âmbito da transação celebrada por Virginia Giuffre e Jeffrey Epstein, a autora (first part) isentou não somente o réu (second part), mas igualmente qualquer outra pessoa ou entidade que poderia ter sido potencialmente incluída como ré na causa (other potential defendants), de quaisquer outras pretensões que ela pudesse ter.   Ao analisar essa cláusula da transação, o Juiz Lewis Kaplan considerou que o dispositivo era, em essência, ambíguo, na medida em que não se poderia efetivamente deduzir a quem se referia a disposição acerca de 'outras pessoas potencialmente passíveis de ser incluídas no polo passivo da causa'. Afinal, há que se partir da premissa que a autora poderia ter incluído o príncipe Andrew na causa em 2009 e não o fez. Além disso, o referido processo foi movido com base em dispositivos do direito estadual, da Florida, sendo pouco previsível que eles servissem de fundamento para alcançar o príncipe Andrew. Por fim, considerou o juiz em sua decisão que o príncipe não era parte no acordo, de modo que seria desarrazoado estender os termos da transação a um terceiro. 4. Muito embora não se possa transplantar9, pura e simplesmente, questões do ordenamento americano para o sistema da civil law, e no caso para o direito civil brasileiro, pode-se debater, a partir de um suscinto exame da matéria da interpretação e da estrutura da transação10, se teríamos aqui as mesmas conclusões da decisão americana.  Em primeiro lugar, tendo como premissa que a transação configura um negócio jurídico declarativo, ela deve ser interpretada restritivamente, conforme o artigo 843, do Código civil. Ora, em síntese, os efeitos da transação não devem ser ampliados, estendendo-se o que nela não foi disposto explicitamente. Havendo dúvida, portanto, sobre a natureza da cláusula constante da transação, seguiu o juízo americano a diretriz de que ela deveria ter caráter restrito. Em segundo lugar, considerando-se que a transação constitui um contrato, ela somente aproveita às partes, não afetando ou favorecendo terceiros a não ser em circunstâncias pontuais, como servem de exemplo o fiador segundo a previsão do artigo 844, do Código civil. Muito embora a existência de transação entre Virginia Giuffre e Jeffrey Epstein, há que se considerar que o príncipe Andrew era estranho ao litígio estabelecido entre eles.  Em terceiro lugar, nos termos da atual redação do artigo 113, § 1º, V, do Código civil, no que concerne às regras gerais de interpretação do negócio jurídico, aplicáveis, portanto à transação, verifica-se que se deve estabelecer o sentido que melhor corresponder à razoável negociação das partes, tendo por base a racionalidade econômica e as informações disponíveis no momento da celebração. Ora, diante disso, a interpretação restritiva, no sentido de excluir o príncipe Andrew nos seus termos, apresenta-se como a mais adequada, na medida em que não se percebe, explicitamente, que seria um objetivo das partes transigentes, no momento do acordo, pretender que toda a gama de terceiros potencialmente envolvidos no ato ilícito fossem abrangidos pela transação. Desse modo, muito embora se tenha ciência das  necessárias cautelas exigidas por uma análise à distância do caso sub judice, em  Nova Iorque, e das indispensáveis ponderações a serem adotadas no sensível campo da comparação jurídica, pode-se sustentar a similitude de soluções no âmbito da interpretação da transação, de sorte que a decisão adotada  pelo Juiz Kaplan prevaleceria no Direito civil brasileiro, para considerar que o príncipe Andrew não deveria ser favorecido pela transação celebrada originariamente entre Giuffre e Epstein. ________________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Recurso Extraordinário n. 654.833, Rel. Min. Alexandre Moraes, j. 20.04.2020, tendo sido fixada a seguinte tese: "É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental". 6 LUTSKY, Daniela. A Acertada imprescritibilidade reparatória ambiental e a possibilidade de extensão a outros interesses existenciais constitucionalmente assegurados, in Migalhas de Responsabilidade Civil, 29 de junho de 2021. 7 Ver, por exemplo, SUPIOT, Alain. Homo juridicus - ensaio sobre a função antropológica do direito. Martin Fontes, São Paulo, 2017, p. 26ss. 8 ARNAULD, Andreas von. Rechtssicherheit, Mohr Siebeck, 2006, p. 1ss. 9 LEGRAND, Pierre. A Impossibilidade de "Transplantes Jurídicos, Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFRGS, vol. IX, 2014, p. 11 ss. 10 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fábio S. de. Notas sobre a transação como contrato atípico: instrumento negocial de autorregulação dos conflitos entre particulares, Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 13, 2017, p. 171ss.
O digital é um país das "maravilhas" para quem quer se maravilhar, se encantar, mas também para aqueles que querem atingir violentamente o outro. A Internet é um mundo aberto a todas e quaisquer tipos de pessoas. Não temos qualquer controle sobre "o que e como é veiculado" quando optamos por nos expor abertamente nele. Haverá olhos para a beleza e para a feiura, para o bom e para o mau, para o afetado e para o indiferente. Não sabemos "se e" quais olhos recairão sobre nossa imagem (ou de nossos filhos). Nem mesmo qual a veemência, tom e repercussão desse olhar. Nesse sentido, o sociólogo Manuel Castells adverte que a sociedade em redes é permeada por aspectos específicos e intercambiantes. Destaco aqui alguns deles. O primeiro é a concepção da informação como a grande nova matéria-prima da sociedade. Há "tecnologias para agir sobre a informação, não apenas informação para agir sobre a tecnologia, como foi o caso das revoluções tecnológicas anteriores"1. A segundo aspecto para o qual chamo a atenção é que, assim como a informação é uma parte integral de toda atividade humana, todos os processos da existência individual e coletiva acabam sendo moldados pelo novo meio tecnológico. É o que Castells denomina de penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. Por isso, grande parte da população brasileira conheceu a pequena Alice e seu atual drama. Raros os que não estão conectados nas redes sociais. Saliento, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado. Castells afirma que atualmente as telecomunicações são tão somente uma forma de processamento da informação, pois as tecnologias de transmissão e conexão estão, simultaneamente, cada vez mais diversificadas e integradas à mesma rede operada por computadores. Em outras palavras, trata-se de um sistema aberto como rede de múltiplos acesso.2 Os benefícios dessa conectividade, integratividade e ubiquidade, todos nós nos favorecemos diuturnamente em alguma medida. Mas, o caso da doce e meiga Alice, remete-nos ao lado sombrio e perverso da sociedade em redes ou sociedade da informação. A garotinha acabou "se tornando uma informação" nas redes! E, como tal, o mundo digital se apropriou de seus atributos da personalidade, especialmente da imagem e da voz. De vídeos que encantaram milhares de pessoas no Brasil e no mundo, inicialmente divulgados reiteradamente pelos pais ou com o consentimento destes, sucedeu-se a uma "objetivação" da garotinha, tão linda e tão comunicativa. Sim, tratam-na hoje como um objeto/informação que pertence ao mundo digital. Nem mesmo res derelictae ou res nulliuns. Não! Concebem-na, os desavisados das redes, como se fosse propriedade inata das redes. Seguem-se reiteradamente memes, violação aos direitos da personalidade da menor, ganhos ilícitos sobre sua imagem, afronta direta e inadmissível à sua integridade moral. Isso é indiscutivelmente inadmissível. Qualquer ser humano jamais pode coisificado. Ainda que diversos vídeos da pequena Alice circulem pelas redes - e mesmo que alguns tenham a autorização e fomento dos pais - como pessoa humana, seus atributos da personalidade jamais podem ser concebidos como uma informação ou objeto pertencente ilimitadamente ao mundo digital. Independentemente de haver a participação dos pais ou não na divulgação das imagens, de ser a criança reiteradamente exposta em rede social pelos familiares, de haver um ou milhares de vídeos divulgados com autorização dos pais, a dignidade humana da pequena Alice mante-se juridicamente íntegra e merecedora de proteção. Sua dignidade enquanto pessoa humana não perde medida, não tem redução na proteção. É tão grande e valorosa de quando nasceu e de antes de ganhar notoriedade nas redes sociais. Por isso os pais são responsáveis por proteger a imagem e todos os atributos da personalidade dos filhos no mundo digital. Trata-se de uma responsabilidade que transcende o campo moral e impõe implicações jurídicas para a autoridade parental determinada legalmente. É preciso, acima de tudo, compreender que a imagem dos filhos não pertence aos pais. Independentemente de a exposição ter ou não finalidade econômica, é dever dos pais tomar todos os cuidados e providências para proteger, não só a imagem, mas todos os atributos da personalidade do filho. Deve salvaguardá-los de contextos que possam comprometer a sua dignidade humana. Nessa toada, é dever refletir sobre os prováveis impactos, positivos e negativos na esfera deles, e reconhecer a impotência e a fragilidade humana na Internet, sem descurar da peculiar vulnerabilidade de crianças e adolescentes dentro e fora as redes. Aliás, na Internet é possível afirmar a hipervulnerabilidade delas e, consequentemente, há exigência de maior atuação da autoridade parental, como retomarei linhas abaixo. Como já dito, o mundo digital é imprevisível. Entretanto, muitas vezes, há circunstâncias que já são conhecidamente propícias à violação aos direitos da personalidade. O caso da garotinha Alice é um deles. Os vídeos meigos, engraçadinhos e surpreendentes ganharam as redes sociais de forma escancarada, fomentada diariamente pelos próprios pais. Em minha tese de doutoramento, defendi, com respaldo em outros estudiosos do tema, que na sociedade da informação, a autoridade parental ganha novos contornos. A mediação dos filhos com a tecnologia passa a integrar esse poder-dever de forma ainda mais ativa.3 Afirmo, ainda, que o acesso à Internet é um direito fundamental de crianças e adolescentes. Os benefícios do mundo digital são inúmeros, contribuem para a efetivação do direito à educação (v.g. a viabilização da continuação do ensino durante a atual pandemia), do direito ao lazer, do direito ao convívio social (mais uma vez, temos o exemplo dos tempos de isolamento mais recrudescido ao longo da pandemia). Isso para citar apenas algumas das vantagens que já são conhecidas. A questão fulcral na atualidade e urgente é debater "o como", "em que medida", "os limites" e "as diretrizes" para o acesso de crianças e adolescentes no mundo digital. E, aqui, ganha o centro fundamental do debate o conteúdo e o exercício da autoridade parental, o novo papel das instituições de ensino e as políticas públicas que devem ser rápida e eficientemente desenvolvidas. É o que procurei debater na minha tese, cuja versão em livro está no prelo4. Quanto ao conteúdo e ao exercício da autoridade parental, o caso da garotinha Alice serve para ilustrar a gravidade, urgência e relevância de uma questão humana na sociedade da informação. Ao que tudo indica, no encantamento dos pais e familiares pela habilidade ímpar da linda garotinha, especialmente, em pronunciar palavras e expressões de maneira a superar o ordinário e esperado para a sua idade, começaram a divulgar os vídeos com sua performance. Quem já assistiu a qualquer vídeo da Alice, também se encantou e se fascinou. E com isso, mais e mais vídeos com as suas imagens foram sendo reiteradamente divulgados pela própria família. Alice se tornou famosa e até muito querida por todos nós. Ganhou mais fama ainda com o comercial estrelado junto à atriz Fernanda Montenegro. Acredito que neste caso, os aspectos econômicos da imagem tenham sido remunerados. Mas daquele contexto de maravilhamento, o que nós estudiosos já esperávamos, chegou. O desencantamento dos pais, a violação à própria dignidade humana da pequena Alice pela apropriação ilícita e criminosa de seus atributos da personalidade nas redes. Esta ainda é muito pequena para compreender as diversas e graves violações aos seus direitos da personalidade. Mas, isso, obviamente, não afasta ou minimiza qualquer das violações à sua dignidade. Portanto, não retira qualquer responsabilidade civil e criminal dos autores dos ilícitos e crimes envolvendo os seus atributos da personalidade. Basta lembrar que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. (art. 2º do Código Civil de 2002). Em resumo, para se ter a esfera existencial violada, não é necessário o discernimento ou a capacidade civil. Isso porque "o dano moral é a lesão a direitos da personalidade e a direitos de família puros, ainda que destes possam não advir dor, sofrimento e angústia"5. Esse entendimento permite uma proteção integral e plural da dignidade da pessoa humana. Não nego que os pais da pequena Alice estejam sofrendo com o contexto de memes e violação dos direitos da personalidade da filha. Acredito firmemente nisso e me solidarizo com eles! Repudio o que vem se passando nas redes sociais à revelia da família! E neste ponto, é importante lembrar que o sistema jurídico também os pais, circunstancialmente, proteção. Os danos à prole podem reflexamente violar os direitos extrapatrimoniais dos pais. É o que a doutrina nomeia de dano extrapatrimonial por ricochete, que consubstancia os efeitos indiretos do dano à integridade de terceiros. A reparação ou a imposição de medidas extrapatrimoniais nesses casos, constitui direito personalíssimo e autônomo dos terceiros - no presente caso, dos pais- em relação à vítima. Os abalos emocionais podem desequilibrar as relações familiares e provocar comoções psíquicos, emocionais e comprometimento da saúde física e mental. Já não são mais isolados casos extremos, em que perseguições, cyberbullying e outras violências digitais, demandam a mudança de endereço e alteração do nome da vítima e de seus familiares. Cabe ainda uma importante advertência. A indenização não pode ser compreendida como uma panaceia para todos os males à dignidade humana. Os aspectos pecuniários são apenas uma compensação por uma violação a um direito extrapatrimonial. As medidas inibitórias, as medidas preventivas e o direito de resposta, são algumas das alternativas que podem atacar o dano de forma mais eficiente. Ilustrativamente, medidas que retirem as imagens não autorizada pelos pais da pequena Alice de sites ou aplicativos, podem contribuir. A proibição de veiculação de imagens da menina nas redes em determinados contextos pode ainda contribuir para minimizar os impactos e propagação das lesões. Neste ponto, a atuação do Ministério Público ganha relevo tanto para efetivar o Estatuto da Criança e do Adolescente, como para apurar e processar os crimes praticados. De toda forma, no mundo digital, mesmo que as medidas inibitórias e não pecuniárias tenham relevantíssimo papel, dada a indelebilidade das informações nas redes e ao direito lesado (de ordem existencial), são impotentes como solução definitiva e cabal para os danos à dignidade humana. Por isso, a educação digital e a prevenção são a grande pedra de toque da era da informação. Retornando ao centro do debate que ora proponho, há de se pensar ainda sobre o futuro da pequena Alice. No mundo digital, as imagens são indeléveis, portanto, podem surgir a qualquer momento, por uma ação de uma pessoa situada em qualquer ponto do planeta. A velocidade de proliferação pode ser comparada à velocidade da luz. O público espectador tem um potencial infinito, pois pode contar com as presentes e futuras gerações de todo o planeta (uma verdadeira "solidariedade intergeracional"). Bom, se a situação permanecer ou se ressurgir no futuro, quando Alice se enxergar e se compreender como integrante de uma sociedade, passar a entender e ter discernimento sobre as violações que recaíram e recaem sobre a sua dignidade, os danos se repetirão. Será uma revitimização. Por isso, em outra oportunidade, ao discutir a responsabilização civil dos pais em tempos digitais, afirmei que a omissão de cuidado decorrente da negligência com a interação da criança e do adolescente no mundo digital também tem aptidão para acarretar danos que acompanharão a pessoa ao longo da vida. E, por isso, poderá haver a responsabilização civil dos pais em relação aos filhos6. Assim, ainda é possível que no futuro haja esse debate em relação aos pais da pequena Alice, com fundamento no fato de terem proporcionado um contexto que desencadeou o desenfreado golpe à sua imagem e aos demais direitos que repousam sobre a sua dignidade humana. Sei que minha afirmação parece cruel com os pais que já sofrem no atual contexto. Entretanto, no mundo digital temos que compreender com mais clareza que a imagem dos filhos não pertence aos pais. Caberá aos filhos, quando tiverem discernimento para tanto, decidir por se exporem ou não, em que medida e em que espaços digitais o farão. Até que isso aconteça, o papel dos pais é mediar o acesso ao mundo digital e proteger os direitos da personalidade dos filhos nas redes. Quando um pai escancara os atributos da imagem do filho (rosto, voz e tudo que o identifique de maneira inequívoca) na Internet, intensifica a sua fragilidade e vulnerabilidade nesse meio. Desejando ou não, coloca o filho na marca do pênalti, sem saber quem chutará a bola, quem será o goleiro, se haverá goleiro, desconsiderando completamente que não existe juiz para anular o gol... Infelizmente, Alice está muito mais suscetível de ser alvo no futuro de "cyberbullying", "Stalking"", reiteradas violações da imagem, da intimidade, da privacidade... e por aí vai. Repito: tenho convicção de estes sofrem e não imaginavam a proporção e as violações que poderiam se seguir. Casos como esse, demonstram como é tão urgente e imprescindível que o tema seja debatido, que políticas públicas voltadas à proteção e prevenção de danos a crianças e adolescentes na Internet, incluindo-se o esclarecimento dos pais, sejam providenciadas. Novos tempos e velhas visões dos pais (muitos, mas nem todos). Novos desafios e uma velha educação. Novas demandas sociais e a comum ausência de políticas adequadas e eficientes voltadas à proteção de crianças e adolescentes no mundo digital. ___________ CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura. NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. O compliance como medida preventiva ao cyberbullying: em busca da efetivação da proteção de crianças e adolescentes na sociedade da informação. 2021. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2021. SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. Disponível aqui. Acesso em 12/12/2020. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MOUTINHO NERY, Maria Carla. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola (org.). Vulnerabilidade e sua compreensão no Direito brasileiro. Indaiatuba, SP: Foco, 2021. p. 139. ___________  CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 124. 2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 124. 3 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MOUTINHO NERY, Maria Carla. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola (org.). Vulnerabilidade e sua compreensão no Direito brasileiro. Indaiatuba, SP: Foco, 2021. p. 139. 4 SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. O compliance como medida preventiva ao cyberbullying: em busca da efetivação da proteção de crianças e adolescentes na sociedade da informação. 2021. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2021. 5 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 51. 6 SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. Disponível aqui. Acesso em 12/12/2020.
Resumo: A análise relaciona síndrome de burnout decorrente do labor sob intensa e excessiva pressão física e emocional, agravadas e superdimensionadas pelo teletrabalho num contexto insólito e incerto de uma pandemia que assolou o mundo e ainda tem impactos deletérios após dois anos de suas versões mais arrasadoras e destrutivas. Contextualiza a análise em caso concreto. O teletrabalho no contexto pandêmico As circunstâncias da pandemia da covid-19 fizeram com que o teletrabalho de exceção passasse a ser regra. A pandemia exigiu que de forma abrupta houvesse adaptação, domínio e desenvoltura da tecnologia digital e labor integral no ambiente familiar, quebrando os parâmetros aos quais estávamos acostumados, o que resultou em novos desafios ao trabalhador com impactos significativos e deletérios em sua saúde física e mental. Como já referido, na pandemia o teletrabalho deixou de ser exceção para tornar-se regra. Invadiu nossos lares quebrando o limite entre convívio familiar e laboral, além de condenar-nos ao isolamento social e à solidão da rotina de um trabalho virtual repleto de dificuldades, especialmente pelo fato de não que não estávamos acostumados ao uso integral dele, bem como pelo grande esforço dispendido para aprender, atualizar e de certa forma dominar rotinas tecnológicas de linguagem específica até então desconhecidas. A interface entre síndrome de burnout, teletrabalho e pandemia Bastariam as circunstâncias antes mencionadas para concluir-se que o teletrabalho em um contexto pandêmico, representa risco ocupacional como fenômeno desencadeador de burnout, especialmente quando agregado a determinadas circunstâncias laborais. A pandemia e com ela o temor do desconhecido por não se saber ao certo os mínimos protocolos de como agir para proteger-se a si e às demais pessoas, a incerteza quanto ao retorno às atividades normais, dentre elas o convívio laboral "normal", a rotina estressante e exaustiva com um número cada vez mais crescente demandas por tarefas que devem ser executadas em tempo exíguo, a necessidade frequente de reuniões de trabalho em face da impossibilidade ou da dificuldade de contato pessoal, a privação de outras formas de convívio social, diminuíram sobremaneira o direito à desconexão no e do trabalho em face do excesso ou do aumento da disponibilidade do trabalhador decorrente da facilidade de acesso e de cobranças por meio virtuais que podem ser utilizados a qualquer hora do dia sem a limitação e o respeito aos horários e às jornadas de trabalho. No contexto da não desconexão agravada pelo teletrabalho em tempos pandêmicos, as ocorrências de burnout avolumaram-se. Uma enorme contingente de trabalhadores adoeceu por não ter suportado a demanda decorrente da não desconexão. A tônica passou a ser recorrer a medicações e a procurar o auxílio de profissionais da saúde das mais variadas especialidades, dentre eles: cardiologistas (hipertensão por estresse laboral), gastroenterologistas (gastrites por estresse laboral), fisioterapeutas (posturas ergonômicas inadequadas e esforços repetitivos por horas a fio), psiquiatras (os quadros somados de ansiedade, de depressão, de síndrome do pânico, dentre outros) e psicólogos. A necessidade de ajuda de profissional da saúde demandou gastos extras e expressivos com honorários, com o custeio de medicamentos para dar conta de seus respectivos trabalhos em circunstâncias tão caóticas. Familiares mais próximos também adoeceram porque atingidos deleteriamente pelo convívio com o adoecimento de seu ente querido no espaço familiar comprimido pelo espaço laboral. A separação e os limites entre o lar e local de trabalhar esvaíram-se. Segundo Dejours (1992) o trabalho nem sempre possibilita realização profissional. Pode, ao contrário, causar problemas desde insatisfação até exaustão. O ambiente de trabalho pode ser um lugar dignificante ou degradante. Pode comportar fatores positivos ou dignificantes nas perspectivas individual, familiar e social, que contribuem para a construção da reputação e respeitabilidade em face do trabalho ao longo do tempo, por vezes durante décadas de vida da mais tenra juventude até a chamada terceira idade. Pode comportar também fatores negativos ou degradantes que trazem toxicidade às relações humanas e técnicas no contexto laboral. Dentre os fatores negativos encontram-se diversas modalidades de riscos: físicos, químicos, biológicos, ergonômicos, regulados legalmente, cuja identificação e mensuração são remetidas aos meios tradicionais de demonstração. Todavia, os riscos biopsicossociais até hoje são insuficientemente considerados para a prevenção, proteção e a promoção da saúde no e do trabalho, além de envolverem grande dificuldade de identificação e de comprovação, como é o caso das interações tóxicas entre pessoas. A terminologia burnout, em inglês traz a ideia daquilo que deixou de funcionar por absoluta falta de energia, que ultrapassou limites causando grande prejuízo no desempenho físico ou mental. Como síndrome, burnout é um processo caracterizado por excessivos e prolongados níveis de estresse (tensão) no trabalho. A síndrome de burnout ou síndrome do esgotamento profissional caracteriza-se por distúrbios emocionais e físicos, manifestações de exaustão vital extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, de muita pressão e de responsabilidades elevadas que desencadeiam sintomas que começam de forma leve e vão se agravando ao longo do tempo: sofrimentos psicológicos e problemas físicos, fadiga ou cansaço excessivo físico e mental, tonturas, dores de cabeça frequentes, alterações no apetite, insônia, dificuldades de concentração, sentimentos de fracasso e de insegurança, negatividade constante, sentimentos de derrota e de desesperança, alterações repentinas de humor, irritabilidade, isolamento, pressão alta, dores musculares, problemas gastrointestinais, nervosismo, etc. A síndrome de burnout outrora era considerada um problema de saúde mental e um quadro psiquiátrico, mas passou a ser tratada como patologia decorrente do meio ambiente de trabalho. Entrou em vigor em janeiro de 2022, a nova classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) com base na análise de estatísticas e tendências da saúde, a CID11 tornando a  síndrome do burnout uma doença ocupacional. A recente classificação altera o olhar sobre a síndrome de burnout colocando-a como uma patologia relacionada ao trabalho  (decorre de fatores negativos do ambiente laboral.) e não ao estritamente ao trabalhador, o que provoca a necessidade de repensar a responsabilidade direta e indireta da empresa ou ente público com a saúde integral dos trabalhadores. Fato que traz algumas implicações jurídicas, dentre elas auxílio-doença por incapacidade, garantia no emprego ( art.118 da lei 8.213/91) e direito à reparação. Assim, as empresas e entidades públicas devem ficar mais atentas a esse risco, não somente em decorrência de seus custos humanos mas também de impactos financeiros. A síndrome de burnout instala-se de forma lenta e gradual e pode alcançar níveis graves e crônicos. Manifesta-se em três momentos distintos (GALLEGO e RIOS (1991): a) a percepção de uma sobrecarga de trabalho, tanto quantitativa quanto qualitativa, pois as demandas de trabalho são maiores que os recursos materiais e humanos, o que gera expressivo estresse laboral; b) esforço para adaptar-se psicologicamente e produzir uma resposta emocional ao desajuste percebido, no qual aparecem sinais de fadiga, tensão, irritabilidade e até mesmo ansiedade, que se refletem no interesse e na responsabilidade pelo trabalho; e, c) enfrentamento defensivo, no qual são produzidas troca de atitudes e condutas com a finalidade de defender-se das tensões experimentadas. O diagnóstico da síndrome de burnout pode sustentar-se em quatro concepções teóricas baseadas na possível etiologia da síndrome: clínica, sociopsicológica, organizacional, sociohistórica (MUROFUSE et al., 2005).  Esta última tendo sido a mais utilizada (TRIGO et. al, 2007) e baseia-se nas características individuais associadas às do ambiente e às do trabalho que propiciariam o aparecimento dos fatores multidimensionais da síndrome: exaustão emocional (EE), distanciamento afetivo (despersonalização - DE), baixa realização profissional (RP). Como a síndrome de burnout pressupõe um conjunto de sintomas e caracteriza-se como gravame à saúde, deve ser atestada por profissionais dessa área (médicos e psicólogos) não sendo suficiente para comprová-la apenas as declarações da pessoa eventualmente por ela atingida para que não se trate a questão meramente no aspecto subjetivo, o que pode gerar insegurança quanto às medidas necessárias preventivas, protetivas e promocionais da saúde no meio ambiente de trabalho. Neste sentido, incumbe ao setor médico da empresa ou ente público tomar as necessárias providências quando tiver ciência do fato. Como patologia laboral, o diagnóstico da síndrome de burnout deve ser feito por profissionais da saúde como psicólogo e psiquiatra. A família e amigos mais próximos que percebam os sinais podem sugerir e orientar a pessoa a buscar ajuda profissional. Com base na classificação atual, feito o diagnóstico pelo profissional de saúde, por meio de laudo médico comprovando o burnout, juntamente com o histórico médico (prontuário) e profissional (geralmente com destacada performance) e uma avaliação do ambiente de trabalho, inclusive com relatos testemunhais, estará demonstrada a degradação emocional e os fatores causadores da síndrome, dentre eles o assédio moral. Desta feita, é a organização privada ou pública que deve ser considerada responsável e não o trabalhador, a quem antes era imputada a pecha de exigente demais, perfeccionista ou com propensão a patologias mentais. A perspectiva da síndrome de burnout desloca-se do eixo subjetivo do trabalhador para o eixo objetivo da organização. Se antes o esgotamento e o estresse preocupavam a gestão de pessoas pela falta de engajamento, menor produtividade ou a perda de profissionais, agora o burnout representa mais um fator de risco jurídico e financeiro exigindo postura proativa e consciência da necessidade de prevenção com a utilização coerente de estratégias efetivas e com resultados práticos. Os riscos têm natureza bifronte, pois um contexto individual sempre se projeta no coletivo. Quando um trabalhador é afetado pelo risco todo o meio ambiente de trabalho em suas múltiplas relações estará também, daí a necessidade de medidas preventivas, protetivas e de combate como é o caso de comissões no âmbito das empresas e/ou de entidades públicas. Embora sejam importantes e oportunas pesquisas confiáveis, não se encontrou dados ou estatísticas da efetiva atuação de comissões voltadas para a prevenção, proteção e combate ao assédio moral, veículo portador de riscos biopsicossociais que podem causar burnout. Assim, a insuficiência ou a falta de informações seguras e de dados estatísticos pode tornar referias comissões mero "papel pintado", apenas para "inserir" o respectivo órgão ou empresa como observador das normas pertinentes ao tema. Infelizmente isso pode fazer com que, na prática, continuem invisíveis as seguintes situações: 1) no plano individual, um exército de vítimas oprimidas, exaustas, condenadas ao silêncio por temor a retaliações e pela descrença do papel das instituições de lograrem promover e proteger a saúde no meio ambiente laboral como elemento integrante da tutela da dignidade da pessoal humana e, ainda, segregadas pelos demais colegas que por temor de se tornarem as próximas vítimas; 2) no plano coletivo, a manutenção de um estado de coisas consistente em um ambiente de trabalho tóxico e no uso das vítimas como "exemplos" intimidatórios do que pode vir a acontecer com aqueles que "não se enquadram" no padrão de subserviência e de silêncio. A síndrome de burnout representa uma "bola de neve de sofrimento", uma vez que além da exaustão vital durante o tempo em que atuam os fatores negativos, costuma desencadear efeitos de estresse pós-traumático similares ao de uma guerra. Burnout: uma situação concretamente vivenciada Considerados os limites deste trabalho, de forma bastante pontual, traz-se ilustrativamente um caso concreto de burnout (atestado por profissionais da saúde) no serviço público, vivenciado por esta autora após 30 anos de serviço público como magistrada durante a presidência de tribunal, o que revela que referido adoecimento também pode atingir também trabalhadores que ocupam elevados cargos. O caso refere-se, especificamente, ao burnout no contexto do serviço público vivido por autoridade ocupante de cargo da alta administração de tribunal, no exercício da presidência deste, em especial, no ano de 2020 em plena pandemia da covid-19. É a primeira vez que a narrativa deste caso está sendo relatada com contornos específicos em sede diversa da institucional, uma vez que as condições graves e severas de comprometimento da saúde não permitiam a esta autora, por recomendações médicas, sequer conseguir falar sobre os eventos que dirá escrever sobre eles ou mesmo publicizá-los. Presidir um tribunal em circunstâncias normais já implica em desgastes expressivos na saúde física e emocional em virtude das exigências do cargo e das responsabilidades a ele inerentes. Em circunstâncias pandêmicas esse cenário ganha contornos mais intensos e graves diante das notórias dificuldades da pandemia caracterizada por regime de trabalho virtual recluso, inóspito e insólito. O caso envolve fatores negativos biopsicossociais, tanto em viés horizontal (entre ocupantes de cargos semelhantes) e como em viés vertical ascendente (de ocupantes de cargos de hierarquia mais baixa para mais alta), o que não é tão comum pois costumam ocorrer mais em viés vertical descendente (de ocupantes de cargos de hierarquia mais alta para mais baixa). A modalidade horizontal opera entre pessoas ocupantes de cargos semelhantes ou similares. No caso dos tribunais, em sua composição colegiada, pode ocorrer certa verticalização em face de as competências hierárquico funcionais colocarem o órgão colegiado em situação de verticalidade em face de cada ocupante do órgão. A modalidade vertical pode ocorrer de forma descendente ou ascendente, a primeira opera de cima para baixo, do superior hierárquico para sua equipe ou algum membro dela e a segunda de forma inversa. Fatores negativos desencadeantes da síndrome de burnout na presidente do órgão alcançaram tamanha proporção que levaram ao pedido de aposentação precoce em face das sequelas à saúde física e mental, dentre elas o desenvolvimento de quadro grave de ansiedade, de depressão, de hipertensão, de gastrite, de labirintite, de obesidade, gravames osteo-musculares com necessidade de tratamento fisioterapêutico, todos decorrentes do intenso estresse a que esteve submetida em face de seu labor, o que inclusive teve efeito ricochete impactando em suas relações familiares e afetivas. Durante o exercício do cargo foram reiteradas as licenças médicas, inclusive cardiológica por trinta dias, situação nunca vivida antes, além da necessidade de fruição de férias apenas para poder diminuir o contato com fatores negativos de risco laboral em prol da preservação do pouco que lhe restava de saúde. Os tratamentos médicos e psicológicos continuam após mais de um ano do término do mandato que deixou consequências, que podem ser irreversíveis e que ainda não podem ser mensuradas. O burnout manifestou-se e desenvolveu-se em situação atípica de teletrabalho durante a pandemia, a qual envolvia mais de dez horas diárias de trabalho virtual em posições ergonômicas desgastantes, durante as quais ocorriam frequentes reuniões de trabalho com os mais diversos setores, a maioria delas marcadas pela tensão, pois na perspectiva vertical ascendente era marcante a indiferença ou resistência de alguns servidores de cumprir determinações legais no prazo e com a eficiência necessária. Ao lado disso, na perspectiva horizontal, tentativas ou mesmo consumação irregular de intervenção nas atribuições específicas da presidência, algumas vezes com uso de termos ofensivos, tanto na sua presença quanto na sua ausência, algumas delas registradas em áudios/vídeos de sessões telepresenciais. Esses foram alguns dos fatores negativos que somados ao contexto deletério do teletrabalho em insólito evento pandêmico minaram a saúde da gestora levando-a desenvolver quadro intenso de burnout, que se tornou crônico com adoecimento físico e mental nunca dantes vivenciados e tampouco registrados em seu prontuário funcional. Com a gravidade do quadro de burnout a única saída para poder recuperar a saúde foi pedir a aposentação por tempo de serviço, de forma precoce e a interrupção da carreira na magistratura antes dos 60 anos, o que não é comum. Contudo, mesmo após a aposentação alguns alguns fatores negativos permaneceram, o que impediu a regressão do quadro grave de burnout, questão que não será aqui tratada em face dos limites deste artigo. Notas conclusivas A saúde mental é a fronteira invisibilizada a ser desbravada e pode impactar duramente a imagem da organização como poluidora do meio ambiente laboral. A preocupação das organizações privadas ou públicas deve ser a de nutrir a segurança psicológica proporcionando ambientes mais sustentáveis com gerenciamento efetivo de fatores negativos como estresse profissional. Segurança psicológica significa promover fatores positivos no meio ambiente de trabalho trazendo tranquilidade no compartilhamento de ideias e espaços de aprendizado e de convivência a salvo do temor de perseguições ou de punições. A cultura ou clima organizacional propiciador de segurança psicológica pode ser medido em três níveis a fim de avaliar o grau de maturidade moral das organizações. No primeiro, o clima é de cada um por si e é necessária uma gestão de comando e controle. Depois, a cultura evolui para aceitar normas e agir com confiança mútua. No nível final, todos agem eticamente sem precisar de controle. O teletrabalho no contexto pandêmico contribuiu em larga escala para o acúmulo de situações ímpares de ter que lidar com eventos extremamente estressantes como a sobrecarga de trabalho isolado e virtual, não poder sair de casa, lidar com o temor de morrer e com as mortes pela COVID, dentre outros tantos. Nesse contexto, a mensagem que deve nos guiar agora é: 'é normal não estar normal quando as coisas não estão normais" (Roberto Aylmer). O tempo do comprometimento com o trabalho por meio do sofrimento tem de ser superado. ______________  AYLMER, Roberto. É normal não estar "normal" quando as coisas não estão normais. Disponível aqui. Acesso em 20/01/2022. DEJOURS, Christophe (1992). A loucura do trabalho: Estudos de psicopatologia do trabalho (5ª ed.).  São Paulo:Cortez .(Original published in 1980). CORREIO BRAZILIENSE. Sem combustível: pandemia leva ao aumento de casos de burnout. Disponível aqui. Acesso em 25/01/2022. FACAS, E. P. (2013). Protocolo de avaliação dos riscos psicossociais no trabalho: Contribuições da psicodinâmica do trabalho (Tese de doutorado, Universidade de Brasília). Disponível em Acesso em  25/01/2022. GALLEGO, E. Álvarez; RIOS, Luís Fernández. El síndrome de "burnout" o el desgaste professional.  Revista de la Asociación Española de Neuropsicologia. 1991;11(39):257-65. Disponível aqui. Acesso em 25/01/2022. ICD-11. International Classification of Diseases 11th Revision. The global standard for diagnostic health information.  Disponível em < https://icd.who.int/en> Acesso em 25/01/2022. MUROFUSE, Neide Tiemi; ABRANCHES, Sueli Soldati.; NAPOLEÃO, Anamaria Alves Reflexões sobre estresse e Burnout e a relação com a enfermagem. Revista. Latino-Americana de Enfermagem 13: 255-261, 2005. Disponível aqui. Acesso em 25/01/2022. PEREIRA, Thaís Thomé Seni Oliveira; BARROS, Monalisa Nascimento dos Santos;   AUGUSTO, Maria Cecília Nobrega de Almeida. O Cuidado em Saúde: o Paradigma Biopsicossocial e a Subjetividade em Foco. Mental - ano IX - nº 17 - Barbacena-MG - jul./dez. 2011 - p. 523-536. Disponível aqui. Acesso em 25/01/2022. TRIGO,  Telma Ramos; TENG, Chei Tung ; HALLAK,  Jaime Eduardo Cecílio. Síndrome de burnout ou estafa profissional e os transtornos psiquiátricos. Revista de Psiquiatria Clínica n.34, São Paulo: SP, 2007, p. 223-233. Disponível aqui. Acesso em 25/01/2022.  
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Vacinação obrigatória na Itália

Com a obrigatoriedade da vacinação anti-Covid na Itália1, algumas discussões legais se intensificaram. E não somente entre os "no-vax"2 - certamente já prontos para desafiar as regras e agir na via judicial - mas para toda a população que suscita uma série de questões que nos motivaram a elaborar esta breve reflexão sobre os aspectos constitucionais da vacinação obrigatória e o necessário equilíbrio entre responsabilidade e liberdade individual, na perspectiva do direito italiano. É consenso, tanto no Direito italiano quanto no Direito brasileiro que, dado que o tratamento obrigatório de saúde só pode ser imposto na expectativa de que não afete negativamente o estado de saúde da pessoa que está sujeita a ele, é necessário um equilíbrio entre a minimização de riscos e a maximização dos benefícios por meio da identificação de um limiar de perigo aceitável a ser realizado com base em uma literatura científica médica completa e credenciada. Nesse sentido é que a questão da vacinação obrigatória apresenta perfis de particular complexidade, pois afeta valores fundamentais e direitos constitucionais, incluindo o direito à saúde previsto no artigo 323 e o dever de solidariedade social contido no artigo 2º4, ambos da Constituição Italiana. O referido artigo 32 prevê que a saúde não é apenas um direito do indivíduo, mas também um interesse comunitário. A importância coletiva da saúde pode, por vezes, justificar tratamentos de saúde obrigatórios, como a natureza obrigatória de algumas vacinas nos casos estritamente previstos em lei. Importante lembrar que as discussões sobre a vacinação obrigatória não são uma novidade para a Corte Constitucional Italiana, que décadas atrás, já se debruçou sobre o tema no acórdão 307 de 22/06/19905, especificando que: 1 - A lei que impõe um tratamento de saúde não é incompatível com o artigo 32 da Constituição se o tratamento visa melhorar ou preservar não somente o estado de saúde dos que estão sujeitos a ela, mas também, a preservação do estado de saúde dos demais, pois é precisamente esse propósito adicional, relativo à saúde como interesse da comunidade, que justifica a compressão dessa autodeterminação do homem inerente ao direito de cada um à saúde como direito fundamental. 2 - Existe uma disposição de que não afetará negativamente o estado de saúde da pessoa sujeita a ela, exceto apenas para essas consequências, que, por sua natureza temporária e tamanho pequeno, parecem normais a qualquer intervenção em saúde e, portanto, toleráveis. 3 - Em caso de maior dano à saúde daquele que é sujeito ao tratamento compulsório, ainda está previsto o pagamento de uma "compensação justa" em favor da parte lesada. Algum tempo depois, a mesma Corte, na sentença 218 de 06/02/19946, estabeleceu que: A proteção da saúde também implica o dever do indivíduo de não prejudicar ou colocar em risco com seu comportamento a saúde dos terceiros, em cumprimento ao princípio geral que vê o direito de cada um encontrar um limite no reconhecimento mútuo e na proteção igualitária do direito coexistindo dos outros. A obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 foi inicialmente imposta na Itália pelo decreto-lei 44 de 1º de abril de 20217 para todos os operadores do setor da saúde. Na sequência, o decreto-lei 01 de 7 de janeiro de 20228 instituiu a obrigatoriedade também para os cidadãos acima de 50 anos e sem limite de idade para o pessoal escolar, do ensino técnico e universitário. Segundo tais decretos, os cidadãos supramencionados que não forem vacinados estarão sujeitos, a partir de 1º de fevereiro de 2022, à sanção pecuniária que pode variar de 100 euros a 3.000 euros, de acordo com o procedimento previsto na legislação.9 Além da vacinação obrigatória, também estão em vigor novas regras sobre a certificação verde, introduzidas pelo decreto-lei 172 de 26 de novembro de 2021 e pelo decreto-lei 221 de 24 de dezembro de 2021. Trata-se de um novo tipo de certificação que só é concedida a quem está vacinado ou curado da infecção por SARS-CoV-2. É chamado de "Green Pass Rafforzato" para quem recebeu até a segunda dose da vacina e "Green Pass Booster" para quem tomou a terceira dose. Portanto, há uma distinção substancial entre os vacinados e curados da Covid-19 e os não vacinados, que acabam tendo o acesso proibido a determinados locais, atividades e serviços, o que deixa claro, portanto, o modus operandi do governo italiano para incentivar a vacinação. Registre-se que até o momento em que este artigo é escrito, essas são as principais normas em vigência na Itália, referentes à obrigatoriedade da vacinação e da certificação verde Covid-19. Uma vez situados nesse panorama dos aspectos constitucionais, dos precedentes da Corte Italiana e o quadro atual da legislação que se refere à obrigatoriedade da vacinação (e das medidas de incentivo), passemos à contextualização da reflexão aqui proposta. Os princípios constitucionais subordinam a legitimidade da obrigação de vacinação à indispensabilidade de um equilíbrio correto entre a proteção da saúde do indivíduo e a proteção simultânea da saúde coletiva, ambas constitucionalmente garantidas. O Estado pode impor sacrifícios ao gozo do direito de autodeterminação do indivíduo em relação às escolhas que afetam sua própria saúde, a fim de atender aos interesses supraindividuais que - sem tal compressão dos direitos individuais - estariam ameaçados. Portanto, a questão da legitimidade da obrigação de vacinação perpassa a relação entre a liberdade individual e o princípio da solidariedade: o direito de autodeterminação do indivíduo deve ser recessivo no que diz respeito ao interesse público na proteção da saúde no contexto da atual pandemia. Para tratar da delicada questão das vacinas e os múltiplos aspectos do tema, procuramos examinar, mais particularmente, a relação entre a liberdade do indivíduo e a saúde coletiva: se por um lado, o tema destaca o direito à autodeterminação em relação à própria saúde, por outro, não devemos esquecer que a lei pode obrigar a população a se inocular com drogas para alcançar a imunidade do rebanho em relação a doenças particularmente contagiosas e virais. Embora o debate continue acalorado em relação à vacinação obrigatória - não somente na Itália, mas em todo o mundo - a história nos mostra que graças a muitas vacinas o ser humano conseguiu sobreviver a inúmeras adversidades e hoje, em meio a uma emergência de saúde como é a pandemia de Covid-19, a questão torna-se altamente relevante se considerados os efeitos que se espera da vacina, não somente para a saúde do indivíduo, mas para a saúde mundial. É evidente que os direitos envolvidos são muitos e o equilíbrio entre eles cabe à discrição do legislativo, nos limites constitucionais, tutelados pelas cortes supremas, que deve modular as intervenções necessárias para garantir a saúde coletiva, impondo tratamentos de saúde obrigatórios, somente quando não houver outra medida que se mostre capaz. No entanto, ainda que tais tratamentos obrigatórios envolvam o risco de consequências negativas para a saúde daqueles que lhes foram submetidos, o dever de solidariedade previsto no art. 2º da Constituição Italiana exige que a sociedade, e para ela, o Estado, prepare a seu favor os meios de uma proteção específica constituída por uma indenização justa, da qual deriva o direito à indenização por dano10. Em outras palavras, a premissa do Direito italiano é no sentido de que a proteção da saúde pública permite ao Estado oprimir o direito do indivíduo à autodeterminação, mas, caso tenha sofrido danos devido à medida de saúde adotada, há de ser aplicada uma medida de reparação11. Em linhas finais deste breve aparato, embora tenhamos consciência de que ainda estamos no meio de uma guerra contra um inimigo invisível que expôs o severo limite da natureza humana, é graças às vacinas anti-Covid-19 que estamos conseguindo conter o número de óbitos e internações hospitalares decorrentes da contaminação, e é exatamente por isso que temos que assumir nossa responsabilidade juntamente com o Estado e arcar com os sacrifícios necessários em prol da saúde coletiva. O momento que vivemos não permite espaço para conjugações na primeira pessoa do singular: mais do que nunca, somos o outro, somos o todo, e é nesse todo que nos fortaleceremos para superar essa trágica fase na história da humanidade.  ___________ 1 Os decretos editados pelo governo italiano serão mencionados ao longo do texto. 2 Per la prima volta la quota dei "no vax" (tra la popolazione con più di 12 anni) scende sotto quota 6 milioni (...) Il risultato è poco sotto i sei milioni: 5.997.000. Tradução livre: Pela primeira vez a proporção de "no vax" (entre a população com mais de 12 anos) cai abaixo de 6 milhões (...) O resultado é pouco menos de seis milhões: 5.997.000. Disponível aqui.  Acesso em 28 de janeiro de 2022. 3 Articolo 32 - La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto dell'individuo e interesse della collettività, e garantisce cure gratuite agli indigenti. Nessuno può essere obbligato a un determinato trattamento sanitario se non per disposizione di legge. La legge non può in nessun caso violare i limiti imposti dal rispetto della persona umana. Tradução livre: Art. 32 - A República protege a saúde como direito fundamental do indivíduo e de interesse da coletividade, e garante assistência médica gratuita ao indigente. Ninguém pode ser obrigado a um tratamento de saúde específico senão por lei. A lei não pode, em hipótese alguma, violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana. 4 Articolo 2 - La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell'uomo, sia come singolo, sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l'adempimento dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale. Tradução livre: Art. 2º - A República reconhece e garante os direitos invioláveis ??do homem, tanto como indivíduo como nas formações sociais onde se desenvolve sua personalidade, e exige o cumprimento dos deveres obrigatórios de solidariedade política, econômica e social. 5 Trata-se de ação em que a parte pleiteia uma indenização pelos danos causados ??pela poliomielite contraída através do contato com o filho que tinha sido obrigatoriamente vacinado contra a poliomielite, queixando-se de que as respectivas autoridades de saúde não a tinham colocado ciente dos perigos nem instruída sobre os cuidados especiais a serem observados no contato com as fezes e muco da criança vacinada). Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 6 A parte ajuizou a demanda a fim de obter uma medida emergencial, com base no art. 700 do Código de Processo Civil Italiano, para retomada do trabalho após ter sido suspensa do mesmo por se recusar a fazer exames de saúde visando averiguar a existência ou não de infecção pelo vírus do HIV. Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 7 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 8 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 9 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 10 A Lei nº. 210/1992 reconhece a indenização do Estado àqueles que resultarem deficiência psicofísica permanente em decorrência de vacinação compulsória. Também a Lei n. 299/2005 introduz uma indenização adicional para amparar a pessoa lesada pelas complicações das vacinações obrigatórias, atribuída metade ao lesado e a outra metade aos familiares que prestem ou tenham prestado assistência de forma prevalente e contínua. Disponível em: https://web.camera.it/leggi. Acesso em 28 de janeiro de 2022. 11 M. A. RIVETTI, Patologie da vaccinazioni, tutela giurisdizionale e disciplina delle rinunzie, in Il diritto del mercato del lavoro, 1, 2016, pp. 202-207; C. VIDETTA, Corte Costituzionale e indennizzo per lesioni alla salute conseguenti a trattamenti vaccinali. Nuove prospettive, in Responsabilità civile e previdenza, 3, 2013, pp. 1030-1044; A. FEDERICI, L'indennizzo delle conseguenze irreversibili da vaccinazioni non obbligatorie, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 3, 2012, pp. 605-612; L. RATTI, La rivalutazione dell'indennizzo per i danni causati da vaccinazioni ed emotrasfusioni, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 4, 2012, pp. 840-843; F. SCIA, Danni da vaccinazioni non obbligatorie, in Giur. Mer., 11, 2008, pp. 2823-2827; A. ALGOSTINO, Salute dell'individuo e salute della collettività: il diritto all'indennizzo anche nel caso di vaccinazioni antipoliomelitiche non obbligatorie, in Giur. It., 7, 1998, pp. 1479-1481.
Uma peculiaridade acerca da criminalidade no Brasil, historicamente, está na presença das chamadas ondas ou fases de predomínio social na prática de determinados tipos de infração penal. Não é preciso ser estudioso do Direito para reconhecer ou ter familiaridade com algumas dessas ondas havidas no país nos últimos anos ou mesmo décadas: basta se tratar de alguém atento ao noticiário (ou se tratar de alguém que tenha sofrido, na própria pele, o cometimento de um desses crimes). Conforme grupos criminosos dotados de maior ou menor organização percebem o momento social, o custo-benefício da prática de determinados delitos (altos ganhos possíveis vs. desestímulo representado pela resposta penal correspondente) e adquirem determinadas competências e especialidades, e na medida em que o Estado, depois, procede a formas de reação mais severa em face das condutas ilícitas específicas, vão se formando sucessivas fases em que a alta incidência de certa modalidade de infração se torna de conhecimento generalizado pela população. Após o ciclo dos casos de extorsão mediante sequestro de média e longa duração (art. 159, §1º, do Código Penal) praticados contra personalidades famosas e cidadãos anônimos (crime corriqueiro entre o final dos anos 1980 e os anos 2000, especialmente no Rio de Janeiro), seguiram-se fases mais recentes de predomínio de (i) roubos e furtos em residências (inclusive invasões de condomínios em edificações); (ii) latrocínios; (iii) "sequestros relâmpago (art. 158, §3º do Código Penal), em especial para saques em caixas-eletrônicos; (iv) a famigerada "saidinha de banco"; (vi) as ligações telefônicas em que os criminosos simulam o sequestro de um ente querido das vítimas e exigem o pagamento de um "resgate"; (vii) as ligações telefônicas em que estelionatários se fazem passar por instituição financeira em que a vítima tem conta para lhe subtrair numerário por meio de transações fraudulentas; (viii) os golpes dos pedidos de dinheiro emprestado por meio de mensagens de celular e aplicativos de mensagens, e assim por diante. Em 2021, assistiu-se à explosão na incidência de duas situações delituosas em especial: por um lado, o chamado "novo cangaço" (infrações penais espetaculosas praticadas mormente em cidades do interior, por grupos numerosos de criminosos, muito bem equipados e armados, em ações frequentemente marcadas pela ousadia e pela violência); e, pelo outro lado, a prática de "sequestros relâmpago" tendo em mira o constrangimento da vítima a efetuar transações de Pix, ou outras formas de transferência de numerário ou, ainda, pagamentos em benefício dos criminosos. É essa segunda modalidade de casos que é objeto do presente estudo - especificamente no que concerne às consequências em termos de responsabilidade civil que podem advir para as instituições financeiras envolvidas. Como se pode notar, em algumas das diversas ondas de crimes referidas anteriormente, os fatos acabam tocando, de alguma forma, a atividade de instituições financeiras. O art. 17 da lei 4.595/64 (Lei da Reforma Bancária), ao apresentar o conceito de instituição financeira, acaba também definindo aquilo em que consiste a atividade bancária, nos seguintes termos: "Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros" (sem destaque no original). FÁBIO ULHOA COELHO, ao examinar os contratos bancários típicos, atípicos e impróprios (todas figuras contratuais através do qual a atividade das instituições financeiras se materializa), relaciona operações como o depósito bancário, a aplicação financeira, o mútuo bancário, a abertura de crédito ("cheque especial") e o cartão de crédito, dentre outras1. BRUNO MIRAGEM, por seu turno, destaca a existência do elevado risco a caracterizar a atividade bancária, bem como a necessidade de que as instituições financeiras observem com rigor determinados deveres que lhes são fundamentais, sob pena da responsabilidade decorrente de sua violação - dentre eles o dever de segurança2. Em casos como os de "sequestro relâmpago" para realização de saques em caixas eletrônicos, de "saidinha de banco", de fraudes em que os criminosos simulam a atuação das instituições financeiras e, agora, de "sequestro relâmpago" para realização de operações de transferência por Pix, é evidente a conexão, em algum grau, com a atividade bancária - restando verificar se essa conexão se dá de modo a atender aos requisitos necessários à caracterização da responsabilidade civil dos bancos pelos prejuízos sofridos pelos clientes. Com efeito, é tendência natural dos clientes, nesses casos e em tantos outros, buscar ressarcimento junto à instituição financeira quanto às perdas financeiras experimentadas, deparando-se, corriqueiramente, com a resistência das instituições à sua pretensão, sob a alegação padrão de que embora sintam muito pelos fatos ocorridos, entendem se tratar de responsabilidade dos criminosos, bem como de um problema de segurança pública imputável ao Estado. A resposta jurídica correta, nesses casos, não é tão simples assim, ou melhor, não é tão uniforme quanto essa alegação faz parecer. Tomando-se como modelo a jurisprudência em matéria da denominada "saidinha de banco", nota-se a formação de uma linha que distingue, de um lado, as hipóteses em que os criminosos atuam alimentados por uma falha imputável ao próprio banco (por exemplo, informações prestadas por um empregado do banco, falta de segurança na área interna da agência ou na área dos caixas eletrônicos ou crime praticado em área sob administração do banco, como o estacionamento3), e, de outro lado, as hipóteses em que os criminosos atuam de modo totalmente independente da atuação do banco e sem a possibilidade de previsão ou impedimento do fato por parte deste, apenas aproveitando o ensejo da existência da agência bancária para o cometimento do delito (como, por exemplo, no caso do assalto praticado em ruas próximas à agência4). No primeiro grupo de hipóteses, fica caracterizado o caso fortuito interno, com falha na prestação do serviço, estabelecimento de nexo causal e responsabilidade civil do banco; já em sede do segundo grupo de hipóteses, estaria presente o fortuito externo, o fato exclusivo do terceiro e a ausência de responsabilidade do banco. Mas as nuances e casos limítrofes mostram a necessidade de cuidado na determinação do que pode ou não se considerar como risco inerente à atividade. Devemos extrapolar a mesma linha de raciocínio, agora, para os casos de "sequestros do Pix" e outros assemelhados. Inicialmente, vale lembrar que o Pix é um novo meio de pagamento eletrônico instantâneo (manejável inclusive por meio de aplicativos de celular), desenvolvido pelo Banco Central, que começou a funcionar no território nacional em 16/11/20, e cuja principal vantagem é também o seu calcanhar de Aquiles: o funcionamento extremamente ágil sete dias por semana, 24 horas por dia, que favorece a atuação de criminosos que, no período noturno ou de madrugada, abordam vítimas e, privando-as da liberdade, mediante violência ou grave ameaça, obrigam-nas à realização de transferências de valores em benefício dos infratores. A gravidade do problema de segurança que o Pix acabou trazendo (o qual, frise-se, é imputável às entidades que o operam, componentes do Sistema Financeiro Nacional, e que por isso devem responder) foi tão grande que acabou reconhecida pelo Banco Central: este acabou divulgando, em 27/08/21, novas regras mais restritivas para a utilização do sistema (limitando a R$ 1.000,00 o valor do Pix entre 20h e 6h, por exemplo). Parece-nos que a análise da matéria fática é, nesses casos, de suma importância para a sua qualificação jurídica. Pois uma coisa é a realização de uma ou duas transações de Pix em valores compatíveis com a movimentação habitual do cliente, ainda que feitas mediante ameaça armada por criminosos (algo realmente difícil de ser prevenido ou evitado pelo banco, e difícil, mesmo, pensar-se na sua responsabilização, uma vez que os fatos estão totalmente fora do seu controle). Mas coisa totalmente distinta é o cenário em que criminosos constrangem a vítima à realização de diversas operações de Pix (ou então de diversas transferências bancárias, ou então de diversas compras com cartão de crédito para destinatários "laranjas", ou então de um empréstimo consignado), caracterizado o caráter totalmente atípico dessas operações diante do perfil e do histórico do cliente, seja pela quantidade das operações, seja pelo horário (e.g., madrugada), seja pelo volume de dinheiro movimentado, seja pela conjugação de operações diferentes em um curto espaço de tempo. Em casos tais, devido ao risco inerente à atividade bancária, é evidente que a instituição precisa dispor de um sistema de segurança eficaz, que identifique o possível caráter irregular das operações e coloque em ação travas tecnológicas ou virtuais de segurança de modo razoável, evitando o prejuízo ao cliente. É de conhecimento comum que a tecnologia para esse fim existe, e é rotineiramente utilizada pelos bancos - aliás, muitas vezes trazendo aborrecimentos para os próprios clientes, bloqueando pequenas operações de transferência ou compras por estes legitimamente realizadas. Não é minimamente razoável, nem compatível com a boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) que esses sistemas de segurança falhem em atuar em face de operações ilegítimas realizadas de modo atípico e suspeito, e que o banco não responda civilmente por isso (responsabilidade civil contratual, nesse caso de caráter objetivo pelo risco especial da atividade, caracterizada a causa - ou concausa - pela atuação bancária com falha na prestação do serviço, especificamente, violação do dever de segurança). Nesse mesmo sentido, se mostra acertado, e bastante técnico, o teor do seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "RECURSO INOMINADO - Relação de Consumo - Condenação da instituição bancária ao ressarcimento de valor decorrente de compra realizada com cartão de débito - Autor vítima de "sequestro relâmpago", sendo obrigado a fornecer cartão e senha para realização de compra pelos criminosos - Caracterização de transação inidônea não detectada pela instituição financeira - Serviço defeituoso -Responsabilidade objetiva do estabelecimento bancário - Dano material caracterizado, devendo ocorrer a restituição do valor, conforme determinado em sentença - Recurso não provido." (TJSP, Recurso Inominado Cível 1002564-59.2020.8.26.0704, Rel. Rosana Morena Santiso Esteves, j. 02.08.2021). Em suma, é preciso que o Judiciário evite simplificações nesse tipo de caso, devendo proceder à análise cuidadosa do substrato fático, a fim de identificar a ocorrência ou não de violação de dever de segurança por parte do banco, consistente em falha ou defeito na prestação do seu serviço ao cliente, no que concerne a um eficaz sistema de segurança para detecção de operações atípicas e irregulares de Pix, Ted, Doc, cartão de crédito e outras, mormente quando o específico serviço ofertado pelo banco se caracteriza por um risco ainda mais agravado (como se dá no caso do Pix). Uma vez presente esse cenário que acaba de se descrever, resta patente a presença do dever da instituição financeira de indenizar o cliente pelos prejuízos sofridos, para os quais concorreu diretamente em dar causa. _______________ 1 Cf. Novo Manual de Direito Comercial - Direito de Empresa. 29. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 418 e seguintes. 2 "No caso da atividade bancária, observa-se clara tendência jurisprudencial de reconhecê-la como perigosa para o propósito de restringir as situações de exclusão do nexo causal sob a égide da distinção entre fortuito externo e interno. Nesse sentido, passa a reconhecer a jurisprudência certos eventos como inseridos em riscos inerentes à atividade bancária, de modo que por eles passa a ter de responder a instituição financeira. Há a compreensão de que a atividade bancária, em especial por se caracterizar pela disponibilidade e liquidez de recursos financeiros e por sua movimentação sucessiva, tem por resultado maior grau de risco comparativamente a outras atividades. Da mesma maneira, novas formas de relacionamento entre cliente e banco, em especial por intermédio de sistemas eletrônicos e, mais especificamente, da internet (internet banking) corroboram a conclusão sobre o elevado risco inerente à atividade bancária. (...) No caso do dever geral de segurança previsto no CDC, note-se que abrange a segurança pessoal e patrimonial dos consumidores. É, portanto, dever exigível tanto em relação à proteção da integridade psicofísica dos consumidores e terceiros que se relacionem de qualquer modo com a instituição financeira quanto em relação ao patrimônio do consumidor. São indenizáveis os danos causados pela própria instituição bancária ou por terceiros a bens e direitos, independentemente de estarem vinculados ou não à prestação contratual específica exigível da instituição financeira" (Direito Civil - Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 776-777 e 783). 3 Sobre esse primeiro grupo de casos, com responsabilização dos bancos, veja-se os seguintes julgados, exemplificativamente: STJ, REsp 503.208/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 26.05.2008, DJe 23.06.2008 e TJMG, Apelação Cível  1.0024.14.133239-5/001, Rel. Des. Marco Aurelio Ferenzini , 14ª Câmara Cível, j. 19.11.2015, publicação da súmula em 02.12.2015. 4 Sobre esse segundo grupo de casos, sem responsabilização dos bancos, veja-se os seguintes julgados, exemplificativamente: STJ, REsp 1.284.962/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.12.2012, DJe 4.2.2013); TJMG, Apelação Cível 1.0878.18.001060-4/001, Rel. Des. Pedro Aleixo, 16ª Câmara Cível, j. 26.08.2020, publicação da súmula em 04.09.2020.
1. Medicina de precisão, oncogenética e direito à saúde O Estatuto da Pessoa com Câncer (Lei 14.238/2021), recentemente aprovado, corroborou a ideia de que o direito à saúde deva ser interpretado a partir de uma acepção dinâmica e evolutiva, na medida em que sofre influência direta das novas possibilidades diagnósticas e terapêuticas da Medicina. O Estatuto apregoou o protagonismo dos direitos da pessoa com câncer e acentuou a importância da esfera da prevenção, contribuindo para a construção de um conceito de saúde não exclusivamente ligado à ideia de combate à doença já instaurada, mas, também, às formas possíveis de evitá-la. A acepção adequada do direito à saúde deve, no que tange à oncologia, ser compreendida a partir do reconhecimento da proposta da medicina de precisão, que revela, por meio, por exemplo, da oncogenética, melhores caminhos diagnósticos e terapêuticos. Os testes genéticos, para pacientes com diagnósticos de câncer, ou pacientes sem diagnóstico, mas que possuem histórico familiar oncológico expressivo, simbolizam possibilidades profiláticas e terapêuticas relevantes. A alta incidência das doenças oncológicas pressupõe a incorporação paralela dos recursos da Medicina, somente possível se acompanhada de uma política legislativa apropriada1. O câncer representa uma constelação de doenças que podem agregar múltiplos fatores, inclusive, o genético. A complexidade da doença demanda a busca pelo tratamento personalizado e pela melhor previsão de respostas terapêuticas, possibilitadas pela medicina de precisão2, que promove a ruptura do tratamento uniformizado, quando se volta à realidade individualizada do paciente. Por meio do olhar singularizado sobre a pessoa, podem ser descortinados fatores ambientais e genéticos relacionados à patologia investigada. Tal abordagem tem como foco principal a personalização do diagnóstico e do tratamento e a promoção da prevenção de doenças3. A oncogenética utiliza informações genéticas do paciente ou de tumores, como biomarcadores diagnósticos, prognósticos e preditivos, por meio, basicamente, de dois tipos de testes. "O primeiro tipo se refere aos testes feitos no tumor para auxiliar no diagnóstico ou determinar um tratamento direcionado a partir de mutações tumorais. O outro tipo de teste é realizado em células normais (não-tumorais) e tem como finalidade averiguar características genéticas do próprio indivíduo"4. A finalidade é analisar a possibilidade de mutação no DNA que, de uma forma geral, aumente a predisposição ao desenvolvimento de câncer, além de investigar como o genótipo pode influenciar no perfil de metabolização de fármacos.  A avaliação inicial do risco de predisposição a câncer é feita pelo hederograma, que detalha o histórico familiar, relata as informações necessárias e propicia identificar se há critérios para seguir a investigação com testes genéticos. Nos pacientes que já tiveram diagnóstico de câncer, os testes conseguem propiciar a alteração adequada da estratégia de tratamento. Além disso, identificar pacientes de alto risco, antes que a doença aconteça, implica a possibilidade de executar estratégias para reduzir essa chance de forma muito significante5. A acessibilidade aos testes genéticos ainda é incipiente. Por meio de exames dessa natureza, é possível identificar pessoas que devam ser submetidas a estratégias personalizadas e mais eficazes de vigilância e redução de risco de câncer6. Testes genéticos possuem características e finalidades distintas, de modo que é relevante compreendê-las com o objetivo de identificar a justificativa da expansão de sua cobertura, seja pela saúde suplementar ou pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A capacidade de prever um evento potencialmente danoso à vida e à saúde humanas e de fornecer informações capazes de apontar terapias adequadas a cada situação legitima a inclusão dos testes preditivos como protocolos necessários e acessíveis. A extensão da noção de direito à saúde advém da necessidade de incorporar novas possibilidades diagnósticas, terapêuticas e profiláticas. Naturalmente, não há que se negar que a promoção do acesso ao conhecimento científico, bem como o seu uso, precisa estar sempre associada às dimensões de responsabilidade, nas suas esferas ética e jurídica. 2. O estatuto da pessoa com câncer A lei 14.238/21, o Estatuto da Pessoa com câncer, estabeleceu diretrizes importantes à conformação adequada do tratamento do paciente oncológico, recepcionando princípios e objetivos, positivados por influência de normativas internacionais e nacionais já vigentes.   Dentre tantas previsões contidas na legislação, deve-se ressaltar um encaminhamento relevante quanto ao tratamento da doença oncológica. Os objetivos e princípios previstos na legislação contemplam uma noção de direito à saúde que se antecipa à ideia de doença, ou seja, que se preocupa com a possibilidade de prevenção. O diagnóstico precoce e o estímulo à prevenção foram postos como princípios, corroborando as reflexões sobre a importância da medicina de precisão e da oncogenética na configuração da assistência. A medicina preditiva torna-se ferramenta essencial para a efetiva garantia do direito à saúde, na medida em que, por meio de ação prematura, é capaz de antecipar-se à manifestação de uma condição patológica, ou, até mesmo, à forma com que tal condição pode se manifestar. Predição e precisão passam a ser elementos centrais à efetiva noção de direito à saúde. "A possibilidade de antecipar precocemente a manifestação de uma patologia, como as neoplasias, transforma a noção clássica de saúde, tradicionalmente vinculada à esfera interventiva de cura, ou seja, quando a doença já foi instaurada"7. A incorporação pragmática da esfera preditiva do direito à saúde deve ocorrer por meio de regulamentação satisfatória da saúde suplementar e da efetivação de políticas públicas concernentes ao Sistema Único de Saúde.  Acrescente-se que estudos econômicos já apontam para o barateamento dos custos das análises genéticas, por meio da bioinformática (reunião da genética, ciência da computação, matemática e estatística). As ferramentas da bioinformática permitem que "dados sobre expressão gênica e suas variações possam ser processados, viabilizando sua interpretação e posterior correlação com doenças ou condições de saúde."8 A legislação destinada ao paciente oncológico demandará oferta adequada de diagnósticos e tratamentos pelas saúdes pública e suplementar, contribuindo para a distribuição de responsabilidades quanto à cobertura acessível das medidas propostas pela oncogenética e quanto à escolha dos tratamentos atuais. 3. Saúde pública e saúde suplementar: breves apontamentos sobre as dimensões da responsabilidade No Brasil, a discussão sobre a implantação no Sistema Único de Saúde de programas voltados à prevenção e ao manejo de doenças genéticas em geral esbarra no problema da distribuição de recursos e da reserva orçamentária. Patologias genéticas, não só de natureza oncológica, são, muitas vezes, subdiagnosticadas, o que ocasiona a perda de oportunidade para a prevenção e orientações antecipadas, gerando prejuízo à saúde (ou à vida) dos pacientes, além de custos a eles e ao sistema de saúde (público ou privado). A ineficiência da precisão dos tratamentos e a insuficiência de investimento na prevenção geram responsabilidades expressivas, seja do Estado, que não efetivou políticas públicas capazes de contemplar as demandas em saúde em totalidade, ou dos planos de saúde, que negaram a cobertura para diagnósticos e tratamentos que eram fundamentais à realidade de um paciente e/ou família. A interpretação de dados genéticos para a predição da possibilidade de manifestação da doença oncológica e para escolher tratamentos que se adequem à capacidade de resposta individual podem promover impactos nos custos com a saúde. No entanto, identificar o tratamento correto, além de melhorar os resultados, pode, também, reduzir despesas originadas em gastos com protocolos insistentes e ineficazes9. A insistência no uso de tratamentos inadequados, por não serem aptos à realidade personalizada da doença e do indivíduo, podem ter repercussões negativas. A mais importante é a ocorrência de efeitos colaterais, danos iatrogênicos ou danos que poderiam ter sido evitados, podendo, neste caso, culminar em demandas judiciais calcadas na responsabilidade dos profissionais, dos planos de saúde e do Estado. Os tratamentos ineficientes, insuficientes e ineficazes podem, considerando a circunstância em concreto, ensejar demandas judiciais por responsabilidade, posto que não representam, dentro da Medicina, a melhor escolha em termos de possibilidades clínicas. Testes genéticos evidenciam resultados que justificam a necessidade de repensar as restrições de cobertura pelo Sistema Único de Saúde e pela saúde suplementar. O rol de cobertura obrigatória na saúde suplementar contempla a investigação diagnóstica de alguns genes associados aos casos de cânceres hereditários, como mama, ovário, intestino e estômago, mas ainda há outras necessidades não contempladas. Na saúde pública, além de beneficiar as pessoas, o uso da medicina de precisão pode impactar na reprogramação dos gastos com o sistema de financiamento, em especial no caso dos tratamentos oncológicos. A descoberta da característica hereditária do câncer é capaz de justificar a opção por estratégicas profiláticas, "como cirurgias para retirada de órgãos, exames de rastreamento mais apropriados e uso de medicamentos para reduzir a chance de manifestação da doença"10. Demandas judiciais que envolvem o tratamento das neoplasias aumentaram, substancialmente, à medida em que surgiram alternativas terapêuticas personalizadas e aptas a melhores resultados. Note-se que o ativismo judicial que reveste as ações para a cobertura de tratamentos e medicamentos oncológicos, seja no âmbito público ou privado, começa a ser acompanhado das demandas de responsabilidade quanto ao uso persistente de tratamentos ultrapassados e não adequados a determinados contextos de uma doença, já que podem representar a perda da oportunidade de uma maior sobrevida. Cabe ao Estado repensar parte da regulamentação da saúde suplementar e estabelecer políticas públicas capazes de contemplar uma melhor realidade aos pacientes oncológicos. A legislação positivou os direitos, justificando-os pelo lastro dos princípios, sendo fundamental, para a vida das pessoas, efetivá-los de maneira justa e benéfica.  ____________ 1 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021.   2 GUINDALINI, Rodrigo et al. Personalizing Precision Oncology Clinical Trials in Latin America: An Expert Panel on Challenges and Opportunities. The Oncologist 2019, 24,709- 719. 3 GUINDALINI, Rodrigo et al. Ethics in Clinical Cancer Research. In: R. L. C. Araújo, R. P. Riechelmann (eds.). Methods and Biostatistics in Oncology. 2018. 4 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.158. 5 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021. 6 GUINDALINI, Rodrigo. In: Entrevista. SBOC. Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Brasileiro associa câncer a fatores hereditários, mas não tem acesso a exames ou aconselhamento genético. 27 nov. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 03 mar. 2021. 7 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.166. 8 NEGRI, Fernanda de; UZIEL, Daniela. O que é medicina de precisão e como ela pode impactar o setor de saúde? In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA (IPEA). Texto para Discussão. Rio de Janeiro: IPEA, 2020, p. 10. 9 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021. 10 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.174.
Palavras iniciais Os meses entre novembro e fevereiro são marcados por fortes chuvas região Sudeste do Brasil que, atrelado com a intervenção humana no meio ambiente, favorece a ocorrência de acidentes naturais como enchentes, transbordamentos de rios, desabamentos de prédios.1 Esse período coincide com as festas de final de ano, férias e recessos, fatores esses que favorecem a procura por viagens que possibilitam maior interação com a natureza. Desse modo, as pessoas se aventuram em regiões de matas, rios, trilhas e cachoeiras, assim como as empresas e os agentes de turismo se esforçam para atender à demanda dos consumidores, sem atentar para os riscos de danos. É nesse cenário que surge o problema dos danos, dos riscos das atividades e da necessidade de forte atuação, com medidas de prevenção e de precaução, a fim de evitar a ocorrência de tragédias como a de Capitólio/MG. Os cânions de Capitólio e sua formação. Capitólio é uma cidade de 8.693 habitantes, situada no sudoeste de Minas Gerais, a 280 km de Belo Horizonte. A construção da usina de Furnas naquela região, entre as décadas de 1950 e 1960, exigiu a transposição do rio Piumhi, que desaguava no rio Grande, para o rio São Francisco, bem como a construção de um dique para evitar que as águas da represa inundassem a cidade. A formação do Lago de Furnas, que por sua magnitude foi apelidado como "o mar de Minas", ocasionou muitos prejuízos socioambientais, mas fez surgir novas paisagens que impulsionaram as atividades turísticas.2 Entre as principais atrações estão os cânions de Capitólio e suas lindas cachoeiras, que podem ser vistos a partir de um mirante ou visitados em passeios de barcos e lanchas, com possibilidade de realização de mergulho sob as cachoeiras.3 O que ocorreu no Capitólio? No dia 8 de janeiro de 2022, ocorreu o desabamento de um enorme bloco de rocha da encosta do cânion de Capitólio, que veio a atingir embarcações de turismo que se encontravam próximas a uma das cachoeiras, arremessando os barcos e seus ocupantes a vários metros de distância, com notícia de 10 pessoas mortas e dezenas de feridas.4 Que tipo de dano é esse? A tragédia de Capitólio se assemelha àquela ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, RS, em janeiro/2013, bem como aos derramamentos de rejeitos de minério que aconteceram em Mariana e Brumadinho, MG, em novembro/2013 e janeiro/2019. Isso porque são episódios que escapam à normalidade dos danos ordinários que acontecem no dia a dia das pessoas, são episódios multicausais e que se relacionam com atividades necessárias ao nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas. Analisando a evolução do fenômeno danoso ao longo da modernidade, percebemos que no início havia apenas o dano culposo, causado por imprudência, negligência ou imperícia do agente, que serviu de base para a formulação da teoria da culpa. Posteriormente, surgiu o dano sem culpa, causado por alguma atividade a cargo de determinada pessoa, o qual serviu de fundamento para a teoria do risco do risco individual. Hodiernamente, há também o dano-acidente ou dano-atividade, inerente às atividades desempenhadas por entidades desindividualizadas, o qual serve de fundamento para a teoria do risco coletivo.  A tragédia de Capitólio, embora à primeira vista possa sugerir a modalidade culposa, parece reunir as principais características do dano-acidente, que está relacionado com atividades inerentes e indissociáveis do nosso modo de vida, que é multicausal e que produz consequências catastróficas sobre as vítimas diretas e sobre a coletividade.5 O que poderia ser feito para evitar tragédias como essa? Imediatamente após o desabamento do paredão de pedra no cânion de Capitólio, o prefeito anunciou o fechamento do acesso ao Lago de Furnas, como medida emergencial, no que foi acompanhado pelos prefeitos das cidades vizinhas, após visitas técnicas de representantes da Defesa Civil.6 Também os peritos da Polícia Civil e da Polícia Federal visitaram o local e abriram investigações para apurar as causas do acidente.7 Tais providências são semelhantes àquelas adotadas em relação ao incêndio na Boate Kiss e aos derramamentos de rejeitos de minério em Mariana e Brumadinho. Depois de ocorridos esses episódios, as autoridades se apressaram em aprovar leis mais rígidas sobre autorização de funcionamento de casas noturnas e sobre o funcionamento das barragens de minério.8 É evidente o descompasso temporal entre o acidente e a adoção dessas medidas, as quais não têm nenhum efeito útil sobre o fato ocorrido. Melhor seria adotar medidas de prevenção e de precaução para evitar a ocorrência do dano, em especial o mapeamento e identificação das áreas consideradas de risco, um plano emergencial para situações de desastre, além da regulação e fiscalização das atividades exploradas no local. De quem é a responsabilidade civil pela tragédia de Capitólio? A ocorrência de um evento danoso dessa magnitude desencadeia uma série de consequências jurídicas de natureza civil, penal e administrativa. É evidente que os barqueiros devem responder criminalmente, de acordo com a culpabilidade de cada um, a ser apurada em processos próprios, assim como as empresas e agências de turismo podem sofrer sanções administrativas em razão do ocorrido. No que toca à responsabilidade civil, incumbe aos causadores diretos dos danos o dever de reparar, com base na culpa, no caso dos barqueiros; e com base no risco individual, com relação às empresas e agências de turismo. No entanto, é possível entrever a possibilidade de responsabilização civil do Estado por falha nos deveres de prevenção e precaução, melhor dizendo, por falha no dever de gerenciar os riscos da atividade. De acordo com o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, compete à União planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas. Na esteira desse dispositivo, a lei 12.608/12 dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil, a cargo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, com o objetivo de monitorar os riscos de acidentes, adotar ações preventivas e prestar socorro às vítimas de catástrofes.9 É certo que, por força do princípio da livre inciativa privada, o exercício das atividades empresariais, como regra, independe de autorização governamental, mas a lei pode impor restrições, consoantes ao grau de risco que ofereçam à população, ao meio ambiente e à sociedade (CF/88, art. 170, parágrafo único).10 No entanto, essa disposição deve ser interpretada em consonância com outros mandamentos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança e a um meio ambiente saudável (CF/88, arts. 5º, 6º, 7º e 225). Desse modo, apesar das recentes modificações legislativas que atribuem maior ênfase à liberdade econômica do que a valores como a segurança das pessoas e da coletividade,11 incumbe ao Estado os deveres de legislação, regulação e fiscalização das atividades empresariais, em virtude do disposto nos arts. 21, XVIII, e 174 da Constituição. No caso da tragédia de Capitólio, não é possível estabelecer a responsabilidade civil direta do Estado, uma vez que os danos foram causados por agentes estranhos às atividades estatais.12 No entanto, é preciso considerar o dever estatal de regulamentar as atividades privadas, mediante avaliação dos riscos, impondo restrições ao seu desempenho e fiscalizando o estrito cumprimento das recomendações e das normas técnicas. Na ausência ou insuficiência de regulamentação e de fiscalização das atividades particulares pelo poder público, é de cogitar-se sobre a responsabilidade civil do Estado quanto à reparação dos danos sofridos pelas vítimas.13 Palavras finais Em síntese, catástrofes como essa ocorrida em Capitólio são multicausais porque combinam as forças da natureza com a exposição das pessoas a situações de risco e a insuficiência de regulação e fiscalização das atividades privadas pelo poder público. Diante de um fato dessas proporções resta a sensação de insuficiência do sistema de tratamento de danos, uma vez que os danos poderiam ser evitados se fossem adotadas medidas de prevenção e de precaução. Do fato ocorrido em Capitólio emergem consequências jurídicas de ordem civil, criminal e administrativa em relação aos agentes e empresas de turismo que são os causadores diretos dos danos. Não se pode perder de vista, porém, que a eventual omissão ou ineficiência quanto aos deveres de regulação e fiscalização das atividades privadas pode posicionar o Estado na linha de causalidade do dano, configurando a sua responsabilidade civil. _____ 1 A esse respeito, confira-se: MINUZZI, Rosandro Boligon. Climatologia do comportamento do período chuvoso da região sudeste do Brasil. Revista Brasileira de Metodologia, 22(3) Dez. 2007. Confira-se também: DEMANGE, Lia Helena Monteiro de Lima. Desastres, responsabilidade civil e áreas de preservação permanente: paradoxo do progresso nômade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 34-41. 2 Disponpivel aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 A respeito dessa modalidade de dano, consulte-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15/16; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme, Curitiba/Porto: Juruá, 2018, p. 223-230; CAVET, C. A. resenha à obra "Responsabilidade Civil por Dano Enorme": de autoria de Romualdo Baptista dos Santos (2018). Revista IBERC, v. 3, n. 3, p. 149-155, 10 dez. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Lei da Boate Kiss (lei 13.425, de 30 de março de 2017), Lei das Barragens (lei 14.066, de 30 de setembro de 2020, que altera a lei 12.334, de 20 de setembro de 2010) e Fundação Renova, instituída por Termo de Ajustamento de Conduta envolvendo diversas instituições públicas e privadas (disponível aqui). 9 A respeito da formulação Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, consulte-se: CARVALHO, Délton Winter de. As mudanças climáticas e a formação do direito dos desastres. Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 18 - n. 3 - p. 397-415 / set-dez 2013. Sobre os sistemas de proteção e defesa civil na Europa e nos Estados Unidos, confira-se: DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A governança dos desastres ambientais no direito comparado norte-americano e europeu. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 303-319. 10 Ver também o art. 3º, I, da lei 13.874/19 e o art. 4º da lei 11.598/07, incluído pela lei 12.874/19. 11 Lei 12.874/19 (denominada "Declaração de Direitos da Liberdade Econômica") e lei 14.195/21, frutos da conversão das MP 881/19 e 1.040/21, respectivamente. 12 De acordo com o art. 37, § 6º, da Constituição, o Estado responde pelos danos causados por seus agentes. 13 Na França, por decisão do Conselho de Estado proferida em março de 2004, foi reconhecida a responsabilidade do Estado por descumprimento dos deveres de prevenção e precaução em relação aos trabalhadores vítimas de poeira de amianto (VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais, p. 123).
Lasciate ogni speranza voi ch'entrate (Deixai qualquer esperança, vós que entrais). O conhecido verso que se encontra na porta de entrada para o Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, obra prima de Dante Alighieri, é de ser lembrado quando se trata de responsabilidade civil.  À primeira vista parece haver exagero nesta menção, visto ser o tema de há muito legislado e debatido pela doutrina e jurisprudência. Contudo, talvez só agora, no curso do século XXI, seja possível se vislumbrar melhor a dimensão, a dinamicidade, complexidade, enfim a dificuldade da matéria que já alcança contornos inimagináveis, as quais desafiam de modo constante, se não permanente, tudo que já se construiu e/ou assentou sobre a questão. Este último termo é bastante adequado quando se trata de responsabilização civil, que requer exame e suscita discussão, não raro diante de situações cotidianas. As Migalhas de Responsabilidade Civil publicadas pelo IBERC durante o ano de 2021 são prova cabal do grau de amplitude e diversidade temática compreendido no âmbito da responsabilização civil. Uma incursão, ainda que breve, no que foi escrito naquele período revela a multiplicidade das questões existentes e a riqueza dos debates já postos, e permite identificar os diferentes caminhos que estão sendo trilhados e os que já se anunciam. Registre-se, de início, que o ano de 2021 foi marcado, mais do que o anterior, pela pandemia de Covid-19, fato que por si só constitui um cenário de riscos e instabilidades, quando não de paralisação total ou parcial, de todas as relações sociais. A estagnação não foi absoluta graças à verdadeira "transferência" de múltiplas atividades para a internet, como se a sociedade tivesse se "transferido" para a internet, dando curso a uma intensa vida virtual, a qual certamente não retornará, pelo menos em parte, à modalidade presencial. Dezenas de Migalhas foram escritas nesse período, dentre as quais algumas serão destacadas em razão dos temas abordados, por balizarem os tortuosos e intrincados rumos da questão da responsabilidade civil. É indispensável lembrar que as regras básicas, de caráter geral, sobre responsabilidade civil se encontram no Código Civil, que tem origem em um projeto aprovado em meados do século XX, por conseguinte elaborado por e para uma sociedade bastante distinta da existente no século XXI. Não obstante o processo de atualização a que o citado projeto foi submetido e de o Código ter sido promulgado quando já vigente a Constituição da República de 1988, os fatos atropelaram o Direito. A estonteante velocidade dos avanços tecnológicos e médico-científicos, aliados às alterações das relações sociais daí resultantes, acabam por tornar o regime de responsabilização constante do Código Civil insuficiente para solucionar os problemas que se apresentam. Nesse sentido, observe-se que o franco acolhimento da possibilidade de reparação do dano exclusivamente moral pelo Código Civil de 2002 (art. 186 c/c 927), na esteira do preconizado pela Constituição da República (art. 5?, V), teve ares de novidade à época. Desde então se desenrolam debates especialmente sobre a liquidação desse tipo de dano.1 O próprio debate sobre o conceito de dano moral, que parecia superado, se renova especialmente em decorrência dos diversificados meios de comunicação via internet, que tem alcance mundial em poucos minutos, se não segundos. Mais complexa se torna em tais casos a quantificação dos danos. Além das situações danosas virtuais, as aceleradas conquistas da ciência médica, especialmente as propiciadas pela tecnologia, se por um lado salvam e prolongam a vida humana em casos jamais pensados, por outro geram intrincadas situações jurídicas. Servem de exemplo as interferências em processos de nascer e morrer, durante séculos tidos como naturais, bem como a alteração de características biológicas determinantes da vinculação sexo/gênero. As técnicas de reprodução assistida, os transplantes e os procedimentos para a denominada "mudança de sexo", que se tornaram práticas cotidianas, em sua quase totalidade são carentes de regulamentação legal adequada. Assim sendo, a responsabilização pelos danos decorrentes de tais procedimentos médicos se submetem, em regra, à normativa civil a qual, não raro, não contempla de modo satisfatório sua reparação, ou melhor, sua composição, visto serem irreparáveis em muitos casos. Não bastasse a omissão legislativa, que de todo dificulta o tratamento jurídico da matéria, constata-se que muitas das citadas situações jurídicas apresentam natureza dúplice,2 na medida em que envolvem, há um só tempo, interesses pessoais e patrimoniais. Observe-se que os procedimentos citados implicam forte interferência no corpo humano, a exigir o consentimento do paciente, muitas vezes tratada em meio à pactuação de honorários. O surgimento de embriões excedentários, fruto da técnica de fertilização in vitro, ensejou contratos de "guarda" de embriões humanos, cuja natureza jurídica está longe de ser pacificada. O descuido na guarda desses embriões, do qual resulte sua morte, é um dano moral ou configura, especialmente para os que os equiparam a pessoa, uma lesão equiparável a um homicídio culposo? Nessa linha as indagações se acumulam e atingem as pesquisas que envolvem seres humanos, as quais somente podem ser realizadas se houver o consentimento livre e esclarecido dos participantes, que é uma autorização dada ao pesquisador responsável para que possa aplicar uma terapia não consagrada pela classe médica. No caso da pesquisa de novos fármacos se incluem as vacinas, que grande polêmica suscitam em tempos de pandemia. Quem deve responder pelos danos causados pelo uso experimental da vacina contra a Covid-19? O Estado ou os fabricantes da vacina? Quem responde pela prescrição off label3 de medicamentos contra a Covid-19? O Estado que determina seu uso e os distribui ou o médico que os prescreve? Esses danos relativos à COVID-19 são individuais ou coletivos? Algumas situações jurídicas familiares têm ensejado discussões quanto à configuração ou não de um dano passível de ressarcimento, das quais são bons exemplos o descumprimento dos deveres conjugais e do pais com os filhos. Tais controvérsias, que não são novas, se somam às várias outras que persistem e/ou se renovam ao longo dos anos. As novidades no que tange à responsabilização civil se encontram nas interrelações da internet com a inteligência artificial e a robótica, das quais resultam artefatos que se integram de modo quase imperceptível ao dia a dia, geralmente em caráter permanente. Embora não sejam em princípio perigosos, esses artefatos podem causar danos patrimoniais ou extrapatrimoniais. Observe-se, contudo, que o tradicional fato da coisa, sobre o qual muito já se discutiu, ganha novos contornos, visto que além de interagirem com os humanos, algumas máquinas têm certa margem da autonomia, como se verifica com a tecnologia machine learning, vinculada à inteligência artificial, que possibilita os sistemas "aprenderem" com dados a tomar certas decisões com um mínimo de intervenção humana.4 Temas como mudança climática, doação de gametas humanos, violação dos deveres conjugais, termo de consentimento e responsabilidade médica, liberdade de expressão, classificação de riscos na inteligência artificial e na robótica, prática de stalking, Estado e danos sociais, adoção, cirurgias robóticas e assédio moral digital, dentre outros de igual importância, que foram tratados pelas Migalhas demonstram bem as múltiplas faces da responsabilidade civil. Parece evidente que as regras existentes, pelos motivos acima expostos, exigirão constante esforço interpretativo da doutrina e dos tribunais para atender tamanha diversidade de questões que não apenas abalam diversos entendimentos assentados, como envolvem situações jurídica inéditas, em especial no que respeita à "relação" homem-máquina. Algumas constatações podem ser feitas no limiar da segunda década do século XXI em relação à reparação de danos, a saber: a) paralelamente às situações desconhecidas no mundo jurídico, há permanência de antigos debates, ainda que sob nova roupagem; b) a superação da tradicional distinção entre situações jurídicas patrimoniais e existenciais perde sua rigidez, com importantes repercussões em todo o campo obrigacional; c) a franca emergência jurídica de situações não novas, como as técnicas de reprodução assistida, presentes no Brasil dede a década de 1980; d) a célere incorporação à sociedade dos avanços tecnológicos, ao ponto de ser criada uma "vida digital". Deve-se considerar que todos esses acontecimentos têm como pano de fundo o complexo fenômeno da globalização, que caracteriza as sociedades contemporâneas e apresenta contradições e questionamentos de diferentes ordens. Como esclarece Fermin Roland Schramm, há nessas circunstâncias novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", mais integrado e mais diferenciado, e em rápida transformação e crescente complexidade. Neste contexto de novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", há a consagração de novos valores que provocam tensões tanto conceituais como factuais próprias de um mundo globalizado e interconectado.5 Indispensável é ressaltar que diante da verificação de valores peculiares à globalização e do avassalador crescimento da tecnologia, mais do que nunca, é preciso que se cumpram os princípios constitucionais voltados para a proteção da pessoa humana, especialmente quando se trata de responsabilização civil. *Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil e Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. __________ 1 Sobre o assunto ver TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, p. 339-342. 2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídica dúplices: continuando o debate, controvérsias sobre a nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In Contratos, Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. Coordenação: Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues. Foco: São Paulo, 2019. 3 Medicação off label é indicação do profissional assistente que diverge do que consta na bula. Ver aqui. Acesso: 13/12/2021. 4 LUDERMIR, Teresa Bernarda. Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina: estado atual e tendências. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Estudos Avançados, v.35, n.101, 2021. Disponível aqui. Acesso: 02.12.2021. 5 SCHRAMM, Fermin Roland. ¿Existe el deber ciudadano de participar en la investigación? In: Medwave, año XII, nº 5, Junio, 2012, passim. Disponível aqui. Acesso em: 02.12.2021.
Este artigo tem por objetivo trazer uma breve análise da possível responsabilidade civil dos influenciadores digitais em um contexto publicitário. Na sociedade contemporânea, a publicidade é um instrumento de formação do consentimento do consumidor. Com a massificação das relações negociais e a divulgação de produtos e serviços por meio de sofisticadas técnicas persuasivas, há necessidade de um maior controle jurídico da publicidade1. O CDC, ao tratar da publicidade, prevê alguns princípios, estabelece uma regra diferenciada para distribuição do ônus da prova e traz os conceitos de publicidade enganosa e de publicidade abusiva. Dentre os princípios estabelecidos pelo Código, o primeiro deles é a vinculação do fornecedor àquilo que foi veiculado (art. 30). Como prática comercial, a publicidade é dotada de um caráter pré-contratual. Se o contrato de consumo vier a ser celebrado, o fornecedor, via de regra. fica obrigado aos termos do que foi estabelecido no anúncio publicitário. Outro princípio importante para a controle jurídico da publicidade é a previsão contida no artigo 36 do CDC, que descreve a necessidade de identificação da publicidade. Com base na boa-fé objetiva, o consumidor deve, ao receber a mensagem, identificar imediatamente que aquela comunicação está voltada para a aquisição de um produto ou serviço. Busca-se o controle da publicidade velada ou oculta. Ainda no âmbito protetivo do Código, há uma regra da distribuição do ônus da prova no contexto publicitário. O artigo 38 do CDC atribui o ônus da prova da veracidade da informação ou da comunicação publicitária e a correção destas ao fornecedor. De acordo com a redação do dispositivo, é possível constatar que cabe ao consumidor tão somente o ônus da afirmação de que a informação ou a comunicação publicitária são inverídicas ou incorretas, para que recaia sobre o fornecedor o ônus da comprovação em sentido contrário àquilo que foi informado pelo consumidor. O CDC utiliza conceitos distintos para a publicidade enganosa e a abusiva. A primeira emprega o critério da falsidade ou do vício do consentimento do erro sobre o objeto previsto no CC (artigo 139, III). O fornecedor utiliza-se de ardil capaz de induzir o consumidor a acreditar nas características de determinado produto ou serviço. A publicidade abusiva atenta contra os valores éticos da sociedade e revela comportamentos que induzem o consumidor à possível prática de atos contrários às suas saúde e segurança. Ambas são reconhecidas como publicidade ilícita. Além do âmbito jurídico de controle, há um sistema de autorregulamentação da publicidade. Há uma disciplina privada da publicidade por meio do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e do Código Brasileiro de Regulamentação Publicitária2. Desta forma, é possível afirmar que vigora um sistema misto de controle da publicidade, em que se conjuga autorregulamentação e participação da Administração e do Poder Judiciário. Neste contexto de publicidade e de técnicas persuasivas para o incremento do consumo, surgem os influenciadores digitais. Segundo Marcos Inácio Severo de Almeida, Ricardo Limongi França Coelho, Celso Gonçalves Camilo-Junior e Rafaella Martins Feitosa de Godoy "influenciadores digitais são formadores de opinião virtuais que representam uma alternativa para empresas que confiam na comunidade reunida em torno desses perfis como público-alvo da divulgação".3Em clássico escrito, Paulo Jorge Scartezzini Guimarães tratou da publicidade e da responsabilidade civil das celebridades que dela participam4. Embora celebridades e influenciadores digitais, essencialmente, possam ser sujeitos distintos, ou seja, uma celebridade pode não ser influenciador digital, há um inegável ponto de contato entre eles: a finalidade de aproximar o consumidor do produto ou serviço veiculado.  Há um propósito específico na utilização deste intermediador, qual seja, atuar na formação do convencimento do consumidor, para que a sua tomada de decisão seja direcionada para a aquisição de determinado produto ou serviço. De acordo com Caio César do Nascimento Barbosa, Michael César Silva e Priscila Ladeira Alves de Brito5 [...]Ante as inovações da era digital, surge figura similar às celebridades, os chamados influenciadores digitais (digital influencers), indivíduos que via de regra saíram do anonimato e por meio de determinados atributos, tais como, carisma, criatividade e credibilidade, em áreas específicas, conquistaram milhares de seguidores em redes sociais, tornando-se, pelas novas gerações, modelos a serem seguidos.  A utilização desta técnica para incremento de consumo pode gerar um desvio na racionalidade do consumidor, com a construção de vieses (desvios cognitivos), seja por meio de um viés de adesão (decidir de uma determinada forma porque outras pessoas assim o fazem), ou por meio de um viés de confirmação (tomar uma decisão na crença de que o produto ou serviço é atestado por aquele intermediador). Com base em toda esta proporção assumida pelos influenciadores digitais, surge a discussão em torno da sua responsabilização civil. No caso, a responsabilidade civil pode ser discutida à luz do controle jurídico existente sobre a publicidade, bem como sobre a existência de um fato ou vício do produto ou serviço. Inicialmente, é importante destacar que o influenciador digital é considerado fornecedor por equiparação, o que permite o seu enquadramento em uma relação jurídica de consumo.  Segundo Leonardo Roscoe Bessa: "O CDC, ao lado do conceito genérico de fornecedor (caput, art. 3º), indica e detalha, em outras passagens, atividades que estão sujeitas ao CDC"6. Para o autor, todos aqueles que participam do contexto publicitário, direta ou indiretamente, são considerados fornecedores equiparados. A responsabilidade civil decorrente de um fato do produto ou do serviço dispensa a comprovação do elemento culpa. É importante abordar o conceito criado pela doutrina de acidente de consumo, que está voltado para a proteção da incolumidade físico- -psíquica do consumidor. Trata-se da tutela da saúde e da segurança do consumidor, cujos defeitos de concepção, produção ou informação atuam em desconformidade com a legítima expectativa. As hipóteses de vícios do produto ou do serviço estão previstas, respectivamente, nos artigos 18 e 20 do CDC. Os vícios podem ser de qualidade ou de quantidade. Os primeiros encontram-se em desconformidade com a informação prestada e, na segunda espécie, há diversidade do peso ou da medida. Nos vícios de qualidade, há disparidade do produto ou do serviço quanto ao que foi ofertada e a legítima expectativa do consumidor, a redução do valor daquele ou a informação prestada não se mostrou clara e adequada. Em relação ao contexto publicitário, caso haja uma publicidade ilícita, seja porque se trata de publicidade enganosa ou abusiva, ou mesmo uma publicidade velada ou oculta, há a prática de um ato ilícito, violador da boa-fé objetiva. No caso, basta a veiculação da publicidade sem identificação, enganosa ou abusiva, sem a necessidade da demonstração do dolo, para que se possa aferir a existência da responsabilidade civil do influenciador digital. Contudo, quando a responsabilidade civil é tratada na perspectiva de um fato ou vício do produto ou serviço, a discussão assume contornos mais específicos. Em relação ao fato do produto, o CDC estabelece uma responsabilidade diferenciada para o comerciante (art. 13). No que diz respeito ao fato do serviço, há a responsabilidade subjetiva para o profissional liberal (art. 14, §4º). Além do mais, o defeito pode ter como origem a falta de informação ou o próprio defeito em si. Neste contexto, chega-se a sustentar a inexistência de responsabilidade daquele que veicula a publicidade7, ou até mesmo a responsabilidade subjetiva no caso de fato de serviço, pois o influenciador digital pode ser um profissional liberal. Quanto ao vício do produto ou serviço, o CDC não traz diferenciação em relação às espécies de fornecedores, o que possibilitaria o enquadramento da responsabilidade objetiva. Assim, quando existe uma disparidade entre aquilo que é ofertado e aquilo que é entregue, há um maior consenso sobre a possível responsabilização civil, em decorrência de os influenciadores digitais promoverem o produto ou serviço e influenciarem o consumidor na tomada de decisão, o que atrairia a ideia do risco-proveito. Diante de tudo o que foi exposto, conclui-se que o influenciador digital pode ser enquadrado como fornecedor por equiparação e a ela ser aplicado o CDC. No contexto da publicidade ilícita, a responsabilidade civil decorre da prática de ato contrário à lei e a sua obrigação de indenizar pode atingir o âmbito individual e/ou coletivo. No caso de a responsabilidade civil ser tratada à luz do fato do produto ou do serviço, a discussão sobre a responsabilidade civil assume aspectos mais específicos e propõe-se a análise casuística da situação.   ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem Lidera sua Opinião? Influência dos Formadores de Opinião Digitais no Engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: ANPAD, 2018, v. 22, n. 1. BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 SILVA, Michael Silva; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Disponível aqui. Acesso em 11 dez 2021. ______________ 1 BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 2 CONSELHO NACIONALDE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR). Código. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.conar.org.br/codigo/codigo.php. Acesso em: 11 dez 2021. 3 ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem Lidera sua Opinião? Influência dos Formadores de Opinião Digitais no Engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: ANPAD, 2018, v. 22, n. 1, p. 16. 4 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 161. 5 BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. Também deve ser analisada a publicação de Michael César Silva, Caio César do Nascimento Barbosa e Glayder Daywerth Pereira Guimarães "A reponsabilidade civil dos influenciadores digitais na 'era das lives'. Disponível aqui. Acesso em 11 dez 2021. 6 BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.1025). 7 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.221.  
I. Introdução A responsabilidade civil do profissional médico está centrada em causas tão complexas que a tornam diferenciada em relação ao regime geral previsto no Código Civil. A medicina é ciência inexata. O ato médico, de fato, está sempre sujeito a infortúnios decorrentes da própria natureza humana e a atuação do profissional médico não basta para o sucesso do tratamento dispensado. Nessa senda, o médico é o agente protagonista do sistema de saúde. É o profissional tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para o resguardo da saúde do ser humano, mediante o exercício de atos privativos ou não da medicina. As propostas do presente trabalho resumem-se a apontar alguns fatores da atividade médica que qualificam o regime da responsabilidade civil do profissional como especial, analisar o regime da relação jurídica estabelecida e definir um sistema de distribuição do ônus da prova nas demandas ajuizadas. II. Regime especial da responsabilidade civil médica A medicina está sujeita a múltiplos fatores, endógenos e exógenos, que podem impedir o fim a que se destina. Em decorrência de seu notável componente aleatório, raramente pode ser garantido ao paciente um determinado resultado pela prática médica despendida. Toda a atividade desenvolvida pelo médico, das mais simples à mais complexas, por mais precisa e exata que seja, está a depender das reações do paciente. É impossível, na prática, a garantia de resultados precisos e determinados. Aliada a esta peculiar característica da ciência médica e que também tem influência no regime jurídico da responsabilidade civil do profissional médico, qualificando-o como especial, urge constatar que a conduta geradora do dano, necessariamente, deve decorrer da deficiente atuação técnica do profissional, segundo as regras comuns da ciência médica, no seu atual estado de evolução. Trata-se da infração da denominada leges artis: regra de medição de conduta do médico, tendo como parâmetro de valoração a correção ou não do procedimento adotado em conformidade comparativa com a atuação médica adequada e exigida de um mesmo profissional em casos semelhantes. A relação médico e paciente é de confiança. O paciente deposita no médico a esperança de aliviar ou fazer cessar seu sofrimento, refletindo toda a expectativa no seu atuar, mesmo que nada ou pouco saiba sobre seu passado e sua formação. O médico tem como objetivo central diagnosticar o mal e dispensar o tratamento adequado para o bem estar do paciente. Logo, ainda que não exista declaração de vontade como manifestação expressa de consentimento, a relação estabelecida entre o médico e o paciente é preponderantemente contratual. A prestação principal do médico é a de realizar o tratamento adequado para a enfermidade do paciente e também cumprir com os demais deveres colaterais decorrentes de sua atividade profissional, entre os quais, aqueles previstos nas regras éticas dos órgãos de classe. Ao paciente, é incumbida a prestação principal de honrar os honorários e de cooperar nas informações adequadas e no cumprimento das determinações prescritas pelo profissional. Por tudo, o campo da responsabilidade civil do médico exige a ponderação de fatores peculiares e próprios que o qualificam como especial, tornando a imputação mais complexa em comparação ao regime comum e geral da responsabilidade civil. Isso reflete nos pressupostos do regime especial da responsabilidade civil do médico. III. Responsabilidade civil do médico No campo médico, a responsabilidade civil é aquela em que se imputa ao profissional médico a obrigação de reparar o dano (patrimonial ou extrapatrimonial) causado ilícita e culposamente em desfavor do paciente, por má atuação técnica (erro, falha de tratamento etc) ou desrespeito aos preceitos éticos vigentes no campo da medicina, tendo sempre em consideração o atual estágio de conhecimento das regras específicas da profissão. E assim sendo, diante da necessidade de analisar efetivamente a conduta do profissional médico a responsabilidade civil médica é eminentemente subjetiva (art. 951 do CC) pois imprescindível o juízo de valor sobre o comportamento exigido do profissional médico no caso concreto, para aferição do elemento culpa. Para a caracterização do dever de indenizar não basta a presença do ato médico. É imprescindível que esse ato seja ilícito. A ilicitude, objetivamente considerada, surge consubstanciada na prática de atos pelo profissional médico que se afastam das normas ou regras técnicas reconhecidas, regulamentadas e fiscalizadas pelos órgãos de classe, levando-se em consideração que a atividade médica está sempre condicionada pela informação científica disponível no momento da sua ocorrência, pelas recomendações dos órgãos disciplinares e pelo princípio ético geral da prudência.  A medida para a apuração da linha tênue entre a atuação lícita e ilícita do profissional da medicina está necessariamente na avaliação abstrata da conduta do médico em razão do conjunto geral de regras da ciência médica, levando-se em consideração todas as características e circunstâncias especiais do caso concreto analisado. Na proporção em que a conduta concreta do profissional esteja em conformidade com as regras gerais da ciência médica, nos moldes apresentados mediante um juízo abstrato de valor, afasta-se o reconhecimento de qualquer ilegalidade do ato praticado. Do contrário, distanciando-se a conduta do médico daquilo que seria exigido pelas regras da ciência nas mesmas situações de tempo, modo e condição, configurada estará a ilegalidade do ato realizado. Também comete ato de ilegalidade com a violação de qualquer norma legal, regulamentar ou estatutária que regule a relação profissional mantida com o paciente (infrações a deveres acessórios). A culpa, em termos genéricos, é o juízo de censura do ordenamento jurídico que recai sobre a conduta ilícita do agente. Com a presença da culpa, o ato ilícito praticado, produtor de um resultado danoso, é imputado ao agente. Em termos específicos, a culpa é a violação ou inobservância do dever objetivo de cuidado exigido pela natureza do ato médico praticado, apto a produzir um resultado danoso não querido e nem previsto, entretanto, previsível, sendo que poderia, com sua atenção, ter sido evitado. O comportamento praticado pelo médico será considerado culposo quando este agir, no caso concreto, com dolo ou culpa (em sentido estrito). Para a aferição do ato culposo o ordenamento jurídico exige a realização, em abstrato, de uma avaliação do comportamento realizado, tendo como critério comparativo de padrão o comportamento do bom profissional da medicina, nas mesmas circunstâncias pessoais e nas mesmas condições de tempo e de lugar do caso concreto avaliado. Não é tarefa fácil definir e provar o comportamento culposo do profissional médico em relação às regras da profissão, sendo quase obrigatório que a instrução processual, para a formação da convicção do magistrado, valha-se do auxílio de uma perícia. O último pressuposto necessário para a configuração da responsabilidade civil é o nexo de causalidade (art. 403 do CC) que deve existir entre o prévio comportamento ilícito e culposo e o consequente resultado danoso. Entre as várias condições que contribuíram de qualquer forma para a produção do resultado dano, é importante destacar aquela que deve ser considerada como causa, pois imprescindível para tal desiderato. Parte da doutrina adota a teoria da causalidade adequada1. Só existirá responsabilidade se o fato, por sua própria natureza, for próprio ou apto a produzir aquele determinado dano, tendo como crivo o curso natural das coisas, de forma genérica e mediante uma equação de probabilidade, examinada em abstrato (tal fato teria acarretado tal consequência em quaisquer condições de normalidade). De outro lado, pela teoria do dano direto e imediato, na subteoria da necessariedade da causa2 é considerada causa para a produção do resultado o antecedente fático que, no plano concreto e diante das circunstâncias apresentadas, mantém relação direta e imediata com o dano produzido, num vínculo de necessariedade, por não existir outra condição que explique melhor o dano. Por ser a responsabilidade por culpa médica um regime especial de reparação dos danos, pela complexidade do direito material litigioso, existe também, como consequência inevitável, um reflexo desta dificuldade no campo processual, designadamente durante a fase da instrução probatória e especialmente na distribuição do ônus da prova. IV. A questão do ônus da prova na responsabilidade civil do médico. As regras sobre o ônus da prova estão dirigidas tanto para as partes (ônus da prova subjetivo) quanto para o juiz (ônus da prova objetivo). Enquanto regra de conduta para as partes, o ônus probatório impõe a faculdade de que as partes dispõem de provar os pressupostos fáticos que invocam como fundamento de suas respectivas pretensões e defesas. É dizer, de outra forma, quem deve fazer a prova do fato controvertido alegado em juízo para não sofrer o risco de um resultado desfavorável em caso de não formação da convicção do julgador como consequência da prova frustrada ou não realizada. É o aspecto subjetivo do ônus da prova. Direito processual ligado à atividade probatória das partes. O ônus probatório como regra de julgamento para o juiz revela-se como solução para o deslinde da lide nas hipótese exclusiva em que o julgador, transcorrida toda a instrução probatória realizada, não se convencer sobre a veracidade dos fatos alegados pelas partes, ante a ausência de produção de provas sobre determinado fato relevante e controvertido ou por sua obscuridade ou insuficiência, impondo-se ao juiz o dever de solucionar a lide segundo uma regra de julgamento pré-determinada (será sucumbente quem tinha o ônus subjetivo e não cumpriu adequadamente o encargo). A regra da distribuição do ônus da prova é, em geral, estática (art. 373, caput do CPC). Impõe-se às partes obediência ao comando legal, sob pena de sofrer as consequências desfavoráveis que surgem pela falta ou insuficiência de prova para o julgamento da demanda, em especial, o não acolhimento pelo juízo da pretensão deduzida. Ocorre que, por força de disposição legal, essa regra geral da distribuição do ônus probatório pode ser modificada. É a chamada e conhecida inversão do ônus da prova (flexibilização do ônus subjetivo), que ocorre quando não recai sobre a parte tradicionalmente onerada com a prova do fato o ônus de demonstrar a verdade, mas, sim, sobre a contraparte, que então terá a incumbência de provar o fato contrário. A inversão do ônus da prova, enquanto regra de conduta para as partes (ônus subjetivo), necessariamente impõe uma presunção legal. Invertido o ônus da prova, presume-se provado o fato que sustenta o pressuposto fático favorável à parte beneficiada pela inversão. Logo, a parte que, em tese (pela regra geral), tinha o ônus da prova, fica desonerada, dispensada deste encargo. De outro lado, a parte que, pela regra geral, não tinha qualquer ônus probatório em relação a esse pressuposto, agora tem o encargo exclusivo de provar o fato contrário. A legitimidade para inversão do ônus da prova demanda base legal. Não é uma medida aleatória do juízo. O Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, VIII) dispõe, como medida de proteção, a tutela geral da inversão como direito básico do consumidor, presentes os requisitos legais da verossilhança da alegação ou hipossuficiência técnico-econômica. Da mesma forma é a dicção do Código de Processo Civil (art. 373, § 1º) que diante das peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade do autor em cumprir o encargo probatório e, contrariamente, a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelo réu, impõe que o juiz poderá inverter (flexibilizar) o ônus subjetivo da prova.Em ambos os casos, trata-se de regra de procedimento para as partes e deve ser definida antes da instrução processual. Nesse quadro, o paciente lesado, autor da ação indenizatória, com a inversão do ônus fica excluído do encargo de provar a culpa do médico no caso concreto, ou seja, presume-se que o médico agiu com culpa para a produção do dano objeto de indenização, nada contribuindo, nesse sentido, para a formação da convicção do julgador. De outro lado, o encargo probatório da contraprova é exclusivo do profissional médico. Cabe a ele demonstrar, durante a instrução, que não agiu com culpa para a produção do resultado danoso ou que o evento lesivo teve como causa um fator estranho à sua conduta profissional. Havendo, ou não, a inversão do ônus da prova no caso concreto, nos termos acima expostos, uma das partes (a desincumbida do encargo) assumirá provavelmente uma atividade passiva e inerte em termos probatórios, já que o encargo de provar os requisitos legais necessários para o dever de indenizar será de incumbência exclusiva do autor paciente (quando não inverte) ou do réu médico (quando inverte). Propõe-se, no entanto, que nas demandas de responsabilidade civil médica haja, necessariamente, um esforço probatório recíproco entre as partes litigantes para o esclarecimento da verdade real e formação da convicção do julgador, fundamentado no princípio da solidariedade e cooperação processual. Para tanto, a inspiração é a teoria da carga probatória dinâmica de Jorge Walter Peyrano4. Por essa teoria, a flexibilização ou dinamização do ônus da prova ocorre como regra de julgamento, indicativa de como deve decidir o julgador quando não encontre os substratos probatórios sobre os quais deve basear sua decisão, permitindo o julgamento do mérito e evitando o non liquet. Nas situações excepcionais em que o magistrado atua sem a formação efetiva da convicção constitui-se em uma pauta de valoração do julgador, atribuindo, em desfavor da parte que tinha as melhores condições fáticas, profissionais, técnicos e econômicas, o encargo de suportar a eventual falta ou insuficiência probatória, desacolhendo sua pretensão. Apoiado sobre todo o conjunto probatório realizado pelas partes durante o curso da instrução processual, e  apenas se permanecer presente o estado de dúvida sobre a veracidade dos fatos controvertidos apresentados, o magistrado prolata sua decisão em desfavor da parte que estava em melhores condições para a realização da prova e, mesmo assim, não foi capaz de demonstrar satisfatoriamente a veracidade dos fatos afirmados em juízo. Portanto, a solução apresentada independe da posição processual das partes e da natureza dos fatos alegados. Também não guarda nenhuma relação com a inversão ou alteração do ônus subjetivo da prova, impondo a colaboração efetiva do autor e do réu na instrução processual e na busca da verdade material possível. E esse ponto é fulcral para sua compreensão. A adoção da teoria não significa que a parte autora da demanda indenizatória esteja isenta do encargo de produzir prova sobre a culpa do médico ou nexo de causalidade, ou seja, não lhe confere a vantagem de alegar os fatos que consubstanciam sua pretensão e esperar comodamente que a parte devedora (o profissional médico ou hospital) comprove o fato contrário, por força de eventual inversão do ônus subjetivo. A teoria da carga probatória dinâmica impõe a efetiva contribuição das partes para a busca da verdade real, exigindo um comportamento probatório ativo de ambas, sob pena de sofrer os efeitos da falta ou insuficiência da prova, com a sucumbência da pretensão. Para sua operacionalização prática é imprescindível que o órgão julgador, necessariamente antes do início da fase probatória, advirta as partes sobre a possibilidade de aplicação da teoria da dinamização da carga probatória. no caso concreto, para evitar qualquer surpresa na sentença. Implicitamente, ainda, tem o condão de convocar as partes para adotarem uma conduta processual cooperativa, leal, baseada na boa-fé processual e na busca da verdade real processualmente atingível para o caso concreto, tornando a esfera ambiental do processo a mais propícia possível para um julgamento justo ou equânime. A manifestação judicial de advertência da possibilidade de aplicação da teoria não tem o poder de antever, de forma definitiva, qual das partes está em melhores condições de realizar a prova. É fato que essa conclusão somente será possível após a instrução processual e somente será necessária diante do não convencimento do magistrado sobre a verdade dos fatos controvertidos. Por isso, durante a advertência, nenhum juízo de valor pelo órgão julgador deve ser realizado sobre a capacidade probatória das partes. É realizada de forma simples e genérica. De outro lado, após a realização de toda a instrução processual e colhida toda a prova produzida em juízo pelas partes litigantes, persistindo a dúvida sobre a veracidade dos fatos relevantes controvertidos e não formada a convicção do julgador para a prolação da sentença, a efetiva aplicabilidade da teoria da carga probatória dinâmica tem a natureza jurídica de regra de julgamento. E assim sendo, é na sentença que o julgador deverá efetivar sua aplicabilidade no caso concreto, valendo-se de seus termos para adjudicar os efeitos negativos da falta ou deficiência da prova em desfavor da parte que estava em melhores condições para a sua realização, não acolhendo sua pretensão deduzida em juízo. O juízo sobre qual das partes dispunha das melhores condições é justificado na fundamentação da sentença e amparado nas regras das máximas de experiência do caso concreto (art. 375 do CPC). Logo, a teoria da carga probatória dinâmica, nos termos adotado, é uma regra de valoração dos efeitos da falta ou deficiência da prova que tem o condão de forçar, durante o curso da instrução processual, comportamento probatório ativo, solidário e cooperativo entre as partes, de modo que se potencializa a oportunidade de formação do convencimento do juízo sobre as matérias fáticas controvertidos, já que a instrução é centrada em duas bases probatórias distintas. A realizada pelo autor paciente (quanto ao fato constitutivo) e a realizada pelo réu profissional médico (quanto ao fato desconstitutivo). Formada a convicção, a teoria não será operacionalizada justamente porque as provas produzidas foram suficientes. Não formada, aplica-se como regra de julgamento, sucumbindo aquela parte que tinha as melhores condições e não realizou a instrução adequadamente. A efetiva formação ou não do convencimento do magistrado sobre os pressupostos fáticos controvertidos vai depender da qualidade das provas produzidas e do nível de suficiência probatória (standard) exigidos para o caso concreto. Isso, no entanto, é matéria para análise em outra oportunidade. ________ 1. No sentido da adoção da teoria da causalidade adequada no sistema brasileiro: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Atlas, 2010, pp. 50-53; NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 600. 2. No sentido da adoção da teoria do dano direto e imediato, subteoria da causalidade necessária: RIZZARDO, Arnaldo.  Responsabilidade Civil - Responsabilidade médica. Capítulo XXVII. 1ª ed. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, pp. 75-78; e CRUZ, Gisela Sampaio da Cruz. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005, p. 110. 3. A doutrina da carga probatória dinâmica foi lançada pelo autor através do artigo: Lineamentos de las cargas probatorias "dinâmicas", que foi republicado na obra coletiva Cargas probatorias dinâmicas, Diretor JORGE WATER PEYRANO e Coordenadora INÉS LÉPORI WHITE, 1ª edição, Santa Fé, Editora Rubinzal-Culzoni, 2008, pp. 13-18.    
Vivemos na era dos riscos e incertezas, do dinamismo constante e célere da sociedade e, consequentemente, da multiplicidade de danos a que estamos expostos. Nesse contexto contemporâneo, diante de um panorama holístico, de um lado apresenta-se o instituto da responsabilidade civil que, em linhas gerais, consiste no dever de reparar os danos injustos suportados eventualmente por uma vítima, em virtude da transgressão de uma norma jurídica de natureza civil pré-estabelecida, seja ela uma regra ou um princípio. Lado outro, insurge-se o contrato de seguro que tem como objeto a garantia do interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados, nos termos do art. 757 CC. Dentre as modalidades securitárias, destaca-se o seguro de responsabilidade civil cuja finalidade precípua é a garantia de proteção patrimonial do segurado contra risco de imputação de responsabilidade civil decorrente de má prática em sua atuação profissional. Ademais, com base no princípio da função social do contrato em sua eficácia externa, não se pode descurar que o seguro de responsabilidade civil profissional garante, ainda, o efetivo recebimento pela vítima, na qualidade de terceiro à relação contratual, da indenização a que faz jus como reparação pelos danos injustamente sofridos e causados pelo profissional segurado. Culturalmente, era baixa a incidência dessa modalidade de seguro no Brasil, mas diante do recrudescimento dos riscos e, consequentemente, dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais deles advindos no exercício das atividades profissionais, torna-se premente e cada vez maior a contratação desse seguro.  De fato, com base nos dados estatísticos apresentados pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), houve um crescimento de mais de 200% de 2015 a 2021. O seguro de responsabilidade civil profissional individual, conhecido pela sigla E&O (erros e omissões), tem uma previsão normativa no Brasil basicamente restrita ao art. 787 CC, segundo o qual "no seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro". O contrato de seguro de RCP representa, pois, uma obrigação de garantia e consiste na tutela do interesse do segurado em proteger seu patrimônio e não de mero ressarcimento, sendo o terceiro, vítima do dano, a principal personagem, eis que, em tese, todos os prejuízos a ela causados devem ser reparados ou compensados via indenização securitária. Sua maior incidência ocorre nas contratações por profissionais da saúde, sobretudo pelos médicos, devido à crescente judicialização da saúde, a deterioração da relação médico paciente, bem como a proliferação de riscos e danos verificados nas intervenções médicas. A premissa sobre a qual se baseia o instituto da responsabilidade civil é a transferência de danos da vítima ao causador desses danos. E o seguro de responsabilidade civil é um instrumento eficaz de transferência de riscos, pois o que se busca não é um culpado ao qual os danos serão transferidos, mas um responsável, no caso a seguradora. Importante ressaltar que a seguradora assume a garantia de pagamento à vítima do dano cometido pelo segurado, este sim, obrigado a indenizá-la conforme os nexos de imputação que lhe são atribuídos por lei. Tais nexos de imputação da responsabilidade civil decorrem da teoria subjetiva ou objetiva, ambas abrangidas pelas coberturas do seguro de RCP, a depender da atividade profissional exercida pelo segurado. Na teoria objetiva da responsabilidade civil enquadram-se as pessoas que estão obrigadas a indenizar os danos causados em virtude de lei ou do risco da atividade que desenvolvem, nos termos do parágrafo único do art. 927 CC. Atividades cuja potencialidade lesiva é fonte de numerosos danos e, consequentemente, motivo suficiente para a contratualização de RCP. Os profissionais liberais, por sua vez, enquadram-se na teoria subjetiva da responsabilidade civil, eis que respondem subjetivamente pelos danos eventualmente causados a terceiros conforme dispõe o art. 14§ 4o CDC. Neste contexto, insere-se o seguro de responsabilidade civil médica, por meio do qual o médico tem o interesse legítimo de proteção ao seu patrimônio em caso de responsabilização civil por danos causados aos pacientes, decorrentes de ato ilícito culposo ou por abuso de direito (arts. 186 e 187 CC, respectivamente) cometidos no âmbito da sua atuação profissional, mantendo-se indene seu patrimônio. Diante da necessidade provocada pela atual realidade social na qual os danos se multiplicam e se espraiam, foram desenvolvidas novas técnicas de contratação, com possibilidades mais amplas de coberturas securitárias. Nessa conjuntura, destacam-se os novos comandos normativos que redefinem o marco regulatório do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, em especial, a Circular número 637 da SUSEP, que dispõe especificamente sobre tal modalidade securitária, e que entrou em vigor no dia 01 de setembro de 2021. Nos termos do art. 4º da referida Circular, a cobertura do seguro abrange os riscos decorrentes da responsabilização civil vinculada à prestação de serviços profissionais, objeto da atividade do segurado. Dentre as mudanças, merece especial atenção as alterações promovidas às regras de contratação do seguro de RCP, quais sejam: - contratação do seguro à base de ocorrências (occurrence basis), quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência e o segurado apresente o pedido de indenização durante tal vigência. - contratação do seguro à base de reclamações (claims made basis), quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência e o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante eventual prazo adicional, conforme previsão no contrato.   - contratação do seguro à base de reclamações (claims made basis) com notificação, quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência ou durante o período de retroatividade ou, como segunda hipótese, quando o segurado tenha notificado fatos ou circunstâncias ocorridas durante a vigência da apólice e o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante eventual prazo adicional, conforme previsão no contrato ou, ainda, durante os prazos prescricionais, conforme previsão no contrato.   Portanto, a garantia da indenização condiciona-se à observância das disposições contratuais, sobretudo, das datas de ocorrência dos fatos danosos, da apresentação das reclamações pelos terceiros e de apresentação das notificações pelo segurado, a depender da modalidade de contratação. Uma outra novidade regulatória diz respeito à amplitude de possibilidades de sinistro pois, além da obrigação de indenizar imposta por decisão judicial ou proveniente de acordos celebrados entre o segurado e o terceiro lesado, há previsão de que tal obrigação decorra de decisões emanadas de juízo arbitral, consoante previsão constante no art. 3º da supracitada Circular 637. Entre as coberturas dispostas importa observar, a princípio, que todos os possíveis riscos devem estar expressa e previamente consignados na apólice, pois sem previsão pormenorizada não há cobertura. Ademais, à seguradora restará a obrigação de pagar ao terceiro vítima do dano a indenização até o limite máximo estipulado na apólice, conforme o valor da franquia, inclusive.  A cobertura securitária, como já dito, abrange, de um modo geral, a responsabilidade civil subjetiva e objetiva, contratual e extracontratual, danos patrimoniais e extrapatrimoniais, os atos dos auxiliares, os custos para defesa do advogado e os valores de acordos eventualmente celebrados. No caso de seguro de responsabilidade civil médica, a especialidade deve estar muito bem definida, pois impacta diretamente no valor do prêmio e, consequentemente, no valor da cobertura. Atualmente, as especialidades médicas de maiores riscos e, portanto, mais judicializadas são as que envolvem cirurgia cardiovascular, neurocirurgia, ginecologia com obstetrícia, oftalmologia com cirurgia, cirurgia pediátrica e cirurgia de cabeça e pescoço. Ressalte-se que na fase pré-contratual o princípio da boa-fé objetiva revela-se fundamental e deve ser efetivado pela boa-fé subjetiva das partes contratantes, de forma indissociável, ao prestarem-se mutuamente as informações de forma fidedigna. Nesta fase, a assistência jurídica pelo advogado também é medida imprescindível para o perfeito adimplemento e plena satisfação dos interesses de ambas as partes, pois nem todas as perdas possivelmente ocasionadas por uma demanda judicial são abrangidas. O princípio contratual da boa-fé objetiva, lastreado na eticidade enquanto pilar do Direito Civil-Constitucional, encontra-se previsto também no art. 765 CC de cuja intelecção extrai-se a menção à expressão "mais estrita boa-fé" de ambas as partes, impingindo ao contrato de seguro uma exigência ainda maior sobre o dever de transparência dos contratantes. No que se refere às exclusões de coberturas presentes nas apólices, comumente se verificam os atos dolosos do segurado, até porque o que se visa a garantir é um interesse legítimo, portanto, lícito; atos praticados sem licença ou habilitação e culpa grave do segurado. Importa ressaltar que eventual valor objeto de condenação que sobejar o limite máximo de cobertura deverá ser suportado pelo profissional tomador do seguro. De um modo geral, estes são os dispositivos que fazem parte da arquitetura legal regulamentadora do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Contudo, não devem ser considerados como mero repositório de regras estanques, eis que devem ser interpretados de forma casuística e sistêmica em relação às demais normas jurídicas integrativas do ordenamento jurídico. Enfim, o atual cenário de socialização dos riscos reclama e impõe a contratualização do seguro de responsabilidade civil profissional (E&O) como um importante e eficaz instrumento de proteção patrimonial do profissional e uma garantia de reparação a`s vítimas de danos como forma de realização da função compensatória da responsabilidade civil. _______________ Disponível aqui. Disponível aqui. Disponível aqui. GOLDBERG, ILAN. O contrato de seguro D&O. 1ª. Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. JUNQUEIRA, T. Aplicação da teoria da perda de uma chance no âmbito do seguro E&O de advogados. Revista IBERC, v. 5, n. 1, p. 13-28, 30 nov. 2021. NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. 1 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.    
I - Contextualizando o tema Brasil, século XXI, ano 21. Vivemos em um país periférico e ainda distante de cumprir as promessas da modernidade. Nesse ambiente, as informações circulam em quantidade e velocidade jamais experimentadas, o que não significa qualidade, obviamente. A amplificação de opiniões proporcionada pelo mundo virtual descortinou a pós-verdade e trouxe consigo a falta de compromisso com os fatos objetivos: fake News e bullshits duelam com a liberdade de expressão promovendo muitas indagações: propagar mentiras é liberdade de expressão? Qual a relação e a tensão entre liberdade de expressão e bullshits? No texto a seguir, sem pretensão alguma de esgotar o objeto, jogaremos luzes sobre um tema ainda pouco trabalhado no Brasil, isto é, existe um direito de falar besteiras de forma irresponsável?  II- Significado e alcance da liberdade de expressão Calorosos debates acerca da liberdade de expressão estão na agenda das democracias ao redor do mundo, notadamente pelo retorno de ideologias radicais que ganharam notoriedade no breve século XX, para usar uma feliz expressão de Eric Hobsbawm1. Há quem afirma que a liberdade de expressão não deve tão-somente proteger a difusão de argumentos simpáticos e comuns a todos, mas também aqueles com as quais nós não concordamos. Nesse sentido, o remédio contra as más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não da censura. Do outro lado, há os que pensam de forma diversa e sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais de convivência social, como o da dignidade humana2. Ronald Dworkin formula duas justificações para a liberdade de expressão: uma instrumental e outra constitutiva. A primeira sustenta que a mais ampla liberdade de expressão permite a melhor escolha política, protegendo o povo contra a tirania e inibindo a corrupção. Já a constitutiva, por seu turno, apoia-se na ideia de que o Estado deve tratar seus cidadãos como agentes morais individuais e responsáveis, que devem poder ter acesso a qualquer tipo de informação ou de opinião, para, assim, tomar suas decisões. Nesse sentido diz o autor que "o Estado insulta seus cidadãos e nega a eles a sua responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas"3. Portanto, a liberdade de expressão é direito preferencial no Estado constitucional, oxigenando a democracia e constituindo subjetividades dos sujeitos constitucionais.  III- Existe um direito de falar besteira ou bullshits? Bullshits são manifestações absurdas e insensatas para a maioria das pessoas. A intenção do bullshiter é convencer o seu público sobre a veracidade das irracionalidades que dissemina. Dessa forma, o que determina o potencial avassalador de uma dessas inverdades é o grau de atenção a ela dado, o que se relaciona com a forma com que o locutor é encarado socialmente. Outra singularidade das bullshits é a de que elas podem ser demasiadamente danosas se veiculadas com a intenção subjacente de fazer ecoar um discurso político. Nesse caso, elas não são apenas estapafúrdias, mas, pelo contrário, possuem um objetivo claro: chamar atenção, engajar, angariar seguidores, obter votos, etc4. As bullshits, em regra, não estão protegidas pela liberdade de expressão, tendo em vista dois elementos principais: (i) o disseminador de bullshits (bullshiter) pouco se importa com a verdade dos fatos e tem a intenção de persuadir o seu público5; (ii) as bullshits são tão absurdas e disparatas para seus ouvintes que, rapidamente, chamam atenção. A título de exemplo, pouco interessaria uma reportagem produzida por renomados físicos explicando que a gravidade existe, pois é um fenômeno científico conhecido e aceito. Em contrapartida, maior seria a relevância de uma reportagem que hipoteticamente comprovasse que a teoria da gravidade é uma falácia. Desse modo, o que define a abrangência de uma bullshit é o grau de absurdidade por ela veiculado6. Nas últimas semanas, o presidente Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais uma live, na qual fazia relação entre as vacinas contra a Covid-19 e o desenvolvimento de Aids. Nos parece claro exemplo de bullshit. O vídeo foi retirado do ar pelo Facebook e pelo Instagram, que alegaram que suas políticas não admitem afirmações de que as vacinas contra a Covid-19 podem causar mortes ou danos graves às pessoas. Contudo, mesmo com a tentativa da mídia e dos especialistas em provar a veracidade dos fatos - ou seja, de que as vacinas contra a Covid-19 não causam Aids -, é inegável a relevância que o presidente possui em determinada parcela da sociedade. A problemática que se coloca, então, é a da abrangência da bullshit propagada por Bolsonaro e se ela tem e qual seria seu potencial devastador. V- A zona cinzenta entre liberdade de expressão, responsabilidade civil e bullshits São considerados agentes públicos "todas as pessoas que integram os Poderes da República, os servidores administrativos, os agentes sem vínculo formal de trabalho, os colaboradores etc. - em resumo, todos aqueles que, de alguma forma, se encontram juridicamente vinculados ao Estado."7 O atual Presidente argumenta que as bullshits por ele propagadas encontram-se no espectro de sua liberdade de expressão, como se esta fosse mais que preferencial, quase absoluta. Bullshits podem causar danos efetivos a terceiros, principalmente em se tratando de discursos proferidos por figuras públicas de alcance nacional, é razoável concluir que deve ocorrer a responsabilização desses agentes públicos. Nesse ínterim, em matéria de RC, é necessário considerar que o que recebe hoje a denominação de "RC do Estado" e "RC do agente público" é resultado de uma evolução que no marco inicial tipificava apenas a responsabilidade pessoal do agente. No século XX a RC do Estado caminhou para um cenário de maior ampliação, com vistas a fornecer maiores garantias aos indivíduos que viessem a sofrer quaisquer tipos de danos causados pela Administração Pública. Foi nesse contexto que houve um fortalecimento do instituto da RC - principalmente no que tange à consolidação da responsabilidade civil objetiva - , o que pôde ser observado na adoção da chamada teoria do risco administrativo. Essa teoria - fortemente influenciada por tal movimento de valorização da pessoa humana - introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a RC objetiva do Estado, isto é, independente de culpa, como forma de responsabilizar as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos em caso de danos a terceiros8. Destarte, é possível afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro passou a trazer tanto na CF/88, quanto no CC de 2002, a lógica da teoria do risco administrativo com o fito de promover a valorização da pessoa humana por meio de uma responsabilização objetiva da Administração Pública. Em outras palavras, além da responsabilidade objetiva do Estado, foi inaugurada, no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade subjetiva do agente público por danos causados a terceiros. Em ambas as hipóteses, é imperioso que estejam presentes, simultaneamente, todos os elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade civil: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade (somados à culpa lato sensu do agente, nos casos de responsabilidade subjetiva do agente público). Ao analisar a responsabilização desses agentes de maneira ampla, tem-se que, de suas condutas no exercício do cargo, emprego ou função, decorre RC, penal e administrativa9. Em se tratando, especificamente, de agentes políticos, também ocorre a aplicação da chamada responsabilidade política. Analisando-se especificamente a RC dos agentes públicos, aplica-se o disposto no artigo 186 do Código Civil de 2002: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." Em outras palavras, para ocorrer a responsabilização dos agentes públicos no caso das bullshits, por exemplo, é imprescindível que haja, enquanto pressupostos inafastáveis da RC, comprovação de que há nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano, bem como a culpa lato sensu desse agente. No entanto, uma das principais dificuldades dessa zona cinzenta se encontra no momento em que se tenta estabelecer tal nexo de causalidade, o que traz o questionamento: como comprovar que aquela determinada conduta do agente público promoveu, efetivamente, a ocorrência do dano? No caso da propagação de bullshits, é necessário demonstrar que aquele determinado pronunciamento do agente público foi responsável por causar um dano efetivo a terceiros, estabelecendo, assim, um nexo entre a conduta lesiva, culposa e o dano causado ao indivíduo. Trazendo essa questão para o caso concreto, como a polêmica live do Presidente, havendo o ato ilícito, o dano e a conduta culposa, como comprovar o nexo de causalidade entre esses elementos? Em outras palavras, até que ponto a contaminação da população decorre da conduta ilícita desse agente público? De fato, é aqui que se encontra a parte mais complexa da RC do agente público em caso de bullshits. Pela dificuldade em se estabelecer uma cadeia causal, muitas vezes o resultado é a não responsabilização desses agentes, não somente na esfera cível, como também nas esferas administrativa, penal e, até mesmo, política, podendo causar danos irreparáveis a um grande número de pessoas. Ainda, é fundamental comentar a respeito do direito de regresso por parte da Administração Pública em relação aos agentes públicos que cometem ato ilícito em caso de culpa e dolo. No texto constitucional e no Código Civil é trazida não somente a responsabilidade objetiva do Estado, como também a possibilidade de direito de regresso deste em relação ao agente público causador do dano. Entretanto, a legitimidade do agente público para compor o polo passivo da ação indenizatória também já foi tema controvertido, cujo entendimento foi pacificado pelo STF por meio do RE 1.027.633/SP. Em muitos casos, o cidadão, ao ajuizar ação indenizatória, colocava o Estado e o agente público responsável pela ocorrência do dano no polo passivo da demanda. Contudo, foi firmado pelo STF o entendimento de que "A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Em outras palavras, o procedimento adequado destinado a esse tipo de situação não admite a colocação do agente público no polo passivo da demanda. Tão somente o Estado, por meio de ação de regresso, deve alegar culpa ou dolo por parte desse agente. A tese firmada encontra guarida na previsão do artigo 37, §6º da CF. Por fim, vale lembrar que as imunidades conferidas ao Presidente da República pela Constituição (Art.86), acabam por se transformar em irresponsabilidades, não por outro motivo que a doutrina e a jurisprudência brasileiras adotaram por muito tempo o termo "irresponsabilidade relativa", escancarando o desvio de um instituto cujo propósito era garantir uma boa governança. As imunidades protegem o cargo e a instituição, não a pessoa. Deste modo, as irresponsabilidades verbais do Presidente Bolsonaro estão sujeitas a subsunção nas cláusulas genéricas do art.85, da CF, em conjunto com a lei 1079/50, e o art.52, também da CF/88, podendo, em nossa opinião, resultar no impedimento do mandato para o qual foi eleito (impeachment) por propagações de bullshits que tenham como resultado a violação aos direitos à saúde, á vida e à dignidade da pessoa humana.   Conclusão Cientes da dificuldade e do pouco tratamento jurídico do tema, concluímos que as bullshits possuem considerável efeito negativo na sociedade e não encontram proteção nas abordagens instrumental e constitutiva da liberdade de expressão. Se utilizadas em contexto de risco à saúde pública para distorcer informações cientificamente comprovadas, causando danos efetivos às pessoas, nos parece hipótese clara de responsabilidade civil do agente público aqui tratado, que parece lançar mão de forma abusiva das imunidades materiais, contando com a cumplicidade do Poder Legislativo que não tem por tradição dar andamento ao processo de impedimento previsto na Constituição. *Bruno Stigert é professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFJF. Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência da UFJF. Mestre em Direito Público pela UERJ e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF. Associado IBERC. **Julia Oliveira Pêssoa é graduanda em Direito pela UFJF. Bolsista da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência. ***Marina Coimbra de Azevedo Quelhas é graduanda em Direito pela UFJF e monitora da disciplina Teoria da Responsabilidade Civil e voluntária no NEAPID, sob orientação dos associados do IBERC Raquel Bellini e Sérgio Negri. __________ 1 O "breve século XX" começa em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, sinalizando declínio da civilização capitalista, liberal e burguesa, ancorada no progresso técnico e científico, certos do chamado eurocentrismo. O século XX terminaria em 1991, com a queda do socialismo real no Leste Europeu e a consagração do capitalismo. Inaugura-se um novo século que surfa na onda da globalização. 2 STIGERT, Bruno. Dicionário de Filosofia política. Coord. BARRETO, Vicente de Paulo. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2010, págs. 314 a 317. 3 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Havard University Press, 1996. 4 Sobre o tema do recrutamento de extremistas, vale a leitura do texto de Rachel E. Hoffman (Determining Who is Vulnerable to Radicalization and Recruitment). Segundo ela, os indivíduos vulneráveis ao extremismo não são necessariamente ignorantes ou ingênuos. São pessoas motivas por redes sociais (família, amigos ou comunidade global) e que se sentem isoladas no interior da sociedade em que vivem. Anseiam por propósito e empolgação. São sujeitos atravessando conflitos de identidades, buscando reputação ou satisfazer uma compulsão por ação. Muitos são escolarizados, porém subutilizados, nutrindo uma falsa noção de segregados por seu status social. Sentem-se maltratados por seus pares e pelo governo. 5 MARMELSTEIN, George. O negacionismo pandêmico mata. Jota - Opinião e Análise. 22 mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em 04 nov. 2021. Para suas reflexões, Marmelstein usa FRANKFURT, Harry G. Sobre Falar Merda. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2005. 6 CNN BRASIL. Facebook e Instagram excluem live em que Bolsonaro relaciona vacina contra Covid à Aids. 25 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 03 nov. 2021. 7 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil - 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.300 8 CF/88, Art. 37, §6º: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Foi nesse mesmo sentido que se deu a redação do artigo 43 do Código Civil de 2002: "Art. 43: As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo". 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo - 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 
Estamos presenciando um movimento sui generis no desenvolvimento científico. Parece que, repentinamente, todos os ramos do conhecimento, tornados estranhos uns aos outros pela especialização extremada, começaram a ressentir-se do isolamento em que se encontravam, passando a buscar mais e mais suas bases comuns. A necessidade crescente de estudos interdisciplinares, capazes de analisar a realidade de ângulos diversos e complementares passou a aguçar a conscientização de que uma série de princípios são validamente aplicáveis às várias ciências. Exemplo eloquente deste movimento de desvendar fundamentos comuns a quaisquer áreas de conhecimento é a chamada Teoria dos Sistemas Dinâmicos. Vinda da matemática aplicada, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos é um paradigma inovador e influente em muitas áreas de estudo, incluindo mais recentemente as ciências sociais. Um sistema dinâmico é um conjunto de elementos interligados que constituem um todo maior que a sua mera soma. Estes elementos nem sempre são harmônicos entre si. Para solucionar as tensões internas, os sistemas desenvolvem circuitos de influência mútua (feed-back loops) que neutralizam as incompatibilidades intra-sistêmicas, eventualmente gerando novos conflitos ou instabilidades. De acordo com a esta teoria, os sistemas adaptam-se, mudam e evoluem no tempo numa volatilidade constantemente renovada, apesar de sempre resistirem a mudanças.  Estamos imersos em sistemas, somos sistemas. Segundo Donatella Meadows, "Uma escola é um sistema. Assim como uma cidade, e uma fábrica, e uma corporação, e a economia nacional. Um animal é um sistema. Uma árvore é um sistema, e uma floresta é um sistema maior que abrange subsistemas de árvores e animais. A Terra é um sistema. Assim como o sistema solar, assim como uma galáxia." Segundo Gregoire Nicolis e Ilya Prigogine, as instabilidades e flutuações são responsáveis pela incrível variedade e riqueza das formas e das estruturas que vemos na natureza que nos rodeia. Novas estruturas, conceitos e ideias, distintos daqueles padrões de periodicidade e estabilidade próprios às ciências clássicas, são necesários a explorar a complexidade e instabilidade dos sistemas físicos, biológios e também sociais. Estas dinâmicas contraditórias de constante instabilidade e auto-organização também regem os sistemas jurídicos. Para Orlan Lee, é preferível adotar uma concepção do direito como um sistema aberto e suscetível à analise lógica. As regras não são  elementos absolutos mas se interrelacionam com outros elementos do sistema e até com outros sistemas visando alcançar o propósito maior do sistema jurídico em si, qual seja, o de contribuir nos processos decisórios que viabilizam o convívio social regido pela auto-organização. É preciso que a argumentação jurídica evite respostas fixas e rígidas e busque aquelas coerentes com o sistema jurídico que não se subsume às regras legais, mas também abriga outros elementos como os princípios gerais e a equidade. A responsabilidade civil também é um sistema integrado por impulsos discordantes, espontâneo, aberto, complexo, sinergético, voltado a assegurar estabilidade social.  A este também se aplicam a lógica e os paradigmas propostos pela Teoria dos Sistemas Dinâmicos. Vale dizer, a responsabilidade civil é muito mais que um conjunto de elementos e teorias estáticas. Apesar de muitas vezes ser descrita como um sistema, raramente ela é examinada como tal. A maioria das teorias busca explicar a legislação, a estrutura e as funções da responsabilidade civil, mas não suas dinâmicas internas. Alan Calnan, debruçando-se sobre os "torts" do common law sustenta serem eles uma estrutura de alocação dos prejuízos derivados de um encontro social em que alguém sofre danos. Eles servem para articular a coerência do sistema onde coexistem posições adversariais. Desse ponto de vista o sistema do tort é mais que a legislação de regência, é um perpétuo processo para coordenar e reconciliar conflitos em diferentes níveis, marcado por prévios aportes teóricos, doutrinas e práticas, que se ajustam para absorver novos influxos que redirecionam a adequada alocação de prejuízos. A responsabilidade civil também opera como um sistema complexo e holístico, como uma rede elementos, coerentemente organizados e interligados a outros sistemas visando alcançar um objetivo, que, basicamente é perpetuar sua própria existência. Os elementos do sistema, se considerados isoladamente podem chocar-se entre si ou com os objetivos do sistema. Como são suas partes integrantes, o sistema precisa adaptar-se ou reinventar-se para manter-se. Isso explica a volatilidade dos sistemas que constantemente estão a organizar as suas desordens intrínsecas, com base em princípios universais como complementaridade dos opostos. Segundo Alan Calnan, o tort, e analogamente, a nosso ver, a responsabilidade civil, não é somente uma construção jurídica, mas um sistema natural complexo, interligado e coordenado com outros sistemas, voltado a assegurar o bem-estar humano em sociedade. O sistema conecta-se com outros que lhe são perimetrias e relacionados aos poderes públicos que limitam o sistema de tort. O poder executivo impõe comandos e punições, o legislativo cria normas e convenções relacionadas ao tort e o judiciário interpreta e operacionaliza os princípios que asseguram o funcionamento do sistema. Do ponto de vista interno, o sistema de tort não é monolítico, mas abriga três subsistemas: no centro um sistema de resolução de conflitos ao qual os particulares acorrem para resolver suas disputas; ele é envolto por um sistema judiciário mais amplo que baseia-se em normas e precedentes para regular o caso concreto e traçar parâmetros para futuros casos semelhantes; este sistema público, por sua vez está inserido em um sistema sociocultural de valores, que informa e limita as camadas inferiores. Para entender como o sistema opera, é preciso examinar cada uma destas instâncias. Danos resultam de um infortunado encontro entre particulares, causando incômodo a ambos porque surgem interesses contrários, egoístas e conflitantes. Estas partes buscam o auxílio de advogados. Estes terceiros, por sua vez, passam a conduzir as ações das partes e escalam a questão a nível estatal, no poder judiciário. Este exerce duas funções, a de fornecer as regras básicas para disputa e a de prover premissas legais para orientar a resolução do conflito. O estado não aplica estas regras dogmaticamente, mas empodera os juízes para sintetizar, interpretar e adequar ditos preceitos ao caso concreto. Tudo é contido e coordenado por um ritual restaurativo: quando é feita a narrativa do caso diante do julgador, há uma abertura para o aspecto emocinal, enraizado nos valores sociais. Esta permeabilidade aos aspectos morais da narrativa faz com que muitas vezes haja uma acomodação sistemática pelo temperamento dos argumentos jurídicos por valores sociais. O sistema de resolução de conflitos entre particulares na responsabilidade civil também influencia o sistema estatal de criação do direito porque recebe os sinais das patologias sociais. Os julgadores devem aplicar as regras e precedentes necessários à solução do problema eventualmente coordenando-os com julgados anteriores que lhe são contrários para modular o sistema em si. Assim o sistema de criação de regras e o de resolução de conflitos se retroalimentam reciprocamente de forma a ligá-los aos valores culturais que os circundam. A dinâmica descrita acima não é peculiar ao sistema de responsabilidade civil, mas também se observa em outros campos do direito. O que distingue o sistema de responsabilidade civil dos demais são suas regras, teorias e princípios que definem as situações em que se pode alocar a responsabilidade por danos em esfera jurídica distinta daquela em que ele se operou. As regras de responsabilidade civil, que visam recompensar comportamentos benéficos e punir ou reprimir condutas que causem danos a outrem, são inspiradas em valores de cooperação, cuidado, lealdade e integridade. Para proteger e assegurar a liberdade as normas criam estes elementos antagônicos, mas interconectados e coexistentes, que asseguram as liberdades mútuas. Ocorre que quando surgem confrontos entre as partes, o julgador precisa reconciliar direitos e deveres sopesando-os e coordenando-os. A natureza adversarial da responsabilidade civil não expõe sua verdadeira identidade. Porque a responsabilidade por danos pode ser imputada a outrem com base em diferentes teorias que se distinguem com base no nexo de imputação por dolo, por culpa ou por comandos normativos que estabelecem casos de responsabilidade objetiva, doutrinadores, advogados e julgadores consideram que estas teorias a definem. Todavia, conforme Alan Calnam, os torts, e, novamente por analogia, a responsabilidade civil, se fundam em verdades mais profundas. Cada uma das formas de responsabilização se conecta com um componente distinto da moralidade humana. Malfeitos intencionais são instantaneamente reprovados, com fulcro nos valores fundamentais da humanidade que rechaçam atitudes que firam, ofendam, logrem ou degradem o outro. Atos negligentes são diferentes porque não intentam lesar ou ferir a autonomia e dignidade dos outros, por isso podem ensejar reações menos gravosas. Isto contempla um senso binário de moralidade, pois, como a mera negligência não induz uma resposta intuitiva negativa, atribui-se uma discricionariedade maior ao julgador para definir suas consequências. Com base em standarts sociais de razoabilidade ele promove a harmonia do sistema reforçando seu aspecto solidário. Por fim, a razão de ser da responsabilização objetiva não é tão óbvia ou uniforme. Nem sempre ela recai sobre o autor da conduta e nem sempre deriva de uma conduta reprovável. Às vezes surge apenas para regular um desequilíbrio de forças, como nas relações consumeristas. Em geral, a responsabilidade objetiva se funda em razões políticas que investigam as fissuras do sistema e submetem-nas a um escrutínio diverso daquele que moralmente sustenta as demais formas de atribuição de responsabilidade, criando novos padrões para a solução de conflitos. O problema que se coloca é que, geralmente, estas três bases de imputação foram transformadas em uma trilogia classificatória estanque que encerra a explicação do sistema cível de responsabilização na análise de seus próprios elementos, roubando-lhe as bases que o conectam com a sociedade e as pessoas que a compõem. São vistas como categorias rígidas e estáveis, ignorando as sinergias que podem abalá-las e ensejar mudanças. Como a responsabilidade civil é um sistema de sistemas, seus contornos são indefinidos. As formas de responsabilidade baseadas nos diversos nexos de imputação são partes operantes de um mesmo sistema cujo objetivo, segundo Calnan, não é a justiça corretiva, a justiça distributiva, a geração de precedentes ou a eficiência econômica. É antes a dinâmica de coordenação de conflitos pessoais, políticos, legais, sociais e até morais que lhe são subjacentes no decorrer do tempo, implicando a altercação de padrões de atividade quando for necessário reconciliá-los para garantir manutenção da integridade do sistema. Não há conclusão para estas reflexões. O objetivo foi lançar luzes à premente demanda por um olhar interdisciplinar e sistêmico para a responsabilidade civil, inegrando-a à percepção que vem graçando nas ciências físicas, biológicas e sociais, de que nada se explica somente por teorias abstratas e atomistas fulcradas na análise isolada de elementos intrínsecos. Neste afã, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos é uma lente de grande valia porque parte de premissas como a complexidade, abertura e conservação dos sistemas para reconhecer padrões de interação e mudança que obedecem a regras universais como, por exemplo, é preciso complexificar para simplificar; pequenas alterações podem acarretar grandes mudanças na estrutura e na dinâmica dos sistemas, para o bem ou para o mal; sistemas complexos tendem a mover-se em direção à coerência e integração; e intervenções em sistemas complexos quase sempre resultam em consequências não previstas e indesejadas. Em ambientes acadêmicos e profissionais, entender e abordar as questões a partir de uma perspectiva sistêmica é uma habilidade essencial. Quiçá este pequeno escrito possa instigar melhores resultados na necessária empreita de evoluir na autêntica análise sistêmica do direito, em especial da responsabilidade civil. De novo resoamos Alan Calnan que leciona que apesar de as disposições legais poderem ser únicas e diversificadas, continuam a ser um produto previsível da dinâmica do sistema. As regras escalam de níveis mais baixos para níveis mais altos, deixando a sua impressão em cada camada do sistema, em seus subsistemas e em sistemas periféricos, informando-os e alterando-os ao mesmo tempo em que o próprio sistema é informado e alterado. Assim como as nossas leis homeostáticas moldam as nossas instituições jurídicas, as nossas instituições jurídicas afetam os nossos valores culturais, as nossas normas sociais e até o que ele chama de nosso instinto biológico de legalidade. ___________ Referências Bibliográficas: Calnan, Alan (2019). Tort as Systems. Southern California Interdisciplinary Law Journal, Vol. 28. Calnan, Alan (2020). Holistic Tort Theory. Southern California Law Review, Vol. 49. Coleman, P. T. (2021). The way out: How to overcome toxic polarization. New York: Columbia University Press. Coleman, P. T., Redding, N., & Fisher, J. (2017). Understanding Intractable Conflict. In A. Schneider & C. Honeyman (Eds.), The Negotiator's Desk Reference. Chicago: American Bar Association Books. Lee, Orlan Systems Dynamics in the Law: A Comparative Approach to Certainty in the Common Law and Reviewability of Past Decisions (2004). Oxford University Comparative Law Forum 5 at ouclf.law.ox.ac.uk  Meadows, Donella. Thinking in Systems - A Primer (2008). London: Earthscan. Nicolis, G & Prigogine, I. Exploring Complexity (1989). New York: Freeman.       
O Tribunal de Contas da União (TCU) é o órgão de controle externo do governo federal, auxiliar do Congresso Nacional na sua competência constitucional de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país e que, principalmente a partir do novo desenho institucional traçado na Constituição Federal de 1988, busca contribuir com o aperfeiçoamento da Administração Pública em benefício da sociedade. Dentro dessas competências delineadas pelo artigo 71 da Constituição, o TCU configura-se como o ente federal responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos e entidades públicas do país quanto à legalidade, legitimidade e economicidade. Considerando essas missões e parâmetros de controle, a Constituição definiu amplo rol de competências ao Tribunal de Contas, incluindo, por exemplo, a apreciação das contas anuais do presidente da República a partir de parecer prévio (CF 71, I); realizar inspeções e auditorias por iniciativa própria ou por solicitação do Congresso Nacional (CF 71, IV), fiscalizar a aplicação de recursos da União repassados aos outros entes federativos (CF 71, VI) e apurar denúncias e representações sobre irregularidades ou ilegalidades na aplicação de recursos federais (CF 74, §2º). Porém, para o que é importante para este espaço, há de se ressaltar a competência de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos (CF 71, II). Para essa missão constitucional, o Tribunal de Contas da União assume sua condição de ente quase judicante para verificar a legalidade, regularidade e economicidade dos atos dos gestores ou responsáveis pela guarda e emprego dos recursos públicos. Em outras palavras, trata-se da apuração da responsabilidade civil dos gestores públicos e equiparados que tenham causado dano ao Erário Federal. Para tanto, o Tribunal de Contas da União utiliza procedimento administrativo próprio, a Tomada de Contas Especial. Trata-se de processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar a responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal, com apuração de fatos, quantificação do dano, identificação dos responsáveis e para a obtenção do respectivo ressarcimento (art. 2º, caput, da IN/TCU 71/2012). Fica claro pela própria definição normativa do TCU, portanto, que a Tomada de Contas Especial é procedimento administrativo que visa a apurar os elementos da Responsabilidade Civil relativa a danos sofridos pelo Erário. Reforçando essa definição, tem-se excerto do Acórdão nº 2367/2015-Plenário, de relator do Min. Benjamin Zymler, que aponta que "No processo de Tomada de Contas Especial os elementos exigidos para a caracterização da responsabilidade civil subjetiva se referem à existência de conduta culposa ou dolosa do agente, de dano ao erário e de nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Existindo tais pressupostos, há o dever de indenizar". E aqui é importante ressalvar que se trata de competência de apuração de responsabilidade civil exclusivamente contra a administração pública, já que, em regra, o Tribunal de Contas da União não trata de questões de direito privado. Isso se deve muito a uma visão do TCU como um "guardião" do interesse público. Assim, por exemplo, o próprio Tribunal de Contas reconhece não haver competência para sua atuação em certas representações em licitações quando a correção da ilicitude não resultaria em benefício ao Erário e também em denúncias contra nova interpretação de normativos que restringiu a concessão de gratificações, em que se reconheceu que não haveria dano ao Erário, mas apenas aos interesses privados individuais de cada servidor com o direito restringido. Igualmente, ressalva-se que não se trata de apuração de responsabilidade civil do Estado, mas sim de jurisdição administrativa sobre gestores públicos e terceiros que guardam relação com a Administração Pública. Assim, trata-se de uma via de mão única, em que não se responsabilizará o Estado. De todo modo, não se pode descuidar que uma atenta atuação dos Tribunais de Contas, por representações e auditorias, vem muito a acrescentar em posterior responsabilização do Estado, a partir de compartilhamento dos resultados obtidos com demais órgãos de controle, como o Ministério Público e as advocacias públicas, ou mesmo com particulares lesados pelo Estado, como foi o que ocorreu, por exemplo, com a Petrobras no caso da Lava Jato1. A partir da breve exposição da competência constitucional do Tribunal de Contas e de seu procedimento para apuração de responsabilidade civil contra o Estado, passa-se a discorrer sobre determinados temas abordados recentemente pelo Tribunal de Contas da União. O primeiro é o fato de o Tribunal de Contas da União não reconhecer competência para "tomar contas" pelo mero descumprimento contratual. Assim, a tomada de contas pelo TCU se dá apenas a partir da ocorrência de dano por descumprimento extracontratual. Faz isso por entender que os órgãos da Administração devem possuir estrutura e mecanismos contratuais próprios para responsabilizar contratados pelos danos que incorreram a partir da inobservância de contratos administrativos. Mas, daí, advém uma questão acessória: qual seria o "parâmetro de controle" adequado para se apurar essa responsabilidade civil extracontratual? O Tribunal de Contas somente poderia responsabilizar os gestores públicos e equiparados por danos causados em infringência à lei ou também por descumprimento de normas infralegais? É o Tribunal de Contas competente para apurar responsabilidade civil extracontratual a partir de violação de princípios da Administração Pública, ainda que não haja um descumprimento direto de norma legal? Ainda, seria cabível a responsabilização daquele que deixou de seguir recomendações e boas práticas acolhidas pelo Tribunal como parâmetro de controle? Essas são algumas questões que permanecem sem resposta firma da jurisprudência do TCU, por exemplo. Também há interesse em verificar como o Tribunal de Contas da União trata de questões relativas aos elementos da Responsabilidade Civil. Aqui, quanto a culpa do agente, houve recente alteração legal que impacta a atividade do TCU em matéria de tomadas de contas especiais. Trata-se da inclusão do artigo 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina pressupostos à responsabilidade pessoal dos agentes públicos2. Diz o mencionado artigo 28 que "O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas sem caso de dolo ou erro grosseiro". Daí vem a dúvida: o que constituiria o erro grosseiro? Seria o erro grosseiro equivalente à culpa grave? Para equacionar essa e outras questões é que se publicou o Decreto nº 9.830/2019, regulamentador da "nova" LINDB. Lá, é expresso que "Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia". Ou seja, a culpa que possibilita a responsabilidade civil dos gestores públicos ou equiparados é uma culpa qualificada, grave e inescusável, distinguindo-se dos parâmetros comuns de responsabilização amparados pelo Código Civil. Todavia, a esse requisito de responsabilização do erro grosseiro, da culpa grave e inescusável, se contrapõem posicionamentos do Tribunal de Contas da União de culpa presumida, que se aproxima até de responsabilidade objetiva. Trata-se, por exemplo, do dever de prestar contas, cuja inobservância leva a, além do ressarcimento referente às contas não prestadas, à inelegibilidade do gestor que faltou com o dever. Também, em sentido similar, o fato de dispositivo ainda vigente do decreto-lei 200/67 dispor que, quanto à prestação de contas, o ônus da prova cabe ao gestor público, e não ao ente que apura a responsabilidade civil. Exemplificativamente, tem-se o Acórdão 2750/2020-Plenário, de relatoria do Min. Benjamin Zymler, o qual dispôs que "A culpa dos gestores por atos irregulares que causem prejuízo ao erário é legalmente presumida, ainda que não se configure ação ou omissão dolosa, admitida prova em contrário, a cargo do gestor". Quanto ao nexo de causalidade, é importante indicar recente posicionamento do Plenário do TCU quanto à definição da teoria da causalidade adotada. Apesar de, em algumas circunstância, o Tribunal entender pela aplicação da teoria da causalidade adequada, parece ter prosperado a adoção da teoria do dano direto e imediato (teoria da interrupção do nexo causal), segundo qual "nos casos em que o dano decorre de um conjunto de causas, não se podendo apontar uma única causa para a sua ocorrência, deve-se, para estabelecer o nexo causal, verificar se a conduta possui relação direta e imediata com o dano bem como se ela foi decisiva e necessária para sua ocorrência" (Acórdão nº 9671/2020-2ª Câmara, bastante representativo da discussão). Por fim, apresenta-se duas questões de interesse referentes ao dano, especificamente quanto à certeza dele. A primeira é a possibilidade normativa de o Tribunal de Contas, quando quantificar o dano, fazê-lo por verificação ou por estimativa (IN TCU nº 71/2012, art. 8º). A quantificação por verificação é aquela que se realiza quando é possível quantificar com exatidão o real valor devido. Por sua vez, a quantificação por estimativa é aquela que, por meios confiáveis, apura-se quantia que seguramente não excederia o real valor devido. A quantificação por estimativa é ponto controverso, até pela dificuldade em se comprovar que o valor apurado não excederia o real valor devido, e que vem sendo utilizado como metodologia de cálculo de dano em casos de cartel, principalmente nas apurações derivadas a Lava Jato3. A segunda questão trata de discussão prontamente afastada pelo Plenário do TCU sobre a possibilidade de reparação de "dano moral da Administração Pública". Aqui, o Tribunal entendeu que não seria competente para tal apuração e que, igualmente, não teria os instrumentos adequados para a apuração desse eventual dano moral. Encerrada a exposição, aproveita-se para indicar que o abordado acima trata-se muito mais de um mapeamento de pontos de interesse e de interseção no estudo da Responsabilidade Civil e da atividade dos Tribunais de Contas o que um estudo sobre cada uma dessas questões. Por se tratar de campo amplo, fica o convite para o seu desbravamento. *Gilberto M. Calasans Gomes é mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Especialista pela FESMPDFT. Bacharel em Direito pela UnB. Sócio de Piquet, Magaldi e Guedes Advogados. __________ 1 Efeito nos EUA de decisões do TCU preocupa Petrobras, diz ministro. 2 Alteração na LINDB e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. 3 TCU inova e muda metodologia de cálculo de dano em casos de cartel.
Introdução O presente texto, longe de esgotar tema tão rico que é a ação civil ex delicto, está dividido da seguinte forma: 1) anotações iniciais sobre a legislação que rege o tema, e; 2) diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto. Dentro dos diálogos multidisciplinares, serão abordadas as seguintes questões: a) Prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível, e; b) a duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. I. Anotações iniciais sobre a legislação que rege o tema Analisemos, inicialmente, as disposições legais existentes no Código de Processo Penal. De acordo com o art. 63, do Código de Processo Penal, transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo preleciona que, transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV, do caput do art. 387 do CPP, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.               Dando sequência, enquanto o art. 64, do CPP disciplina que, sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil, destacando o respectivo parágrafo único que, intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela. A leitura dos arts. 65 e 66, do CPP, nos permite conclusões preliminares interessantes sobre o tema. Enquanto o art. 65 dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, o disposto no art. 66, do mesmo código faz uma importante ressalva no sentido de que, não obstante a prolação de sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato. Em linha com o que foi dito nos artigos de lei anteriormente citados, o art. 67, do CPP, dispõe que não impedirão igualmente a propositura da ação civil o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação, a decisão que julgar extinta a punibilidade ou a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime. Encerrando a análise legislativa (e inicial) do CPP, o art. 68 estabelece que, quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2º, do CPP), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público. Além de dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro, importante para fins de situar o leitor no tempo e espaço envolvendo o tema destacar, no que tange o Código Civil Brasileiro, que os fundamentos dessa pretensão, chamada de ação de reparação civil ex delicto, encontram-se no Código Civil, mais especificamente, nos arts. 186 e 927, do Código Civil1. II. Diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto a) Prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível ?Ao julgar o Recurso Especial 1.802.170/SP, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que a prescrição da ação penal não afasta o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória por meio de ação civil ex delicto. O referido recurso especial, não provido pelo STJ, questionava acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o qual decidiu ser possível a tramitação de ação civil com pedido de indenização por danos morais e materiais causados a uma vítima de lesão corporal grave, mesmo tendo sido reconhecida a prescrição no juízo criminal. Segundo consta dos autos, a vítima sofreu agressões físicas em 2004. Em 2010, o agredido ajuizou a ação civil ex delicto contra seus agressores. Em 2014, porém, após sentença penal condenatória por lesão corporal grave, a pena dos réus foi extinta em virtude da chamada prescrição da pretensão punitiva retroativa. Antes de dar prosseguimento ao exame do acórdão, importante explicar no que consiste referida modalidade de prescrição. A prescrição da pretensão punitiva retroativa levará em conta a pena em concreto, assim como a prescrição da pretensão punitiva superveniente. A análise da ocorrência (ou não) da prescrição, neste caso, ocorre a partir do trânsito em julgado para a acusação, devendo o julgador olhar para trás, ou seja, a prescrição retroativa deverá se voltar a partir da data da publicação da sentença ou acórdão condenatório até a data do recebimento da denúncia ou queixa. Se, entre a data do recebimento da denúncia e a data da publicação da sentença ou acórdão condenatório, tiver passado lapso temporal superior ao prazo prescricional previsto para a pena fixada, nos moldes dos índices existentes no art. 109, do Código Penal Brasileiro, então terá ocorrido a prescrição da pretensão punitiva retroativa. Voltando ao exame do precedente julgado pelo STJ, os supostos agressores alegaram que a ação indenizatória apenas poderia ter sido ajuizada se houvesse condenação criminal transitada em julgado, ou seja, argumentaram que o trânsito em julgado da condenação criminal configuraria pressuposto para o ajuizamento da demanda cível. Além disso, os recorrentes sustentaram que a pretensão de reparação por danos morais estaria prescrita. Ainda que o Direito, em abstrato, seja considerado uno, o legislador pode fazer, como o faz no direito brasileiro, distinções relacionadas às mais diversas áreas existentes, em especial, no que deve ser considerado, respectivamente, ato ilícito e eventuais prazos para as persecuções processuais deles derivados. O grande problema não está neste ponto e sim em fragmentar os fatos da vida social, dando ensejo, não raras vezes, à sensação de injustiça por parte dos réus que se veem diante de mais de uma contenda judicial para resolver problemas relacionados a um fato único de suas vidas. Dando sequência ao exame do que foi decidido pelo STJ, o recurso especial então interposto não foi provido, tendo prevalecido o fundamento apresentado pela Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, no sentido de que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". De acordo com a relatora, a independência relativa existente entre as áreas penal e cível legitimariam a conclusão de que, quem pretende pedir ressarcimento por danos sofridos com a prática de um delito pode escolher ajuizar ação cível de indenização ou aguardar o desfecho da ação penal, para, então, liquidar ou executar o título judicial eventualmente constituído pela sentença penal condenatória transitada em julgado. O raciocínio acima permitiu, ainda, a conclusão de que a pretensão da ação civil ex delicto "se vincula à ocorrência de um fato delituoso que causou danos, ainda que tal fato e sua autoria não tenham sido definitivamente apurados no juízo criminal". Fazendo uma análise conjunta entre o Código Penal Brasileiro de 1940 e o Código Civil Brasileiro de 2002, a Ministra Nancy Andrighi destacou que o segundo diploma, mais especificamente em seu art. 200, dispõe que, quando a ação civil se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva. Nesse sentido, embora a ação de conhecimento possa ser ajuizada a partir do momento em que nasce a pretensão do ofendido, o prazo de prescrição da pretensão reparatória se suspende enquanto o mesmo fato começa a ser apurado na esfera criminal. Daí em diante, o ofendido passa a ter também a opção de liquidar ou executar eventual sentença penal condenatória. Ao negar provimento ao recurso especial, por unanimidade, a turma observou que a pretensão da vítima da agressão não era de liquidação ou execução da sentença penal transitada em julgado, consistindo tal na reparação dos danos que lhe foram causados pelos agressores, valendo-se, para ajuizar a ação civil ex delicto, apenas do fato de terem sido condenados em primeira instância. b) a duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Na segunda parte do texto será examinado o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Reclamação nº 41.557/SP. Na referida reclamação, a Corte Constitucional Brasileira analisou a legitimidade do deferimento de petição inicial e de medida cautelar em sede de ação civil pública, que encontra lastro no mesmo acervo fático-probatório de processo penal trancado por ilicitude de provas e demonstração de negativa de autoria. Para responder a essa questão, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes destacou quatro questões a serem respondidas, a saber: a) É legítimo o cotejo de panoramas fático-probatórios de procedimentos distintos para fins de verificação de afronta à autoridade de decisão do Supremo em sede de reclamação? b) O acervo fático-probatório utilizado como substrato empírico para fundamentar o deferimento da petição inicial e da cautelar na ação civil pública 5008470-45.2020.4.03.6100 (ação civil de improbidade administrativa) se identifica com o material que ancorou o processo penal trancado pelo STF no HC 158.319/SP? c) A demonstração de negativa de autoria foi uma das razões determinantes para o trancamento do processo penal pelo STF? d) Em que medida o bis in idem - aqui compreendido como a duplicação do mesmo panorama fático-probatório como substrato empírico fundante em esferas sancionadoras distintas - é vedado na relação que se coloca entre direito penal e direito administrativo sancionador? Em relação ao primeiro questionamento, após destacar a função do instituto da reclamação constitucional, a qual serve para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal, garantindo a autoridade de suas decisões, bem como o desenvolvimento histórico ocorrido desde a sua implementação até os dias atuais, foi explicado que deve ser aferido, a título de filtro, a existência de liame temático material entre as decisões reclamada e precedente, respectivamente. No caso julgado, o liame temático foi demonstrado a partir das seguintes constatações: 1) ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema penal, e; 2) Diante da existência de dois procedimentos distintos, respondidos pelo mesmo sujeito e aparentemente sobre os mesmos fatos, em que o primeiro procedimento é arquivado pelo Supremo - no caso do processo trancado -, é legítimo o escrutínio da Corte, em sede de reclamação, acerca da viabilidade2 do trâmite do segundo procedimento. Respondendo positivamente ao segundo questionamento, o STF concluiu que existe não só identidade do acervo fático-probatório referido nos procedimentos, mas também "franca duplicação da narrativa, por vezes utilizando as mesmas palavras". Em relação ao terceiro tópico, o Supremo Tribunal Federal, revisitando o caso paradigma, consistente no HC nº 158.319/SP, writ o qual determinou a investigação criminal sobre os mesmos fatos, concluiu que, para além de dúvidas razoáveis naquela ocasião, o inquérito foi arquivado diante da realização de um juízo definitivo do STF quanto à não autoria ou participação por parte do então reclamante de qualquer conduta típica. No tocante ao quarto questionamento, desde 1902, em  Das Verwaltungsstrafrecht, escrito por Goldschmidt, a doutrina como um todo debate a diferenciação formal e material entre o ilícito penal e o ilícito administrativo. Preliminarmente quanto a questão, foram destacados os dois pontos importantes no que diz respeito à limitação do jus puniendi estatal, a saber: (1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador. Sobre a coexistência (e interação) das searas administrativa e penal, desde o caso Oztürk, em 1984, julgado perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), é possível verificar a utilização de um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um "autêntico subsistema" da ordem jurídico-penal. Diante dessa correlação, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam (e ainda bem) para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, 2012. p. 128). No bojo desse diálogo interdisciplinar, constituindo balizas hermenêuticas, as garantias que seriam transpostas para o direito administrativo sancionador, de acordo com a referida doutrina, seriam a legalidade, a proporcionalidade, a presunção de inocência e o ne bis in idem. Não apenas esses standards hermenêuticos, mas também os princípios constitucionais que regem o sistema penal como a proporcionalidade, a subsidiariedade e a necessidade devem ser levados em conta. Não apenas a partir do aludido precedente do TEDH, mas a própria Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em seu art. 4º, permite a conclusão de que a ideia da dupla punição ofende garantias individuais já consolidadas no âmbito internacional3. Nesse sentido, a independência de instâncias esculpida no art. 37, §4º, da CF/88 deve ser interpretada de forma a ser compatibilizada com tais balizas hermenêuticas, in casu, com o ne bis in idem. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve ser revista pelo subsistema do direito penal - este é ponto da independência mitigada. A própria legislação infraconstitucional (art. 935, do Código Civil de 2002) estabelece a mitigação dessa autonomia envolvendo as searas cível e penal. Sobre a correlação especifica entre as esferas penal e cível, Pacelli (2017, p. 200) destaca que "uma vez reconhecido na decisão absolutória (...) a prova de não ter o réu praticado a infração, parece-nos irrecusável que a instância civil haverá de se submeter ao referido conteúdo decisório, impedindo-se qualquer tentativa de responsabilização civil pelo fato". Nota-se que o julgado analisado, concordando por maioria com o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, concluiu acertadamente que "se a fixação de uma tese de negativa de autoria impede a ação civil de indenização, mais ainda obstaculiza a ação civil de improbidade". Vejam que, à luz do que foi defendido pela pesquisadora Helena Lobo da Costa (2013), enxergar a independência entre as instâncias (penal, administrativa e cível) configura equívoco metodológico, cujos efeitos práticos são graves. Conclusões Longe, repita-se, de esgotar tema instigante como a ação civil ex delicto, o percurso seguido até aqui, consistente no exame da legislação que rege a matéria e nos diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto, com destaque para a prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível, bem como na duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, permitiu duas conclusões. A primeira conclusão possível, relativa ao Recurso Especial 1.802.170/SP, foi no sentido de que a prescrição da ação penal não afasta o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória por meio de ação civil ex delicto, julgado no qual a independência das instâncias prevaleceu. A segunda conclusão, em relação à Reclamação 41.557/SP, foi a de que a fixação de uma tese de negativa de autoria impede tanto a ação civil de indenização como a ação civil de improbidade, devendo a independência das instâncias ser relativizada, não apenas a partir de uma leitura internacional do tema, mas sobretudo, com base em uma leitura constitucional do tema.  *Víctor Minervino Quintiere é Doutorando em Direito pelo IDP. Advogado criminalista. Sócio do escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados. Professor de Direito Penal do programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de Brasília-UniCEUB. ____________  1 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 2 Viabilidade, aqui, representando a existência comprovada de fatos novos, que apontem para um acervo probatório independente com relação ao primeiro procedimento. 3 Sobre o tema, vide: SILVEIRA, Paulo Burnier. O deito administrativo sancionador e princípio non bis in idem na União Europeia, 2014; VENTORUZZO, M. Abusi di mercato, sanzioni Consob e diritti umani: il caso Grande Stevens e altri c. Italia, 2014. ____________  BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 16.nov.2021 BRASIL. Código de Processo Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 16.nov.2021. BRASIL. STJ. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.802.170/SP. Min. Relatora: Nancy Andrigi. Publicação no DJe em: 26/02/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=resp+1.802.170&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO. Acesso em: 18.nov.2021. BRASIL. STF. Reclamação Constitucional nº 41.557/SP. Segunda Turma. Min. Relator: Gilmar Ferreira Mendes. Julgado na sessão virtual de 4/12/2020 à 14/12/2020. Publicação no DJe em: 10/03/2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5934358. Acesso em: 18.nov.2021. LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013. OLIVEIRA, Ana Carolina. 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