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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Réquiem para os vícios ocultos

No campo das trocas econômicas, a qualidade do bem que se adquire é tema central. O direito contratual, buscando formalizar e proporcionar segurança aos negócios, toma em consideração ferramentas diversas para regular esse tema. De modo simples e intuitivo, cabe aos contratantes negociarem e ajustarem a qualidade do bem que transacionam. Nos contratos escritos, é de se esperar que as partes estipulem cláusulas a este respeito, para assegurar que o bem terá as qualidades e utilidades esperadas. Se houver descumprimento, cabe ao credor resolver o contrato ou exigir cumprimento específico. Nas trocas cotidianas, em que o comprador pode avaliar o produto, isto é feito com avaliação das características externas e experimentação. Na busca de produtos de boa qualidade, o comprador escolhe as frutas no mercado. Há, entretanto, estratégias econômicas mais sofisticadas a embasar este simples ato de escolha, com a construção de símbolos de qualidade, que se expressam por marcas, denominações de origem controlada, adoção de normas técnico-profissionais, dentre outros. Isto é bastante perceptível, por exemplo, na compra de produtos orgânicos, pois, quanto a eles, sua qualidade mais relevante - a de estar livre de agrotóxicos - não pode ser constatada visivelmente. Por isso, a produção desses produtos segue normas técnicas e ordinariamente é assinalada por símbolos próprios. Quando não há negociação expressa da qualidade, as soluções que os ordenamentos jurídicos podem apresentar para este dilema variam entre dois extremos: o caveat emptor e o caveat venditor. Historicamente, a venda surgiu sobre a premissa do caveat emptor, vale dizer, cabia ao comprador precaver-se quanto à qualidade do produto. Isso porque tratava-se de contrato em que o alienante cumpria sua obrigação ao entregar coisa certa, que, sob exame do comprador, tem sua qualidade testada. Aceito o produto, a obrigação do vendedor estava extinta, salvo prova de dolo. Tratava-se, naturalmente, de uma regulação jurídica primitiva, que não poderia dar conta de maior complexidade. Há certos tipos de bens cuja qualidade só se conhece com o uso ou longo tempo após a contratação1. Nessas situações, o tema da qualidade é muito mais delicado, porque ela só pode ser aferida quando a contratação já está há muito terminada e quando o uso recorrente já desgasta a coisa. Sem regular o problema dos bens de experiência, o direito romano clássico evoluiu. O mais tradicional remédio para este tema surge por obra dos pretores comerciais, para regular a compra de escravos e animais2. Em seus editos, os pretores permitiam que, após a venda e constatação da qualidade do produto pelos compradores, pudesse haver o desfazimento do contrato de compra caso fossem constatados vícios ocultos ou, alternativamente, para que pudesse haver abatimento no preço. A responsabilidade por vícios ocultos, diferentemente do que ocorria no regime contratual básico, não exige culpa ou dolo do vendedor. O regime dos vícios ocultos foi aprimorado ao longo dos séculos para especificar no que consistem e em que prazo devem ser descobertos. De todo o modo, o que temos é uma dicotomia entre a responsabilidade por inadimplemento (que hoje, na responsabilidade contratual se dá ordinariamente com culpa presumida) e o regime de garantia por vícios da coisa, que se dá independentemente da culpa. Caso a qualidade tenha sido negociada e descumprida, cabe ao credor exigir o cumprimento específico da obrigação ou, por outro lado, resolver o contrato e haver perdas e danos. Como sua opção não está sujeita a prazo, as duas opções podem ser exercidas no prazo prescricional de 10 (dez) anos. Caso a falta de qualidade se conforme na hipótese de um vício oculto, aplica-se o art. 445, do Código Civil. Vale dizer, o adquirente pode optar por dois remédios (i) desfazer ou redibir o negócio; ou (ii) obter abatimento do preço. De todo modo, sua opção deve ser exercida no prazo de 30 dias se a coisa for móvel, e de 1 ano se for imóvel. E, "quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis" (art. 445, §1º, CC). Feitas essas observações e no intuito de refinar o quadro teórico até aqui apresentado, é importante observar que os vícios do produto são tradicionalmente considerados problemas intrínsecos às coisas, que, com ela se manifestam. No campo da edificação, temos exemplificativamente as paredes que vêm a ruir, total o parcialmente, a piscina que infiltra, dentre outros. Vale dizer, portanto, que o tema da qualidade estava cercado pela negociação expressa das partes e pelo regime dos vícios intrínsecos. Entretanto, há problemas de qualidade relacionados não à coisa em si, mas ao que dela esperamos. Nesse campo, temos o encanamento de água que apresenta baixa pressão, o esgotamento que não permite rápida vazão, o revestimento de paredes que rapidamente não resiste as intempéries. Havia alguma dificuldade de enquadrar essas situações como vícios da coisa, porque são coisas hígidas, porém de baixa qualidade. A baixa qualidade é problema que ordinariamente resolve-se por normas técnicas e por regulação. Entretanto, nem todos os bens comercializados estão sob produção regulamentada. Para superar esse problema, no direito brasileiro, a partir de 2002, acrescentou-se um terceiro regime ao tema das qualidades. Diz-se que, não por força da vontade nem das garantias por vício oculto, mas daquilo que se considera boa-fé objetiva, ou seja, a legítima expectativa, certos bens devem gozar de qualidade razoável ou legitimamente esperada, conforme aquilo que o juiz perceba existir no meio social. Como se percebe, portanto, em cada situação concreta, as partes podem litigar sobre a qualidade em fundamentos estritamente contratuais, do que foi negociado efetivamente, com base no conceito de vício oculto ou com base na noção de boa-fé objetiva. Com isso, percebe-se aqui a concorrência de diversas situações que ensejam dificuldades de enquadramento legal, mas que, a depender da solução, redundam em soluções práticas drasticamente diferentes. As partes precisam saber se estão diante de um contrato de compra e venda, precisam saber se se aplica o regime do Código Civil ou do Código de Defesa do Consumidor e, definido isto, precisamos enquadrar a situação como problema de inadimplemento, vício oculto ou de conformidade com a boa-fé objetiva. Estando claro que existem diversos enquadramentos jurídicos possíveis para a falta de qualidade dos bens comercializados, é necessário avançar um pouco mais nesta análise e, então, destacar que há certa indeterminação nessas categorias, de modo que as partes, com alguma facilidade, podem razoavelmente escolher sobre qual fundamento haverão de litigar. Isso porque a diferença entre uma bem que contém vícios intrínsecos evidentemente não atende à legítima expectativa do adquirente. Se é assim, naturalmente irão escolher o caminho que lhe pareça mais favorável ou, ao menos, menos penoso. Nesta escolha, a questão do prazo exerce um papel crucial. Como o inadimplemento contratual e a boa-fé objetiva permitem o ajuizamento de ações indenizatórias em 10 anos, a existência desses amplos prazos representa um incentivo para que o adquirente se valha desta opção, escapando dos curtos prazos decadenciais que marcam as ações atreladas aos vícios redibitórios. Vale dizer, com certa facilidade de enquadrar um problema qualquer como vício oculto ou como violação da qualidade legitimamente esperada, o adquirente optará pelo último caminho. As partes adquirentes utilizam o incentivo legal para as pretensões indenizatórias em seu favor. Vale dizer, quando ajuízam suas ações, enquadram os problemas de qualidade essencialmente como inadimplemento ou de violação à boa-fé objetiva. A jurisprudência valoriza esta solução, ao deixar o prazo decadencial adstrito à redibição, e não ao direito protestativo de escolha. Com isso, mais e mais, o prazo decadencial para reclamar cai em desuso e perde sua razão de ser. Isso revela-se em qualquer pesquisa de jurisprudência sobre o tema, onde é difícil encontrar precedentes que tenham efetivamente barrado o litígio com base nos curtos prazos decadenciais próprios da decadência por vício oculto. O que isso significa em termos práticos? É difícil de precisar, mas de modo geral, pode-se imaginar que adquirentes mais hábeis na tarefa de litigar judicialmente vençam seus litígios contra vendedores sem igual preparo argumentativo. Por outro lado, é de se imaginar que os adquirentes mais débeis estejam mais vulneráveis e que justamente a eles sejam aplicados os prazos mais rigorosos dos vícios ocultos. Apenas uma pesquisa empírica poderia responder precisamente esta dúvida. De todo modo, é significativo de que o regime de vícios ocultos venha, aos poucos, sendo abandonado em diversos campos para que todos os temas de qualidade sejam tratados como mero inadimplemento. Deixa-se a teoria da garantia em direção à teoria da conformidade. ____________ 1 Veja nosso aprofundamento sobre o tema em CORREIA, Atalá. Limitação das indenizações por extravio de bagagens no transporte aéreo internacional: uma abordagem sob a perspectiva da Análise Econômica do Direito. Revista IBERC, v. 4, n. 2, p. 1-17, 26 jul. 2021. 2 Um exame mais pormenorizado deste tema pode ser visto em CORREIA, Atalá. Prescrição e decadência: entre passado e futuro. 2020. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/T.2.2020.tde-29042021-200829, p. 365. Acesso em: 2021-08-17. ____________ *Atalá Correia é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. É professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), onde co-coordena o Grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI. Atualmente é Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo. É Presidente da Seção Estadual do Distrito Federal da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Site pessoal: https://atalacorreia.academia.edu/
terça-feira, 16 de novembro de 2021

Reparação não pecuniária do dano coletivo

No último dia 20 de outubro a página na internet do Superior Tribunal de Justiça noticiou que a Primeira Seção do tribunal deliberara admitir mais uma questão a ser resolvida sob o rito dos recursos repetitivos (art. 1.036 e ss., do Código de Processo Civil)1. A questão, cadastrada sob o número 1.104 do rol de temas do Superior Tribunal de Justiça, consiste em definir a possibilidade de imposição de tutela inibitória, bem como de responsabilização civil por danos materiais e morais coletivos causados pelo tráfego com excesso de peso em rodovias. Sem dúvida trata-se de controvérsia com enorme repercussão, prática e jurídica. O transporte rodoviário no Brasil, afinal, representa o principal modal para a circulação de cargas e passageiros, envolvendo, apenas para o transporte de cargas, mais de dois milhões e duzentos mil veículos autorizados, entre veículos de empresas ou cooperativas e de motoristas autônomos, segundo dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte, e somente nas estradas federais em 2019 foram registrados mais de cinquenta e cinco mil acidentes de trânsito com vítimas, o que evidencia a gravidade do assunto2. De pronto, acredita-se que, ao julgar o tema 1.104, o Superior Tribunal de Justiça deverá reafirmar a identificação de dano coletivo em razão do reiterado tráfego de caminhões com excesso de peso3. Os precedentes existentes indicam que o Superior Tribunal de Justiça entende que o transporte de carga em desacordo com as normas que regem o serviço implica mais do que a violação da legislação de trânsito, importando danos ao patrimônio público e privado, bem como à vida e à segurança4. Deste modo, compreende que não existiria empecilho legítimo à imposição, em paralelo às sanções administrativas preconizadas pela legislação de trânsito, da responsabilidade pelo dano coletivo, que reconhece ser de ordem material e moral (denominação que se adotará para compreender os danos extrapatrimoniais ou não patrimoniais)5. O que se propõe neste momento é a reflexão acerca da reparação não pecuniária no âmbito do dano coletivo. E, mais especificamente, procurar-se-á encorajar os intérpretes a aprofundarem o uso dessa modalidade de reparação. Isto porque, nos casos de reparação do dano coletivo de ordem moral a jurisprudência6 identifica a necessidade de observar as denominadas funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil. Para concretização da função punitiva da responsabilidade civil costuma-se recorrer à imposição de uma condenação agravada em valor se comparada ao dano suportado pelo prejudicado. Este valor adicionado pode ser direcionado ao próprio prejudicado ou a algum fundo7. Em um dos precedentes específicos sobre o transporte de carga em excesso, o Ministro Herman Benjamin afirmou: Embora não seja esse o ponto central do presente litígio, nem ao leigo passará despercebido que se esvai de qualquer sentido ou valor prático, mas também moral, jurídico e político, a pena incapaz de desestimular a infração e dela retirar toda a possibilidade de lucratividade ou benefício. De igual jeito ocorre com a sanção que, de tão irrisória, passa a fazer parte do custo normal do negócio, transformando a ilegalidade em prática rotineira e hábito empresarial em vez de desvio extravagante a disparar opróbio individual e reprovação social. Nessa linha de raciocínio, o nanismo e a leniência da pena, incluindo-se a judicial, que inviabilizem ou dilapidem a sua natureza e ratio de garantia da ordem jurídica, debocham do Estado de Direito, pervertem e desacreditam seu alicerce central, o festejado império da lei8.  Atacar o efeito patrimonial que beneficia o infrator por meio da exacerbação da condenação pecuniária é também, se percebe, uma manifestação da preocupação com a função preventiva (dissuasória) da responsabilidade civil. No entanto, para qualquer destes fins, o que mais se vê é a tentativa de encontrar critérios para a fixação da reparação dos danos não patrimoniais9. Ou seja, a uma situação complexa por si só - arbitrar a reparação adequada - o nosso sistema permitiu acoplar mais um fator complicador - fazer com que a indenização opere punitiva e preventivamente. Um problema deste modelo, com efeito, é que com a multiplicidade de critérios disponíveis e a ampla liberdade conferida ao magistrado, o arbitramento é um trabalho árduo e sujeito a muita discrepância. A autonomia do dano coletivo exige, ademais, que, sob o aspecto de dano-evento, seja distinto das diversas lesões individuais correlatas. Tampouco, portanto, sob o aspecto do dano-prejuízo dever-se-á aspirar uma relação de proporcionalidade estrita. O dano coletivo não é equivalente à soma dos danos individuais10, tornando ainda mais complexo o seu arbitramento. Por outro lado, evidente que a imposição de uma sanção pecuniária vultosa significa um grande ônus para o apenado. Entretanto, não se tem conhecimento da eficácia real deste elemento dissuasório sequer sobre um determinado agente, muito menos sobre o conjunto de agentes do mercado. Ainda mais quando o arbitramento é realizado sem recorrer a evidências concretas e específicas e, principalmente, sem o apoio de modelos financeiros, atuariais e/ou estatísticos para análise do efeito dissuasório da sanção pecuniária. Efeitos de prevenção geral ou especial, por fim, são importantes, mas não devem esgotar o conteúdo da função preventiva. Pois bem, sucede que o ordenamento jurídico brasileiro não exige que a reparação do dano seja promovida mediante indenização pecuniária, admitindo-se a reparação não pecuniária, natural ou específica11. O art. 927, do Código Civil, impõe o dever de reparar, mas não trata expressamente da forma de reparação, legitimando a adoção da forma mais adequada ao caso concreto12. Ao tratar da indenização, o art. 947, do Código Civil, disciplina que se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor em moeda corrente. No que diz respeito ao dano coletivo, pode-se agregar o disposto nos artigos 1º, 3º e 11 da LACP, para concluir que a imposição de obrigações de fazer ou não fazer podem ser meios para operar a reparação do dano, tanto patrimonial quanto não patrimonial. No Código de Processo Civil, por sua vez, o art. 499 expressamente assevera que somente haverá conversão em perdas e danos (indenização pecuniária) se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Apesar de inserida na legislação processual, trata-se de norma de conteúdo nitidamente material e pertinente à responsabilidade civil, guardando grande sintonia com o citado art. 947, do Código Civil. Acredita-se, portanto, que a noção de resultado prático equivalente se encontra abrangida pela de reparação natural, ao mesmo tempo que a revitaliza! O direito processual civil parece ter compreendido melhor o modelo de direito civil exigido contemporaneamente, se propondo a assegurar a maior efetividade possível aos deveres e obrigações impostos pelo direito material. O direito processual civil não é autônomo, contudo, não se podendo imaginar tutela, provisória ou definitiva, independente da relação material. A tutela inibitória, a imposição de obrigações, de fazer ou não fazer, ou a busca pelo resultado prático equivalente, são efeitos, ou concretizações, da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, inclusive em sua função preventiva in concreto, sendo essa a resposta mais adequada à questão do fundamento para a outorga de tutela antecedente ao dano, rectius, ao prejuízo13. Vê-se que a relação entre o direito civil e o processual civil não precisa ser de exclusão, antes devendo ser de coordenação14. Perceber e aproveitar o alcance dos remédios processuais disponíveis para a concretização da função preventiva é extremamente importante. Nesta ordem de ideias, a imposição de obrigação de não fazer coincidente com a proibição da circulação de veículo com excesso de carga prevista na legislação de trânsito se revela uma medida insatisfatória, que poderia ser conjugada a outras consequências, como a imposição de obrigações de fazer, tais como a de ampliação ou renovação da frota, ou de restrição a usufruir de benefícios fiscais ou creditícios, dentre outras. A reparação não pecuniária deve ser a mais adequada possível e são numerosas as formas que pode assumir. Se tomarmos o exemplo francês, veremos ser admissíveis a restituição ou restauração do bem, a demolição de construções, o encerramento forçado de atividade, a substituição da vontade do responsável para obriga-lo a contratar, dentre outras15. A ampla gama de soluções concretas possíveis que se descortina mediante a admissão de uma reparação orientada pelo critério da satisfação do prejudicado torna mais nítido do que nunca que a compensação pecuniária deve ser uma solução residual ou complementar nas hipóteses de dano moral16. O nosso sistema, enfim, dispõe de alternativa melhor para a concretização da função preventiva, qual seja, a adoção de reparações não pecuniárias específicas para a situação de dano concretamente enfrentada, e é importante utilizá-las. *Fábio Jun Capucho é Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e associado ao IBERC ___________ 1 STJ: Responsabilidade por danos pelo tráfego com excesso de peso em rodovias 2 Confederação Nacional dos Transportes. Anuário CNT do Transporte: estatísticas consolidadas. Brasília, 2020, p. 13/14, In: Anuário CNT do Transporte 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo no Agravo de Instrumento contra despacho denegatório de Recurso Especial 1.580.705/MG {...} É cabível a ação civil pública para obter pronunciamento judicial voltado à imposição de obrigação de não fazer e pagamento de indenização por danos morais coletivos por empresa que persiste com a prática de fazer com que seus veículos circulem com excesso de peso, ainda mais após considerável número de autuações administravas no Código Brasileiro de Trânsito{...} rel. Min. Mauro Campbell Marques, Julgamento 03/03/2020, DJE 06/03/2020 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC {...} Ao lado das implicações patrimoniais stricto sensu (danosidade a bens públicos e privados), o direito ao trânsito seguro manifesta primordial e urgente questão de vida, saúde e bem-estar coletivos, três dos pilares estruturais do Direito Brasileiro {...} rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo Interno no Recurso Especial 1.783.304/DF {...} viii) a vedação ao sobrepeso decorre da necessidade de proteção ao patrimônio e à segurança, sendo esse o fundamento das presunções quanto ao dano e ao nexo causal; ix) o dano decorrente da conduta é tanto moral quanto material, competindo às instâncias ordinárias a fixação do patamar; x) são cabíveis astreintes para inibir a reiteração da conduta; {...} rel. Min. Og Fernandes, Julgamento 02/03/2021, DJE 15/03/2021 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso especial 1.737.412/SE {...} No dano moral coletivo, a função punitiva - sancionamento exemplar ao ofensor - é, aliada ao caráter preventivo - de inibição da reiteração da prática ilícita - e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade {...} rel. Min. Nancy Andrighi, Julgamento 05/02/2019, DJE 08/02/2019 7 Conforme previsão do art. 13, da Lei 7347/85 (Lei que disciplina a ação civil pública - LACP) 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC, rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019 9 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 282/284 10 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 116 11 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros (p. 35). Edição do Kindle 12 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limite das formas não pecuniárias de reparação. 2018. Universidade Federal da Bahia, Salvador, p. 154 13 Em sentido diverso da opinião de Marinoni (2019-06-16T22:58:59). Tutela Inibitória e Tutela de Remoção do Ilícito . Edição do Kindle. 14 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 4ª ed. rev., atual. e amp. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 96/97 15 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil: les effets de la responsabilite. 2ª ed., Paris: LGDJ, 2001, p. 57/84 16 DANTAS BISNETO, 2018, p. 119
Embora exista vasta gama de normas protetivas ao meio ambiente no sistema legal e constitucional brasileiro, ainda carecemos de uma sistematização coerente, o que compromete o desenvolvimento de políticas públicas ambientais concretas. Soluções tópicas e descoordenadas são, ainda, a realidade. A racionalidade jurídica, em matéria ambiental, deve ser construída essencialmente pela via mais democrática, que é a legislativa, e de forma participativa, para o desenvolvimento de políticas públicas coerentes, guiadas por uma racionalidade clara e predefinida. A inserção dos seguros nesse cenário não é diferente. Embora tenha ocorrido a instituição do recurso aos seguros como mecanismo de proteção ambiental, a realidade é que tal se dá, até o momento, de forma imprecisa, sem prévio planejamento, definição de escopos, compreensão ou coordenação. Neste texto são propostas algumas bases de reflexão para um caminho de sistematização e confluência de interesses. Instrumentos econômicos de proteção ambiental decorrem de políticas públicas ambientais e objetivam a indução de comportamentos em favor das diretrizes e dos objetivos dessa política. Os mecanismos de indução de comportamento são promovidos por medidas governamentais de estímulo negativo ou positivo: pela indução a um não fazer, ou a uma mudança de comportamento, por um lado e, por outro, por um sistema de recompensas, como premiação ou remuneração para comportamentos tidos como em conformidade com as diretrizes da política governamental (incluindo a conformidade máxima e progressiva como princípio da prevenção). O posicionamento do seguro ambiental como instrumento econômico pode ser realizado por dois critérios: o critério "incentivo" e o critério "mecanismo de mercado". Por instrumentos de "incentivo", entendem-se os vinculados à indução de comportamentos e a um sistema de recompensas. Já pelo critério "mecanismos de mercado", pelo só fato de atividade seguradora, no Brasil, ser essencialmente desenvolvida pela iniciativa privada. Assim, os seguros ambientais - sejam obrigatórios ou facultativos - têm potencial de induzir a uma mudança de comportamento de quem opere atividades causadoras de impacto e riscos ao meio ambiente. O acesso à melhor tecnologia disponível de proteção ambiental e gestão de riscos ambientais (instrumentos do princípio de prevenção) é fator fundamental para a precificação dos seguros e para a própria aceitação de um risco pelo segurador (POISON, p. 52). Como podemos qualificar uma cláusula que determina o custo do seguro, o prêmio e suas revisões ou parâmetros de revisão com base em determinadas variáveis? O prêmio, como sabemos, é essencial nessa equação risco vs. prêmio e, como tal, é o reflexo do custo e valor da assunção de risco, mas isso não é estático nem imutável ao longo da vida do seguro, de modo que o prêmio altera-se, assim como a própria relação de seguro pode ser modificada, ou até mesmo extinta ou resolvida (VEIGA COPO, p. 310-311). A necessidade de contratar um seguro impõe ao responsável pela atividade econômica uma mudança comportamental e operacional. Ainda que possa parecer que este incentivo não decorra dos seguros, na realidade o é, visto como a mudança comportamental e operacional deve ocorrer desde o iter contratual. Noções como agravamento de risco e não cobertura para atos dolosos motivam essa assertiva. Ademais, ajustes e melhorias comportamentais e operacionais influenciarão na renovação dos seguros, inclusive no preço (prêmio) de renovação. Ademais, seguradores exigem que potenciais segurados assumam ações de redução de risco antes de estarem dispostos a fornecer coberturas. É necessário levar em consideração que assegurar uma atividade econômica também permite, ou mesmo pressupõe, possibilitar o próprio exercício dessa atividade. Isso acontece ao reduzir os riscos do empreendedor e, por conseguinte, outorgar uma maior segurança jurídica e financeira àquele que empreende em determinada atividade de risco (BELENGUER, p. 272), especialmente se considerados empreendimentos de menor porte e capacidade financeira (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 12-13). Deste modo, os seguros ambientais aparecem como instrumentos econômicos alternativos aos tradicionais mecanismos vinculados ao sistema de comando e controle (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 13). Parece-nos que os seguros podem ter alguma utilidade para a proteção ambiental, sob a perspectiva de prevenção e precaução de danos, por imporem deveres de cuidado ao segurado, bem como pela utilidade para contenção de sinistro. Seguros não são um incentivo ao descuido, pois como adverte Machado, "a instituição de um 'seguro-poluição não pode deixar de lado a concomitante preocupação com medidas de prevenção da poluição" (MACHADO, p. 345).  A acessibilidade a um sistema de seguros e às suas vantagens dependem de mudanças de comportamento e padrões. O grau de vulnerabilidade e de resiliência são critérios importantes para a projeção de riscos pelos seguros, com afetação na aceitação de um risco, pelo segurador, e na precificação. Desse modo, a lógica operacional dos seguros induz à construção de soluções com menor vulnerabilidade e maior capacidade de resiliência, na medida em que reduz a magnitude e as consequências dos riscos. Em outro sentido, seguros ligam-se aos princípios da prevenção e da precaução na medida em que constituam garantias de indenizações e sirvam à prevenção de riscos, pois a companhia de seguros pode se tornar um verdadeiro auditor em questões ambientais e a compra de seguros é uma ferramenta útil para a gestão ambiental. Isto é assim, quando apenas as instalações que optaram pela prevenção são seguradas. Não apenas dentro dos limites exigidos pelos regulamentos atuais, mas também no pressuposto das medidas máximas possíveis a serem instaladas e aplicadas na atividade em questão (POISON, p. 52-53). A decisão de contratar seguros ambientais decorre da análise de custo-benefício (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 15). Optar por incluir seguros nos custos de produção não é algo que necessariamente impacte financeiramente uma operação empresarial, pois os custos associados aos prêmios de seguros serão externalizados com a transferência à coletividade (BERGKAMP, p. 275). Ademais, sob uma perspectiva macro, de uma política comum e geral pela contratação de seguros ambientais, sequer haverá impacto concorrencial em relação aos preços, pois será um custo assimilado por todo um setor, e que, ao mesmo tempo, tende a trazer vantagens para toda a cadeia produtiva e de consumo - empresarial, consumidor e socioambiental. Conforme afirma Machado, "todo um coeficiente de uma estratégia politicamente oportuna como instrumento de aquisição de consenso e eficácia administrativa, considerando-se que uma rápida e larga indenização da generalidade dos prejuízos enfraquece a solicitação coletiva de inovação e controle sobre as instalações mesmas, com objetivo de reduzir-se a potencialidade de dano da empresa" (MACHADO, p. 346). Outra questão atrelada à decisão de contratar seguros ambientais, embora seja essa aplicável aos seguros de responsabilidade civil em geral, é a do risco de responsabilização, isto é, o maior ou menor risco de ser demandado pelas vítimas. O incremento da consciência e a efetiva busca por direitos e por reparação de danos influenciará na compreensão, pelos geradores de risco, da necessidade de contratação de seguros de responsabilidade civil, pois "haverá, consequentemente, maior procura pelos seguros, justamente visando a garantia patrimonial frente às possíveis reclamações de indenizações" (POLIDO, p. 60). Acrescentamos a essa tomada de consciência de busca de direitos a necessidade de uma guinada de comportamento do próprio Judiciário, a ser, quando provocado, mais contundente nas medidas e condenações que aplicar. A propósito do tema, afirma Machado que "a existência de um organismo que vá garantir o pagamento da reparação do dano poderá influir beneficamente no espírito dos juízes, livrando-os da preocupação sobre a possibilidade de o poluidor fazer frente às despesas imediatas de indenização" (MACHADO, p. 345). Essa afirmativa e essa conclusão, no entanto, não são absolutas: a existência de mecanismos de garantia são reconfortantes, afinal, seguros prestam garantia e segurança, contudo, via de regra, essa garantia é prestada ao segurado e à manutenção do seu próprio patrimônio. Os seguros são sempre secundários em relação à responsabilidade e ao dever de reparar/indenizar. Alguém será responsável, pois outrem pode ter contra ele uma pretensão decorrente de um direito violado, e o estabelecimento de responsabilidades se dá neste cenário. A responsabilidade não se impõe pelo fato de alguém ter ou não o seguro (BERGKAMP, p. 276). Reitere-se que a relação securitária se dá apenas entre segurador e segurado. Não se pode dissociar o interesse por seguros ambientais do forte movimento de conscientização que vem ocorrendo no mundo empresarial sobre as questões ambientais. É possível associar esse movimento à atenção cada vez maior ao princípio da sustentabilidade, atualmente no centro das reflexões empresarias, incentivadas pelos valores ESG. Na medida em que seja definida uma posição para os seguros como instrumento econômico, e que se entenda a necessidade de estruturação de uma política orquestrada de garantias de reparação de danos, é apropriado tratar da potencialidade de alinhamento a uma preocupação e uma tendência de maior solidariedade em matéria de reparação de danos. Facchini Neto, discorrendo sobre as tendências desse âmbito, aponta um movimento de superação das vias estritas e individualistas da responsabilidade civil [relação vítima(s) - autor(es) do dano], para um modelo socializante dos custos de reparação (socialização da responsabilidade e dos riscos individuais). A superação da responsabilidade objetiva, ainda centrada em parâmetros individuais, ruma a um modelo que transcenda o indivíduo e socialize as perdas. Segundo afirma o referido jurista, "não se trata, portanto, de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo" (FACCHINI NETO, p. 182). A propósito sustenta Schreiber que "a ideia de solidariedade vem, assim, se imiscuindo nas bases teóricas da responsabilidade civil e na própria filosofia que a sustenta. Há, cada vez mais, solidariedade na culpa (todos somos culpados pelos danos) e solidariedade na causa (todos causamos danos), e o passo necessariamente seguinte é o de que haja solidariedade na reparação (todos devemos reparar os danos)" (SCHREIBER, p. 225). Acentua-se, portanto, o movimento constante de busca por solidarizar danos e perdas, tanto no sistema geral de responsabilidade civil, quanto em questões propriamente ambientais, entendimento este que encontra eco na lição de Machado, quando afirma que "na progressão de toda a economia industrial pela forma de concentração monopolística de capital, o papel decisivo compete, de fato, a fatores que privilegiam a teoria da responsabilidade objetiva associada a esquemas de seguros" (MACHADO, p. 346). ______________  BELENGUER, David Aviñó. Prevención y reparación de los daños civiles por contaminación industrial. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015. BERGKAMP, Lucas. Environmental risk spreading and insurance. Review of European Community and International Environmental Law (RECIEL). Oxford: Blackwell, v. 12, n. 3, 2003. FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004. POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015. POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015. SARAIVA NETO, Pery; DINNEBIER, Flávia França. Sustentabilidade como princípio constitucional: sua estrutura e as implicações na Ordem Econômica. Revista de Direito Ambiental - RDA. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 85, 2017, p. 63-86. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2015. VEIGA COPO, Abel B. El riesgo en el contrato de seguro: ensayo dogmático sobre el riesgo. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015. YIN, Haitao; PFAFF, Alex; KUNREUTHER, Howard. Can environmental insurance succeed wher other strategies fail? The case of underground storage tanks. Risk Analysis: Society for Risk Analysis, v. 31, n. 1, 2011. ______________  *Pery Saraiva Neto é doutor em Direito (PUCRS), com estágio doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito (UFSC). Especialista em Direito Ambiental pela FUNJAB/UFSC. Advogado, consultor e parecerista, com experiência em Direito Ambiental e Direito dos Seguros, envolvendo atuação contenciosa e consultiva. Sócio do escritório Trajano Neto & Paciornik Advogados. 
Nos últimos dois anos, temos observado um movimento contínuo de transformação pelo qual passa o mercado de seguros brasileiro. Essa transformação revela um processo de modernização, simplificação e flexibilização do ambiente regulatório e, consequentemente, do contrato de seguro, em contraposição a um cenário passado marcado pela padronização, excessiva regulação e autonomia contratual limitada. Estamos diante de um Novo Marco Regulatório de Seguros. Nesse contexto, os seguros de responsabilidade civil ocupam posição de destaque. Segundo dados oficiais da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), os seguros de responsabilidade civil cresceram, entre 2015 e 2020, 175%, contabilizando R$2,6 bilhões de prêmio em 20201. No ano de 2021, dados até agosto já demonstram um crescimento de 35,4%, o que se traduz em prêmio acumulado no período de R$2,11 bilhões2. Esses dados, por si só, revelam a importância deste tipo de seguro como instrumento de mitigação dos mais variados riscos presentes nas atividades empresariais e que possuem potencial de causar danos a terceiros. Este é justamente o objetivo dos seguros de responsabilidade civil: indenizar as vítimas por danos causados pelo segurado em razão da prática de um ato ilícito culposo. Mas não é só. O crescimento dos seguros de responsabilidade civil também nos mostra que os riscos relacionados à responsabilização civil se intensificaram e que a função deste tipo de seguro continua sendo crucial na atualidade. Afinal, seu escopo é garantir não apenas proteção financeira ao patrimônio dos segurados, mas também ao terceiro, assegurando que o dano será efetivamente reparado e liquidado por meio da indenização securitária. De fato, além de vivermos em uma sociedade altamente litigiosa, os danos se agravaram e multiplicaram, de tal modo que o instituto da responsabilidade civil na modernidade está essencialmente voltado à proteção das vítimas e à reparação integral dos danos. Nesse sentido, são exemplos clássicos de riscos que podem ser mitigados pelo seguro os acidentes de trabalho, produtos defeituosos colocados no mercado e seu recall, poluição ambiental súbita e danos causados por profissionais liberais no exercício de sua atividade. Mais recentemente, podemos citar ainda os efeitos da pandemia, os riscos associados às novas tecnologias e até mesmo questões relacionadas à diversidade e governança ambiental, social e corporativa (ESG) como exemplos de fatores de exposição que podem impactar os seguros de responsabilidade civil, como D&O e Riscos Cibernéticos. De acordo com o relatório "Financial Services - Risk Trends", recentemente publicado pela Allianz Global Corporate & Specialty3, há expectativa de crescimento de demandas relacionadas ao Covid-19 contra diretores e administradores de empresas, tanto por negligência na adoção de medidas de proteção à saúde, como por falhas na implementação de controles de risco adequados às mudanças envolvendo o trabalho remoto ou à prestação de serviços online. Ainda segundo o mesmo relatório, o retorno ao trabalho presencial também pode gerar exposição com relação à responsabilidade civil por infecção, políticas internas de vacinação e questões relacionadas à privacidade de informações de saúde dos empregados. Relativamente ao crescente e cada vez mais presente risco de ataques cibernéticos, o relatório informa que além dos riscos de segurança associados ao trabalho remoto, o exponencial aumento nas transações digitais e armazenamento de informação eletrônica coloca as empresas em posição de vulnerabilidade e exposição perante terceiros. Os custos são incalculáveis, podendo envolver tanto as medidas de contenção do incidente cibernético, o pagamento de multas, lucros cessantes, custos de defesa e indenizações a terceiros que tiveram dados vazados, como também aqueles de natureza imaterial relacionados à imagem da empresa. Além disso, as políticas de segurança cibernética, quando deficientes, podem gerar exposição de responsabilização do próprio corpo diretivo das empresas. Segundo o relatório "Directors and Officers (D&O) Insurance Insights 2021", também publicado pela Allianz Global Corporate & Specialty4, o risco de ações coletivas de investidores que sofreram perdas em razão de falhas na adoção de políticas de governança apropriadas à proteção contra riscos cibernéticos não deve ser desconsiderado. Finalmente, já são vistas demandas coletivas, especialmente nos Estados Unidos da América, em que se discute a falta de diversidade entre os diretores e administradores de empresas sob o fundamento de violação de seus deveres fiduciários. Há, também, expectativa de que sejam notificadas reclamações envolvendo ESG por falhas de gestão e adoção de políticas de governança contrárias à mitigação de riscos climáticos e ambientais5. Neste cenário de crescente exposição a riscos de responsabilização civil, o Novo Marco Regulatório de Seguros será determinante para o desenvolvimento deste tipo de seguro, na medida em que permite e facilita a criação de novos produtos e coberturas, garante maior liberdade de negociação e contratação das apólices, além de gerar um ambiente mais inovador e competitivo. São essencialmente três normas que trazem essa evolução: a Resolução 407/21 do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e as Circulares 621/21 e 637/21 da SUSEP. As duas primeiras são responsáveis por segregar a regulação aplicável aos seguros de danos massificados e aos de grandes riscos, criando regras específicas dadas as particularidades dos riscos e dos segurados envolvidos na contratação. Já a última é norma aplicável aos seguros de responsabilidade civil. Especificamente quanto aos chamados "seguros de grandes riscos", destaca-se a possibilidade de que as condições contratuais da apólice sejam livremente negociadas entre segurados e seguradoras, observados princípios como os da boa-fé e transparência e objetividade das informações, além de alguns elementos mínimos que devem constar nas condições contratuais. Isso significa que as partes assumem posição de igualdade e o contrato de seguro deixa de estar fundado em apólices padronizadas, incentivando-se a plena liberdade de pactuação. Nessa linha, os seguros de responsabilidade civil podem ser caracterizados como de grandes riscos. Para tanto, é necessário o cumprimento de ao menos um dos seguintes requisitos: (i) que o limite máximo de garantia (LMG) da apólice seja superior a R$ 15 milhões; (ii) o segurado possua ativos totais superiores a R$ 27 milhões no exercício imediatamente anterior à contratação; ou (iii) o faturamento bruto anual do segurado no exercício imediatamente anterior seja maior que R$ 57 milhões. Dessa forma, observados os requisitos da norma, os seguros de responsabilidade civil, tais como os de Responsabilidade Civil Geral, Responsabilidade Civil de Diretores e Administradores (D&O), Responsabilidade Civil Profissional (E&O), Responsabilidade Civil Ambiental e Riscos Cibernéticos, poderão ser inseridos no novo modelo de contratação. Isso pode gerar às seguradoras maior liberdade na oferta de produtos e novas coberturas, com maiores vantagens competitivas que deixam de estar restritas ao preço do prêmio. Aos segurados, isso pode proporcionar coberturas mais adequadas ao risco de seu modelo de negócio, além de contratos mais simples e de fácil compreensão e, possivelmente, preços mais competitivos. As regras da nova norma já estão em vigor e podem ser aplicadas às apólices renovadas ou emitidas a partir de 1º/4/21. Contudo, a despeito de já vigente, o novo cenário regulatório introduz uma mudança paradigmática na forma de contratação do seguro que exige adaptação dos diversos players envolvidos, incluindo seguradoras, resseguradoras, corretores de seguros e os próprios segurados. O processo de amadurecimento é natural e esperado, mas não se deve, ao mesmo tempo, perder de vista o dinamismo necessário à implementação prática das novas regras que certamente beneficiarão todos os envolvidos e contribuirão para o desenvolvimento e modernização do mercado de seguros brasileiro. Por fim, na mesma linha de flexibilização e simplificação do contrato de seguro, a Circular 637/21, em vigor desde 1º/9/21, estabeleceu alterações relevantes na regulamentação específica dos seguros de responsabilidade civil. Como novidades, a norma autoriza a cobertura não apenas para os danos a terceiros cuja obrigatoriedade de reparação tenha sido reconhecida por decisão judicial ou arbitral, como também para aqueles decretados por decisão administrativa do Poder Público. O trânsito em julgado da decisão deixa de ser um requisito ao pagamento da indenização, conferindo maior especialização e celeridade ao procedimento de regulação de sinistro. No mais, além da possibilidade de contratação de seguro de responsabilidade civil à base de ocorrência ou à base de reclamações (com ou sem notificações), previu-se uma nova modalidade de seguro à base de reclamações: com primeira manifestação ou descoberta6, que está essencialmente associada aos seguros de riscos ambientais. Ainda com relação aos seguros à base de reclamações, a Circular eliminou os conceitos de prazo complementar e prazo suplementar, bem como seus prazos obrigatórios mínimos para apresentação da reclamação do terceiro após o fim de vigência da apólice, criando, em seu lugar, o "prazo adicional", cujo período de tempo pode ser livremente negociado. Assim, o atual cenário é altamente positivo e promissor a um crescimento ainda mais expressivo dos seguros de responsabilidade civil, tanto diante dos mais variados riscos que se apresentam na atualidade, como da possibilidade de criação de produtos e coberturas inovadoras, além de clausulados mais simples e arrojados. A experiência internacional dos mercados mais desenvolvidos é, sem dúvida, uma importante fonte a contribuir para o processo. A adaptação ao novo contexto é necessária e altamente almejada. Camila Affonso Prado é Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Associada-Titular do IBERC. Advogada da área de Seguros e Resseguros do Demarest Advogados. ______________ 1 Disponível em: http://novosite.susep.gov.br/noticias/susep-avanca-na-simplificacao-dos-seguros-de-responsabilidades-com-nova-norma/. 2 Dados apurados até agosto/2021, conforme relatório Síntese Mensal publicado pela SUSEP em outubro/2021 e disponível em: http://novosite.susep.gov.br/wp-content/uploads/2021/10/Sintese-Mensal-Agosto-2021.pdf. 3 Disponível em: https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-financial-services-risk-trends.pdf. 4 https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-DandO-insurance-trends-2021.pdf. 5 https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-DandO-insurance-trends-2021.pdf. 6 Estas modalidades são definidas pelo artigo 2º da Circular nº 637/2021, que, especificamente em relação à novidade, prevê: "Art. 2º Para fins desta Circular, são adotadas as seguintes definições: (...). IV - seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claims made basis) com primeira manifestação ou descoberta: tipo de contratação em que a indenização a terceiros obedece aos seguintes requisitos: a) os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade; e b) o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido na apólice; ou c) o segurado apresente o aviso à sociedade seguradora do sinistro por ele descoberto ou manifestado pela primeira vez durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido na apólice.  
Recentemente foi divulgado, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o relatório Justiça em números de 20211, com base nos dados de 2020, importante fonte de dados estatísticos da realidade judicial brasileira. Este tipo de pesquisa permite, por exemplo, que sejam adotados mecanismos orçamentários e ajuda a avaliar os pontos sensíveis de política legislativa e judiciária. Em um brevíssimo resumo de suas conclusões pode-se destacar que, nos Judiciários estaduais, preponderam casos envolvendo temáticas de Direito Privado (relativos ao cotidiano de cada um de nós, com mais de 10,5% do total) associados a processos de conhecimento (visando a declaração do direito, com 23,25% do total). Acrescente-se, ainda, segundo os dados do próprio relatório, que a Justiça estadual é responsável por 64,7% das unidades totais do Poder Judiciário, sendo a principal porta de acesso ao cidadão para exercício de seus direitos. Tais casos, contudo, têm fugido, em geral, à competência dos Juizados Especiais (com apenas 12,7% do total de casos submetidos à estrutura estadual), ou seja, eles podem ser considerados mais complexos; envolver temáticas com valores acima dos 40 salários-mínimos ou, ainda, tratar de temas mais sensíveis (família, direitos de personalidade, etc.). Estes números, frise-se, representam a atual demanda associada à litigiosidade e não se referem aos casos resolvidos de forma alternativa à judicial. Assim, por exemplo, o enorme esforço legislativo para adoção de soluções não judiciais para casos que vão de inventários à alteração de registros civis acabam não expressos nesta estatística, mas podem ser constatados na análise comparada ano após ano. Por outro lado, a pesquisa indica o percentual médio de 7,3% para os casos conciliados pela atual estrutura judicial estadual, ou seja, judicializados, mas resolvidos por transação (redução em relação aos números anteriores de mais de 9%). Até este ponto, então, podemos concluir que os casos judiciais de 2020 são eminentemente relativos a temas privados e mais complexos, tendo um ambiente menos propenso ao consenso. Outro dado importante é que estes novos casos têm se concentrado, eminentemente, em temática contratual/obrigacional (8,28% do total). O que isto quer dizer? São casos que envolvem controvérsias sobre a formação, interpretação e execução de contratos e pedidos indenizatórios (incluindo descumprimento contratual). Estes dados chamam a atenção especialmente porque se concentram em áreas que são, por excelência, compatíveis com posturas de soluções consensuais de conflitos e instrumentos de prevenção e compliance. Saliente-se, contudo, que o relatório não individualiza temas como a natureza dos contratos (empresariais, civis ou de consumo) ou eventuais violações às normas da Lei Geral de Proteção de Dados, que poderiam permitir uma conclusão mais aprofundada. O que se pode, contudo, concluir de forma geral é que cada vez mais é relevante a adoção de medidas preventivas ao conflito, especialmente em temas que podem ser objeto desta estratégia. Tal postura parte, muitas vezes, da conscientização e alteração de postura pessoal e/ou de cultura corporativa. Daí porque não só o acesso à judicialização é importante, mas também à informação. Não é à toa, portanto, o reforço legislativo constante no princípio da boa-fé objetiva: veja, por exemplo, a reforma do CDC para tratar o tema do superendividamento2, seja nas alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica3 no Código Civil. Assim, por exemplo, todos sabemos que demandas judiciais demandam tempo e investimento. O relatório indica que, para o processo de conhecimento ajuizado no Poder Judiciário estadual, a média de tramitação é de 3 anos e 8 meses em primeiro grau, eventualmente acrescido de mais 1 ano e 11 meses em segundo grau. Se for necessária a execução da decisão, a média é, ainda, acrescida de 6 anos e 11 meses. Totaliza-se, assim, uma média de 12 anos e 6 meses. Isso se, de fato, o eventual crédito for satisfeito. Claramente, portanto, o custo a ser considerado não é apenas aquele financeiro, expresso nas custas judiciais a serem pagas. Ao lado do tempo, precisa-se ter em mente o quanto custa promover e manter uma demanda judicial. Tal análise deve englobar não apenas o quanto custa manter um departamento jurídico e/ou contratar de advogados, mas também o tempo e esforço produtivo desviado para reuniões, documentação, provas e audiências. Associe-se nesta análise, o desgaste de imagem/marca, das relações com fornecedores/consumidores e da cadeia de distribuição. Algumas vezes estes valores não são, contudo, percebidos, já que o total de encargos é subsidiado pelos mecanismos de assistência judiciária. Este último aspecto também deve ser destacado: o quanto a sociedade brasileira desembolsa para manter tal estrutura - por meio dos impostos que todos pagamos (em 2020, totalizando despesas de mais de R$ 57,6 bilhões apenas para o Judiciário estadual)  - para resolver questões que poderiam ser solucionadas com cuidados básicos. É neste contexto, portanto, que passa a ser importante adoção de verdadeira cultura de prevenção em matéria contratual. Afinal, se  contrato é uma tentativa de prever o futuro, os custos e riscos decorrentes da litigiosidade precisam ser conhecidos, avaliados e, eventualmente, tratados. Assim, se o consumidor precisa ser informado - ampla, correta e claramente - dos encargos e consequências do descumprimento é, justamente, para que avalie se pode arcar com eles e o quanto pesará não cumprir um contrato. O conhecimento do custo (não apenas direto) e a avaliação do desgaste das possivelmente longas demandas judiciais devem motivar o investimento em mapeamento e análise de riscos e na implementação de medidas de adequação às normas vigentes. Além disso, a preparação para recepção de demandas - evitando sua judicialização - por meio de efetivos sistemas de ouvidoria/acolhimento e a valorização do processo de negociação e, eventualmente, mediação podem ser importantes ferramentas de contenção da litigiosidade. Contudo, apesar de tudo isso parecer razoavelmente conhecido, é bastante interessante analisar como esta cultura vem sendo apresentada para os futuros operadores do Direito. E para isso, já em viés conclusivo, basta a análise da resolução 2/2021 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação que altera a resolução n° 5/2018 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito. Embora seja 'priorizada a interdisciplinaridade e a articulação de saberes' e constar como disciplina obrigatória as 'formas consensuais de solução de conflitos' pouco ou nenhum espaço é destinado às ferramentas de Gestão e avaliação de riscos (nem mesmo como disciplinas recomendadas) e, por consequência, de prevenção. Aliás, sabe-se que os diferentes Programas dos Cursos de Direito são baseados nesta Resolução e dela pouco fogem. Por outro lado, hoje inúmeras formas de incentivar (e simular) este tipo de cuidado dentro das próprias disciplinas obrigatórias, mas não necessariamente como "solução de conflitos". Os Moots já existentes podem representar importante exemplo neste sentido. Entende-se que tudo isso passa por uma importante reavaliação da postura pessoal, de comportamento corporativo em que a conscientização (muito baseada na alteridade) e o treinamento/educação são absolutamente relevantes. Por fim, também a cultura da litigiosidade precisa ser percebida como socialmente danosa. Tudo isso passa, portanto, pela Educação (em todos os níveis). *Frederico E.Z. Glitz é advogado com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias (Reggio-Calabria). Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Internacional Privado e Contratual. Componente da lista de árbitros da Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná (CAMFIEP) e da Câmara de Mediação e Arbitragem do Brasil (CAMEDIARB). Presidente da Comissão de Educação da OAB/PR.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Vide lei 14.181/2021, disponível aqui. 3 Vide lei 13.874/2019, disponível aqui.
Os meios de divulgação do mundo jurídico noticiaram amplamente um julgamento no qual o Superior Tribunal de Justiça, numa situação considerada excepcional, majorou valor de indenização por danos morais fixado nas instâncias inferiores. Num caso bastante sensível (em 2007, um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta), o Superior fixou o quantum indenizatório, antes estabelecido em R$ 60.000,00, em R$ 300.000,00 (R$ 150.000,00 para esposa e R$ 150.000,00 para a filha da vítima). O subscritor desde já registra (i) que concorda com a decisão de mérito - o aumento do valor indenizatório - pelas peculiaridades do caso e diante do conteúdo da decisão reformada; e, especialmente, (ii) o seu absoluto respeito a todos os envolvidos no caso, cuja dor e sofrimento são evidentes. A íntegra do acórdão do STJ não foi ainda publicada, mas o iter processual merece reflexão, com o único objetivo de colaboração para a melhoria da ciência do direito aplicada à prática forense. O caso foi cheio de idas e vindas e chama a atenção. O 1º Grau havia fixado os danos morais em R$ 120.000,00 para cada uma das autoras da ação, além de outas condenações (danos materiais e pensionamento aos familiares da vítima). O tribunal estadual diminuiu esse valor, condenando o réu a pagar R$ 30.000,00 para cada uma delas. Com a decisão do Superior, a indenização total, no que interessa a estas reflexões (o valor do dano moral), diminuiu de R$ 240.000,00 para R$ 60.000,00 e depois aumentou para R$ 300.000,00. No 1º Grau, o Juízo fixou a indenização em R$ 120.000,00 levando em conta "a gravidade do dano, a sua repercussão, as condições sociais e econômicas do ofendido e do ofensor, o grau de culpa e a notoriedade do lesado, além de constituir-se em um caráter punitivo, para que o seu ofensor não mais pratique o mesmo ato lesivo, sem, contudo, dar ensejo ao enriquecimento ilícito da vítima". O Tribunal anulou a sentença por defeito de fundamentação: o Juízo anterior não teria apreciado a alegação - ou tese - de culpa concorrente (o comportamento da vítima teria tido influência no ato ilícito, o que deveria repercutir na condenação de responsabilidade civil). Foi proferida nova sentença na qual o Juízo afirmou que "ademais, havendo ou não havendo traição, tal fato por si só, não confere o direito de se ceifar a vida de outrem ou muito menos serve como cláusula excludente de ilicitude". O valor indenizatório foi mantido (R$ 240.000,00 para as duas autoras, em iguais proporções). As autoras recorreram para fazer incluir na condenação uma indenização para despesas com tratamento psicológico (é dizer: não impugnaram o valor da indenização pelo dano moral, demonstrando estarem satisfeitas com o valor). O réu apelou, insistindo na sua tese e pedindo a diminuição da indenização moral. O Tribunal acolheu a tese do réu da ação, e, por conta de "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima" reduziu o valor da indenização para R$ 30.000,00 para cada uma das autoras. As autoras (esposa e filha da vítima) passaram a disputar com o réu o valor da indenização e o caso aportou no STJ por Recursos Especiais de ambas as partes (os Especiais não foram admitidos, mas o STJ converteu os Agravos respectivos). As autoras pretendiam alterar o termo final do pensionamento e aumentar o valor da indenização; o réu pretendia diminuir ainda mais a indenização por danos morais. O julgamento dos recursos foi monocrático. O Recurso Especial das autoras recebeu parcial provimento: foi alterado o acórdão estadual para fixar novo termo final da pensão devida à filha da vítima, mas, no que toca ao quantum indenizatório do dano moral, o Especial foi desprovido porque, entre outros fundamentos, a Súmula nº 7 impediria a análise da tese da culpa concorrente. A decisão consignou: Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária O Recurso Especial do réu foi desprovido, também com fundamento na Súmula n. 7 do STJ. A decisão, coerentemente, repetiu as palavras do julgamento que negara provimento ao Especial das autoras: Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária. As autoras agravaram, alegando não serem aplicáveis os óbices sumulares que, pela decisão, impediriam a revisão do quantum. Elas pediram o restabelecimento do valor  da indenização fixado no 1º Grau (R$ 120.000,00 para cada uma) ou, ao menos, metade desse valor (R$ 60.000,00 para cada uma). O réu interpôs dois agravos: em um, invocando a Súmula nº 7 para impedir o conhecimento do Especial das autoras, atacou a parte do decisum que alterara o termo final do pensionamento; em outro, atacou a decisão que desproveu seu pleito de maior diminuição no valor da indenização. Os três agravos foram afetados para julgamento pelo colegiado. A turma, em julgamento acontecido em 26/10/2021 decidiu alterar o valor da indenização. Segundo notícia do Migalhas, no julgamento o relator ministro Marco Bellize registrou a gravidade do caso e majorou os danos morais para R$ 120.000,00 e a ministra Nancy Andrighi sugeriu subir o valor para R$ 150.000,00, pela gravidade do caso. O julgamento se deu por unanimidade: RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. 7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência. 8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30.000,00 (trinta mil reais) viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso. A íntegra do acórdão não foi disponibilizada, mas o julgamento envolve alguns pontos sensíveis e importantes, tanto do ponto de vista da prestação jurisdicional como da reflexão doutrinária. Permito-me indicar alguns (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da Súmula nº 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação. Tudo isso é importante para a reflexão teórica, tudo isso é importante para a efetividade do Direito, tudo isso é importante para a atuação do advogado na condução do caso. Com a publicação da íntegra do acórdão, os temas serão aprofundados na Parte II. *Eroulths Cortiano Júnior é pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Advogado em Curitiba/PR.
Introdução O reconhecimento da autonomia na constituição das relações parentais, sejam biológicas ou sociofetivas, efetiva a democratização das relações paterno-filiais. Nesse sentido, emerge o fato de que a liberdade para se formar uma família socioafetiva, por adoção, multiparentalidade, por responsabilidade civil por abandono afetivo e alimentos em caso de destituição do poder familiar de filha adotiva. Por três votos a dois, deliberou-se que houve dano por atos praticados pelos pais adotivos que culminaram exemplo, traz consigo a responsabilidade no cumprimento dos direitos-deveres advindos do poder familiar. Indaga-se se há consequência jurídica ao se desconstituir o vínculo de filiação em família socioafetiva, através de análise do Recurso Especial nº 1.698.728 - MS, julgado em 04/05/2021, na reinserção de filha adotada ao acolhimento institucional. À liberdade de se constituir a filiação socioafetiva impõem-se deveres de responsabilidade parental cujo descumprimento gera consequência jurídica. Dano moral por abandono de filho adotivo. Síntese do relatório no REsp nº 1.698.728 - MS No acórdão supracitado, o relator, voto vencido, manifestou no relatório que: - A criança foi adotada aos nove anos de idade; - Os pais adotivos a agrediam física e psicologicamente; - Os pais procuraram o Ministério Público buscando medidas protetivas em seu favor, tendo afirmado que estava apresentando comportamentos antissociais e havia, até, fugido do colégio onde estudava; - O Ministério Público Estadual ajuizou medida protetiva em seu favor na qual pediu a intervenção judicial para o acompanhamento temporário da família por equipe técnica e órgãos oficiais, e a realização de estudo psicossocial na residência familiar; - O estudo psicológico constatou que os pais desejavam entregá-la para uma instituição de acolhimento e que eles não tinham interesse em resolver o conflito familiar; - A menor confidenciou para a equipe técnica ter medo da sua genitora porque ela a agredia com frequência; - A equipe técnica constatou indícios de transtornos nas suas áreas cognitiva, comportamental, emocional e física, o que acarretou a recomendação institucional para o fim de garantir sua plena integridade, tendo a Justiça acolhido a recomendação e determinado o seu acolhimento institucional, além da perda do poder familiar. Em primeira instância, pugnou-se pela condenação dos pais por dano moral, bem como ao pagamento de pensão alimentícia. O recurso de apelação deliberou pelo não pagamento de pensão de alimentos em razão de perda do poder familiar e pela não configuração de dano moral. Em recurso especial, proferiu o relator voto de que não se comprovou maus tratos pelos pais adotivos, houve divergência na condução da criação da filha, que tinha comportamento difícil, e serem os pais idosos. Não se comprovou o ato ilícito, portanto não há dano moral a ser reparado. Para tanto seria indispensável o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência que não pode ser levada a efeito em recurso especial, em virtude do óbice da Súmula nº 7 do STJ.  Restabeleceu a sentença, conferindo alimentos à menor. Em razão se de tratar de matéria inédita, solicitou a ministra Nancy Andrighi, vista. Destacou a ministra, em seu voto que as particularidades da referida adoção devem ser consideradas, e que é fato que a adotiva manifestou não interesse em ter a adolescente morando com consigo, após menos de cinco anos da adoção. Reconheceu o dano moral pelos seguintes motivos: - A adoção é ato irrevogável, - A partir dos mesmos elementos fático-probatórios, é possível inferir conclusão distinta, no sentido de que, cientes da impossibilidade jurídica de revogar a adoção da filha que não atendeu às expectativas nela depositadas, os recorridos provocaram artificialmente a destituição do poder familiar, de modo a devolver a filha adotiva que não servia aos seus propósitos e aos seus desígnios. -  Essa perspectiva egocêntrica de família, formada a partir da ideia de que somente será valioso aquele que sai exatamente aos seus e que não considera as diferenças de personalidade e as idiossincrasias da pessoa humana, é ainda mais lesiva quando se constata que, na hipótese, havia um conhecido passado de abandono, de abrigamento e de profundas mazelas que não poderia jamais ser desconsiderado; -  Embora realmente tenha havido falha estatal ao deferir à adoção de criança em condições tão especiais, não se pode eximir os pais adotivos de uma parcela dessa responsabilidade; - É crível e presumível concluir pela existência de grave abalo e de trauma psíquico em uma criança de 09 anos que, após anos de acolhimento institucional, é recebida em um lar em que espera permanecer e que, a partir de problemas que são cotidianamente enfrentados por todas as famílias do universo - talvez exponencialmente maiores em razão de sua vida pregressa, vê os seus pais agindo para devolvê-la ao albergamento aos 14 anos. Deveres parentais e reponsabilidade. Hans Jonas, ao escrever acerca do princípio da responsabilidade em que toma por objeto a natureza e as repercussões tecnológicas sobre ela, atenta para a necessidade de uma ética da responsabilidade. Segundo o autor, "cada escolha imediata exige conhecer as consequências remotas, [...]". As colocações do autor servem de reflexão para a necessidade de uma efetiva ética de responsabilidade em diversos âmbitos da existência. A responsabilidade se revela quanto ao outro, à sociedade em geral, e é essencial à sobrevivência humana. É no seio de uma família que ela primariamente se apresenta, é a partir da corresponsabilidade entre os familiares, e, especificamente, dos pais em relação aos filhos, que se pode imaginar uma responsabilidade entre seres humanos. É o que preleciona Hans Jonas, para, inclusive, atentar sobre a possibilidade de uma ética de responsabilidade através da responsabilidade primária do natural dever para com os filhos. A ideia de responsabilidade nasce da relação unilateral resultante da procriação e não da relação mútua entre adultos independentes. A origem da previdência e do altruísmo nos seres racionais, por muito sociais que sejam, não poderia ser compreendida sem a relação familiar. "Temos aqui o arquétipo de toda a ação responsável, implantado em boa parte da humanidade. [...]" A relação familiar e o conteúdo da responsabilidade entre pais e filhos são paradigma para a sociedade. Isto é, "os pais são responsáveis totalmente, o que é mais do que uma obrigação de solidariedade. A sua responsabilidade resulta de serem fonte de existência." A responsabilidade dos pais para com os filhos advém dos deveres inerentes ao poder familiar. Há uma responsabilidade para com a criação e educação dos filhos, para com a convivência familiar, e responsabilidade para com as consequências do descumprimento dos deveres parentais, sejam alimentares ou existenciais. Efetividade do dever jurídico de sustento, guarda e educação dos filhos Parentesco e filiação podem se constituir validamente de formas diversas, plurais, a gerar tratamento idêntico pelo ordenamento jurídico, em que não distingue a origem da filiação, seja biológica, socioafetiva. Nesse sentido, os deveres oriundos do poder familiar devem ser cumpridos, em respeito à autonomia e solidariedade na condução da criação dos filhos.       Esse dever, de conteúdo solidarista, importa em manifestação do legislador sobre as relações que julga deverem ser aplicadas e respeitadas como modelo de família que se deseja ver efetivada em nossa sociedade. Neste aspecto, constata-se a necessária adequação da interpretação dos artigos 1566 IV, 1631, 1634, do CC de 2002 face aos princípios da liberdade e da solidariedade, ponderáveis no caso em concreto, com base nos valores reinantes em nossa sociedade atual, visto que, as condutas nele consignadas requerem ser interpretadas conforme valores e os modelos de família vigorantes.  Como os artigos importam em dever, exige-se, logicamente, a observância desse dever jurídico. Esses artigos, ao tratarem dos deveres para com os filhos, de sustento, guarda e educação, reafirmam o comando constitucional a exigir que se ofereça à criança e ao adolescente proteção privilegiada. Depreende-se que se desdobram como centro de interesse de tutela os deveres e responsabilidade dos pais e os direitos dos filhos a uma adequada educação. O respeito à autoridade dos pais é essencial nas relações familiares, que se norteia pela afetividade e pela solidariedade. E exatamente por consubstanciar-se em relação interpessoal, existencial, que a troca será sempre um atributo intrínseco ao núcleo familiar. Nesta troca, entretanto, há que preponderar o amparo dos pais aos filhos menores, e o exercício da autoridade dos pais deve ter por critério norteador a garantia do bem-estar dos filhos. Relativiza-se o conteúdo da autoridade, que deixa de ser absoluta, no sentido de refletir um poder autônomo do pai como elemento do poder familiar no qual o legislador não interfere, para transformar-se em um poder-dever, cujo poder está, agora, no direito de exercer o poder familiar, ou seja, através da proteção e preservação dos interesses dos filhos face à sociedade.     Os arts. 1566, inciso IV, 1634, I e II requerem ser interpretados com base nos postulados constitucionais, especificamente devem analisados tendo-se por ponderação os princípios da liberdade, da responsabilidade, da solidariedade e da integridade física e psíquica. A eficácia do dever dos pais para com os filhos se apresenta naturalmente através das relações familiares, em um aspecto sociológico. Logicamente que há circunstâncias na qual um ou ambos os genitores não cumprem com o comando constitucional e infraconstitucional, expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil, de proteção, respeito, afeto, amparo material e moral, a exigir que se faça cumprir a sanção imposta à quebra de dever jurídico. A sanção imposta pelo ordenamento jurídico está na suspensão ou perda do poder familiar.  Consequências jurídicas do descumprimento de deveres parentais A sanção é um mecanismo de efetividade do conteúdo normativo que, ameaçado de violação ou já descumprido, gerou consequência jurídica, a atingir a esfera de liberdade, de dignidade de alguém, podendo ter sido atingido bem jurídico patrimonial ou extrapatrimonial. A sanção, como resposta à violação, deve ser efetiva, posto intentar reparar um ato contrário ao ordenamento jurídico, seus princípios e valores. O desamparo dos pais quanto aos deveres de guarda, criação e educação deve gerar, como consequência jurídica específica, a perda ou suspensão do poder familiar, conforme estatui o Código Civil. O que se deve analisar é se, neste caso, a sanção prevista foi suficiente para reparar o dano e imputar consequência reparatória a todos os envolvidos no fato.           Na infringência de dever jurídico imposto aos pais, há que se constatar que se rompeu hierarquicamente com o postulado constitucional de ampla proteção à dignidade da criança e ao adolescente. Ora, almeja-se, sempre, a concretude do ordenamento e a coerente efetividade das normas; para tanto, há que se proceder a uma interpretação das normas e verificar, para o caso de sua violação, se a reparação se relaciona com a sua efetividade. Ou seja, em analogia tem-se como exemplo o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/1990), que intenta proteger o consumidor face a um contrato com cláusula abusiva. A reparação para a quebra de princípios norteadores da teoria do contrato, e que melhor atente à efetividade da relação contratual, é a atribuição de nulidade para a cláusula abusiva. Neste caso, o consumidor foi amparado pelo ordenamento jurídico e quanto ao fornecedor, não há prejuízo a ser sanado. O fim imediato foi o de dar equilíbrio à relação contratual, consagrando-se a efetividade do Direito para a situação em concreto. Havendo, no entanto, dano injusto para o consumidor em decorrência do contrato, é cabível a reparação civil devida através da obrigação de indenizar. Não há conflito ou dupla punibilidade para a situação, posto que se atendem, com a nulidade e com o dever de indenizar, interesses diversos, ainda que relacionados a uma mesma situação jurídica. O que se deve garantir, sempre, é a efetividade do Direito, através da proteção àquele que sofreu um dano injusto. A liberdade de planejamento familiar não é destituída do direito ao status de filho, dos deveres parentais. Aliado ao fato de que a convivência é um dever jurídico, cujo abandono pode gerar dano moral, há, também, o abandono pela inadequada criação dos filhos, a gerar responsabilidade por dano quanto ao desenvolvimento psíquico e social dos filhos.  Conclusão A convivência entre pais e filhos é essencial à identidade do filho. Em havendo desrespeito ao postulado constitucional que atribui absoluta prioridade à dignidade da criança e do adolescente, há que se aplicar o instituto do dano moral posto que se trate de direito fundamental de qualquer ser humano em ser reparado em caso de violação de direitos existenciais. E, no caso de relações paterno-filiais não há que se falar em dupla punição, isto porque a reparação civil por dano moral não se reduz a uma punição, mas sim à sanção jurídica aplicável nas situações jurídicas de dano à dignidade humana. Trata-se de interesses que se interligam, mas que podem perfeitamente coexistir em virtude do dano, sua autoria, e a efetividade da reparação em relação à vítima.  Haverá dano moral quando se constatar ofensa à dignidade da pessoa humana e, nas relações paterno-filiais, acredita-se que é perfeitamente possível sofrer a criança um dano injusto pelo fato do descumprimento dos deveres atribuídos aos pais, isto porque se comprometeu a integridade física ou psíquica do filho, posto que a convivência sadia com os pais seja essencial à formação do filho. *Kelly Cristine Baião Sampaio possui doutorado e mestrado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Civil da Universidade Federal de Juiz de Fora.                Referências JHERING, Von.  A Finalidade do Direito. Tomo II. Campinas: Bookseller, 2002, p. 141. JONAS, Hans. O Princípio da Responsabilidade, retirado em 12/07/2007, p.8.
Em julho deste ano entrou em vigor a lei 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Trata-se de lei que tem como alvo aperfeiçoar o mercado, reforçando a cultura do pagamento das dívidas, por meio da educação para um consumo consciente de todos os envolvidos no mercado de crédito.  Entre as principais alterações trazidas pela nova lei, três merecem destaque.  Em primeiro lugar, houve a criação de novos princípios que devem nortear as políticas de proteção e defesa do consumidor, presentes no art. 4º do CDC, ligados ao fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores e à prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. São princípios que reforçam a função social da proteção do consumidor e a boa-fé objetiva, como padrão de comportamento ético nos contratos de crédito. Em segundo lugar, destaca-se a criação de novos direitos básicos do consumidor, ligados à garantia de práticas de crédito responsável e preservação do mínimo existencial, por meio da revisão e repactuação de dívidas.  Estabeleceu-se, ainda, um conceito de superendividamento, caracterizado pela "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial" (art. 54-A). Por fim, a lei estabeleceu  um complexo de regras procedimentais, regulando um conjunto de atos que se desenvolve em duas fases. A primeira é relativa a um processo de repactuação de dívidas, na qual é feita uma tentativa de conciliação global e em bloco, com a presença de todos os credores e a proposta pelo devedor de um plano de pagamento de, no máximo, 5 anos, preservados o mínimo existencial e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas (art. 104-A). Nesta fase é possível a renegociação administrativa, cuja competência é concorrente em relação a todos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Art. 104-C). Já na segunda fase, prevista no art. 104-B, não obtida a conciliação, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, por meio de um plano judicial compulsório, realizando a citação de todos os credores, cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado na fase conciliatória. No que diz respeito à responsabilidade civil, é possível afirmar-se, com segurança, que Lei garantiu a possibilidade de responsabilização do fornecedor de crédito pelos prejuízos ocasionados em razão de descumprimento das determinações nela contidas, principalmente como mecanismo de prevenção da situação de superendividamento.   O dever de informação nos contratos de crédito, já regulamentado no ar. 52 do CDC, ganhou contornos mais específicos, visando a facilitar o acesso e a compreensão do consumidor aos detalhes envolvidos na contratação. A par das informações técnicas do contrato, a Lei cuidou de limitar a publicidade do crédito, expressamente proibido "indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor" ou publicidade que venha a "ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo".   A Lei vedou, de igual modo, "condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais" (Art. 54-C) Ainda sobre a informação como arma de prevenção contra as armadilhas previstas nos contratos de crédito, a Lei condicionou o dever de informar e esclarecer as características e consequências do crédito contratado, à observância das características pessoais do tomador, notadamente sua idade. A diminuição de determinadas aptidões físicas ou intelectuais com o avanço da idade impõe uma redobrada fiscalização dos deveres de lealdade e colaboração impostos ao fornecedor de crédito, sob pena de ser responsabilizado pelas perdas e danos, patrimoniais e morais causados ao consumidor (Art. 54-D, parágrafo único). Não por outro motivo, a lei estabeleceu um "ilícito de assédio" nas relações creditícias. Ficou expressamente vedada a prática (conduta) de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, inclusive à distância, por meio eletrônico ou por telefone, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio".   Segundo Claudia Lima Marques, o assédio é uma prática abusiva que atinge principalmente os consumidores hipervulneraveis, caracterizando-se pela coerção ou influência indevida de profissional, que explorando emoções, medos, confiança do consumidor em situação de vulnerabilidade agravada, impede sua decisão racional na contratação de consumo1. A prática do assédio caracteriza-se tanto na esfera contratual, quanto à margem dela, havendo abuso da boa-fé do consumidor ou de sua situação de inferioridade econômica, expondo ainda mais a sua fragilidade. A caracterização do assédio encontra fundamento na imprescindibilidade imposta por nosso texto constitucional de tutela à pessoa humana e a sua dignidade. É de Pietro Perlingieri a afirmação de que "uma vez considerada a personalidade humana como um interesse juridicamente protegido e relevante para o ordenamento, a responsabilidade civil se estende também a todas as violações dos comportamentos subjetivos nos quais se pode realizar a pessoa."2 Dessa forma, todas as condutas ilíticas que venham a atingir a personalidade humana, considerando seus atributos mais caros, como a vida, a liberdade ou mesmo a sua integridade psicofísica, serão passiveis de causar dano a ser reparado, como no caso do assédio de consumo. E mais, a apreciação das condições pessoais da vítima do assédio e a avaliação de fatores individuais concretos devem ser considerados no momento da quantificação do dano. Com relação aos contratos de crédito, tipicamente massificados e de adesão, devem ser consideradas as condições peculiares dos contratantes, preservando a personalização do contrato. Busca-se, assim, proteger a posição do sujeito contratante, em especial o idoso, contra condutas de assédio que degradem sua posição contratual relativa, em termos de agravamento de vulnerabilidade, como, aliás, é próprio da teleologia do microssistema de proteção e defesa do consumidor. Apoiando-nos nas considerações de de Arthur Basan,3 é possível afirmar que a proteção contra os danos advindos do assédio tem fundamento na frustração do direito do consumidor exercer a liberdade e a autodeterminação no âmbito do mercado de consumo. Entendemos, assim, que o dano resultante dessa conduta é de natureza extrapatrimonial, em relação ao consumidor e possui, ainda, uma dimensão transindividual, pois, em escala agregada, protege a hidizez do próprio mercado de consumo. É, potanto, de interesse social a proteção do consumidor contra essa prática. A lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismos de aperfeiçoamento do mercado de crédito, com o objetivo de prevenir o superendividamento e responsabilizar os fornecedores pelo descumprimento de suas normas, apresenta-se como um importante passo na direção da proteção do sujeito vulnerável contra as armadilhas do mercado. A efetiva implementação da Lei depende, agora, da sua aplicação pelos tribunais, colocando-a em movimento e dando sua concretude fática, aperfeiçoando a defesa do consumidor, tendo em vista o norte constitucional de construção de uma sociedade justa, livre e solidária. *Marília de Ávila e Silva Sampaio é doutora pela Uniceub. Professora do programa de mestrado profissional do IDP e juíza de Direito do TJDFT. **Roberto Freitas Filho é doutor pela USP e professor dos programas de mestrado e doutorado do IDP/Brasília. Desembargador no TJDFT. __________ 1 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor:  o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. E-book. 2 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro. Renovar. 2008. 3 BASAN, Arthur Pinheiro. Do idoso sossegado ao aposentado telefonista. A responsabilidade civil pelo assédio do telemarketing de crédito. Revista IBERC. V. 4, n. 3 (2021), pp53-66.
A série Upload foi lançada pela Amazon Prime em 2020 e retrata sociedade futura em que alguns seres humanos poderiam optar por dar continuidade à sua vida em um ambiente virtual post mortem por meio do upload de sua consciência em ambiente de realidade aumentada. Entre os diversos questionamentos trazidos pela série (alerta de spoiler!), destacam-se: o acesso a esses serviços, uma vez que há enormes diferenças entre os pacotes de dados oferecidos por diversas empresas; o consentimento (ou a ausência dele) dado em condições extremis para a autorização de carregamento; quem pode manter interação com o falecido; e as consequências de eventual inadimplemento contratual. E é sobre esse último aspecto que esse breve ensaio irá se concentrar. Você pode estar pensando por que deveria ler um artigo que versa sobre transmissão de consciência e extensão de vida virtual após a morte se essas tecnologias nem existem ainda. E é verdade, tecnologias de transferência de consciência realmente ainda não foram patenteadas, mas tecnologias que emulam a pessoa morta estão em desenvolvimento, algumas já foram patenteadas e, em breve, pretendem chegar ao mercado; outras já estão aí disponíveis. Empresas como a Microsoft estão desenvolvendo softwares de inteligência artificial (IA) que, baseados em dados pessoais do morto coletados a partir de redes sociais, imagens, textos escritos, etc., permitem que familiares e amigos conversem com o falecido por meio de chatbots conversacionais1 que simulam a personalidade do morto. A patente não é nova (data de 2017), mas sua aprovação só ocorreu em 20202 e prevê não apenas a interação por texto, mas também por voz e imagem. No começo de agosto de 2021 o Mercado Livre em parceria com a Soundthinkers surpreendeu em campanha publicitária que utilizou técnicas de reconstrução digital de imagem e da voz do já falecido pai do jogador Zico, para surpreendê-lo em homenagem3. A técnica que aplica sistema de síntese neural não é novidade em si, já havia sido utilizada em duas oportunidades em filmes da franquia Star Wars e até em fins ilícitos como os deepfakes. Em 22 de setembro de 2021 noticiou-se que a Plataforma Projetc December, criada por Jason Rohrer em setembro de 2020 e mantida pela OpenAI, permitia que qualquer pessoa criasse seu chatbot utilizando um avançado sistema de inteligência artificial (GPT-3). A plataforma tinha como proposta permitir que seus usuários adaptassem chatbots para as suas realidades, não fazendo qualquer ressalva sobre o uso para emular pessoas já falecidas. Por isso, o escritor chamado Joshua, aproveitando a lacuna contratual, resolveu utilizar a tecnologia para simular conversas com sua falecida noiva, o que estaria lhe auxiliando a superar o trauma de sua morte e a processar o luto. Quando a história foi noticiada a empresa OpenAI exigiu que o programador inserisse restrições no sistema para que esse tipo de situação não voltasse a ocorrer4. Outro tipo de tecnologia já disponível no mercado é aquela que permite que fotos sejam transformadas em vídeos de alguns segundos (10 a 20 segundos). Esse serviço é oferecido pela Deep Nostalgia (hospedada na plataforma de genealogia MyHeritage e em outros aplicativos), lançado e fevereiro de 2021, que também utiliza inteligência artificial para dar vida a fotos. O programa utiliza vídeos pré-gravados de movimentos da face humana e, após melhorar a qualidade do documento, aplica-os sobre a imagem disponibilizada pelo usuário5. Em 2019 se falava de 'ressuscitar grandes nomes da música' internacional para apresentação em shows6. Coloca-se, no entanto, como um desafio para o Direito uma vez que as novas imagens são inéditas, ou seja, não foram originalmente produzidas ou autorizadas pelo retratado. Pior. Obrigações contratuais e créditos (de diferentes naturezas) estariam sendo criados por alguém e para aqueles que até pouco tempo eram meros titulares (sucessórios, muitas vezes) de direitos já existentes. O próprio acervo patrimonial do de cujus poderia estar sendo inflado não por fruto de trabalhos pretéritos, mas futuros. No entanto, para além dos momentos nostálgicos e do auxílio com o luto, é necessário refletir sobre os direitos do morto. Há tempos já se sabe que os direitos de personalidade se estendem para depois da morte de seu titular, mas, com essas tecnologias, para além de se discutir autodeterminação corporal7 após a morte e direitos relacionados à herança digital, dá-se um passo além, é preciso tutelar a identidade pessoal e os valores existenciais do morto. Com a morte, extingue-se a personalidade jurídica, mas não se aniquila por completo direitos do falecido, em especial aqueles que se referem à sua personalidade. Estende-se para além da existência física a tutela do nome, imagem, honra, vida privada, etc., protegendo-se, de forma perene, sua dignidade. Por isso, tutelar identidade pessoal e valores existenciais em face dessas tecnologias que visam emular a pessoa é tão imprescindível quanto tutelar a própria pessoa ainda em vida. O bem jurídico aqui tutelado são os aspectos da personalidade do falecido, preservando-se a sua memória, os seus desejos, os seus valores, a sua forma de conduta. Trata-se de verdadeiro direito de autodeterminar seu legado e como será lembrado. O Código Civil estabelece ampla e controversa legitimidade nos arts. 12 e 20, parágrafo único, CC, para que cônjuge ou parentes de até quarto grau em linha reta ou colateral exerçam a defesa dos direitos de personalidade post mortem. "A tutela da personalidade do homem no direito brasileiro dá-se mediante um sistema misto. Realiza-se através da cláusula geral protetora da personalidade, tendo o legislador recepcionado a categoria do direito geral de personalidade ao lado de direito especiais de personalidade tipificados na Constituição e em lei"8. No entanto, a lei não pensou que essas mesmas pessoas poderiam um dia servir-se das memórias do morto para recriá-lo e, se permitida a analogia, reobrigá-lo. Diante das tecnologias antes apresentadas é preciso pensar em freios e talvez o primeiro e mais simples seja a necessidade de consentimento do falecido para a perpetuação de sua via post mortem. A utilização da imagem e eventualmente as possibilidades de nova contratação sobre aqueles traços de memória e mídia não seria reificar a pessoa? Qual o nível de determinação esperado? O silêncio em disposição de última vontade seria entendido como permissão? Parafraseando a famosa atriz Greta Garbo, não se poderia exigir "ser deixado só"? Haveria um direito de afirmar que a morte é definitiva ou a tecnologia poderia decretar a morte da morte? Sem essa autorização expressa, seja porque ele mesmo contratou o serviço, seja porque em outros documentos autorizou que terceiros o fizessem, não se pode falar em legitimidade do uso de direitos de personalidade post mortem. Não há, um direito de propriedade dos herdeiros sobre direitos de personalidade do morto e, por consequência, sobre seus frutos ou exploração de prestações futuras. A defesa da memória do falecido é condição de preservação de seus valores existenciais. Mas, vamos focar na nossa proposta inicial. Pensando que o morto deixou expressa autorização para o uso de tecnologias que o recriam após a morte, é devemos discutir os eventuais reflexos do inadimplemento contratual seja por parte do prestador de serviço, seja pela pessoa encarregada de gerenciar o serviço após a morte do titular. Como deverá ser determinada a responsabilidade civil contratual pelo desaparecimento da pessoa ad eternum? Tal análise poderia, aliás, perpassar vários níveis. Retomemos a primeira temporada da referida série (alerta de spoiler!) para retratar alguns: (i) ao deixar de arcar com os custos de perpetuação da consciência de seu falecido namorado, o personagem passa a sofrer diversas limitações de carregamento de dados. Já de partida temos uma consequência não patrimonial para eventual inadimplemento contratual: deixar de existir (até o próximo pagamento). O Direito Privado contemporâneo tem, como se sabe, limitado as hipóteses de pressão ao adimplemento circunscrevendo-as ao patrimônio (vide, por exemplo, o art. 789 do CPC e art. 391 do CC). (ii) Na série, o hóspede do pós-vida é consumidor utente, beneficiário de contrato entabulado por sua então namorada (e talvez parte de uma estratégia de prisão emocional). Como alguém poderia dispor sobre os direitos de personalidade de outrem? Ele poderia vir a ter sua experiência de consciência limitada pelo eventual inadimplemento da devedora? (iii) Como seria tratado o eventual inadimplemento das prestações mensais de manutenção da consciência ativa? Seria obrigação preservá-la independente de pagamento (favor debitoris) ou, ao invés de mera mora, haveria resolução a permitir a extinção do contrato (e da consciência)? Qual o limite, portanto, do interesse creditício? (iv) No seriado, o personagem principal consome bens e serviços digitais. Algo nada longe de uma realidade que já experimentamos com o non fungible tokens (NFT) e adereços, cenários, expansões e equipamentos nos jogos de realidade aumentada. Como endereçar este consumo? Como tratar seus vícios de serviço, defeitos e auferir consentimento. É possível que alguém com consciência ativada em realidade aumentada seja considerado capaz e possa validamente consentir? (v) Como medir as cláusulas penais e as cláusulas de limitação de responsabilidade? O defeito do serviço que apague a consciência é hipótese de perda de uma chance? (vi) Considerando a existência consciente em um pós-vida, qual seria o regime jurídico deste negócio para fins até mesmo de interpretação de execução e identificação dos deveres decorrentes do standard esperado? As realidades complexas e dinâmicas trazidas pelas novas tecnologias desafiam o Direito e, agora, desafiam também a morte. Não é possível pensar sobre essas novas inquietações a partir de velhas teorias sobre direitos de personalidade e tampouco da responsabilidade civil. É preciso dar um passo além, agora com os olhos de quem é tentado por tecnologias que prometem a imortalidade.  *Fernanda Schaefer possui pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do curso de pós-graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MPPR. **Frederico Glitz é advogado. Pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias (Reggio-Calabria). Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Internacional Privado e Contratual. Componente da lista de árbitros da Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná (CAMFIEP) e da Câmara de Mediação e Arbitragem do Brasil (CAMEDIARB). Presidente da Comissão de Educação da OAB/PR. __________ 1 Vide: KLEINA, Nilton. Patente da Microsoft prevê criar chatbot até de quem já morreu. In: Tecmundo, 4 de jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 2 Acesse a íntegra da patente aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 3 Vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. In: Migalhas, 19 de ago. 21. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 4 Vide em: IstoÉ Dinheiro, 22 de et. 2021. Homem cria chatbot para falar com noiva morta e empresa encerra Plataforma. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 5 Vide em: TOUEG, Gabriel. IA ressuscita quem já morreu e rende enxurradas de memes na internet. In: UOL, 4 de mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 6 Vide: ANDRION, Roseli. Hologramas 'ressuscitam' grandes nomes da música mundial em 2019. In Olhar Digital, 18 de julho de 2019. Disponível aqui. Acesso em 14 de out. 2021. 7 Sobre autodeterminação corporal vide DALSENTER, Thamis. Criogenia e tutela post mortem da autodeterminação corporal. In: Migalhas, 2 de abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 8 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 182-183.
Introdução A mitigação de danos invoca uma ideia à primeira vista simples, que pode ser tripartida: Diante de um evento danoso, espera-se que da parte prejudicada que atue para mitigar os prejuízos dele decorrentes (1). Se o fizer, poderá cobrar ser indenizada por danos inevitáveis e despesas razoáveis do esforço de mitigação (2). Se não o fizer, não poderá cobrar os danos evitáveis, que deixam de ser indenizáveis (3). A simplicidade, contudo, é meramente aparente. Seja por encontrar fundamentos e disciplina distintos em cada ordenamento, seja por sua aplicação prática suscitar inúmeros dilemas, a mitigação apresenta uma série de desafios ao intérprete e ao operador do direito. Mitigação de danos pelo mundo e pelo Brasil Ainda que sob roupagens distintas - a mitigação está presente em diversos ordenamentos mundo afora. É figura de destaque nos países da tradição do Common Law, mas também se fala de mitigação em países da tradição Romano-Germânica, embora com tratamentos diferentes. No Common Law, a matéria é comumente referida como duty to mitigate, embora de dever não se trate. É tratada como um dos métodos de limitação da indenização, junto com Remoteness e Contributory Negligence. Em França, a mitigação foi tratada sob o prisma da causalidade e do venire contra factum proprium. Contudo, em 2003, a Corte de Cassação reverteu dois julgados em que as instâncias inferiores aplicaram a mitigação de danos para reduzir a indenização devida ao credor. A Corte considerou que, não havendo regra expressa, não caberia penalizar o credor que não age para limitar seus próprios danos, causando um retrocesso, especialmente na esfera extracontratual. Na Alemanha, a mitigação recebe o tratamento equivalente ao da corresponsabilidade do lesado (BGB, §254, 2), estabelecendo que "isso também se aplica se a culpa do lesado se limita a ter deixado de chamar a atenção do devedor para o risco de danos extraordinariamente elevado, que o devedor não conhecia nem deveria conhecer, ou deixar de evitar ou reduzir o dano." Na Itália, conforme art. 1.227, (2), do Codice Civile, "O ressarcimento não é devido pelos danos que o credor poderia ter evitado usando a diligência ordinária."1 A mitigação também foi incorporada ao Direito Internacional, como demonstra o exemplo mais conhecido, qual seja, o art. 77 da Convenção de Viena Sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Bens2. Além disso, há diversas iniciativas de soft law que consagram a mitigação de danos, tais como o art. 9:505 dos Princípios Europeus do Direito dos Contratos ("PECL")3. No Brasil, o interesse para o estudo da mitigação de danos foi gerado pelo artigo seminal de Vera Jacob Fradera, de 2004, na qual indagava se "Pode o credor ser instado a mitigar o próprio prejuízo?", intuindo que a resposta é positiva, com fundamento na boa-fé objetiva., mas suscitando a discussão do tema. Assim, na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a autora propôs aquilo que viria a ser o enunciado 1694. Seguiu-se rápido desenvolvimento doutrinário, especialmente voltado a examinar se e como o direito brasileiro teria acolhido a mitigação de danos. O esforço é mesmo natural. O silêncio da legislação obriga intérpretes impõe cuidado redobrado na missão de identificar o fundamento da mitigação de danos e a sua função (ou natureza jurídica) sem prejuízo da integridade do sistema jurídico e de seus cânones constitucionais. Grassaram, então, diversas propostas de fundamento. Desde a o abuso do direito, passando pela figura parcelar do venire contra pactum propium, até soluções ligadas à causalidade. Nestas, enxerga-se o dano evitável como dano indireto, fruto do rompimento (parcial ou total) do nexo causal, dado o descumprimento, pelo credor, da exigência (ônus, encargo ou incumbência) de atuar com ordinária diligência e minorar os danos decorrentes do descumprimento alheio. A despeito da miríade de fundamentos propostos, doutrina e jurisprudência brasileiras lograram atingir relativo consenso quanto ao acolhimento da mitigação de danos pelo ordenamento jurídico. Esse atingimento pode ser identificado como o fim da primeira fase do instituto da mitigação de danos no direito brasileiro, a sua infância. Para onde ir? A mitigação na prática Atingido esse estágio evolutivo, pode-se propor que o estudo da mitigação de danos no Brasil entra em sua segunda fase, a adolescência do instituto, cujo propósito deve residir em estabelecer parâmetros mais seguros para os agentes econômicos e os operadores do direito a respeito da aplicação prática da mitigação de danos. Imagine-se que uma parte é vitimada pelo inadimplemento imputável à contraparte, vindo a sofrer danos patrimoniais. O que dela se espera? Que atue com razoabilidade visando a mitigar os seus danos. Mas o que é ou não razoável varia à luz das circunstâncias específicas, das características e da situação concreta de cada parte etc, gerando uma série de questionamentos e dilemas, como sói ocorrer na aplicação de comandos dotados de indeterminação. Parte da doutrina critica o uso da razoabilidade para aferir a legitimidade da conduta do credor, sugerindo que a conduta do lesado que falha em mitigar seu próprio dano rompe o nexo de causalidade e, por isso, o critério de imputação seria o da culpa. Essa posição não anula a dificuldade enfrentada, que decorre da aplicação prática dos conceitos teóricos da doutrina da mitigação. Seja o critério de imputação o da razoabilidade, seja o da causalidade, a dificuldade deve ser enfrentada. Havendo algum grau de indeterminação no enunciado de um comando jurídico, haverá sempre três espaços perceptíveis de atuação para o operador do direito: uma zona de certeza negativa, que reúne os casos em que claramente o conceito não é atendido (1); uma zona de certeza positiva, em que claramente o conceito é atendido (2); uma zona de penumbra, que reúne os casos limítrofes, passíveis de gerar as maiores polêmicas (3). Fazendo uma aproximação para o caso da mitigação e danos, há situações em que uma dada medida certamente não é razoável e, por isso, não se poderia esperar do credor que assim agisse, ainda que para mitigar os próprios danos. Portanto, nesse cenário, o credor que não adota essa medida faz jus à integralidade do dano que tiver sofrido. Essa é a zona de certeza negativa. Por outro lado, há situações em que a medida certamente é razoável. Estamos, aí, na zona de certeza positiva. Sendo a medida plenamente razoável, o credor que não a adota deixa de fazer jus à indenização do dano evitável. Não se pode esperar do proprietário de uma casa em chamas que arrisque a vida para tentar conter o incêndio, mas sim que ligue para os bombeiros imediatamente. Mas, ao lado dessas duas zonas de certeza, existe uma zona de intermediária, na qual definir se uma dada medida é ou não razoável constitui um verdadeiro desafio para o operador do direito. Evidentemente, trata-se de metáfora para que se possa compreender que nem todo caso é simples e binário. Ainda assim, são casos difíceis de serem decididos, pelos elementos concretos que apresentam e, não raro, pela existência de interesses conflitantes a serem ponderados, de modo a se verificar qual é aquele que deve prevalecer e ser tutelado. Evidentemente, existe um campo fértil para polêmicas em tema de mitigação de danos. Por isso, superada a infância da matéria, isto é, estabelecido que o direito brasileiro recepcionou e incorporou o preceito da mitigação de danos pelo credor, inaugurou-se a fase da adolescência. Nela, doutrina e jurisprudência devem atentar ao estabelecimento de limites claros sobre o alcance da mitigação, preocupando-se em estabelecer com rigor o que é e o que não é esperado de cada parte, separando a expectativa legítima, que deve ser tutelada, do mero abuso da posição da pessoa devedora que apenas deseja limitar a extensão do dano a que pode ser condenada. É fundamental que a doutrina e a jurisprudência evitem o uso da mitigação de danos como uma panaceia contra todos os males que assolam a parte devedora. Esse fenômeno já acometeu outros institutos de vocação igualmente salutar, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Para tanto, o primeiro passo é ter em mente quais são os interesses que devem ser sopesados ao avaliar a conduta da parte lesado para determinar a extensão da indenização devida pela parte lesante. De fato, em geral, a mitigação alinha os interesses das partes envolvidas. A exigência de mitigação cria um incentivo econômico para que a parte lesada atue de modo eficiente na contenção dos danos decorrentes do inadimplemento. Mas e quando esses interesses conflitam? Situação interessante é o da mitigação proposta pela própria parte em mora. Imagine-se que uma parte se obriga a entregar pás eólicas no prazo de 1 ano. Após a celebração do contrato, essa parte notifica a credora informando que, em razão da variação do preço dos insumos, exige o aumento o preço contratado, do quê a compradora discorda. Para resolver o impasse, a vendedora oferece um preço 30% maior do que o contratado, ainda assim, menor do que o segundo melhor preço de mercado, mas exige da contraparte quitação total. Sob a ótica do interesse jurídico da vendedora, a aceitação da oferta é medida legítima, pois é a que menos aumenta o preço da operação. Sob a ótica do interesse jurídico da compradora, a oferta é legitimamente recusável. Afinal, exige a renúncia a direitos, transferindo à compradora o risco do aumento do preço e dos danos decorrentes da demora na definição da questão (1). Além disso, dá à vendedora o poder de impor a renegociação do contrato, desde que o seu preço seja menor que o da concorrência (2). Conclusão À guisa de conclusão deste despretensioso escrito, impende ter presente que os estudos brasileiros em torno da doutrina da mitigação de danos superaram a fase inicial, de infância da matéria, na qual se destacou a importância de estabelecer, com segurança, que o ordenamento brasileiro acolheu a noção de mitigação de danos pelo credor. Fê-lo com sucesso, dado grassar relativo consenso a esse respeito. Inaugura-se, então, uma segunda fase dos estudos da matéria, a sua adolescência. Nela, espera-se da doutrina e da jurisprudência a construção diretrizes claras a respeito do alcance prático da mitigação de danos e suas consequências. Em especial, que sejam traçados parâmetros identificáveis pelos agentes econômicos a fim de lhes outorgar maior segurança para balizar decisões que, não raro, são tomadas em situação de pressão e urgência, como é típico em situações de mitigação de dano. Em especial, afigura-se fundamental combater com rigor as tentativas de desvirtuar o instituto e transformá-lo em mais uma ferramenta para permitir que devedores deixem de responder por aquilo que lhes seja imputável. *Rafael V. Gagliardi é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Associado ao IBERC e Fellow do CIArb. Advogado e árbitro. Sócio de Demarest Advogados. __________ 1 "2. Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza." 2 "A parte que invocar o inadimplemento do contrato deverá tomar as medidas que forem razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento, incluídos os lucros cessantes. Caso não adote estas medidas, a outra parte poderá pedir redução na indenização das perdas e danos, no montante da perda que deveria ter sido mitigada." 3 "Article 9:505 - Reduction of loss: (1) The non-performing party is not liable for loss suffered by the aggrieved party to the extent that the aggrieved party could have reduced the loss by taking reasonable steps. (2) The aggrieved party is entitled to recover any expenses reasonably incurred in at tempting to reduce the loss." 4 "Art. 422: o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo."
quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Responsabilidade civil e adoção

Quando o tema deste ensaio me foi proposto, iniciei uma reflexão que julgo bastante necessária: o que acontece quando genitores biológicos não desejam mais cuidar de seus filhos? O que ocorre quando por condições financeiras, psicológicas, psiquiátricas, neurológicas, ou até mesmo por experimentarem um desamor profundo, uma falta de vínculo, ou qualquer coisa que o valha, pais e mães não queiram participar do desenvolvimento de seus filhos e desejem lançar mão de sua criação? É interessante que o mito da mãe amorosa, daquela que é capaz de tudo para ter os filhos consigo, tomou-me de assalto. Entretanto, como dito no início da frase, trata-se de um mito, de uma representação do ideal. Infelizmente, a fila de crianças esperando por um lar adotivo cresce a cada dia. Voltando à minha reflexão inicial, os genitores que desejam não mais ter seus filhos em sua companhia não podem, por óbvio, abandoná-los à própria sorte, já que tal fato é tipificado como crime (o abandono de incapaz no artigo 133 do Código Penal e o abandono de recém-nascido no dispositivo seguinte, artigo 134 do referido Diploma Legal). Possivelmente, os pais biológicos conversarão com parentes próximos, verificando a possibilidade de que tais familiares venham a assumir o que entendem como um fardo. Talvez entreguem os filhos a vizinhos e conhecidos, ignorando as consequências jurídicas de tal comportamento, fomentando aquilo que se convencionou chamar de "adoção à brasileira". Por fim, devidamente orientados, buscarão o Estado, que tem o dever de acolher tais pessoas, conforme previsto nos artigos 13, §1º e 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõem sobre a "entrega legal", também apontada como "entrega consciente" dos menores à Justiça da Infância e da Juventude. Há até quem diga que essa entrega é um verdadeiro ato de amor, daquele que de forma consciente entende que a criança estará melhor se levada aos cuidados do Estado. Infira-se, que ao receber a criança/adolescente, o Poder Judiciário ainda tentará alocá-la na família extensa, buscando a família substituta de forma excepcional. Pois bem. Esses genitores, que buscam a entrega do filho ao Poder Judiciário, não estão sujeitos a qualquer punição. Não terão que pagar aos filhos verba alimentar e não terão que indenizá-los, já que perderão o poder familiar.   Verdade seja dita, nestes casos de entrega consciente/voluntária/legal, a criança muitas vezes é vista como um erro. É duro, eu sei, e muito me custa falar isso. Mas é a realidade para muitos. Veja que meu objetivo não é exercer julgamento ético ou moral sobre as atitudes desses genitores. Quero compreender, no âmbito da responsabilidade civil, por que razão tratamos a interrupção do processo de adoção como ilícito civil e somos tão condescendentes com os pais biológicos? O ponto, talvez, seja justamente o elemento volitivo. Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um processo rígido de inscrição e avaliação do candidato a adotante. Não se poderia esperar menos, já que o Estado é responsável por aquela pessoa, que será entregue à uma família substituta. Depois da inscrição na Vara da Infância e da Juventude, os interessados passarão por estudo psicossocial, que tem como condão avaliar se eles têm condições de exercer a maternidade/paternidade responsável. Destaque-se que o artigo 43 do ECA deixa claro que a adoção será deferida se apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. Como bem ressaltam Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann: "Os motivos legítimos são aqueles que se identificam com a finalidade protetiva da adoção, aqueles ligados ao exercício da paternidade real e dedicados ao desenvolvimento do filho. A criança ou o adolescente não são meios para atender aos desejos e às expectativas individuais, mas sim parte de um plano maior: a formação pessoal e cidadã do adotando. Isso só será possível se os postulantes se descolarem de suas expectativas e adotarem a criança real, aquela que tem sua própria história, suas próprias características e seus próprios desejos.  Feita essa avaliação, os postulantes são inscritos em um programa de preparação para a adoção (...). Cumpridas essas  etapas, o procedimento é encaminhado ao Ministério Público, que analisará a regularidade formal dos autos, podendo ou não requisitar novas diligências e apresentar seu parecer final, o qual será examinado pelo magistrado (art. 197-D da lei 8.069/1990). A decisão judicial de deferimento é o que permite a inscrição dos interessados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)."1 O postulante à adoção, portanto, manifesta não só o seu desejo de adotar, como também se submete a criterioso estudo que culminará em sua inscrição no SNA. Durante esse processo, por razões óbvias, o postulante poderá a qualquer momento manifestar a sua desistência. Quando o sistema entende que há uma compatibilidade entre o menor disponível para adoção e o postulante, este último é convidado a conhecer a criança ou o adolescente, dando início ao estágio de convivência. O ECA prevê que o postulante poderá recusar dar início ao estágio de convivência. Entretanto, se fizer isso por três vezes será submetido a nova avaliação. Entende-se que não há qualquer possibilidade de responsabilização do postulante à adoção neste estágio. Esse é efetivamente o momento de recusar a aproximação ou de desistir de dar continuidade no processo. Inobstante, em estágios mais avançados do processo, não há como negar a responsabilidade do postulante, já que depois de iniciada a convivência da criança/adolescente com o adotante, não há mais momento propício para a interrupção do processo, já que aquela pessoa em formação já dispensou todas as suas esperanças naquela nova estrutura familiar. Conforme opina Epaminondas Costa, o estágio de convivência não é um direito instituído em favor dos adotantes, de tal forma a legitimar "devoluções" injustificadas de adotandos. "O estágio de convivência, previsto no art. 46 do ECA, não pode servir de justificativa legítima para a causação, voluntária ou negligente, de prejuízo emocional ou psicológico a criança ou adolescente entregue para fins de adoção, especialmente diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da prioridade absoluta em relação à proteção integral à infância e à juventude."2 Esse também é o entendimento de Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann, com o qual compactuo: "Dentro da ótica de proteção integral que embasa todo o Direito da Infância e da adolescência, o estágio de convivência deve ser compreendido como uma garantia para a criança ou para o adolescente. Ele não é um período de teste com um direito a arrependimento, é um efetivo compromisso com obrigações éticas e jurídicas com o adotando assumidas perante o Poder Judiciário. (...) Como mencionado, em regra, o estágio de convivência acaba com um relatório que trará subsídios para o magistrado decidir sobre a adoção. Entretanto, ele pode findar-se com a desistência da adoção por parte dos postulantes. Tal desistência pode ter sérios reflexos na vida da criança e/ou adolescente, aquela pessoa mais vulnerável e quem o Direito nacional deve proteger com absoluta prioridade."3 Entender a desistência durante o estágio de convivência como abuso de direito abre as portas para a reparação civil, mas deve suscitar muita reflexão. Trata-se de uma situação em que o "cobertor será sempre curto". Explico. Primeiro, a responsabilização pode gerar um afastamento dos possíveis candidatos à adoção, mas se ela não existir, os menores ficarão vulneráveis à desistências injustificadas e vazias. De outro giro, a responsabilização pode fomentar a insistência na manutenção de vínculos entre indivíduos que não estão certos do processo, formando famílias disfuncionais (o que julgo difícil, já que será feito um relatório psicossocial ao final do estágio de convivência, e que pode concluir pela impossibilidade de formação de laços familiares, com a sugestão de retorno da criança ao acolhimento). Outro ponto que merece ser avaliado: e se houvesse uma indenização previamente definida, ou seja, uma previsão legal de compensação financeira caso o estágio de convivência não desse certo, oferecendo-se uma prévia uma proteção financeira ao menor adotando? À primeira vista parece ser uma solução boa e viável, até que se imagina que alguns postulantes poderiam ver a situação como um escape para todo o processo de adoção, empenhando-se menos do que deveriam para fazer essa situação tão peculiar que é a formação de uma nova família a partir de laços não-sanguíneos, dar certo. A verdade é que não há nada mais complexo do que atribuir responsabilidade civil a violações de direitos de personalidade ocorridas no campo do Direito das Famílias. Cada situação deve ser avaliada pelo Poder Judiciário, levando-se sempre em consideração o melhor interesse da criança e do adolescente, destinatários de especial proteção do Estado. Por fim, volto-me para a esdrúxula previsão do artigo 197-E, §5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que contempla a possibilidade da devolução da criança adotada depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. Já me manifestei pela inconstitucionalidade do dispositivo, em face do artigo 227, § 6°, da Constituição Federal de 88, vez que com o trânsito em julgado da sentença, a adoção se torna irrevogável e o adotado passa a ser filho, estendendo-se a ele todos os efeitos legais da filiação, com todos os direitos e qualificações. Permitir a "devolução" seria conferir ao filho adotivo uma condição inferior àquela atribuída ao filho biológico.4 Por essa razão, defendo que, exatamente como ocorre com o filho biológico, o filho adotivo terá o direito de ser colocado na família extensa, devendo o Estado buscar parentes dos pais adotivos para verificar a viabilidade da criança ser mantida naquele seio familiar, exatamente como faria se a criança não pudesse ficar com os pais biológicos. Se, infelizmente, a criança não encontrar guarida na família extensa, enfrentará a cruel realidade de voltar ao âmbito do cuidado estatal. No início deste ensaio, refleti sobre a possibilidade da entrega consciente. Pais biológicos que entregam seus filhos ao Estado, por não poderem/desejarem participar de sua criação. Demonstrei que o ato se coaduna com a lei, e que os genitores não sofrem punições ou são responsabilizados por voluntariamente entregarem sua prole ao Poder Judiciário. Por que os pais adotivos não podem se valer da mesma regra? Como já dito, na adoção há um elemento volitivo que não se verifica na paternidade/maternidade biológica. O desejo manifesto de ingressar no Sistema Nacional de Adoção, de participar de todas as etapas do processo de adoção, de aceitar o estágio de convivência, de dar continuidade buscando a sentença que constitui o vínculo familiar, torna a "devolução" para o Estado, um ato de abuso de direito, que deve ser rechaçado por meio dos institutos da responsabilidade civil. "Devolver" significa "coisificar", o que corresponde a evidente violação dos direitos de personalidade daquele sujeito de direitos. E ainda que a compensação pecuniária possa não parecer a solução mais adequada, neste momento, ela é a única que se apresenta. *Fernanda Orsi Baltrunas Doretto é graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (curso concluído em 1998). Advogada desde 1999. Sócia de Ghenis Viana, Teixeira Gobatto e Baltrunas Doretto Sociedade de Advogados. Possui Mestrado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2002), com a dissertação intitulada "Direito à Imagem" e Doutorado em Direito Civil, também pela Universidade de São Paulo (2008), com a tese "Dano Moral Coletivo". Atualmente é professora dos Cursos de Direito das seguintes instituições: Universidade Paulista (UNIP) e Universidade São Judas Tadeu, bem como é professora convidada da pós graduação da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro do IBDFAM, do IBERC, da AIDDP e Co-Diretora da Revista Brasileira de Direito Civil. __________ 1 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann. Responsabilidade civil nos casos de desistência de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 128. 2 Estágio de convivência, "Devolução" imotivada em processo de adoção de criança e adolescente e reparação por dano moral e/ou material. Disponível aqui. Acesso em 19/02/2021. 3 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann, 2021, pp. 129 e 130. 4 DORETTO, Fernanda Orsi Baltrunas. Responsabilidade civil nos processos de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 78.
As ações de reparação por danos concorrenciais - popularmente denominadas "ARDCs" por doutrinadores e militantes na área concorrencial - têm sido alvo de bastante atenção e inúmeros debates recentes no Brasil em razão da expectativa quanto ao private enforcement concorrencial no país - i.e., a persecução privada de ilícitos concorrenciais sob o prisma da reparação de danos, alheia ao enforcement do Estado. Tal expectativa estaria relacionada à ideia de que a reparação privada de danos concorrenciais poderia ser capaz de operar como instrumento dissuasório adicional da prática de infrações à ordem econômica, ao lado das repressões administrativa e criminal, normatizadas, especial e respectivamente, na lei 12.529/2011 ("Lei Antitruste Brasileira") e na lei 8.137/1990. A despeito de destacarem a - possível - função complementar das ARDCs ao public enforcement concorrencial, os debates a respeito delas não parecem preocupar-se - com o devido cuidado - em analisá-las sob a perspectiva das funções tradicionalmente atribuídas a ações indenizatórias. Ou seja, as discussões a respeito das ARDCs no Brasil não parecem estudar sua(s) exata(s) função(ões) sob o prisma da responsabilidade civil, ficando restritas apenas à sua - eventual - função no âmbito da política antitruste brasileira. Nesse contexto, o presente artigo visará lançar breves reflexões sobre as ARDCs vis-à-vis as funções reparatória, precaucional e, inclusive, a sancionadora da responsabilidade civil, bem como respectivas implicações. Para tanto, é importante tecer breves considerações a respeito de cada uma das três referidas funções da responsabilidade civil. Nesse sentido, entende-se que a função reparatória corresponde àquela precipuamente atribuída à responsabilidade civil - i.e., de restabelecimento do equilíbrio econômico-jurídico eliminado em decorrência de um dano, transferindo os ônus materiais impostos pelo respectivo prejuízo ao seu causador. Por sua vez, a função precaucional tem como propósito coibir atividades potencialmente danosas, que exigem medidas antecipadas de diligência a serem tomadas por aquele que desenvolve atividade de risco. Finalmente, a função sancionadora corresponde à aplicação de uma pena civil ao ofensor.1 Sob a perspectiva de tais funções da reparação civil - qualquer que seja sua causa - é que deveria se propor a análise da capacidade dissuasória das ARDCs, sendo importante pontuar que o princípio da prevenção é inerente à atual concepção de responsabilidade civil. Sendo assim, (i) a função reparatória basear-se-ia na prevenção de danos; (ii) a função precaucional, na prevenção de riscos; e (iii) a função sancionadora, na prevenção de ilícitos.2 Considerando tais vertentes da responsabilidade civil no âmbito das ARDCs, e não apenas o eventual potencial dissuasório destas últimas em adição ao public enforcement do Direito Concorrencial, conclusões e desafios se materializam, conforme explorado a seguir. Primeiramente, é evidente que eventuais danos materiais decorrentes de uma conduta anticompetitiva poderiam, em tese, ser reparados por meio de uma ação indenizatória se comprovados nexo de causalidade e dano, além do próprio ato ilícito. Com isso, consubstanciar-se-ia a função reparatória das ARDCs. Não obstante, é imprescindível ressaltar que a prova de tais danos é indispensável para que a reparação seja deferível e mensurável, devendo aplicar-se a regra geral das ações que têm por objeto a reparação de prejuízos materiais, em conformidade com o art. 373 do Código de Processo Civil ("CPC") sobre atribuição do ônus da prova. Diante disso e do comando do art. 944 do Código Civil, segundo o qual a indenização se mede pela extensão do dano, o prejuízo material no âmbito de uma ARDC não traz qualquer particularidade ou distinção digna de nota, pois, por absoluta falta de amparo legal, não se admite a sua presunção, além de não ser possível afigurá-lo como consequência automática da eventual prática de ilícito concorrencial - situação em que a eventual indenização, inclusive, seria capaz de originar uma situação de desequilíbrio inter partes. Por conseguinte, ausente qualquer inovação - por absoluta falta de fundamento jurídico para tanto - no caráter reparatório das ARDCs, as possíveis controvérsias e desafios envolvendo a tal espécie de ações residiriam em torno das funções preventiva e sancionadora da responsabilidade civil. Isso porque a intenção de atribuir-se uma eficácia dissuasória a tal modalidade de ações indenizatórias não seria uma questão trivial, considerando, especialmente: a ausência de legislação específica sobre o tema - a despeito dos esforços recentes em tal sentido -;3 o estágio ainda muito prematuro da respectiva jurisprudência; e, principalmente, as diversas medidas de caráter dissuasório, além da reparação dos danos materiais, que um agente econômico infrator pode suportar. Considerando a potencialidade ofensiva de infrações à ordem econômica à coletividade, especialmente, de cartéis hardcore - tradicionalmente, entendidos como ilícitos per se pela autoridade antitruste brasileira -, e tendo em vista que o Direito Concorrencial visa tutelar um direito difuso, seria possível defender, por exemplo, a reparação, via uma ARDC, por danos sociais, os quais podem ser entendidos como as "lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral - principalmente a respeito da segurança - quanto por diminuição de sua qualidade de vida."4 Outra hipótese de reparação pelos danos decorrentes de um cartel seria a controvertida indenização por danos morais coletivos.5 Nesse sentido, ressalta-se que o dano moral coletivo vem sendo aplicado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em relação à lesão que afeta, por sua gravidade e repercussão, valores sociais primordiais. A partir desse conceito bastante aberto adotado pela referida Corte, observa-se que poderia ser sustentado que a prática de cartel também poderia ensejar a reparação de um dano moral coletivo, considerando a tutela de valores sociais como bens de titularidade coletiva - na presente hipótese, a ordem econômica. O conceito e sua aplicação, porém, não são pacíficos na doutrina, posto que, para alguns, a titularidade dos direitos subjetivos tutelados na reparação pelo prejuízo imaterial seria da coletividade, enquanto, para outros, não há possibilidade de uma lesão extrapatrimonial afetar uma comunidade abstratamente considerada, maquiando-se o instituto da responsabilidade civil para que seja aplicada, na verdade, uma pena civil.6 Este ponto é extremamente relevante se considerado o efeito dissuasório que se pretende atribuir às ARDCs, dissuasão que, por sinal, estaria relacionada às funções precaucional e punitiva da responsabilidade civil. Isso porque a aplicação de uma sanção exige uma previsão legal específica, sob pena de se violar o princípio constitucional da legalidade, já que punições exigem lei anterior que as defina. No caso de condutas anticompetitivas, especialmente do cartel, não há previsão legal que permita aplicar uma pena civil, a qual estaria caracterizada na hipótese de o valor fixado a título de condenação exceder a extensão dos danos efetivamente aferidos. Há que se destacar, sobre essa questão, o PL 11.275/2018 (originado do Projeto de Lei do Senado 283/2016), o qual prevê a possibilidade de exigir a restituição em dobro pelos danos materiais decorrentes do cartel e pretende alterar, assim, o art. 47 da lei 12.529/2011. Algumas ponderações críticas são necessárias sobre tal proposta legislativa, já que a função ressarcitória tem como propósito o reequilíbrio econômico afetado pelo dano, e não exatamente um propósito sancionador, de tal sorte que o dispositivo alterado poderia impor algumas incoerências sistêmicas, se consideradas as funções da responsabilidade civil e sua aplicação. Poder-se-ia até mesmo ponderar sobre as vedações ao enriquecimento sem causa, que tanto preocupam os julgadores ao fixarem o quantum indenizatório, até porque o ressarcimento material é medido de acordo com a extensão do prejuízo. Outro ponto bastante sensível sobre a eficácia das funções precaucional e punitiva das ARDCs está relacionado à existência de sanções paralelas aplicadas às condutas anticompetitivas, especialmente a cartéis, em âmbitos administrativo e penal. A existência de punições reiteradas poderia se agravar caso o ressarcimento pelos prejuízos materiais decorrentes da infração ocorrerem em dobro, especialmente considerando que os consumidores podem ajuizar individualmente suas ações indenizatórias. Assim, cumular-se-iam (i) a sanção administrativa, aplicada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, (ii) a punição criminal, a pedido do Ministério Público, e (iii) as sanções civis - seja por meio da tradicional função pedagógica da responsabilidade civil, seja por meio da fixação de uma pena civil específica em detrimento do agente econômico -, que se concretizariam por meio de ações para reparação dos danos coletivos ou individuais. Ainda que o cartel possa ser entendido como uma das mais graves infrações à ordem econômica, o risco de impor um regime de overdeterrence a infrações de tal natureza não deveria ser entronizado no ordenamento jurídico brasileiro sem maiores ponderações e preocupações. Especificamente no caso das ARDCs, cuja popularização pode ser relevante ao private enforcement, a proporcionalidade das sanções também deve ser resguardada e promovida. Com efeito, já há instrumentos jurídicos associados à responsabilidade civil que permitem a concretização de suas funções punitiva e precaucional, como ações coletivas por danos morais ou por danos sociais, que seguem rito previsto na lei 9.327/1996, bem como outras normas, especialmente em matéria civil, como os próprios art. 47 da Lei nº 12.529/2011 e os arts. 186 e 927 previstos no Código Civil, os quais, além de aplicáveis para a reparação dos danos materiais decorrentes de infrações à ordem econômica, estruturam o sistema de reponsabilidade civil, que deve manter-se coeso e equilibrado, independentemente da natureza do dano a ser indenizado, prevenido ou punido. *Luiz Fernando Santos Lippi Coimbra é sócio de Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Contratos pela Escola Paulista de Direito. **Beatriz de Figueiredo Coppola é advogada em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharela em Direito e Mestranda em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo de São Franciso. Licence en Droit de l'Université Jean Moulin - Lyon III.   ***André Santos Ferraz é advogado em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Mestrando em Direito na Universidade de Brasília - UnB. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Bacharel em Ciências Econômicas pela UnB e em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 2 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33. 3 Cita-se, por exemplo, o Projeto de Lei do Senado nº 283/2016, autuado como Projeto de Lei nº 11.275/2018 na Câmara dos Deputados. 4 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma Nova Categoria de Dano na Responsabilidade Civil: O dano social. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 19, 2004, p. 216. 5 FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Responsabilidade Civil por Danos Concorrenciais: A indenização em dobro e a não solidariedade dos infratores previstas no PLS 283/2016. Revista de Defesa da Concorrência, v. 7(1), pp. 131-159, 2019. 6 ROSENVALD, Nelson. O Dano Moral Coletivo como uma Pena Civil. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coords.). Dano moral coletivo. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 117-119.
As interfaces entre Direito e Medicina são muitas e bastante conhecidas. Particularmente no que toca ao Direito Privado e ao enfrentamento da responsabilidade do médico por danos suportados pelo paciente, é comum que os olhares se voltem para o erro médico, para o regime de responsabilidade e o ônus da prova a ele referente e para o alcance do dever de reparar ou compensar prejuízos. Mais recentemente, pelo avanço da telemedicina e pela tragédia global suscitada pela Pandemia do Novo Corona-vírus, também se tem discutido a respeito da responsabilidade do profissional médico pela guarda de dados pessoais dos pacientes e pela prescrição de tratamentos ineficazes à COVID-19. A problemática do consentimento do paciente é transversal a todos os assuntos listados, mas nem sempre recebe semelhante atenção. Isso se deve, ao menos em alguma medida, à tradição sacerdotal da medicina - partilhada pela advocacia -, e à reputação de quase panaceia conquistada pelo conhecido termo de consentimento livre e esclarecido, especialmente para casos de procedimentos invasivos, desconfortáveis ou demasiadamente complexos. O perfil da relação médico-paciente mudou, contudo. E a singela solução do termo padronizado de consentimento, como todas as soluções simples para problemas complexos, padece do mal de Mencken1. Vale dizer: é conhecida, elegante e plausível, mas errada. Ou, quando menos, insuficiente. Desde o prisma da ética médica, a fragilidade da conversão da coleta do consentimento do paciente em um simples documento médico (não raro um formulário em que os dados do paciente são preenchidos de modo manual) é extraível da Recomendação CFM 01/2016. Do parecer que a acompanha consta que "as informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer". Só assim é que o paciente poderia decidir e comunicar sua decisão de modo coerente e justificado, segundo seus valores, projetos, crenças e experiências. A soma de informações verbais dadas ao paciente e anotadas em seu prontuário a um termo padrão de consentimento livre e esclarecido, então e à primeira vista, não é prova robusta de cumprimento do dever de informar. Isso mesmo que, substancialmente, informação satisfatória tenha sido prestada. Afinal, como explicitado pela Recomendação do CFM, "o consentimento é um processo, e não um ato isolado". Como tal, "incorpora a participação ativa do paciente nas tomadas de decisão". Dita insuficiência é reforçada, ainda, pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao tema, exarado quando do julgamento do Recurso Especial 1.540.580. Na ocasião, o STJ anotou que "o dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico. (...) Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado"2. A propósito do ônus da prova acerca da entrega das informações ao paciente e da coleta de seu consentimento, a decisão da Corte foi bastante assertiva: "o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital". Diante deste pano de fundo, é saudável à classe médica dedicar atenção especial ao conteúdo e à forma da manifestação escrita de consentimento livre e esclarecido do paciente, bem assim à disposição no prontuário das informações trocadas em consulta. A um, para reforçar as linhas de defesa em face de eventual pedido de reparação ou compensação por danos decorrentes da prática médica. A dois, para mitigar o risco de responsabilidade a partir de alegação de não cumprimento (ou cumprimento imperfeito) do dever de informação, independentemente do sucesso ou insucesso do tratamento. O tema, que é muito discutido no âmbito das relações contratuais em geral sob o título responsabilidade pelo inadimplemento da boa-fé3, começa a ganhar corpo na jurisprudência também em relação à prática médica. Além da indicada decisão do STJ, há casos crescentes de condenação mantida por Tribunais de Justiça com fundamento tão-só no incumprimento ou no cumprimento imperfeito do dever de informação adequada, a despeito do afastamento de alegações do paciente acerca da culpa do profissional. Por tudo isso, seja em relação aos mais recorrentes temas da responsabilidade civil médica, seja em face de questões ainda emergentes, é fundamental o planejamento e a estruturação de meios robustos de prova acerca do suficientemente cumprimento do dever de informar e da correspondente manifestação de consentimento do paciente. Assim, apesar da variabilidade inerente ao Direito, pode-se, com estribo nas balizas deitadas pela Recomendação 01/2016 do CFM e pelas decisões pertinentes dos Tribunais brasileiros, incrementar a segurança da prática médica pela prevenção de possíveis reveses evitáveis. *André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Estudos em Direito Contratual. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. __________ 1 MENCKEN, Henry Louis. Prejudices. Second series. Londres: Jonathan Cape, 1921, p. 158. 2 STJ, REsp 1.540.580/DF, 4ª T., Rel.: Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), Rel. para o acórdão: Min. Luis Feliz Salomão, J. 02/08/2018, DJe 04/09/2018. 3 V. EHRHARDT JUNIOR, M. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
Com a popularização do e-commerce surgiram os marketplaces e, muito semelhantes a estes, as subcredenciadoras, popularmente conhecidas como facilitadores de pagamentos. Na cadeia negocial online fornece-se serviços e soluções em pagamentos, provendo à diversos empreendimentos toda a logística de compensação e liquidação de pagamentos, com baixo custo e especialmente de maneira desburocratizada e simplificada. As subcredenciadoras, mesmo que vedadas de atuar como instituições bancárias, expandiram suas operações e passaram a intermediar também transações transfronteiriças entre empresas e o consumidor final brasileiro, modalidade denominada business-to-consumer (B2C). Nas negociações transfronteiriças, por vezes, esses estabelecimentos comerciais não são institucionalizados no Brasil, todavia, encontram na intermediação operada pelas facilitadoras de pagamentos uma "porta de entrada" para a comercialização de produtos e serviços aos consumidores brasileiros. Há grande celeuma em torno da tutela jurídica consumerista, especificamente no que pertine aos limites da responsabilidade civil, frente à um possível dano experimentado por consumidor integrante da relação negocial composta por ele, pelo empreendimento estrangeiro e o subcredenciador, ao adquirir produto viciado. O subcredenciador poderia ser chamado à responsabilidade, na condição de fornecedor? As facilitadoras, assim como os marketplaces, ainda posicionam-se juridicamente controversas na medida em que a doutrina brasileira ainda não esgotou a temática, e a atual construção jurisprudencial se dá em torno de dois nichos econômicos, as empresas de marketplace e as sharing economy, a exemplo de decisões que envolvem o Mercado Livre e a Uber do Brasil. Os instrumentos de pagamentos eletrônicos foram de suma importância para o desenvolvimento e ascensão dessa modalidade de comércio porquanto este demandou uma forma distinta de transacionar, superando  o meio convencional por dinheiro impresso, o que consectáriamente, sendo hoje imprescindivel e não mais uma mera alternativa. Dentro do sistema de arranjos de pagamentos, as subadquirentes - ou subcredenciadoras - emergiram como um elo de conexão que atuam credenciando os estabelecimentos comerciais para o recebimento de pagamentos via cartão a serem feitas pelo consumidor final, sendo uma solução para os pequenos e médios empreendimentos, sejam físicos ou e-commerce, pois fornecem, a baixo custo, o sistema e a logística de liquidação e compensação de pagamentos. Esse cenário propiciou a interconexão entre os mais diversos nichos da atividade econômica e consumidor final, predispondo à amplitude e variação das composições das relações jurídicas, tendo propiciado o entabulamento de negócios transfronteiriças. Cumpre definir o que é um instrumento de pagamento, ao que dispõe a lei 12.865/2013 acerca da definição jurídica do supramencionado termo, o qual consiste em: "dispositivo ou conjunto de procedimentos acordado entre o usuário final e seu prestador de serviço de pagamento utilizado para iniciar uma transação de pagamento". Os facilitadores de pagamentos (subcredenciadoras ou subadquirentes) possuem papel fulcral na cadeia negocial online visto que integram os arranjos de pagamentos, e em observância aos preceitos normativos estipulados no Brasil, cumpre elucidar o sistema em que funcionam suas as atividades nos negócios jurídicos business-to-consumer (B2C), denominado arranjos de pagamentos. Um arranjo de pagamento funciona como uma plataforma que viabiliza e intermedia o processamento das transações entre consumidores e vendedores - business-to-consumer (B2C), propiciando a interação entre ambos com vistas à efetivação de uma troca. A rigor, o B2C se consubstandia na "transação que envolva a comercialização de produtos, a prestação de serviços ou o licenciamento de propriedade intelectual a consumidores em geral realizadas por meio de troca eletrônica de dados". (BRANCHER, 2017). O sistema de arranjos de pagamentos se estrutura de modo a ser composto por vários integrantes, dentre eles os instituidores dos arranjos de pagamentos, os credenciadores, subcredenciadores, emissores de cartão, estabelecimentos comerciais e os consumidores. Importante destacar que as subcredenciadoras são instituições de pagamentos (IPs), todavia, não financeiras. É relevante, também, pontuar também que os serviços de pagamento são prestados não só por IPs, mas também por instituições financeiras, especialmente bancos, financeiras e cooperativas de crédito. As subcredenciadoras desempenham, portanto, a atividade econômica de intermediação de forma onerosa visto que há cobranças de taxas pelos serviços, podendo ocorrer em mais de uma modalidade, tanto recaindo sobre o consumidor, quanto sobre o estabelecimento comercial, ou de ambos. Cita-se, como exemplo de facilitadores de pagamentos estabelecidos em território nacional, as empresas PayPal do Brasil, Mercado Pago e o PagSeguro. Embora tênue, há distinção entre facilitadoras de pagamentos e os marketplaces. Um Marketplace funciona como uma espécie de vitrine virtual que propicia a oferta de diversos produtos e serviços por empresas, pequenos comerciantes, e até mesmo de pessoas naturais, aos consumidores finais, sendo essa vitrine virtual uma plataforma gerenciada por uma empresa. O marketplace, propriamente dito, não necessariamente presta serviços de intermediação de pagamentos, entretanto, pode também o prestar posto que alguns custodiam os valores das transações efetuadas por meio de suas plataformas, portanto, atuando enquanto liquidantes dos pagamentos, restando possível que tais empresas operem nos moldes de um subcredenciador. A rigor, a repercussão jurídica nesse cenário repousa na obrigatoriedade dos marketplaces atuantes como subcredenciadoras a se sujeitarem à regulamentação pertinente ao mercado de adquirência. Convém ressaltar que há marketplaces que não atuam diretamente no fluxo de liquidação de pagamentos, todavia, o fato de perpassar qualquer fluxo financeiro, ainda que referente à repasses de valores à terceiros por parte da empresa, já enseja a sujeição aos atos normativos atinente aos arranjos. Assim, temos duas modalidades de marketplace: i) aqueles que não possuem qualquer meio de intermediação dos pagamentos, não custodiando, portanto, os valores transacionados por meio de sua plataforma, como por exemplo o OLX; e ii) aqueles que atuam como liquidantes dos valores referentes às transações realizadas na plataforma, havendo, portanto, um fluxo financeiro porquanto recebem os valores em sua integralidade, retiram sua comissão e repassam aos usuários-vendedores da plataforma, a exemplo do Mercado Livre e da B2W Digital. A distinção entre subcredenciador e marketplace é bastante tênue considerando que, havendo fluxo de pagamento, opera-se nos moldes de um facilitador. A regulamentação conferida aos arranjos não se destinava precipuamente aos marketplaces, entretanto, em razão do modelo de negócio que exercem, atuantes na intermediação de pagamentos, foram diretamente afetados por força da normatização exarada pela autarquia competente (Banco Central do Brasil) cujo impõe deveres, dentre eles, o de obrigatoriedade de participação na liquidação centralizada. De outro viés, uma vez que o papel das subcredenciadoras é precipuamente o de intermediação, e em cotejo com o instituto da corretagem - convencional prática de mediação - e sua natureza jurídica contratual, se demonstra plausível o enquadramento da atividade desenvolvida pelas facilitadoras enquanto uma corretagem em âmbito eletrônico ("corretagem eletrônica")? Os contratos de corretagem são regulados pelo novel Código Civil no art. 722 e seguintes, onde a lei o define como "o contrato pelo qual uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas". Empregando tal lógica à atividade de facilitador de pagamentos, estes atuam enquanto intermediador da transação entre comprador e vendedor a título oneroso, cobrando uma taxa pelos serviços prestados ao contratante-vendedor. Esse serviço consiste especialmente no fornecimento de soluções em pagamentos, inclusive na modalidade online, possibilitando a transação financeira entre as partes interessadas em negociar, fator fundamental para o êxito do negócio jurídico. Vale ressaltar que geralmente essa remuneração é devida pela parte vendedora ao subcredenciador tão somente quando houver a conclusão da transação e do negócio jurídico pretendido. A obrigação oriunda do contrato de corretagem é de resultado, consoante infere-se do art. 725 do Código Civil ao estabelecer que "a remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em virtude de arrependimento das partes", portanto, o comissário somente fará jus à comissão se a aproximação entre o comitente (contratante) e o terceiro interessado findar na efetivação do negócio jurídico. Na relação jurídica com as subcredenciadoras é possível que a comissão seja a cargo do comprador, porém não é comum. Geralmente o que se vislumbra é que tal encargo, devido em função da prestação do serviço de intermediação, recai precipuamente sobre o vendedor, que figura nesse contrato de corretagem ajustado com o facilitador de pagamentos, na posição de comitente (contratante). No âmbito das subcredenciadoras, o contrato de corretagem celebrado entre o corretor-intermediador (facilitador de pagamento) e o comitente (contratante-vendedor) não produz os seus efeitos se não houver a conclusão do contrato principal, a aquisição do produto ou serviço por parte do terceiro aproximado, uma vez que a corretagem é obrigação de resultado, sendo devida a remuneração em caso de efetivação da transação, portanto, em caso de êxito da venda. Os facilitadores de pagamentos atuam enquanto intermediadores da negociação e, no caso dos marketplaces, atuam especialmente na qualidade de ofertantes dos produtos e serviços à proporção que disponibilizam espaço próprio para a veiculação de ofertas de vendedores. Isto posto, é manifesto certo grau de similitude entre o instituto contratual da corretagem e a atividade desempenhada pelos facilitadores de pagamentos. A princípio, a intermediação no âmbito do e-commerce aparenta ser espécie de corretagem eletrônica, abrangendo, se não todos, quase todos os atributos da convencional corretagem disciplinada no Código Civil. Há também de se considerar a tutela jurídica da atividade, sob a ordem jusconsumerista. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) definiu os conceitos de consumidor e fornecedor em seus arts. 2º e 3º. Na seara da definição jurídica de consumidor, tornaram-se conhecidas duas teorias distintas, a corrente maximalista (objetiva) e a corrente finalista (subjetivista). A corrente finalista (subjetiva) é centrada na destinação final fática e econômica do consumidor, portanto, a aquisição de produtos e serviços por profissional, com vistas a atender sua atividade lucrativa, não se caracteriza como consumo final, mas como consumo intermediário. Na corrente maximalista (objetiva), não se considera que as normas consumeristas sejam orientadas de modo a proteger somente o consumidor não profissional posto que se sustenta que o CDC seria um código do consumo e que, portanto, institui normas e princípios para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir ambos os papéis, ora de fornecedor, ora de consumidor. A teoria finalista aprofundada, adotando como balizador o critério da vulnerabilidade, emergiu como recurso às excepcionais situações em que se vislumbra expresso desequilíbrio entre as partes. São, pois, características intrínsecas e expressivas do sujeito consumidor: posição de destinatário fático e econômico, aquisição para uso pessoal/próprio, não profissionalidade e vulnerabilidade em sentido amplo. (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 94). Acerca do conceito de fornecedor, a definição é tão ampla, que bem assinala Nelson Rosenvald ao aduzir que o conceito é "amplo o bastante para compreender todos que disponibilizam produtos ou serviços com habitualidade, mediante remuneração". (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 684). No que tange à caracterização de fornecimento de produtos, necessário se faz verificar duas condições: i) atividade tipicamente profissional; e ii) habitualidade. Tais critérios visam afastar a incidência do CDC em face das relações negociais entre dois consumidores não profissionais, especialmente porque o microssistema cria deveres para os fornecedores. A definição é mais concisa na medida em que não especifica quanto à necessidade do fornecedor ser um profissional, subentendendo-se que basta o desenvolvimento habitual ou repetitivo da atividade. (MARQUES, 2016, p. 420). Logo, fornecedor sé todos aquele que participa da cadeia de oferta de produtos e serviços, sendo irrelevante se a relação é direta ou indireta, contratual ou extracontratual perante o consumidor. Da cooperação entre fornecedores advém a cadeia de fornecimento, que se caracteriza como a "organização do modo de produção e distribuição, do modo de fornecimento de serviços complexos, envolvendo grande número de atores que unem esforços e atividades para uma finalidade comum, qual seja a de poder oferecer no mercado de produtos e serviços para os consumidores". (MARQUES, 2016, p. 430). A visualização dessa cadeia de fornecimento pelo ordenamento jurídico pátrio repercutiu no surgimento da responsabilização solidária dos sujeitos-fornecedores. Desse fenômeno de pluralidade passiva na relação consumerista decorreu o que Cláudia Marques nomeia de conexidade dos contratos. (MARQUES, 2016, p. 432). A conexidade é resultante dos vínculos contratuais que criam a cadeia de pessoas jurídicas diferentes e independentes, mas que se unem com a finalidade de "fornecimento", geralmente denominados "redes de contratos". Conexidade é, pois, o método de comercialização. Na perspectiva das relações negociais transfronteiriças, cumpre enfatizar que, por vezes, o consumidor não encontra opção, senão contratar junto à facilitadora de pagamento. As empresas-fornecedoras impõem que, para que o consumidor tenha acesso ao produto ou serviço, o pagamento tenha que ser efetuado por intermediadores "credenciados", noutras palavras, por intermédio do facilitador de pagamento referenciado e aceito para operacionalizar junto à empresa o pagamento. Quanto ao papel da facilitadora, esta intermedia toda a transação no sentido de confirmar - junto a empresa - o efetivo cumprimento do pagamento pelo consumidor - a ser repassado, dando o aval para que, por fim, seja entregue o produto por parte da empresa ao consumidor. Ainda que a atividade econômica dos facilitadores de pagamentos seja precipuamente regulada pelo direito econômico/financeiro por meio de leis, pareceres técnicos, circulares e demais mecanismos de regulamentação jurídicos, como já exposto, não há como se esquivar da incidência do Código do Consumidor sobre as relações negociais business-to-consumer, inclusive as intermediadas pelos facilitadores de pagamentos na modalidade de corretagem eletrônica. Logo, considerando que o conceito de fornecedor é amplo e aberto - não se consubstanciando em um rol taxativo - não se vislumbra óbice concreto à responsabilização dos facilitadores de pagamentos enquanto fornecedor no mercado de consumo. Caso um determinado desacordo comercial tenha que ser judicializado, por vezes alcançar a empresa-fornecedora do produto se demonstra como uma dificuldade extremada ao consumidor, o que dificulta a efetivação da tutela jurisdicional consumerista. Os facilitadores são pessoas jurídicas que desempenham uma atividade lucrativa e que possuem capacidade econômica suficiente para suporta os danos decorrentes desta, cientes de que a sua atuação empresarial no mercado implica riscos cuja responsabilidade não deve comportar relativização excessiva sob pena de mitigação da tutela consumerista, o que leva a crer que parece razoável a hipótese de responsabilização objetiva das subcredenciadoras, fundada na teoria do risco, nos casos em que, excepcionalmente, for manifesta a impossibilidade de ressarcimento ao lesado por eventual prejuízo sofrido. Se demonstra plausível o chamamento à responsabilização dos facilitadores de pagamentos fundado nos conceitos doutrinários, portanto, no seu enquadramento enquanto fornecedor, e em observância ao entendimento que vem sendo ratificado pela jurisprudência pátria. Quanto ao enquadramento da atividade de subcredenciamento enquanto contrato de corretagem, demonstrou-se grande semelhança entre as características de ambas. Em razão da grande similitude contratual, pressupõe-se que a atividade de intermediação seja uma espécie de prestação de serviço de corretagem eletrônica, mas sujeita à normativa do microssistema do Código de Defesa do Consumidor (CDC) uma vez que se consubstancia em serviço ofertado por fornecedor ao consumidor final. Ademais, a responsabilização objetiva encontra guarida também na teoria do risco do negócio ou da atividade empresarial. Mesmo que diante de hipóteses de excludente de responsabilidade, cabíveis inclusive no âmbito da intermediação de pagamentos, o operador do direito deve sempre observar os pilares em que está alicerçado o CDC, bem como seu objetivo fundamental, sob pena de velada mitigação da tutela protetiva e reparatória consumerista. *Danilo Porfirio de Castro Vieira é graduado em Direito pela UNESP, mestrado em Direito UNESP, doutorado em Ciências Sociais pela UNESP e pós-doutorado em Filosofia, Ciências e Letras pela USP. Professor titular de Relações Internacionais e Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e professor de Direito no IDP. Sócio advogado do Chaves, Porfírio, Vieira Advogados. **Brunna Antunes Montenegro é pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial pela Damásio Educacional. Graduada em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), advogada. Referências BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Comércio eletrônico. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 06 junho 2020. BRASIL. Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013. Dispõe sobre os arranjos de pagamento e as instituições de pagamento integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). Portal da Legislação. Brasília, 10 out. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2020. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 3 v. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
A restituição de ganhos ilícitos tem ocupado importante debate no âmbito do IBERC. Entre aqueles que se debruçam sobre este desafiador objetivo, e aceitam a possibilidade de se pleitear a remoção dos ganhos ilícitos realizados pelo ofensor, destacam-se duas correntes, que correspondem, respectivamente, ao refinamento imposto à responsabilidade civil no sistema da common law e ao enriquecimento sem causa no ordenamento jurídico alemão. Uma compreende que há uma limitação funcional da responsabilidade civil, dedicada exclusivamente à função reparatória. Diante da redação do art. 944 do Código Civil que limitaria a indenização à extensão do dano, a remoção ou a restituição de ganhos ilícitos se daria através do enriquecimento sem causa, pelo enriquecimento por intromissão, enriquecimento por intervenção ou lucro da intervenção e que encontraria fundamento no art. 884 do CC1. Nesse sentido, destacam-se, entre outros, os trabalhos de Sérgio Savi, Rodrigo da Guia Silva, Renato Franco e Maria Cândida do Amaral Kroetz. A segunda corrente, capitaneada por Nelson Rosenvald2 e à qual nos filiamos3, aloca a remoção e a restituição de ganhos ilícitos no bojo da responsabilidade civil. Para tanto duas premissas devem ser assumidas: a responsabilidade civil é multifuncional e atuará com diferentes remédios de acordo com os efeitos derivados do ilícito4, assumindo, assim, funções diversas da reparatória; o enquadramento dogmático que justifica a atuação da responsabilidade civil se vale da natureza do evento causal subjacente à obrigação para definir a classificação da própria obrigação, pelo que a responsabilidade civil será o instrumento adequado a conferir a tutela a todas as obrigações provenientes de um ilícito, seja uma obrigação de indenizar ou uma obrigação de restituir. Essa classificação das obrigações observa a clássica divisio das derivada do direito romano, base estrutural do direito dos sistemas de civil law, utilizada por Peter Birks5 para justificar a autonomia do enriquecimento sem causa no sistema de common law inglês. O trabalho de Peter Birks permite observar que quando o acréscimo patrimonial realizado pelo obrigado à restituição decorrer de um ilícito é a responsabilidade civil que atuará para remover esse ganho ilícito, dando concreção ao princípio assim enunciado: commodum ex iniuria sua nemo habere debet ou no person shall profit from his or her wrong, ou seja, nenhuma pessoa deve lucrar a partir do ilícito. O ordenamento jurídico brasileiro traz argumentos de natureza normativa que nos levam a concluir pela aplicação dos remédios restitutórios em face de ilícitos pela responsabilidade civil. Um exemplo é o art. 210 da LPI, que prevê a possibilidade de aplicação dos remédios restitutórios na remoção de ganhos ilícitos. Mesmo caminho foi adotado no direito italiano no art. 125 ao Codice di Proprietà Industriale, que em seu item 3 prevê a possibilidade do disgorgement of profits.6 Assim, a tutela restitutória do ilícito através da responsabilidade civil ganhou acolhida naquele ordenamento jurídico. A priori, ainda que o embate no campo teórico possa parecer pouco produtivo para a prática, a diferenciação traz consequências consideráveis. A primeira quanto ao fator de imputação e a segunda quanto ao prazo prescricional aplicável à pretensão, posto que, enquanto na responsabilidade civil contratual o prazo é decenal a pretensão de restituição do enriquecimento sem causa tem prazo trienal. Tomamos, assim, o disposto no art. 1.017 do CC7 que regula a responsabilidade civil do administrador das sociedades empresariais. A sociedade comercial, tal qual disciplinada no Código Civil, é figura de natureza eminentemente contratual, posto derivar de um acordo de vontades ou, ao menos, da manifestação de vontade de uma pessoa, que visa organizar recursos e realizar uma atividade direcionada ao implemento de um objetivo econômico8. A relação intrassocial, portanto, é contratual. A administração da sociedade é um órgão societário cujas atribuições são exercidas por um ou mais sócios, ou por terceiro por eles nomeados, que, segundo o CC, tem a atribuição de presentar (conforme a clássica lição de Pontes de Miranda) a sociedade, ou seja, agir de modo presente em seu nome. Trata-se, na acepção do dilema da agência, de uma pessoa (agente) apta a tomar decisões e promover iniciativas em nome e com impactos para a empresa (principal). Isto é, quando o administrador, enquanto órgão da sociedade empresarial, pratica um ato, este ato ingressa no sistema jurídico como ato da própria pessoa jurídica e não como ato da pessoa do administrador. Em sua atuação, dado a natureza contratual do vínculo que une a sociedade, o administrador deve observar a boa-fé objetiva e seus deveres laterais, dentre os quais destacam-se os de lealdade e probidade que orientam o administrador a sempre empregar os bens e recursos da sociedade em benefício desta e não de si mesmo. O desvio nessa conduta, consistente na realização dos atos de desvio patrimonial previstos no art. 1.017 do CC, configuram o ilícito aí tipificado. Não pela busca de imputação na culpa, mas pela própria violação da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, isto é, espécie de inadimplemento independentemente de culpa9. Inclusive, os princípios da probidade e confiança, plenamente aplicáveis à atuação do administrador, têm natureza de ordem pública, pelo que basta a violação destes para que se caracterize a responsabilidade10. Por essas razões, compreendemos que a responsabilidade civil no caso ostenta natureza contratual e é objetiva. Não necessariamente existirá um dano à sociedade. Caso, por exemplo, o administrador utilize um imóvel da sociedade para seu benefício até que aquele seja locado. Não houve diminuição do patrimônio da sociedade, tampouco foi frustrado algum lucro, contudo, houve uma transferência de valor para o administrador, que indevidamente rompeu com a lealdade ao utilizar o bem em benefício próprio. Nesse caso não atuaria o remédio reparatório pela ausência de dano indenizável. A sociedade lesada não seria titular de nenhuma pretensão reparatória, senão apenas intitulada no direito de destituir o administrador e eventualmente excluí-lo da sociedade, se sócio. É aí que atua a função restitutória da responsabilidade civil, ofertando ao lesado o remédio restituório na modalidade da reversão dessa transferência de valor, o que Nelson Rosenvald denominou indenização restitutória. Nessa hipótese, pela abertura semântica conferida pelo art. 1.017 do CC, em exceção à limitação da indenização à extensão do dano, caberia condenar o ofensor ao pagamento de um valor correspondente à transferência indevida, que não se trata de compensação. É o que o common law define como give back, remédio que se convencionou denominar restitutionary damages. Agora, imagine-se que o administrador tome para si uma quantia do caixa da empresa e com esse valor adquira valores mobiliários em seu próprio nome. Nesse caso há um dano, uma diminuição patrimonial da sociedade. Suponha-se que essas ações valorizem e o ofensor colha um ganho a partir desse dinheiro ilicitamente obtido. Ora, como diz o brocardo inglês, "tort must not pay". Permitir ao administrador inadimplente que permaneça com os resultados obtidos a partir de seu ilícito é uma falha do sistema jurídico que o deixaria se beneficiar de sua torpeza. Nesta situação outro remédio restitutório deve agir, a remoção dos ganhos ilícitos, novamente autorizado pela abertura concedida pelo art. 1.017 do CC. Referido remédio, classificado como um give up, é voltado a obrigar o ofensor a abrir mão dos ganhos provenientes do ilícito, o que no common law se denominou disgorgement of profits. Assim, além de compensar o dano que provocou, ficaria obrigado o administrador a entregar à sociedade os lucros que realizou. Este argumento sistemático reforça a posição de que o ordenamento jurídico brasileiro, pelas características já citadas, abarca a aplicação dos remédios restitutórios pela responsabilidade civil e não pelo enriquecimento sem causa. Para outros casos que não possuem a mesma abertura semântica do art. 1.017 do CC caberia por vez promover as adequações ao art. 944 do Código Civil para sacramentar a inclusão dos remédios restitutórios no sistema de responsabilidade civil brasileiro, promovendo a tutela integral da pessoa que é o fundamento primeiro da responsabilidade civil. *Vitor Ottoboni Pavan é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professor convidado de Direito Civil das pós-graduações da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de Responsabilidade Civil da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisador do Grupo de Pesquisa "Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional - Virada de Copérnico" (PPGF/UFPR). __________ 1 Nesse sentido o texto de Leandro Reinaldo da Cunha publicado nessa coluna: "Nesse contexto surge a discussão acerca do lucro da intervenção, entendido como sendo a hipótese em que o sujeito obtém uma vantagem patrimonial face à utilização de bem de outrem, sem que possua a devida autorização para a exploração do referido bem. Seria, portanto, uma situação fática na qual se aplicariam as consequências decorrente do enriquecimento sem causa (art. 844 do CC)." 2 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 257-268. 3 PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020 4 Nesse sentido também Flaviana Rampazzo Soares e Ísis Boll de Araújo Soares, em interessantíssimo texto de reflexão a partir dos efeitos da pandemia, apontaram a necessidade de a responsabilidade civil agregar à sua clássica função reparatória outras que sejam adequadas a atender as demandas complexas da sociedade em seu estágio de desenvolvimento contemporâneo. 5 Para uma análise mais aprofundada do tema confira BIRKS, Peter. Unjust enrichment. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. E-book. 6 Codice di Propietà Industriale. Art. 125. "1. Il risarcimento dovuto al danneggiato e' liquidato secondo le disposizioni degli articoli 1223, 1226 e 1227 del codice civile, tenuto conto di tutti gli aspetti pertinenti, quali le conseguenze economiche negative, compreso il mancato guadagno, del titolare del diritto leso, i benefici realizzati dall'autore della violazione e, nei casi appropriati, elementi diversi da quelli economici, come il danno morale arrecato al titolare del diritto dalla violazione. 2. La sentenza che provvede sul risarcimento dei danni puo' farne la liquidazione in una somma globale stabilita in base agli atti della causa e alle presunzioni che ne derivano. In questo caso il lucro cessante e' comunque determinato in un importo non inferiore a quello dei canoni che l'autore della violazione avrebbe dovuto pagare, qualora avesse ottenuto una licenza dal titolare del diritto leso. 3. In ogni caso il titolare del diritto leso puo' chiedere la restituzione degli utili realizzati dall'autore della violazione, in alternativa al risarcimento del lucro cessante o nella misura in cui essi eccedono tale risarcimento". 7 O caput do referido dispositivo legal prevê que "O administrador que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá". 8 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Sociedades: teoria geral das sociedades. As sociedades em espécie do Código Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2014. (Direito comercial; v. 2), p. 41. 9 Neste sentido o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil CJF/STJ. 10 Conforme Enunciado 363 da IV Jornada de Direito Civil CJF/STJ.
Por proêmio, como é cediço, com espeque no iter evolutivo da responsabilidade civil, o risco passou a ser uma opção e não um destino inelutável como outrora, engendrando relevantes repercussões na seara da responsabilidade objetiva do transportador, designadamente no que concerne à dinamização da função preventiva, atrelada à figura do prognóstico retrospectivo e do constante aperfeiçoamento do estado da técnica na ampla miríade de modalidades de transportes existentes. Nesse contexto, deve-se analisar a denominada obrigação de proteção, que se autonomizou e cujo amplo espectro de situações possibilitará o exame das excludentes do transportador sob novos paradigmas. A evolução doutrinária e jurisprudencial trouxe novas perspectivas sobre o tema, na medida em que, conforme preconizam Geneviève Viney e Patrice Jourdain, houve mudança da ordem pública de direção para a ordem pública de proteção1. Com efeito, com a proeminência do papel central exercido pela pessoa humana, a força normativa constitucional correlata, designadamente após a 2ª Guerra Mundial, e a consequente expansão do direito geral de personalidade, emergiu nova valoração para fins de reparação, o que permitiu divisar maior densidade dos princípios sociais nas denominadas relações jurídicas existenciais, quando cotejadas com as interempresariais ou de lucro, com as repercussões correlatas nos negócios jurídicos contratuais de transporte. Deveras, não se olvida que o contrato de transporte traz ínsita em seu bojo a denominada obrigação de segurança, sob o manto da incolumidade físico-psíquica do passageiro e da custódia da carga transportada, até o local do destino contratado. No entanto, sob os influxos expansivos da obrigação de proteção, no contrato de transporte de pessoas, ao contrário do que se observa naquele destinado às coisas, resta inconcusso tratamento diferenciado, forte nas premissas de proeminência e de papel fundamental da pessoa humana como centro de interesses. Tal cenário transcende o dualismo clássico entre as denominadas obrigações de meio e resultado, evidenciando tratamento uniforme nas searas contratual e extracontratual, com obrigação de proteção autonomizada - o que ensejou repercussões na análise das excludentes do caso fortuito e da força maior. Com destaque para a objetivação da responsabilidade do transportador e a dinamização da função preventiva - sobretudo à luz da premissa de que o risco não é um destino, mas uma opção -, jungida à autonomização da obrigação de proteção, tem-se a análise da obrigação como processo e relação jurídica complexa. A responsabilidade civil projeta deveres anexos e laterais derivados da cláusula geral de boa-fé, que independem da inexecução involuntária da obrigação de deslocamento pactuada ínsita ao transporte e impõem efetiva releitura das excludentes clássicas do caso fortuito e força maior. Tal entendimento é robustecido pela inequívoca evolução do estado da técnica, sendo necessária a análise dos requisitos caracterizadores da força maior extrínseca - exterioridade, inevitabilidade, irresistibilidade e impossibilidade. A imprevisibilidade insere-se como índice de eficácia e de modulação da inevitabilidade, sob perspectiva estrutural e funcional, como standards que se amoldarão à luz do estado da arte da propalada evolução. Assim se poderá aferir o caráter controlável do evento, o que evidencia a existência de novos paradigmas no direito contemporâneo. Impõe-se, mesmo à luz da prova da força maior extrínseca, a consecução dos deveres laterais de assistência e informação, à míngua da impossibilidade do deslocamento, sem prejuízo do dever de advertência por parte do organizador da viagem quando evidenciada probabilidade substancial de eclosão de evento bélico ou risco à segurança e incolumidade do viajante consumidor2. Outra temática que, paradoxalmente, denota atualidade coaduna-se com o advento de novas epidemias, malgrado o notável desenvolvimento da ciência, sobretudo ao lograr êxito em debelar patologias, vírus e bactérias de extrema gravidade e contágio galopante ao longo da História. Trata-se de tema que aflora em grande magnitude, normalmente tendo gênese em mutação genética que, originalmente sendo apenas transmissível entre animais, engendra, em dado momento, sua transmissão entre pessoas, o que ocorreu com a SARS em 2002-2003 e a Covid-19, emergindo, então, amplo matiz de problemáticas. Conquanto o sequenciamento genético tenha apresentado celeridade inaudita no estado da arte da ciência, verdade é que, tratando-se de novas doenças, que desenvolvem síndromes respiratórias, a descoberta científica de vacina e sua implementação eficaz não foi imediata. Muito embora a globalização e a massificação na utilização dos transportes e a célere mobilidade dos viajantes na denominada aldeia global evidenciem enormes vantagens no âmbito econômico e no das comunicações, expõem, por outro lado, o flanco da vulnerabilidade, de modo que o contágio se espraiou em nível mundial com celeridade galopante. Os efeitos, no âmbito dos transportes, foram inconcussos, provocando o cancelamento de voos, cruzeiros marítimos, transportes terrestres em larga escala, a imposição de quarentena a viajantes, o retorno de cidadãos que se encontravam em outros países e, por via de consequência, problemáticas acerca da responsabilidade dos transportadores e organizadores de viagens e excursões. Desvela-se, assim, ampla miríade de situações, que atingiram e têm atingido os transportes em seus diversos modais. Quid juris, então? Em relação aos cancelamentos derivados da epidemia, em se tratando de contrato de transporte de coisas, via de regra as cláusulas contratuais preveem a referida ocorrência no rol dos eventos que poderão caracterizar circunstâncias extraordinárias, aptas a eximir a consecução do transporte, aliadas às provas dos elementos da força maior extrínseca. Tal situação resta facilitada sobremaneira, com os atos de autoridade, fixadores do cancelamento do transporte e da utilização do local de destino por parte do transportador3. No que concerne ao transporte de pessoas, prepondera o arquétipo da obrigação de proteção, de modo que a proeminência da cláusula geral de boa-fé e os deveres laterais correlatos imporão ao transportador e ao organizador de viagem amplas informações, assistência, advertência e proteção. Os deveres abrangem, e.g., na hipótese de eclosão da epidemia durante a viagem, o retorno ao país de origem, sem custos ao usuário consumidor. Por seu turno, à luz da figura do duty to mitigate the loss, muito embora reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, tratando-se de epidemia altamente contagiosa, este deverá colaborar com as autoridades e o transportador, fazendo jus à assistência e à hospedagem em padrões de razoabilidade. Afigura-se, em regra, inexigível indenização derivada do cancelamento imposto por autoridade pública e que teve por salvaguarda a incolumidade dos demais passageiros. Deveras, uma vez comprovado o caráter extrínseco ao círculo de atividade de risco do transporte, a inevitabilidade, a irresistibilidade e a impossibilidade de controle, malgrado a adoção das devidas precauções, a prestação de deslocamento restará inviabilizada e inexigível. O cancelamento poderá inserir-se no rol da denominada força maior extrínseca ou das circunstâncias extraordinárias, aptas a legitimá-lo, subsistindo os deveres laterais e a obrigação de proteção, que poderão comportar indenização, per se, caso inadimplidos. Em suma, faz-se mister a análise tópica dos requisitos da força maior extrínseca adrede descritos, em cotejo com a situação fática vinda a lume e que propicia sua funcionalização, sendo inconcebível uma concepção apriorística de força maior, já que a mera abstração, dando gênese a um raciocínio a contrario sensu, sem a análise in concreto, poderá ensejar erronias de monta, sobretudo à luz da intrincada complexidade que promana da causalidade múltipla. Com efeito, a qualidade de força maior não se encontra vinculada ao evento. Ao revés, nenhum fato se encontra previamente excluído da referida categoria, sendo o mais correto admitir que a força maior, em verdade, é uma circunstância de fato revestida de uma qualificação jurídica. Conforme preconiza, com acuidade, ANTONMATTEI4, as qualificações caso fortuito ou força maior são tão somente etiquetas sobre as quais se afigura necessário inscrever: sem garantia e objeto de verificação. A razoabilidade e a natureza categorial do transporte efetuado serão ulterior elemento relevante para análise do hermeneuta, premissa que se reputa fundamental diante dos riscos de fragmentação advindos do novo kairós (momento decisivo na sucessão do tempo) da pós-modernidade e era do conhecimento, no plexo dos novos desafios para o século XXI, de modo a fomentar a criação de grupos de casos, para o incremento da segurança jurídica e de providências preventivas ínsitas ao mister de risco do transportador, inclusive com a formação de fundos contributivos para eventos catastróficos em escala mundial, sem descurar do dever proativo de colaboração por parte do credor, com o escopo de mitigar os danos. Malgrado evidenciado o inconcusso estágio de desenvolvimento da técnica, com visão restritiva crescente da excludente da força maior extrínseca, inexiste risco zero no porvir da humanidade, de modo que não se antevê o crepúsculo da excludente, mas necessidade protetiva mais intensa no âmbito das relações jurídicas existenciais, sem prejuízo do imponível incremento da função preventiva. Com efeito, observa-se o surgimento de novos riscos, e.g., patologias, epidemias resultantes de mutações genéticas, mudanças climáticas, como a realidade fática desnuda, pois, muito embora possamos gerir o risco e mitigar suas consequências, não há como eliminá-lo do devir humano. Desse modo, a proeminência do escopo protetivo à pessoa humana reverbera na seara contratual, impondo-se efetiva clivagem em relação ao transporte de coisas, em que a obrigação de custódia, conquanto relevante, poderá adequar-se à teoria da assunção dos riscos e à autorregulamentação prévia de interesses, dinamizando a circulação econômica das riquezas, na medida em que a autonomia privada e os custos de transação denotarão maior proeminência, elementos ínsitos aos negócios jurídicos contratuais interempresariais e de lucro. No referido âmbito categorial, impor-se-á, em regra, adstrição às cláusulas pactuadas, na esfera da autorregulamentação prévia de interesses, da probabilidade prospectiva e dos mecanismos de prevenção, com eventual cobertura de seguro autônomo ou complementar. Por outro lado, poderão surgir circunstâncias extraordinárias, incontroláveis, inevitáveis e irresistíveis, de modo a impossibilitar o adimplemento da obrigação. No entanto, em situações desse jaez, o intérprete será mais rigoroso na verificação da assunção prévia dos riscos, sentido no qual, aliás, vem se firmando a tendência dos contratos internacionais de transporte de mercadorias, com influência inconcussa da common law. Observe-se, porém, que, no sistema brasileiro, referidas regras coadunam-se, segundo a análise realizada, com os contratos interempresariais ou de lucro, mas não com os contratos existenciais, aos quais subjazem relações não paritárias, que imprescindem de regras protetivas direcionadas à parte vulnerável, de modo que os contratos de transporte de pessoas, em seus múltiplos modais, inserem-se no denominado arquétipo contratual existencial. Trata-se de dicotomia útil e operacional, especialmente quanto à fixação de pontos fulcrais distintivos entre as categorias de contratos de transporte, devendo-se, no entanto, ressalvar o seu caráter não exaustivo diante da complexidade da realidade contratual contemporânea5. Marco Fábio Morsello é professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP (FDUSP). Doutor e livre docente em Direito Civil pela FDUSP. Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau no TJ/SP. Membro Associado Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 Cf. VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. In: GHESTIN, Jacques (dir.). Traité de droit civil, cit., v. 2: Les conditions de la responsabilité, p. 395. 2 Nesse sentido, MIRANDA, José Miguel de Sá. O contrato de viagem organizada. Coimbra: Almedina, 2000. p. 213; BRÜNING, Mirja. Probleme des Reisevertrags und Reiseversicherungsrechts: Frist des §651g BGB, Kündigung wegen Höheren Gewalt gemäß § 651j BGB, unerwartete schwere Erkrankung und gerichtliche Zuständigkeit. Hamburg: Dr. Kovac, 2008. p. 136 e 144, elucidando, sem prejuízo da relevância informativa de órgãos governamentais acerca dos riscos de guerra, que se impõe, outrossim, mencionado dever ao organizador, na seara do denominado Hinweispflicht (dever de advertência), sobretudo à luz de probabilidade substancial de conflito bélico. 3 Nesse sentido, BRUNNER, Christoph. Force majeure and hardship under general contract principles, cit., p. 206, destacando, via de regra, a inserção dos seguintes eventos: Acts of God; catástrofes e desastres naturais, como inundações, terremotos, maremotos, incêndios, secas e epidemias; desastres industriais ou causados por obra humana; guerras, ataques terroristas, roubos, explosão ou destruição de máquinas por terceiros (tortious acts); greves gerais e prolongadas nos meios de transporte ou setores de eletricidade; intervenções governamentais, como embargos, boicotes, restrições à importação ou exportação e restrições cambiais. 4 ANTONMATTEI, Paul Henri. Contribution a` l'e'tude de la force majeure. Paris: LGDJ, 1992 (Bibliothèque de Droit Privé, t. 220), p. 11. 5 Para aprofundamento do tema, consultar: MORSELLO, Marco Fábio. Novos paradigmas do caso fortuito e da força maior à luz dos contratos de transporte. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
Na véspera do feriado de 07 de setembro de 2021, surpreendeu a muitos a Medida Provisória que alterava o Marco Civil da Internet nos artigos 5º, inclui a Seção II ao Segundo Capítulo (Dos direitos e garantias dos usuários) sobre os "direitos e das garantias dos usuários de redes sociais" e um Capítulo IV-A, que tratava de sanções. Além disso, também alterava a lei de direitos autorais (lei 9.610/98), revogava os artigos 12 e 11, § 2º do MCI e trazia um prazo de trinta dias para adequação das políticas e termos de uso pelos provedores (art. 3º). Em suma, praticamente criou um "Novo Marco Civil da Internet". Rapidamente noticiaram-se muitas ações diretas de inconstitucionalidade1, um parecer da OAB pela inconstitucionalidade,2 e não tardou para que a doutrina jurídica se pronunciasse sobre o texto normativo3. Dias depois, o Senado devolveu a MP4 quase que concomitantemente a uma liminar do STF que suspendeu seus efeitos,5 com pareceres da PGR.6 A Medida Provisória, então, restou natimorta. Mas, a discussão está longe do fim, seja porque a ofensiva à moderação de conteúdo pelas redes sociais é considerada como uma tendência no mundo,7 seja porque o texto já foi ressuscitado em Projeto de lei no Brasil.8 No artigo 5º, a MP inseria os incisos IX e X, conceituando rede social e moderação em redes sociais9 e, de maneira transversa, uma vez que excluia do conceito de rede social as aplicações de mensagens privadas, como WhatsApp e congêneres, bem como as que tem por "principal finalidade o comércio de bens e serviços",10 aludindo em tese a Mercado Livre, OLX e outros. Mas o "coração" do texto normativo estava nos sobreditos direitos enunciados pelos artigos 8º-A a 8º-D. Isto porque, tentando resumi-los, a lei procurava criar requisitos normativos, verdadeiras "travas" para a retirada unilateral de conteúdo por parte das redes sociais no exercício das "ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais.", ou seja, da moderação de conteúdo. Dentre os direitos básicos dos usuários, a Medida Provisória previa (artigo 8-Aº. Incisos I a VII) o restabelecimento de conta, do perfil ou do conteúdo no mesmo estado em que se encontrava, na hipótese de moderação indevida pelo provedor de redes sociais (inciso IV), bem como a não exclusão, cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e funcionalidades da conta ou do perfil, exceto por justa causa (inciso V). É necessário ler o texto e o seu contexto. A MP parecia ser uma reação à conduta das principais redes sociais nos últimos tempos, que têm adaptado suas políticas e termos para agirem de forma mais proativa contra conteúdos que dia após dia vêm ganhando consenso como ilícitos, com destaque para a desinformação (mormente política e sanitária) e discursos considerados como de ódio, com ameaças até mesmo a altas autoridades, como, Deputados, Senadores, Governadores e até Ministros do STF. Os provedores de aplicação exercem o poder de polícia que lhes é conferido pelas condições gerais de contratação, como sempre ocorreu, desde o início do uso da Internet para fins comerciais. A reação faz lembrar inclusive a inócua ordem executiva do ex-presidente Donald Trump11 para alterar a Seção 530 do U.S. Code, que instituiu originalmente o princípio do "notice and takedown" e é até hoje o que vige no que concerne à regra da responsabilidade por conteúdos inseridos por terceiros na Internet: o provedor somente será responsabilizado se, notificado da ilicitude do conteúdo (ainda que extrajudicialmente), não o retira em tempo razoável. Hoje, após ter sua conta suspensa nas principais redes sociais (Twitter, Facebook e Youtube) como resposta das empresas ao episódio de invasão do Capitólio no início de 2021, Trump demanda contra as big techs mantenedoras (Twitter, Facebook e Google) alegando, em resumo, censura.12 Voltando à MP brasileira, as ADIs levantam, por exemplo, inconstitucionalidades formais, como ausência de relevância e urgência (art. 62, caput, CRFB), vedação de MP sobre direitos políticos e processo Civil (art. 62, §1º, alíneas "a" e "b") e, no mérito, destaca-se a suposta violação à livre iniciativa dos provedores (arts. 1º, IV e 170), subvertendo-se a lógica do art. 19 do Marco Civil, que instituiu a regra da não imputação provedor por conteúdo inserido por terceiros, em suma, tornando necessária a notificação judicial com o local específico o conteúdo a ser retirado de modo a, segundo a lei, prestigiar a liberdade de expressão. Seria, então, vedado também o retrocesso nesse sentido pois, tornando responsável o provedor pelo conteúdo - e, agora, a apresentar inclusive justa causa (art. 8º-C, §1º, MCI na nova redação) - abrir-se-ia porta à "censura privada" do provedor. Dois pontos merecem ser levantados. Primeiro, que o artigo 19 a que se alude como foco de uma possível vedação ao retrocesso tem sua constitucionalidade questionada com repercussão geral (Tema 987, STF).13 Segundo, que a lei traz a responsabilidade pela não retirada de um conteúdo ilícito da Internet, imunizando o provedor até que o juiz determine para privilegiar (supostamente) a liberdade de expressão de quem posta, mas há -  e sempre houve - uma lacuna normativa sobre a responsabilidade do provedor quando indevida e unilateralmente bloqueia, suspende ou retira conteúdo das redes sociais. Portanto, a MP em tese restringia um ponto central do Marco Civil, que, pela sua natureza principiológica, deixa ao arbítrio do provedor decidir o que deve bloquear ao mesmo passo que não o responsabilizado se o conteúdo ilícito não for retirado, já que depende de decisão judicial. Uma "dupla irresponsabilidade", portanto. A serpente deixa aqui seus ovos, numa analogia com o famoso filme de Ingmar Bergman (1977). Reforce-se, nesse ponto, que não é de hoje que se questiona este poder privado das "plataformas", que alteram unilateralmente seus termos de uso e decidem com base em uma interpretação unicamente sua (amparados em suas, "boards", colegiados recentemente criados para dar um ar de democraticidade na decisão de retirar conteúdo) o que deve ou não ficar online, ou ser rotulado e distribuído para este ou aquele usuário de acordo com suas preferências. Ao longo de décadas de popularização dessas aplicações, temas de relevância social passaram a pautar e serem pautados pelas redes sociais, que são elemento inexorável da esfera pública em todo o mundo. Paralelamente, crescem exponencialmente os conteúdos tóxicos nas redes sociais, como discursos de ódio, desinformação e ataques a pessoas e instituições em massa por meio das redes. Como se trata de um ambiente em que a "plataforma" não se responsabiliza a priori em privilégio à "liberdade de expressão", todos se sentem "livres" a postar o que querem até que um juiz determine a exclusão do conteúdo... ou a rede social decida que viola suas próprias regras sem se responsabilizar por isso. E, obviamente, a "plataforma" lucra independentemente da veracidade ou ilicitude do conteúdo. Como comunicação é algo relevante, a Constituição de 1.988 não deixou ao poder privado pura e simplesmente a comunicação social, trazendo regras nos arts. 240 a 244. Disposições que vão desde a limitação a certas composições societárias até mesmo a outorga de concessões ou permissões para empresas de radiodifusão, por exemplo. Entretanto, como explica Tim Wu em sua obra Impérios da Comunicação, a história dos conglomerados de mídia passa por momentos de maior ou menor regulação ao longo da história.14 E as redes sociais, episódio mais recente, foram engendradas em um ambiente de competição de mercado, regido em última análise pela livre inciativa, e, portanto, a lógica é diversa da que rege a televisão ou o rádio, por exemplo. Logo, enquanto as mídias tradicionais informam baseadas em uma série de regras, a Internet é mercado puro. Então, o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão na Internet não teria o mesmo formato, finalidade e alma da liberdade de informação jornalística (art. 220, § 1º, CRFB), que somente deveria atender aos mesmos princípios do art. 221, conforme salienta o art. 222, §3º, CRFB. Neste emaranhado se encontram os problemas da desinformação - popularmente chamado de fake news­- e dos conteúdos tóxicos. Sem se responsabilizar por nada, os provedores têm de lidar nos últimos anos com um aumento sensível de ódio, desinformação política e sanitária a serviço de interesses escusos. Em tese, não há nada de ilícito em seu tio-avô postar aquele meme absurdo no Face, ou seu vizinho esbravejar que acredita na eficácia de determinado remédio contra a Covid-19. Agora, quando há práticas estruturadas, com financiamento público e privado que induzem em massa a difusão destes conteúdos, beirando as raias da segurança nacional (hoje crimes contra o Estado democrático de Direito) ou de crimes contra a ordem sanitária, a coisa é mais preocupante. Voltando à MP do Marco Civil, as ADIs propostas levantam vários dispositivos constitucionais que redundam sobre a liberdade de expressão e por via de consequência a vedação à censura. Conforme também leciona Tim Wu, a propósito, países de viés autoritários perceberam que, nas redes sociais, é impossível impedir que opositores falem. Entretanto, manipulando o ambiente informacional a favor do regime, é possível dificultar que sejam ouvidos a ponto de induzir uma "verdade oficial" que lhe seja sempre favorável. Trata-se do que o autor chama de "censura reversa", que ocorre em três passos: a. agressões pontuais a opositores; b. inflar artificialmente certo ponto de vista, fazendo parecer que a maioria das pessoas pensa daquela maneira (astroturfing) e; c. dominando por completo a esfera pública ao manipular as plataformas de comunicação a seu favor.15 Ao trazer em lei um rol sobre o que se considera "justa causa" para a retirada de determinado conteúdo e atribuir ao Executivo a possibilidade de sancionar (até mesmo com suspensão ou bloqueio de atividades) pela "moderação indevida" de conteúdo, a Medida Provisória abre portas à "censura reversa" no Brasil, consolidando definitivamente seu terceiro passo. Mas, diz nosso art. 220, § 2º, da Constituição: Art. 220... omissis.., § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Portanto, se transformada em lei, a atual versão do Marco Civil deixa em aberto a (este ou qualquer outro grupo ocupante) do Executivo a possibilidade de impedir que "notícias" favoráveis a si - produzidas e induzidas por bots, trolls, e "gabinetes" comunicacionais - sejam retiradas, bem como promover este ou aquele tratamento para determinada doença ou até mesmo induzir a desobediência civil quanto a políticas sanitárias de vacinação... por exemplo. Desta maneira, a Medida Provisória nasceu inconstitucional, do ponto de vista material, mas isso não significa que o ponto crítico do Marco Civil da Internet, centralizado na inconstitucionalidade do seu artigo 19, possa ser esquecido ou deixado de lado.  Parece que o governo acaba de dar munição aos defensores de uma liberdade de expressão irrestrita, que buscam legitimidade em face dos excessos do Poder Executivo, o que ultrapassaria a discussão da Medida Provisória, para alcançar os limites da responsabilidade do provedor de aplicações. Este é o principal foco do problema. A questão que fica, é que se a livre inciativa seria o princípio constitucional que garantiria por si só o direito à liberdade de expressão, - o que será de nós se, hipoteticamente, as "plataformas" resolvessem não questionar a "verdade oficial" do regime e passassem a seguir sua cartilha, retirando o que lhes é inconveniente e promovendo o que lhes é pertinente? Dias depois da polêmica ganhar novamente corpo no Brasil, o Wall Street Journal revelou o "Facebook files",16 no qual foram revelados documentos internos sobre o possível conhecimento, pelo alto escalão da Rede Social Instagram, de que a "plataforma" era nocivas a adolescentes mulheres. Sabia e nada fez nem faz. Mais ainda, o mesmo veículo expôs que o provedor tinha uma espécie de "área VIP"  da liberdade de expressão, o XCheck, em que se permitia (ou permite) a determinadas "personalidades" da rede social não seguirem as regras da plataforma.17 Então há direitos fundamentais mais fundamentais para um do que para outros? Até quando vamos passar esse "cheque em branco" para a livre iniciativa como "garante" da liberdade de expressão? Embora a Medida Provisória - agora Projeto de Lei -em si tenha sido um acinte à democracia e à liberdade de expressão, é importante adotar uma posição razoável e moderada, para que as críticas se limitem ao seu conteúdo, sendo urgente repensarmos em que medida o art. 19 do Marco Civil como está hoje seria a solução para a proteção da liberdade de expressão na Internet brasileira.                   *Guilherme Magalhães Martins é procurador de Justiça no Estado do RJ. Professor associado de Direito Civil na Faculdade Nacional de Direito - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense. **João Victor Rozatti Longhi é defensor público do Estado do Paraná. Professor Substituto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Professor visitante do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). __________ 1 JOTA - Portal Jurídico..STF: já são seis os partidos com ação contra MP que muda Marco Civil da Internet. PSB, Solidariedade, PSDB, PT, Partido Novo e PDT pedem anulação da Medida Provisória editada por Bolsonaro. CARNEIRO, Luiz Orlando. BRASÍLIA - 08/09/2021 18:36. Acesso em 08 set. 2021. 2 CONJUR - Revista Consultor Jurídico. Fim Da Livre Iniciativa. Para OAB, MP que limita remoção de conteúdo nas redes é inconstitucional. 9 de setembro de 2021, 11h19. Acesso em 09 set. 2021. 3 SARLET, Ingo Wolfgang. DIREITOS FUNDAMENTAIS: Direitos fundamentais, fake news e democracia: notas acerca da MP 1.068. 13 de setembro de 2021, 9h01 in Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 19 set. 2021. JOTA - Portal Jurídico. PAIVA, Letícia. Passe Livre Para Fake News : MP de Bolsonaro que dificulta remoção de posts é criticada por especialistas e redes. Texto de Bolsonaro lista motivos que justificariam exclusão de publicações. Remoção de desinformação precisaria de aval judicial. Acesso em 07 set. 2021. SOUZA, Carlos Affonso de. Análise: Inconstitucional, MP de Bolsonaro cria 'Ministério da Mentira'. Disponível aqui. Acesso em 07 set. 2021; VIEIRA, Rodrigo. Moderação de conteúdo na internet brasileira: em defesa do Marco Civil. 9 de setembro de 2021, 13h40. Acesso em: 10 set. 2021. 4 AGÊNCIA SENADO. Pacheco devolve MP que dificultava retirada de conteúdo da internet. 14/09/2021, 20h44. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 5 CONJUR. Reista Consultor Jurídico. Rosa Weber suspende MP que limita remoção de conteúdo em redes sociais. 14 de setembro de 2021, 20h41. Por Sérgio Rodas. Acesso em 19 set. 2021. 6 BRASIL. Procuradoria Geral da República. PGR opina pela suspensão de MP que altera Marco Civil da Internet até apreciação definitiva pelo Supremo. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 7 TIME. Brazil's Restrictive New Social Media Rules Could Be an Omen For the Future of the Internet Disponível aqui.  Acesso em: 10 set. 2021. 8 Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 9 IX - rede social - aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações, veiculados por textos ou arquivos de imagens, sonoros ou audiovisuais, em uma única plataforma, por meio de contas conectadas ou acessíveis de forma articulada, permitida a conexão entre usuários, e que seja provida por pessoa jurídica que exerça atividade com fins econômicos e de forma organizada, mediante a oferta de serviços ao público brasileiro com, no mínimo, dez milhões de usuários registrados no País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 1.068, de 2021). X - moderação em redes sociais - ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais. (Incluído pela Medida Provisória nº 1.068, de 2021). 10 Parágrafo único. "Não se incluem na definição de que trata o inciso IX do caput as aplicações de internet que se destinam à troca de mensagens instantâneas e às chamadas de voz, assim como aquelas que tenham como principal finalidade a viabilização do comércio de bens ou serviços." (NR) 11 BBC News. Trump signs executive order targeting Twitter after fact-checking row. 29 May 2020. Disponível aqui. Acesso em: 07 set. 2021. 12 LANGE, Jason; WOLFE, Jan. Trump sues Facebook, Twitter and Google, claiming censorship. Disponível aqui. Acesso em: 07 set. 2021. 13 Tema nº 987 do STF - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. 14 Cf. WU, Tim. Impérios da comunicação. Do telefone à internet, da AT&T ao Google. Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. Passim. 15 Cf. WU, Tim. Is the first amendment obsolete? BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geoffrey R. The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019. O artigo de Tim Wu também pode ser encontrado gratuitamente aqui. Acesso em 19 set. 2021. Para maiores aprofundamentos no tema, V. o nosso ALVES, Fernando de Brito; MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Ataques em massa na internet como censura e o método da censura reversa. Acesso em: 09 set. 2021. 16 WALL STREET JOURNAL. The facebook files :A Wall Street Journal investigation. Disponível aqui. Acesso em 19 set. 2021. 17 Um dos beneficiados, inclusive, teria sido o jogador Neymar, já que o Facebook permitiu o post de um "nude" daquela que o acusara de estupro. Cf. THE GUARDIAN. Dan Milmo Global technology editor. Mon 13 Sep 2021 20.50 BST. Facebook: some high-profile users 'allowed to break platform's rules': XCheck system 'whitelists' well-known users who are given special treatment, says Wall Street Journal report. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021.
11 de setembro e pandemia de covid-19: duas perspectivas A inspiração inicial para este artigo veio de um filme. Trata-se de "Worth" ("Quanto vale?" [2020]), dirigido por Sara Corangelo e estrelado por Michael Keaton, Amy Ryan e Stanley Tucci. A película, baseada em fatos reais, narra a história de um advogado, Kenneth Feinberg, que recebeu do Congresso Americano (em caráter pro bono, saliente-se) a difícil tarefa de servir como "administrador especial" de um fundo criado para compensar extrajudicialmente as vítimas dos eventos terroristas de 11 de setembro de 2001 (o September 11th Victim Compensation Fund), que, aliás, acabaram de completar 20 anos.  O Fundo, instituído a partir de ato do Congresso (o Air Transportation Safety and System Stabilization Act) e alimentado com recursos dos contribuintes, tinha, para além do propósito de oferecer compensação rápida às vítimas, sem os riscos, custos e a demora de um processo judicial, o objetivo confessado de estabilizar os setores de aviação civil e seguros, "ameaçados" por demandas multimilionárias de responsabilidade civil que potencialmente seriam movidas pelos mais de 6 mil feridos e pelos familiares dos quase 3 mil mortos. Justamente por isso a aceitação do valor oferecido por essa via implicava renúncia ao direito de pleitear judicialmente qualquer verba indenizatória com fundamento nos mesmos fatos. O Air Transportation Safety and System Stabilization Act praticamente não estabelecia critérios para o pagamento das indenizações, conferindo ao administrador especial nomeado "carta branca" para fixar os parâmetros. Kenneth Feinberg e sua equipe dedicaram-se, então, a elaborar uma fórmula - inicialmente muito criticada, porque considerada insensível e cega às particularidades de cada caso - visando justamente a responder à pergunta que serve de título a este artigo: quanto vale uma vida? Ao fim e ao cabo, especialmente após se constatar que nem todos os casos "cabiam na fórmula", demandando adaptações individuais, o plano alcançou seus principais objetivos, tendo obtido a adesão de 97% dos potenciais litigantes, com o pagamento, extrajudicialmente, de mais de US$ 7 bilhões em indenizações (média de US$ 1,8 milhão por solicitante).1 Recentemente, os debates acerca do valor de uma vida ressurgiram com grande força no contexto da pandemia de covid-19, mas sob perspectiva diversa. Interessava agora definir, para orientação de políticas públicas, o montante que a sociedade estaria disposta a "pagar" para salvar vidas, em termos de redução da atividade econômica e dos empregos, mediante medidas de confinamento e afins. O debate em torno do valor da vida humana, com essa conotação de ferramenta para tomada de decisões públicas, não é novo. Thomas Schelling, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2005, foi o responsável por introduzir o conceito de "value of a statistical life" (VSL) em um ensaio de 1968.2 Para o autor, o VSL poderia ser definido a partir de indicadores como o montante que as pessoas estão dispostas a pagar por medidas de segurança que reduzem riscos (airbags e sistemas mais eficientes de frenagem, por exemplo) ou o valor extra exigido por trabalhadores para se sujeitarem a exercer funções perigosas. Posteriormente, Richard Thaler, outro ganhador do Nobel de Economia (2017), "apimentaria" a discussão acerca do VSL a partir da constatação - central para a nova escola da Economia Comportamental - de que seres humanos, ao contrário do que antes se assumia como dogma na teoria econômica Clássica, não são 100% racionais, sendo suas escolhas orientadas muitas vezes por elementos subjetivos e culturais.3 Um exemplo nesse sentido aparece logo no início de seu estudo, quando o autor confronta as respostas dadas por um grupo de entrevistados a duas perguntas: "Quanto você pagaria para eliminar uma doença que contraiu e que possui uma taxa de mortalidade de 1 em 100 mil?" e "Quanto seria necessário pagar para você aceitar fazer algo que o colocaria em uma chance de morrer de 1 em 100 mil?". Ora, sob perspectiva puramente matemática, não existe distinção entre as duas hipóteses e as respostas deveriam ser idênticas, todavia os resultados evidenciaram, paradoxalmente, uma irracionalidade quase uniforme entre os entrevistados: as pessoas tendem a pôr preço mais alto para aceitar a criação de uma probabilidade de mortalidade (2ª pergunta) do que para eliminá-la (1ª pergunta), sendo mais frequente, neste último caso, que "paguem para ver". Outras irracionalidades viriam à tona em estudos posteriores, derivadas de fatores como idade, escolaridade, origem, falta de informação adequada e aversão/propensão ao risco. O VSL constitui importante ferramenta na tomada de decisões públicas em setores como meio ambiente, transporte e saúde, funcionando como "teste" para a eficiência de medidas governamentais: considerando, por exemplo, que o VSL, atualmente, nos Estados Unidos, gira em torno de US$ 10 milhões, uma política que seja capaz de salvar a vida de uma pessoa a custo inferior a esta quantia seria economicamente justificável no referido país.4   Naturalmente, o VSL oscila de país para país, visto que diferentes os montantes que, conforme o nível de desenvolvimento, as pessoas estão dispostas a pagar por novas medidas de segurança ou, ao reverso, os valores exigidos pelos trabalhadores para exercer atividades perigosas. No Brasil, consoante recente estudo, o VSL corresponderia a R$ 3,294 milhões (pouco mais de US$ 627 mil, de acordo com o câmbio de 14/09/2021).5 Essas são duas formas de abordar a questão do valor da vida. A primeira, aplicada no Fundo criado para compensar as vítimas do 11 de setembro, mais próxima do universo dos juristas, trata a morte do familiar como dano a ser ressarcido - uma aplicação do que Aristóteles chamava de justiça corretiva, destinada a restabelecer o equilíbrio rompido pelo evento danoso. A segunda, representada no "value of a statistical life" (VSL), mais afeta ao mundo dos economistas e empregada para fundamentar decisões governamentais, atribui valor uniforme à vida, prévio à ocorrência de qualquer dano, com base em quanto estaríamos dispostos a pagar, como consumidores ou trabalhadores, para eliminar ou não enfrentar determinado risco - esta uma manifestação do que Aristóteles chamava de justiça distributiva, preocupada em definir como o Estado deve alocar seus recursos em atenção ao bem-comum.6 O valor de uma vida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Pretende-se, agora, na segunda parte do artigo, aproximar-se do valor atribuído à vida humana no contexto nacional, conforme a primeira linha de pensamento acima exposta (a de justiça corretiva, voltada a remediar a perda da vida mediante indenização). Algumas explicações quanto à metodologia são necessárias. Primeiro, optou-se por restringir a pesquisa a julgados do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), mercê de seu papel de uniformização da interpretação da lei federal. Segundo, limitou-se o estudo às condenações por dano moral, na medida em que as indenizações por danos materiais, em caso de morte, não refletem o valor da vida perdida em si, mas a renda que o falecido deixou de gerar para seus dependentes, elemento variável e que não interessa aos fins desta investigação. Terceiro, serão examinadas condenações por dano moral em dois grupos de casos bem definidos: (i) morte de genitor(a) do autor da ação; (ii) morte de filho(a) do autor da demanda. Quarto, foram selecionados apenas julgamentos posteriores a 2012, de forma a minimizar distorções decorrentes da inflação. Quinto, foram descartados julgados em que reconhecida culpa concorrente da vítima ou nos quais o dano indenizado fosse a perda da chance de sobrevida. Pois bem. O STJ tem asseverado reiteradamente que a revisão dos valores fixados a título de indenização por danos extrapatrimoniais só é possível, em sede de recurso especial, quando manifestamente irrisória ou exorbitante a quantia fixada pelo tribunal inferior. Fora dessas hipóteses, a revisão das indenizações encontraria óbice na Súmula 7 da mesma Corte. Em sendo assim, a jurisprudência do STJ com relação ao montante das indenizações por danos morais pode ser dividida em dois tipos de julgados: (i) aqueles nos quais o Tribunal não modifica a indenização estabelecida pelas cortes inferiores, porque ela não é insignificante nem grosseiramente excessiva, os quais constituem a maioria; (ii) aqueles nos quais a indenização é modificada, por ser considerada insignificante ou grosseiramente excessiva, os quais são relativamente raros. O primeiro grupo revela os limites inferior e superior para as indenizações, e, portanto, uma faixa de valores entre esses limites considerada "aceitável" pelo STJ. O segundo grupo, por outro lado, permite conhecer os reais parâmetros desta Corte quando ela decide estabelecer nova indenização, em substituição à anterior, dando ideia de qual seria, na sua visão, o valor mais adequado para cada tipo de lesão (e não mais apenas um espectro de indenizações "não reformáveis"). Vejamos os resultados.7 (a) Morte de genitor(a) do autor da ação: Com relação a esse tipo de ofensa, foram analisados 35 julgamentos. Em 29 deles, o STJ manteve as indenizações fixadas pelas cortes inferiores, porque não as considerou insignificantes nem grosseiramente excessivas, invocando a Súmula 7 já referida. Tais indenizações oscilaram entre R$ 16.285,00 e R$ 500.000,00 para cada filho-demandante, por genitor falecido.8 Em 5 casos, a Corte majorou o valor da indenização em favor de cada filho nos seguintes termos: de R$ 15.000,00 para R$ 130.000,00 (REsp 1160261/MG); de R$ 10.000,00 para R$ 200.000,00 (REsp 1837195/RJ); de R$ 50.000,00 para R$ 200.000,00 (AREsp 1001643/RJ); de R$ 60.000,00 para R$ 200.000,00 (AREsp 1355500/MA); de R$ 41.500,00 para R$ 300.000,00 (AREsp 68041/SP). No REsp 1711214/MT, por outro lado, a Corte reduziu a indenização de R$ 522.500,00 para R$ 261.250,00.9 (b) Morte de filho(a) do autor da demanda: Neste tópico, foram analisados 69 julgamentos. Em 55, o STJ manteve as indenizações fixadas pelas cortes inferiores, porque não as considerou insignificantes nem grosseiramente excessivas, invocando, para tanto, a Súmula 7. Tais indenizações variaram de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 para cada genitor-demandante, por filho perdido.10 Em 3 decisões, o STJ reduziu as indenizações, sob o fundamento de que eram grosseiramente excessivas: de R$ 500.000,00 para R$ 300.000,00 (REsp 1749965/SP); de R$ 1.182.000,00 para R$ 394.000,00 (REsp 1197284/AM); de R$ 545.000,00 para R$ 500.000,00 (REsp 1842852/SP).11 Nas outras 11, o tribunal majorou as indenizações, por considerá-las insignificantes: de R$ 10.000,00 para R$ 50.000,00 (REsp 1835492/AC); de R$ 30.000,00 para R$ 60.000,00 (AREsp 812782/PR); de R$ 39.400,00 para R$ 75.000,00 (REsp 1034652/MG); de R$ 40.000,00 para R$ 80.000,00 (REsp 1745695/RS); de R$ 30.000,00 para R$ 95.400,00 (AgInt no AgInt no REsp 1712285/TO); de R$ 75.000,00 para R$ 100.000,00 (AgRg no AREsp 725306/DF); de R$ 30.000,00 para R$ 100.000,00 (AgInt no AREsp 1708564/MS); de R$ 10.000,00 para R$ 118.200,00 (REsp 1320715/SP); de R$ 19.700,00 para R$ 236.400,00 (REsp 1044527/MG); de R$ 46.500,00 para R$ 315.200,00 (REsp 1279173/SP); de R$ 83.000,00 para R$ 315.200,00 (REsp 1201244/RJ).12 Conclusões Alguma variabilidade no valor de condenações por dano moral, mesmo quando se parte de tipos bem definidos de dano-evento (como são os de morte de genitor e de filho), é sempre esperada. Afinal, se as funções da indenização por dano moral são três - compensar, punir e dissuadir - múltiplos fatores devem ser sopesados em seu arbitramento, relacionados tanto à extensão do mal causado à vítima (v.g., intensidade do sofrimento, duração do dano, proximidade com o falecido), como também ao ofensor e à conduta (v.g., grau de culpabilidade, capacidade econômica do agente, reincidência na prática), a justificar desvios para cima ou para baixo em relação a um padrão hipotético "médio" de violação ao direito da personalidade. Por isso mesmo qualquer tentativa de "tarifamento" legal ou jurisprudencial nessa matéria está fadada ao insucesso (da mesma forma que fracassou a fórmula única inicialmente aplicada no September 11th Victim Compensation Fund). Todavia, mesmo com a ressalva de que variações são esperadas (ou, mais do que isso, são desejáveis, ante as distintas necessidades de compensar, punir e prevenir), desperta preocupação a elevada oscilação apurada no estudo acima. Basta dizer que a razão entre a maior e a menor indenização foi de 30,7:1 no primeiro grupo (R$ 500.000,00 e R$ 16.285,00) e de 16,66:1 no segundo grupo (R$ 500.000,00 e R$ 30.000,00). A variabilidade no arbitramento cai significativamente quando se consideram apenas os julgados nos quais o STJ decidiu estabelecer nova indenização em substituição à anterior. Aqui, a ratio entre o maior e o menor valor reduz-se para 2,3:1 no primeiro grupo (R$ 300.000,00 e R$ 130.000,00) e 10:1 no segundo (R$ 500.000,00 e R$ 50.000,00). Outro ponto que merece atenção é a dimensão da "zona de não intervenção" (isto é, da faixa na qual o STJ não reconhece nem insignificância, nem excesso, nos valores fixados em 2ª instância): de R$ 16.285,00 a R$ 500.000,00 no primeiro grupo; de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 no segundo. Tal fator, somado ao fato de que as modificações promovidas pelo STJ são relativamente raras (17,14% e 20,28% dos casos que chegaram ao tribunal superior nos dois grupos), evidencia que os Tribunais de Justiça dos Estados e os Tribunais Regionais Federais têm papel predominante na fixação dos danos extrapatrimoniais. Por fim, em atenção à pergunta central deste artigo, cumpre calcular, com base na média dos resultados, o "valor de uma vida" (resumido, aqui, à sua dimensão extrapatrimonial, como justificado alhures). Para as ofensas do 1º grupo - morte de genitor(a) - a média das condenações por dano moral, considerados os 35 julgamentos examinados, foi de R$ 112.190,63. Esse valor desce para R$ 90.876,62 quando contabilizados apenas os 29 julgamentos que integram a "zona de não intervenção", nos quais invocada a Súmula 7, mas sobe para R$ 215.208,33 quando considerados somente os valores fixados diretamente pelo STJ nos 6 casos em que este Tribunal decidiu substituir a condenação anterior. Já para as ofensas do 2º grupo - morte de filho(a) - a média das condenações por dano moral, considerados os 69 julgamentos examinados, foi de R$ 125.004,34. Esse valor reduz-se para R$ 107.016,36 quando contabilizados apenas os 55 julgamentos que integram a "zona de não intervenção", nos quais invocada a Súmula 7, mas se eleva para R$ 195.671,42 quando consideradas somente as 14 indenizações fixadas diretamente pelo STJ. Em arremate, deixo minha impressão pessoal: para além de os valores, mesmo os fixados diretamente pelo STJ, serem modestos demais para bem cumprir as funções de compensar, punir e dissuadir, quando se está em debate a perda de uma vida (reflexo talvez do cuidado exagerado que existe entre nós em impedir o enriquecimento sem causa dos demandantes), afigura-se preocupante, sob o prisma da previsibilidade, a manutenção de "zona de não intervenção" tão dilatada (de R$ 16.285,00 a R$ 500.000,00 no primeiro grupo; de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 no segundo), cujos extremos distanciam-se sobremaneira dos valores que o próprio STJ arbitra quando modifica as condenações. *Ricardo Dal Pizzol é doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University (Alabama, USA [2015]). Mestre em Direito Civil pela USP (2016). Professor do curso de pós-graduação "lato sensu" da Escola Paulista da Magistratura. Juiz de Direito no Estado de São Paulo. __________ 1 Viscusi, William Kip. Pricing lives: Guideposts for a safer society. Princeton: Princeton University Press, 2018, p. 197. 2 Schelling, Thomas C. The life you save may be your own. In: Problems in Public Expenditure Analysis. Washington: Brookings, 1968, p. 127-162. 3 Thaler, Richard; Rosen, Sherwin. The value of saving a life: evidence from the labor market. In: Household Production and Consumption. New York: Columbia University Press, 1976, p. 265-302. 4 Kniesner, Thomas J.; Viscusi, William Kip. The value of a statistical life. Disponível aqui. Acesso em 13/09/2021. 5 Pereira, Rafael Mesquita; Almeida, Alexandre Nunes de; Oliveira, Cristiano Aguiar de. O valor estatístico de uma vida: estimativas para o Brasil. Estudos Econômicos (São Paulo) [online]. 2020, v. 50, n. 2, p. 227-259. Disponível aqui. Acesso em 14/09/2021. 6 Aristóteles. Ética a Nicômaco, trad. António de Castro Caeiro, São Paulo: Atlas, 2009, p. 107-110. 7 Para estudos quantitativos semelhantes, envolvendo outras violações a direitos da personalidade (v.g., inscrição indevida nos órgãos de proteção ao crédito, ofensas à integridade física), ver nosso: Dal Pizzol, Ricardo. Responsabilidade Civil: Funções Punitiva e Preventiva. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 198-204. 8 Ver: R$ 16.285,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 136114/MA, Rel. Ministro Massami Uyeda, DJe 04/12/2012); R$ 16.666,66 (S.T.J., AgInt no REsp 1641540/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, DJe 29/05/2017); R$ 25.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 957826/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 02/02/2017); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 178255/SE, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 24/04/2013); R$ 30.000,00 (S.T.J., EDcl no REsp 1770437/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 14/05/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1356800/MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 01/03/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1419899/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 24/09/2012); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1554466/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 22/08/2016); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1570428/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 01/09/2020); R$ 54.545,45 (S.T.J., AgInt no AgInt no AREsp 1688401/SE, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/02/2021); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 494692/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 25/06/2014); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 789450/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 05/02/2016); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1447299/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 21/06/2016); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1471604/RS, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, DJe 29/09/2017); R$ 75.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 494692/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 25/06/2014); R$ 75.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1368938/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 07/06/2013); R$ 78.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1585156/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 09/12/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 755535/CE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 01/04/2016); R$ 83.000,00 (S.T.J., AgRg nos EDcl no AREsp 123842/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 31/08/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg nos EDcl no AREsp 25258/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 26/02/2013); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 240252/RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 06/12/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1378016/MS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 22/08/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1574806/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 592690/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 05/08/2015); R$ 117.125,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1449794/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 20/08/2019); R$ 144.800,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 600372/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 27/11/2014); R$ 150.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1320405/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/08/2018); R$ 200.000,00 (S.T.J., RCD no REsp 1575303/MT, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 12/04/2016); R$ 500.000,00 (S.T.J., AREsp 1120174/PA, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/09/2019). 9 S.T.J., REsp 1160261/MG, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 26/09/2014; S.T.J., AREsp 68041/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 26/06/2012; S.T.J., REsp 1837195/RJ, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, DJe 29/10/2020; S.T.J., AREsp 1001643/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 01/08/2017; S.T.J., AREsp 1355500/MA, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/09/2019; S.T.J., REsp 1711214/MT, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 02/10/2018. 10 Ver: R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1316945/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18/12/2020); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1255705/PB, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 26/03/2019); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1104684/PI, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 14/11/2017); R$ 35.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1.426.828/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 22/11/2012); R$ 40.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1366621/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 30/09/2019); R$ 45.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 346483/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 06/12/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 388401/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 06/03/2014); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 167040/RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 03/05/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AREsp 598512/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 18/12/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1527136/AC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 26/10/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1576912/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 20/05/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1606177/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 01/04/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1485252/MA, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 27/11/2019); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1785645/AC, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 14/06/2019); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1531467/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 10/10/2016); R$ 51.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1272900/AL, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 09/03/2012); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1462833/TO, Rel. Ministro Nancy Andrighi, DJe 01/09/2014); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1694191/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 18/05/2018); R$ 62.500,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1825777/AM, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 27/11/2020); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1.317.861/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 09/12/2014); R$ 70.000,00 - (S.T.J., AgInt no AREsp 1823455/PE, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 25/06/2021); R$ 70.000,00 - (S.T.J., AgInt nos EDcl no AREsp 1553769/MS, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 02/04/2020); R$ 76.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 201.092/MS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 09/10/2012); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1871795/CE, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 18/12/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1626688/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 03/09/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt nos EDcl no REsp 1143470/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18/11/2019); R$ 88.000,00 (S.T.J., REsp 1346320/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 05/09/2016); R$ 95.400,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1809179/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 02/06/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1685425/AM, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 20/09/2019); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1823206/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 30/06/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1876694/AM, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 15/03/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1723499/MS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 18/12/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1679394/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 18/12/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AREsp 1635896/PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/06/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 933896/PR, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 16/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1646171/RS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 20/06/2017); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1609146/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 08/06/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1398627/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 04/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 777278/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 04/02/2016); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1393922/SC, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 26/03/2019); R$ 110.000,00 (S.T.J., REsp 1292144/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/10/2013);  R$ 120.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1679314/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21/09/2020); R$ 125.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1494733/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 25/03/2020); R$ 150.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 258.541/PE, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 10/09/2013);  R$ 150.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1824156/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 23/03/2021); R$ 180.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1410023/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 07/11/2019); R$ 181.000,00 (S.T.J., EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp 1196640/BA, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 05/02/2019); R$ 187.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1469221/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06/12/2017); R$ 200.000,00 (S.T.J., REsp 1709926/AM, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 01/09/2021); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1610097/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 05/08/2020); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1105185/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 01/10/2018); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1653046/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJe 28/05/2018); R$ 280.000,00 (S.T.J., REsp 1784671/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 23/04/2019); R$ 400.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 778245/RJ, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 24/10/2019); R$ 400.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 401519/RJ, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 23/05/2018). 11 S.T.J., REsp 1749965/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 19/11/2019; S.T.J., REsp 1197284/AM, Rel. Ministro Paulo de T. Sanseverino, DJe 30/10/2012; S.T.J., REsp 1842852/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 07/11/2019. 12 S.T.J., REsp 1835492/AC, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 04/10/2019; S.T.J., AREsp 812782/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 14/12/2016; S.T.J., REsp 1034652/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 27/06/2014; S.T.J., REsp 1745695/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 13/08/2018; S.T.J., AgInt no AgInt no REsp 1712285/TO, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 18/12/2018; S.T.J., AgRg no AREsp 725306/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 02/09/2015; S.T.J., AgInt no AREsp 1708564/MS, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 15/10/2020; S.T.J., REsp 1320715/SP, Rel. Ministro Paulo de T. Sanseverino, DJe 27.02.2014; S.T.J., REsp 1044527/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 01/03/2012; S.T.J., REsp 1279173/SP, Rel. Ministro. Paulo de T. Sanseverino, DJe 09/04/2013; S.T.J., REsp 1201244/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 13/05/2015.
quinta-feira, 16 de setembro de 2021

A responsabilidade civil pelo filho póstumo

O recente julgamento pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça sobre a implantação de embriões criopreservados após a morte do marido evidenciou que, sem norma específica que regulamente o tema, requisito essencial para esse tipo de procedimento post mortem é o consentimento "inequívoco, expresso e formal". Ou seja, para a maioria dos ministros da Corte Superior, não bastou a existência de autorização assinada no contrato com a clínica de fertilização, em que descrevia que caso um dos cônjuges viesse a falecer, os embriões ficariam sob a custódia do sobrevivente, para que a viúva pudesse levar a cabo o projeto de gravidez1. Um dos argumentos do Ministro Luís Felipe Salomão, que elaborou o voto vencedor, foi que "admitir-se que a autorização posta naquele contrato de prestação de serviços, na hipótese, marcado pela inconveniente imprecisão na redação de suas cláusulas, possa equivaler a declaração inequívoca e formal, própria às disposições post mortem, significará o rompimento do testamento que fora, de fato, realizado, com alteração do planejamento sucessório original, sem quaisquer formalidades, por pessoa diferente do próprio testador." De fato, o nascimento de um filho, ou a descoberta de um filho após a morte do testador é uma das causas do rompimento do testamento, segundo o artigo 1.974 do Código Civil. Mas, para que houvesse tal rompimento, este filho precisaria nascer com vida, conforme o artigo 2o do mesmo diploma. No acórdão citado, não houve debates específicos sobre o início da vida e se há reserva de legítima para embriões criopreservados2. Tampouco diferenciaram a implantação de embrião de inseminação de material genético do falecido3. Debruçaram-se os ministros tão e somente sobre o fato de que a autorização do cônjuge falecido para a implantação de embrião criopreservado, oriundo de fertilização homóloga4 (material genético é do casal), deve ser "inequívoca, expressa e formal". Dois tipos de consentimento Aqui, é importante diferenciar o que é o consentimento informado e esclarecido para os procedimentos de reprodução humana assistida (RHA) e o consentimento para a implantação de um embrião após a morte de um dos cônjuges. No primeiro caso, trata-se do direito do paciente-consumidor de ser informado sobre todas as implicações médicas de seu tratamento. É, em resumo, nos termos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), o direito à informação, e foi disciplinado no Código de Ética Médica (Resolução do CFM n. 1.246/1988). Essa necessidade de se respeitar a autonomia do paciente em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana está expressa na Constituição Federal (art 1o, III, e art. 5o, II, CF)5. O segundo caso, demandaria por parte dos contraentes, uma reflexão mais profunda sobre a maternidade/paternidade post mortem, visto que há consequências ético-jurídicas não só para o paciente que se submete ao tratamento, mas também para terceiros como o próprio filho póstumo, o cônjuge sobrevivente e os ascendentes e descendentes do falecido. O que se tem hoje, em grande parte das clínicas, é um contrato de adesão no qual a pessoa manifesta sua vontade com um "X". Essa diferenciação de consentimentos não é explícita, mas está disposta na resolução n. 2.294 de 2021 do CFM6. Nesse sentido, se, por um lado, houve o consentimento para realizar as técnicas de RHA (contrato entre a clínica e o paciente), por outro lado, a implantação desses embriões posteriormente à morte de um dos cônjuges precisaria da anuência específica para este fim (contrato entre a clínica e os pacientes e contrato existencial entre os pacientes)7. Tanto que um dos argumentos do voto vencedor do julgado do STJ supracitado foi que "custódia de embriões" não equivale à possibilidade de implantação dos mesmos. Entretanto, é importante frisar que, em vida ou em testamento, existe a possibilidade de revogação dessa autorização8. Contudo, uma vez implantado o embrião, tratar-se-á de um nascituro, cujos direitos estão resguardados. Mas, quais seriam as consequências jurídicas se este embrião for implantado à revelia desta autorização? Qual seria a responsabilidade civil do médico? Do cônjuge supérstite? Do filho póstumo? Quem teria legitimidade para propor alguma ação de reparação de danos em nome do morto?                A responsabilidade civil São inúmeras perguntas sem respostas prontas e objetivas. Para perquirir se há uma responsabilização civil, é preciso verificar se seus requisitos, dispostos nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, estão preenchidos. Considerando que a regra geral da responsabilidade civil é a de que quem causa dano a outrem, por ação ou omissão, está obrigado a repará-lo, desde que comprovado o nexo causal entre autor e dano, não é difícil perceber que na implantação de embrião sem consentimento, incorrem em responsabilidade tanto o médico quanto o cônjuge supérstite que deu cabo do projeto (agora) monoparental. Na lição de Nelson Rosenvald, "se o demandante pretende uma indenização, o réu deve ter violado uma norma de conduta que rege as maneiras como ele pode tratá-lo, e não alguma outra norma relativa às maneiras como qualquer outra pessoa pode ser tratada. Esse princípio é em si uma expressão da forma pela qual o direito civil deve lidar com a questão de como as pessoas tratam umas às outras"9. No caso em questão, se o falecido não deu seu consentimento expresso para a implantação dos embriões ou, pior, foi enfático em revogar essa autorização em testamento, o procedimento à sua revelia, ainda que post mortem, acarretaria, sim, responsabilização civil não só do médico, mas também do cônjuge supérstite. Responsabilidade do médico O médico responde com base no Código de Defesa do Consumidor (art. 14, § 4º), por se tratar de uma relação de consumo. Responde ainda ante seu próprio conselho de classe, uma vez que violados expressamente o art. 15, § 3º do Código de Ética Médica, e o item V.3 da Resolução 2.294/2021 do CFM. Apesar de não haver legislação específica sobre a criminalização de atos médicos na reprodução humana assistida, uma solução utilizada pela doutrina norteamericana10 para a implantação de embriões ou material genético sem a autorização foi a nomeação do crime de conspiração (conspiracy) e fraude, donde respondem os agentes que concorreram com o crime, mesmo antes da ocorrência do dano. É vasta a literatura sobre a responsabilidade civil do médico e das clínicas de fertilização, inclusive já trazidas por esta coluna11 e membros do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil)12. Mas, o importante é destacar que o tema é vastíssimo e entre as possibilidades criativas de inclusão da má conduta médica podendo-se, inclusive, aventar o enquadramento do wrongful conception13 - que aborda os casos de casais que escolheram lançar mão de métodos contraceptivos e, por falha médica, acabaram concebendo uma criança indesejada ou não planejada - pelo menos, por uma das partes. Responsabilidade do cônjuge supérstite Já a responsabilidade da viúva não decorre de relação de consumo, mas de um ato ilícito, pois rompeu com a confiança que seu falecido marido nela teria depositado, de não usar aquele material genético para uma inseminação post mortem. Sua responsabilidade encontraria fundamento, pois, basicamente no art. 186 da lei civil, bem como no art. 927 do mesmo estatuto legal.           Destaca-se que o dano aqui causado pode ser caracterizado não só pela quebra do contrato (existencial) entre as partes, o qual dispunha que deveria haver o consentimento expresso para a implantação, como também os danos causados aos descendentes ou ascendentes do falecido, podendo ocorrer, assim, um dano em ricochete. Não se trata aqui do caso clássico em que há a morte da vítima e os danos oriundos desta. Mas, de um dano ocorrido por uma violação da vontade do falecido que originou outro ser, um irmão, um neto, alguém cuja existência não foi quista pelo morto. O dano em ricochete, na leitura de Rafael Peteffi da Silva, é explicado como "o prejuízo que pode ser observado sempre em uma relação triangular em que o agente prejudica uma vítima direta que, em sua esfera jurídica própria, sofre um prejuízo que resultará em um segundo dano, próprio e independente, observado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete"14. Ainda segundo Rafael Peteffi da Silva, o princípio da função social do contrato poderia atuar como um dos critérios para fixar o dano reflexo ou por ricochete dentro da moldura dos danos indenizáveis15. Neste caso, houve quebra do contrato, posto que a agiu-se à revelia de uma (não) vontade expressa. O dano patrimonial para os herdeiros do falecido seria a própria imposição da divisão da herança com o irmão póstumo, se este nascer com vida. O dano moral seria a existência de um irmão que é fruto da quebra de contrato e de confiança que a viúva realizou frente ao marido morto. Esses familiares poderiam ainda defender em nome próprio o direito de resguardar a memória de seu ente querido, por violação à sua honra16. E o filho póstumo? Eduardo de Oliveira Leite afirma que, juridicamente, a criança oriunda de inseminação post mortem não tendo sido concebida durante o casamento não poderia, em vista do artigo 1.597, II, do Código Civil, ser considerada como filha de pai morto e, portanto, sua herdeira. Contudo, tendo a fertilização in vitro já ocorrido e restando os embriões criopreservados, a criança já pode ser considerada concebida quando transferida para o útero materno, considerando os incisos III, IV e V, do mesmo artigo17.  Assim, mesmo implantado à revelia, se o embrião conseguir se desenvolver e nascer com vida, terá garantido todos os seus direitos sucessórios. Porém, não se pode deixar de inquirir se, sob o ponto de vista ético, a reprodução post mortem não estaria causando algum dano daquele que está por vir. Nesta linha, José de Oliveira Ascensão argumenta: "entra-se aqui numa zona perigosamente problemática. Está-se 'produzindo' conscientemente um novo ser que nunca terá a possibilidade de um ambiente bipartido, ficando assim de fora do que é normal na formação humana. Os interesses da mãe prevalecem assim sobre o interesse do ser que ela concebe"18. De acordo com Alexandre Pereira Bonna, a efetiva lesão para fins de gerar a indenização por dano moral deve atingir um bem integrante do patrimônio jurídico da pessoa, como a vida, liberdade, intimidade, privacidade, honra, imagem, os quais são tutelados pelo Direito e fazem parte do patrimônio jurídico das pessoas, que possuem patrimônio material e imaterial19. Portanto, ao ter consciência de como foi o seu processo de nascimento e todas as consequências jurídicas vividas a partir deste evento, o filho póstumo poderia, a seu turno, ingressar com danos morais contra a própria mãe (e por que não o médico, se não houver prescrição) que, em atitude desesperada, forjou sua existência à revelia do pai que ele nunca virá a conhecer.  *Maria Carolina Nomura-Santiago é mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP (2020) e em Direito Internacional pela Fundación José Ortega y Gasset - Gregorio Marañon, então adscrito à Universidad Complutense de Madrid (2006). Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas, da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) e do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada e jornalista.   Referências bibliográficas CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito Civil. 5. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1.428  DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro; SANTIAGO, Maria Carolina N. Nomura. Responsabilidade civil pela desistência do projeto parental após a criopreservação de embriões: aplicação da teoria da perda de uma chance. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 103-118, jan./abr. 2021.  GOZZO, Débora. LIGIERA, Wilson Ricardo (organizadores). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.  LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.  NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade civil do médico. 8a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.  NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de direito do consumidor. Salvador: Juspodium, 2008.  NOMURA-SANTIAGO, Maria Carolina. Post Mortem: a questão sucessória dos embriões criopreservados. São Paulo: Liberars, 2021.  PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3ª ed., 2011. __________ 1 Para o Ministro-relator Marco Buzzi, que teve o voto vencido, "Se pelo ordenamento jurídico admite-se a manifestação por quaisquer meios, é fato que quando essa declaração se dá por documento escrito, tal aquiescência afigura-se verdadeiramente sofisticada a denotar a perfectibilização do requisito atinente à prévia e expressa declaração de vontade.(.) E que não se diga que a autorização precisava ter sido formulada por instrumento público, vez que inexiste lei que assim preveja". Já para o Ministro Luís Felipe Salmão, cujo voto foi o vencedor, à falta de lei específica sobre o tema, foram trazidos o § 7° do art. 226 da Constituição Federal, sobre o planejamento familiar, a lei 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), a Resolução n. 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, o Provimento n. 63 do Conselho Nacional de Justiça e o Enunciado n. 633 do Conselho da Justiça Federal, oriundo da VIII Jornada de Direito Civil, "houve autorização pelo falecido, para que T DA CRZ custodiasse o material genético após a sua morte, providência diversa da autorização para implantação dos embriões, após sua morte. Como custodiante, a ora recorrida poderá ceder o material para pesquisa, doação, descartar, ou deixar que o tempo o consuma, mas nunca implantá-lo em si, porque aí necessitaria de autorização prévia e expressa do titular do gameta que originou o embrião." Disponível aqui. Acesso em 13.Set.2021. 2 Sobre o tema, há dois posicionamentos distintos: Carolina Valença Ferraz afirma que embriões criopreservados são herdeiros necessários e sua capacidade de recebimento de sua quota-parte da herança não se confunde com sua capacidade civil (FERRAZ, Carolina Valença. Biodireito. São Paulo: Editora Verbatim, 2011) e Maria Carolina Nomura-Santiago, pontua que os embriões congelados só terão direitos sucessórios se assim for disposto em testamento como prole eventual e, após implantado, nascer com vida (NOMURA-SANTIAGO, Maria Carolina. Post mortem: a questão sucessória dos embriões criopreservados. São Paulo: Ed. Liberars, 2021). 3 O embrião é formado a partir da junção dos gametas masculino e feminino, gerando um novo DNA. Já a fertilização post mortem ocorre com a utilização do material genético de falecido. O Conselho Federal de Medicina não faz distinção sobre ambos, tratando tudo como "reprodução assistida post mortem".  4 Se a fertilização fosse heteróloga, ou seja, o material genético fosse de terceiro e não do falecido, haveria a necessidade de consentimento? Deve-se analisar o caso em concreto, porém, em termos objetivos, seria possível vislumbrar a implantação deste embrião, desde que não houvesse qualquer imputação à paternidade do cônjuge morto, visto que, biologicamente, ele já não era o genitor. 5 PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. pp.123-143. 6 A Resolução 2.294 de 2021 do CFM dispõe no item I.4. que "o consentimento livre e esclarecido será obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de RA. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido será elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância" e sobre a criopreservação, item V.3: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los." Portanto, na norma deontológica do CFM, ainda que tímida, existe essa diferenciação. 7 Frise-se que o contrato das partes com a clínica é um contrato de consumo. Entretanto, o contrato entre as partes, firmado a partir do contrato com a clínica, os enlaça em um contrato existencial, posto que em seu objeto está, necessariamente, um direito extrapatrimonial. Rafael Ferreira Bizelli destaca que nos contratos existenciais "ao menos em uma das partes de um contrato existencial, por conseguinte, o interesse envolvido estará diretamente relacionado com a dignidade e/ou à personalidade do contratante, visto que destinado à sua (sobre) vivência, de modo que são interesses, portanto, ditos extrapatrimoniais." Contratos Existenciais: Contextualização, Conceito e Interesses Extrapatrimoniais. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 - Out / Dez 2015. Disponível aqui. Acesso em 12.Set.2021. 8 Sobre o tema: DANELUZZI, M. H. M. B.; SANTIAGO, M. C. N. N. Responsabilidade civil pela desistência do projeto parental após a criopreservação de embriões: aplicação da teoria da perda de uma chance. Revista IBERC, v. 4, n. 1, p. 103-118, 12 abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em 10.Set.2021. 9 BONNA, Alexandre Pereira. Dano moral. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, X-XI (prefácio). 10 Tradução livre: "A fraude de inseminação não é apenas eticamente problemática, mas também também pode dar origem a processos criminais e ações judiciais civis. Isto não é fácil encontrar um ato análogo. Talvez o exemplo mais próximo ocorre quando os médicos têm relações sexuais com detentores do material genético". Uncommon Misconceptions: Holding Physicians Accountable for Insemination Fraud, 37(1) LAW & INEQ. (2019). Disponível aqui. Acesso em 14.Set.2021. 11 Objeção de consciência médica em reprodução humana assistida: entre o direito e a discriminação. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/337964/objecao-de-consciencia-medica-em-reproducao-humana-assistida--entre-o-direito-e-a-discriminacao; Primum non nocere: a responsabilidade do plano de saúde no congelamento de óvulos de pacientes com câncer, Disponível aqui. 12 PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. pp.123-143. 13 SILVA, Rafael Peteffi da; RAMMÊ, Adriana Santos. Wrongful conception, wrongful birth e wrongful life: possibilidade de recepção de novas modalidades de danos pelo ordenamento brasileiro. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 01, p. 121-143, dez. 2013. 14 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de Justiça, função social do Contrato e a Indenização do Dano Reflexo ou por Ricochete. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, [S.l.], v. 3, n. 5, p. 57-77, jul. 2012. ISSN 2358-601X. Disponível aqui. Acesso em: 14 set. 2021. 15 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de Justiça, função social do Contrato e a Indenização do Dano Reflexo ou por Ricochete. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, [S.l.], v. 3, n. 5, p. 57-77, jul. 2012. ISSN 2358-601X. Disponível aqui. Acesso em: 14 set. 2021. 16 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. 17 Art. 1.597, CC - Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I- nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a conviveria conjugal; II- nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 18 ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação e direito, 2009, p. 355-356. 19 BONNA, Alexandre Pereira. Dano moral. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 6.
Ao longo dos últimos anos, as autoridades brasileiras de defesa da concorrência tomaram medidas para recrudescer o combate às violações à concorrência, concentrando grande parte de seus esforços para inibir os cartéis, tidos como a mais grave das violações. Tais medidas adotadas para a persecução pública foram reforçadas pelo aumento do número de ações privadas de pedido de indenização concorrencial. Os esforços empreendidos pelo público e pelo privado se complementam e ambas as atuações são necessárias para garantir uma efetiva dissuasão dos agentes econômicos à prática de atos anticoncorrenciais. Esse recente florescimento das ações indenizatórias no campo concorrencial deu destaque aos temas que delas resultam em maior controvérsia no Judiciário. Dentre eles, a discussão sobre a prescrição é altamente relevante, do qual se destaca o debate sobre termo inicial de sua contagem. Conta-se o prazo do ato ou da sua ciência? Qual a dada da efetiva ciência pela vítima? São essas as perguntas que precisam ser respondidas e que o PL 11.275/2018 poderá ajudar1. O Código Civil determina, em seu artigo 189, que a contagem do prazo de prescrição se inicia com a violação do direito. Contudo, a fim de evitar a perda do direito por aqueles que sequer conhecem a sua existência, a doutrina desenvolveu interpretação no sentido de considerar que o prazo prescricional se inicia apenas da data do conhecimento do ato ou da lesão e seus efeitos pela vítima. José Fernando Simão esclarece que o dies a quo da prescrição para exercício de direito sobre fatos desconhecidos é a data em que se verifica o dano-prejuízo, seguindo o mesmo entendimento de Junqueira de Azevedo e Paulo Torminn Borges2. A jurisprudência segue o mesmo caminho3 e referenda essa solução, que mantém vivo o direito da vítima e evita que se tornem totalmente inócuas as normas de responsabilização civil. A prescrição serve para evitar a eternização de direitos, não para suprimi-los. A multiplicidade de momentos dos cartéis No que diz respeito aos cartéis, são dois os níveis de prática de atos ilícitos. O primeiro é o do ato que deu origem ao acordo ilícito em si. O segundo é o da implementação desse acordo, quando ocorre a mudança das condições de mercado (dano-evento) - que, de forma direta ou indireta afeta os preços dos produtos ou serviços ofertados pelos cartelistas - e, a partir disso, geram-se as consequências aos agentes de mercado afetados (dano-prejuízo)4. O início da operação do cartel marca o momento do início da produção dos danos e ele costuma ocorrer logo após a celebração do acordo entre os envolvidos. Embora haja discussão sobre o cartel ser crime permanente ou continuado, é consenso que ele se estende no tempo5. Portanto, a data do início da operação do cartel demarca o início dos danos, no caso, a ocorrência do dano-evento. Importante agora dividir duas possíveis origens às ações de indenização por dano concorrencial: cartéis descobertos diretamente pelas vítimas e cartéis investigados pelas autoridades de defesa da concorrência. No primeiro caso, têm-se uma ação judicial chamada de "stand alone", na qual a vítima terá que apresentar todas as provas do ato alegado, comprovar a existência do cartel por meio de provas coletadas mediante seus próprios esforços e, também, comprovar o dano sofrido. O segundo caso é o da ação judicial chamada de "follow on", em que a vítima apoia todo seu pedido nas provas e decisões produzidas pela autoridade que julgou e condenou o cartel6. Essa diferença é fundamental para tratar da prescrição porque para as ações stand alone há apenas um ponto no tempo a ser discutido, enquanto para as ações follow on existem vários. Quando uma vítima inicia uma ação judicial stand alone, ela deve apresentar todas as provas quanto aos elementos formadores da responsabilidade civil e, tratando-se de fato sobre o qual tomou conhecimento após sua ocorrência, deverá comprovar a data de sua ciência. Os réus poderão contestar essa alegada data de ciência, caso tenham provas que ela ocorreu em momento diferente. Com relação às ações follow on, como as vítimas se embasarão em investigação promovida pelas autoridades de defesa da concorrência, pois não tinham acesso a qualquer informação ou prova antes da investigação - do contrário, estar-se-ia diante de uma ação stand alone -, há discussão sobre os inúmeros marcos temporais que existem na própria investigação, desde a data de instauração do processo administrativo até o dia de sua extinção. Especialmente no contexto das ações follow on, a dificuldade é determinar quando se daria o conhecimento inequívoco de tais danos tendo em vista os inúmeros marcos temporais, sobretudo em ilícitos complexos como os casos de cartel.  Conhecimento inequívoco dos danos pela vítima Cartéis são ilícitos sigilosos e seus membros tentam esconder ao máximo sua existência para que a prática se alongue no tempo, uma vez que a descoberta precoce impossibilitaria a continuidade dos ganhos espúrios, seja pela mobilização das autoridades ou dos demais agentes do mercado, prejudicados pelo ilícito. Por sua natureza secreta, a obtenção de provas quanto à existência dos cartéis é tarefa extremamente difícil, se não hercúlea. Quando inexiste qualquer acordo (leniência ou termo de compromisso de cessação - TCC) por meio do qual algum participante do cartel o denuncie e entregue provas de sua existência às autoridades, as provas materiais só podem ser obtidas mediante busca e apreensão de documentos. Tal medida não é tarefa fácil e demanda grandes recursos, esforços e articulação institucional entre diversos órgãos investigativos7. Portanto, ao prejudicado cabe buscar tal ajuda do governo (mediante a propositura de ações stand alone) ou aguardar que os fatos sejam desvendados para que depois inicie sua ação de indenização (ações follow on). Surge daí a seguinte questão: como buscar provas de algo cuja existência se desconhece? Na medida em que os prejudicados somente saberão que estão sofrendo prejuízo quando o cartel for revelado, eles só poderão buscar provas sobre eventual ilícito após tal data. Qualquer ponto cronológico que antecede a decisão final do CADE sobre uma investigação de cartel poderá trazer elementos parciais sobre a possível existência do ato ilícito, mas a partir dos quais não é possível determinar se ocorreu o dano-evento e qual seria ele, quanto menos averiguar suas eventuais consequências (dano-prejuízo). Portanto, fica claro que o marco que determina o início da contagem do prazo prescricional é o da verificação do dano-prejuízo, que pode ser coincidente ou não com o dano-evento e com o ato ilícito. Contudo, os casos de concorrencial revelam que há ainda maior dificuldade quando se desconhece a existência do próprio ato ilícito, porque mesmo que a vítima sofra as consequências do dano, não poderá relacionar tais efeitos a qualquer ato, pois os desconhece ou ainda não foram revelados. É sob tal ótica que a doutrina tem analisado a contagem do prazo prescricional para as vítimas de cartéis. Como o dano-prejuízo somente pode ser verificado mediante perícia econômica e econométrica, que se baseia nos dados do dano-evento, impossível que se verifique qualquer prejuízo antes que se tenha acesso às informações mínimas da abrangência, autoria e período de prática do ato ilícito. Assim, havendo uma sentença penal ou uma decisão administrativa, passa-se a ter ciência da existência do ato ilícito e de sua autoria, além dos seus efeitos, necessários para determinar a extensão do dano-prejuízo. Mais que isso, torna-se possível ter acesso às provas da existência de tal ilícito, necessárias para comprovar a relação de responsabilidade civil. Esse momento ocorre na data da publicação da decisão final da autoridade, após eventuais embargos de declaração e outros recursos modificativos da decisão. Apesar de ser ainda possível questionar na Justiça a decisão final administrativa, parece ser um exagero aguardar por tal decisão, mesmo que possam alterar totalmente o julgamento. Para fins de ciência do ato ilícito e seus efeitos, basta a coisa julgada administrativa. Já no caso de condenação criminal, deve-se aguardar pela coisa julgada judicial, pois somente com a publicação da decisão final do Judiciário que haverá a confirmação do crime e de sua autoria. Assim, a conclusão não pode ser outra que: a ciência do ato ilícito de cartel ocorre na data da decisão final administrativa ou criminal, a que ocorrer primeiro. O PL 11.275/18 e a prescrição: alteração ou confirmação? Ainda existe confusão na interpretação legal, mas ao menos no Tribunal de Justiça de São Paulo, perante o qual tramita a grande maioria das discussões sobre o tema, inúmeras decisões já estão sendo discutidas em segundo grau e consolidou-se o entendimento ora defendido por este autor, de que a responsabilidade é aquiliana e o termo de início de sua contagem é a data da publicação da decisão final do CADE8. Tal entendimento segue também as normas e decisões internacionais9. Nesse sentido, o texto do PL 11.275/2018 traz como grande contribuição ao debate da prescrição a consolidação do entendimento jurisprudencial e doutrinário já dominante, visto que determina expressamente que a ciência inequívoca do ato ilícito ocorre quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE10-11. Portanto, mais que inovar, o Projeto de Lei confirmará a interpretação já adotada para a legislação vigente. Contudo, estará longe de resolver todas as discussões oriundas do tema, ao menos em um primeiro momento. Por exemplo: como ficaria a contagem do prazo prescricional para cartéis que foram julgados ou que tiveram início antes da entrada em vigor da nova lei? Resta claro que a jurisprudência continuará desempenhando papel fundamental para nos guiar por esse tema por alguns anos. *Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Doutor, Mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", publicado pela RT, atualmente em sua 2ª edição, além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior. __________ 1 O Projeto de Lei (PL) 11.275/2018 é originário do Projeto de Lei do Senado (PLS) 283/2016 e atualmente aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto traz outras determinações além daquelas sobre a prescrição, tal como a criação do double damage, a imposição da cláusula arbitral para quem celebrar acordo de leniência ou TCC e regra expressa sobre o ônus da prova sobre casos de repasse do dano. 2 SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 213-216. 3 Nesse sentido: REsp 1.354.348/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.08.2014; AgInt no REsp 1.478.280/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.08.2017; REsp 1.346.489/RS, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 11.06.2013; REsp 1.645.746/BA, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 06.06.2017. 4 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 195-203. 5 Parece muito mais coerente classificar o cartel como um crime permanente, visto que o acordo e seu objetivo são definidos desde o início, e durante a operação do cartel os membros fazem apenas ajustes da forma de sua operação, mas o ato ilícito permanece o mesmo e se estende no tempo. Ao contrário, sendo considerado um crime continuado, pressupor-se-ia que a cada venda realizada por cada um dos membros do cartel haveria uma nova decisão por sabotar o ambiente concorrencial. Por mais que os cartéis de fraude à licitação se assemelhem a essa descrição, vê-se que não há um novo acordo a cada certame, mas sim um acordo macro que busca os objetivos globais do cartel a cada processo licitatório. Tanto é verdade que existem os sistemas de compensação entre os membros do cartel para ajustar as diferenças de valores dos contratos ou participações de mercado entre uma licitação e outra em diferentes regiões do país ou do mundo. 6 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 198. 7 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 197. 8 São decisões nesse sentido: TJ/SP - Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP - AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP - AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP - Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020. 9 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia e nos EUA asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da cocorrência. 10 Além de prever expressamente que a data da decisão final do CADE é o ponto de início da contagem da prescrição, a nova lei uniformiza o prazo prescricional em 05 anos, eliminando a distinção atualmente existente entre Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, confirmando também se tratar de responsabilidade civil extracontratual. 11 PL 11.275/2018: "Art. 2º A Lei nº 12.529, de 30 de dezembro de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência), passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 46-A e 47-A: (...) Art. 46-A. (...) § 2º Considera-se ocorrida a ciência inequívoca do ilícito quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade."
quinta-feira, 9 de setembro de 2021

É possível falar em mitigação de danos morais?

No âmbito da responsabilidade civil, a mitigação é a norma que repercute a conduta do lesado - posterior ao evento lesivo - sobre a quantificação e compensação do dano. O mais fácil é concebê-la a partir de seu efeito: o prejuízo evitável não é ressarcível, o que encoraja o lesado a mitigar, ou seja, a se portar com razoabilidade após o evento lesivo para impedir o agravamento do dano.1 Apesar de divergências quanto ao fundamento (se boa-fé objetiva, se abuso de direito ou se decorrência da causalidade, por exemplo), natureza jurídica (se dever, se ônus, ou se incumbência, etc.) e origem (se importação de figura estrangeira ou se solução nacional), há consenso doutrinário quanto à incidência da referida norma nas relações jurídicas reparatórias envolvendo danos patrimoniais (lucros cessantes e danos emergentes). Questão menos discutida, todavia, é a possibilidade de mitigação do dano moral.  Neste pequeno ensaio, serão apresentadas duas provocações sobre o tema. A primeira diz respeito ao exercício tardio do direito de ação referente à compensação do dano moral. Aqui, cogita-se a possível incidência da mitigação sobre os juros moratórios acrescidos à indenização frente à demora no ajuizamento da demanda pela vítima. Como se sabe, lesionado interesse existencial merecedor de tutela, a pretensão à compensação moral deve ser exercida dentro dos limites temporais estabelecidos pela prescrição no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Com base nisso, o agir da parte que exerce a pretensão no limiar de referidos prazos (por ex., no último dia) supostamente majoraria a condenação devida pelo ofensor a título de danos morais, por força da incorporação dos juros de mora desde o evento lesivo, nos termos da Súmula 54/STJ.2 A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já se deparou com a situação ao apreciar o RESp n. 1.677.773/RJ. Na ocasião, consignou que o dilatado prazo prescricional instituído no CC-16 "resultava em situações extremas, nas quais o período decorrido entre o evento danoso e a propositura da ação indenizatória se revelava nitidamente exagerado ou desproporcional", mas, com a drástica redução dos prazos operada pelo CC-023, a justificativa não mais subsistiria. Isso levou ao desprovimento do RESp.4 De fato, a invocação da mitigação não é o caminho mais adequado para lidar com o ajuizamento tardio e os juros de mora. A prescrição tem por panos de fundo a estabilização social e a segurança jurídica. Admitir a mitigação como meio de, casuisticamente, limitar os juros nas pretensões exercidas dentro dos marcos temporais definidos no Código geraria, justamente, instabilidade e insegurança. Se for o caso, a discussão deve se centrar na revisão da Súmula/54 e no marco a quo da incidência dos juros, evitando-se a utilização da mitigação como sucedâneo em situações patológicas. A segunda provocação pressupõe a investigação da real possibilidade de mitigar o prejuízo moral propriamente dito. Parte da premissa do dano moral, assim como o patrimonial, também pode ser agravado a depender da conduta da vítima, o que demanda necessária diferenciação entre dano-evento e dano-prejuízo. Dano-evento seria a lesão ao interesse juridicamente relevante (de índole existencial, no caso). O dano-prejuízo, por sua vez, consistiria na consequência patrimonial ou moral de referida lesão. O fato de existirem dois "momentos" não significa que haja lapso entre eles: pode ser que o prejuízo se consume simultaneamente à lesão.5 Diante disso, quando o dano-prejuízo for simultâneo ao dano-evento­ ou se for consequência direta de sua materialização, não há espaço para a incidência da mitigação. Isso porque, nessas circunstâncias, não há possibilidade de agravamento passível de ser atribuído à vítima. Para ilustração, imagine-se a hipótese de envio de cartão de crédito sem autorização (Súmula 532/STJ): dessa prática abusiva, por si só, decorre o prejuízo moral, sem que haja possibilidade de mitigação pela vítima, pelo menos dentro daquilo que normalmente ocorre. Diferente é a situação na qual: i) do dano-evento não necessariamente decorre o dano-prejuízo; ii) há o agravamento do dano-prejuízo após o dano-evento; iii) há o agravamento da lesão existencial em si, com a reconfiguração da relação reparatória. Exemplo da primeira situação: não correntista comparece ao caixa de determinado Banco público para realizar o pagamento da inscrição em concurso público no último dia do vencimento do título. Imagine-se que o sistema de referida Instituição Financeira sai do ar e, consequentemente, não é possível realizar o pagamento in loco. Ainda assim, o pagamento poderia ser realizado até às 22h por via de aplicativo mobile ou internet banking. Nessas circunstâncias, a pretensa vítima poderia localizar amigo, familiar ou terceiro, correntista da Instituição Financeira, e solicitar que realizasse referido pagamento, eliminando o prejuízo moral oriundo da falha sistêmica. Percebe-se que, apesar do dano-evento, o dano-prejuízo de índole moral pela perda da chance de realizar o concurso não necessariamente se materializaria, embora, é verdade, pudesse se configurar outra hipótese de dano-prejuízo, menos grave, pelo tempo despedido pelo consumidor. Exemplo da segunda situação: matéria baseada em fatos inverídicos é divulgada em veículo de comunicação social, abalando a honra subjetiva da vítima. No primeiro dia, há apenas 200 visualizações. Tomando a vítima ciência do fato, cabe a ela exigir o direito de resposta previsto na lei 13.188/2015? Ou enviar notificação extrajudicial exigindo a remoção ou retificação do conteúdo inverídico? Isso tendo em mente que tais medidas podem minorar o alcance de referida notícia. Aqui se está diante de hipótese em que ocorre o agravamento do dano-prejuízo posteriormente ao dano-evento pelos efeitos continuados da lesão existencial, sendo que a vítima poderia, pelo menos, tentar minorar-lhe as consequências, mesmo que não se possa apagar a lesão originária.6 Exemplo da terceira situação: a vítima é alvo de atropelamento e sofre apenas ferimento na perna, mas deixa de tratar a ferida. Sucede então grave infecção, a demandar a amputação do membro lesionado. Com efeito, a vítima poderia ter tratado a ferida sem se submeter à intervenção cirúrgica, sendo também certo que o ­dano-prejuízo de índole moral pelas escoriações decorrentes do atropelamento difere substancialmente do dano-prejuízo em caso de amputação de membro. A segunda situação é muito mais gravosa, exigindo condenação maior. Houve, pela conduta omissiva da vítima, a ampliação da lesão inicial, com a consequente alteração do quadro reparatório originário, ao qual estaria adstrita a responsabilidade do ofensor. Nesses três cenários, pelo menos intuitivamente, a mitigação poderá incidir acaso a vítima venha pleitear indenização por dano moral: i) pela perda da chance de participar do concurso; ii) pela divulgação da notícia inverídica durante certo lapso de tempo; e iii) pela amputação do membro. Sua efetiva incidência, todavia, será decidida apenas no caso concreto, em que será preciso considerar as reais possibilidades de mitigar o prejuízo. Longe de esgotar a temática, percebe-se que sim, é possível falar em mitigação de danos morais, mas ainda é necessário desenvolvimento teórico mais verticalizado. *João Pedro K. F. de Natividade é advogado e mestre em direito das relações sociais pela UFPR. __________ 1 Por todos: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Responsabilidade Civil & Mitigação de Prejuízos: a resposta do lesado ao evento lesivo e seus efeitos sobre a reparação de danos patrimoniais.  Curitiba: Juruá, 2020; DIAS, Daniel. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. 2 A propósito: "(...) o lesado que, convenientemente, posterga a dedução de sua pretensão em juízo, com vistas à majoração do benefício econômico que da condenação lhe pode advir, finda por se esquivar dos deveres de boa-fé impostos a todos e a qualquer um." ARNT RAMOS, André Luiz. Doctrine of mitigation, culpa concorrente e responsabilidade civil por dano moral: a súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça e o direito civil contemporâneo. In: PEREIRA, Gabriel Bittencourt; SILVEIRA, Robson Luiz Schiestl; BRUNETTO, Caroline Araujo (Coords.). Temas atuais e relevantes da responsabilidade civil.  Curitiba: Instituto Memória, 2015 v.2. p. 31. 3 Por exemplo, o art. 206 §3º inc. V prevê prazo prescricional de três anos para o exercício da pretensão de reparação civil, em contraste ao limite vintenário previsto no CC-16. 4 Clique aqui. 5 FLUMIGNAN, Silvano José. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 6 Em seu art. 2º, §3º, a lei inclusive 13.188/2015 ressalva que a retratação ou retificação espontânea, ainda que com o mesmo destaque, publicidade e periodicidade da publicação original, não exclui a ação de reparação por dano moral. Mas certamente a dimensão dano-prejuízo - sua quantificação - será minorada.
Após uma série de audiências públicas no Congresso, foi divulgado no último dia 01 de setembro de 2021 o substitutivo ao PL 21 de 2020, que estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e aplicação da inteligência artificial no Brasil, e dá outras providências. E, se por um lado, em linhas gerais o substitutivo inova positivamente ao buscar mais rigor técnico nas definições da IA, por outro lado, em matéria de responsabilidade civil, coloca em risco a garantia da reparação integral a partir de uma norma flagrantemente equivocada, atécnica e que beira a inconstitucionalidade. Trata-se do inciso VI do artigo 6º, que apresenta a seguinte redação: Art. 6º Ao disciplinar a aplicação de inteligência artificial, o poder público deve observar as seguintes diretrizes: VI - responsabilidade: normas sobre responsabilidade dos agentes que atuam na cadeia de desenvolvimento e operação de sistemas de inteligência artificial devem, salvo disposição em contrário, se pautar na responsabilidade subjetiva, levar em consideração a efetiva participação desses agentes, os danos específicos que se deseja evitar ou remediar, e como esses agentes podem demonstrar adequação às normas aplicáveis por meio de esforços razoáveis compatíveis com padrões internacionais e melhores práticas de mercado. A norma se propõe a ser uma "diretriz" para a futura disciplina do poder público em relação à Inteligência Artificial. E ela não poderia ser mais infeliz, colocando o Brasil no caminho do retrocesso e do abismo em relação a tudo quanto se tem observado da experiência estrangeira, em especial da Europa e das suas mais recentes propostas de regulação da IA. Como se verá, o erro crasso e irremediável da norma proposta está na priorização abstrata do regime de responsabilidade civil de natureza subjetiva para os danos causados por agentes que atuam na cadeia de desenvolvimento e operação de sistemas de Inteligência Artificial. Os parâmetros para avaliar o elemento subjetivo, isto é, a culpa de tais agentes, seriam, segundo a norma, (i) a efetiva participação desses agentes; (ii) os danos específicos que se deseja evitar ou remediar; e (iii) como esses agentes podem demonstrar adequação às normas aplicáveis por meio de esforços razoáveis compatíveis com padrões internacionais e melhores práticas de mercado. Um primeiro questionamento salta aos olhos: quem são tais agentes? Como definir um sistema de imputação de responsabilidade sem definir quem são os sujeitos a quem tal dever de indenizar pode ser atribuído? Especialmente em matéria de Inteligência Artificial, trata-se de uma questão que não pode ser superada de maneira simples, já que para o funcionamento dessa tecnologia, normalmente é preciso contar com uma extensa e complexa cadeia de colaboradores: dos desenvolvedores, passando pelos programadores, pelos operadores e até mesmo por usuários. Quem é o destinatário da norma? Qual o conceito de desenvolvimento e operação? A título comparativo, é essencial atentar para a resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de Responsabilidade Civil aplicável à Inteligência Artificial (2020/2014(INL)). Em seu artigo 3º, define-se na alínea "e" como operador final ou de frontend, "qualquer pessoa singular ou coletiva que exerça um grau de controlo sobre um risco relacionado com a operação e o funcionamento do sistema de IA e que beneficie da sua operação." Por seu turno, a alínea "f" traz como operador incial ou de backend "qualquer pessoa singular ou coletiva que, de forma contínua, defina as características da tecnologia, forneça dados e preste serviços essenciais de apoio de backend e, por conseguinte, exerça igualmente algum controlo sobre o risco ligado à operação e ao funcionamento do sistema de IA."1 Como se pode perceber, a definição de operador perpassa dois elementos básicos: benefício e controle. A respeito deste último, a proposta de regulamento ainda traz a noção de controle na alínea "g": qualquer ação de um operador que influencie a operação de um sistema de IA e, por conseguinte, a medida em que o operador expõe terceiros aos riscos potenciais associados à operação e ao funcionamento do sistema de IA; essas ações podem ter impacto na operação, determinando os dados introduzidos, os dados de saída ou os resultados, ou modificar funções ou processos específicos no sistema de IA; o grau em que esses aspetos da operação do sistema de IA são determinados pela ação depende do nível de influência que o operador tem sobre o risco ligado à operação e ao funcionamento do sistema de IA.2 A norma proposta pelo Substitutivo é silente, tanto em relação aos operadores, quanto ao que seria efetivamente o controle. Apresenta, portanto, uma primeira inconsistência: a ignorância quanto a complexidade dos sistemas de Inteligência Artificial. A esse respeito, merece destaque o entendimento da professora espanhola Teresa Rodríguez De Las Heras Ballell, que alude didaticamente a cinco características distintivas da IA em relação a outras tecnologias, que explicariam a razão de tamanho impacto disruptivo nos regimes de Responsabilidade Civil. São elas: autonomia crescente, dependência de dados, complexidade, vulnerabilidade e opacidade. Os carros autônomos são um bom exemplo para ilustrar cada um desses traços peculiares que apartam a IA, por exemplo, de atividades igualmente perigosas, como as que envolvem energia nucelar.3 A autonomia crescente tem conexão direta com a imprevisibilidade das condutas dos sistemas de IA: capazes de se autoprogramar, eles podem surpreender até mesmo os seus programadores. Diante disso, um veículo autônomo poderia fazer manobras não esperadas e, com isto, causar danos.4 A dependência de dados, por outro lado, relaciona-se com o próprio treinamento da Inteligência Artificial nas técnicas de aprendizado de máquina. E um ponto crucial em relação aos veículos autônomos é que eventualmente pode ser necessário que haja uma atualização do software, além do fato de que a qualidade dos dados que servem de combustível para a máquina pode ser determinante para o seu bom ou mau funcionamento.5 A complexidade também é nítida: não apenas no design dos algoritmos, como também na sua operação, haja vista que diversos atores podem contribuir para o seu desempenho, que inclui, ainda, múltiplos componentes. Na hipótese dos veículos autônomos, basta imaginar que fabricante, usuário e possivelmente mecânicos especializados podem interferir na programação. As atualizações constantes no software também contribuem para que o veículo que sai de fábrica talvez seja um produto completamente distinto daquele que circula no mês seguinte. É como se os veículos autônomos, segundo Teresa Ballel, fossem organismos vivos, em constante evolução. Os impactos disso para a Responsabilidade Civil são significativos, sobretudo para fins de nexo de causalidade, já que eventual atualização no software pode acabar praticamente desnaturando o produto inicialmente posto em circulação. Quanto aos múltiplos componentes, a visualização é simples: é só pensar nos diversos mecanismos que fazem um carro autônomo funcionar.6 A professora da Universidade Carlos III de Madrid ainda alude à vulnerabilidade, que, nos carros autônomos é evidente: imagine-se, por exemplo, que um hacker invada o sistema autônomo de condução veicular e altere as configurações de reconhecimento por câmera, de modo que o carro passe a interpretar que um poste é uma pessoa. E, no contexto das smart cities, o que fazer se, por exemplo, o software que controla os sinais de trânsito for alvo de ciberataques criminosos? Os riscos são incalculáveis e de difícil dimensionamento.7 Finalmente, a opacidade dialoga a chamada "caixa-preta" dos algoritmos, que gera baixa transparência e explicabilidade limitada.8 Dito diversamente, a dificuldade em se auditar os caminhos tecnológicos percorridos por um sistema de Inteligência Artificial revela-se, por consequência, altamente tormentosa para a correta atribuição da Responsabilidade Civil. Por tudo isso, já desde a primeira edição do livro "Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade",9 lançado pela editora Juspodivm em 2020 e que foi fruto de dissertação de Mestrado apresentada junto à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2019, tem-se defendido que não há um só regime de responsabilidade civil aplicável aos danos causados por Inteligência Artificial, sendo, por isso, absolutamente incorreto priorizar abstratamente qualquer regime. Em verdade, o maior erro que se pode cometer é procurar fornecer resposta única para a tormentosa indagação: "quem responde pelos danos causados pela Inteligência Artificial?" Isso porque, como em boa hora se tem afirmado na Europa, não pode haver um único regime, pois não há uma só IA. Necessário se faz, portanto, considerar, por exemplo, a tipologia e a autonomia em concreto da IA envolvida no dano. Uma mesma tipologia, como é o caso dos carros autônomos, pode ter diversos graus de autonomia em relação ao condutor humano. Significa dizer que eventualmente pode haver diferentes regimes aplicáveis dentro de uma única tipologia, que ainda depende de outras peculiaridade que podem surgir da dinâmica do acidente: havia obrigação da presença de condutor humano responsivo na retaguarda? O sistema de direção autônomo foi acionado fora de circunstâncias permitidas pelo fabricante? O usuário realizou todas as atualizações de segurança no software? Além disso, há que se considerar que diversos também são os sujeitos envolvidos. Como também se tem afirmado na Europa e já se afirmava na referida obra publicada em 2020, há que se atentar para a legislação aplicável a cada pessoa natural ou jurídica que se relaciona ao dano. Está-se diante de relação de consumo? Atrai-se o Código de Defesa do Consumidor e seu regime de responsabilidade de natureza objetiva aos fornecedores pelo fato do produto. Está-se diante de relação empresarial, como é o caso da danos decorrentes da atuação de administradores que delegam decisões para mecanismos automatizados no seio de companhias? Aplica-se regime de natureza subjetiva, baseado no dever de diligência, como se tem defendido em doutrina especializada.10 O que não se pode fazer, sob nenhuma hipótese, é hierarquizar abstratamente um só regime de responsabilidade civil, sob pena de não se atentar para o risco em concreto gerado pela Inteligência Artificial causadora do dano, sem mencionar, ainda, a importância de se considerar o sujeito envolvido, já que como afirma Jack Balkin: "[n]ossas interações com robôs e sistemas de IA são interações com as pessoas que estão implementando essas novas tecnologias, mesmo quando nós não o percebemos".11 E é justamente esse status primacial da responsabilidade subjetiva o que o Substitutivo ao PL 21 de 2020 pretende inaugurar no Brasil. Ainda que o inciso VI do artigo 6º seja uma norma que apenas lança diretrizes para orientar o poder público, o seu mero efeito simbólico já representa um retrocesso inquestionável para a imprescindível garantia da reparação integral das vítimas, que constitui, na atualidade, o epicentro de todo o sistema de responsabilidade civil. Limitar abstratamente tal reparação sem se atentar para as peculiaridades da tecnologia que se busca regular chega a beirar a inconstitucionalidade. Importante mencionar, outrossim, que é inexplicável a urgência que tem se observado para aprovar um marco normativo tão abrangente para a regulação da Inteligência Artificial no Brasil quando, em verdade, a própria Estratégia Brasileira de IA vem sendo objeto de incontáveis ataques e objeções dada a sua timidez e incompletude. Mesmo a União Europeia, que se propõe desde o final da última década a ser um marco referencial para a regulação da IA no mundo, não conta ainda com uma normativa aprovada, especialmente em termos de Responsabilidade Civil. Em meio a incontáveis debates e grupos de especialistas, entre avanços e retrocessos desde a famosa Resolução que trazia recomendações à Comissão de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103(INL))12 publicada em 2017, ainda não se chegou a nenhuma conclusão definitiva. A Resolução mais recente do Parlamento Europeu, que data de 20 de outubro de 2020 e que contém recomendações à Comissão sobre o regime de Responsabilidade Civil aplicável à Inteligência Artificial (2020/2014(INL)) trouxe, de plano, três importantes conclusões para o estudo do tema: (i) a desnecessidade de se realizar uma revisão completa das normas de responsabilidade civil existentes; (ii) o reconhecimento da importância de se analisar a tipologia da Inteligência Artificial para a definição do regime de responsabilidade civil aplicável, tendo em vista que IAs distintas implicam riscos distintos; e, por fim, (iii) a rejeição, pelo menos no presente momento, da criação de uma personalidade jurídica própria aos sistemas comandados por Inteligência Artificial. Além disso, o documento acabou por sugerir a adoção no âmbito da União Europeia de um sistema tripartite, estabelecendo três regimes distintos, a saber: (i) regime de produtos defeituosos segundo a Diretiva 85/374/CEE; (ii) regime dual, estabelecido pelo documento, para os operadores de backend e frontend, a depender da tipologia da IA, isto é, se de alto ou baixo risco; e, subsidiariamente, (iii) regime de natureza subjetiva, com base nos ordenamentos nacionais, para terceiros/usuários.13 A responsabilidade contratual estaria inalterada. É inquestionável, portanto, a falta de tecnicidade de uma norma que proponha abstratamente a adoção de qualquer regime de responsabilidade civil. Diante do exposto, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a injustificável urgência na tramitação de semelhante proposta de regulação da Inteligência Artificial no Brasil pode trazer danos colaterais com repercussão imensurável, ainda que simbólica, a exemplo do que faz o Substitutivo ao PL 21 em relação à Responsabilidade Civil pelos danos causados pela Inteligência Artificial. Em suma, a grande verdade é que se for para ter uma norma ruim, melhor não ter norma alguma. *Filipe Medon é doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na UFRJ e de cursos de pós-graduação do Instituto New Law, PUC-Rio, CEPED-UERJ, EMERJ, ESA-OAB, CERS, FMP e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Pesquisador em Gustavo Tepedino Advogados. Advogado. Instagram: @filipe.medon. __________ *O presente artigo contém trechos extraídos das seguintes obras da autoria do autor: MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020; MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2021, 2. ed. (no prelo); MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: diálogos entre Europa e Brasil. In: PINHO, Anna Carolina (coord.). Discussões sobre Direito na Era Digital. Rio de Janeiro: GZ, 2021. 1 Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial (2020/2014(INL)). Disponível aqui. Acesso em 02 mar. 2021. 2 Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial (2020/2014(INL)). Disponível aqui. Acesso em 02 mar. 2021. 3 BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador. 4 BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador. 5 BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador. 6 "Las tecnologías emergentes, especialmente integradas en ecosistemas tecnológicos sofisticados, muestran un nivel considerable de complejidad. Tal complejidad se manifiesta en tres capas: complejidad de la lógica interna, pluralidad de participantes y fuentes que contribuyen al funcionamiento del sistema, y ecosistema de objetos conectados (sensores, actuadores, redes, softwares, oráculos, recolectores de datos y plataformas). Los algoritmos que conducen sistemas autónomos sofisticados tienen un alto nivel de complejidad em el diseño y en su operativa. Esto agrava la opacidad sobre el procesamiento interno del sistema autónomo, oculta los criterios relevantes que han guiado la decisión, y reduce la comprensibilidad de los resultados. La complejidad también se manifiesta externamente, en el diseño, la operativa y el funcionamiento del sistema en su conjunto. En estos ecosistemas, participan una pluralidad de actores: desarrolladores de software y de aplicaciones, diseñadores de algoritmos, proveedores de datos, fabricantes de sensores, operadores de sistemas, productores de cada dispositivo, parte o componente, proveedores de DLT y proveedores de servicios de monitorización. Además, también incrementa la complejidad la multiplicidad de partes, componentes, dispositivos y sistemas que integran un ecosistema tecnológico (un automóvil autónomo, un sofisticado robot quirúrgico, un sistema de domótica)." (BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador). 7 BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador. 8 BALLELL, Teresa Rodríguez De Las Heras. Teresa La inteligencia artificial en clave jurídica. Propuesta de conceptualización y esbozo de los retos regulatorios. Una mirada europea. In: Revista de Ciencia de la Legislación, n. 8, outubro de 2020, Buenos Aires Universidad del Salvador. 9 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 410. 10 Por mais, veja-se: FRAZÃO, Ana. Responsabilidade Civil de administradores de sociedades empresárias por decisões tomadas com base em sistemas de Inteligência Artificial. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin (coords.). Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. 11 No original: "Our interactions with robots and AI systems are interactions with the people who are deploying these new technologies, even when we do not realize it." (BALKIN, Jack. The path of robotics law. California Law Review Circuit, Berkeley, v. 06, p. 45-60, jun. 2015, p. 59). Na mesma direção: DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; SOUZA, Carlos Affonso; ANDRADE, Norberto Nuno Gomes de. Considerações iniciais sobre inteligência artificial, ética e autonomia pessoal. Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p. 1-17, out./dez. 2018. p. 8. 12 Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações à Comissão sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103(INL)). Disponível aqui. Acesso em 23 set. 2019. 13 BALLEL, Teresa Rodríguez de las Heras. SKEMA Global Webclass - Novas perspectivas da Responsabilidade Civil aplicadas à IA. Youtube, 10 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em 09 mar. 2021.
A lei complementar 182, de 1º de junho de 2021, que "institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador", trouxe à tona temas de grande relevância para o ecossistema de investimentos e de alavancagem empresarial no Brasil, pois, "diante de um novo empreendimento econômico, uma questão que sempre se coloca diz respeito às fontes de recursos necessárias para que a atividade da empresa nascente seja colocada em marcha".1 Referida lei, dentre outros temas, tratou dessa questão. E, de fato, embora reformas importantes já tivessem sido realizadas anteriormente, a exemplo da criação da figura do investidor-anjo pela lei complementar 155, de 27/10/2016, que inseriu o artigo 61-A e seus respectivos parágrafos na lei complementar 123, de 14/12/2006, somente agora o legislador delineou um rol de instrumentos para a formalização de aportes de capital a empresas enquadradas como startups. Antes de mencioná-los, convém lembrar que o próprio conceito de startup - que remete aos emblemáticos textos de Eric Ries2 -, agora, está definido no texto da lei. São consideradas startups "as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados" (art. 4º, caput), desde que observados os critérios de elegibilidade (natureza jurídica, faturamento, tempo de constituição etc.) e de prazo dos §§1º e 2º do art. 4º da LC 182/2021.3 Dois meses antes, curiosamente, o legislador havia delineado um conceito um pouco diverso - mas não incompatível -, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133, de 1º de abril de 2021), ao tratar do Procedimento de Manifestação de Interesse. Referida norma, em seu artigo 81, §4º, prevê que "o procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração." Não há dúvidas do escopo mais restritivo da descrição contida na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que se limita a mencionar microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte, ao passo que o conceito trazido pelo Marco Legal das Startups considera, além dessas figuras, o empresário individual (não necessariamente enquadrado como MEI, para os fins da lei complementar 128, de 19/12/2008), a empresa individual de responsabilidade limitada (sobre a qual se deve ter em vista a recentíssima previsão do art. 41 da lei 14.195, de 26/08/20214), as sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples. O rol, portanto, é amplo. Voltando aos investimentos, prevê o art. 5º, §1º, do Marco Legal das Startups os seguintes instrumentos: (i) contrato de opção de subscrição de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e a empresa (inc. I); (ii) contrato de opção de compra de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e os acionistas ou sócios da empresa (inc. II); debênture conversível emitida pela empresa nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (inc. III); contrato de mútuo conversível em participação societária celebrado entre o investidor e a empresa (inc. IV); estruturação de sociedade em conta de participação celebrada entre o investidor e a empresa (inc. V); o já citado contrato de investimento-anjo do art. 61-A da lei complementar 123/2006 (inc. VI); outros instrumentos5 de aporte de capital em que o investidor, pessoa física ou jurídica, não integre formalmente o quadro de sócios da startup e/ou não tenha subscrito qualquer participação representativa do capital social da empresa (inc. VII).6 Para o fomento às startups, já era usual, em anos recentes, a utilização da maioria dos instrumentos acima listados. A grande dúvida, como ressalta Éderson Garin Porto, sempre envolveu a avaliação de uma startup e do consequente risco de nela investir, além, é claro, da dificuldade de seleção do melhor instrumento para isso.7 De fato, os chamados pitchs - eventos realizados para a apresentação de ideias ou negócios inovadores8 - se tornaram frequentes no Brasil. Rodadas de investimentos também já eram uma realidade antes do advento da lei e, sem dúvidas, a pujança da inovação no país, especialmente no contexto do empreendedorismo de base tecnológica, já havia se tornado verdadeira força-motriz de um novo modo de empreender. Como consequência, a formalização de pactos estruturados das mais diversas maneiras - nem sempre adequadas -, com o objetivo precípuo de permitir investimentos, demandava resposta legislativa. O resguardo dos investidores, como se sabe, nunca foi absoluto. Riscos são inerentes a qualquer negócio, em especial aos que ainda estão em estágios muito iniciais, pouco maduros, ou que dependam de ideias inovadoras, mas carentes de testagem. Por isso, conflitos de interesse entre investidores e empreendedores sempre assombraram o ecossistema de inovação brasileiro. Além disso, soluções adaptadas, como mútuos feneratícios pouco claros e mal estruturados, ou até mesmo a constituição de sociedades em comandita simples, serviam como expedientes alternativos para tentativas vãs de "blindagem" contra o insucesso. Porém, outras formas de investimento, como mútuos conversíveis e stock options, propiciavam resultados mais satisfatórios e melhor segurança jurídica. Naturalmente, eventual falência e suas nefastas consequências sempre foram e continuarão sendo abominadas por investidores que desejam investir, lucrar e fomentar a inovação disruptiva. Para criar um ambiente de maior segurança e incentivo, a própria figura do investidor-anjo já havia sido salvaguardada por previsão legal expressa de não responsabilização e não contemplação pela desconsideração da personalidade jurídica, como se lê na própria legislação: "o investidor-anjo (...) não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil" (art. 61-A, §4º, II, LC 155/2016). O mesmo se fez, agora, quanto aos demais instrumentos definidos no Marco Legal, cujo artigo 8º prevê, em seu inciso I, que o investidor "não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual"; além disso, também prevê, em seu inciso II, que "não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e a ele não se estenderá o disposto no art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), no art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, nos arts. 124, 134 e 135 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e em outras disposições atinentes à desconsideração da personalidade jurídica existentes na legislação vigente". Tais previsões estão plenamente alinhadas ao que já se esperava da nova lei e ao que já existia para a figura do investidor-anjo, e revelam o incremento da segurança jurídica para o investidor que deseje se valer de algum dos instrumentos listados no artigo 5º da lei. Não o responsabilizar, por não ter ele qualquer ingerência sobre a administração empresarial, é medida coerente e lógica; da mesma forma, impedir que se lhe atinja eventual desconsideração da personalidade jurídica da startup na qual investiu é medida que produz equilíbrio no ecossistema brasileiro de inovação. Como alerta Leonardo Parentoni, "não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, qualquer que seja a modalidade, quando não se está diante de ao menos dois centros autônomos de imputação, cada qual dotado de patrimônio próprio, ao qual se limita a responsabilidade de seus membros, pois a função desta teoria é justamente responsabilizar um deles por dívida formalmente contraída pelo outro".9 Porém, há uma regra excepcional. Pelo que consta do parágrafo único do artigo 8º, "as disposições do inciso II do caput (...) não se aplicam às hipóteses de dolo, de fraude ou de simulação com o envolvimento do investidor." Tais situações conduzirão à responsabilização do investidor e, naturalmente, dependerão de provas robustas do elemento subjetivo descrito na norma para que as garantias definidas sejam afastadas. Nota-se, nessa exceção, a preocupação do legislador com a garantia da higidez das relações jurídicas e da responsabilidade contratual nos instrumentos de investimento e fomento à inovação e ao empreendedorismo. Um rol claro de instrumentos, com garantias explícitas que equilibram o referido ecossistema e geram incentivos, certamente produzirá bons efeitos, pois a lei não estabelece um "salvo-conduto" ao investidor. Ao contrário, o que se espera - inclusive em desejável atuação cooperativa e direcionada à consecução das finalidades contratuais - é que haja constante fiscalização do bom desempenho da startup, com vistas à constituição de ambientes favoráveis ao seu florescimento e à sua alavancagem no mercado. Para tanto, a valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual atuam como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras, que conectam investidores e empreendedores nesse irrefreável ecossistema. A nova lei, apesar de omissa quanto a alguns temas que poderia ter abordado melhor, tem muitos méritos, pois traz clareza a assuntos que já haviam se tornado comuns na práxis contratual e não perde de vista a complexidade da matéria, uma vez que não cria contextos de absoluta irresponsabilidade para investidores.  *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é doutorando em Direito pela USP e pela UFMG. Mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e professor. __________ 1 OIOLI, Erik Frederico; RIBEIRO JR., José Alves; LISBOA, Henrique. Financiamento da startup. In: OIOLI, Erik Frederico. Manual de direito para startups. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 99. 2 RIES, Eric. The lean startup: how today's entrepreneurs use continuous innovation to create radically successful businesses. Nova Iorque: Crown, 2011, p. 24. Em seu clássico conceito, uma startup pode ser definida como "(...) an organization dedicated to creating something new under conditions of extreme uncertainty." 3 "Art. 4º São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados. § 1º Para fins de aplicação desta Lei Complementar, são elegíveis para o enquadramento na modalidade de tratamento especial destinada ao fomento de startup o empresário individual, a empresa individual de responsabilidade limitada, as sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples: I - com receita bruta de até R$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de reais) no ano-calendário anterior ou de R$ 1.333.334,00 (um milhão, trezentos e trinta e três mil trezentos e trinta e quatro reais) multiplicado pelo número de meses de atividade no ano-calendário anterior, quando inferior a 12 (doze) meses, independentemente da forma societária adotada; II - com até 10 (dez) anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia; e III - que atendam a um dos seguintes requisitos, no mínimo: a) declaração em seu ato constitutivo ou alterador e utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços, nos termos do inciso IV do caput do art. 2º da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004; ou b) enquadramento no regime especial Inova Simples, nos termos do art. 65-A da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. § 2º Para fins de contagem do prazo estabelecido no inciso II do § 1º deste artigo, deverá ser observado o seguinte: I - para as empresas decorrentes de incorporação, será considerado o tempo de inscrição da empresa incorporadora; II - para as empresas decorrentes de fusão, será considerado o maior tempo de inscrição entre as empresas fundidas; e III - para as empresas decorrentes de cisão, será considerado o tempo de inscrição da empresa cindida, na hipótese de criação de nova sociedade, ou da empresa que a absorver, na hipótese de transferência de patrimônio para a empresa existente." 4 "Art. 41. As empresas individuais de responsabilidade limitada existentes na data da entrada em vigor desta Lei serão transformadas em sociedades limitadas unipessoais independentemente de qualquer alteração em seu ato constitutivo. Parágrafo único. Ato do Drei disciplinará a transformação referida neste artigo." 5 Nesse conceito aberto, pode-se enquadrar o vesting empresarial, omitido na lei, embora houvesse grande expectativa de que alguns delineamentos conceituais sobre sua aplicabilidade fossem nela inseridos. Acerca do tema e de suas peculiaridades, cf. FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Vesting empresarial: aspectos jurídicos relevantes à luz da teoria dos contratos relacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 6 Para uma averiguação mais detalhada de cada um desses instrumentos, cf. MICHILES, Saulo. Marco Legal das Startups. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 31-84. 7 PORTO, Éderson Garin. Manual jurídico da startup. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 65-69. 8 CREMADES, Alejandro. The art of startup fundraising: pitching investors, negotiating the deal, and everything else. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2016, p. 26. 9 PARENTONI, Leonardo Netto. Desconsideração contemporânea da personalidade jurídica: dogmática e análise científica da jurisprudência brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 195.
A lei 14.181/2021 entrou em vigor com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Esse fenômeno socioeconômico - definido por Claudia Lima Marques como a "impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo, excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos"1 - está diretamente ligado à oferta irrestrita de crédito. A nova lei trouxe um série de deveres que devem ser cumpridos pelas instituições financeiras que oferecem crédito, voltados principalmente à informação. Embora viva na chamada "sociedade da informação", o homem nunca se viu tão desinformado. O acesso à informação é muito fácil. Entretanto, o acesso a uma informação de qualidade, esclarecedora, confiável e qualificada como adequada, jamais foi tão difícil. Especialmente, a informação decisiva para a celebração e a execução adequadas do contrato. A exigência de lealdade e transparência na contratação impõe, portanto, uma forma de controle da adequação da informação. O exercício não abusivo da liberdade de contratar demanda, dessa forma, um procedimento de consentimento informado, tanto substancial como instrumental, baseado na conjugação da vedação ao abuso do direito, com a incidência do princípio da boa-fé, no que tange à informação adequada. A informação é direito fundamental.2 Um dos objetivos da Política Nacional de Relações de Consumo é a "educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo". O art. 54-B da lei 8.078/90 traz informações que devem, junto às do art. 52, ser apresentadas de forma prévia e adequada no momento da oferta ao consumidor no fornecimento de crédito. O direito fundamental à informação corresponde a um dever de informar. Sob a ótica da boa-fé objetiva, o dever de informar é indicado como dever anexo ou lateral do contrato, pois é inviável o estabelecimento de confiança sem a adequada informação. O fornecimento da informação, na formação do contrato, é requisito para a lealdade na relação, pois viabiliza a formação da vontade, na medida em que oferece os elementos básicos para a decisão racional de contratar ou não contratar. Não basta, contudo, apresentar as informações em formulários ou folhetos sem que estejam em linguagem acessível e sem que exista uma conversa simples e honesta por parte do fornecedor de crédito com o futuro tomador. Como diz o adágio: o excesso de informação mata a própria informação. Daí a necessidade de que a informação seja adequada. E se a instituição financeira não presta a informação de forma adequada? O efeito do abuso da liberdade de contratar ou a violação de dever anexo por informação inadequada na concessão de crédito pode ensejar uma variedade de efeitos previstos na lei 14.181/2021, entre os quais se costuma destacar a responsabilidade civil. Em caso de descumprimento, há a previsão de várias sanções, dentre elas, a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor. A informação inadequada para a celebração do contrato atingiria, tradicionalmente sua validade. A invalidade do contrato de concessão de crédito por informação inadequada, como um todo, contudo, não parece ser a melhor saída para todos os casos. A depender dos meandros da questão sob exame, deve ser utilizado o brocardo "utile per inutile non vitiatur", previsto no art. 184 do Código Civil3 e consubstanciado no instituto da redução e no princípio da conservação dos negócios jurídicos para, se possível, invalidar somente a cláusula ou as cláusulas que deram origem ao vício. Por exemplo: se o ato abusivo se deu pela violação do dever de informar no que concerne aos juros moratórios, a cláusula referente a esses juros merece ser invalidada, mantendo-se tão somente a cobrança dos juros legais. Se a violação do dever de informar ocorreu em relação ao instrumento contratual ser, também, um título de crédito, como ocorre nos casos de concessão de crédito e cédula de crédito bancário, tal documento perderia a eficácia cambiária, eis que ausente a informação para que ocorra a confiança. Operada a declaração de invalidade da cláusula, abre-se ao tomador do crédito a pretensão restitutória relativa à devolução dos valores pagos àquele título, que se funda, como definido em jurisprudência, na vedação geral ao enriquecimento sem causa.4 A despeito das críticas, consolidou-se ainda o entendimento jurisprudencial de que, nesses casos, a devolução se daria de forma simples, cabível a devolução em dobro somente em caso de comprovada má-fé do concedente do crédito.5 Ela não se confunde, nem afasta, todavia, a possibilidade de responsabilização civil. A violação do dever de informar ocorre em período anterior à formação do contrato, por isso desafia responsabilidade pré-contratual. A responsabilidade pré-contratual, em geral, teve berço na chamada "culpa in contrahendo". A teoria da culpa in contrahendo foi formulada por Rudolph von Jhering no ano de 1881, a partir de uma inquietação que surgia sempre que ministrava suas aulas e não encontrava respostas que lhe parecessem suficientes sobre "se a parte que culposamente errou na formação do contrato deveria responder pelos danos que causou à parte contrária".6 No direito brasileiro, Pontes de Miranda estudou a culpa in contrahendo tanto nos casos de nulidade por ilicitude ou impossibilidade da prestação, quanto nas hipóteses de não conclusão do contrato. Para o autor, "por existir o dever de verdade, ou dever de esclarecimento, cria-se entre os figurantes relação jurídica, que impõe a quem negocia proceder como as pessoas honestas procedem".7 Da mesma forma, José de Aguiar Dias concebia deveres anteriores ao contrato, classificando como delitual a responsabilidade que deriva da contrariedade à boa-fé.8 Em suas palavras, "Há um limite que não pode ser ultrapassado nos esforços que uma parte desenvolve para induzir a outra a contratar". Posteriormente, os estudos iniciais da culpa in contrahendo foram ampliados, passando por revisões doutrinárias, concebendo-se novos casos e contemplando novas hipóteses que não se restringem à questão da invalidade.9 Com efeito, a doutrina da responsabilidade pré-contratual passa a conceber, além da hipótese da culpa em contrahendo - e consequentemente a questão da invalidade, outras questões, como a sistematização apresentada por Judith Martins-Costa: o injusto rompimento das tratativas; os danos causados à pessoa ou ao patrimônio durante as negociações; a conclusão de contrato nulo, anulável ou ineficaz; a ausência ou defeituosidade de informações que seriam devidas e pela falta culposa de veracidade de informações prestadas; falsas representações na fase de tratativas, desde que não recaindo no dolo, que é abrangido por figura específica e danos culposamente causados por atos ocorridos na fase das negociações, quando tenha sido validamente constituído o contrato.10 Esse é o cenário em que se insere a responsabilidade decorrente da concessão abusiva de crédito por informação inadequada. Se a informação inadequada na concessão de crédito importar dano ao tomador, seja ele patrimonial, na modalidade de dano emergente ou lucros cessantes ou extrapatrimonial, estando presentes os elementos da responsabilidade civil, a instituição financeira deverá reparar o dano.11 Esses efeitos civis não afastam sanções de outras naturezas, desde medidas administrativas, como cassação de licença, suspensão da atividade e interdição12, impostas pelos órgãos reguladores, a penas na seara criminal, como detenção e pagamento de multa, a destacar a controversa questão sobre a função da reparação civil.13 A inovação legislativa demandará da jurisprudência um trabalho significativo para a aferição, sempre à luz do caso concreto, da existência e extensão de eventual dever de reparar, o qual dependerá de ponderação dos interesses em jogo para a caracterização de um dano injusto, de modo a não recair, como já se alertou em doutrina, "nem no esvanecimento nem na hipertrofia do dever de informar".14 *Cintia Muniz de Souza Konder é doutora em Direito Civil pela UERJ, mestre em Direito e Sociologia pela UFF. Professora de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Professora dos cursos de pós-graduação lato sensu da UERJ e da PUC-Rio. Sócia da Konder Sociedade de Advogados. __________ 1 MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 255. 2 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, incisos XIV, XXXIII e LXXII. 3 Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal. 4 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Seção. REsp 1360969/RS. Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze. Julg. 10 ago. 2016. Publ. DJe 19 set. 2016. Sobre a relação entre a vedação ao enriquecimento sem causa e a teoria das nulidades, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 343. 5 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª turma. AgRg no AgRg no AREsp 625561, Rel. Min. Marco Buzzi.. Publ. DJe 04 jun. 2021. 6 PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade civil pré-contratual: Teoria geral e responsabilidade pela ruptura das negociações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 114-115. 7 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XXXVIII. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, p. 320. 8 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 11ª ed. revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002 e aumentada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 176. 9 Neste sentido, Karina Fritz: "A culpa in contrahendo pela celebração de contrato nulo é considerada atualmente apenas uma das hipóteses da ampla figura da responsabilidade pré-contratual, assim como o rompimento injustificado das tratativas. De fato, a responsabilidade pré-contratual é figura bem mais ampla e não se limita a esses dois casos, mas surge sempre que durante a fase de preparação do negócio jurídico uma das partes causa dano à outra em função da violação de um dever decorrente da boa-fé objetiva - princípio consagrado no art. 422 do CC/2002 - do qual resultam os denominados deveres de laterais (Nebenpflichten) ou deveres de consideração (Rücksichtnahmepflichten), conforme terminologia adotada pelo BGB após a Reforma de Modernização do Direito das Obrigações, realizada em 2001. Pode-se dizer, então, conceituar a responsabilidade pré-contratual como aquela decorrente da violação dos deveres da boa-fé objetiva durante o amplo período de preparação do negócio jurídico. Essa afirmação põe em relevo que o fundamento teórico da responsabilidade repousa na boa-fé objetiva, correspondente à Treu und Glauben do direito alemão, posto que a categoria geral dos deveres de consideração decorre substancialmente do mandamento da lealdade, ínsito ao princípio". (FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul.-dez./2012. Disponível aqui. Acesso em 14 out. 2017. 10 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 418. 11 A reparação do dano tem começado a fugir à glosa da patrimonialidade, no que Anderson Schreiber elaborou com o a "quarta tendência da responsabilidade civil brasileira". (SCHREIBER, Anderson. Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 168). 12 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Das práticas comerciais. GRINOVER, Ada Pelegrini [et al.] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 321. 13 Cf: ROSENVALD. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: saraiva, 2017. 14 TEPEDINO, Gustavo; GUIA, Rodrigo da. Dever de informar e ônus de se informar: A boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2021.
quinta-feira, 26 de agosto de 2021

LGPD e a responsabilidade civil do Estado

Desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados em 01 de agosto de 2020, o Poder Público, de forma geral, vem tentando adaptar-se à realidade da nova lei, criando mecanismos de proteção de seus bancos de dados, que na grande maioria das vezes inclui informações sensíveis, nos termos do artigo 5º, II da lei 13.709/18. Tais medidas envolvem a adaptação de seus contratos, a criação de órgãos internos de controle, além da regulamentação do acesso à população para o cumprimento do previsto no artigo 181, da referida lei, ou seja, que o titular ao titular dos dados seja possível acessar, retificar e eventualmente eliminar os dados fornecidos. Note-se ainda que no caso do Poder Público, em muitas situações, o fornecimento dos dados é obrigatório para acesso ao serviço, de maneira que, nestes casos, não há consentimento do titular, na medida em que a negativa do dado pessoal implica em não acessar o serviço. Considerando a imposição da obtenção de dados por parte do Poder Público, é seu dever, nos termos da legislação, buscar o equilíbrio entre os princípios que regem a administração, como a eficiência, a publicidade e o interesse público com aqueles expostos na Lei Geral de Proteção de Dados de finalidade, necessidade e adequação. A Lei Geral de Proteção de Dados traz a necessidade de proteção não só do direito de personalidade dos titulares, identificados no artigo 2º da lei, mas ainda a responsabilidade pela violação de normas técnicas que são voltadas à segurança e à proteção dos dados pessoais. Desta forma, o Poder Público, seja no papel de operador ou de controlador, deverá, nos termos do artigo 42 e seguintes da lei 13.709/18 indenizar aquele que tiver seu direito violado seja em razão de desrespeito à noma jurídica ou em razão de violação de norma técnica. A Lei Geral de Proteção de Dados não trouxe, em seu texto, dicção clara sobre a espécie de responsabilidade que seria adotada para o caso de violação de direitos. Assim, desde sua entrada em vigor, discute-se na doutrina se a responsabilidade prevista na Lei será objetiva, subjetiva ou ainda uma terceira hipótese, a objetiva especial. Os defensores da responsabilidade objetiva argumentam que a lei trouxe grandes semelhanças com o Código de Defesa do Consumidor, inclusive com a redação do artigo 43 trazendo as hipóteses de excludente de responsabilidade. Para os defensores desta tese, a responsabilidade se dá em razão do risco ou proveito da atividade. Por outro lado, os defensores da responsabilidade subjetiva entendem que a sistemática de Lei, estabelecendo normas de conduta para o tratamento de dados é típica da responsabilidade subjetiva2 e depende da comprovação de culpa dos agentes de tratamento de dados. Para a terceira corrente, que chama a responsabilidade de objetiva especial, ela decorre do cometimento de um ilícito pelos agentes do tratamento de dados, ou seja, pelo descumprimento dos deveres previstos na lei, em especial o de segurança. Esta discussão, no entanto, para a responsabilidade civil do Estado é despicienda, já que a previsão do artigo 37, §6º da Constituição Federal determina a responsabilidade objetiva para a administração pública. Fixada a responsabilidade objetiva para o ente estatal, basta a verificação do nexo causal para que seja devida a indenização ela exposição indevida de dados. Neste ponto, é importante verificar que nas operações que envolvem transmissões de dados, nem sempre é possível demonstrar a origem do vazamento. Para a solução de tal problema, a própria lei traz a possibilidade de inversão do ônus da prova a critério do juiz, a favor do titular de dados, desde que verossímil a alegação, haja hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular for excessivamente onerosa Entretanto, somente existindo responsabilidade solidária na LGPD, nas hipóteses previstas nos incisos I e II do artigo 42, o Poder Público só poderá ser responsabilizado de acordo com as violações que lhe forem imputáveis em razão de seu papel de controlador ou de operador, a depender da hipótese no caso concreto. Para além das hipóteses do artigo 42, pode-se considerar a solidariedade nas situações em que a violação se enquadra em relação consumerista. Ainda deve-se ter em conta que, considerando-se a responsabilidade objetiva do Estado, a previsão do artigo 43, II, que trata da não violação à legislação de dados, embora tenha sido este tratado pelo Poder Público, não pode ser aplicada. Em sendo o Poder Público controlador ou operador e tendo existido dano, não há que se falar em afastamento da responsabilidade por não violação da legislação. As demais hipóteses do artigo 43, no entanto, são aplicáveis ao Poder Público são excludentes de responsabilidade. Embora a LGPD não traga parâmetros de indenização em caso de responsabilidade civil, com base no artigo 944 do Código Civil, pode-se ter em consideração critérios estabelecidos na própria lei como relevantes para fixação do dano, especialmente aqueles dispostos no §1º do artigo 52, tais como a sensibilidade dos dados, a reincidência do agente e a ausência ou demora na notificação do vazamento de dados. Ainda sobre a aplicabilidade do artigo 944 do Código Civil, como colocado por Nelson Rosenvald3, para a análise da extensão do dano e considerando a previsão do artigo 50 da lei 13.709/18 sobre adoção de boas práticas e de governança, deve-se considerar a diligência ou o standard adotado pelo órgão a ser condenado. A LGPD traz ainda seção específica de responsabilidade para o Poder Público nos artigos 31 e 32 que tratam e medidas administrativas a serem tomadas para os casos de infração da lei ou para o monitoramento de adoção de boas práticas. Recentemente a Agência Nacional de Proteção de Dados excluiu a possibilidade de que as sanções pecuniárias, previstas no artigo 52, possam ser aplicadas a órgãos públicos. Estas medidas não afastam a incidência das normas do artigo 42 e 43 da Lei para o Poder Público, com as devidas adaptações decorrentes da responsabilidade objetiva do Estado. *Bruna Simões possui mestrado e doutorado em Direito pela PUC/SP É defensora publica do Estado de São Paulo. Bibliografia Gustavo, T. Fundamentos do Direito Civil - Responsabilidade Civil - Vol. 4. Grupo GEN, 2020. BIONI, Bruno et al (Coords.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Grupo GEN, 2020. Peck, P. Proteção de dados pessoais. Editora Saraiva, 2020. Migalhas. __________ 1 Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: I - confirmação da existência de tratamento; II - acesso aos dados; III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta lei; VII - informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta lei. 2 TEPEDINO, Gustavo, Fundamentos do Direito Civil - Responsabilidade Civil - Vol. 4, pg. 237. 3 Migalhas. Acesso em 24/08/2021.
O Poder Judiciário brasileiro tem sido destinatário, atualmente, de milhões de demandas decorrentes de empréstimos consignados em folha de aposentados/pensionados junto ao INSS. A lei 10.820/2003 (art. 6º) passou a permitir que aposentados e pensionistas que recebem benefícios junto ao INSS autorizem descontos em folha de pagamento. Em 2004 (lei 10.953) o dispositivo legal foi alterado, incluindo a permissão para que "a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos". Por fim, com a Medida Provisória n. 681/2015 (convertida na lei 13.172/2015), abrangeu-se, no mesmo art. 6º, o rol de operações cujos débitos mensais poderiam ser admitidos em folha, incluindo-se, também, contratos de cartão de crédito. O novo mecanismo tratado na referida lei pretendia trazer mais dignidade a uma coletividade de consumidores, com possibilidade de empréstimos consignados, que, consabidamente, por serem averbados em folha, causariam diminuição de riscos, e, portanto, de juros remuneratórios; mas, por outro lado, elasteceram problemas nas relações de consumo. No afã de ampliar suas carteiras de negócios, bancos e seus funcionários, para os quais são diuturnamente exigidas metas na angariação de novos contratos, tem-se uma forte atuação das instituições financeiras no desejo de cada vez emprestar mais. Sem dúvida, a modalidade de empréstimo consignado é convidativa, mormente porque reduz o risco de inadimplência praticamente a zero. Nesse ambiente, a experiência judiciária tem relatado uma série de novas questões que vem sendo objeto de milhares de demandas em todo o Brasil. Num apanhado geral, podemos detectar conflitos entre aposentados/pensionistas e instituições bancárias nas seguintes linhas, dentre outras: a) fraudes oriundas de estelionato, com uso de documentos falseados de consumidores; b) assédio por empregados/colaboradores bancários induzindo idosos a celebrarem empréstimos; c) concessão de empréstimos em valores superiores ao realmente pretendidos; d) renovação (sem requerimento) de empréstimos anteriormente celebrados; e) concessão de empréstimo ao aposentado/pensionista sem qualquer anuência do consumidor. Dentro do corte pretendido no presente ensaio, vamos nos ater à última hipótese, objeto de um número brutal de demandas hoje aforadas no Judiciário (mormente nos Juizados Especiais) e nos diversos PROCONs brasileiros. A reclamação é sempre a mesma: um valor é creditado na conta bancária do beneficiário do INSS, sem qualquer requerimento do consumidor, que só percebe o fato, não-raro, quando observa um desconto (parcela mensal) na sua aposentadoria ou pensão. Há diversas nuances processuais que daí decorrem, no âmbito das demandas comumente propostas judicialmente, a exemplo de declaração de inexistência da relação contratual, imposição de tutela específica com imediata cessação dos descontos, imposição de danos morais. Quanto ao valor efetivamente creditado ao consumidor, segundo construção clássica, no intuito de evitar o enriquecimento sem causa (boa-fé objetiva), deve ser devolvido à instituição bancária ou, pelo menos, abatido do valor da condenação judicial (obrigação de pagar quantia certa) em favor do consumidor. No entanto, para além dessas medidas, tradicionais em nosso Direito, uma nova tese vem sendo encampada, cujo resultado é a desnecessidade de devolução, pelo consumidor, da quantia que lhe fora creditada em conta corrente, com base na regra do CDC que prevê a "amostra grátis". Diz o CDC que "é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentro outras práticas abusivas, enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço" (art. 39, III). Entretanto, não obstante a clareza da regra, em se tratando de produto do tipo "dinheiro", é possível, sistematicamente, impor esse modelo de responsabilidade civil? Em outras palavras, crédito em conta bancária decorrente de empréstimo não solicitado, pode ser qualificado como "amostra grátis"? As vozes divergem. Vários PROCONs entendem que a prática pode ser enquadrada no conceito de amostra grátis. A Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, recentemente (maio/2021), através do seu Presidente Deputado Celso Russomano (Republicanos/SP) chegou a emitir manifestação concordante com o enquadramento dos casos na tese da amostra grátis. No entanto, a jurisprudência dos nossos tribunais caminha em direção oposta. Há decisões isoladas que reconhecem o crédito indevido como amostra grátis, como algumas extraídas da 22ª Câmara de Direito Privado do TJSP. Mas, é entendimento isolado frente às uníssonas vozes das demais Câmaras do TJ/SP, tal qual dos tribunais brasileiros em geral). Num apanhado geral, o fundamento para desconsiderar o crédito indevido como amostra grátis é a vedação do enriquecimento sem causa. Por certo, o art. 876 do Código Civil determina que "todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir". Esse um dos preceitos legais que veda o enriquecimento sem causa. Mas, tal dispositivo deve ser lido sistematicamente. Se aquele que remete um produto não solicitado pelo consumidor o faz sponte propria, dever de restituição não há, porque há regra legal que legitima a absorção da coisa ao patrimônio do destinatário. Situação muito semelhante se dá com a doação. O doador, mesmo nada devendo ao donatário, se lhe doa um bem, não pode, em princípio, pleitear restituição qualquer. Um outro argumento desfavorável à caracterização do dinheiro como amostra grátis decorre do decreto 7.212/2010, que faz menção às "as amostras de produtos para distribuição gratuita, de diminuto ou nenhum valor comercial, assim considerados os fragmentos ou partes de qualquer mercadoria, em quantidade estritamente necessária a dar a conhecer a sua natureza, espécie e qualidade" (art. 54, III). Com isso, construiu-se a interpretação que amostra grátis é aquilo que não tem valor patrimonial ou que tem valor irrisório. Nesse sentido, a razão de ser da amostra grátis é a publicidade do produto/serviço, a fim que, uma vez experimentado, sem ônus, o consumidor crie desejo pelo tipo de produto/serviço. Nessa linha de pensamento, a empresa que fornece amostra grátis, assim o faz para atrair o mercado de consumo à aquisição futura e onerosa daquele produto/serviço. Necessário anotar que o decreto 7.212/2010 compõe a legislação tributária do IPI, cujos pressupostos de caracterização de amostra grátis não servem para o Direito Civil em geral e, muito menos, para a responsabilidade civil. Especificamente, o mencionado Decreto enquadra a amostra grátis no plano da isenção tributária. O mesmo ocorre nas leis estaduais concernentes ao ICMS. Por isso, a legislação não tributa IPI/ICMS para esse tipo de produto industrializado/comercializado por não ter ele valor comercial relevante. Ainda, para fins tributários, a amostra grátis se caracteriza por ser fragmento de mercadoria estritamente necessária para dar conhecimento da natureza, espécie e qualidade do produto (art. 54, III, b). Mais ainda, a isenção tributária está condicionada à indicação "amostra grátis" no envoltório do produto, de modo destacado (art. 54, III, a), além de não exceder 20% do conteúdo da menor embalagem praticada comercialmente (art. 54, III, b). De fato, a razão da isenção é o diminuto valor ou ausência de valor comercial, algo que é lógico em se tratando de política de renúncia (isenção) tributária. E, por essas razões, tais condições são estabelecidas dentro de uma lógica estritamente tributária. Conclusivamente, se uma indústria remete a um consumidor, sem solicitação qualquer, um liquidificador de R$ 50,00, tal produto será considerado amostra grátis (civilmente), mas não será amostra grátis para fins de IPI ou ICMS. É por isso que a qualificação de amostra grátis para fins tributários não se presta ao Direito Civil. Alocar a amostra grátis, numa relação de consumo, apenas no universo de produtos/serviços sem valor ou de diminuto valor, portanto, não possui (civilmente) qualquer guarida legal. Porém, podemos ir ainda mais longe na linha argumentativa para distinguir dois campos de qualificação da amostra grátis. O primeiro campo seria a amostra grátis simplesmente como produto/serviço. É a revista dada ao consumidor que apressadamente percorre o saguão do aeroporto; é o cafezinho sugestionado nas proximidades da prateleira do supermercado; é a pequena caixa de medicamento concedida pelo médico; é o brinde que, como cliente, recebemos em casa. Esses materiais têm um condão de cordialidade/agradecimento no intuito de estreitar/manter os laços cliente-fornecedor. Ou, ainda, servem como material tipicamente publicitário. Mas, num segundo campo, temos o que podemos nominar de amostra grátis-sanção. Observando detidamente o CDC, percebemos que ao lado de uma obrigação primária (que já impõe ao fornecedor um não-fazer - vedação de remessa de produto não solicitado), reconhecida como ilícito, o mesmo art. 39, em seu parágrafo único, traz a obrigação secundária (responsabilidade civil), que por si só decreta em desfavor do fornecedor o perdimento do bem remetido ao consumidor. Eis a letra da lei: "Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento". Necessário repisar que a norma do parágrafo único referido não traz à colação mero direito do consumidor; para além disso, é regra claramente punitiva, porquanto vem em complemento sancionador à violação de um direito, consistente numa obrigação de não-fazer imposta aos fornecedores em geral. Destarte, a lei não apenas diz que é amostra grátis aquilo  que se entrega ao consumidor sem solicitação deste; mais incisivamente, diz que se o fornecedor desobedece a vedação (art. 39, III) de remeter ao consumidor aquilo que não fora requerido,  haverá perdimento da coisa em favor do destinatário. Conclusivamente, o parágrafo único é regra típica de responsabilidade civil. Assim, é possível concluir que ao lado da amostra grátis comumente praticada no mercado de consumo (revistas, medicamentos etc), temos uma outra classe de amostra-grátis (amostra grátis-sanção), que, por ser uma categoria diferente, não está condicionada àqueles enfoques tradicionais (diminuto/nulo valor, pequena amostragem, destinação publicitária). A leitura do parágrafo único do art. 39 do CDC não estabelece limites de valor, quantidade ou qualidade. Outro dado importante, que reforça a tese da amostra grátis, decorre de um contexto socialmente vivido. É necessário salientar que as concessões não requeridas de empréstimo consignado para aposentados/pensionistas não são casos isolados ou meros equívocos setoriais bancários. Trata-se de uma conduta bancária diuturnamente reiterada em verdadeiro abuso de poder econômico. Não por outra razão que há uma verdadeira enxurrada de demandas no Judiciário Brasileiro. Segundo a Secretaria Nacional do Consumidor, através do relatório "Consumidor em Números 2020", entre as demandas judiciais recordistas encontramos as decorrentes do setor bancário (só perdendo para setor de telecomunicações). No geral, esses empréstimos, já que concedidos a aposentados/pensionistas de baixa renda, são realizados em estado de proveito da fraqueza dessa classe de consumidores, normalmente idosos, menos letrados (quiçá, analfabetos), o que por si só já registraria ofensa a um outro dispositivo do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços". A tese da amostra grátis-sanção pode, contudo, confrontar com a ideia de contrato tácito, sobretudo se o consumidor, mesmo não tendo solicitado o empréstimo, uma vez o experimentando em sua conta bancária, utilizá-lo. Poderia, inclusive, somar-se ao contrato tácito o instituto da supressio/surrectio, cogitando-se de assumir-se o consumidor como contratante tendo em vista o decurso do tempo. Assim, a utilização, pelo consumidor, do crédito disponibilizado não solicitado poderia, mesmo não havendo contrato escrito, sugestionar aceitação (embora dessa suposta aceitação não teríamos como impingir ao consumidor a concordância com cláusulas contratuais desconhecidas, a exemplo dos juros remuneratórios). Contudo, parece-nos que, no quadrante normativo brasileiro, a ideia de contrato tácito deve ser expurgada com base em inexigibilidade de conduta diversa. Ora, se o CDC afirma que o produto/serviço entregue ao consumidor sem solicitação é considerado amostra grátis, assim o será independentemente do destino dado pelo consumidor. Como exigir do consumidor alguma conduta que desmonte a ideia de contrato tácito? A incorporação do produto/serviço ao patrimônio do consumidor (em decorrência do perdimento imediato do bem remetido pelo fornecedor, sem requerimento prévio) não está sujeita a qualquer condição ou conduta posterior do adquirente. E, consequentemente, não é fato posterior (utilização do capital ou, inversamente, reclamação administrativa/judicial) que irá qualificar a amostra grátis como tal. *Iure Pedroza Menezes é mestre (FDUL) e doutorando (UAL) em Direito. Professor da UNEB e da Escola Judicial de Pernambuco. Juiz de Direito. Membro do IBERC. Membro-fundador da ANNEP. Membro do IBDP. Membro da ABDPro. **Valedene Leite Pedone é especialista em Direito Processual Civil. Advogada. Assessora Jurídica do PROCON do Município de Petrolina/PE. Membro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Referências CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão vai pedir punição de bancos acusados de fraude em crédito consignado. Disponível aqui. Acesso em 18.ago.2021. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Disponível aqui. Acesso em 17.ago.2021.
Foi bastante divulgada no início deste mês campanha publicitária em que o ex-jogador de futebol Zico é surpreendido no gramado do Maracanã por uma mensagem de voz de seu pai, José Antunes Coimbra, já falecido, que lhe pedia mais um gol, pois nunca tivera a oportunidade de vê-lo ao vivo no estádio.1 A cena, que emocionou não apenas o Galinho de Quintino, mas milhares de pessoas, lança luzes a uma questão sensível que tem desafiado a civilística: a reconstrução digital da imagem e da voz a partir de ferramentas tecnológicas, especialmente da Inteligência Artificial, e os possíveis impactos para os direitos da personalidade e para a Responsabilidade Civil. O caso de Zico foi fruto de parceria entre o Mercado Livre, patrocinador do Flamengo, com a Soundthinkers, que, se valendo de um vídeo do arquivo pessoal do ex-jogador e de um sistema de síntese neural (técnica de Inteligência Artificial), conseguiu produzir um "dicionário de voz personalizado e um novo texto com fala digitalizada"2, capazes de recriar com fidedignidade a voz de José Coimbra, falecido no ano de 1986. O episódio não constitui, contudo, novidade. A reconstrução digital da imagem e da voz de pessoas falecidas já foi utilizada diversas vezes pelo cinema e a cada dia mais vem sendo feita por pessoas comuns, que têm criado por meio de aplicativos de celular as chamadas deepfakes, cuja influência para fins antidemocráticos tem sido ressaltada, apesar da larga utilização no humor. Exemplos deste emprego podem ser colhidos do popular perfil no Instagram de Bruno Sartori (@brunnosarttori), que faz diversas vídeo-montagens satíricas com políticos, recriando não apenas a imagem, mas, recentemente, também a voz. A diferença aqui, como pontuado em outra sede, é que as reconstruções humorísticas são de fácil constatação por quem as assiste.3 Bobby Chesney e Danielle Citron descrevem as deepfakes como "a manipulação digital de som, imagens ou vídeo para imitar alguém ou fazer parecer que a pessoa fez alguma coisa - e fazer isso de uma maneira que seja cada vez mais realística, a ponto de um observador desavisado não conseguir detectar a falsificação".4 Exemplo notório no Brasil desta utilização para fins antidemocráticos foi o caso do atual governador de São Paulo, João Dória, que, às vésperas das eleições do ano de 2018, foi vinculado a um vídeo em que supostamente participava de orgia com algumas mulheres. Peritos teriam constatado se tratar de uma deepfake,5 criada para abalar a imagem e a honra do governador em meio à acirrada disputa eleitoral, já que somente com perícia era possível detectar a montagem. A possibilidade de recriar digitalmente a imagem de uma pessoa e suas projeções, como a voz, após sua morte também traz inúmeros desafios para a tutela dos direitos da personalidade, em especial do direito à imagem. Como se teve a oportunidade de afirmar em outra sede, a disrupção provocada por esse avanço tecnológico reside, sobretudo, no fato de que "a nova retratação gera imagens inéditas, não consentidas pelo retratado. É a imortalidade do ineditismo."6 Dito de outra forma: a menos que tenha havido previsão expressa em vida em relação à possibilidade de recriação póstuma - o que é relativamente comum na indústria cinematográfica de Hollywood -, o falecido jamais terá consentido para aquela recriação, que constitui imagem inédita, produzida a partir de técnicas artificiais. Seria este um óbice intransponível? Como se analisou em artigo dedicado ao tema, afigura-se possível pensar em alguns parâmetros, quais sejam: "(i) a previsão expressa em contrato em vida e autorização da família, (ii) a finalidade da recriação da imagem e (iii) a adequação da imagem criada post mortem à imagem-atributo construída em vida pela pessoa."7 Tais parâmetros poderiam atuar como standards não absolutos, a serem sopesados diante das especificidades do caso concreto. Aplicando-os à campanha envolvendo o pai de Zico, como não houve qualquer vedação em vida à recriação e, ao que tudo indica, os vídeos de que se extraiu a voz foram fornecidos com o consentimento dos herdeiros, o primeiro parâmetro estaria satisfeito. Em sequência, a finalidade de prestar homenagem ao filho, em princípio, não seria óbice. No entanto, o fato de a homenagem estar associada a uma utilização para fins lucrativos por parte da criadora da campanha publicitária poderia ser um ponto a ser levantado caso não houvesse concordância entre os herdeiros. Finalmente, não houve qualquer violação à imagem-atributo do falecido, o que, em tese, confirmaria a legalidade desta recriação específica. Resta discutir, no entanto, os impactos para a Responsabilidade Civil de recriações feitas sem o consentimento dos herdeiros. Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 20 do Código Civil habilita o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes a requererem a proteção da imagem do de cujus, pleiteando não apenas a cessação da divulgação como, eventualmente, até mesmo a reparação prevista no caput do artigo 12, que, neste caso, a rigor, tem fundamento em direito dos próprios herdeiros, já que a personalidade se extingue com a morte.8 Aqui, todavia, a questão não é tão simples. Se por um lado eventual recriação digital para fins de utilização comercial parece ser tendencialmente proibida, o que dizer do emprego para finalidades não lucrativas e que possam ter, por exemplo, caráter educativo? Seria possível permitir a recriação digital da imagem de famosa pintora, como Tarsila do Amaral, a fim de que explicasse por meio de um avatar para frequentadores de um museu as técnicas utilizadas para pintar uma de suas telas, como Abaporu? Nesse caso, teriam os herdeiros direito a pleitear a cessação da utilização de sua imagem e a eventual indenização? Ainda que se reconhecesse o direito a cessar a exibição, restaria configurada lesão apta a demandar reparação civil? Hipóteses como essa reforçam a necessidade de se testar, caso a caso, os parâmetros apresentados anteriormente, sempre à luz da escala de valores do ordenamento. É de se cogitar, ainda, no caso de explorações comerciais não autorizadas, a aplicação de mecanismos como o lucro da intervenção, a exemplo do precedente do STJ referente à ação movida pela atriz Giovanna Antonelli e julgada no Recurso Especial nº 1.698.701 - RJ, de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, por meio do qual a atriz pleiteava ressarcimento em razão do uso não autorizado de sua imagem para campanha publicitária de uma farmácia de manipulação.9 Como ressaltado, a indenização aqui não foi justificada apenas pela "violação a atributos morais da imagem, mas, também, a partir do enriquecimento proporcionado à indústria de cosméticos que se valeu da imagem da atriz para auferir lucros."10 Dito diversamente, o aspecto patrimonial de sua imagem também foi indenizado, a bem da eficácia do princípio da reparação integral.11 Seja como for, os exemplos analisados revelam que, se por um lado a tecnologia, em especial a Inteligência Artificial, tem permitido assegurar de algum modo a imortalidade de pessoas queridas, por outro tem criado complexas questões para o Direito, que demandam do intérprete soluções cada vez mais criativas diante da insuficiência da legislação que, como observado no caso do pai de Zico, não vislumbrava que o ineditismo de uma imagem pudesse se tornar imortal. *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (graduação, mestrado e doutorado). Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). Membro da Comissão de Direito Civil da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ), do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e do Comitê Brasileiro da Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française (AHC-Brasil). Sócio fundador de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Advogados. **Filipe Medon é doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de cursos de Pós-Graduação do Instituto New Law, PUC-Rio, CEPED-UERJ, EMERJ, ESA-OAB, CERS, FMP e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Pesquisador em Gustavo Tepedino Advogados. Advogado. Instagram: @filipe.medon. __________ 1 O vídeo pode ser visto aqui. 2 SANTA ROSA, Giovanni. Mercado Livre recria voz do pai de Zico usando inteligência artificial. In: Tecnoblog, 04 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em 15 ago. 2021. 3 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; NERY, Maria Carla Moutinho. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade no humor. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (coords.). Liberdade de Expressão e Relações Privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 228. 4 No original: "digital manipulation of sound, images, or video to impersonate someone or make it appear that a person did something - and to do so in a manner that is increasingly realistic, to the point that the unaided observer cannot detect the fake." (CHESNEY, Bobby; CITRON, Danielle. Deep Fakes: A Looming Crisis for National Security, Democracy and Privacy?, LAWFARE (Feb. 21, 2018), Disponível aqui. Acesso em 09 mar. 2019). 5 Peritos constataram montagem em vídeo vazado, afirma Doria. In: Folha de São Paulo, 24 out. 2018. Disponível aqui. Acesso em 09 jul. 2020. 6 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 267. 7 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 269. 8 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Pandemia e responsabilidade: a pessoa no centro do tabuleiro (Editorial). Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 3, p. VIII, set./dez. 2020. 9 Sobre o tema, é válida a referência ao Webinar IBERC #25 | Responsabilidade civil e enriquecimento injustificado, que se encontra disponível aqui. 10 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 265. 11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.
O sistema categorial-classificatório da responsabilidade civil é comumente dividido em fato, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. E cada um desses pressupostos dogmáticos tem diferentes fundamentos consoante estejamos a tratar de uma matéria específica da vida em sociedade. Ora, no que diz respeito à responsabilidade civil pela violação dos deveres que decorrem do casamento, levantam-se questões teóricas relacionadas com o requisito da ilicitude que não são fáceis de solucionar.  Este simples enunciado indagatório encerra em si inúmeros problemas: estará em causa uma hipótese de responsabilidade contratual por violação do contrato do casamento ou a natureza própria do contrato em questão afasta a possibilidade de se demandar uma indenização por esta via? Ou, ao invés, será que a responsabilidade se deve qualificar como extracontratual pela violação de direitos de personalidade? É evidente que assumir uma ou outra posição pode ter consequências práticas importantes, como o ônus da prova ou o prazo de prescrição. Entretanto o que pretendemos aqui não é assumir uma posição definitiva em relação a esse problema, mas questionar se existe ou não uma terceira via da ilicitude para estes casos de violação dos deveres conjugais de fidelidade.  E essa terceira via está relacionada com uma eventual ilicitude pelo abuso de direito.   Vamos, assim, debater a seguinte questão: será que, na responsabilidade civil por abuso de direito, a moral pode impor normas de conduta ao dever de fidelidade das pessoas casadas? Bom, em relação à "moral" propriamente dita, rios de tinta já correram quanto à relação entre "Direito e Moral" na história do direito e na filosofia do direito.  Um dos principais problemas está em saber qual interesse deve o Estado colocar em primeiro plano, o interesse pessoal ou o interesse coletivo? Ou seja, quais são os limites impostos pelo Estado às relações entre os indivíduos, qual é a liberdade que pode ser concebida pelo Estado aos indivíduos?  Repare-se que estamos a falar especificamente de interesses que decorrem de um contrato de casamento que é regulado pelo próprio Estado,  e  no direito romano, eram tutelados pela figura da FIDES, uma figura feminina de cabelos branco que era a personificação da confiança, da honra, da credibilidade e da própria fidelidade no casamento.  Os gregos, tais como os romanos, entendiam que o Estado teria de educar a consciência do homem no sentido da moralidade e da justiça. Com Aristóteles1 foi possível assumir essa posição que hoje seria considerada "conservadora".  É verdade que na história do direito e na filosofia do direito começou-se por separar radicalmente a moral do direito.  A moral estaria intimamente ligada ao interior de uma pessoa e à consciência tranquila, enquanto o direito, pelo contrário, estaria relacionado com o exterior, visando a regulamentação das relações entre as pessoas e não poderia ser imposta à força, ao passo que o direito teria mecanismos de coerção que seriam aplicados pelo próprio Estado. Autores da filosofia como Kant2 são associados a esta forma de ver as coisas.  Porém, esta separação radical entre Direito e Moral é atualmente contrariada em importantes autores e pensadores como Jurgen Habermas ou Ronald Dworkin.3  Jurgen Habermas4 tem vindo a insistir nessa relação estreita entre o direito e a moral como pressuposto essencial para o projeto emancipatório da modernidade. A própria religião é dada como um exemplo-paradigma da transmissão da moral e da elevação do bem comum, procurando dar ao ser humano uma maior compreensão de como se deve comportar diante as situações quotidianas da vida em sociedade.   E todos sabemos o que a religião cristã diz acerca do casamento religioso e dos deveres conjugais de fidelidade.  Isto para dizer, em primeiro lugar, que só podemos privilegiar a fidelidade no casamento e conceber a fidelidade como um "bem moral" protegido pelo Estado se privilegiarmos a perspectiva do casal, não em detrimento do indivíduo casado, mas a favor do projeto de vida escolhido pelas pessoas que optaram pelo casamento. Se optaram pelo casamento, e se têm a opção de o dissolver, não há logo à partida um dever moral de cumprir com os seus deveres?  A existência dos valores morais e do bem moral está contida na própria norma legal do casamento. Não é por acaso que Ronald Dworkin5 defende uma leitura moral do texto constitucional, nos termos da qual os conceitos morais aí implícitos deveriam ser aplicados como conceitos jurídicos.  Assim, a constituição seria vista como uma mensagem moral universalista que está na base da produção das normas jurídicas, como será o caso da nossa própria Constituição Federal que reconhece a família como base da sociedade e a união estável entre o homem e a mulher como algo que deve ser privilegiado na proteção do Estado.  Como é evidente, a autonomia e a liberdade de uma pessoa que se compromete com a outra através do casamento fica de alguma forma limitada.  A moral que decorre do casamento deve ser vista como uma moral coletiva, própria dos bons costumes, dotada de uma expressão normativa que possibilita a vida comunitária do casal.  Assim, procura-se um primado ontológico em relação aos interesses conjuntos do casal em prejuízo de certos interesses pessoais ou individuais da pessoa casada.   Como será a família, enquanto "base da sociedade", se os valores morais da fidelidade estiverem corrompidos e banalizados?  É efetivamente um problema saber se há um bem jurídico "moral" que o terceiro adúltero terá de respeitar - e isto antes de olhar para o casamento como um contrato entre duas pessoas ou para o cônjuge lesado como alguém com direitos de personalidade.  Mas é certo que ao existir o dever de fidelidade decorrente do casamento, o Estado tutelou diretamente assuntos privados que dizem respeito às pessoas, conferindo a todas as pessoas que se encontrem nesse estado - no estado civil de casados - uma tutela jurídica de assuntos que também parecem ser morais.  Poderíamos também argumentar que o dever de fidelidade parece ser o dever mais natural que deriva da celebração do casamento. Um "dever natural" que é intrinsecamente moral. Não se trata de um dever paternalista que é imposto pelo Estado, trata-se de um dever que faz sentido desde logo para todos os que se comprometem individualmente e pessoalmente com o casamento e que, na perspectiva da própria sociedade, passa a ser um dos pilares da relação conjugal.  Aqui temos novamente, na perspectiva da sociedade, o primado ontológico dos deveres naturais e morais das pessoas casadas sobre os interesses pessoais do indivíduo casado.  Ora, se as coisas são assim, a moral de uma pessoa casada não pode ser vista como uma opção individual ou pessoal da qual a responsabilidade civil é totalmente alheia. Defender o contrário poderia querer dizer que o Estado autoriza tacitamente a prática de condutas com conteúdo imoral fora do casamento civil, não admitindo a responsabilização dessas condutas imorais, nem vislumbrando quaisquer danos indenizáveis.  Cumpre agora enquadrar o que fica dito no instituto da ilicitude por abuso de direito na responsabilidade civil.  Se definirmos o dever conjugal de fidelidade amplamente, para além de um dever de não praticar relações sexuais com terceiro - estando aqui subjacente a monogamia própria da religião cristã, também há, segundo alguns autores, um dever de fidelidade moral, para salvaguardar aqueles casos em que há ligações íntimas extraconjugais com um terceiro sem, contudo, haver relações sexuais6. No que diz respeito ao dever de "fidelidade física", na verdade, quando uma pessoa viola esse dever, ao ter propriamente relações sexuais com um terceiro fora do casamento, não está, sequer, a exercer um direito legítimo. Pois entende-se que só há abuso de direito quando uma pessoa começa por exercer um direito legítimo. O que parece afastar o abuso de direito do conteúdo estritamente sexual do dever de fidelidade.  Porém, o mesmo já não se poderá dizer em relação ao dever de "FIDELIDADE MORAL".  É um aspecto de ordem moral que impede uma ligação afetiva, ainda que não carnal, de um cônjuge com um terceiro, quando se trata de uma ligação que extravassa os limites axiológicos do moralmente adequado7. São os exemplos em que há uma troca de mensagens de cariz íntimo e sexual através da internet entre uma pessoa casada e um terceiro; ou quem, mais ainda, nas mesmas circunstâncias, faz simulações do ato sexual ou tem confidências de natureza sexual ao ponto de tecer comentários jocosos sobre o desempenho do seu cônjuge.  Em Portugal há mesmo uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, do ano de 1987, que chegou a considerar uma "infidelidade matrimonial de ordem moral" o fato de um dos cônjuges escrever uma peça literária em que se imaginava a ter relações sexuais com uma personagem que não o seu cônjuge.8  Na verdade, o abuso de direito é duvidoso quando um dos cônjuges faz apenas uso da sua imaginação para se relacionar sexualmente com uma "pessoa invisível", satisfazendo assim as suas intenções libidinosas.  O problema é precisamente este: as conversas ou comportamentos de cariz erótico com terceiros, para satisfazer pretensões libidinosas, não caracterizam um adultério, tecnicamente, ao nível da conduta, pela falta de contato físico. Ou seja, não se pode dizer, obviamente, que há práticas sexuais consumadas com um terceiro9.  Ainda assim, o dever de fidelidade terá sempre um conteúdo associado a questões de natureza sexual, mais do que os deveres de respeito e consideração mútuos, esperados entre os cônjuges.  Ao nível da ILICITUDE, se admitíssemos que a "moral do casamento" ou a "moral das pessoas casadas" é um interesse tutelado pela responsabilidade civil e que faz parte do conteúdo axiológico do dever de fidelidade conjugal, nesse caso poderíamos admitir que há uma certa violação de normas morais pela mera troca de fantasias eróticas com um terceiro alheio ao casamento.                Repare-se bem: é desejável que uma pessoa casada possa ter ligações pessoais fora do casamento, com família, amigos e pessoas próximas, com as quais possa ter conversas e contactos sociais de diversa natureza. É também perfeitamente normal que uma pessoa queira conversar ou confidenciar com a família ou com os amigos sobre experiências sexuais, conversas essas, no limite, dinamizadas pela internet em salas de chat do facebook, instagram ou whatsaap. Mas já parece ultrapassar os limites do razoável, por abuso de direito, quando essas conversas de carácter erótico são realizadas com intenções libidinosas.  Temos que admitir que o problema terá que ser solucionado caso a caso, consoante as circunstâncias concretas, considerando que pode não haver uma verdadeira afronta moral ao fundamento valorativo-material do dever de fidelidade.  Tudo o que ficou dito até ao momento poderia ser fundamentado a partir do ordenamento jurídico brasileiro que parece reconhecer a tutela da "moral no casamento" através da disposição do artigo 187 do Código Civil, relativa ao abuso direito, que passo a citar:  "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes"  E quando nos referimos aqui ao bem jurídico "moral no casamento" remetemos igualmente o problema dos "bons costumes".  Aqui temos o cerne da questão: tais padrões são ainda mais exigíveis para uma relação entre duas pessoas que assumiram perante a sociedade um casamento com efeitos pessoais e patrimoniais da mais importante ordem, inclusivamente porque essa relação tem potencial para constituir a base da própria sociedade: a família.                Ora, como já vimos, a moral, e agora também os bons costumes, associados ao casamento, envolvem limites ao exercício da autonomia e da liberdade das pessoas, criando deveres, os tais deveres naturais, que impõe condutas positivas, especialmente o dever de fidelidade, cujo conteúdo pode ser alargado para uma fidelidade moral, ou seja, um dever de fidelidade moral.  Assim, será atentatório à moral e aos bons costumes uma pessoa casada ter conversas sexuais com intenções libidinosas ou relações sexuais virtuais com outra pessoa através da internet. Estão em causa boas práticas que promovem o respeito ao estado civil de casado e a defesa de comportamentos condignos numa relação de família perante terceiros e perante a própria sociedade.  Menezes Cordeiro, em Portugal, defende que os bons costumes surgem como algo exterior que exprime a "moral social", podendo mesmo expressar regras impeditivas de comportamentos10. Parece-nos que é justamente esse o caso.  Enfim, saindo um pouco do pressuposto da ilicitude:  Repare-se que a questão da "moralidade" fica reforçada pelos "danos morais" que podem ser causados às pessoas mais próximas do cônjuge lesante:  Desde logo, o próprio cônjuge lesado, que fica com a "integridade da vida sentimental" ferida por via dos comportamentos imorais do seu cônjuge. Capelo de Sousa11, célebre Professor de Coimbra, já afirmava que o cônjuge tem "integridade da sua vida sentimental e à autodeterminação sobre os sentimentos próprios, que excluiu as outras pessoas de ilicitamente lesarem os seus interesses existentes...".  A posição da jurisprudência majoritária é a de que apenas há dano moral se ficar demonstrada a gravidade do caso, na medida das repercussões lesivas ao equilíbrio psicológico e emocional do cônjuge lesado, considerando também os reflexos sociais à sua própria imagem.  Mas também o projeto de vida familiar e os danos podem estender-se à vida dos filhos do casal. Ninguém pode negar que eles próprios têm uma esfera de interação no plano comunitário que pode ficar alterada com os comportamentos imorais do seu progenitor12. Aqui chegados, à giza dalgumas conclusões, vamos sistematizar algumas ideias:  Podemos observar que o Direito e moral estão hoje mais próximos devido a institutos como a responsabilidade civil por abuso de direito, considerando a menção legal expressa aos "bons costumes".  Nesse diapasão, o espírito axiológico do dever conjugal de fidelidade terá de abranger, para além de uma fidelidade física, uma fidelidade moral. E essa fidelidade moral está fundamentada numa perspectiva comunitária, não em detrimento dos interesses do indivíduo casado, mas a favor do projeto de vida escolhido pelas pessoas que optaram pelo casamento.  A própria Constituição Federal concebe a família como base da sociedade e a união estável entre o homem e a mulher como algo que deve ser privilegiado na proteção do Estado. Pelo que o dever de fidelidade é um "dever natural" intrinsecamente moral, até pela possibilidade de dissolver o casamento a qualquer momento.   No que diz respeito aos atos de natureza sexual propriamente físicos, esses estão afastados do enquadramento do abuso de direito, porque nem sequer representam o exercício de um direito legítimo. E em contrapartida, em relação às conversas ou comportamentos de cariz erótico com terceiros, para satisfazer pretensões libidinosas, mesmo sem um contato físico de natureza sexual, podem muito bem ultrapassar os limites do moralmente razoável, podendo ser considerados ilícitos por abuso de direito.  Uma pessoa adulta que é casada perante a lei vigente, não pode atuar livremente quando às relações afetivas e conversas de natureza sexual com terceiros, precisamente devido ao compromisso legal e moral que assumiu perante a sociedade, com o seu próprio companheiro e com a sua família, interferindo no campo da sua autonomia e liberdade sexual.  Portanto, existem necessariamente normas morais e bons costumes implícitos à natureza do dever de fidelidade no casamento, considerando também os valores cristãos e os valores constitucionais presentes na sociedade e na ordem jurídica brasileira, que impõe normas de comportamento às pessoas casadas.  *Karenina Carvalho Tito é mestre e doutoranda pela Universidade de Coimbra. Associada do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Investigadora colaboradora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora e advogada. __________ 1 ARISTOTE. "La politique". Tradução de J. Tricot. Paris: Vrin, 1982, 1261 a, 20 e ss. 2 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa, Portugal, jan., 2005, pp. 41 a 43. 3 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1985 apud MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin - Teórico do direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui, acessado em 15 de agosto de 2021. 4 HABERMAS, J. (1987a). The theory of communicative action. Vol 2. Lifeworld and sistem: A critique of functionalist reason. Boston, Beacon Press, p.87. 5 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1985, p.241. 6 PINHEIRO, Jorge Duarte faz referência na sua tese de doutoramento O núcleo intangível da comunhão conjugal: os deveres conjugais sexuais, p. 719. 7 Cfr.VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. 5ª ed. Lisboa:Petrony, 1999, v.1, p. 342-343. 8 Acórdão do STJ de 25/05/1987, Boletim do Ministério de Justiça 364, p.866. 9 Ver TITO, Karenina Carvalho., Responsabilidade Civil por "Infidelidade Virtual"? In:Responsabilidade civil e novas tecnologias/Adriano Marteleto Godinho_ [et al]; coordenado por Guilherme Magalhães Martins, Nelson Rosenvald, Indaiatuba, SP; Editora Foco, 2020, p. 331-347. 10 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2013, p 837. Ver também Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves distinguem a boa-fé dos bons costumes, frisando que nem toda infração à boa-fé é ofensa aos bons costumes, mas a conduta imoral atinge a boa-fé. Segundo os doutrinadores, no imaginário coletivo, a boa-fé e os bons costumes não seriam conceitos distintos, porquanto ambos emanam de um anseio ético, convergindo em um mesma linha moral. Por outro lado, se é verdade que ambos tangenciam a linha da moral e se direcionam à satisfação de anseios gerais, os bons costumes, no entanto, surgem como algo exterior, exprimindo a moral social, a ponto de expressar regras impeditivas de comportamentos que não recebem consagração expressa por determinada coletividade, a certo tempo, ao passo que a boa-fé é algo interior ao ordenamento jurídico, que, com base em comportamentos típicos, será sistematizada mediante a criação de esquemas normativos de atuação. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil. Vol.1, 11.ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 699). 11 SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral da personalidade (reimpressão), Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p.231. 12 Ver TITO, Karenina Carvalho., Responsabilidade Civil por "Infidelidade Virtual"? In:Responsabilidade civil e novas tecnologias/Adriano Marteleto Godinho_ [et al]; coordenado por Guilherme Magalhães Martins, Nelson Rosenvald, Indaiatuba, SP; Editora Foco, 2020, p. 331-347.
Há em curso no mercado de combustíveis do Brasil pelo menos dois movimentos de abertura do setor: i) o abandono da exclusividade da comercialização nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, abrindo-se espaço para o delivery; e ii) o fim da tutela regulatória do modelo de bandeiramento, que impõe ao revendedor que ostente a marca de uma distribuidora ("bandeira") a obrigação de adquirir combustíveis exclusivamente daquela fornecedora. Em ambos os casos, a sistemática de tutela do consumidor, nomeadamente o direito à informação e a responsabilidade do fornecedor, tem sido posta como barreira à abertura e à inovação no setor. Há quem defenda que o delivery e a extinção do bandeiramento são ameaças ao sistema de defesa do consumidor, mas, na realidade, utiliza-se dessa retórica para se proteger um status quo que fomenta a concentração de mercado, prejudicando, ao fim e ao cabo, o próprio consumidor. É isso que discutimos nestas breves linhas. O delivery de combustíveis foi trazido ao Brasil pela GOfit, um aplicativo pelo qual o consumidor indica o local onde deseja receber o combustível e um "minicaminhão tanque" se desloca para abastecer o veículo. O modelo de negócio logo encontraria os entraves da regulação exercida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, cujas normas impõem um modelo de fornecimento exclusivamente nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, e da própria concorrência, que logo lançou mão de argumentos consumeristas, ambientais e de segurança operacional como fundamentos para frear a iniciativa. Entre liminares, permissões e proibições, a própria ANP viu no delivery uma oportunidade de abertura do mercado e instalou o chamado sandbox regulatório, uma alternativa para que a ultrarregulação do setor não se impusesse de forma tão incisiva à inovação trazida pela empresa. Basicamente, a "caixa de areia" implica na criação de um ambiente específico, destacado do ambiente geral, para o desenvolvimento de um modelo experimental. Lá fora, a prática é bastante difundida. No Reino Unido, precursor da prática, o Financial Conduct Authority a define como uma oportunidade para que negócios testem proposições inovativas no mercado, com consumidores reais. Na Alemanha, a prática intitulada reallabore é regulada pelo Bundesministerium für Wirtschaft und Energie (Ministério da Economia e da Energia), que destaca um duplo viés desse tipo de estratégia: oportunizar a inovação e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a regulação por meio de uma "aprendizagem regulatória". Assim, autorizada pela ANP e seguindo uma série de regras de segurança, inclusive mais rígidas do que as regras ordinárias, a empresa passou a operar em três bairros da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo assim, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro editou uma lei proibindo "a prestação de serviço ao consumidor que tenha como objeto o abastecimento de veículo em local diverso do posto de combustível", sujeitando o infrator a multas e até ao cancelamento da inscrição estadual. Tudo em suposta defesa do consumidor. Como desfecho, o Supremo Tribunal Federal declarou a norma inconstitucional, por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia (art. 22, IV, da Constituição Federal), e negando a prevalência do modelo de competência concorrente da União, estados e Distrito Federal para legislar sobre produção e consumo e sobre responsabilidade por dano ao consumidor (art. 24, V e VIII)1. Quanto ao bandeiramento, tudo gira em torno da regra que impõe ao posto de combustível que desejar ostentar a marca de uma distribuidora a exclusividade na aquisição dos produtos daquela distribuidora. A questão é posta pela Resolução ANP nº 41, de 2013, que em seu art. 25, §4º, estabelece que "se o posto revendedor exibir marca comercial de distribuidor em suas instalações, o revendedor deverá adquirir, armazenar e comercializar somente combustível fornecido pelo distribuidor do qual exiba a marca comercial". Pela norma, ao decidir ostentar uma "bandeira", o posto deve adquirir produtos exclusivamente daquele distribuidor. Também aqui a defesa do consumidor, notadamente o direito à informação, está na base da regra, mesmo porque inserida em dispositivo cujo caput preleciona que "o revendedor varejista de combustíveis automotivos deverá informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva, a origem do combustível automotivo comercializado". Em audiência pública, a ANP registrou que a regra de exclusividade concentra poderes em poucos players do mercado e que o abandono dessa regra não enfraqueceria a proteção do consumidor, pois viria acompanhada de reforços informacionais e de responsabilidade do fornecedor. Trata-se, aliás, de orientação mais consentânea com uma lógica de abertura de mercado e com a própria liberdade contratual que está na base das relações privadas e principalmente das relações empresariais. Esses dois aspectos entraram no radar da ANP, que caminha no sentido de uma flexibilização regulatória que permitirá o delivery e extinguirá a tutela regulatória da regra de bandeiramento. Aliás, antecipando esse movimento de abertura, o Governo Federal acaba de editar (em 11 de agosto de 2021) Medida Provisória autorizando os postos a comercializarem combustíveis de outras marcas e a comprarem etanol diretamente dos produtores, justificando tal medida na ampliação da concorrência e no consequente favorecimento do consumidor, permanecendo intacto o seu direito à informação. Ambos os tópicos trazem consigo uma primeira reflexão: a quem interessa a abertura de qualquer mercado? A história mostra que modelos de negócio disruptivos, com os efeitos concorrenciais que lhes são peculiares, normalmente vêm acompanhados de ganhos para o mercado de consumo e, essencialmente, para os próprios consumidores, aprimorando os produtos e serviços colocados ao seu alcance, inclusive com vantagens nos preços. Assim, a inovação é um componente essencial ao desenvolvimento do mercado, que interessa a todos os agentes econômicos, inclusive aos consumidores. Como segunda reflexão, deve-se indagar se a inovação seria incompatível com a sistemática de defesa do consumidor, principalmente no tocante ao direito à informação, à proteção da vida, saúde e segurança e à responsabilidade do fornecedor. Obviamente, não. O Código de Defesa do Consumidor oferece plena proteção inclusive quando se tratar de produto ou serviço potencialmente perigoso ou nocivo. Aliás, perceba-se que, a teor do art. 9º do CDC, a periculosidade ou nocividade do produto ou serviço é contrabalanceada pela ênfase no dever de informação imposto ao fornecedor. A única proibição apriorística fica por conta do fornecimento de produtos ou serviços de alta periculosidade (art. 10), assim considerados aqueles cuja periculosidade ou nocividade extrapole a normalidade e a previsibilidade, o que definitivamente não ocorre no fornecimento de combustíveis fora do posto, pois acompanhado de regras de segurança ainda mais rígidas do que as normalmente seguidas, estabelecidas pela própria ANP como condicionantes do sandbox. Assim, tratando-se de produto ou serviço de periculosidade inerente ou latente, não há falar-se em proibição prévia da atividade, mas em reforço da estrutura normativa de tutela pelas vias da informação ao consumidor e da responsabilidade do fornecedor. Além disso, o CDC abre inegável espaço para a inovação ao consagrar o risco de desenvolvimento como eximente de responsabilidade do fornecedor. Sobre o tema, Paulo Roque Khouri consigna que o risco de desenvolvimento acaba se impondo à coletividade, "que tem inegáveis ganhos com o desenvolvimento tecnológico"2. Essa abertura à inovação é mais um mérito do CDC e a leitura que a doutrina faz sobre o tema se coaduna com um modelo protecionista, mas não paternalista. De todo modo, principalmente em modelos de negócio disruptivos (não apenas inovadores), o desenvolvimento deve vir acompanhado do reforço das estruturas normativas de tutela do consumidor. O que não se admite é que a retórica da tutela consumerista se coloque como barreira a um movimento benéfico ao consumidor e ao mercado. Não se pode, assim, realizar uma espécie de controle prévio de adequação de um modelo de negócio à tutela do consumidor em abstrato, pois isso implicaria paternalismo incompatível com a lógica de livre mercado. É principalmente nas situações da vida que a proteção do consumidor se impõe, não como uma falácia de tutela preventiva. No caso do delivery de combustíveis, sobreleva-se a importância do regime de responsabilização do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço; no caso do fim do bandeiramento, é o direito à informação que merecerá reforço. E tudo isso é plenamente concretizável sem que se altere qualquer nuance do Código ou da sua filosofia protetiva. Agora, com o já decretado fim da tutela regulatória do bandeiramento pelo Governo Federal, é de se esperar uma reação das grandes distribuidoras e certamente o argumento da defesa do consumidor será utilizado. Mas não se pode admitir que essa retórica seja manejada contra o próprio consumidor. A disciplina protetiva não pode funcionar como um filtro antecipado de validação de novos modelos de negócio, principalmente daqueles mais disruptivos. Concretiza-se, sim, na prática das relações de consumo. Havendo risco de confusão, haverá reforço informacional; havendo lesão ao consumidor imputável ao fornecedor, haverá o dever de indenizar, e isso permanece intacto tanto para o delivery de combustíveis quanto para a realidade "pós-bandeiramento".    *Adisson Leal é coordenador da filial Brasília do escritório Magro Advogados. Doutorando em Direito Civil pela USP. Professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. Foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München. Foi Assessor de ministro do STF. **Alberto Coimbra é sócio do escritório Magro Advogados, coordenador das equipes de contencioso cível, precatórios/creditórios e regulatório. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. __________ 1 Trecho da ementa: "A legislação estadual impugnada com o escopo de coibir a atividade de "delivery de gasolina e etanol" exorbitou sua competência e usurpou competência privativa da União para legislar sobre energia. A matéria das normas impugnadas é regulada pela lei 9.478/1997, pela qual se definem normas gerais sobre a política energética nacional e pela resolução 41/2013 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, na qual estabelecidos os requisitos necessários à autorização para o exercício da atividade de revenda varejista de combustíveis automotivos. É inconstitucional norma estadual pela qual usurpada a competência privativa da União para legislar sobre energia e por ela estabelecida regulamentação paralela e contraposta à legislação federal existente, por ofensa ao que se dispõe no inc. IV do art. 22 da Constituição da República. Precedentes." (ADI 6580, rel. Min. Cármen Lúcia, julgada em  12 de maio de 2021). 2 Paulo Roque Khouri, Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo, 6 ed., Editora Atlas, ebook.
O Direito de Família é formado por uma série de deveres previstos no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.1 Dois deveres muito recorrentes em sede de ações de reparação de danos imateriais guardam relação com o descumprimento, por exemplo, do dever de fidelidade recíproca e com o abandono afetivo. A análise da reparação, entendemos e vamos desenvolver nestas breves linhas, deve ser iniciada e finalizada à luz da dignidade do ofendido. Vejamos. Seja a causa de pedir o descumprimento do dever de fidelidade recíproca ou a prática do abandono afetivo, e quando se analisa a condição da vítima, ponderando os interesses dos pais, dos filhos e dos cônjuges, é possível perceber que a prática daqueles atos se trata de verdadeira negação da condição de cônjuge ou ainda, negação à condição de um (a) filho (a). Há sim pura exclusão de sua condição humana de cônjuge e de filho (a), em flagrante ofensa objetiva à dignidade da pessoa humana enquanto ser integrante da família, haja vista que sua condição e desenvolvimento da personalidade, no que diz respeito à família restam, de forma involuntária (portanto, causada por terceiro), interrompida. É análise que deve ser feita, por nossa conta e risco, anterior ao Direito pois, como ensinam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald: "A dignidade é um valor espiritual e moral da pessoa, que constitui dado prévio ao direito. Trata-se de qualidade intrínseca da pessoa humana".2 A dignidade da pessoa humana, o seu estudo, se por um lado se torna tarefa complexa, deve sempre ser analisada enquanto princípio inserido em determinado contexto jurídico. Falar das relações entre seres humanos a partir de condutas de um deles, pode, simples, mas lesivamente, apagar a situação existencial do (a) outro (a), pertencente à família daquele (a). E a família não pode ser palco de atuações neste nível de depreciação da pessoa; muito peço contrário. De sorte que devemos visualizar a pessoa humana com base na Constituição Federal, projetando o seu valor enquanto ser humano integrante da família e que, por conduta de terceiro (a), vê-se encerrada materialmente de sua própria origem ou de um projeto de vida institucionalizado pelo casamento. Aqui então surge um interesse constitucionalmente protegido para fins de reparação por danos extrapatrimoniais. A traição e o abandono afetivo configuram condutas que violam interesses legítimos, como a consideração enquanto ser humano que existe para e pela família. A dignidade humana tem relação direta com o direito civil-constitucional, ou seja, com a obtenção da "[...] máxima realização dos valores constitucionais no campo das relações privadas".3 Na voz de Daniela Courtes Lutzty, a seu turno, o princípio da dignidade da pessoa humana é dotado de eficácia que vincula também os particulares em suas relações.4 Entendemos ocorrer a negação à condição do cônjuge e de filho (a) quando da violação dos deveres aqui referidos. De sorte que antes do que violar textos jurídicos, ocorre verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana enquanto ser integrante de uma família, gerando a injustiça. Orlando Gomes ensina que os elementos constitutivos do ato ilícito se configuram na análise do elemento objetivo ou material: o dano, e o elemento subjetivo: a culpa, ligados pelo necessário nexo de causalidade.5 A responsabilidade, no que nos toca a estas linhas, resta caracterizada por uma conduta violadora (antijurídica, em um primeiro momento), do dever de criação dos filhos ou de fidelidade recíproca, sendo que tal conduta é sim negligente (abandono) para o primeiro caso e imprudente ou, dependendo, até dolosa para o segundo (infidelidade), restando caracterizada a culpa (stricto ou lato senso, a depender da análise), sendo que o dano reside justamente pelo nexo daquelas condutas, no sentido de se anular a condição de cônjuge ou de filho (a), afrontando objetivamente a dignidade da pessoa humana, surgindo a ilicitude, com a negação existencial daquelas pessoas. Quando escrevemos a expressão textos jurídicos encontramos inspiração (por nossa conta e risco), na doutrina de Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior, quando ensinam sobre a teoria geral do direito privado, pois nem sempre "[...] o sistema normativo conduz, necessariamente, à justiça individual".6 É que: "[...] o sistema normativo pode conter textos que conduzam à injustiça ou que possam gerar consequências injustas e, então, é necessário ir além do texto, em busca da Justiça".7 Miguel Reale pondera que a regularidade das condutas dos seres humanos, em termos dos seus comportamentos, facilita a edição de normas reguladoras e sancionadoras de suas condutas, bem como suas consequências sobre eventual violação.8 Destas lições, nos parece claro que a Constituição e a lei não primam pela violação dos deveres aqui referidos, muito pelo contrário. Por analogia aos ensinamentos supra referidos é que vemos a previsão constitucional e infraconstitucional9 quanto à proteção da família, de seus indivíduos,10 e da reparação por danos imateriais11 e que, em relação ao integrante da família, tal reparação vem, em um primeiro momento, como função de promoção de sua dignidade e, caso violada, como função reparatória. Assim, parte-se da dignidade da pessoa humana para (ou além dos) textos jurídicos, em sede da reparação ora em análise. Os textos normativos vão dar efetividade à proteção da pessoa humana. Parte-se da tutela da pessoa humana para os textos; e não contrário! E quando escrevemos para além das leis, das normas, não estamos fugindo dos textos escritos, mas, sim, os incluindo na tutela da pessoa humana. Seria pela lei ou para a pessoa a promoção da dignidade humana? Se se entender pelo primeiro, os códigos valem mais; se se entender pelo segundo, os códigos cumprirão sua missão constitucional de proteção dos integrantes da família (de sua interferência lesiva nos direitos da personalidade do outro), resultando então o nexo causal entre a conduta e o dano imaterial. Ora, será que o pai ou a mãe não sabem que são pai ou mãe? Que tem a responsabilidade por e para um (a) filho? Da mesma forma, o cônjuge não sabe de sua relação para seu/sua parceiro (a)? Claro que sabem. E dependendo da forma como agem, fazem negar a condição existencial daquelas pessoas. Da premissa final acima é que mais do que a antijuridicidade (avançando para o campo da ilicitude), ganha relevo a conduta culposa. Mas, objetivamente, e com destaque nas lições de Aguiar Dias, acerca da culpa, diz esta se tratar de "[...] elemento substancial do procedimento perigoso, animado de consciência vontade".12 E, no particular, envolvendo a traição, por exemplo, muitos daqueles fatos ocorrem às escuras, às escondidas, até que descobertos. Quem age assim, age deliberadamente, pois tem a liberdade de trair, mas, por outro lado, não tem a coragem de assumir a conduta. Pietro Pierlingieri observa que a relação jurídica de Direito de Família também é dotada de prestações e contraprestações para além das questões patrimoniais, ou seja, releva os comportamentos, a lealdade, ponderando que: "Seria necessário estuda-las sob o perfil seja da exigibilidade seja da coercibilidade, em maneira diversa da qual normalmente tais problemáticas foram estudadas referentemente às obrigações".13 Há por aí alguém - filho (a); cônjuge; que anda por este mundo, excluído da vida de um pai ou mãe, de seu cônjuge, sentindo-se humilhado em, por exemplo, nas rodas e conversas com amigos, com familiares, no trabalho, na escola (e isso independe da idade), falar de tal fato. Depara-se com verdadeira humilhação com sua condição de integrante familiar anulada. Certamente não falará de tais fatos. A conduta apaga a realização pessoal do filho ou do cônjuge. Contudo, independentemente da intenção (ou ausência de intenção do autor da conduta), primamos para um olhar humano à vítima da mencionada conduta. A dor ou humilhação será critério para a quantificação do dano. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka aponta para um hiato de cerca de cem anos entre o Código Beviláqua e o Código Miguel Reale, que então justificou modificações sensíveis na legislação relativa à Responsabilidade Civil.14 E a dignidade da pessoa, reforçamos, deve ser sempre objeto de análise e de proteção, em uma escala evolutiva. Portanto, da família para o Direito de Família enquanto o ser humano digno de respeito e consideração, vindo da Constituição para os Códigos a efetividade e promoção à dignidade. Não devemos esquecer, como já ensinou Vicente Ráo, que os casos concretos devem ser tratados com humanidade, benignidade, através da equidade, com objetivo de correção de fórmulas rígidas, gerais, utilizadas pelas normas jurídicas.15 E havendo a injustiça do dano, Maria Celina Bodin de Moraes pondera que: [...] o que torna hoje preferível proteger a vítima em lugar do lesante, é justamente o entendimento (ou, talvez, o sentimento de consciência de nossa coletividade de que a vítima sofreu injustamente; por isso, merece ser reparada.16 Tal tema, em pleno ano de 2021, não deveria ser tão tormentoso, mas, ao o que tudo indica, ainda o é, continuando a abrir espaços ao debate. Afinal, como leciona Pietro Perlingieri, a norma não está isolada, exercendo "[...] a sua função unida ao ordenamento e o seu significado muda com o dinamismo do ordenamento o qual pertence".17 *Felipe Cunha de Almeida é mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e Processual Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor universitário e de diversos cursos de pós-graduação, advogado sênior, parecerista e palestrante, autor de diversos livros, capítulos de livros e artigos. Referências BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. ________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 12. ed. DIAS, Rui Berford (atual). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2015. GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. 1. ed. BRITO, Edvaldo (atual).  Rio de Janeiro: Forense, 2011. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta: evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade. In: Ensaios sobre responsabilidade civil nas pós-modernidade. 1. ed. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; FALAVIGNA, Maria Clara Osuna Diaz (org). Porto Alegre: Magister, 2007. LUTZKY, Daniela Courtes. A reparação de danos imateriais como direito fundamental. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017. NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. REALE, Miguel Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013. __________ 1 Sobre o tema, convidamos para a seguinte leitura: ALMEIDA, Felipe Cunha de. Normatividade e interação entre os deveres pessoais do direito de família, as leis imperfeitas e a responsabilidade civil. In: Revisa Eletrônica da ESA OAB/RS, v. 08, n.º 2 (2020). Porto Alegre: ESA/RS, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 jul. 2021. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 20. 3 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 06. 4 LUTZKY, Daniela Courtes. A reparação de danos imateriais como direito fundamental. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 250. 5 GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. 1. ed. BRITO, Edvaldo (atual).  Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 63. 6 NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 12. 7 NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 12. 8 REALE, Miguel Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 93. 9 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...]. IV - sustento, guarda e educação dos filhos; [...]. 10 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  [...]. Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. [...] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. 11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 12 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 12. ed. DIAS, Rui Berford (atual). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 479. 13 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 252-253. 14 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta: evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade. In: Ensaios sobre responsabilidade civil nas pós-modernidade. 1. ed. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; FALAVIGNA, Maria Clara Osuna Diaz (org). Porto Alegre: Magister, 2007, p. 156. 15 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 108. 16 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 180. 17 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 72.